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33 NOÇÕES GERAIS DE DIREITO PENAL INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL . CAPÍTULO 1 NOÇÕES GERAIS DE DIREITO PENAL Sumário • 1. Definição; 2. Direito Penal, Ciência do Direito Penal, Crimino- logia e Política Criminal.; 3. Funcionalismo; 4. Categorias do Direito Penal; 5. “Privatização” do Direito Penal; 6. As velocidades do Direito Penal 1. DEFINIÇÃO A etiqueta “Direito Penal” é criticada por parcela da doutrina. Basileu Garcia, por exemplo, alega que: “A insuficiência da locução Direito Penal por não abranger um dos dois grandes grupos de providências de combate à criminalidade – o das medidas de segurança, cuja natureza preventiva as distingue das penas, de finalidade primordialmente repressiva. Pretende-se que seria mais apropriado dizer Direito Criminal” 1 . Não obstante a crítica, deve-se preferir a expressão Direito Penal, seja porque assim está referida na Constituição Federal (v.g art. 62, §1º, I, b, CF/88), seja porque temos um Código Penal (e não Criminal). Ademais, é esta a expressão adotada pela doutrina majoritária, tanto no Brasil quanto em outros países 2 . Superada a controvérsia (sem interesse prático) acerca da terminologia, parti- mos, agora, para a definição, lembrando que conceito de Direito Penal perpassa por três aspectos: (A) sob o aspecto formal ou estático, Direito Penal é um conjunto de nor- mas que qualifica certos comportamentos humanos como infrações penais (crime ou contravenção), define os seus agentes e fixa as sanções (pena ou medida de segu- rança) a serem-lhes aplicadas 3 . 1. Instituições de Direito Penal – Vol. 1. Tomo I. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 03. 2. “[...] é generalizada a preferência pela designação Direito Penal, não só no Brasil como em outros países. Diritto Penale – em italiano, Derecho Penal – em espanhol, Droit Pénal – em francês, são ex- pressões encontradas muito mais freqüentemente do que Dirito Criminale, Derecho Criminal, Droit Criminel, Para essa predileção mais extensa concorre, sem dúvida, a circunstância de que a punibi- lidade aparece como o característico de maior projeção objetiva ao cuidar-se do crime.” (GARCIA, Basileu. Ob. cit., p. 3). 3. Paulo Queiroz, ao dissertar sobre o assunto, traz diversas conceituações doutrinárias de Direito Penal: “Von Liszt define-o como o conjunto das prescrições emanadas do Estado que ligam ao crime, como fato, a pena, como consequência; Mezger, como o exercício do poder punitivo do Estado, que

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NOÇÕES GERAIS DE DIREITO PENAL INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL .

CAPÍTULO 1

NOÇÕES GERAIS DE DIREITO PENAL

Sumário • 1. Definição; 2. Direito Penal, Ciência do Direito Penal, Crimino-logia e Política Criminal.; 3. Funcionalismo; 4. Categorias do Direito Penal; 5. “Privatização” do Direito Penal; 6. As velocidades do Direito Penal

1. DEFINIÇÃOA etiqueta “Direito Penal” é criticada por parcela da doutrina. Basileu Garcia,

por exemplo, alega que:

“A insuficiência da locução Direito Penal por não abranger um dos dois grandes grupos de providências de combate à criminalidade – o das medidas de segurança, cuja natureza preventiva as distingue das penas, de finalidade primordialmente repressiva. Pretende-se que seria mais apropriado dizer Direito Criminal”1.

Não obstante a crítica, deve-se preferir a expressão Direito Penal, seja porque assim está referida na Constituição Federal (v.g art. 62, §1º, I, b, CF/88), seja porque temos um Código Penal (e não Criminal). Ademais, é esta a expressão adotada pela doutrina majoritária, tanto no Brasil quanto em outros países2.

Superada a controvérsia (sem interesse prático) acerca da terminologia, parti-mos, agora, para a definição, lembrando que conceito de Direito Penal perpassa por três aspectos:

(A) sob o aspecto formal ou estático, Direito Penal é um conjunto de nor-mas que qualifica certos comportamentos humanos como infrações penais (crime ou contravenção), define os seus agentes e fixa as sanções (pena ou medida de segu-rança) a serem-lhes aplicadas3.

1. Instituições de Direito Penal – Vol. 1. Tomo I. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 03.

2. “[...] é generalizada a preferência pela designação Direito Penal, não só no Brasil como em outros países. Diritto Penale – em italiano, Derecho Penal – em espanhol, Droit Pénal – em francês, são ex-pressões encontradas muito mais freqüentemente do que Dirito Criminale, Derecho Criminal, Droit Criminel, Para essa predileção mais extensa concorre, sem dúvida, a circunstância de que a punibi-lidade aparece como o característico de maior projeção objetiva ao cuidar-se do crime.” (GARCIA, Basileu. Ob. cit., p. 3).

3. Paulo Queiroz, ao dissertar sobre o assunto, traz diversas conceituações doutrinárias de Direito Penal: “Von Liszt define-o como o conjunto das prescrições emanadas do Estado que ligam ao crime, como fato, a pena, como consequência; Mezger, como o exercício do poder punitivo do Estado, que

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INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL ROGÉRIO SANCHES CUNHA

(B) sob o aspecto material o Direito Penal refere-se a comportamentos con-siderados altamente reprováveis ou danosos ao organismo social, afetando bens jurídicos indispensáveis à sua própria conservação e progresso (nesse sentido, Luiz Régis Prado).

(C) sob o aspecto sociológico ou dinâmico, o Direito Penal é mais um ins-trumento de controle social de comportamentos desviados (ao lado dos outros ramos, como Constitucional, Civil, Administrativo, Comercial, Tributário, Proces-sual, etc.), visando assegurar a necessária disciplina social, bem como a convivência harmônica dos membros do grupo.

A manutenção da paz social, que propicia a regular convivência humana em so-ciedade, demanda a existência de normas destinadas a estabelecer diretrizes que, impostas aos indivíduos, determinam ou proíbem determinadas comportamentos. Quando violadas as regras de condutas, surge para o Estado o poder (dever) de apli-car as sanções, civis e/ou penais.

Nessa tarefa (controle social) atuam vários ramos do Direito, cada qual com sua medida sancionadora capazes de inibir novos atos contrários à ordem social. Toda-via, temos condutas que, por atentarem (de forma relevante e intolerável) contra bens jurídicos especialmente tutelados, determinam reação mais severa por parte do Estado, que passa a cominar sanções de caráter penal, regradas pelo Direito Penal.

O que diferencia uma norma penal das demais impostas coativamente pelo Estado é a espécie de consequência jurídica que traz consigo (cominação das penas e medidas de segurança).

Em razão disso, deve servir como a derradeira trincheira no combate aos com-portamentos indesejados, aplicando-se de forma subsidiária e racional à preservação daqueles bens de maior significação e relevo.

Vigora no Direito Penal o princípio da intervenção mínima, o qual

conecta ao delito, como pressuposto, a pena, como consequência jurídica; Welzel, como a ‘parte do ordenamento jurídico que determina as características da ação delituosa e lhe impõe penas ou medidas de segurança’. Wessels dá uma definição mais completa: ‘por Direito Penal designa-se a parte do ordenamento jurídico que determina os pressupostos da punibilidade, bem como os carac-teres específicos da conduta punível, cominando determinadas penas e prevendo, a par de outras consequências jurídicas, especialmente medidas de tratamento de segurança’. Entre nós, Frederico Marques assinala, com razão, que, para se ter uma noção exata, é imprescindível que nela se com-preendam todas as relações jurídicas que as normas penais disciplinam, inclusive as que derivam dessa sistematização ordenadora do delito e da pena, apresentando, por isso, o seguinte conceito: ‘conjunto de normas que ligam ao crime, como fato, a pena, como consequência, e disciplina, tam-bém, outras relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabilidade de medidas de segu-rança e a tutela do direito de liberdade em face do poder de punir do Estado’” (QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 02-03).

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NOÇÕES GERAIS DE DIREITO PENAL INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL .

“Orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminali-zação de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua crimina-lização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais” 4.

2. DIREITO PENAL, CIÊNCIA DO DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E POLÍTICA CRIMINAL.

Vimos que Direito Penal é o conjunto de normas com a missão de elevar cer-tos comportamentos humanos à categoria de infrações penais, cominando sanções àqueles que os praticam, sendo natural a existência de uma ciência apta a organizar métodos de interpretação e correta aplicação dessas mesmas normas jurídicas.

Entretanto, há de se ressaltar que a Ciência do Direito Penal não se limita, de forma pura e simples, a abstrair da norma o seu significado, e, a partir daí, conferir-lhe aplicação abstrata.

Em plano mais abrangente, deve essa disciplina se ater às manifestações sociais da conduta criminosa e às condições pessoais daquele que a pratica.

Nas palavras de Aníbal Bruno deve ser uma ciência

“Que sem deixar de ser essencialmente jurídica, se alimenta da substância das coi-sas: da realidade social e dos aspectos fenomênicos do crime, para o fim de com-preender melhor o próprio Direito vigente e favorecer-lhe a sua missão prática de disciplina da criminalidade”5.

Ao lado do Direito Penal e da Ciência do Direito Penal, encontra-se o gênero “ciências penais”, preocupando-se “com a delinquência como fato natural, procu-rando apontar-lhe as causas, com o emprego do método positivo, de observação e experimentação”6. Integram esse grupo a Criminologia e a Política Criminal7.

A Criminologia é ciência empírica que estuda o crime, a pessoa do criminoso, da vítima e o comportamento da sociedade. Não se trata de uma ciência teleológica, que analisa as raízes do crime para discipliná-lo, mas de uma ciência causal-explica-tiva, que retrata o delito enquanto fato, perquirindo as suas origens, razões da sua existência, os seus contornos e forma de exteriorização.

4. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. vol. 1. 17ª ed. São Paulo: Sarai-va, 2012, p. 39.

5. Direito Penal – Parte Geral. Tomo 1º. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 41.

6. Ob. cit., p. 67.

7. Também fazem parte das ciências penais a antropologia criminal, a psicologia e a psiquiatria crimi-nais, a sociologia criminal, estatística criminal e penalogia.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL ROGÉRIO SANCHES CUNHA

A Criminologia “visa o conhecimento do crime como fenômeno individual e so-cial. Estuda-o, bem como ao seu autor, sob os aspectos bio-sociológicos”8. Não por outro motivo, este ramo da ciência penal abarca a Biologia Criminal (que, por sua vez, engloba a Antropologia Criminal, a Psicologia e Psiquiatria criminais) e a Socio-logia Criminal.

A Política Criminal, por sua vez, tem no seu âmago a específica finalidade de trabalhar as estratégias e meios de controle social da criminalidade (caráter teleo-lógico). É característica da Política Criminal a posição de vanguarda em relação ao direito vigente, vez que, enquanto ciência de fins e meios, sugere e orienta reformas à legislação positivada9.

Ciências penais

Direito penal Criminologia Política criminal

Finalidade

Analisando fatos huma-nos indesejados, define quais devem ser rotu-lados como infrações

penais, anunciando as respectivas sanções.

Ciência empírica que estuda o crime, a pessoa do criminoso, da vítima e o comportamento da

sociedade

Trabalha as estratégias e meios de controle

social da criminalidade.

Objeto O crime enquanto norma

O crime enquanto fato O crime enquanto valor

3. FUNCIONALISMOO funcionalismo10 é um movimento da atualidade, uma corrente doutrinária

que visa analisar a real função do Direito Penal. Muito embora não haja pleno con-senso acerca da sua teorização, sobressaem-se dois segmentos importantes: o fun-cionalismo teleológico e o funcionalismo sistêmico.

Para o funcionalismo teleológico (ou moderado), que tem como maior ex-poente Claus Roxin, a função do Direito Penal é assegurar bens jurídicos, assim considerados aqueles valores indispensáveis à convivência harmônica em sociedade, valendo-se de medidas de política criminal.

Já de acordo com o funcionalismo sistêmico (ou radical), defendido por Günther Jakobs, a função do Direito Penal é a de assegurar o império da norma, ou seja, resguardar o sistema, mostrando que o direito posto existe e não pode ser violado. Quando o Direito Penal é chamado a atuar, o bem jurídico protegido já foi

8. Ob. cit., p. 82.

9. Ob. cit., p. 49.

10. As correntes funcionalistas serão estudadas de forma mais aprofundada em tópico próprio.

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NOÇÕES GERAIS DE DIREITO PENAL INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL .

violado, de modo que sua função primordial não pode ser a segurança de bens jurídi-cos, mas sim a garantia de validade do sistema.

Nesta linha de raciocínio, para Jakobs

“aquele que se desvia da norma por princípio não oferece qualquer garantia de que se comportará como pessoa; por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo”.

Surge assim o Direito Penal do Inimigo, cuidando de maneira própria o infiel ao sistema, aplicando-se lhe não o Direito, “vínculo entre pessoas que, por sua vez, são titulares de direitos e deveres”, mas sim a coação, repressão necessária àqueles que perderam o seu status de cidadão11.

Na doutrina brasileira prevalece o entendimento de que o Direito Penal ser-ve, efetivamente, para assegurar bens jurídicos (teoria iniciada por Birnbaum, em 1834), sem desconsiderar a sua missão indireta (ou mediata): o controle social e a limitação do poder punitivo estatal.

A seleção dos bens jurídicos a serem tutelados terá como norte a Constituição Federal, Carta que exerce um duplo papel: orienta o legislador, elegendo valores con-siderados indispensáveis à manutenção da sociedade e, segundo a concepção garan-tista do Direito Penal, impede que esse mesmo legislador, com a suposta finalida-de protetiva de bens, proíba ou imponha determinados comportamentos, violando direitos fundamentais atribuídos a toda pessoa humana, também consagrados na Bíblia Política do Estado.

4. CATEGORIAS DO DIREITO PENALA doutrina divide o Direito Penal em categorias, destacando-se:A) Direito Penal Substantivo e Direito Penal Adjetivo.Direito Penal substantivo corresponde ao direito material, que cria as figu-

ras criminosas e contravencionais, enquanto o Direito Penal adjetivo, que seria o direito processual, trata das normas destinadas a instrumentalizar a atuação do Estado diante da ocorrência de um crime.

Atualmente, no entanto, a distinção não apresenta razão (ou qualquer interesse prático), ante o reconhecimento do Direito Processual Penal como ramo autônomo, dotado de regras e princípios próprios.

(B) Direito Penal Objetivo e Direito Penal Subjetivo.Direito Penal objetivo (ou “jus poenale”) traduz o conjunto de leis penais em

vigor no país, devendo observar a legalidade (princípio analisado em tópico próprio).

11. JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Ja-neiro: Lumen Juris, 2008, p. 23. O inimigo da contemporaneidade é, para Jakobs, o terrorista, o traficante de drogas, de armas e de seres humanos, os membros de organizações criminosas trans-nacionais.

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INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL ROGÉRIO SANCHES CUNHA

Direito Penal subjetivo (ou “jus puniendi”) refere-se ao direito de punir do Estado, ou seja, a capacidade que o Estado tem de produzir e fazer cumprir suas normas12.

O Direito Penal subjetivo pode ainda ser subdividido em13: (i) Direito Penal subjetivo positivo, que vem a ser capacidade conferida ao Estado de criar e executar normas penais; e (ii) Direito Penal subjetivo negativo, caracterizado pela faculdade de derrogar preceitos penais ou restringir o alcance das figuras delitivas, atividade que cabe ao STF, por meio da declaração de inconstitucionalidade de normas penais.

O poder punitivo do Estado não é incondicionado, encontrando limites assim resumidos nos seus principais aspectos:

(i) quanto ao modo: o direito de punir deve respeito aos direitos e garantias fundamentais14, observando, por exemplo, o princípio da humanização das penas, bem com da dignidade da pessoa humana;

(ii) quanto ao espaço: em regra, aplica-se a lei penal somente aos fatos pratica-dos apenas no território brasileiro, prova da nossa soberania;

(iii) quanto ao tempo: o direito de punir não é eterno, sendo, em regra, limita-do no tempo pelo instituto da prescrição (causa extintiva da punibilidade prevista no art. 107 do Código Penal).

É sabido, ainda, que o jus puniendi é de titularidade exclusiva do Estado, ficando proibida a justiça privada15.

Embora seja esta a regra, há clara exceção no artigo 57 da Lei nº 6.001/73 (Es-tatuto do Índio), que enuncia:

“Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam cará-ter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte”.

12. Em que pese o interesse teórico de tal diferenciação, na prática um sempre estará atrelado ao outro, exercendo o Estado seu direito de punir apenas e tão somente com base nas normas postas, por ele mesmo criadas.

13. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1. Niterói: Impetus, p. 10.

14. Como bem explica J. J. Gomes Canotilho, mesmo nos casos em que o legislador se encontre consti-tucionalmente autorizado a editar normas restritivas, permanecerá vinculado à salvaguarda do nú-cleo essencial dos direitos, liberdades e garantias do homem e do cidadão (cf. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 2 ed. Coimbra: Almedina, p. 418-420).

15. Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítimas, usurpando prerro-gativa dos magistrados, caracteriza crime (exercício arbitrário das próprias razões, art. 345 do CP). Quanto à possível menção ao instituto da legítima defesa e à ação penal privada como exceções a essa titularidade, refuta de imediato Flávio Monteiro de Barros, observando, não sem razão, que, “na legítima defesa, o Estado confere ao particular o direito de defender-se, e não o direito de aplicar a sanção penal (jus puniendi). E, nos crimes de ação penal privada, o particular exerce apenas o jus persequendi, pois o poder de punir (jus puniendi) é indelegável, sendo, portanto, privativo do Estado” (Ob. cit., p. 07).

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NOÇÕES GERAIS DE DIREITO PENAL INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL .

Note-se que, nesta hipótese específica, o Estado conferiu a ente não estatal a apli-cação de sanção penal, impondo, ao final, restrições, ainda que mínimas.

Por fim, merece registro o Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma16, “instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional”, com caráter “complementar às ju-risdições penais nacionais” (art. 1º).

O Tribunal tem competência subsidiária em relação às jurisdições nacionais dos países signatários e não representa exceção à exclusividade do direito de punir do Estado.

Como bem alerta Valério Mazzuoli17, o art.1º do referido Estatuto consagrou o princípio da complementariedade. O TPI não pode intervir indevidamente nos sistemas judiciais nacionais, que continuam tendo a responsabilidade de investigar e processar os crimes cometidos pelos seus nacionais, salvo nos casos em que os Estados se mostrem incapazes ou não demonstrem efetiva vontade de punir os seus criminosos. Em outras palavras, o TPI será chamado a intervir somente se e quando a justiça repressiva interna falhe, seja omissa, insuficiente18.

(C) Direito Penal de Emergência e Direito Penal Simbólico

Movido pela sensação de insegurança presente na sociedade, o Direito Penal de Emergência, atendendo demandas de criminalização, cria normas de repressão, afastando-se, não raras vezes, de seu importante caráter subsidiário e fragmentário, assumindo feição nitidamente punitivista, ignorando as garantias do cidadão.

Esquecendo a real missão do Direito Penal, o legislador atua pensando (quase que apenas) na opinião pública, querendo, com novos tipos penais e/ou aumento de penas e restrições de garantias, devolver para a sociedade a (ilusória) sensação de tranquilidade. Permite a edição de leis que cumprem função meramente representa-tiva, afastando-se das finalidades legítimas da pena, campo fértil para um Direito Penal Simbólico.

Para muitos, a Lei nº 8.072/90 (crimes hediondos) é expressão desse Direito.

(D) Direito Penal Promocional

Criticado pela doutrina, o Direito Penal Promocional (político ou demagogo) surge quando o Estado, visando concretizar seus objetivos políticos, emprega as leis

16. Incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro através do decreto nº 4.388/2002.

17. O Tribunal Penal Internacional e o direito brasileiro. 2 ed. São Paulo: Premier Máxima, 2008, p. 10.

18. Luiz Flávio Gomes e Antonio Molina discordam, lecionando que o Tribunal Penal Internacional também constitui exceção ao monopólio estatal sobre o direito de punir, já que o agente é submeti-do a julgamento por um órgão supranacional (ob. cit. p 137).

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INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL ROGÉRIO SANCHES CUNHA

penais como instrumento, promovendo seus interesses, estratégia que se afasta do mandamento da intervenção mínima, podendo (e devendo) valer-se, para tanto, dos outros ramos do Direito. É equivocada a utilização do Direito Penal como fer-ramenta de transformação social. Até 2009, a mendicância era infração penal!

(E) Direito de Intervenção

Membro da Escola de Frankfurt, Winfried Hassemer é o maior expoente do Direito de Intervenção. Parte da premissa de que o Direito Penal não deve ser alargado, mas utilizado apenas na proteção de bens jurídicos individuais (vida, in-tegridade física, liberdade individual, honra, propriedade etc) e daquelas que cau-sem perigo concreto.

As infrações de índole difusa (ou coletiva) e causadoras de perigo abstrato se-riam tuteladas pela Administração Pública, por meio de um sistema jurídico de garantias materiais e processuais mais flexíveis, sem risco da privação de liberdade do infrator. Situado entre o direito penal e o direito administrativo, nasce o Direi-to de Intervenção.

Para Hassemer, esta seria a melhor maneira de combater a criminalidade mo-derna, responsável pelos crimes repletos de novos contornos, condutas delitivas que demandam tratamento mais amplo e célere. Esta administrativização do direi-to penal evitaria a impunidade e a sua transformação em um direito penal simbó-lico.

Figueiredo Dias, de forma crítica, ensina que o Direito de Intervenção seria uma inversão temerária dos princípios da subsidiariedade e da proporciona-lidade, uma vez que relegaria à seara mais suave do ordenamento jurídico justa-mente às infrações que colocam em maior risco a estrutura da sociedade.

(F) Direito Penal como Proteção de contextos da vida em sociedade

Formulada por Günther Stratenwerth, esta perspectiva do Direito Penal se opõe ao que pretende Winfried Hassemer. Para Stratenwerth, deve-se relegar ao segundo plano a proteção dos interesses estritamente individuais, dando-se enfoque máximo à proteção dos interesses difusos, da coletividade, protegendo-se as futuras gerações.

A noção de bem jurídico é superada, sendo substituída pela tutela direta de relações ou contextos de vida. Converte-se, com isso, o Direito Penal (que, em regra, reage a posteriori, contra um fato lesivo individualmente delimitado) a um direito de gestão punitiva de riscos gerais.

Parcela importante da doutrina critica esta proposta, vislumbrando nela uma aproximação indesejada com o direito penal do inimigo, na medida em que pug-na por uma expansão do direito penal cumulada com a antecipação das punições como forma de proteger a sociedade.

(G) Direito penal garantista (modelo de Luigi Ferrajoli)

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A Constituição é o fundamento de validade de todas as normas infraconstitucio-nais, que deverão respeitar os direitos fundamentais nela consagrados19. As garan-tias dividem-se em:

(i) Primárias: são os limites e vínculos normativos impostos, na tutela do di-reito, ao exercício de qualquer poder (ex: proibições e obrigações, formais e substan-ciais).

(ii) Secundárias: são as diversas formas de reparação subsequentes às viola-ções das garantias primárias (ex: anulabilidade dos atos inválidos e responsabilidade por atos ilícitos).

O garantismo estabelece critérios de racionalidade e civilidade à intervenção pe-nal, deslegitimando normas ou formas de controle social que se sobreponham aos direitos e garantias individuais. Assim, o garantismo exerce a função de estabelecer o objeto e os limites do direito penal nas sociedades democráticas, utilizando-se dos direitos fundamentais, que adquirem status de intangibilidade.

A teoria garantista penal de Ferrajoli tem sua base fincada em dez axiomas ou implicações dêonticas que não expressam proposições assertivas, mas proposições prescritivas; não descrevem o que ocorre, mas prescrevem o que deva ocorrer; não enunciam as condições que um sistema penal efetivamente satisfaz, mas as que deva satisfazer em adesão aos seus princípios normativos internos e/ou a parâmetros de justificação externa. Cada um dos axiomas do garantismo proposto por Luigi Ferrajoli se relaciona com um princípio. Vejamos:

Axioma Princípio correlato

Nulla poena sine crimine Princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito

Nullum crimen sine lege Princípio da legalidade

Nulla lex (poenalis) sine necessitate Princípio da necessidade ou da economia do direito penal

Nulla necessitas sine injuria Princípio da lesividade ou da ofensividade do evento

Nulla injuris sine acione Princípio da materialidade ou da exterioridade da ação

Nulla actio sine culpa Princípio da culpabilidade

Nulla culpa sine judicio Princípio da jurisdicionariedade

Nullum judicio sine accusatione Princípio acusatório

Nullum accusatio sine probatione Princípio do ônus da prova ou da verificação

Nulla probatio sine defensione Princípio da defesa ou da falseabilidade

19. Alertamos que os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Über-massverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Nesse sentido: STF – HC 104.410/RS.