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NoÇÕeS gerAiS de direito PeNAL INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL .

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CAPÍTULO 1

NoÇÕES GEraiS DE DirEiTo PENaL

Sumário • 1. Definição; 2. Direito Penal, Ciência do Direito Penal, Crimino-logia e Política Criminal; 3. Funcionalismo; 4. Categorias do Direito Penal; 5. “Privatização” do Direito Penal; 6. As velocidades do Direito Penal

1. DEFINIÇÃOA etiqueta “Direito Penal” é criticada por parcela da doutrina. BaSiLEU Garcia, por

exemplo, alega que:“A insuficiência da locução Direito Penal por não abranger um dos dois grandes grupos de providências de combate à criminalidade – o das medidas de segurança, cuja natureza preventiva as distingue das penas, de finalidade primordialmente repressiva. Pretende-se que seria mais apropriado dizer Direito Criminal”1.

Não obstante a crítica, deve-se preferir a expressão Direito Penal, seja porque assim está referida na Constituição Federal (v.g art. 62, §1º, I, b, CF/88), seja porque temos um Código Penal (e não Criminal). Ademais, é esta a expressão adotada pela doutrina majoritária, tanto no Brasil quanto em outros países2.

Superada a controvérsia (sem interesse prático) acerca da terminologia, partimos, agora, para a definição, lembrando que conceito de Direito Penal perpassa por três as-pectos:

(A) sob o aspecto formal ou estático, Direito Penal é um conjunto de normas que qualifica certos comportamentos humanos como infrações penais (crime ou contraven-ção), define os seus agentes e fixa as sanções (pena ou medida de segurança) a serem-lhes aplicadas3.

1. Instituições de Direito Penal – Vol. 1. Tomo I. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 03.2. “[...] é generalizada a preferência pela designação Direito Penal, não só no Brasil como em outros

países. Diritto Penale – em italiano, Derecho Penal – em espanhol, Droit Pénal – em francês, são ex-pressões encontradas muito mais freqüentemente do que Dirito Criminale, Derecho Criminal, Droit Criminel, Para essa predileção mais extensa concorre, sem dúvida, a circunstância de que a punibi-lidade aparece como o característico de maior projeção objetiva ao cuidar-se do crime.” (GARCIA, Basileu. Ob. cit., p. 3).

3. Paulo Queiroz, ao dissertar sobre o assunto, traz diversas conceituações doutrinárias de Direito Pe-nal: “Von Liszt define-o como o conjunto das prescrições emanadas do Estado que ligam ao crime, como fato, a pena, como consequência; Mezger, como o exercício do poder punitivo do Estado, que conecta ao delito, como pressuposto, a pena, como consequência jurídica; Welzel, como a ‘parte

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INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL roGÉrio SaNCHES CUNHa

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(B) sob o aspecto material o Direito Penal refere-se a comportamentos consi-derados altamente reprováveis ou danosos ao organismo social, afetando bens jurí-dicos indispensáveis à sua própria conservação e progresso (nesse sentido, Luiz Régis Prado).

(C) sob o aspecto sociológico ou dinâmico, o Direito Penal é mais um instrumen-to de controle social de comportamentos desviados (ao lado dos outros ramos, como Constitucional, Civil, Administrativo, Comercial, Tributário, Processual, etc.), visando assegurar a necessária disciplina social, bem como a convivência harmônica dos membros do grupo.

A manutenção da paz social, que propicia a regular convivência humana em socieda-de, demanda a existência de normas destinadas a estabelecer diretrizes que, impostas aos indivíduos, determinam ou proíbem determinadas comportamentos. Quando violadas as regras de condutas, surge para o Estado o poder (dever) de aplicar as sanções, civis e/ou penais.

Nessa tarefa (controle social) atuam vários ramos do Direito, cada qual com sua medida sancionadora capazes de inibir novos atos contrários à ordem social. Todavia, te-mos condutas que, por atentarem (de forma relevante e intolerável) contra bens jurídicos especialmente tutelados, determinam reação mais severa por parte do Estado, que passa a cominar sanções de caráter penal, regradas pelo Direito Penal.

O que diferencia uma norma penal das demais impostas coativamente pelo Estado é a espécie de consequência jurídica que traz consigo (cominação das penas e medidas de segurança).

Em razão disso, deve servir como a derradeira trincheira no combate aos comporta-mentos indesejados, aplicando-se de forma subsidiária e racional à preservação daqueles bens de maior significação e relevo.

Vigora no Direito Penal o princípio da intervenção mínima, o qual orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para proteção de determinado bem jurídico. Completa BiTENcoUrT:

do ordenamento jurídico que determina as características da ação delituosa e lhe impõe penas ou medidas de segurança’. Wessels dá uma definição mais completa: ‘por Direito Penal designa-se a parte do ordenamento jurídico que determina os pressupostos da punibilidade, bem como os caracteres específicos da conduta punível, cominando determinadas penas e prevendo, a par de outras consequências jurídicas, especialmente medidas de tratamento de segurança’. Entre nós, Frederico Marques assinala, com razão, que, para se ter uma noção exata, é imprescindível que nela se compreendam todas as relações jurídicas que as normas penais disciplinam, inclusive as que derivam dessa sistematização ordenadora do delito e da pena, apresentando, por isso, o seguinte conceito: ‘conjunto de normas que ligam ao crime, como fato, a pena, como consequência, e disci-plina, também, outras relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabilidade de medidas de segurança e a tutela do direito de liberdade em face do poder de punir do Estado’” (QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 02-03).

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NoÇÕeS gerAiS de direito PeNAL INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL .

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“Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social re-velarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou admi-nistrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais”4.

2. DIREITO PENAL, CIÊNCIA DO DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E POLÍTICA CRIMINAL.

Vimos que Direito Penal é o conjunto de normas com a missão de elevar certos comportamentos humanos à categoria de infrações penais, cominando sanções àqueles que os praticam, sendo natural a existência de uma ciência apta a organizar métodos de interpretação e correta aplicação dessas mesmas normas jurídicas.

Entretanto, há de se ressaltar que a Ciência do Direito Penal não se limita, de forma pura e simples, a abstrair da norma o seu significado, e, a partir daí, conferir-lhe aplicação abstrata.

Em plano mais abrangente, deve essa disciplina se ater às manifestações sociais da conduta criminosa e às condições pessoais daquele que a pratica.

Nas palavras de aNíBaL BrUNo deve ser uma ciência“Que sem deixar de ser essencialmente jurídica, se alimenta da substância das coisas: da realidade social e dos aspectos fenomêni-cos do crime, para o fim de compreender melhor o próprio Direito vigente e favorecer-lhe a sua missão prática de disciplina da crimi-nalidade”5.

Ao lado do Direito Penal e da Ciência do Direito Penal, encontra-se o gênero “ciên-cias penais”, preocupando-se “com a delinquência como fato natural, procurando apon-tar-lhe as causas, com o emprego do método positivo, de observação e experimentação”6. Integram esse grupo a Criminologia e a Política Criminal7.

A Criminologia é ciência empírica que estuda o crime, a pessoa do criminoso, da vítima e o comportamento da sociedade. Não se trata de uma ciência teleológica, que analisa as raízes do crime para discipliná-lo, mas de uma ciência causal-explicativa, que retrata o delito enquanto fato, perquirindo as suas origens, razões da sua existência, os seus contornos e forma de exteriorização.

4. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. vol. 1. 17ª ed. São Paulo: Sarai-va, 2012, p. 39.

5. Direito Penal – Parte Geral. Tomo 1º. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 41.6. Ob. cit., p. 67.7. Também fazem parte das ciências penais a antropologia criminal, a psicologia e a psiquiatria crimi-

nais, a sociologia criminal, estatística criminal e penalogia.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL roGÉrio SaNCHES CUNHa

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A Criminologia “visa o conhecimento do crime como fenômeno individual e social. Estuda-o, bem como ao seu autor, sob os aspectos bio-sociológicos”8. Não por outro motivo, este ramo da ciência penal abarca a Biologia Criminal (que, por sua vez, engloba a Antropologia Criminal, a Psicologia e Psiquiatria criminais) e a Sociologia Criminal.

A Política Criminal, por sua vez, tem no seu âmago a específica finalidade de traba-lhar as estratégias e meios de controle social da criminalidade (caráter teleológico). É ca-racterística da Política Criminal a posição de vanguarda em relação ao direito vigente, vez que, enquanto ciência de fins e meios, sugere e orienta reformas à legislação positivada9.

Ciências penais

Direito penal Criminologia Política criminal

Finalidade

Analisando fatos humanos indesejados, define quais devem ser rotulados como infrações penais, anunciando as respectivas sanções.

Ciência empírica que estuda o crime, a pessoa do crimino-so, da vítima e o comporta-mento da sociedade

Trabalha as estratégias e meios de controle so-cial da criminalidade.

Objeto O crime enquanto norma O crime enquanto fato O crime enquanto valor

Exemplo

O Direito Penal define o cri-me de homicídio

A Criminologia estuda o fenô-meno do homicídio, o agente homicida, a vítima e o com-portamento da sociedade

A Política Criminal estu-da formas de diminuir o homicídio

3. FUNCIONALISMOO funcionalismo10 é um movimento da atualidade, uma corrente doutrinária que

visa analisar a real função do Direito Penal. Muito embora não haja pleno consenso acerca da sua teorização, sobressaem-se dois segmentos importantes: o funcionalismo teleológico e o funcionalismo sistêmico.

Para o funcionalismo teleológico (ou moderado), que tem como maior expoente cLaUS roxiN, a função do Direito Penal é assegurar bens jurídicos, assim considerados aqueles valores indispensáveis à convivência harmônica em sociedade, valendo-se de me-didas de política criminal.

Já de acordo com o funcionalismo sistêmico (ou radical), defendido por GüNThEr Ja-koBS, a função do Direito Penal é a de assegurar o império da norma, ou seja, resguardar o sistema, mostrando que o direito posto existe e não pode ser violado. Quando o Direito Penal é chamado a atuar, o bem jurídico protegido já foi violado, de modo que sua função primor-dial não pode ser a segurança de bens jurídicos, mas sim a garantia de validade do sistema.

Nesta linha de raciocínio, para JakoBS

8. Ob. cit., p. 82.9. Ob. cit., p. 49.10. As correntes funcionalistas serão estudadas de forma mais aprofundada em tópico próprio.

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“aquele que se desvia da norma por princípio não oferece qualquer garantia de que se comportará como pessoa; por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo”.

Surge assim o Direito Penal do Inimigo, cuidando de maneira própria o infiel ao sistema, aplicando-se lhe não o Direito, “vínculo entre pessoas que, por sua vez, são titu-lares de direitos e deveres”, mas sim a coação, repressão necessária àqueles que perderam o seu status de cidadão11.

Na doutrina brasileira prevalece o entendimento de que o Direito Penal serve, efe-tivamente, para assegurar bens jurídicos (teoria iniciada por Birnbaum, em 1834), sem desconsiderar a sua missão indireta (ou mediata): o controle social e a limitação do poder punitivo estatal.

A seleção dos bens jurídicos a serem tutelados terá como norte a Constituição Federal, Carta que exerce um duplo papel: orienta o legislador, elegendo valores con-siderados indispensáveis à manutenção da sociedade e, segundo a concepção garantista do Direito Penal, impede que esse mesmo legislador, com a suposta finalidade protetiva de bens, proíba ou imponha determinados comportamentos, violando direitos funda-mentais atribuídos a toda pessoa humana, também consagrados na Bíblia Política do Estado.

4. CATEGORIAS DO DIREITO PENALA doutrina divide o Direito Penal em categorias, destacando-se:A) Direito Penal Substantivo e Direito Penal Adjetivo.

Direito Penal substantivo corresponde ao direito material, que cria as figuras cri-minosas e contravencionais, enquanto o Direito Penal adjetivo, que seria o direito pro-cessual, trata das normas destinadas a instrumentalizar a atuação do Estado diante da ocorrência de um crime.

Atualmente, no entanto, a distinção não apresenta razão (ou qualquer interesse prá-tico), ante o reconhecimento do Direito Processual Penal como ramo autônomo, dotado de regras e princípios próprios.

(B) Direito Penal Objetivo e Direito Penal Subjetivo.

Direito Penal objetivo (ou “jus poenale”) traduz o conjunto de leis penais em vigor no país, devendo observar a legalidade (princípio analisado em tópico próprio). Direito Penal subjetivo (ou “jus puniendi”) refere-se ao direito de punir do Estado, ou seja, a capacidade que o Estado tem de produzir e fazer cumprir suas normas12.

11. JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 23. O inimigo da contemporaneidade é, para Jakobs, o terrorista, o traficante de drogas, de armas e de seres humanos, os membros de organizações criminosas transnacionais.

12. Em que pese o interesse teórico de tal diferenciação, na prática um sempre estará atrelado ao outro, exercendo o Estado seu direito de punir apenas e tão somente com base nas normas postas, por ele

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INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL roGÉrio SaNCHES CUNHa

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O Direito Penal subjetivo pode ser subdividido em: (i) Direito Penal subjetivo po-sitivo, que vem a ser capacidade conferida ao Estado de criar e executar normas penais13; e (ii) Direito Penal subjetivo negativo, caracterizado pela faculdade de derrogar preceitos penais ou restringir o alcance das figuras delitivas, atividade que cabe preponderantemen-te ao STF, por meio da declaração de inconstitucionalidade de normas penais.

O poder punitivo do Estado, contudo, não é incondicionado, encontrando limites assim resumidos nos seus principais aspectos:

(i) quanto ao modo: o direito de punir deve respeito aos direitos e garantias funda-mentais14, observando, por exemplo, o princípio da humanização das penas, bem com da dignidade da pessoa humana;

(ii) quanto ao espaço: em regra, aplica-se a lei penal somente aos fatos praticados apenas no território brasileiro, prova da nossa soberania;

(iii) quanto ao tempo: o direito de punir não é eterno, sendo, em regra, limitado no tempo pelo instituto da prescrição (causa extintiva da punibilidade prevista no art. 107 do Código Penal).

A este respeito, PaULo céSar BUSaTo bem lembra que o Estado não é absolutamente livre para fazer uso desse poder de castigar através de emprego da lei. Sua tarefa legislativa, e de aplicação da legislação, encontram-se limitadas por uma série de balizas normativas formadas por postulados, princípios e regras, tais como a legalidade, a necessidade, a imputação subjetiva, a culpabilidade, a humanidade, a intervenção mínima, e todos os demais direitos e garantias fundamentais como a dignidade da pessoa humana e a neces-sidade de castigo15.

É sabido, ainda, que o jus puniendi é de titularidade exclusiva do Estado, ficando proibida a justiça privada16.

mesmo criadas.13. Nesse tanto, merecem ser lembradas as criminalizações primária e secundária. A criminalização

primária diz respeito ao poder de criar a lei penal e introduzir no ordenamento jurídico a tipificação criminal de determinada conduta. A criminalização secundária, por sua vez, atrela-se ao poder es-tatal para aplicar a lei penal introduzida no ordenamento com a finalidade de coibir determinados comportamentos antissociais. Na definição de Zaffaroni, criminalização primária "é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas" e a cri-minalização secundária "é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente" (ob. cit. p. 43).

14. Como bem explica J. J. Gomes Canotilho, mesmo nos casos em que o legislador se encontre consti-tucionalmente autorizado a editar normas restritivas, permanecerá vinculado à salvaguarda do nú-cleo essencial dos direitos, liberdades e garantias do homem e do cidadão (cf. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 2 ed. Coimbra: Almedina, p. 418-420).

15. Direito Penal - Parte Geral, Ed. Atlas, 2013, SP, p. 3/4.16. Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítimas, usurpando prerro-

gativa dos magistrados, caracteriza crime (exercício arbitrário das próprias razões, art. 345 do CP). Quanto à possível menção ao instituto da legítima defesa e à ação penal privada como exceções a

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Embora seja esta a regra, há clara exceção no artigo 57 da Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio), que enuncia:

“Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as insti-tuições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus mem-bros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte”.

Note-se que, nesta hipótese específica, o Estado conferiu a ente não estatal a aplica-ção de sanção penal, impondo, ao final, restrições, ainda que mínimas.

Por fim, merece registro o Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma17, “instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional”, com caráter “complementar às jurisdições penais nacionais” (art. 1º).

O Tribunal tem competência subsidiária em relação às jurisdições nacionais dos países signatários e não representa exceção à exclusividade do direito de punir do Estado.

Como bem alerta VaLério mazzUoLi18, o art. 1º do referido Estatuto consagrou o princípio da complementariedade. O TPI não pode intervir indevidamente nos siste-mas judiciais nacionais, que continuam tendo a responsabilidade de investigar e processar os crimes cometidos pelos seus nacionais, salvo nos casos em que os Estados se mostrem incapazes ou não demonstrem efetiva vontade de punir os seus criminosos. Em outras palavras, o TPI será chamado a intervir somente se e quando a justiça repressiva interna falhe, seja omissa, insuficiente19.

(C) Direito Penal de Emergência e Direito Penal Simbólico

Movido pela sensação de insegurança presente na sociedade, o Direito Penal de Emergência, atendendo demandas de criminalização, cria normas de repressão, afastan-do-se, não raras vezes, de seu importante caráter subsidiário e fragmentário, assumindo feição nitidamente punitivista, ignorando as garantias do cidadão.

Esquecendo a real missão do Direito Penal, o legislador atua pensando (quase que apenas) na opinião pública, querendo, com novos tipos penais e/ou aumento de penas e restrições de garantias, devolver para a sociedade a (ilusória) sensação de tranquilidade.

essa titularidade, refuta de imediato Flávio Monteiro de Barros, observando, não sem razão, que, “na legítima defesa, o Estado confere ao particular o direito de defender-se, e não o direito de apli-car a sanção penal (jus puniendi). E, nos crimes de ação penal privada, o particular exerce apenas o jus persequendi, pois o poder de punir (jus puniendi) é indelegável, sendo, portanto, privativo do Estado” (Ob. cit., p. 07).

17. Incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro através do decreto nº 4.388/2002.18. O Tribunal Penal Internacional e o direito brasileiro. 2 ed. São Paulo: Premier Máxima, 2008, p. 10.19. Luiz Flávio Gomes e Antonio Molina discordam, lecionando que o Tribunal Penal Internacional tam-

bém constitui exceção ao monopólio estatal sobre o direito de punir, já que o agente é submetido a julgamento por um órgão supranacional (ob. cit. p 137).

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INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL roGÉrio SaNCHES CUNHa

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Permite a edição de leis que cumprem função meramente representativa, afastando-se das finalidades legítimas da pena, campo fértil para um Direito Penal Simbólico.

Para muitos, a Lei nº 8.072/90 (crimes hediondos) é expressão desse Direito.

(D) Direito Penal Promocional

Criticado pela doutrina, o Direito Penal Promocional (político ou demagogo) sur-ge quando o Estado, visando concretizar seus objetivos políticos, emprega as leis penais como instrumento, promovendo seus interesses, estratégia que se afasta do mandamento da intervenção mínima, podendo (e devendo) valer-se, para tanto, dos outros ramos do Direito. É equivocada a utilização do Direito Penal como ferramenta de transformação social. Até 2009, a mendicância era infração penal!

(E) Direito de Intervenção

Membro da Escola de Frankfurt, Winfried Hassemer é o maior expoente do Di-reito de Intervenção. Parte da premissa de que o Direito Penal não deve ser alargado, mas utilizado apenas na proteção de bens jurídicos individuais (vida, integridade física, liberdade individual, honra, propriedade etc) e daquelas que causem perigo concreto.

As infrações de índole difusa (ou coletiva) e causadoras de perigo abstrato seriam tuteladas pela Administração Pública, por meio de um sistema jurídico de garantias ma-teriais e processuais mais flexíveis, sem risco da privação de liberdade do infrator. Situado entre o direito penal e o direito administrativo, nasce o Direito de Intervenção.

Para Hassemer, esta seria a melhor maneira de combater a criminalidade moderna, responsável pelos crimes repletos de novos contornos, condutas delitivas que demandam tratamento mais amplo e célere. Esta administrativização do direito penal evitaria a im-punidade e a sua transformação em um direito penal simbólico.

Figueiredo Dias, de forma crítica, ensina que o Direito de Intervenção seria uma inversão temerária dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, uma vez que relegaria à seara mais suave do ordenamento jurídico justamente às infrações que colocam em maior risco a estrutura da sociedade.

(F) Direito Penal como Proteção de contextos da vida em sociedade

Formulada por Günther Stratenwerth, esta perspectiva do Direito Penal se opõe ao que pretende WiNfriED haSSEmEr. Para STraTENWErTh, deve-se relegar ao segundo plano a proteção dos interesses estritamente individuais, dando-se enfoque máximo à proteção dos interesses difusos, da coletividade, protegendo-se as futuras gerações.

A noção de bem jurídico é superada, sendo substituída pela tutela direta de rela-ções ou contextos de vida. Converte-se, com isso, o Direito Penal (que, em regra, reage a posteriori, contra um fato lesivo individualmente delimitado) a um direito de gestão punitiva de riscos gerais.

Parcela importante da doutrina critica esta proposta, vislumbrando nela uma apro-ximação indesejada com o direito penal do inimigo, na medida em que pugna por uma

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expansão do direito penal cumulada com a antecipação das punições como forma de proteger a sociedade.

(G) Direito penal garantista (modelo de Luigi Ferrajoli)

A Constituição é o fundamento de validade de todas as normas infraconstitucionais, que deverão respeitar os direitos fundamentais nela consagrados20. As garantias dividem--se em:

(i) Primárias: são os limites e vínculos normativos impostos, na tutela do direito, ao exercício de qualquer poder (ex: proibições e obrigações, formais e substanciais).

(ii) Secundárias: são as diversas formas de reparação subsequentes às violações das garantias primárias (ex: anulabilidade dos atos inválidos e responsabilidade por atos ilí-citos).

O garantismo estabelece critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando normas ou formas de controle social que se sobreponham aos direitos e garantias individuais. Assim, o garantismo exerce a função de estabelecer o objeto e os limites do direito penal nas sociedades democráticas, utilizando-se dos direitos funda-mentais, que adquirem status de intangibilidade.

A teoria garantista penal de fErraJoLi tem sua base fincada em dez axiomas ou implicações dêonticas que não expressam proposições assertivas, mas proposições pres-critivas; não descrevem o que ocorre, mas prescrevem o que deva ocorrer; não enunciam as condições que um sistema penal efetivamente satisfaz, mas as que deva satisfazer em adesão aos seus princípios normativos internos e/ou a parâmetros de justificação externa. Cada um dos axiomas do garantismo proposto por LUiGi fErraJoLi se relaciona com um princípio. Vejamos:

Axioma Princípio correlato

Nulla poena sine crimine Princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito

Nullum crimen sine lege Princípio da legalidade

Nulla lex (poenalis) sine necessitate Princípio da necessidade ou da economia do direito penal

Nulla necessitas sine injuria Princípio da lesividade ou da ofensividade do evento

Nulla injuris sine acione Princípio da materialidade ou da exterioridade da ação

Nulla actio sine culpa Princípio da culpabilidade

Nulla culpa sine judicio Princípio da jurisdicionariedade

Nullum judicio sine accusatione Princípio acusatório

20. Alertamos que os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Über-massverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Nesse sentido: STF – HC 104.410/RS.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL roGÉrio SaNCHES CUNHa

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Nullum accusatio sine probatione Princípio do ônus da prova ou da verificação

Nulla probatio sine defensione Princípio da defesa ou da falseabilidade

5. “PRIVATIZAÇÃO” DO DIREITO PENALA “privatização” do direito penal é a expressão utilizada por parte da doutrina para

destacar o (atual e crescente) papel da vítima no âmbito criminal.Depois de anos relegada ao segundo (ou terceiro) plano, inúmeros institutos penais

e processuais penais foram criados sob o enfoque da vítima, preponderando seu interesse sobre o punitivo do Estado.

O dano causado pelo crime finalmente encontra-se na linha de ação do juízo criminal. Parece-nos que o divisor de águas veio com a criação da Lei 9.099/95, prevendo uma etapa de composição civil entre os envolvidos no crime, acordo que, uma vez homologado, conduz à renúncia do direito de queixa ou representação (art. 74 da Lei dos Juizados Especiais21).

A extinção da punibilidade no cumprimento da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95) ou sursis (art. 81 do CP) depende da reparação do dano gerado para a vítima.

A Lei 9.714/98 criou como pena alternativa à prisão a prestação pecuniária (art. 45, § 1º, CP), anunciando como possível destinatário a vítima ou seus dependentes.

A Lei 11.719/08 autorizou o juiz criminal, no momento da sentença condenatória, fixar o quantum mínimo indenizatório para reparar os danos causados pela prática da infração penal (art. 387, IV, CPP).

Está-se criando campo fértil no cenário jurídico-penal para a Justiça Restaurativa, caracterizada como uma nova perspectiva na solução do conflito instaurado pela violação da norma penal.

Trata-se de uma forma diferente de encarar o crime e os personagens nele envolvidos, sobressaindo a reassunção, pelas partes, do poder sobre as decisões a serem tomadas após a prática do delito – poder este tradicionalmente “usurpado” pelo Estado, que historica-mente alijou a vítima, valorizando um sistema punitivo imparcial.

Este sistema é marcado pelo surgimento de uma “terceira via”, quebrando a duali-dade da função da pena, até então restrita à retribuição e prevenção, incluindo a repara-ção como nova possibilidade.

roGério GrEco, lembrando as lições de ULfriD NEUmaNN, bem observa:

21. Lei nº 9.099/95. Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicio-nada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou represen-tação.