noção de tempo entre os índios krahô

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL O RETORNO DA VELHA SENHORA OU A CATEGORIA TEMPO ENTRE OS KRAHÔ JÚLIO CÉSAR BORGES Dissertação apresentada ao Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre, sob orientação da Profª. Drª. Alcida Rita Ramos BRASÍLIA, MARÇO DE 2004

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Dissertação de mestrado em Antropologia Social (UnB), sob orientação da professora Dra. Alcida Rita Ramos

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Page 1: Noção de tempo entre os índios Krahô

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

O RETORNO DA VELHA SENHORA OU

A CATEGORIA TEMPO ENTRE OS KRAHÔ

JÚLIO CÉSAR BORGES

Dissertação apresentada ao Departamento de Antropologia

da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos para a

obtenção do título de Mestre, sob orientação da

Profª. Drª. Alcida Rita Ramos

BRASÍLIA,MARÇO DE 2004

Page 2: Noção de tempo entre os índios Krahô

O RETORNO DA VELHA SENHORA OU

A CATEGORIA TEMPO ENTRE OS KRAHÔ

Júlio César Borges

Dissertação de Mestrado em Antropologia Social,defendida no dia 1º de março de 2004

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Julio Cezar Melatti, DAN/UnB

Profª. Drª. Rita Heloísa de Almeida, FUNAI

Prof. Dr. Roque de Barros Laraia, DAN/UnB (Suplente)

22

Page 3: Noção de tempo entre os índios Krahô

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ................................................................................................... PG. 05

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................ PG. 06

PRELÚDIO ................................................................................................................. PG. 11

CAPÍTULO I:

O TEMPO COMO CONSTRUÇÃO HUMANA ................................................................. PG. 15

CAPÍTULO II:

ALTERNÂNCIA E LINEARIDADE DO TEMPO: OS CICLOS COTIDIANOS ..................... PG. 31

CAPÍTULO III:

O DUPLO ASPECTO DO TEMPO NOS CICLOS SAZONAIS .............................................. PG. 64

CAPÍTULO IV:

O DUALISMO DO TEMPO NA PESSOA ........................................................................... PG. 86

CONCLUSÃO ................................................................................................................ PG. 99

ANEXO ........................................................................................................................ PG. 104

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... PG. 108

Page 4: Noção de tempo entre os índios Krahô

"O movimento do Tao nasce dos contrários...""Todas as coisas são produzidas pelo Tao

e nutridas pelo seu constante fluir. Recebem suas formas de acordo com sua própria natureza e se completam,

de conformidade com suas contingências existenciais."

LAO TSÉ

Page 5: Noção de tempo entre os índios Krahô

AGRADECIMENTOS

Muitos foram aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram com a

elaboração desta dissertação. Agradeço primeiramente ao Departamento de Ciências

Sociais da Universidade Federal de Goiás, em especial às professoras Genilda Darc

Bernades, Maria Luíza Rodrigues e Selma Sena do Amaral; à Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de

estudos do Programa de Demanda Social; e ao Departamento de Antropologia da UnB, na

figura de Rosa Cordeiro por sua inabalável solicitude e competência e aos professores

Carla Teixeira, Paul Little, Stephen Baines, Ellen Woortmann, Mariza Peirano, pelo

aprendizado que propiciaram com suas aulas.

À Alcida Rita Ramos, sou grato pelo muito que me ensinou do ofício, nas aulas e

na orientação desta dissertação.

À Rita Heloísa de Almeida e ao professor Julio Cezar Melatti, por terem aceitado

participar da banca examinadora. Também agradeço ao Melatti pela permissão dada, em

fevereiro deste ano, para apresentação dos mitos das metades e de Hartãt.

À Nádia Farage, da Unicamp, com quem tive a oportunidade de trabalhar durante

um semestre por conta do Estágio Docente I.

Aos colegas do programa, e em especial os da Katakumba que fazem desse espaço

um lugar de sociabilidade humana e de intercâmbio intelectual: Lú Ramos, Cesar Perez,

Cloude, Marquinhos, Lea, Rodrigo Pádua, Léo, Dionísio, Ronaldo Lobão, Gonzalo,

Karenina, Patrícia, Carlos Caixeta, Carlos Emanuel, Jaime, Ney Maciel, Thiago Ávila,

Adolfo, Marcus, Ivan, Héber, Roberto, José Pimenta.

Ao Manoel Alves Kateye, que recebeu tão bem em setembro último.

E às três mulheres da minha vida, porque sem elas eu não teria me atentado para o

mistério do tempo: minha mãe, Beatriz; minha esposa, Heliane; e minha filha, Maria Luz.

Page 6: Noção de tempo entre os índios Krahô

APRESENTAÇÃO

Esta dissertação bem poderia ser tomada como signo do tema de que trata - o

tempo. Ela procura corresponder à expectativa, culturalmente construída, de que com o seu

fluir, experiências e conhecimentos se acumulam e acabam por produzir resultados

concretos. Como o produto final de um processo de aprendizagem, ela fecha um ciclo que

durou quatro semestres acadêmicos, preenchidos com tantas atividades que pareceram

passar "voando"1, e que fizeram do seu autor, espera-se, um sujeito mais sabedor das coisas

humanas, embora as coisas não caminhem linearmente de maneira tão simples. Por outro

lado, ela resulta, em parte, do meu envolvimento com um ambiente social - o da

universidade – que, de certo modo, tem seu calendário próprio, em alguns aspectos

independente daquele do mundo social mais amplo e em outros altamente influenciado por

ele. Some-se a isso ser esta dissertação o objeto ritual central na cerimônia que

simbolicamente encerra o referido ciclo acadêmico. Mas, sem mais "perda de tempo",

vamos ao assunto principal.

* * * * * * *

O "sistema temporal" é uma via assaz útil para o entendimento de uma sociedade,

visto que ele lança luz sobre as principais articulações que dão ritmo e dinâmica à vida

social (Sue, 1995: 23). Porque o estudo dos tempos de uma sociedade pode revelar as

atividades sociais que são particularmente importantes e significativas para ela, nos

informando assim acerca do seu sistema de valores e da sua organização social, tomo como

o objeto central a noção de tempo entre os índios Krahô. Busco apreendê-la a partir da

revisão da bibliografia interessada neste povo Timbira, de afiliação lingüística Jê e que

habita o norte do Estado do Tocantins. O conjunto de tais obras inclui desde a clássica

monografia de Curt Nimuendajú, Eastern Timbira (1946)2 e os estudos de Harald Schultz

(1950) até os trabalhos de Vilma Chiara (1961-62, 1978, 1979), Manuela Carneiro da

Cunha (1978, 1979, 1986), Maria Elisa Ladeira (1982) e Gilberto Azanha (1984), e,

1 Aliás, esta é uma percepção do tempo generalizada, atualmente, nas sociedades modernas, tal é aquantidade de atividades com as quais os sujeitos se têm envolvido. Imagens de movimento intenso sãogeralmente utilizadas para expressar essa sensação. Assim, é comum ouvirmos expressões do tipo "este anopassou correndo", "o dia hoje voou" e outras afins. É interessante notar o uso de verbos que denotam ação,movimento para se referir a uma realidade muitas vezes tomada como etérea, metafísica ou no mínimoabstrata: o tempo.2 Isto, muito embora a maior parte de seu texto verse sobre os Rankokamekrá, ramo dos Canela do Maranhãoe que também são classificados como Timbira Orientais.

Page 7: Noção de tempo entre os índios Krahô

principalmente, os de Julio Cezar Melatti (1970, 1973, 1974, 1974b, 1976, 1976b, 1978,

1978b, 1981, 1982, 1984, 1993, 2002). Ainda recorrerei a alguns trabalhos do Projeto

Havard-Brasil Central, cujos resultados estão reunidos em Dialectical Societies (Maybury-

Lewis, 1979), visto que alguns deles lidam com o problema de tempo e ritual em

sociedades Timbira, como é o caso do estudo de Jean Lave (1979) sobre os ciclos

delimitados pelos rituais de nominação entre os Krikati. Desta última autora é o trabalho

acerca dos sistemas de metades dos Timbira Orientais (Lave, 1977), ao qual também

recorro. Em alguns pontos da dissertação evocarei observações realizadas por mim quando

estive na aldeia Krahô de Manoel Alves, em setembro de 2004.

Assim, procuro deslindar dimensões não-ditas da cultura e da sociedade Krahò

naquilo que já foi dito. Mais que a um conceito abstrato da filosofia nativa, pretendo

chegar à compreensão da temporalidade Krahô tal como vivida nos rituais - do ciclo diário,

do ciclo anual, da construção da pessoa humana - e na forma como se organizam

socialmente para o desempenho das práticas cotidianas. Se os estudos sobre tempo e

sociedade podem ser divididos em pragmáticos e cosmológicos, como sugere Ezzell (2002:

86), não vejo como cindir os significados que as pessoas atribuem ao mundo e a maneira

como agem sobre ele. Pretendo responder a perguntas como: Qual a visão que os índios

Krahô têm do fluxo das coisas e dos seres? Quais são seus "pontos de referência"

temporais? Quais são os marcadores simbólicos da sua periodização do tempo? Mas

também: Quais as implicações pragmáticas dessa visão na ordenação das suas práticas

culturais? A organização das práticas cotidianas depende, pois, da ordenação simbólica

inerente ao tempo social (Ramos, 1990.; Overing, 1995; Silva, 2000).

Dito de outra forma, procuro ver como a gama de significados da organização

dualista Krahô (Lévi-Strauss, 1970; Maybury-Lewis, 1979; Melatti, 1976) se faz refletir

sobre sua concepção e experiência do "tempo". Sem perder de vista que tempo e espaço são

dimensões interconectadas, ao analisar a temporalidade da práxis observo também o

movimento das pessoas, o deslocar de seus corpos pelos espaços simbólicos da aldeia para

chegar à compreensão de como o "tempo" é vivido, construído e significado através das

suas práticas cotidianas (Munn, 1992: 116). Assim procedendo, espero descrever de modo

convincente como sua temporalidade se estrutura em torno do "tempo social dominante" do

ritual, do cerimonial, visto que as cerimônias parecem ser para os Krahô sua razão de ser e

que "um tempo social não designa senão uma prática tida como dominante que é

particularmente valorizada, agregando de fato uma multiplicidade de práticas sociais"3

3 "Un temps social ne désigne qu'une pratique censée être dominant que est particulièrement valorisée,agrégant en fait une multiplicité de pratiques sociales".

Page 8: Noção de tempo entre os índios Krahô

(Sue, 1995: 124).

Uma categoria cultural como a de "tempo" pode se manifestar em estruturas de

sentido que vão desde o vocabulário e a gramática (Whorf, 1968) até complexos

calendários, ou pode estar condensada em comportamentos simbólicos como os dos rituais

que, observa Leach (1974), cumprem a função de ordenar temporalmente a vida social.

Nesse sentido, vejo o comportamento humano como uma ação simbólica, uma ação que

"diz" algo. Com Geertz, defendo que ao analisar o fluxo dos comportamentos sociais,

pode-se perceber que "fatos pequenos podem relacionar-se a grandes temas", pois "as ações

sociais são comentários a respeito de mais do que elas mesmas" (Geertz, 1989: 34). Para

chegar ao tempo vivido, adoto, pois, uma perspectiva hermeneuticamente orientada que

busca a interpretação através da abertura dos símbolos, que possibilita “a articulação entre

o lingüístico e o não-lingüístico, a linguagem e a experiência vivida” (Ricoeur, 1987: 58), o

elo vital entre o sistema simbólico e a vivência cotidiana.

Minha escolha pelo tema do tempo sociocultural liga-se ao fato de pretender chegar

à compreensão de uma "alteridade radical" (Peirano, 1998) estudando a forma como esse

Outro constrói seu tempo, como o concebe e como o vive. Este intento torna-se ainda mais

relevante na medida em que vemos e presenciamos um Ocidente, em sua crescente parcela

urbana, preso a um presente cada vez mais absoluto, a um ritmo social cada vez mais

frenético. Este foi o meu impulso original: como sociedades donas de outras tradições

culturais percebem o tempo e como esta percepção está ligada às suas práticas cotidianas,

sob quais ritmos sociais vivem esses sujeitos outros? Quanto aos Krahô, meu interesse por

eles começou na graduação, quando então pude, pela primeira vez, ler "Ritos de uma Tribo

Timbira" (Melatti, 1978). Desta leitura, me impressionou muito a quantidade de rituais -

"festas" - desse povo, que há mais de um século já havia estabelecido contato ininterrupto

com a sociedade nacional. Esta dissertação dá continuidade, certamente de maneira mais

elaborada, ao meu trabalho de final de curso no qual esboço uma pesquisa acerca da sua

temporalidade como sendo construída a partir dos rituais, pois continuo acreditando que

compreendê-la, sob a luz da antropologia, pode relativizar nossa própria noção e

experiência do tempo4.

4 Ainda sobre meu interesse pelos Krahô, durante o curso de Introdução à Antropologia, ministrado pelaprofessora Drª. Telma Camargo, também tive a oportunidade de assistir ao documentário "Krahô: os filhosda terra", de Luís Eduardo Jorge, que registra a fase final do rito funerário de Tôh Tôt, neto do então caciqueda aldeia Manoel Alves, Secundo Tôh Tôt. Dois outros fatos contribuíram para que eu me decidisse a estudaresta sociedade: primeiro, as conversas que mantinha com uma amiga, Hévila Cruz (hoje mestre emAntropologia pela UFSC), que passou boa parte da sua infância na aldeia Pedra Branca e que estavarealizando uma pesquisa sobre como se apresenta, a esses índios, a ligação entre a noção de pessoa e a dedoença; e segundo, a localização relativamente próxima da sua Terra Indígena da cidade de Goiânia, onde eumorava.

Page 9: Noção de tempo entre os índios Krahô

À parte a relevância desta temática no pensamento antropológico, como veremos

abaixo, tomar como objeto de estudo a noção de "tempo" de uma sociedade indígena das

Terras Baixas da América do Sul é retomar uma questão clássica na Etnologia Sul

Americana, cujo marco foi o simpósio organizado por Joana Overing, em 1976 5. Devo

acrescentar ainda que o mapeamento da bibliografia etnográfica concernente aos Krahô

revela que há uma lacuna no que diz respeito a esse tema. Não existem trabalhos

específicos sobre o "tempo", a não ser uma breve discussão feita por Carneiro da Cunha

(1986) sobre a noção de tempo entre os Timbira Orientais num ensaio dedicado ao

messianismo Canela. Tal espaço precisa ser preenchido, posto ser a categoria de tempo de

tal importância no sistema sociocultural Krahô que se faz instituída na sua organização

social, como veremos.

Um estudo antropológico do "tempo" do Outro, ademais, pode fazer jus a um dos

mais caros objetivos da antropologia, qual seja, o de alargar o universo do discurso humano

(Geertz, op. cit.: 24). Isto porque sob a categoria "tempo" encontramos todo um arcabouço

de construtos lógicos que informam a visão dos sujeitos humanos acerca da ordenação do

cosmos, dos seres que o povoam, da sucessão das coisas, construtos estes que podem

apontar para direções diferentes das nossas. Além disso, o que torna nossa disciplina digna

de interesse é que seus achados, suas descobertas, guardam uma "especificidade

complexa", uma "circunstancialidade", ainda segundo Geertz (Idem: 34; 228). Ou seja, a

pesquisa antropológica é capaz de chamar a atenção para formas muito particulares de

respostas a questões gerais como a do "tempo"; uma questão que pode ser, de saída, nossa,

mas que também pode mobilizar outras pessoas noutros lugares.

* * * * * * *

A dissertação começa com um capítulo onde desconstruo o “tempo” como uma

realidade objetiva, dotado de uma essência independente dos seres humanos. Assim

fazendo, procuro demonstrar que ele é construído pelas, e para as, atividades sociais, bem

como deixo claras as perspectivas a partir das quais abordo a temporalidade Krahô. Em

seguida, o capítulo dois começa com uma breve etnohistória desta sociedade pari passu

com uma caracterização da ligação da morfologia espacial das suas aldeias com sua

cosmologia e organização social. Passo então a uma análise de duas seqüências mitológicas5 “Social time and social space in Lowland South American Societies”, realizado durante o 42º CongressoInternacional de Americanistas, em Paris (Overing Kaplan, 1977).

Page 10: Noção de tempo entre os índios Krahô

como bases cosmológicas sobre as quais se funda a noção de tempo Krahô, para depois

abordar como esta noção embebe de sentido as práticas dos ciclos cotidiano. No capítulo

seguinte, analiso como os ritos desempenham o papel de marcadores do tempo sazonal,

bem como discuto como as corridas de toras são ritos permeados do simbolismo da

alternância e da linearidade. Ainda neste capítulo, veremos como os conceitos Wakmeye e

Katamye concorrem para a formação de um sistema de classificação dos mundos “natural”

e social associado à categorização do tempo. O último capítulo é um esforço de análise de

como o simbolismo do tempo perpassa a construção da pessoa humana segundo a

perspectiva desta sociedade indígena.

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PRELÚDIO

O mito descrito abaixo revela dimensões inesperadas da sociedade Krahô. Ele põe

em evidência, entre outras coisas, o papel central da mulher na criação do tempo, abrindo,

assim, um caminho analítico até aqui inexplorado na literatura etnográfica sobre os Krahô.

Disse que foi povo antigo dessa aldeia6. O povo saiu para o mato para caçar. E foipassando os dias e as noites no mato. E foram arranchar num outro lugar. Umavelha saiu para o mato. E andava tirando fita de tucum. E por lá mesmo se perdeu.Não sabia mais de onde tinha vindo, aonde estava o rancho; não podia maisvoltar. Lá mesmo andou, andou, procurando de onde tinha vindo e não achou. Lámesmo passou o dia. No mato. E a noite desceu e ela caminhou e parou lá numlugar. Não dormiu à noite, passou a noite acordada, tentando escutar algum gritode seu povo.Até que chegou meia-noite. E lá vinha zoada, vem conversando, gritando como nósquando corremos com tora. Aí ela ficou quieta, escutando. Quando vem chegandoperto, ela ficou pensando que era o povo dela, mas não era; era a Noite. Erammuitos: eram homens, mulheres, moças. Chegaram e falaram para ela: "Como vaivovó? Como vai vovó?" O chefe deles falou para ela: "Que você teve, que estáficando aí sozinha, longe dos outros?" Ela respondeu: "Ora, eu fiquei assimporque eu saí do rancho e fui para o mato, tirar fita de tucum para fazer cordinha,fazer enfeite para mocinha. Aí fui tirando, fui tirando, e meu juízo não deu maispara voltar. Aí eu dei volta, dei volta e não sabia onde está o rancho e me perdi eassim a noite desceu aqui mesmo, sem saber aonde é que eu vou". A Noite falou:"E foi assim que você ficou?" "Foi". "Você está perdida mas não vai acontecernada. Quando nós formos embora ainda vem outro grupo empurrando nós. Eufalei para você porque nós queremos mesmo falar para você, você está aquisozinha e como eu já falei, já sei como você ficou. Não vai acontecer nada, nós jápassamos quase todos, ainda falta um restinho. Quando nós acabarmos de passar,aí quando aclarear o dia, ainda vem outra turma, que é o Dia. O Dia vem chegaraqui, o Dia também vai explicar para você e eu não vou contar história muitaporque nós já vamos avexadinho e eu falei para você. Você está vendo nós; nóssomos a Noite e nós somos Katamye, que é a Noite. E vem ainda outro partido,outro grupo, que é o Dia e chama Wakmẽye. Quando você chegar lá na aldeia denovo, você vai explicar para o povo para fazer desse jeito. Pode contar a históriaque nós estamos passando, que nós somos Katamye. Todos nós conhecidos pelafolha verde (folha de buriti mesmo). O nosso toro se chama Katamti e nós fazemoschapéu e pomos palha no pescoço, mas é só com palha madura, que é nossoenfeite. Wakmẽye, vem atrás, é só com olho (olho de buriti, olho verde, novo) evocê amanhã ainda vem Wakmẽye atrás e vai botar você lá no povo seu". E aNoite ia passando, passando e já se vem o dia amanhecendo. Quando aclareou o dia, lá se vem Wakmẽye. Chefe de Wakmẽye. (A noite tinha

6 Narrado, no dia 02 de janeiro de 1965, por José Aurélio a Julio Cezar Melatti, de quem obtive a autorizaçãopara publicá-lo.

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vindo gritando). Aí falou com a velha: "Como vai minha vó?" Todos falavam:"Como vai minha avó?" Aí o chefe parou (os outros iam passando) (só falavamcom ela e passavam). O chefe quis saber dela e perguntou a ela como ficou assim eela respondeu do mesmo jeito que respondeu para a Noite. E o Dia falou com ela:"Também, você ficou assim não é?" "É, fiquei assim, passei a noite aqui, agora odia amanheceu e eu não sei como vou chegar a meu povo". "Pois você não estámuito perdida não. Você viu o povo que passou na frente?" "Eu vi". "Elesconversaram com você?" "Conversaram. Eu vi eles passando. Conversaram. Aí medisseram que vinha mais um povo atrás deles". "Pois é; é nós, você está vendo quenós já chegamos e já estamos passando. E eu fiquei para conversar, para sabercomo você ficou. Pois você vai aí direitinho nesse rumo, que seu povo está perto.Você pode ir que você vai chegar lá. Tá bom. Eu já sei. Eu já contei. Você podecontar na sua aldeia que nós passamos e que nós somos assim desse jeito. E nóssomos assim. Agora Katamye já passou. E nós somos Wakmẽye que vamospassando. Nós somos Wakmẽye. Quando você chegar no seu povo, você podeexplicar que nós somos assim, você viu. O toro que nós vamos levando chamaKatamti. Agora, no verão, tem outro tora que chama Wakmeti, esse é do nossopartido. Ele é assim: meio curto e é pintado de urucu. E do Katamye, que se chamaKatamti, é tintado de carvão. E assim você pode ir. Se quiser passar mais umahora aqui, você pode ir, que não se perde. Esse que vai aboiando pro Katamye éum Wakmẽye e esse que vem gritando, é um dos Katamye. (...) Mas nós não, nósvamos avexando a Noite, para poder passar logo, para você ir embora logo".Aí já passou tudo. Aí a velha levantou. “Agora eu vou direitinho”. Mas o Diamesmo é que vai governando o juízo dela, para ela chegar. Aí a velha foi embora.Foi caminhando, caminhando, assuntando, foi mesmo no rumo direito que lheensinaram. Até que chegou no rancho.Aí chegou. O povo ajuntou. Perguntou para ela. Aí ela contou o caso como foi,falou para o povo que se perdeu, que dormiu no mato sozinha. Aí falou com opovo: "Eu encontrei com outro povo, por isso eu cheguei sempre. Se não tivesseencontrado, eu talvez não tivesse chegado porque vocês não estavam mais seimportando comigo, vocês não me iriam procurar, vocês não estavam mais seimportando de mim. Pois foi assim que fiquei. Eu cheguei porque eu encontreisempre. Vocês podem ir embora. Amanhã eu vou contar a vocês o que foi que euaprendi e vocês vão ficar assim de agora em diante desse jeito. Amanhã eu voucontar o caso. Eu já cheguei, sempre andava com Deus. Sempre nosso Papam. Eufui perdida mas já estou aqui. Vocês estão me vendo no mesmo corpo, do mesmojeito que vocês estão vendo. E hoje eu não posso contar. Eu vou comer e dormir".Aí a velha comeu bastante, encheu barriga e pegou no sono. Dormiu, dormiu,dormiu. E a velha dormiu muito porque passou a noite todinha acordada, commedo, assuntando. Quando dá fé a velha não era velha demais era velha assimcomo a mulher de Gabriel. Quando foi outro dia ela chamou o povo para contar ocaso para eles.Aí o povo ajuntou, muito povo. Aí a velha contou: "Olhe eu vou contar o caso queeu vi. Eu fui no mato, aí lá mesmo eu me perdi. Aí fiquei, fiquei, não podia chegarmais aqui, estava sem saber. Aí a noite desceu. Aí eu fiquei lá, passando a noite,sem dormir, acordada toda a vida. Aí lá se vem o barulho, a zoada e aí eu fiqueiassim me admirei, fiquei assanhada de medo, mas eu agüentei, não tinha paraonde correr, o jeito era ficar. Aí fiquei, fiquei, até que chegou esse "povão". Aífalou comigo, aí eu respondi, me perguntou, aí eu contei o caso como é que foi e aí

Page 13: Noção de tempo entre os índios Krahô

eles me ensinaram onde é que vocês estão. Cortou a tora para mim. Aí eu fiquei.Lá se vem outra turma, outro partido. Aí disse que era Katamye que passou nafrente e Wakmẽye ainda vem chegando, chegando, chegando, até que chegou elestambém. Aí falou comigo, agora esse contou o caso para mim. Aí contaram o casopara mim como é que estavam arrumando os dois partidos deles e eu agora eu voufazer do jeito que eu vi. Vou fazer partido Katamye e de Wakmẽye. Agora vocêsvão fazer assim: disse que nós vamos ser assim de dois partidos. O Katamye é nafrente, que é o primeiro, e Wakmẽye é depois. E Katamye vai cortar o toraprimeiro do tanto que for, mas é partido no meio. Katamye fica desse lado eWakmẽye fica desse lado. Nós vamos pegar essa opinião. Katamye fica por detrásda casa e Wakmẽye fica no pátio. Quando amanhã vai correr com milho, Katamyecorrendo atrás da casa e Wakmẽye correndo no pátio". Aí velha mandou cortartora. Katamti. Aí as mulheres, os meninos, todas as crianças que ficam no partidodo Katamye é para sair tudo, tudo, só ficam os velhos que não podem correr, naaldeia. Aí disse que o povo ajuntavam muito e aí repartia. Os homens repartiram.Foram ficar no partido do Katamye e aqueles que queria ser Wakmẽye já ficoutudinho separado. Aí foram embora cortar tora no mato. Cortaram tora, passaramcarvão. Os Katamye deveriam riscar com carvão e pau de leite em volta do olho(agora não tem mais isso). Só ficaram Wakmẽye na aldeia. Pelas uma hora datarde, Wakmẽye foi atrás. Aí levaram duas pessoas, uma do Wakmẽye e um doKatamye. Um dos Katamye acompanhando os Wakmẽye e um dos Wakmẽyeacompanhando os Katamye, para aboiar, mandando. Os Katamye ficaram dejoelho e com a cabeça baixa sem reparar Wakmẽye que vem chegando. Aí foichegando Wakmẽye, foi chegando. Aí o gritador gritou, gritou outra vez e aíapanharam tora e correram, correram para a aldeia, levando tora, um dosKatamye acompanhou os Wakmẽye e um dos Wakmẽye acompanhou os Katamye efoi gritando e foi mandando. Até que chegaram na aldeia. E correram na aldeia,correram na aldeia, correram na aldeia. Aí largaram de correr, jogaram o tora. Eaí acabou.A velha falou: "Pois é assim que vocês vão fazer. Agora vocês do Katamye,botando o nome nos meninos, este já ficou no partido dos Katamye. E Wakmẽye vaibotando nome nas crianças que nascem e elas vão ficar Wakmẽye E esse nome nãopode sair do partido, é toda vida no lugar do partido. Quando se bota nome nacriança, ela fica toda a vida no partido.A velha também ensinou outra arrumação: Põhïpre. Quando foi mesmo no dia deapanhar o milho na roça era só o partido dos Txon que ia apanhar milho parafazer o feixe. Aí deixavam uma casa da aldeia e os Katamye iam fazer feixe. Aí osKatamye espalharam. Na roça dos Wakmẽye para roubar. Apanharam todos oslegumes: batata, milho, banana. Estragaram. Quando Katamye chegou com ascoisas, à noite, lá no mato, atrás das casas. Aí fazem o feixe de milho. Tiram palhade bacaba, trançam, enchem de milho e de legumes: batata, abóbora, cana, milho.Os Urubus só apanham da roça o milho, mas não apanham legumes. Aí vãomoquear batata, abóbora etc. Wakmẽye vai ficar a noite toda no pátio sem dormir.De manhã correm com os dois feixes de milho para o pátio (Wakmẽye maisKatamye). Quando Wakmẽye vem chegando, o feixe dos Wakmẽye está amarrado.Aí correm com feixe de milho e põe no pátio. Nunca o Wakmẽye põe o feixe demilho primeiro porque o feixe é mais pesado e está amarrado. Aí abrem e aí vãorepartir com representante de outras aldeias que estão aqui: os Krahó e não Krahó(mesmo os que moram permanentemente aqui). O povo da aldeia não ganha.

Page 14: Noção de tempo entre os índios Krahô

No outro dia Wakmẽye vai roubar na roça de Katamye. Os Wakmẽye fazem doisfeixinhos de milho escondido. Katamye não dá fé. O povo não vai dormir. OsKatamye vão reparar os Wakmẽye, senão não acham. Nessa festa os Wakmẽye sócomem o milho miúdo, a batata mirrada, enquanto o milho graúdo, a batatagraúda fica para os Wakmẽye [um dos nomes de metade está trocado]. Demadrugada Katamye está procurando os feixinhos. Os feixinhos estão com umWakmẽye escondido. Aonde os Katamye encontrar, correm. Só dois corredores, oumais, quantos encontrarem. Aí corre e aí acaba.

O que se segue é, em grande medida, uma análise das lições que esse mito nos traz.

Page 15: Noção de tempo entre os índios Krahô

CAPÍTULO IO TEMPO COMO CONSTRUÇÃO HUMANA

Antes de entrar na discussão etnográfica da temporalidade Krahô, apresento neste

capítulo alguns autores nos quais apoio minha abordagem do "tempo" como objeto digno

de investigação antropológica. A partir da revisão crítica de suas propostas teóricas,

veremos quão antiga é a preocupação com o "tempo" na antropologia, ao mesmo tempo

que atestar-se-á sua relevância para a discussão de vários tópicos teóricos7. Adianto desde

já que esses autores me ajudaram a encarar o "tempo" como estando estreitamente

vinculado às práticas culturais e como sendo, em primeira instância, ordenado

simbolicamente por elas, dentre as quais destacam-se os rituais. Fundamento nestes autores

minha compreensão de que as temporalidades são construções simbólicas que variam de

sociedade para sociedade e que, assim, são importantes índices de alteridade. Todavia,

precederá esta discussão o exercício da "dúvida radical" (Bourdieu, 1989: 34), um

exercício fundamental na construção de qualquer objeto científico e sem o qual a pesquisa

deixa contaminar-se pelo que Bourdieu chama de "introdução clandestina de conceitos do

senso comum".

Nesse sentido, um procedimento capaz de evitar que um objeto de investigação - a

noção ocidental de tempo, a do pesquisador - seja assumido como instrumento de

investigação é a análise histórica da construção social desse objeto, como sugere Bourdieu

(Op. cit.: 36-7). Proceder assim torna-se ainda mais importante na medida em que

constatamos que o "tempo", em nossa sociedade, se apresenta às consciências de uma

maneira tão naturalizada que se transforma num conceito reificado, num conceito que

parece representar uma realidade concreta, palpável8. Como uma "categoria do

entendimento" (Durkheim, 1989), como um quadro essencial dos esquemas cognitivos das

sociedades, é compreensível que o "tempo" apareça às pessoas como inquestionável, tão7 Seja dito, ao problematizar suas abordagens teóricas, estarei outrossim reconstituindo o percurso históricoda antropologia do tempo; uma reconstituição inevitavelmente limitada dadas as pretensões deste trabalho, écerto. Cf. Fabian (1983) e Munn (1992), autores mais credenciados, para uma revisão de fôlego da literaturaconcernente. 8 É importante ficar claro que não posso, aqui, entrar na problemática da história do tempo na Física, quepassa pelo conceito de "tempo objetivo" de Newton, partindo da idéia de "tempo físico" de Galileu, atravessao conceito de "tempo relativo" de Einstein e ruma no sentido do "tempo indeterminado" da teoria quântica.Para uma tal discussão, cf. o livro de Paul Davies, "O Enigma do Tempo" (1999). De qualquer modo, aexistência dos debates na Física em torno do "tempo" aponta, no mínimo, para uma preocupaçãoculturalmente formada em torno dessa questão.

Page 16: Noção de tempo entre os índios Krahô

"verdadeiro" como o são suas próprias preocupações cotidianas. Contudo, a idéia que hoje

fazemos do "tempo" tem uma origem histórica passível de ser localizada. E é isso o que

busco abaixo: uma reflexão acerca da história social do conceito ocidental de "tempo" que

leve a "uma ruptura com modos de pensamento, conceitos e métodos que têm a seu favor

todas as aparências do senso comum" 9 (Bourdieu, idem: 49; grifos do original).

A particularidade da noção ocidental de tempo

A noção segundo a qual uma das principais propriedades do tempo é o seu fluir

linear, objetivo, constante e irreversível numa direção tal que faz com que certos

acontecimentos venham à tona é uma noção particular do ocidental moderno. Norbert Elias

(1995 [1992]: 36) lembra que somente pudemos chegar a essa experiência do tempo após o

desenvolvimento social da sua mediação que redundou na criação e aperfeiçoamento dos

relógios de movimento contínuo, na grade de sucessão do calendário romano e na noção de

eras que se encadeiam10. A favor da dependência de referenciais "artificiais" de tempo,

associaram-se a esse desenvolvimento outros processos tais como a urbanização, a

comercialização e a mecanização crescente das sociedades européias, principalmente as

nórdicas e ocidentais, que fizeram com que os enclaves humanos ganhassem uma relativa

autonomia do ambiente natural11. Desse modo, foi a complexificação própria do

desenvolvimento do capitalismo que fez com que a coordenação das atividades sociais

ficasse cada vez mais dependente de instrumentos "artificiais" e precisos de medição do

tempo12 (Elias, idem: 98; Thompson, 1987: 272-4). 9 Bourdieu toma de empréstimo a noção de "ruptura epistemológica" de G. Bachelard para se referir a essaruptura com a visão de mundo do senso comum. Uma ruptura que provoca, bem lembra ele, uma mudançaradical na maneira de ver os fenômenos da vida social, "uma revolução mental, uma mudança de toda a visãodo mundo social" (Idem: 49). Lembremos que a advertência quanto aos cuidados que o cientista social deveter com as pré-noções aparece já em Durkheim (1978).10 Cf. Elias (Idem), pgs. 46-7 e 152-5 para uma análise das reformas do calendário romano como prova deque o "tempo" não possui uma natureza essencial, e pgs. 47-9 para uma história social na noção de Era.11 Gilberto Freyre (2003) mostra quão diferentes eram a noção de tempo dos ibéricos e a dos ingleses eholandeses, no final do século XV, época das Grandes Navegações. Os barcos dos primeiros, mais vagarosos,eram expressão da sua perspectiva mais afinada com os ritmos naturais que com que as marcações exatas epontuais dos relógios, que já orientavam os nórdicos. A noção ibérica de tempo menospreza a pressa, apontualidade, a velocidade, o que de fato lhes colocou em desvantagem econômica (Idem: 19). Segundo acosmovisão que subjaz a noção ibérica, a vida deve ser vivida lentamente e os períodos de trabalho devemcombinar-se com períodos de descanso - contrariamente à concepção protestante, segundo a qual somente odomingo deve ser reservado para o ócio (: 20). O tempo para os ibéricos não era progressivo como o dosnórdicos que, acentuadamente após a Revolução Industrial, o associaram ao trabalho constante e para quem"perder tempo" era (e é) quase um pecado capital: o tempo, estando inscrito no trabalho, conduz à salvação,no que o relógio se tornou a materialização da consciência moral do tempo. Observa Freyre que "aobediência ao relógio, entre os europeus do norte, tornou-se quase uma parte dos seus ritos religiosos" (2003:15). 12 Também teve um papel central na emergência da noção de tempo como um fluxo linear, objetivo e

Page 17: Noção de tempo entre os índios Krahô

Entre os séculos XIII e XIX, podem ser localizados os marcos históricos da

mudança na percepção e experiência do tempo desencadeada pelo uso extensivo e

intensivo dos relógios mecânicos, sugere Thompson (1987). Essa mudança levou a que os

relógios passassem, de uma utilização privativa às igrejas e aos mosteiros, a ser

introduzidos e disseminados no interior dos lares da burguesia emergente, até chegar à sua

aplicação como mecanismo de controle dos trabalhadores assalariados. A precisão, a

ordem, a sucessão, qualidades próprias do tempo industrial se fazem sentir na

representação que as sociedades ocidentais têm do tempo, lembra Sue (Op. cit.: 125).

Aliás, se o relógio mecânico surgiu primeiramente nas ordens monásticas, no século XIII,

foi pela necessidade de um instrumento preciso de contagem do "tempo" que tornasse

possível uma maior rigidez na observância dos horários de orações e demais atividades,

observa Andrewes (2002: 90).

Essa religiosidade do tempo disciplinar das comunidades monásticas chegou, pois,

disseminada, ao século XIX. Nesse sentido, Foucault lembra que, "durante séculos, as

ordens religiosas foram as mestras da disciplina: eram os especialistas do tempo, grandes

técnicos do ritmo e das atividades regulares" (1996: 137). As características fundamentais

do tempo disciplinar - exatidão, aplicação e regularidade - ajustaram o corpo a imperativos

temporais e seus gestos, a uma trama que os ordena13. O tempo, detalhadamente fracionado

segundo os imperativos da exatidão, é organizado disciplinadamente de modo a render o

máximo de utilização de cada uma de suas unidades constitutivas. Ocupa-se não só os dias,

mas dentro destes as horas e os minutos para se obter mais rapidez e mais eficiência (Ib.

idem: 140).

As missões religiosas, com seus micro-processos de controle temporal do corpo,

também ajudaram a criar, assim, um "tempo" que, além de especializado e fracionado,

assume um caráter linear, posto que a disciplina impõe momentos que, dispostos em série,

se integram uns aos outros e rumam a um ponto terminal, ponto este que é tão determinado

culturalmente quanto o é o fracionamento do tempo e sua própria inexaurível linearidade14.

irreversível, Galileu Galilei. Ele foi, segundo Elias, o primeiro a utilizar um cronômetro de fabricaçãohumana como padrão de medida de processos físicos; com ele, emergiu o conceito de "tempo físico", umconceito fundado na noção de "natureza" como uma rede de relações objetivas sujeita a leis universais decausa e efeito (Elias, idem: 92). Podemos dizer que a imbricação destes conceitos, promovida por Galileu,promoveu uma transformação na visão e na experiência do tempo que se tinha na Idade Média, sendoportanto um dos germes da noção moderna de tempo. Antes de Galileu, o "tempo" atendia à demandapraticamente exclusiva de coordenação das atividades sociais e mesmo os relógios eram aplicados nasincronização precisa dos afazeres humanos. 13 Segundo Foucault, " (...) o tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder"(Idem: 138).14 Cf. Foucault (Idem), pgs. 144-5, para uma análise crítica da utilização da noção linear de tempo como uminstrumento de controle do corpo, primeiro nos mosteiros e depois nas prisões, no século XIX. Cf. Overing

Page 18: Noção de tempo entre os índios Krahô

Mas o aperfeiçoamento e disseminação dos relógios mecânicos associou-se não somente a

uma noção do tempo como um fluxo linear, senão que também ajudou a construir a visão

reificadora do "tempo" como uma "coisa", uma realidade objetiva, exterior aos seres

humanos. É o fato de os relógios serem referenciais de tempo que têm um movimento

próprio e contínuo que fez com que eles fossem tomados como a própria encarnação do

tempo; são eles - os relógios15 - que fizeram com que o "tempo" adquirisse "uma espécie de

vida autônoma na linguagem e no pensamento dos homens" (Elias, op. cit.: 95-7).

Toda esta discussão tem o propósito de demonstrar que nosso conceito de "tempo"

tem uma história particular, que sua emergência dependeu de todo um conjunto de

condições sociais específicas para que viesse a se estabelecer e que, tendo nascido no

Ocidente, não é universal, apesar da sua atual disseminação mundo afora16. Feita esta

brevíssima história social da noção ocidental de tempo, estamos agora em condições de

olhar para esta noção como uma particularidade sociocultural que se defronta com uma

enorme diversidade de formas de se conceber e de se vivenciar o que chamamos "tempo".

Cabe vermos, em seguida, como é possível abordar essa variedade a partir dos ângulos

teóricos da antropologia.

* * * * * * *

Apesar de a diversidade das temporalidades corresponder à diversidade de

sociedades estudadas pelos etnógrafos e de ser, assim, um traço revelador da alteridade, a

atenção teórica dirigida ao "tempo" como um problema focal tem sido insuficiente, ao

longo da história da antropologia, para compreendê-lo, em si mesmo, como uma dimensão

(1995) e Posey (1982) para outras implicações políticas da noção de tempo como um fluxo linear eirreversível.15 Cf. Andrewes (Op. cit.) para uma história social dos relógios mecânicos no Ocidente.16 Postill (2002) destaca, nesse sentido, o papel da mídia - rádio e televisão - na disseminação global tanto docalendário gregoriano quanto do relógio. Seu próprio estudo é sobre as transformações que essas mídias têmprovocado, ao trazer um nova maneira de contar o tempo, na sociabilidade doméstica de uma pequenacomunidade do interior da Malásia. A universalização do "tempo dos relógios" tem sido destacada por outrosautores como um instrumento de colonização das chamadas sociedades tradicionais por parte das sociedadeseuropéias e norte-americana. Nesse sentido, cf., p. ex., Comaroff e Comaroff (1991), Thomas (1994) eSchieffelin (2002).

Page 19: Noção de tempo entre os índios Krahô

inescapável da experiência e da prática socioculturais17. Neste sentido, Munn (Op. cit.: 93)

observa que "o tópico do tempo freqüentemente se fragmenta em várias outras dimensões e

tópicos com os quais o antropólogos lidam no mundo social"18, e com os quais se encontra

estreitamente vinculado, tais como estruturas políticas, descendência, narrativa, história,

cosmologia e outros. De qualquer modo, o "tempo" aparece na antropologia desde seus

primeiros autores evolucionistas até antropólogos contemporâneos "interpretativistas", seja

como uma espécie de régua com a qual se media a distância civilizacional entre as

sociedades (p. ex. em Morgan), seja como um recurso para se chegar aos modelos nativos

de pensamento social (Geertz). Seja como for, ele tem aparecido na paisagem da teoria

antropológica ou em primeiro plano ou como um camaleão a caminhar por folhagem

variada.

O tempo como medida da diferença e da distância sociocultural

Ecoando a imagem européia do ser humano na segunda metade do século dezenove,

o evolucionismo sociocultural reforçou a pressuposição da diferença entre as culturas em

termos temporais, uma vez que associou o “primitivo” e o “selvagem” aos primatas e aos

animais não por meio de analogia mas por derivação, posto estarem no mais baixo estágio

da evolução humana19 (Stocking, 1987: 326). Mas, para chegar ao conceito de “primitivo”,

um conceito temporal do Ocidente moderno, os evolucionistas socioculturais tiveram de

manejar uma noção de tempo que promoveu um esquema no qual culturas passadas e

culturas vivas foram alocadas numa inclinação temporal, umas acima e outras abaixo no

fluxo do tempo. Para fazer isso, eles tiveram que secularizar o Tempo, tornando-o natural,

imanente ao mundo; tiveram também que afirmar que os relacionamentos entre as partes

do mundo podiam ser entendidos como relações temporais. Com isso, propuseram um

"tempo" que traz certas coisas no curso da evolução (Fabian, 1983: 15). A aceitação do

tempo naturalizado por parte dos evolucionistas socioculturais, como uma pressuposição

da história universal, trouxe como conseqüência o fato de que os esforços da antropologia

de construir suas relações com o Outro por meio do artifício temporal implicou a afirmação17 Sobre o tempo como um índice de alteridade, Roger Sue assevera que cada sociedade produz umagenciamento próprio dos seus tempos sociais, derivado das práticas culturalmente construídas de maneiraque permite ao antropólogo fazer "leituras" das diferenças entre as sociedades ou "d'un modèle de civilisationà un autre" (Op. cit.: 22; 31). Cf. também Ramos (Op. cit.) e Silva (2000).18 "The topic of time frequently fragments into all the other dimensions and topics anthropologists deal within the social world".19 Observa Stocking (1987: 314) que a antropologia evolucionista foi o produto de uma época de auto-confiança cultural sem paralelo na história. Toda manifestação de variedade cultural possível era interpretadasegundo os modelos e os postulados da própria cultura ocidental.

Page 20: Noção de tempo entre os índios Krahô

da diferença como distância, ao espacializar o tempo (Idem: 16).

Tomemos o exemplo do estadunidense Lewis Henry Morgan. Na sua, talvez,

principal obra encontramos os caracteres centrais da noção do tempo naturalizado sob uma

rica discussão acerca do processo constituinte da sociedade política a partir da sociedade

gentílica, uma das linhas pelas quais teria passado a evolução humana20. Em A Sociedade

Primitiva (1974) [Ancient Society, 1877], vemos em vários momentos a afirmação da

distância entre o europeu – o observador – e o selvagem ou bárbaro – o Outro observado –

quando Morgan se vale de metáforas temporais como recurso discursivo para demonstrar a

pertinência da sua divisão da evolução humana em períodos étnicos, como também ao

discutir detidamente os sistemas de governo de tipo gentílico e de tipo político21.

Ao discorrer sobre a sociedade gentílica e sua passagem para a sociedade civil,

Morgan faz uso da noção de um tempo que, naturalizado, é cumulativo22, ou seja, que traz

no seu fluir transformações qualitativas e lineares que vão do mais simples ao mais

complexo, e que acabam por desembocar na instauração do Estado e no advento da

civilização. Assim, ao olhar para uma sociedade indígena, "primitiva", o observador

europeu estaria olhando para o que fora sua própria sociedade no "começo da civilização",

pois todos partem do mesmo ponto, já que a história da humanidade é una. Segundo esta

noção, o “ser” das sociedades indígenas é o “vir a ser” das sociedades ocidentais; o

presente indígena é o passado europeu. Ao manipular esta “equação paleolítica” (Stocking,

op. cit.: 283), Morgan fez eco a uma forma de pensar a alteridade própria da sua época,

qual seja, em termos de distância entre diferentes, entre o observador ocidental e o

observado. Ao se deslocar espacialmente para ir aos Iroqueses, Morgan logrou um

deslocamento temporal para ir ao próprio passado dos europeus23.

O tempo como índice da alteridade e como síntese da sociedade: um percurso

É com os autores da Escola Francesa de Sociologia que a temporalidade vai receber

atenção especial. Ainda que seus esforços, principalmente os de Durkheim, mas também os

de Mauss, tenham sido dirigidos mais para a demonstração da natureza social do tempo do

20 Além dos sistemas de governo, as invenções e descobertas, o casamento, o parentesco e a propriedade sãoas outras instituições elucidativas do progresso humano para Morgan. 21 Cf., p. ex., as pgs. 81-2, 104, 162 e 320.22 Isso vale também para as outras instituições e para as invenções e descobertas.23 Não devemos nos esquecer da experiência de campo de Morgan, num período em que a antropologia erafeita a partir das poltronas de gabinetes confortáveis em Nova York, Londres, Paris. Além disso, enquanto osantropólogos da sua época estavam mais interessados em inventariar traços culturais isolados, Morgan jáfalava em "estrutura social", “sistemas sociais indígenas”, em “inteligibilidade das sociedades indígenas”(1965 [1881]: xxiv). Sua teoria geral do processo de evolução sociocultural demandou uma teoria particulardo funcionamento de uma sociedade particular.

Page 21: Noção de tempo entre os índios Krahô

que para a elaboração de uma sociologia geral do tempo, eles foram os primeiros a dar

consistência sociológica à noção de tempo e abriram, assim, o caminho para futuras

pesquisas sobre este aspecto da vida em sociedade24 (Sue, op. cit.: 53). Os estudos destes

precursores emergiram num momento histórico em que a intelectualidade ocidental se via

diante da complexa questão da diversidade temporal vs. singularidade temporal,

heterogeneidade vs. homogeneidade. Durkheim e seus colegas optaram, então, por fundar o

"tempo" sobre os alicerces etnográficos da diversidade social (Munn, op. cit.: 94). Mas

também estavam empenhados em estabelecer a sociologia - ou antropologia - como

disciplina autônoma face à psicologia e à filosofia25. Daí a ênfase de que o tempo é

expressão de uma realidade social, e que o tempo qualitativo da duração psicológica

(Bergson) está fundado antes de tudo nos quadros do tempo coletivo.

É como uma categoria do entendimento humano que Durkheim (1989) concebe o

tempo. Ele assimila as categorias aos conceitos, que, como obra da comunidade, têm a

propriedade de ser universalizáveis e comunicáveis entre aqueles que partilham de um

mesmo código lingüístico: são partículas simbólicas sem as quais nenhuma comunicação

seria possível. Sendo comuns a toda uma sociedade, eles são representações coletivas, ou

seja, correspondem ao modo como a coletividade pensa o universo físico e social26 (Idem:

513). Quanto às categorias, Durkheim nota que elas exprimem as condições fundamentais

do pensamento: elas regulam a vida lógica (: 43). Portanto, nem todos os conceitos são

categorias, porque estas é que são a "ossatura do entendimento", sua "moldura sólida"; os

outros conceitos são "contingentes e móveis, podendo até mesmo faltar a uma sociedade" (:

38).

Nesse sentido, se a gênese das categorias é a própria vida social, se "cada

civilização possui seu sistema organizado de conceitos que a caracteriza" (: 514), então as

noções de tempo variam de uma sociedade a outra27. O tempo, em Durkheim, é uma

categoria universal por ser essencial ao funcionamento do pensamento humano, mas é cada

24 Nancy Munn também localiza a origem da antropologia do tempo nos estudos clássicos dos fundadores daEscola Francesa de Sociologia (Op. cit.: 94).25 Sobre este aspecto cf. Cardoso de Oliveira (1983).26 O argumento de Durkheim é que os conceitos com os quais os seres humanos pensam o humano nasceramda religião e, sendo esta eminentemente social, são coisas sociais. A religião, tendo participado da formaçãodo pensamento humano, teria então lhe fornecido além dos conteúdos a sua própria forma (Idem: 38). Umaprimeira apresentação deste postulado da correspondência entre sistema lógico-conceitual e sistema socialencontra-se em "Algumas formas primitivas de classificação" onde se lê que "os tipos de classificaçãoexprimem as próprias sociedades no seio das quais eles foram elaborados" (Durkheim e Mauss, 1981: 441).27 Durkheim afirma que as categorias, "o ponto comum onde todos os espíritos se encontram", jamais sãofixadas de forma definitiva, porque "elas mudam conforme os lugares e os tempos" (: 44). Assim, ascategorias têm o duplo aspecto de serem universais - encontram-se em qualquer sociedade humana - eparticulares a cada sociedade e a cada período histórico na vida de uma sociedade.

Page 22: Noção de tempo entre os índios Krahô

sociedade particular que lhe dá o conteúdo, pois "as sociedades são sujeitos particulares

que particularizam o que pensam" (1989: 523). Sendo uma categoria, que realidade social o

tempo exprime? Sob a noção de tempo encontramos, segundo Durkheim, as atividades

sociais que dão ritmo à vida coletiva, e estas seriam marcadas pela oscilação entre períodos

profanos e sagrados delimitados pelos rituais, pelas cerimônias religiosas - momentos de

efervescência coletiva (: 273-4).

Os períodos de tempo - as durações - correspondem aos intervalos dos rituais e o

calendário, ao ritmo da atividade coletiva. Verdadeira instituição social, o tempo consiste

num quadro impessoal que ultrapassa as experiências individuais porque, observa

Durkheim, sua noção depende de como "o tempo é objetivamente pensado por todos os

membros de uma civilização” (Idem: 39). Marcar uma caçada, estabelecer a data de uma

festa demanda datas fixadas socialmente, um tempo comum estabelecido e concebido por

todos da mesma forma. Os pontos de referência indispensáveis para a classificação

temporal das coisas são tomados, pois, da vida social, no sentido que é o grupo que os

elege, que os torna significativos. Assim, as temporalidades, variando com as formas como

as sociedades são constituídas e organizadas, mudando em conformidade com a articulação

das suas instituições religiosas, políticas e econômicas, aparecem em Durkheim como

reveladoras dos seus sistemas de valores e da sua estrutura social. As noções de tempo são

como páginas onde se inscrevem a visão de mundo e a organização das sociedades

humanas.

É sob o signo do mesmo contexto histórico de Durkheim, seu tio, que Marcel

Mauss vai redigir sua monografia sobre os ciclos sazonais da vida social dos Eskimó

(1968a [1904-05]). Nela, ele procurou demonstrar que as noções de verão e de inverno se

configuram como representações coletivas, porque a elas estaria associado todo um

sistema de classificação dos seres e das coisas e um conjunto de interdições rituais28 (Idem:

448-9). Além disso, os regimes jurídicos, a religião, os padrões de habitação e de coesão

variam segundo as duas estações do ano que afetam aquela população. O verão é a época

da dispersão, do direito individual e familiar, da habitação em pequenas tendas (tupik), do

profano; já o inverno é a estação da efervescência coletiva, do direito coletivo, da habitação

nas casas extensas (iglu), de festas coletivas nas casas comunais (tapik), é o tempo do

sagrado. Mauss também destaca o papel dos rituais na delimitação simbólica do tempo, ou

dos tempos, já que neste contexto etnográfico temos pelo menos dois tempos: o da

28 Observa Mauss que "chaque saison sert à définir tout un genre d'êtres et de choses. (...) On peut dire que lanotion de l'hiver et la notion de l'été sont comme deux pôles autour desquels gravite le système d'idées desEskimós" (Idem: 450).

Page 23: Noção de tempo entre os índios Krahô

dispersão, o tempo profano, em contraposição ao tempo da concentração, do sagrado. Isto

porque as festas seriam instâncias responsáveis pela sublimação do sentimento comunal: "o

sentimento que a coletividade tem de si mesma, de sua unidade, aí transpira de todas as

maneiras"29 (Idem: 445). Como lembra Cardoso de Oliveira, Mauss foi conduzido à

categoria de tempo pela análise de fenômenos religiosos. Por esse caminho, ele notou que

“o calendário das festas religiosas fornece a noção concreta da duração, em lugar de uma

noção abstrata do tempo. O tempo são as festas” (Mauss apud. Cardoso de Oliveira, 1983:

138).

Vemos então que a Escola Francesa de Sociologia, ao privilegiar a noção de tempo

como uma categoria fundamental do espírito humano, como uma representação coletiva,

percebeu o potencial analítico da temporalidade para desvelar os sistemas simbólicos

constituintes dos esquemas cosmológicos e práticos de uma sociedade. Como observa Sue

(Op. cit.: 53-4) a respeito dessas investigações seminais, seus autores teriam não somente

comprovado que o tempo tem um caráter social, mas também que ele traduz e articula os

valores e as crenças centrais de uma sociedade, que fundamenta o liame social e que "a

percepção e a organização do tempo seriam reveladores privilegiados da estrutura social"30.

Uma outra proposta de abordagem teórica aberta à diversidade dos tempos sociais

vai aparecer nos anos 30 do século XX, com as investigações etno-lingüísticas de

Benjamin Lee Whorf (1968), que percebeu que as noções de tempo são veiculadas através

das línguas e que, portanto, são variáveis de cultura a cultura. Para ele, a linguagem não

somente comunica o pensamento mas também trabalha na sua formação (Idem: 85), de

maneira que, sendo um fenômeno do domínio da linguagem, o pensamento é um fenômeno

cultural31. Seu modus operandi encontra-se nas “operações lingüísticas padronizantes”

(linguistic patterning operations) (: 68). Podendo variar de acordo com a estrutura de uma

língua particular, essas operações consistem basicamente em “processos de ligação” de

palavras e morfemas que então produzem as categorias e padrões nos quais o significado

lingüístico repousa; esses “processos de ligação” são de ordem cultural (: 69). Além deles,

cada língua contém conceitos com um quadro cósmico de referência, que cristalizam em si

os postulados básicos de uma filosofia implícita, na qual está assentado o pensamento de

29 "Nous ne voulons pas dire simplement que les fêtes sont célébrées en commun, mais que le sentiment quela communauté a d'elle-même, de son unité, y transpire de toutes les manières".30 "Elle [E.F.S] a prouvé que la perception et l'organization du temps étaient des révélateurs privilégés de lastructure sociale" (Idem: 54).31 Escrevendo em 1936, Whorf destaca o papel de Boas e Sapir no desenvolvimento da lingüística. Oprimeiro foi importante como o pioneiro na demonstração da sutileza e complexidade das categorias depensamento subjacentes às línguas nativas da América; o segundo, como aquele que inaugurou a abordagemlingüística do pensamento, a lingüística como campo fundamental da Antropologia.

Page 24: Noção de tempo entre os índios Krahô

uma sociedade, de uma civilização. Nas línguas ocidentais, uma tal palavra é, p.ex., tempo

e seus correlatos passado, presente e futuro (: 61).

Whorf constatou que os Hopi não têm uma noção de tempo como a do Ocidente; o

tempo para eles não é um fluxo contínuo, no qual todas as coisas do universo se processam

de um modo igual e previsível, ou seja, do passado ao presente rumando ao futuro. A

língua Hopi, afirma ele, nem mesmo contém qualquer palavra, expressão, construção ou

forma gramatical que refira ao que nós chamamos “tempo” (:57-8). Em Hopi, a palavra que

tem um quadro cósmico de referência é tunátya, que, segundo uma tradução aproximada,

significa "esperar", "esperando por" 32. Este termo hopi reflete o grande dualismo

objetividade-subjetividade que caracteriza sua filosofia acerca do universo. Sem fazer uso

de um conceito de “tempo”, a metafísica Hopi considera o universo como sendo composto

por dois grandes níveis cósmicos que, por aproximação, podem ser chamados de

manifesto/objetivo e não-manifesto/subjetivo33. Assim, analisando a noção de tempo na sua

expressão lingüística pode-se penetrar no seu sistema de pensamento, nos seus valores

culturais, na sua perspectiva sobre a vida.

Vamos ouvir ecos do postulado relativista segundo o qual o tempo varia com as

sociedades também na antropologia inglesa, na primeira monografia, de uma série de três,

que E. E. Evans-Pritchard (2002 [1940]) dedicou aos Nuer. De fato, nela percebemos a

influência do estudo acerca das variações sazonais da vida social Eskimó, de Marcel

Mauss, principalmente no seu conceito de "tempo ecológico", conforme aponta Munn (Op.

cit.: 96). Como o próprio Evans-Pritchard deixa claro, sem a compreensão do tempo (e do

espaço) nuer não se pode compreender a estreita dependência entre o sistema político-

social e o território ou meio-ambiente onde vive (ou viveu) aquela sociedade. Assim, é a

temporalidade a via de acesso ao entendimento da vida social. Ele demonstra que a noção

de tempo nuer depende de uma dupla determinação. De um lado, ela é derivada das suas

relações com o meio-ambiente; de outro, reflete as relações mútuas dos grupos de pessoas

dentro da estrutural social. O primeiro conceito Evans-Pritchard denomina “tempo

ecológico”; o segundo, “tempo estrutural” (Idem: 108). Mas também no que diz respeito ao

32 Em inglês, hope : “The verb tunátya contains in its idea of hope something our words ‘thought’, ‘desire’,and ‘cause’, which sometimes must be used to translate it” (Idem: 61; grifo meu).33 Segundo a cosmologia hopi descrita por Whorf, o nível objetivo ou manifesto compreende tudo que éacessível aos sentidos, o universo físico e histórico, onde não se distingue o presente do passado e o futuronão existe. Já o nível subjetivo ou não-manifesto abarca o que nós chamamos de futuro, mas vai além:também compreende tudo que existe na “mente” ou no “coração” (como dizem os Hopi, observa Whorf) nãosó dos seres humanos mas também das plantas, animais e de todas as coisas porque a natureza e o cosmospossuem “coração” (:59-60). Este nível não-manifesto é o campo da intelecção, da mentalidade, da emoçãoque são as forças vivas e inteligentes que provocam a “manifestação”; aqui encontram-se o desejo, opropósito, as causas essenciais que levam a vida do seu domínio interior à sua manifestação objetiva.

Page 25: Noção de tempo entre os índios Krahô

tempo ecológico, o conceito de tempo depende dos significados atribuídos pelos grupos

sociais aos referentes naturais, de maneira que, em última análise, o tempo somente se

torna humanamente significativo depois da sua socialização.

O tempo ecológico é um tempo cíclico e está ligado à alternância das estações

chuvosa, Tot, e seca, Mai. Esse movimento temporal é fundamental para a marcação do

ritmo das atividades humanas, mas são estas atividades que fornecem o conceito de estação

para os Nuer. Desse modo, o ano é a alternância entre um período de residências na aldeia

e de práticas de horticultura, cieng, e um período de residência em acampamentos e de

atividades de pesca, wec34. É através da lente das práticas sociais que os nuer observam o

fluir do tempo. O tempo da cotidianidade é a sucessão das tarefas pastoris e suas relações

mútuas. Nada é mais eloqüente do que a seguinte frase: “O relógio diário é o gado...” (Op.

cit.: 114). A coordenação dos acontecimentos cotidianos depende, assim, da referência às

atividades sociais. E se a passagem do tempo ecológico é percebida pelo movimento dos

corpos celestes e pela mudança no clima, em última instância sua significação depende do

fluxo das práticas sociais, pois “a passagem do tempo é percebida na relação que uma

atividade mantém com as outras” (: 115). Nesse sentido, vê-se que os períodos alternados

do ano nuer não têm o mesmo significado. A estação seca é percebida como mais

monótona, em geral sem acontecimentos marcantes, ao passo que a estação chuvosa é

preenchida com festas, danças e cerimônias, no que mais uma vez vemos a influência da

noção de “variações sazonais” de Mauss.

O conceito de tempo estrutural, que emerge das interrelações dos grupos sociais, é

outro que nos ajuda a ver como o tempo depende dos significados que os seres humanos

lhe atribuem. Existem, no caso dos Nuer, pelo menos quatro formas através das quais o

tempo é “estruralmente” configurado. Uma das maneiras de se contar o tempo é utilizando

a distância estrutural, a distância que separa as pessoas no sistema de conjuntos etários e

cujos marcos dependem dos rituais de iniciação35. A passagem do tempo é medida, assim,

em termos do intervalo entre o começo dos conjuntos sucessivos. São as pessoas, ou

melhor, o movimento das "pessoais morais" através da estrutura social, cujas posições são

fixas, que fornece as bases da percepção da passagem do tempo estrutural, um tempo

humanizado porque qualitativo36. Em suma, o tempo estrutural deriva da relação entre

34 Evans-Pritchard ressalta que “o contraste entre o modo de vida no auge das chuvas e no auge da seca é quefornece os pólos conceituais na contagem do tempo” (Idem: 109).35 Sobre outras maneiras de "contar" o tempo estrutural, cf. pgs. 118-20. Sobre o sistema de conjuntosetários, cf. pgs. 257-70.36 Vale notar a critica que Nancy Munn (Op. cit.: 97) dirige a Evans-Pritchard por ele ter separado da suaanálise do tempo estrutural o espaço das atividades concretamente vividas e significativas para essas "pessoasmorais".

Page 26: Noção de tempo entre os índios Krahô

grupos de pessoas (2002: 118).

Leach é outro autor que nos ajuda a compreender o "tempo" como uma categoria

que nasce da vida social. Ele vai além para afirmar que a própria regularidade do tempo é

uma noção fabricada pelo homem. Para ele, é a seqüência anual das atividades sociais que

fornece a medida do tempo, sendo os rituais os seus marcadores simbólicos (1974: 205).

Ele nota que, em qualquer grupo humano, comportamentos simbólicos são utilizados para

demarcar as unidades de tempo: veste-se roupas especiais, pinta-se o corpo, come-se

comidas especiais, comporta-se de modo especial (: 203). O fluxo do tempo, criado pelo

homem, é, desse modo, ordenado pela celebração de rituais que, por sua vez, criam os

intervalos de tempo que conferem ordem à vida social.

Se são as sociedades que criam seu próprio sistema temporal, então a visão de que o

tempo seria um fluxo linear no qual todas as coisas seguem um caminho que vai do

passado ao futuro e que tem um efeito progressivo, cumulativo é circunscrita social e

historicamente às sociedades ocidentais, como já havíamos visto. Leach observa que

subjacente à cosmologia de um grande número de sociedades mundo afora está a noção de

tempo como "oscilação entre contrastes repetidos", que vê a seqüência dos acontecimentos

como uma sucessão de alternância entre opostos, cuja repetição dá ritmo ao devir: sol-

chuva, dia-noite, vida-morte (: 206). Daí sua advertência quanto ao perigo de se utilizar o

termo "cíclico" para denotar este tipo de concepção, pois, como ele, podemos projetar uma

notação geométrica sobre contextos etnográficos nos quais ela pode estar ausente 37 (: 195).

A noção de tempo de um grupo social faz-se sentir também na forma como ele

concebe a pessoa humana, como aliás já havia indicado Evans-Pritchard. Para Leach, aos

ritos de passagem, ritos que marcam simbolicamente os estágios do ciclo vital da pessoa,

está ligada uma representação do tempo como um movimento pendular, que torna possível

a alternância vida-morte-vida: morre-se num estágio para viver em outro (Idem: 206).

Noutro registro, Geertz (1989: 225-277) também estabelece uma interdependência entre

noção de tempo e concepção da pessoa que, aliás, para ele é um fenômeno universal. A

análise do sistema temporal balinês foi a via que Geertz encontrou para interpretar seu

modelo social de pensamento. Para ele, a maneira como um grupo humano concebe o

envelhecimento biológico afeta profundamente a maneira como ele vê o tempo (Idem:

37 Sobre a diversidade de noções de tempo, ela pode ocorrer no interior de uma mesma sociedade. Nestesentido, Leach observa que entre os Kachim não há um conceito equivalente a "tempo". Todavia, se não sepode falar, neste contexto, de um conceito de tempo, tem-se uma ampla gama de conceitos particularesaplicados às situações específicas. Ou seja, temos várias noções de tempo (Idem: 193). Algo semelhantepercebeu Ramos (1990: 179) entre os Sanumá, grupo Yanomami que habita o norte de Roraima, para os quaisjulga mais apropriado falar em várias noções de tempo e não uma única, noções essas expressas num tempoindividual, num tempo social, num tempo do eterno retorno e num tempo histórico.

Page 27: Noção de tempo entre os índios Krahô

255).

Pautando sua análise pela tipologia fenomenológica de Alfred Schultz acerca das

relações sociais38, Geertz observa que os balineses têm uma noção estática de tempo porque

possuem uma concepção despersonalizante da pessoa humana, uma concepção que se

esforça para enfocar os papéis sociais mais que os atores, que despreza a perecibilidade

destes e destaca a eternidade daqueles 39. Outra característica do sistema temporal balinês é

seu duplo calendário - "permutacional" e lunar-solar - que pressupõe uma noção

taxonômica de tempo, já que dividem e classificam os dias em "dias cheios" ou bons e

"dias vazios" ou ruins tanto no que concerne a vida religiosa quanto aos assuntos da vida

cotidiana (: 257-65).

Geertz chegou à noção balinesa de tempo analisando as estruturas simbólicas

através das quais as pessoas são percebidas e as práticas sociais ordenadas. É também

como um sistema simbólico que Norbert Elias (1998 [1992]) propõe que se tome o tempo,

numa obra que tem pretensões outras que as do antropólogo americano 40. O símbolo

tempo é, em Elias, um símbolo relacional, pois sintetiza a relação que um grupo social

estabelece entre dois ou mais processos, sendo um deles padronizado socialmente para

servir aos outros como quadro de referência e padrão de medida. Os processos que podem

servir a esse propósito são caracterizados pelo seu desenrolar contínuo, por estarem

ininterruptamente num movimento que é unilinear, unidirecional e em velocidade

uniforme; em suma, têm um movimento regular. O relógio, bem como o sol ou as estações

são exemplos desses processos físicos que as sociedades institucionalizam como símbolos

temporais (Idem: 39-40; 95). Como símbolos, as unidades de tempo (p. ex., "hora", "dia",

"noite", "nascente", "poente") emitem mensagens àqueles que partilham o mesmo código

38 Alfred Schultz, filósofo e sociólogo alemão radicado nos Estados Unidos, divide as relações sociais que aspessoas estabelecem na sua vida cotidiana em quatro tipos-ideais principais. Para ele, os "companheiros" ou"parceiros" podem apresentar-se um ao outro como "predecessores", "contemporâneos", "consócios" ou"sucessores". Cf. Geertz (Idem), pgs. 229-33, para um detalhamento destes conceitos.39 Contudo, é digno de nota que a afirmação de que os balineses possuem "concepção atemporalizante detempo" (Geertz, 1989: 256-7; 260) parece antes de tudo repousar sobre a visão de tempo ocidental da qualGeertz não consegue se libertar e segundo a qual a aptidão cultural para a mudança e para a história estariatão-somente ligada a uma noção linear do tempo, a noção do próprio antropólogo. Pelo menos essa é a críticaque lhe dirigem Nancy Munn (Op. cit.: 98-100) e Nicholas Thomas (1994: 216), para quem esta postura éainda resquício do colonialismo que impregna o fazer antropológico, com o que concordo em parte. Aterminologia de Geertz de fato conduz a esse julgamento. Apesar disso, prefiro ver no estudo do antropólogoestadunidense uma tentativa de compreender um modelo de pensamento que "vai numa direçãoacentuadamente diferente da nossa" (Geertz, op. cit.: 258). O ímpeto anti-colonialista pode às vezes cavalgarsobre a pretensão universalista da cosmologia ocidental, seu próprio alvo, e pode, assim, deixar de ver,passando por cima, as particularidades dos casos etnográficos concretos.40 O tempo, para Elias, é um "instrumento de diagnóstico sociológico" (Idem: 21) como o fora para osfundadores da Escola Francesa de Sociologia, mas um instrumento que lança luz sobre o processo civilizador.Esta, sua a preocupação central. De fato, "Sobre o tempo" é o terceiro ensaio, de uma série de três, que elededica a esse tema.

Page 28: Noção de tempo entre os índios Krahô

de comunicação. Essas mensagens indicam às pessoas o momento de se realizarem

determinadas atividades sociais e a duração que elas têm, fornecendo-lhes um meio de

orientação no fluxo incessante do devir, além de ser uma forma de coordenar as condutas e

as sensibilidades (: 30; 67; 83-4).

Assim, os referenciais de tempo são processos físicos - "naturais" (o sol, as

estações) ou de origem humana (relógios) - transformados em símbolos que os grupos

humanos institucionalizam segundo seus interesses culturais específicos 41 (: 95). Elias

lembra ainda que o estudo da noção de tempo de um grupo humano deve relacioná-la a

outras instituições sociais e que ela é inseparável da representação do universo que tal

grupo faz e das condições nas quais vive (Elias, 1998 [1992]: 130; 141). É também

preocupada com os interesses culturais particulares das sociedades, ou com os "projetos"

culturais, que Nancy Munn (Op. cit.) propõe uma abordagem do tempo segundo a qual

processos naturais ou atividades sociais somente são utilizados como instrumentos

simbólicos após terem sido instituídos socialmente como "pontos de referência" para a

orientação da praxis, individual ou coletiva (: 102).

Isso significa levar em conta o "projeto" cultural dos sujeitos, pois, observa ela, as

pessoas constróem sua temporalidade em modos particulares de relação entre si e entre elas

e seus pontos de referência temporal. O interesse dos atores na contagem do tempo está

ligado aos seus propósitos de ação e interação num mundo que é, antes de tudo, um mundo

vivido. Nesse sentido, Munn sugere o conceito de "temporalização" (: 116), que "vê o

tempo como um processo simbólico que é continuamente produzido nas atividades

cotidianas" 42, atividades que configuram os "projetos" culturais de um povo, o conjunto de

objetivos culturais que revelam sua avaliação do que é o bom viver, seu sistema de valores.

Para dar conta da relação entre a estrutura simbólica do tempo e as práticas sociais,

o francês Roger Sue (1995) propõe o conceito de "tempos sociais". Ao invés de um tempo

social único, cada sociedade teria vários blocos de tempo através dos quais articula, dá

ritmo e coordenação às principais atividades coletivas às quais atribui importância

particular (Idem: 29). Entre estes tempos sociais, um destaca-se como determinante do

ritmo preponderante em cuja base se encontra uma prática social assumida coletivamente

como sendo de maior relevância (p. ex., o trabalho nas sociedades altamente

41 Valer destacar que, enquanto para Leach a ordem que fornece os meios de orientação temporal a umasociedade humana são os rituais, ou seja, suas próprias atividades sociais, Elias localiza tal ordem no domíniodos processos físicos: os relógios, o movimento do sol, a alternância das estações. Em momento algum elevislumbra os rituais como demarcadores simbólicos do tempo.42 "I have tentatively sketched a notion of "temporalization" that views time as a symbolic processcontinually being produced in everyday practices".

Page 29: Noção de tempo entre os índios Krahô

industrializadas, ou os rituais em sociedades indígenas como a Krahô) e em torno da qual

giram as outras práticas. É nesta estrutura simbólica dos tempos sociais que a vida social

encontra seus ritmos e alternâncias. Daí o autor falar em "tempo social dominante", um

tempo que, baseado numa prática social preponderante, estrutura e polariza os outros

tempos sociais em torno dele próprio 43 (: 124).

* * * * * * *

E aqui, com Munn e Sue, concluímos nosso percurso. Ele nos levou do tempo como

um meio de medição das distâncias socioculturais, passando por abordagens que se

valeram dele para chegar às representações coletivas das sociedades, até propostas teóricas

que o tomam com um problema focal, como objeto principal de investigação

antropológica, como bem evidenciou minha própria abordagem dessa questão. Nesse

sentido, espero que tenha ficado claro que o "tempo" tem ganhado na antropologia cada

vez mais destaque como uma face na qual a alteridade se manifesta, como uma página na

qual se pode obter informações valiosíssimas acerca das cosmologias e da ordenação das

práticas culturais. Ademais, como assevera Cardoso de Oliveira (Op. cit.: 145), tomando

categorias como a de tempo como objeto privilegiado de estudo, as pesquisas

antropológicas podem tornar-se mais libertas dos etnocentrismos que em muito ainda

impregnam os horizontes conceituais da nossa disciplina.

43 "La structure des temps sociaux s'organise autour d'un temps dominant qui structure et polarise l'ensembledes temps sociaux autour de sa propre structure" (grifos do original).

Page 30: Noção de tempo entre os índios Krahô

CAPÍTULO IIALTERNÂNCIA E LINEARIDADE DO TEMPO: OS CICLOS COTIDIANOS

Antes de entrar na questão da noção de tempo Krahô propriamente dita, algumas

informações preliminares acerca da sua organização social e da sua cosmologia se fazem

necessárias de modo a deixar clara a leitura do que virá mais abaixo.

Os Krahó, falantes de uma variante da língua Jê, tronco Macro-Jê, são uma

sociedade Timbira Oriental, do qual fazem parte ainda os Canela-Ramkokamekrá, os

Canela-Apaniekrá, os Krikati, os Pïkobyê e os Gaviões. Um dos aspectos fundamentais da

história da formação dos Krahô é, segundo Azanha (1984: 46-55), a relação entre dois

grupos Timbira, Mãkrare e Pãrekamekra-Kenpokateyê, dos quais eles teriam surgido44.

Ainda hoje esse subdivisão ressoa, em especial, no vigor com que as aldeias Krahô se

apegam às tradições timbira, ou ao que Azanha (Idem: 05; 51) chama de "Forma Timbira":

corrida de toras, aldeias circulares, rituais de iniciação e do ciclo anual, elementos

estreitamente relacionados à construção da sua temporalidade. Quanto ao ritual de

iniciação do Khetwaye, por exemplo, Melatti (1978: 274-293) indica a existência de

diferenças de detalhes na forma como é realizado pelos Mãkrare e pelos Kenpokateyê.

Gilberto Azanha lembra que os Mãkrare, de todos os Timbira, foram os que

primeiro estabeleceram uma aliança com um cupen (“civilizado”) rico, em 1810: o

fazendeiro e comerciante Francisco de Magalhães, fundador da atual cidade de Carolina

(MA). Essa aliança, da perspectiva dos índios, serviu aos seus propósitos de expansão

sobre o território de outros grupos. Penetrando no extremo norte do atual Estado do

Tocantins, os Mãkrare entraram em contato com os Pãrekamekra, cujos grupos locais -

Kenpokateyê e Põkateyê - estavam instalados em duas aldeias e com quem estabeleceram

uma aliança (1984: 46-47). Em 1848, os Mãkrare e os Pãrekamekra- Kenpokateyê, já

chamados de Krahô, foram levados para o sul pelo Frei Rafael de Taggia e em 1849/50,

após uma epidemia de sarampo, os sobreviventes seguiram para a região onde hoje estão

localizadas as suas aldeias (Idem: 47-8). Nesse sentido, Azanha destaca que, atualmente, as

aldeias Krahô ou são Mãkrare ou Pãrekamekra- Kenpokateyê 45 (Ib.idem: 49).

44 Sem poder discutir em detalhes a complexa história da formação dos Krahô, indico o capítulo final dadissertação de G. Azanha (1984), "Notas preliminares para uma etno-história Krahô".45 Há um mito que explica a origem dos Mâkrare. Trata-se do mito da mulher e da cobra (Schultz, 1950:156-8), que fala do tempo em que o mundo começou ser povoado pelos índios. Haviam então muitos índios,

Page 31: Noção de tempo entre os índios Krahô

Contudo, segundo Melatti (1978: 78), existiria ainda a subdivisão Krikatire e

Krïkateyê na aldeia Boa União, além da referência a outros grupos como Pãhãmekra e

Krãhamekra. Some-se que as aldeias Pãrekamekra têm vivido entre si uma rivalidade

levada a cabo pelos subgrupos Kenpokateyê (dentre as quais Azanha cita a aldeia Pedra

Branca) e Põkateyê (aldeia Rio Vermelho, por exemplo) e eles, em conjunto, têm mantido

relações de distanciamento e indiferença com as aldeias Mãkrare (p. ex., aldeias Galheiro e

Santa Cruz). Em boa medida, estas relações por vezes não muito amigáveis entre

Pãrekamekra e Mãkrare têm a ver com as dificuldades que os Mãkrare demonstram para

seguir vivendo segundo os padrões culturais tradicionais e que são explicadas, segundo

Azanha (1984: 50-2), pela proximidade das suas aldeias com os cupen, elemento que

"limita e descaracteriza"46. Porém, ele adverte, aldeias Mãkrare podem continuar, sim, a

reproduzir a "Forma Timbira"47 (Idem: 51). Além do quê, os Krahô se consideram uma

unidade, a maioria das pessoas sendo muito pouco informada acerca das subdivisões

(Melatti, idem).

As aldeias circulares são "um dos aspectos mais característicos da cultura Timbira"

(Nimuendajú, 1946: 37). Vimos com Azanha que as aldeias krahô mantêm sua morfologia

espacial como forma de resistência frente ao cupen48. O ser Timbira não se realizaria sem a

forma tradicional das aldeias. Aliás, nascer numa aldeia Krahô é um dos principais

definidores da identidade étnica do sujeito, mas numa aldeia tradicional porque aquelas que

têm a forma dos povoados dos brancos (algumas Mãkrare) não são de mehin (Timbira),

nem tampouco de cupen, mas de cupen cahogré, "falsos civilizados" (Melatti, 1984: 190) .

O modelo das aldeias é o seguinte: cada casa (Ikré) é ligada ao pátio (Kë), também circular,

por um caminho radial denominado Prïkarã; diante das casas passa um caminho circular

(Krikapë) no qual são realizadas as corridas de toras e certos rituais (Melatti, 1978: 34). O

que brigavam bastante entre si. Um dia, um índio matou a ema do outro. O dono da ema zangou-se, reuniuseus parentes e fundou uma nova aldeia à qual deu o nome Mãkrare, "filhos da ema".46 Nimuendajú, que esteve entre os Krahô em 1930 e contou 100 indivíduos Mãkrare e 300 Kenpokateyê,designou a perda dos diacríticos timbira dos Mãkrare como “decadência” (1946: 26). Azanha (1984: 51) fazreferência a uma genealogia dos Mãkrare, que ele elaborou e que remonta até o começo do século XX,segundo a qual a composição atual deste grupo é de descendentes Xerente (a maioria), “civilizados”, Apinayé(Timbiras Ocidentais) e Canela. 47 Azanha cita como exemplo a aldeia da Serrinha, atual Galheiro (Idem: 51).48 Cupen é um substantivo que designa o "outro", o "estrangeiro" tanto indígena não-timbira quanto branco.Ou, segundo Azanha (Op. cit.: 32), é o que "da 'Forma Timbira' não apresenta nada de reconhecível" e com oqual, portanto, nenhuma reciprocidade é possível. O verdadeiramente Timbira e, logo, humano é chamadomehin, termo que Nimuendajú (1946: 12) sugere seja traduzido por "pessoa" (person). Sabendo que outrosdois traços distintos dos Timbira Orientais são o corte de cabelo e os batoques auriculares, não deixa de serinteressante observar que, para algumas dessas sociedades, mehin tem também o sentido de "corpo" (cf.Nimuendajú, idem).

Page 32: Noção de tempo entre os índios Krahô

pátio da aldeia é, segundo sua ideologia dualista, o domínio masculino. Nele se realizam as

reuniões diárias dos homens, os cantos e danças ao nascer e ao pôr-do-sol, além de outros

ritos. Até recentemente, era no Kë que os rapazes solteiros dormiam. A periferia,

conformada pelas casas, é o domínio feminino. É onde as mulheres realizam as tarefas

domésticas, onde as pessoas nascem e onde, teoricamente, elas devem morrer

(Nimuendajú, 1946: 133; Carneiro da Cunha, 1978: 16). O pátio, centro da aldeia, é

associado ao sol, ao dia, à estação seca, ao passo que a periferia é ligada à lua, à noite, à

estação chuvosa. Assim, na configuração espacial da aldeia krahô está refletida a oposição

dos elementos centrais constituintes do universo segundo a cosmologia dualista dos

Timbira-Jê (Melatti, 1974b: 41; Maybury-Lewis, 1979: 09).

Na periferia da aldeia vivem as famílias elementares, as unidades socioeconômicas

básicas. Cada família elementar dispõe de uma roça e é a ela que o homem destina quase

tudo o que produz. Numa casa é comum morarem várias famílias elementares, ligadas entre

si pelas relações de parentesco das mulheres, já que a residência é uxorilocal. Quando uma

mulher cozinha, o alimento é repartido entre todos da casa, embora cada família elementar

fique em separado para comer (Melatti, 1978: 52; Ladeira, 1982: 16). O grupo doméstico

formado pela co-habitação de famílias elementares inter-relacionadas é melhor articulado

quando o sogro dos homens está vivo, pois é ele que coordena suas atividades econômicas.

Neste sentido, Ladeira (1982: 23) lembra que a "força do chefe do grupo doméstico" é um

fenômeno que se manifesta entre os Krahô devido ao fato de as mulheres, aí, terem um

peso político insuficiente para neutralizar a ação do homem no âmbito doméstico49.

Quando uma casa fica demasiado cheia, outra é construída ao lado. O conjunto de casas

contíguas forma um segmento residencial, de maneira que entre os Krahô "seus segmentos

residenciais quase sempre coincidem com o grupo doméstico", sublinha Ladeira (Idem:

25). A principal característica dos segmentos residenciais é a exogamia, já que não

recebem um nome especial, não têm prerrogativas rituais ou o direito sobre certos bens

nem tampouco estabelecem relações de hierarquia entre si50 (Melatti, 1973: 04; Ladeira,

idem: 19). A periferia, em suma, é a esfera das relações de parentesco: nela, as pessoas são49 Contrariamente ao que ocorre entre os Canela, onde a força política das mulheres está atrelada ao pesodos segmentos residenciais nos processos decisórios: "Quanto mais casas e mulheres tiver um segmentoresidencial mais força terá para impor seus interesses frente aos outros segmentos, pois são as aliançasestabelecidas entre eles que garantem a estabilidade política da aldeia" (Idem: 22). 50 Lévi-Strauss (1970 [1956]: 164) generaliza para todos os Timbira Orientais as observações deNimuendajú de que o casamento é regulado pelas metades Harãkateye e Khöikateye. Porém, a unidadeexogâmica entre os Krahô é o segmento residencial. Sobre isso, Ladeira (Idem: 20) destaca que a quebra doprincípio de exogamia implica no reconhecimento da separação dos parentes membros do segmentoresidencial. Ademais, em vários mitos, vamos ver, o rompimento com esta regra desencadeia uma ruptura noslaços de parentesco cujos efeitos são uma separação espacial de fato.

Page 33: Noção de tempo entre os índios Krahô

ligadas umas às outras através do corpo. No contraponto, o pátio é o tablado onde as

relações de natureza cerimonial são encenadas: nele, o que liga as pessoas são seus nomes

pessoais.

O dualismo complementar faz com que, nos cantos e danças do poente, as mulheres

levem a periferia para o pátio. Este, por sua vez, se faz presente na periferia através de uma

instituição central no sistema social Krahô. Trata-se do Wïtï, meninos e meninas que têm

participação importante em vários ritos. Os/as wïtï são crianças associadas aos três grupos

básicos das sociedade. As mulheres têm um menino wïtï, os indivíduos imaturos do sexo

masculino têm uma menina e os homens adultos têm outra menina como sua wïtï 51

(Melatti, 1978: 302). Pesa, na seleção das crianças, a conduta dos pais: eles devem ser

generosos, amantes da paz, industriosos (Nimuendajú, idem: 92-3; Melatti, idem: 303-4).

Eles devem, enfim, encarnar os mais altos valores morais da sociedade, que tem como

locus não somente o pátio, mas também a periferia: a casa do wïtï. Dois outros fatos

corroboram a associação da casa do wïtï com o pátio. O primeiro é que ela é

permanentemente aberta ao grupo associado; é seu ponto de reunião, pois, como me disse

um morador da aldeia Manoel Alves, é sua "pensão". O segundo é que, se não houver,

durante um período, nenhuma casa de wïtï, as corridas de toras terminam, todas elas, no

pátio. Assim, tendo "como que a presença do centro da aldeia na sua periferia" (Melatti,

idem: 306), o espaço social da aldeia só ganha sentido se vivido na completude da

interação dos seus contrários52.

O dualismo complementar expresso por essa relação do centro com a periferia da

aldeia é somente um exemplo do arranjo dual do universo no qual se movimentam os

Timbira. Esse dualismo realiza o que Lévi-Strauss (1971 [1956]: 155; 165) pôs em relevo:

a justaposição de dicotomias assimétricas (dualismo “concêntrico”) sobre dicotomias

simétricas (dualismo “diametral")53. É assim que o leste se opõe ao oeste, o dia à noite, o

51 Pode acontecer que algumas aldeias tenham meninos e meninas wïtï associados às mulheres e aos homensdas metades Harãkateye e Khöikateye. Isso, que Melatti (Idem: 303) viu na aldeia Cacheira, eu vi na aldeiaManoel Alves. Nimuendajú, que esteve na aldeia do Porto dos Ramkokamekrá, também observou os wïtïassociados as essas metades, sobre o que ele diz que as duas crianças escolhidas devem ter os paispertencentes a metades contrárias e que suas casas devem estar dispostas de maneira diametralmente opostas(1946: 92-3). São essas metades que participam dos ritos de investidura e de abdicação do wïtï (cf. Melatti,ib. idem: 306-13). De qualquer modo, as crianças escolhidas devem ser virgens, com idade entre 5 e 7 anos;quando alcançam a puberdade, por volta dos 12 anos, deixam der ser wïtï.52 Melatti (1973: 03) chamou essas "exceções institucionalizadas" que afirmam a igualdade dos póloscontrários de "oposição da oposição". Ele dá como outro exemplo a antiga prática do enterro, no pátio, decertas figuras de prestígio, quando se sabe que o costume era o sepultamento na periferia, ou junto às casas oudentro delas, numa afirmação de que os vivos estão ligados ao centro e que, portanto, são diferentes dosmortos. Assim, a oposição vivos-mortos encontra sua própria oposição nos sepultamentos excepcionais:mortos e vivos são iguais. Sobre a oposição vivos e mortos, cf. também Carneiro da Cunha (1978). 53 Este texto de 1956 testemunha um uso mais ampliado do conceito de organização dualista por parte deLévi-Strauss, que aí inclui a oposição entre aspectos dos mundos físico e metafísico para além daquela entre

Page 34: Noção de tempo entre os índios Krahô

masculino ao feminino; mas o leste e o dia estão ligados ao centro, ao masculino, ao pátio,

enquanto que o oeste e a noite estão associados ao periférico, ao feminino. Neste sentido,

esse autor ainda observa (Idem: 170-1) que, sob esse simbolismo antitético, se oculta uma

concepção que atribui valores desiguais a dois termos de base: estabilidade e mudança, ou

continuidade e descontinuidade.

Por outro lado, essa visão dualista do universo, que os Krahô compartilham com os

demais Jê, e segundo a qual é da própria natureza das coisas e dos seres se apresentarem

como bipartidos em oposições (Melatti, 1976: 140; Maybury-Lewis, 1979: 12-3),

manifesta-se na forma como a sociedade é arranjada, qual seja, num complexo sistema de

pares de metades. Para os propósitos desta dissertação, discorrerei brevemente sobre dois

destes pares que me parece serem mais importantes para a compreensão da noção de tempo

Krahô: Wakmeye e Katamye, metades sazonais, e Khöikateye e Harãkateye, metades de

classes de idades associadas ao leste (nascente) e ao oeste (poente) respectivamente.

Como as demais metades, o par Wakmeye-Katamye não é regulador do matrimônio,

tendo mais uma natureza ritual54 (Melatti, 1973: 01; 1978: 81). A cada uma dessas metades

estão associados vários símbolos, alguns dos quais denotando períodos de tempo. A

metade Wakmeye está associada ao pátio da aldeia, ao fogo, às listas verticais da pintura

corporal, ao vermelho, ao nascente, ao dia, ao sol, à estação seca. A metade Katamye está

ligada à periferia, à agua, às listas horizontais da pintura corporal, ao poente, à noite, à lua,

à estação chuvosa55. Vê-se, então, que Wakmeye e Katamye são conceitos com "quadro

cósmico de referência" (Whorf, 1968: 61). Mas são conceitos cujos sentidos plenos

grupos sociais (cf. pg. 155). Em textos anteriores (1982 [1949]; 1970 [1952]), a ênfase deste conceito recaíasobre os sistemas de trocas matrimoniais restritas, ou seja, tão-somente a oposição entre grupos sociais -metades - fundamentada na dicotomia entre primos cruzados e primos paralelos. Como resposta à pergunta"As organizações dualistas existem?", Maybury-Lewis, numa carta-circular enviada aos participantes doProjeto Havard-Brasil Central, em 1964, propôs que se pensasse, com este conceito, em termos de umcontínuo no qual há, num extremo, sociedades onde boa parte das idéias e instituições são ordenadas demaneira dual e, no outro, sociedades onde as "antíteses simbólicas" não têm peso algum (cf. Melatti, 2002:183). Os Krahô seriam, pois, exemplo de uma sociedade localizada próximo ao primeiro extremo, comodefendeu Melatti (1973, 1976).54 Além desse par e do par Khöikateye e Harãkateye, os Krahô têm ainda outros: Khöirumpekëtxë eHarãrumpekëtxë, cujo direito de pertencimento está ligado ao nome e dos quais as mulheres estão excluídas,e que atuam nos ritos do Khetwaye e do Pempkahök; as metades Hëk e Krókrók, que atuam no ritosPempkahök, Khöigayu e Piegré; e o par Tép e Teré, que participa da "festa da lontra e do peixe", Tépyarkwa(Melatti, 1978: 88-92). Somente as metades sazonais e as metades Khöirumpekëtxë e Harãrumpekëtxëpossuem um repertório de nomes pessoais associados. Cf. Lave (1977) para uma análise do relacionamentoentre os pares de metade dos Timbira Orientais, pautado nos Canela-Ramkokamekrá. 55 Essas metades correspondem às metades Atukmakra e Kamakra, dos Canela-Ramkokamekra. À primeira(Atuk ="fundo da casa", periferia), Nimuendajú associa também a batata-doce e o inhame; à segunda (Kë =pátio), estaria relacionado o milho (1946: 84). Isso faz sentido, já que nos mitos que veremos em seguida omilho é um elemento masculino, portanto, ligado ao pátio, e a batata-doce e o inhame são alimentosfemininos, logo, associados à periferia (cf. Chiara, 1979: 32, e Lévi-Strauss, 1991: 313).

Page 35: Noção de tempo entre os índios Krahô

dependem da sua relação um com o outro e sobre os quais se levanta todo um conjunto de

práticas. Assim, são as metades Wakmeye e Katamye que realizam os ritos do ciclo anual,

ou seja, os ritos que inauguram e encerram as estações seca e chuvosa56. Nas reuniões da

pátio, os membros da metade Wakmeye sentam-se a leste e os membros da metade

Katamye, a oeste (Melatti, 1978: 81).

Como veremos mais abaixo, existem alguns cânticos que são divididos entre essas

metades e cujos ritmos das danças que os acompanham dependem da metade à qual

pertence o cantor. Existem, além disso, alguns gritos que são verdadeiros "ritos orais"

(Mauss, 1968b), haja vista terem o "tempo" certo de serem ecoados estabelecido pela

tradição. Assim, os gritos da metade Wakmeye, ouvidos em certos rituais da estação seca,

são gritos que reproduzem o canto da rola-azul fêmea, que canta durante o dia. Já os gritos

da metade Katamye, ecoados em ritos que ocorrem durante a estação chuvosa, são os

cantos do gavião irerëkateré, que canta antes do sol nascer (Melatti, 1978: 82).

Existe uma série de comportamentos rituais cuja observância deve levar em conta a

quais períodos de tempo as metades dos sujeitos estão associadas. Sobre as metades

correspondentes dos Canela, diz Nimuendajú (1946: 86) que, nos rituais de iniciação, os

noviços de afiliação Atuk (Katamye) podem deixar o campo de reclusão ao anoitecer, "pois

a noite pertence aos atuk", enquanto que os iniciandos Kamakra (Wakmeye) não o deixam

antes do sol raiar, "pois o dia pertence aos Kamakra". Marcel Mauss (1968a [1904-05]:

448-9) apontou, nesse sentido, para o fato de que algumas sociedades fundamentam certas

interdições rituais com base nas suas representações coletivas do tempo. Assim, enquanto

os membros da metade Katamye não podem procurar abrigo quando chove, aos membros

da metade Wakmeye são interditas as sombras nos dias de sol quente (Melatti, idem).

A mudança nas estações sinalizada pelos ritos que essas metades realizam implica

não somente mudança nos ciclos do "tempo ecológico". Há uma conotação estrutural na

mudança do tempo porque o que está envolvido aqui, como entre os Nuer, é uma mudança

nos relacionamentos entre os dois grupos sociais (Evans-Pritchard, 2002: 118). A

alternância do tempo sazonal é a alternância na precedência que um grupo tem à frente da

coordenação das atividades cotidianas da aldeia, de maneira que desta alternância deriva a

noção de ano para os Krahô. Assim, no início da estação seca (março-maio), os homens da

metade Wakmeye escolhem dois indivíduos do sexo masculino para serem “prefeitos”

(Homrén) da aldeia durante essa estação. No começo da estação chuvosa (setembro-

novembro), são os homens da metade Katamye que escolhem os dois “prefeitos” (Melatti,56 Devo acrescentar que Wakmeye e Katamye são dois conceitos polares que funcionam como operadoresclassificatórios de animais e plantas, sobre o que falarei mais à frente.

Page 36: Noção de tempo entre os índios Krahô

1978: 83). Os "prefeitos" são incumbidos de orientar os outros, nas reuniões matutinas do

pátio, com relação aos trabalhos com os quais a comunidade ficará envolvida durante o dia.

Portanto, espera-se que ele tenha um certo conhecimento das condições que a estação em

curso, à qual ele é associado, pode propiciar57. A coordenação das atividades do dia pelos

"prefeitos" da estação é como que o reconhecimento de que a sazonalidade penetra o

cotidiano.

ESTAÇÃO SECA ESTAÇÃO CHUVOSA

Mar./Mai Set./Nov. Mar./Mai

Wakemye: Sol, Dia, Listas Verticais Katamye: Lua, Noite, Listas Horizontais

A condição de pertencimento a uma dessas metades é dada pela posse de um nome

pessoal a ela referente. O homem recebe o nome daqueles parentes consangüíneos a que

aplica o termo keti: Im, Imm, Pm, Ipm, PP, IPP. A mulher recebe seu nome pessoal

daquelas parentes consangüíneas que designa pelo termo tëi: iP, fiP, ffiP, mP, imP, mm,

imm58. O nominador passa a chamar ipantu àquele que recebeu seu nome (Melatti, 1973:

01, 06-07; 1976: 142). No rito de transmissão de um nome Wakmeye, que ocorre com a ida

do/a nominador/a à casa do seu/sua ipantu logo após seu nascimento, o líder dessa metade

vai até o pátio e dá seu grito característico de manhã, depois do nascer do sol; no caso do

nome Katamye, o processo é o mesmo, mas o grito da metade deve ser ecoado antes do sol

sair59 (Melatti, 1978: 105). Se o nome é que dá ao sujeito o direito de fazer parte de uma

ou outra das metades sazonais, o mesmo não ocorre com relação às metades de classes de

idade Khöikateye e Harãkateye, dentre as quais os dois "prefeitos" são escolhidos (eles

devem ser da metade da estação em curso, mas devem ser de metades de classes de idade

diferentes).

O rapaz adquire a condição de pertencimento a uma das metades de classes de idade

após ser introduzido numa ou noutra por um padré, mas sua permanência nela não é rígida.

da estação seca (Melatti, 1978: 83). O uso deste termo para designar os "prefeitos", tanto Wakmeye quantoKatamye, parece confirmar a existência de uma valorização maior do elemento ligado ao sol. Melatti (Idem)diz que um informante certa feita se referiu aos Katamye como "moles", por isso eles teriam vergonha dosWakmeye. 58 I= irmão, i=irmã, P=pai, m=mãe, F=filho, f= filha. Mais à frente, falarei novamente da nominação.59 Falarei mais sobre os nomes pessoais quando vier a tratar da noção de pessoa.

Page 37: Noção de tempo entre os índios Krahô

Além disso, as classes de idade já não atuam como grupos distintos e organizados. Mas,

"as metades que as incluem continuam plenamente atuantes na organização social Krahô"

(Melatti, 1978: 85). Assim, as metades Khöikateye - "povo do nascente" - e Harãkateye -

"povo do poente" - realizam vários ritos cotidianos, como as corridas de toras, nas quais

formam os dois times60. Elas também participam dos ritos de investidura e abdicação dos

wïtï, do Hamaro (Idem: 148-50) e de outros como os ritos ligados às relações entre

parentes (p. ex. o Përtere e o Përekahëk) e o ritual de iniciação Khetwaye. Fora das

situações rituais, essas metades atuam como grupos nos mutirões para ajudar algum

membro na sua roça (Melatti, idem: 88).

Se há uma valorização dos elementos ligados ao sol, os Krahô parecem atribuir

valores diferentes aos dois pontos cardeais marcados pelo seu percurso no céu: Khöi, o

leste, lugar do nascente seria superior; Harã, o oeste, onde o sol se põe, seria inferior. No

ciclo cotidiano, o leste é onde o sol nasce com todo seu vigor, contendo aí maior potencial

de "energia vital", que vai se dissipando até atingir o ponto mínimo no poente. Há o mito

que narra a saga do herói que salvou seu povo da grande escuridão, conduzindo-o para o

Khoikwakhrat, descrito como um lugar de muita claridade onde "ninguém morre mais" (cf.

Schultz, 1950: 159). Assim, vários informantes de Melatti (1978: 87) afirmaram que os

Khöikateye têm mais força, são maiores e mais corajosos e que os Harãkateye são mais

fracos, menores e esquivos. Porém, é interessante observar que, apesar de figurarem no

discurso como simbolicamente desiguais, nos ritos e em outras práticas cotidianas o

comportamento recíproco entre elas é simétrico (Melatti idem: 353; Lave, 1977: 317). Isso

seria uma forma de solucionar uma desigualdade na ordem do cosmos através da conversão

dos seus elementos nos termos de uma igualdade simbólica na ordem da sociedade.

O que é importante destacar aqui é que, em várias reuniões matutinas, o "conselho

masculino" é dividido não nas metades sazonais, mas nas metades Khöikateye e

Harãkateye, ficando a primeira a leste e a segunda, a oeste. Além disso, os dois "prefeitos",

embora pertençam à mesma metade associada à estação em curso, devem ser sempre um

Khöikateye e outro Harãkateye (Melatti, idem: 87). Assim procedendo é como se os Krahô

estivessem afirmando sua experiência do tempo como sendo também marcada pela

alternância cotidiana: nascente - poente, dia - noite. Vimos que aos "prefeitos" compete a

coordenação das atividades cotidianas. Essas duas metades, portanto, estão ligadas a uma

60 Khöi, a mesma raiz da palavra Khoikwakhrat ("pé-do-céu"), quer dizer "leste", "nascente", Harã querdizer "oeste", "poente"; o sufixo kateye significa, segundo Azanha (1984: 10), "aquele que tem domínio sobrealguma coisa, ser ou lugar". Sobre as diferenças de sentido dos sufixos "kateye" (ocupação territorial) e"kamekrá" (origem), na relação entre os grupos Timbira, cf. Azanha (Idem: 09 ss).

Page 38: Noção de tempo entre os índios Krahô

noção de tempo de tipo "estrutural" (Evans-Pritchard, op. cit.: 116), derivada pois da

interação de grupos sociais cujo ritmo é o da oscilação entre pólos contrários e

complementares.

A dualidade alternância - linearidade na mitologia

Se a temporalidade, nas sociedades indígenas, deve ser entendida dentro do

contexto cosmológico expresso na mitologia, como sugere Lévi-Strauss (1968), há que se

atentar para dois ciclos da mitologia Krahô que estabelecem o duplo caráter do tempo,

como alternância (dia-noite, seca-chuva) e como linearidade (Chiara, 1979: 32). Neste

sentido, temos a cotidianidade construída como um tempo alternado e linear expresso num

eixo horizontal (Leste - Oeste da terra), a partir dos mitos das aventuras de Sol (Pud) e Lua

(Pudleré), da obtenção do fogo e da Mulher-Estrela, como vermos abaixo. A este tempo

contrapõem-se o da alternância sazonal, presente no eixo vertical (Céu - Terra) dos mitos

das Plêiades, de Tulkrén e do Khoiré, sendo que este sanciona alternância geral do tempo:

cotidiano e anual61.

No simbolismo astronômico dos mitos, encontramos a explicação para a existência

de uma periodicidade longa (anual, sazonal) e de uma periodicidade curta (a dos dias e das

noites). Segundo Lévi-Strauss (Idem: 13; 91-2), as constelações estão ligadas a uma

periodicidade lenta, visto que sazonal, e estruturada em torno do contraste que ela reforça

entre os gêneros de vida ou as atividades tecno-econômicas. Já os corpos celestes

singulares, como o sol e a lua, definem, em sua alternância diurna e noturna, uma

periodicidade curta, indiferente, em princípio, às mudanças sazonais. A periodicidade curta

contrasta com a lenta, que a engloba: a primeira é monótona, e a segunda, dinâmica.

Assim, nos mitos encontramos uma linguagem que dá a ordenação lógica do movimento do

universo, da sucessão dos seres e das coisas em cadeias nas quais tudo vem a seu tempo.

Vários autores, aliás, já demonstraram que a construção da temporalidade nas sociedades

indígenas é orientada pela mitologia (Ramos, 1990; Overing, 1995; Silva, 1998). Por isso,

apresento os referidos mitos Krahô, pois são eles que embebem de sentido o dualismo que

vamos verificar na noção de tempo desta sociedade62.

61 Assim, ao eixo horizontal do tempo cotidiano estão associados: Leste - Oeste, Nascente - Poente, Dia -Noite; ao eixo vertical do tempo sazonal, Céu - Terra, Estação Seca - Estação Chuvosa.62 Antecipo que podemos acrescentar dois círculos de oposição àqueles aos quais Carneiro da Cunha (1986:22) se refere quando fala em "dualismo timbira". Dizendo respeito à natureza do tempo como alternância,temos um círculo que opõe a estação seca à estação das chuvas, o dia à noite, e outro círculo referente às suas

Page 39: Noção de tempo entre os índios Krahô

A exposição que se segue pode ser um tanto cansativa, mas vale a pena acompanhar

as seqüências mitológicas que muito nos dizem acerca da noção de tempo Krahô.

Comecemos pelo tempo em que ainda não havia seres humanos, quando Sol (Pud) e Lua

(Pudleré) descem à terra, trazendo a alternância dia - noite e a cotidianidade que a torna

humana.

Sol e Lua criam os seres humanos e os seres e coisas que preenchem seu

cotidiano 63

Sol e Lua, dois hõpin (compadres), desceram do céu a um mundo já criado, poréminabitado por seres humanos64. Quando chegaram, construíram cada qual umacasa para si, ao término do que resolveram caçar. Pud sugeriu que fizessem toraspara correrem. Foram então até o mato, tiraram as toras e correram, daí, até assuas casas cantando, "mas à toa mesmo, porque eram só os dois"65. Sugeriu Pudque voltassem para o mato, a fim de caçarem capivara. Mataram duas. Fizerammoquém para assar a carne da caça. Pud disse para Pudleré escolher um dos doisanimais abatidos, entre o macho e a fêmea. Pudleré escolheu a fêmea, acreditandoque o animal macho daria menos carne. Pud fez uma mágica que tornou o bichoescolhido por Pudleré mais magro. Pudleré lamentou ter escolhido a fêmea.Colocaram então a carne no moquém. Pudleré dormiu e Pud, não.

Pud atirou a gordura quente da capivara na barriga de Pudleré. Este saiucorrendo rumo ao rio de modo a esfriar-se. Pulou na água. Dentro do rio, retirouuma tartaruga que tampava um buraco do qual saiu tanta água, que provocou umaenorme enchente que varreu o mundo todo e carregou Pudleré para longe. Pudarrependeu-se do que havia feito e salvou Pudleré. Então voltaram os dois parasua pequena aldeia, na qual se dirigiram para o moquém. Após tirarem a carne jámoqueada (assada), Pud disse para tirarem mais toras para correrem. Foram parao mato, cortaram as toras e voltaram com elas aos ombros, correndo e cantado "àtoa, pois havia só os dois".

Com a vida revelando-se monótona demais, Pudleré sugeriu a existência dealguma coisa para lhes importunar, "alguma coisa pra espantar na nossa cara, nonosso corpo"66. Pud então criou os mosquitos. Pudleré aborreceu-se com eles, poisos muitos mosquitos criados somente picavam a ele. Pud ouviu suas lamúrias,

qualidades mais gerais: alternância vs. linearidade.63 Trata-se aqui de um resumo feito por mim com base na versão completa e rica em detalhes queencontramos em Schultz (1950: 55-63).64 No início dos tempos, a Terra não estava pronta para ser habitada porque estava crua - Pye tam (Pye=Terra; tam= crua, encharcada). Um evento repentino tornou-a apropriada para receber os demiurgos quecriariam os seres humanos: ela pegou fogo - Pye pôc (Terra ardente). Foi a própria terra que incendiou, e nãoo que está em cima dela, como se de crua passasse a cozida (Chiara, 1979: 31).65 Assim diz Yavu-Boaventura, que narrou este mito a Harald Schultz (1950: 55).66 Schultz (Idem: 56).

Page 40: Noção de tempo entre os índios Krahô

sorriu e resolveu então criar o mutuca, um mosquito ainda maior ao qual ordenouque ficasse picando o amigo. Pud pediu a Pudleré para ficar em casa, enquanto eleiria ao "pé-do-céu". Lá, Pud apanhou um enfeite vermelho, um chapéu do pica-pauda "cabeça vermelha"67. De volta à aldeia, Pudleré pediu a Pud que lhe desse oenfeite, ao que disse não: "este enfeite eu trouxe de modo a andar com ele; cantarcom ele"68. Voltaram dessa feita os dois ao "pé-do-céu", Pud subiu e Pudleré ficouembaixo. Pud disse que iria jogar um enfeite para Pudleré, mas que ele deveria terfirmeza nas mãos para não deixá-lo cair. Apesar das advertências de Pud, Pudlerénão conseguiu segurar o enfeite, porque vinha fogo junto. Ao cair no chão, o fogodo enfeite vermelho alastrou-se pelo mundo. Pudleré conseguiu escapar porque setransformou num nhambu e voou para a casa do marimbondo, onde se escondeu.Pud, com pena do cumpadre, o convidou para retornarem para casa. Já de tarde,foram caminhando e cantando, "à toa".

Pud ficou aborrecido de viver sozinho e resolveu criar uma mulher. Foi caçarnovamente, correu com toras até a casa, apanhou uma cabaça e foi até o rio. Lá,mergulhou a cabaça e em seguida a colocou no barranco, dizendo a ela que setransformasse em mulher. Nascida, ela acompanhou Pud até sua casa. Pudlerédescobriu a novidade e resolveu tê-la para ele. Indo até a casa de Pud, Pudleréseduziu sua mulher e copulou com ela. Pud a rejeitou e saiu para o mato,chegando a uma fonte d'água onde havia um pé-de-buriti. Somente Pud sabia daexistência desta árvore que, bastante baixa, dava frutos em abundância. Pud oscomeu e fez fezes vermelhas. Pudleré percebeu, ficou interessado e perguntou aPud o que ele estava comendo. Pud o enganou, dizendo que era flor de pau d'arco.Então Pudleré resolveu espionar o compadre e o viu comendo buriti. Porém, Pudordenou aos frutos que não amolecessem quando Pudleré viesse comê-los, a nãoser somente um. Pudleré foi até o chão sob o buritizeiro, apanhou fruto após fruto,mas todos estavam duros. Por fim apanhou um buriti com a polpa amolecida e ocomeu. Voltou a procurar outros frutos moles, mas nada. Somente encontrandofrutos duros, irritou-se e arremessou um desses no buritizeiro que, com o impacto,repentinamente ficou alto.

No outro dia, durante uma caçada Pudleré queixou-se a Pud que não havia nadano mundo que o fizesse chorar. Pud fez então a cobra, que logo picou Pudleré nasmãos. Pud, com pena, criou o antídoto e curou o compadre. Em seguida, voltaramdo mato correndo com toras. Chegando na aldeia, a mulher de Pudleré oaguardava, à vista do que Pud resolveu criar uma mulher para si, através domesmo processo da cabaça na beira do rio. Após viverem um tempo na aldeiasomente os quatro, Pud e Pudleré resolveram entre os dois, no pátio, que iriamprocriar. Dormiram então com suas respectivas mulheres, que, no dia seguinte, jáestavam prontas para dar à luz. No outro dia seus filhos nasceram.

Pud e Pudleré discutiram a forma do resguardo. Pudleré queria um resguardo deum mês, no mínimo, mas Pud queria um mais curto e sem interdições alimentares,e acabou impondo, "só pra aumentar aldeia", um resguardo de um dia. Assimprocedendo tiveram muitos filhos, pois a gravidez de suas mulheres duravasomente um dia: "(...) de noite a mulher fica bochuda. Quando o dia amanhecendo,

67 O pica-pau, lembra Lévi-Strauss (1991: 278), é um pássaro "comedor" de madeira, donde sua associaçãocom o fogo no pensamento mitológico.68 Schultz (Op. cit.: 57).

Page 41: Noção de tempo entre os índios Krahô

o menino sai fora da barriga da mãe" 69. Além disso, todo processo de crescimentobiológico da pessoa durava somente um dia 70. Como Pud tinha filhos e Pudleréfilhas, resolveram casá-los. Com a aldeia já "feita", Pudleré propôs novamente suaforma de resguardo: durando meses, com interdições alimentares e sexuais e coma observância dos pais e dos irmãos do recém-nascido.

Pud não concordou, discutiu, mas por fim cedeu. Ficou estabelecido o resguardode três ou quatro meses, como propôs Pudleré, porque assim é que as criançasficariam fortes. A aldeia aumentou, ficou grande e acabou por perpetuar-se. Omundo só não ficou superpovoado porque, antes de ter suas mulheres, Pudleréhavia provocado a morte definitiva, contrariando a vontade de Pud, que era a dorenascimento após a morte71. Com a aldeia estabelecida, Pud e Pudleréretornaram para o céu. Pud ficou com o dia para si e deixou a noite paraPudleré72.

E assim, alguns dos primeiros elementos culturais e naturais que animam o

cotidiano dos Krahô são introduzidos na Terra por Sol e Lua. Ficam criados seres, coisas e

práticas que preenchem dias e noites dos seres humanos. Constróem casas, caçam, correm

com toras, fundam a aldeia de seus filhos. Sol e Lua, cada um conformando um partido,

realizam corridas de toras todos os dias após as caçadas, ou por qualquer outro motivo: a

corrida de toras é anterior à própria humanidade! Por um desejo de Lua aparecem os

mosquitos, insetos que, nas aldeias Krahô como alhures, são tão recorrentes como a própria

noite. Também devido a Lua, os buritizeiros crescem tanto. Os frutos desta árvore, bastante

apreciados pelos índios, abundam durante a estação chuvosa, período em que são colhidos

cotidianamente pelas mulheres, não sem algum esforço. O pátio da aldeia aparece como o

lugar que simboliza o público, mas também o masculino, pois é onde Sol e Lua, apartados

de suas mulheres, deliberam acerca da criação dos seres humanos, criação que é biológica e

social.

Pudleré estabelece o tempo linear do desenvolvimento dos seres, um tempo que

69 Idem, pg. 61.70 O informante de Schultz diz que: "Quando o sol ia saindo, o menino já está puxando a perninha dele, ocorpinho. (...) Quando o sol subiu mais um bocadinho, já estava durinho. Já estava caminhando de joelho.Quando o sol subiu mais um bocadinho, já estava caminhando. Quando está pra perto do meio dia, já prafeito rapaz grande, já. Quando sol subiu mais bocadinho pro rumo do meio dia, já está com a barba pretinho,já saindo" (Idem: 61-2).71 Pud propôs que seus filhos, quando mortos, fossem colocados sob uma árvore e cobertos de folhas, demaneira que, à tarde, pudessem voltar para a aldeia renascidos. Foi assim que fez com Pudleré. Este tambémquis fazer o ritual funerário e pediu para que Pud morresse, o que aceitou. Pudleré o enterrou no cemitério,cobrindo seu corpo com folhas e jogando terra em cima, de manhã cedo. À tarde, Pud acordou, desenterrou-se e foi ter com Pudleré. Este disse que assim é que seria ensinado aos seus filhos (Idem: 63).72 Na versão que encontramos em Nimuendajú (Idem: 243-5), Pud ostenta brincos vermelhos e Pudleré,brincos pretos. Pud é associado ao que há de melhor e belo no mundo e Pudleré, ao feio e ao negro, aoescuro. Nesse sentido, o dia é mais apreciado que a noite, visto que o "Sol assume o dia, deixando a noitepara Lua. Lua insiste em também ter o dia, mas Sol diz a ele que não era da sua alçada escolher, e assim écomo as coisas permaneceram" (Ib. idem: 245).

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leva do nascimento à morte, sem retorno (Carneiro da Cunha, 1978: 20). Seus filhos e os

de Pud nascem. Eles discutem o resguardo, sua forma e sua duração. Se Pud tivesse saído

vencedor do embate, o resguardo duraria somente um dia, duração esta que seria a do

crescimento dos seus filhos. Mas como Pudleré convence o amigo, o resguardo que é

ensinado aos seres humanos tem a periodicidade marcada pelos meses, não pelos dias. A

periodicidade de Sol fica evidenciada, sua duração é a dos dias e a de Lua, a dos meses. Sol

é o guardião dos dias. Lua é senhor das noites. Há uma valorização do dia em relação à

noite, pois Sol se assenhora do dia e "deixa" a noite para Lua. É à noite que os mekarõ, as

almas dos mortos, perambulam. A noite é dos mortos, o dia é dos vivos. Talvez por esta

razão o cantador Krahô procura sair de madrugada a cantar: estaria ele apressando a vinda

de Sol, o clarear do dia, a dominância dos vivos. Os mortos, além disso, temem o chocalhar

do seu maracá (Carneiro da Cunha, 1978: 118). Percebe-se, assim, a associação de Pud,

Sol, com o masculino, o vermelho, o claro, os vivos e a de Pudleré com o feminino, o

preto, o escuro, os mortos. Aqui está a primeira bipartição do cosmo. Dias e noites

estabelecem a alternância da cotidianidade, a primeira dualidade temporal.

Da curiosidade de Pudleré (Lua) surge o trabalho 73

Ainda quando andavam sozinhos pelo mundo, Pud falou para Pudleré: "vamosfazer roça". E foram, cada um para um mato diferente, abrir suas roças. Pudlevou seu facão e seu machado e disse para eles irem fazendo o trabalho. Suasferramentas trabalhavam sozinhas. Num dia só, Pud já tinha uma roça bemgrande. Pudleré, cujas ferramentas dependiam das forças de suas mãos para semovimentarem, demorou várias semanas para aprontar sua roça. Assim, a roça dePud ficou pronta para receber o fogo bem antes que a de Pudleré.

Sempre ao pôr-do-sol, o machado de Pud parava de trabalhar, pois seu trabalhoestava feito. As empreitadas de Pudleré sempre duravam semanas, como quandofoi limpar o mato que ainda restava na sua roça. Pud resolveu começar a plantar,e foi seguido por Pudleré nesta idéia. Começaram a plantar juntos. Mas a enxadade Pud abria as covas sozinha e o arroz semeava-se a si mesmo, sem necessidadede esforço. O mesmo acontecia com a mandioca. Tanto o arroz quanto a mandiocabrotaram e cresceram em um só dia. Assim, Pud voltou para casa antes dePudleré. Quando se encontraram, Pud disse que havia plantado somente algumassementes e cortado algum mato, de maneira a não deixar Pudleré descobrir que asferramentas e as sementes se moviam sozinhas.

Resolveram sair para caçar, pois a plantação ainda não havia crescido, dizia Pud.Após a caçada, correram com toras. Fizeram moquém, comeram a carne e nooutro dia, logo cedo, foram cada um para sua roça. O arroz, já maduro, recebeuas ordens de Pud para que se colhesse a si mesmo. Quando Pud já colhia, Pudleré

73 A versão completa se encontra em Schultz (Idem: 65-70).

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começou a semear de fato. Mas seu arroz demorava mais para crescer eamadurecer. Quando estava no ponto de ser colhido, Pudleré iniciou o trabalho dacolheita manualmente, sozinho, e com muito esforço. Quando a mandioca de Pudjá estava com as raízes grossas, as de Pudleré ainda cresciam. "Oh! Cumpadre,parece que você plantou primeiro do que eu. Mandioca já tem muito raiz, e meuainda está crescendo"74, disse Pudleré, já desconfiado.

Ele decidiu, então, ir ver como o amigo fazia seu trabalho. No final do verãoseguinte, Pud anunciou o momento de reiniciar o trabalho de derrubada davegetação, a fim de fazerem suas roças. Saíram cedo para o mato, cada um paraum lado. Um pouco antes do meio dia, Pudleré foi espionar o trabalho de Pud, quehavia saído. Quando chegou, viu o facão e o machado trabalhando sozinhos; ficouespantado. Mas as ferramentas quedaram paralisadas. Pud voltou e as viu eminércia. Indo tirar satisfações com Pudleré, ouviu: "É, eu fui lá. (...) Agora eu vi ojeito do cumpadre. Por isso planta primeiro do que eu!" 75. Desde então, nuncamais as ferramentas trabalharam sozinhas76.

É por culpa de Lua que o trabalho manual existe, uma prática que se desenrola no

tempo da cotidianidade, dos movimentos diários do sol. Se não fosse por sua curiosidade,

não haveria necessidade do esforço humano, as ferramentas trabalhariam sozinhas, a

plantação se faria a si mesma - da semeadura à colheita - e tudo seria feito em poucos dias.

Agora, o trabalho de preparar a roça, da derrubada do mato até a colheita, dura semanas,

meses, e com muita labuta, com suor dos corpos dos homens. Por outro lado, Sol anuncia o

momento de começar a fazer a roça, no final da estação seca. O sol é cotidiano como a lua,

mas sazonal como as constelações (Lévi-Strauss, idem: 91). O eixo do seu percurso no céu,

de fato, sofre uma ligeira inclinação ao longo do ano: "eles [os Timbira] sabem

aproximadamente onde o sol nasce e onde se põe durante as estações seca e chuvosa."

(Nimuendajú, 1946: 232). Além disso, no episódio anterior da queda do enfeite

incandescente, o sol também é associado ao movimento sazonal do tempo: do fogo celeste,

que não poderia entrar em contato com a terra, resulta um grande incêndio, "de que a seca é

o pródomo modesto, mas empiricamente verificável" (Lévi-Strauss, 1991: 278).

Contudo, a ênfase, aqui, está na periodicidade curta do dia associada ao herói Sol.

Um só dia era suficiente para que todo seu trabalho de preparação da roça estivesse

concluído, um só dia era o necessário para sua plantação crescer e ser colhida. Além disso,

ele sempre volta antes para casa, ou seja, seus ciclos são mais curtos que os de Lua, que

retorna sempre depois de Sol. Lua é associada a um tempo mais longo, das semanas, dos

74 Schultz (Idem: 68)75 Idem, pg. 69.76 O mito de Sol e Lua apresentado por Nimuendajú (1946: 244) também faz referência a este episódio dasferramentas que trabalhavam sozinhas.

Page 44: Noção de tempo entre os índios Krahô

meses. Os movimentos de Sol e Lua são coordenados, apesar de ter cada um sua roça:

começam o preparo da roça e a semeadura juntos, mas o tempo de Sol é mais curto, mais

rápido e o de Lua, mais lento, mais demorado. A vontade de Lua, porém, faz vencer sua

temporalidade do trabalho sobre a do seu amigo celeste: o trabalho nas roças dura meses,

ao término do que muito suor terá sido derramado. A alternância cotidiana é marcada pelo

machado de Pud, que lhe dá o sinal para voltar para casa, ao pôr-do-sol: finda o dia,

principia a noite. O machado simboliza a transição de um período para outro, encarna a

própria alternância. Como veremos, no poente ocorrem os cantos e danças no pátio da

aldeia. O trabalho deve cede lugar às corridas de toras, pois elas o antecedem.

Sol e Lua voltam para o céu, deixando com seus filhos a tarefa de obter a

tecnologia do fogo 77

Sol e Lua voltaram para o céu sem ensinar a tecnologia do fogo aos seus filhos, osKrahô, que comiam carne assada pelo sol, um "fogo natural". Num certo dia, ummenino saiu para o mato com seu cunhado para pegarem um ninho de arara. Omenino subiu num pau. Chegando lá em cima, seu cunhado derrubou o pau e omenino ficou preso no ninho. Com o tempo, ficou com fome e fedido, pois as ararasdefecavam sobre sua cabeça. Uma onça macho que estava passando por ali salvouo menino, dizendo que era seu tio (Keti), e o levou para casa, onde o garoto viu ofogo da onça.

A esposa da onça macho por várias vezes ralhou com o menino. Ao descobrir, aonça macho disse a ela que iria fazer um arco para o menino flechar sua mão,caso continuasse a assustá-lo. A onça fêmea não ouviu o marido, e mais uma vezabriu os dentes e as unhas para o garoto, que a flechou nas mãos e correu, correuaté que alcançou sua aldeia. Lá chegando, ele contou aos mais velhos sobre o fogoda onça. Foi organizada uma expedição para apanhá-lo, mas aquele que fossepegar o fogo teria de ser bom corredor. Os índios aproveitaram-se da saída daonça macho para entrar na casa (a onça fêmea, "grávida", estava deitada, sentidoas dores da flechada do garoto).

O índio corredor entrou na casa, pegou o fogo e saiu correndo com ele nosombros. Quando se cansou, passou para outro, que passou para outro, que passoupara outro, como na corrida de toras. Na aldeia, cada família ficou com umpedaço de brasa, com o que fizeram fogo. Nunca mais os seres humanos comeramcarne crua. Já a onça, desde então só come carne assim78.

O fogo, elemento de uso cotidiano, aparece associado à relação keti-ipantu (tio-

sobrinho), uma relação dotada de um significado todo especial no sistema social Krahô,

77 Para a versão completa, cf. Schultz (Idem: 72-4).78 O mito da obtenção do fogo que encontramos em Nimuendajú (Idem: 243) apresenta os mesmoselementos estruturais.

Page 45: Noção de tempo entre os índios Krahô

como veremos abaixo. É com um animal protetor, que se diz seu tio, que o menino aprende

a fazer fogo. O fato de a onça macho não ter ligação consangüínea com ele destaca o

caráter mais social e ritual da relação keti-ipantu, que é estabelecida através dos nomes

pessoais. Tal como o fogo, a relação keti-ipantu deve se manter viva cotidianamente. A

corrida de toras, se precede o trabalho da roça, também antecede "historicamente" o próprio

cozimento dos alimentos: é a técnica corporal da corrida de toras que é utilizada para a

obtenção fogo. Sol e Lua, assim, aparecem novamente relacionados à cotidianidade diurna

e noturna: o fogo, desde sua captura junto à natureza, é utilizado dia após dia no preparo do

alimento que mantém vivos os seres humanos, dando força aos seus corpos; sem ele não

haveriam as fogueiras que iluminam e aquecem aqueles que participam das reuniões

matutinas e noturnas do pátio. Sem o sol e sem o fogo, não haveria vida. De acordo com

Lévi-Strauss (1991: 163; 184), mitos de origem do fogo são também mitos de origem da

culinária: como fogo de cozinha, o fogo terrestre é criador.

Katxerê, a Mulher-Estrela, ensina aos Krahô a agricultura e a culinária 79

Foi no tempo em que os índios já comiam carne cozida, mas não conheciamalimentos como a mandioca, o inhame, o milho, a batata-doce. Um rapaz estavadormindo sozinho no pátio 80. Uma estrela o viu, ficou com pena e resolveu descerdo céu para se casar com ele.

Transformou-se em sapo e pulou três vezes sobre seu peito, mas o rapaz a jogavapara longe. Até que ela se transfigurou em uma linda mulher. Ele a aceita, mas elapede para ficar escondida dentro de uma cabaça, de maneira que ninguém a veja.Então, ele a levou para casa, atendendo a seu pedido. Mas a irmã do rapaz,curiosa, destampou a cumbuca. Katxerê ficou brava com o marido por ter deixadoa irmã descobri-la. À noite, ficaram no terreiro da casa a irmã, a mãe e a própriaMulher-Estela, ainda dentro da cabaça. O marido chegou, abriu a cumbuca e viusua mulher, já calma, sorrindo. Ela pediu a ele que a libertasse. Ela saiu dacabaça e nos dias seguintes ensinou aos Krahô o plantio e o preparo do milho, queabundava nas proximidades da aldeia mas que ninguém nunca havia tentadocultivar, por medo de ser uma planta venenosa. Ensinou-os também a colher abacaba, fruto que já conheciam mas não consumiam, também por medo de serveneno. A própria Katxerê subiu no pé de bacaba, cortou um cacho e desceu comele. Ela lhes ensinou o preparo da bacaba. Também os introduziu no cultivo e nopreparo da mandioca. Seus ensinamentos eram dirigidos primeiramente às suasparentes afins e só depois disseminado na sua e em outras aldeias.

Num certo dia, ela, que ainda não tinha tido relações sexuais com seu marido, foiviolada por um outro rapaz. Para vingar-se de toda aldeia, preparou uma bebida

Page 46: Noção de tempo entre os índios Krahô

venenosa com a qual matou quase todos. Voltou para o céu, mas, com pena dosque ficaram, desceu novamente trazendo a batata-doce e o inhame81.

A Mulher-Estrela estabelece a ligação do tempo como alternância sazonal com o

tempo cotidiano82. A heroína desce à terra trazendo a prática cultural da agricultura e, logo,

os alimentos que são consumidos no dia-a-dia. Mas é uma prática que acompanha os

ritmos de alternância do "tempo ecológico", ou seja, deve-se observar o momento certo do

ano para lançar as sementes e para colher os frutos. Além disso, traz não somente a

agricultura, como também a culinária: o plantio e a colheita obedecem aos ritmos de um

tempo mais longo, do tempo sazonal; o preparo dos alimentos é uma prática cotidiana, que

se dá no fluir das horas83. Assim como "a mulher está na posição céu e o homem na posição

terra" (Lévi-Strauss, idem: 313), é uma festa associada ao ciclo vital do milho, alimento

oriundo da terra, que marca o final do ciclo da estação seca, enquanto que a festa que

marca o fim do ciclo da batata-doce, espécime vindo do céu, é o ritual que assinala o

término da estação chuvosa84.

O fato de Katxerê ter pedido para ficar escondida na casa de seu marido vai contra a

regra de residência matrilocal dos Krahô. Ela deixa sua casa, no céu, para ir para a casa

das parentes de seu marido, e envergonha-se por ter contrariado uma regra social. Aqui,

como nos outros mitos, o código astronômico fornece um modelo no qual o pensamento

indígena projeta o código moral da sociedade. Katxerê indo coabitar com as parentes do

marido é um exemplo de uma regra que apresenta fluidez no curso do tempo. Katxerê, a

Mulher-Estrela, estabelece a conexão da terra com o céu, do tempo cotidiano com o tempo

sazonal. Outras estrelas surgem no cenário mitológico para sancionar de vez a

temporalidade como alternância anual.

81 No mito da Mulher-Estrela apresentado por Nimundajú (Idem: 245) o rapaz com o qual Katxerê se casatem a pele escura e é, por isso, considerado feio. Seu nome é Tukti. Já Katxerê tem sua beleza associada à corclara da sua pele e seus longos cabelos. Nesta versão, muito provavelmente de origem Ramcocamecrá,Katxeré decide voltar para o céu porque Tukti insistia em coabitar com ela. Ele diz a ela que não conseguiráoutra esposa, e lhe pede que o leve com ela. À noite, ela volta ao pátio da aldeia, onde canta até o dia raiar.De manhã, ela e Tukti tinha desaparecido da terra. Vale acrescentar que entre os Kayapó, sociedade Jê doNorte que partilha alguns traços culturais com os Timbira, também se nota a presença desta mesmapersonagem mitológica (Kanye-kwéi, na sua língua), que teria ajudado a salvar plantas e seres humanos deuma terrível seca que os castigara nos tempos primevos, trazendo as chuvas (Nimuendajú, 1986: 79; 81). Cf.Lévi-Strauss (1991: 164-167) para outras versões Jê do mito de origem da agricultura.82 Segundo Chiara (1979: 32), Katxerê é Vênus, o astro mais brilhante depois do sol e da lua. Sua órbita emtorno do sol leva 225 dias e comporta 5 fases (Boschetti et. al., 1980: 166-7).83 Cf. Lévi-Strauss (Idem: 164), para quem o tema da origem da agricultura está relacionado ao da culinária.84 Trata-se do rito Põhïyõkróu, no primeiro caso, e Yótyõpin, no segundo (Melatti, 1978: 169-74; 185-96).

Page 47: Noção de tempo entre os índios Krahô

Das Plêiades surge a estação chuvosa 85

O pai de sete filhos saiu para caçar, enquanto a mãe preparava comida em casa. Ofilho mais velho sugeriu aos irmãos mais novos que fizessem sexo com a mãe. Osoutros acataram a idéia e ele, o mais velho, foi falar com a mãe. Ela aceitou.Todos fizeram sexo com a mãe, mas o caçula ficou com vergonha e fugiu para omato. O pai, voltando da caçada, encontrou-o no caminho. O garoto narrou-lhe oocorrido. O pai voltou para casa e no dia seguinte surrou os meninos. Ainda irado,fechou-se em casa e a incendiou. Transformou-se num gavião e fugiu. A mulhertambém virou um gavião e acompanhou o marido.

Os filhos então saíram pelo mundo. A uma certa altura da caminhada, o caçulateve sede. Cavaram num brejo seco, até que saiu tanta água que o rio encheu osuficiente para deixar o irmão mais novo na outra margem, separado dos demais.Um jacaré, ouvindo as lamentações do rapazinho, colocou-se à disposição paraajudá-lo a atravessar o rio. Mas, traiçoeiro, pegou o menino e o arrastou para ofundo do rio. Com a desculpa de apanhar sol, o menino pediu ao jacaré que olevasse para cima, para o barranco. E assim conseguiu escapar do jacaré. Estenão desistiu e saiu correndo atrás dele. O garoto se escondeu na casa de váriosanimais - nhambu, ema e macaco -, mas, ao menor sinal de desistência do jacaré, omenino o provocava com xingamentos e a perseguição se reiniciava. Até que seescondeu na casa do gambá, que matou o jacaré com sua secreção mal cheirosa.

O menino e seus irmãos, que estavam hospedados na casa do gambá, resolverammorar nas margem do grande rio. A disposição das suas casas é aquela que desdeentão vemos no céu, quando olhamos para as Plêiades (Krod'ré). Quando osirmãos mergulham no grande rio, por volta dos meses de junho-julho, ouvem-se ossons dos trovões. Desaparecem então, reaparecendo do outro lado.

Com a gramática dos sexos ordenando a divisão das tarefas cotidianas estabelecida

(o pai sai para caçar, a mãe fica em casa cozinhando), é sancionado o tempo da alternância

anual. Os meninos-estrela, após peregrinação, mergulham no grande rio, ouvem-se os

trovões: é o sinal de que as chuvas vão começar. O pai e a mãe que estavam nas suas

ocupações cotidianas deixam o mundo, transformados pela ação do fogo; a cotidianidade

masculina e feminina sai voando sob a forma de dois gaviões, pássaro classificado como

Katamye, metade das chuvas. Entra em cena o tempo da dinâmica extra-cotidiana, sazonal.

Assim, as Plêiades são associadas à enchente, à estação chuvosa. Sendo uma das poucas

constelações que os Timbira reconhecem, elas ocupam um lugar de fundamental

importância no seu sistema de conhecimento. Nimuendajú observa que sua visibilidade no

horizonte ocidental, depois do pôr-do-sol, é o sinal de que a estação chuvosa está se

aproximando e que, por isso, é tempo de começar as clareiras no mato para que o início da

semeadura se dê logo nas primeiras chuvas86 (1946: 62; 233).

85 A versão completa está em Chiara (1961-62: 333-339).86 Julio Cezar Melatti (comunicação pessoal: jan./2004), lembrou-me que as Plêiades são da constelação de

Page 48: Noção de tempo entre os índios Krahô

As Plêiades nascem da relação incestuosa dos sete filhos com sua mãe. A conexão

entre a periodicidade "lenta" e relação incestuosa que lhe dá origem talvez se encontre na

quebra de uma regra que, como regra de exogamia, deve ser respeitada, obedecida no

tempo "longo". A observância da regra deve suplantar as vicissitudes do cotidiano, deve se

elevar por sobre o tempo que foge a cada hora, a cada dia, a cada noite - a regra deve

perdurar na sucessão das estações. A conseqüência da falta é a enchente, o retorno

periódico da estação chuvosa e a própria a alternância das estações87. "O retorno de tal ou

qual corpo celeste que se produz a cada ano, a cada mês ou a cada dia permite representar

os valores flutuantes da endogamia e da exogamia por um modelo apropriado"88 (Lévi-

Strauss, idem: 87).

Túlkrén sobe ao céu e de lá retorna trazendo o poder da cura e o rito de

Pempkahók 89

Túlkrén ficou doente. A aldeia mudou-se para o outro lado do ribeirão e a mulherdele o abandonou pelo irmão. Doente e sozinho, Túlkrén foi visitado por diversasaves que lhe tiraram do ouvido uma formiga, causadora do seu mal-estar. Depoisda cura, transportaram-no para o céu.

De lá, ele viu que sua mulher o enganava com o irmão. Os urubus lhe levaramexcrementos humanos para comer, mas ele não aceitou. O gavião, grande xamã,trouxe um papagaio, depenou, mastigou a carne e espalhou-a com o sangue pelocorpo de Túlkrén, para que ele pudesse comer carne crua também, sem ter dor debarriga. Fez "feitiço" para que ele enxergasse tão bem quanto o Gavião. Derammuita caça para ele comer, e fizeram a festa do Pempkahók, "festa do gavião".Depois da festa, Túlkrén cantou como uma lontra, transformando-se nesse animal

Touro, que fica por trás do Sol no mês de maio. Portanto, navegando pelo céu durante dia, elas ficam visíveisquando o sol se põe. A utilização das Plêiades como indicadoras da mudança das estações, na América doSul, é bastante difundida, como demonstra Lévi-Strauss (1991: 211). Mas esse autor lembra também que ostestemunhos etnográficos são assaz divergentes. Assim, em algumas sociedades, seu aparecimento éassociado à estação seca, enquanto que em outra sociedade localizada na mesma latitude, ele é o presságio docomeço da estação chuvosa. Assim o é num mesmo complexo sociocultural: os Xerente e os Bororo associamas Plêiades à estação seca, ao passo que para os Timbira Orientais elas são o sinal do começo da estaçãochuvosa (cf. Lévi-Strauss, idem: 236, e Nimuendajú, idem). De qualquer modo, cada sociedade escolhe seusreferentes temporais segundo seus critérios próprios, e um mesmo significante pode ter significados diversos.87 Lévi-Strauss (1968: 87) assinala que as constelações aparecem, nos mitos sul-americanos, como sendonascidas de uma falta, da quebra de uma regra, da subversão de uma aliança por um ato de traição. Distoresulta que elas são mensageiras do retorno periódico, por exemplo, das enchentes, a conseqüência da falta.88 "(...) Le retour périodique de tel ou tel corps céleste se produit chaque anée, chaque mois ou chaque jour,il permet de represénter les valeurs fluctuantes de l'endogamie e de l'exogamie par um modèle approprié".89 Cf. Chiara (Idem: 349-50), para a versão completa.

Page 49: Noção de tempo entre os índios Krahô

para descobrir e comer peixes que os pássaros haviam escondido para ver se eletinha capacidades de curador. Depois dessa demonstração, Túlkrén resolveu irembora. Virou folha seca e caiu do céu.

Chegando na terra foi muito bem recebido por todos, inclusive pela esposa que jáestava grávida. Depois de muita insistência de todos, concordou em receber devolta a esposa, mas não quis com ela ter relações sexuais, pois estava grávida deoutro. Como ela negasse a gravidez, Túlkrén com auxílio de fumaça e soprandouma flechinha pequena, fez cair o filho da mulher. A mulher continuou enganando-o com seu irmão, mas Túlkrén tudo via, transformado em mosca, até que mandouque o formigão picasse o pênis do irmão. Depois dessa experiência, ele não maisse animou a ceder aos convites da cunhada. Kwük, índio de outra aldeia, fez umdesafio a Túlkrén. Este venceu a competição, fazendo crescer penas mais bonitasque a do rival e voando mais, até outra aldeia de onde trouxe um enfeite deextraordinária beleza. Kwük retirou-se envergonhado.

Há uma inversão face à situação apresenta no mito da Mulher-Estrela. A heroína,

vigorosa e bela, desce do céu e ensina. Aqui, o herói moribundo sobe ao céu para aprender.

Volta de lá, curado e sabendo curar, trazendo o rito de iniciação do Pempkahók e cantos

ligados à caça. Mas só pôde fazê-lo porque antes se despojou da "forma Timbira", ou seja,

deixou de viver segundo os modelos de relações sociais da aldeia (Azanha, 1984: 34). Vai

ao céu e retorna com o poder mágico da cura, do restabelecimento da vida. Numa versão

apresentada por Melatti (1970: 69-70), o herói é conduzido, no céu, à presença de Akrãti, o

Trovão, que lhe demonstra seus poderes fazendo ressoar sua trovoada: sinal das chuvas. O

mito de Túlkrén, assim, corrobora a ligação da terra com o céu, ajuda a estabelecer o tempo

"longo", até mesmo porque o Pempkahók ocorre segundo uma periodicidade lenta, de

ciclos longos. Tulkrén retorna do céu trazendo também a prática do xamanismo - a cura, a

faculdade de ver além e a de entrar em contato com os mekarõ -, uma prática que exige

poderes extra-cotidianos e a capacidade de trânsito entre o mundo dos vivos e o mundo dos

espíritos90. A alternância entre estados parece fornecer, assim, o modelo para a alternância

das estações. Além disso, o xamã tem o poder de "fazer cessar uma chuva para permitir a

realização de alguma tarefa" (Melatti, idem: 66). Some-se a isso que Tulkrén teria

aprendido o rito de Katamti, que marca a duração da estação chuvosa, conforme indica

Melatti (1978: 241). Mas falta, para completar, um mito que trata justamente do ponto de

conexão entre o céu e o terra, o Khoikwakhrat, o "pé-do-céu", donde partem o dia e a noite,

onde a estação seca e a estação chuvosa se encontram.

90 Segundo Melatti (1970: 73), o aprendizado formal e informal para se tornar xamã, entre os Krahô, estáestreitamente relacionado com o reviver este mito por parte do aprendiz.

Page 50: Noção de tempo entre os índios Krahô

Khoiré estabelece as alternâncias do tempo 91

A casa do Khoiré é no Khoikwakhrat, o pé-do-céu, isto é, nas alturas do oriente.De lá ele lança em direção ao mundo, abaixo, milhares de noites tímidas queforam escutá-lo. Os Krahó chegam ao pé da montanha conduzidos pelo heróiHartant e, seduzidos pelo canto que ouvem, pedem a Khoiré um de seus filhos; elelhes dá seu filho homem, um machado em forma de meia-lua, e fica com a mulher.O machado ensinará seus cantos aos índios, mas aquele que o possuir deverá ser omodelo das virtudes Krahó: não deve fazer barulho, deve escutar mais do quefalar, não deve brigar, nem se divorciar, dever dormir pouco, não maldizer eesperar que todos tenham sido servidos para comer92.

Segundo Leach (1974: 201), mitos que falam da criação de elementos contrários

são, no fundo, mitos de criação do tempo. O mito do Khoiré sanciona, então, o tempo

como alternância, uma alternância que é vivenciada não somente no tempo "lento", anual,

mas também no fluxo cotidiano: dia e noite, estação seca e estação chuvosa. Por outro lado,

o machado khoiré ensina os cantos aos Krahô, mas aquele que os possuir deverá ter as

verdadeiras virtudes humanas93. Assim fica estabelecido que o modelo de humanidade está

associado aos cantos, como fica instituído que o cantor, com sua voz e o Khoiré em mãos,

é o fazedor do tempo. Como bem salienta Seeger (1980: 84), de fato a música é um veículo

privilegiado para a transmissão de valores e de ethos.

O canto do Khoiré, que goza de um prestígio todo especial, era, antigamente,

adquirido após o ritual de iniciação do ikrére, nome dado a qualquer cantor do sexo

masculino (Melatti, 1982: 35). Sua importância cerimonial pode ser deduzida, outrossim,

do fato de que o "dono do Khoiré" recebe seu nome no pátio, enquanto os outros nomes

91 Chiara apud. Carneiro da Cunha (1986: 38).92 Na versão de Schultz (Idem: 114-8) deste mito, o khoiré é utilizado como uma terrível arma de guerra, naslutas entre os Krahô e os Krolkamekrá, grupo vizinho já extinto. O machado, sob domínio dos Krahô, étomado durante uma disputa na qual seu dono é morto a flechadas. Aquele que o mata, da tribo estrangeira,leva o khoiré consigo, mas é indigno de possuí-lo, porque adúltero. Além disso, sem compreender bem ospoderes do khoiré, é displicente com o instrumento, deixando-o dependurado na parede de palha da casa, emcima do jirau da sua nova esposa. É a esta que o machado vai ensinar suas canções, durante à noite, no pátioda aldeia. O irmão do seu antigo dono, resolvendo obtê-lo de volta, manda um mensageiro aos Krolkamekrá.Ele sai ao nascer do sol, passa o dia entre os inimigos e ouve daquele que se apossou do khoiré que somenteo devolverá se for vencido numa corrida. No dia seguinte, o mensageiro retorna, também no nascente,levando a notícia. Os Krahô decidem então que vão retomar o machado lutando. No dia seguinte, sai umgrupo de índios guerreiros logo ao nascer do sol. Invadem a aldeia inimiga. O usurpador do machado correcom ele em disparada rumo ao cerrado, seguido de perto por um corredor ligado ao dono legítimo. Aqueletropeça, cai e é alcançado por este e pelos outros guerreiros Krahô, que readquirem o Khoiré, ainda duranteo dia. Melatti (1974) também apresenta duas versões nas quais o khoiré também é utilizado como arma deguerra nas disputas entre duas tribos. 93 Lembremos que na versão de Schultz (vide acima) é a mulher que aprende os cantos do Khoiré, porqueseu marido, adúltero e displicente, não se fez digno. Além disso, a mulher é associada à Lua, à noite e aprópria periodicidade está inscrita em seu corpo.

Page 51: Noção de tempo entre os índios Krahô

pessoais são dados nas casas, na periferia94 (Melatti, 1978: 105). Somente os melhores

ousavam declarar-se seus possuidores e manuseavam o khoiré como sua insígnia, observa

Carneiro da Cunha (1986: 38). É um canto que, devendo durar a noite toda, contém a

epopéia do herói Hartãt, o relato das aventuras de Sol e Lua e a descrição da primeira

incursão das noites pelo mundo95 (Idem: 38-9). O ponto de partida da epopéia de Hartãt

muda em conformidade com a metade a que pertence o cantor, Wakmeye ou Katmaye. Os

cantores pertencentes à estação seca começam pelo momento em que deixam a aldeia, já os

da estação chuvosa iniciam o relato a partir da chegada ao khoikwakhrat, o "pé-do-céu".

Este, vale dizer, é o ponto de contato entre os três níveis do universo segundo a

visão Krahô. Sua localização é o leste, "nas alturas do oriente", onde o nível celeste toca a

terra e a terra toca o mundo subterrâneo96. Há um outro mito que se refere ao Khoikwakhrat

como uma região de muita luz, para a qual se dirigiram os índios que fugiram de uma

grande escuridão provocada por um eclipse solar97 (Schultz, 1950: 159). Há uma crença

relacionada ao Khoikwakhrat que corrobora sua associação com a alternância dia - noite:

nele mora um pica-pau que fica a perfurá-lo. O pica-pau então tem sede e voa para a água;

quando volta, o "pé-do-céu" já está reconstituído inteiramente, então volta a picá-lo até o

meio (dia), quando novamente tem sede e todo o processo se repete, indefinidamente

(Melatti, 1978: 96).

O "pé-do-céu", portanto, é o ponto para o qual convergem duas dimensões básicas

do universo, o espaço e o tempo: lá se encontram os três níveis do cosmos, para lá se

dirigem o dia e a noite, a estação seca e a estação chuvosa. Sobre a relação do

Khoikwakhrat com o tempo como alternância sazonal, Carneiro da Cunha (Ib. idem: 39)

evoca uma versão do mito do Khoiré segundo a qual Hartãt, saindo de sua aldeia e

conduzindo seu povo até o "pé-do-céu", encontra no caminho de ida mel e caça em

94 A posse de certos nomes pessoais dá o direito de desempenhar certos papéis rituais. Assim, o cantor daaldeia Manoel Alves chama-se Domingos Khoiré.95 Nesse sentido, Nimuendajú observa que, além de boa voz e um corpo resistente, o cantor deve ter uma boamemória (1946: 114).96 O universo, segundo os Krahô, é composto por três níveis. O nível celeste, habitado por gaviões e urubus,é de onde a Mulher-Estrela desceu e de onde o herói Túlkrén retirou seus poderes mágicos; é onde as estrelas(índios que fugiram do grande gavião e da grande coruja) habitam. Este nível celeste é como uma cúpula quelimita o mundo intermediário, uma região de terras e águas, onde habitam atualmente os índios e ondehabitaram outrora, junto ao "pé-do-céu". No nível subterrâneo, conta o mito (Schultz, 1950: 160-1; Chiara,1961-2: 350-1), habitavam porcos-queixada. Para maiores detalhes sobre a representação Krahô do universo,cf. Melatti (1978: 94-99). 97 Outros mitos fazem referência ao "pé-do-céu", como aquele que o descreve como sendo a morada dogavião Hëkti e da coruja Kukëi que perseguiam e matavam os índios nos tempos primordiais e que foramsalvos graças aos heróis Akrei e Kenkunã. Por uma abertura, os heróis conduziram os sobreviventes da terrapara o céu, onde vivem como estrelas (Schultz, idem: 93-114). No mito de Sol e Lua que vimos acima, o "pé-do-céu" é o lugar onde Sol foi duas vezes: na primeira ganhou um enfeite vermelho de um pica-pau; nasegunda, foi porque Lua, desejoso de ter um igual, pediu a Sol para pegar um para ele também, dondedecorreu um grande incêndio.

Page 52: Noção de tempo entre os índios Krahô

abundância mas que sua volta, após ter se apossado do khoiré, se dá pelo caminho da

penúria e da fome. Seu percurso se assemelharia, portanto, ao ciclo das estações: fartura de

alimentos na estação seca e escassez na estação chuvosa98.

Daí, em suma, ser o mito do Khoiré um mito que sanciona a natureza do tempo

como alternância tanto no nível cotidiano - dia e noite - quanto no nível sazonal - estação

seca e estação chuvosa. O uso do khoiré pelo cantor, em determinadas situações rituais,

ilustra bem a observação de Marcel Mauss (1974: 132) de que objetos de importância

cerimonial destacada têm suas propriedades especiais atribuídas pelas convenções dos

mitos. Pondo essas propriedades em movimento num contexto ritual, esses objetos seriam,

eles mesmos, uma forma de rito porque têm força simbólica suficiente para provocar

determinados efeitos sobre o mundo.

Os mitos são, pois, os pilares sobre os quais está edificada a cosmologia de uma

sociedade indígena. Sendo o fundamento da ordenação dos tempos sociais de um grupo,

eles fornecem os referenciais simbólicos em torno dos quais as práticas cotidianas são

organizadas. Como sublinha Lévi-Strauss, associada às mais abstratas especulações do

pensamento mítico está todo um conjunto de condutas bem concretas (1968: 13). Os mitos

se fazem presentes no cotidiano das pessoas, orientando-as em suas práticas sociais. Além

disso, como bem demonstrou Carneiro da Cunha (1986), os mitos não só iluminam as

interpretações que fazem os atores do seu mundo vivido, como também guiam-nos em suas

ações.

Há, evidentemente, muitos outros mitos Krahô além destes que apresentei aqui,

cuja seleção serviu ao propósito de nos ajudar a ver como essa sociedade concebe o tempo.

Agora, cumpre vermos esta noção de tempo em sua realização prática. Já que o tempo ecoa

da voz do cantor, comecemos pelos cantos, primeiramente por aqueles que ocorrem em

momentos específicos do cotidiano, nascente e poente, tendo em mente a advertência de

Seeger (Op. cit.: 103) de que devemos ver a música de uma sociedade inserida no contexto

social e cosmológico mais amplo.

Page 53: Noção de tempo entre os índios Krahô

Palavras, gestos humanos e o tempo

O cantor, cuja voz tem a propriedade de anunciar o tempo, goza de prestígio social

entre os Krahô. Cada aldeia tem vários ikrére, mas somente alguns dominam todos os tipos

de cânticos, observa Melatti (1982: 35). Dentre estes poucos, existe um ikrére que se

destaca como diretor dos ritos e recebe o nome de padré99. As cantoras de destaque são

chamadas de hõkrepoi e usam como insígnia o hahĩ, uma faixa confeccionada com algodão

que atravessa seu peito, passando por sobre o ombro direito e sob o braço esquerdo100. Que

o canto é muito apreciado pelos Krahô depreende-se ainda do fato de que quando um

cantor de fora visita uma aldeia, ele é chamado a cantar praticamente todas as noites, pelo

que costuma receber alguns presentes (Melatti, idem). O cantor é envolto numa aura tal que

à integridade e à ordem do seu corpo ou dos objetos que o tocam estão associadas a

integridade e a ordem do mundo. Assim, o quebrar de uma flecha cerimonial ao tocar o

corpo de um cantor, no rito de Põhïprï, foi interpretado como mau presságio e o restante do

rito foi cancelado (Melatti, 1978: 180).

Mas a voz é, de fato, o elemento central da música Krahô, tanto que o uso de

instrumentos limita-se ao acompanhamento do canto, observa Melatti (1982: 30) 101. Esse

autor observou a existência de dois conjuntos de cantos: cantos presentes em rituais e

cantos entoados em situações cotidianas. O primeiro conjunto apresenta diferenças quanto

ao ator que canta - homem, mulher, um indivíduo, um grupo -, quanto ao local onde se

canta - se no pátio da aldeia ou se nos seus caminhos - e quanto às posições do cantor -

que pode se movimentar ou ficar parado. No segundo conjunto pode-se distinguir entre os

que são cantados no pátio e aqueles que o são nos caminhos ou nas casas (Idem: 33).

Além do mito do Khoiré, existem outros mitos que relatam como os cantos foram

apreendidos pelos índios. Nesse sentido, Melatti (Idem: 37-8) observa que os cânticos da

praça teriam tido origem numa festa na qual se fizeram presentes vários bichos102, já

99 Este termo, adaptado do português, deriva da palavra "padre". Antigamente, aquele que tinha oconhecimento das canções e da forma dos rituais era conhecido pelo termo mekhrãkaireretxó, ou entãoikrerekati (Melatti, idem). O padré é o grande guardião das tradições Krahô, pois conhece as canções e osritos, donde deriva alguma influência política (Melatti, 1978: 80). Vale destacar que o maracá é o instrumentoque mais freqüentemente acompanha o cantor. Mas ele não tem menos eficácia simbólica que o Khoiré, poisseu chocalhar pode tanto manter afastados os mekarõ (alma dos mortos) quanto trazer de volta o sol dasgarras da escuridão (cf. Schultz, 1950: 159). 100 Cf. Melatti (1982), pgs. 35-6, sobre os cuidados especiais com a voz e com os ouvidos que os/aspretendentes a cantores/as têm de ter.101 Cf. Melatti (Idem) sobre os instrumentos musicais krahô.102 Cf. Schultz (Op. cit.: 138-143), para uma versão completa deste mito. De fato, os textos das canções depátio que Nimuendajú observou entre os Canela fazem referência a animais e seus modos de vida, tal comoaparece no referido mito (1946: 115, §2). Os cantos de pátio são realizados pelo cantor com seu maracá e porum grupo de mulheres que, dispostas em fila, executam leves movimentos com os joelhos e os antebraços(Melatti, idem: 34).

Page 54: Noção de tempo entre os índios Krahô

aqueles entoados nos caminhos radiais da aldeia seriam de Kupẽti, dos quais um índio

ouviu as cantigas e as ensinou à aldeia, Kupẽkrãya'krore, cantigas do tatu rabo-de-couro e

que são entoadas no pátio, com maracá, ou nos caminhos da aldeia, e Ĩkrérparho'nõre. Há

ainda os cantos Kukôiyarkwa entoados no caminho circular da aldeia, durante o dia, que

foram aprendidos do macaco (Kukôi). É às duas metades cerimoniais que esses cantos

realizados nos caminhos da aldeia, em qualquer ocasião, pertencem. Assim, quando o

cantor é da metade Katamye, ele deve andar devagar; já o cantor da metade Wakmeye deve

dançar de maneira ligeira103 (Melatti, idem: 38; 1978: 84).

É nos caminhos circular e radial da aldeia que o khoiré é utilizado nos cantos,

observa Melatti (Ib. idem: 39). Se nesses espaços da aldeia é que os cantores Katamye e

Wakmeye executam seus cantos, é porque esses são caminhos simbólicos que devem ser

atravessados pela machadinha que é, a um só tempo, a insígnia do cantor e o símbolo maior

da periodicidade. O fato de ocorrerem, aí, os cantos do Khoiré nos diz muito, pois, como

sublinha Seeger , "o local em que um evento musical ocorre revela muito a respeito de seu

significado" (Op. cit.: 84; grifo do autor). Assim, os caminhos estabelecem, no espaço, a

intermediação que os cantos do Khoiré ajudam a sancionar, no tempo, entre domínios

opostos do universo dual dos Timbira, no qual a periferia, a esfera doméstica da aldeia, é

associada ao oeste, ao poente, à noite e o pátio, palco máximo da vida cerimonial, ao leste,

ao nascente, ao dia 104.

Nesse sentido, entre os Krahô, "um período é atribuído aos cantores", sublinha

Carneiro da Cunha (1986: 40). Assim, pelo menos teoricamente, um cantor da metade

Wakmeye deveria cantar de dia, pois sua metade é associada ao sol, ao leste, ao dia; um

cantor da metade Katamye deveria cantar de noite: ele é da metade ligada à lua, ao oeste, à

noite. Essa autora evoca mitos Krahô que relatam que "alguns cantos foram aprendidos

com um homem em cuja cabeça brotava uma flor, e que cantava da aurora até o pôr-do-

sol. Outros provêm de um casal que morava no "pé-do-céu" (khoikwakhrat), e que

cantavam do pôr-do-sol até a meia-noite" (Idem: 40; grifos da autora). Os intervalos entre

o dia e noite são, assim, marcados pelos canto, pois a voz do "pai do khoiré" deve ser a

primeira ao amanhecer e a última ao anoitecer. Ocorrendo nos momentos de transição do

cotidiano, nascente e poente, eles possuem a qualidade de marcadores de tempo (Carneiro

103 Lembremos que a metade Wakmeye é associada à estação seca e ao sol, a metade Katamye, à estaçãochuvosa e à lua. Ora, vimos que, em diversos mitos, do Sol deriva uma periodicidade mais rápida e que à Luaestá associado um tempo que passa mais lentamente. Some-se que os Krahô distinguem os cantos de ritmolento, designados kapran, dos cantos de ritmo rápido, chamados huphê (Melatti, idem: 34).104 Esquematicamente, temos: Pátio = homens, sol, dia Û Caminhos radiais = transição, khoiré ÛPeriferia = mulheres, lua, noite.

Page 55: Noção de tempo entre os índios Krahô

da Cunha, 1986: 37; 41). O nascer e o pôr-do-sol são momentos do dia significativos para a

realização de ritos porque "os dois crepúsculos são especialmente mágicos" (Mauss, 1974:

76).

Assim, entre os Timbira Orientais, o tempo cotidiano é configurado pelos ritos.

Nimuendajú (1946: 114-7) percebeu, junto aos Canela-Ramkokamekrá, a ocorrência de

cantos e danças no nascente e no poente105, que antecedem as reuniões do "conselho

masculino", formado pelos homens considerados maduros, observações estas corroboradas

pelas de Ladeira (1982: 14). Nimuendajú notou que a primeira voz que se ouve na aldeia é

a do cantor: ele é que convoca a todos, por volta das 4 horas da madrugada, para se

levantarem e se reunirem no palco máximo da vida social: o pátio106 (Idem: 115). Assim, é

a voz do cantor que abre o dia, ela é que faz o tempo começar. Mas dela também provém o

sinal de que a noite cai pesada sobre os vivos e de que, por isso, o dia está a findar-se, pois

observa Melatti que, entre os Krahô, "quase todos os dias ao anoitecer, os rapazes saem

cantando pelo caminho circular da aldeia, para convidarem o cantor e as mulheres a irem

ao pátio"107 (1982: 35).

Disto depreende-se que a ida do cantor ao pátio, no nascente e no poente, não tem

outra função senão a de fazer o tempo, como bem salientou Carneiro da Cunha (1986: 37).

Por isso, os cantos Krahô, usando ritualmente certas palavras, produzindo determinados

sons, funcionam como uma "sugestão imperativa" (Mauss, 1968b: 474). Ou seja, têm uma

eficácia que os dota da capacidade de agir sobre a ordem constitutiva do universo, fazendo

com que a ordem natural seja dependente da voz humana, pois ela é que garante a

manutenção dos ritmos temporais: dia e noite, estação seca e estação chuvosa108. Os cantos

diários e sazonais Krahô são como que os pilares da regularidade da natureza. Sem eles,

105 Os cantos e danças que ocorrem no poente recebem o nome de putkammekre (Nimuendajú, idem: 116).106 Eu mesmo, nos dias em que estive na aldeia Manoel Alves, em setembro de 2003, acordei todos os diascom os cantos de Secundo Tôh Tôt, bastante respeitado por todos como ótimo cantor apesar de não ser mais ooficial. Impreterivelmente, Tôh Tôt ia para o pátio por volta das 4 horas, quando dirigia seu canto para ascasas, caminhando em círculo. Após algum tempo, ou melhor, após alguns cânticos, via-se os primeiros fogosdomésticos acessos. Com o sol apontando no horizonte oriental, praticamente todos já estavam acordados:algumas crianças brincavam no pátio, outras na periferia, as mulheres preparavam o dejejum e os homensmaduros e alguns rapazes se reuniam no pátio, reunião esta coordenada pelos "prefeitos" wakmeye, poisestávamos na estação seca. Cumpre observar que Tôh Tôt é o nome de um pássaro Katamye, ou seja, umpássaro que canta na madrugada, antes do sol nascer, anunciando o dia.107 Os cantos e danças noturnos, embora menos freqüentes, são vistos como tendo influência sobre a caça esobre a colheita (Nimuendajú, idem: 117-8). Menos freqüentes ainda são os cantos da madrugada, que,observa Melatti (1982: 35), "ocorrem geralmente quando a noite está iluminada pela Lua, quando oshabitantes da aldeia estão bem alimentados, sobretudo com carne, ou quando se está realizando uma etapaimportante de algum ritual". 108 Mauss equaciona palavras e gestos, ou seja, cantos e danças, como forças rituais capazes de "fazer todasas coisas" (1974: 86-7). Nesse sentido, fico com sua concepção de ato ritual como uma linguagem queveicula uma representação simbólica acerca das leis de funcionamento do universo. O ritual é, assim, vistocomo "a tradução de uma idéia" (Idem: 90). Essa abordagem "performática" dos rituais será retomada maistarde por autores como Leach (1972, 1983) e Tambiah (cf. Peirano, 2001).

Page 56: Noção de tempo entre os índios Krahô

todo o edifício dos ciclos e alternâncias cósmicos desmoronaria. Posey (1982: 93) observa

o papel de assegurar o movimento do tempo desempenhado pelos cantos e danças numa

outra sociedade Jê setentrional. Também entre os Kayapó, "as cerimônias são o que

mantém o equilíbrio da natureza e são essenciais para gerar a energia necessária para a

continuação dos ciclos do tempo ecológico e estrutural".

Mas, o que acontece entre os cantos e danças do nascente e do poente? Como

indiquei acima, após os primeiros cantos do cantor no pátio convocando a todos, já com o

dia clareando, os moradores da aldeia começam a se levantar. Segundo descrição de

Melatti (1993: 99-102), com o sol nascendo, os mais jovens dirigem-se para o riacho mais

próximo para tomar banho; as moças levam consigo cabaças nas quais trazem água para

casa, para beber e cozinhar. Retornando do banho, os homens vão para o pátio onde

discutem as atividades que serão realizadas no dia. As reuniões do "conselho masculino"

são coordenadas por dois "prefeitos" pertencentes à metade associada à estação em curso.

As mulheres permanecem nas casas, preparando o desjejum. A reunião termina por volta

das sete horas, ou seja, quando o sol ainda não está alto e quente. Há corrida de toras

praticamente todas as manhãs, entre o despertar e as reuniões matinais, cujo ponto de

partida e de chegada é a casa de wïtï109.

É comum aos Timbira Orientais, após as corridas de toras e as reuniões do pátio, os

homens casados rumarem não para a casa onde moram, mas para a de suas parentes

consangüíneas, onde comem a sua primeira refeição do dia110 (Nimuendajú, 1946: 126;

Melatti, idem: 100). Como um exemplo da inflexão da temporalidade na trama do

parentesco, que se reflete no espaço das relações e dos trajetos cotidianos, verifica-se o

costume de se visitar os parentes todas as manhãs, após as reuniões matutinas. Com relação

às visitas que as mulheres de um mesmo segmento residencial fazem entre si, Ladeira

(1982: 17-8) observa que "as parentes mais distantes genealogicamente dentro do segmento

residencial são aquelas que residem nas casas mais afastadas". Assim, à distância no tempo

corresponde uma distância no espaço. Além disso, as mulheres que têm suas casas mais

próximas umas das outras fazem suas visitas recíprocas pelos quintais, fundos das casas

vistos como sendo de livre trânsito. Quanto mais distantes as casas, mais esses trajetos

cotidianos são feitos pelo caminho circular - kricapé -, "como se assim procedendo,

109 Sobre as corridas de toras falarei mais à frente. 110 Lembro que a regra de residência entre os Krahô, e demais Timbira Orientais, é uxorilocal (cf.Nimuendajú, idem: 125-6; Melatti, 1978: 52 ss; Ladeira, 1982).

Page 57: Noção de tempo entre os índios Krahô

reconhecessem publicamente a separação entre suas casas, a distância de seu parentesco"111

(Idem).

Findo esse período de convivialidade matinal entre parentes, dá-se início ao

trabalho: os homens geralmente saem para caçar, vão para a roça de alguém para realizar

um trabalho comunal ou vão ajudar a levantar a casa de alguém; as mulheres ficam na

aldeia ocupadas com os trabalhos da casa, cuidando das crianças, vão para a roça ou para o

cerrado coletar frutas. Há que se sublinhar que os trabalhos do dia também estão sujeitos à

inflexão do tempo, do "tempo ecológico" (Evans-Pritchard, op. cit.), pois das estações

depende, por exemplo, o local onde vão caçar: "Durante a estação seca os índios preferem

caçar na mata. Durante a estação chuvosa preferem, porém, o cerrado, pois as florestas, em

tal período, estão cheias de cobras que põem em risco a vida dos caçadores. Além disso, o

cerrado fica mais úmido e passa a ser mais freqüentado pelos animais. A caçada se torna

mais fácil durante a estação chuvosa, pois os rastros dos animais ficam mais nítidos no

chão..."112 (Melatti, 1978: 42). O mesmo se dá com o trabalho feminino, pois as frutas a

serem coletas no cerrado têm uma época certa do ano para aparecer. Segundo Melatti, a

coleta de frutos comestíveis, uma tarefa exclusivamente feminina, rende mais na estação

chuvosa pois "parece que o período mais rico em frutos é aquele que abrange o final e o

princípio do ano" (Idem: 41). Também os trabalhos de plantio e colheita, nos quais as

mulheres têm participação ativa, acompanham os ritmos das estações, sublinha o mesmo

autor (Ib. idem: 46-50)113.

De qualquer modo, com o sol na altura das nove ou dez horas, a aldeia está quieta.

Com o sol a pino, meio-dia, as mulheres já estão nas suas casas, onde preparam alguma

comida para os que ali estão. O que comem depende da diligência de homens e mulheres

em preparar a roça na época certa do ano, de semear as sementes certas e no momento

propício; isto facilita a generosidade da estação. A comida, preparada conjuntamente pelas

mulheres, é repartida pela mais velha entre as famílias elementares presentes, que formam

111 Ladeira ainda observa que o uso do caminho circular e do pátio nos trajetos das visitas cotidianasexpressa simbolicamente a qualidade da relação entre os envolvidos. Ou seja, "a passagem pelo pátio indicaque a relação estabelecida entre as casas é mediada por ele: são relações que devem ser públicas (aliançasmatrimoniais, amizade formal, nominação)" (Ladeira, idem: 14).112 Os Krahô possuem grande conhecimento ecológico do seu ambiente natural. Sabem onde pode serencontrada tal ou qual espécie de animal ou planta, em que época do ano abunda e em que período do dia estámais ativa. Como veremos, associado a esse conhecimento está um complexo sistema de classificação no qualas espécies naturais são encaixadas em classes cuja definição depende, dentre outros, do eixo tempo.113 Sobre o trabalho de coleta de frutos silvestres ser da competência exclusiva das mulheres, devemos noslembrar que é um personagem mitológico do sexo feminino, Katxerê, quem ensina aos Krahô a coleta e opreparo dos frutos silvestres, fazendo ela mesma tal trabalho. Já o trabalho da agricultura, plantio e colheita,ela ensina-os sem distinção de sexo (vide mito da Mulher-Estrela, acima).

Page 58: Noção de tempo entre os índios Krahô

pequenos núcleos distintos e separados no interior da casa para o consumo da refeição114

(Melatti, 1978: 52; Ladeira, 1982: 16). Nas casas permanecem, até que, com o sol na altura

das dezesseis horas, é anunciada a chegada dos grupos de corredores com toras após

concluído o trabalho coletivo do dia que consumiu boa parte das suas energias. Caso essa

atividade tenha sido uma caçada, a carne é dividida entre os caçadores-corredores e

conduzida, em seguida, para as casas onde moram. A repartição da carne entre as casas do

segmento residencial acompanha a distância espacial entre elas, pois, como vimos, a

distância no espaço reflete a distância nas relações sociais e, por conseguinte, o quão

imperiosas são as obrigações recíprocas (Ladeira, idem: 18).

Com o sol começando a se pôr, tem início a preparação da última refeição do dia. A

organização social para o seu consumo é a mesma descrita acima. Após comerem, os

membros das casas costumam descansar em esteiras colocadas diante dela, quando então

são surpreendidos por vozes de rapazes a convocar o cantor e as mulheres para irem ao

pátio, a fim de cantarem (Melatti, 1993: 101). Ao pôr-do-sol, assim, ocorrem mais uma vez

cantos e danças. Desta vez, para "encerrar" o dia, pois vimos que palavras e gestos assim

utilizados são atos rituais "eminentemente eficazes, são criadores: fazem" (Mauss, 1974:

48). Como entre os Canela, os cantos e danças Krahô podem anteceder as reuniões

noturnas dos homens. Melatti (1978b: 36) observa que, se estas terminam logo no pôr-do-

sol, os homens se dispersam gritando "muk, muk, muk", gritos do caitutu, animal que foge

depressa à presença do caçador; se terminam no começo da noite, fazem "ka, ka, ka", gritos

da galinha-d'água, que canta a essa hora; se a reunião é concluída logo após o começo da

noite, imitam um bicho que canta a essa hora, o socó, fazendo "põ, põ, põ"; se ela termina

muito tarde, fazem "ie, ie, ie", em referência ao morcego, que freqüenta a aldeia por volta

da meia-noite. Esses são outros exemplos da voz humana marcando o tempo, corroborando

as vozes da natureza.

Por outro lado, os cantos e danças do poente interferem também na gramaticalidade

dos sexos que perpassa os espaços simbólicos da aldeia: no pôr-do-sol, as mulheres são

convidadas para irem ao pátio (Ladeira, idem: 08). No pátio, elas cantam postadas a oeste,

justamente donde partem os últimos raios do sol; no pátio, podem permanecer durante a

noite, enquanto durarem os cantos 115. Quando cessam os cantos, por volta das vinte e uma

114 Cada família elementar tem, no interior da casa, um espaço próprio não só para comer, mas também paradormir (Cf. Ladeira, idem: 16 ss).115 Cf. Carneiro da Cunha (1978: 39). Enquanto elas cantam postadas a oeste (poente), os rapazes dançam aleste do pátio. Entre mulheres e homens, o cantor: ele canta e dança, com seu maracá. Há que se observarque, se elas podem ir ao pátio a partir do pôr-do-sol, também podem ir antes do sol sair, para os cantos damadrugada que ocorrem em alguns ritos (cf., p. ex., Melatti, 1978: 186; 352).

Page 59: Noção de tempo entre os índios Krahô

horas, a aldeia está pronta para dormir (Melatti, 1993: 102; cf. também Nimuendajú, 1946:

117). A última voz é a do "pai do khoiré", como determina o mito.

O movimento aparente do sol, do nascente ao poente, desenha no céu uma linha

cujos pontos intermediários são percebidos como significativos para se realizar

determinadas atividades. Do percurso cotidiano do astro-rei, derivam, pudemos ver, alguns

usos simbólicos da relação do leste com o oeste. Carneiro da Cunha (1978: 39) observa,

nesse sentido, que, "servindo pois de linguagem universal, ligando domínios diferentes da

realidade, o oriente se opõe ao ocidente como a luz às trevas, o sol à lua, o cima ao baixo, o

dentro ao fora, o pátio da aldeia ao círculo das casas, a aldeia ao território que lhe é

exterior, os vivos aos mortos"116. Por isso, o eixo leste - oeste é o grande ordenador

cosmológico do espaço e do tempo. Sobre ele, são dispostas todas as outras oposições:

homem-mulher, pátio-periferia, vivos-mortos, dia-noite, estação seca-estação chuvosa. Isso

levou Carneiro da Cunha (1986: 43) a afirmar que o sol, entre os Jê em geral, é visto como

o próprio tempo117.

Sendo o sol, em vários mitos, associado ao tempo cotidiano, como aliás vimos

acima, no fluxo das práticas cotidianas ele é central como o referente simbólico de tempo.

Seu movimento, de um ponto a outro no horizonte, é um processo físico regular e contínuo

que fornece uma base relativamente segura para servir de quadro de referência a atividades

sociais que também comportam alguma regularidade. Por isso, o sol é instituído

socialmente como símbolo de tempo e suas posições no céu - em especial o nascente e o

poente, mas também outras - funcionam como indicadores de quando e onde se realizar

determinadas atividades (Elias, 1998: 67; 83-4). A escolha do sol como referencial de

tempo, pelos Krahô, está associada ao seu "projeto" cultural. É uma escolha orientada por

sua cosmologia, por sua representação do universo físico, humano e espiritual, mas que

também leva em conta sua avaliação do que deve ser feito ao longo dos dias para se atingir

a melhor maneira de se viver, agir e interagir no mundo. A temporalidade, em qualquer

116 Leste (Khoikwakhrat, "pé-do-céu", nascente) e oeste (Apármã, "direção do sem pé", poente) são os doispontos cardeais segundo o pensamento Krahô. O norte e sul não recebem denominação especial, são "lados":o norte é assimilado ao oeste e sul, ao leste. Além disso, norte e sul, como os pólos das bordas do céu, são"escuros" porque o sol não passa por lá (cf. Melatti, 1978: 97; 357-8; Carneiro da Cunha, 1978: 39; Chiara,1978).117 Numa conversa que tive com um morador da aldeia Manoel Alves, Dodani PiiKen, em setembro de2003, ele me dizia que nas corridas de toras não se pode "perder tempo", quando então apontou com o dedoindicador para o sol, para se referir ao tempo. Mesmo o sol sendo o "tempo", o dualismo não deixa de existir:sol mais lua e, além deles, dia mais noite, estação seca mais estação chuvosa. Os Timbira, de fato, dão muitodestaque ritual e simbólico ao sol e ao seu movimento do leste ao oeste, porém de maneira articulada ao usodas fases da lua, dos ciclos das estações e mesmo das Plêiades como referentes temporais importantes(Nimuendajú, 1946: 232-3).

Page 60: Noção de tempo entre os índios Krahô

sociedade, é construída segundo modelos culturais de relação entre as pessoas e entre elas e

seus pontos de referência temporal (Munn, 1992: 102).

Page 61: Noção de tempo entre os índios Krahô

CAPÍTULO IIIO DUPLO ASPECTO DO TEMPO NOS CICLOS SAZONAIS

Também o "tempo estrutural" deixa suas marcas na orientação das práticas

cotidianas, haja visto que o que homens e mulheres fazem ou deixam de fazer durante o dia

está estreitamente relacionado aos rituais agendados e nos quais participa uma ou outra das

metades nas quais se dividem os Krahô e que envolvem praticamente toda comunidade.

Esses são "dias em que toda a população da aldeia deixa de trabalhar em tarefas que não

estejam diretamente ligadas ao rito que então se realiza" (Melatti, 1978: 305). Tais são, por

exemplo, aqueles dias em que são realizados os rituais de iniciação ou os do ciclo anual.

Cantos e danças ocorrem não somente na alternância dia e noite, mas também nos

momentos em que alternam entre si estação seca e estação chuvosa, dois períodos

diferenciados cerimonialmente e que constituem as duas unidades principais do ano dos

Timbira orientais. Cada uma delas é construída, em datas socialmente instituídas, por

rituais de abertura e encerramento (Carneiro da Cunha, 1986: 37; 42; Melatti, 1978: 154-

196). Cada unidade, cada estação possui uma qualidade própria, oriunda não somente do

clima e das condições materiais de existência, mas também e principalmente pelos tipos de

cantos que se canta, pelo tipo de toras com as quais se corre, pelos rituais que ocorrem e

pela administração das atividades coletivas cotidianas. Após termos visto como as estações

concorrem para a estruturação dos dias, veremos agora como os dias fluem acompanhando

os ventos das estações, que levam e trazem as práticas econômicas nas suas correntes de

alternância. Depois, acompanharemos os cantos e danças que “fazem” os ciclos sazonais.

As “variações sazonais” nas práticas econômicas e no sistema de classificação

Os Krahó habitam uma região de cerrado no norte do Estado do Tocantins118. Seu

território é afetado por um ciclo climático caracterizado pela alternância entre uma estação

seca, que predomina de meados de abril a meados de outubro, e uma estação chuvosa, que

118 Sua população, estimada pelo ISA em aproximadamente 2000 indivíduos em 1999 (cf. Ricardo, 2000),distribuídos em 17 aldeias, vive num território de aproximadamente 3200 km2 , próximo às cidades deGoiatins e Itacajá. O uso e gozo dessa área foram concedidos pelo governo do então Estado de Goiás, em1944, após vários conflitos violentos envolvendo os Krahô e criadores de gado, cujo desfecho foi o massacresofrido pelos índios no ano de 1940.

Page 62: Noção de tempo entre os índios Krahô

dura de meados de outubro a meados de abril. Os índios, dentre uma quase infinita gama de

possibilidades, selecionaram alguns fenômenos "naturais" como sinais de mudança do

tempo sazonal, segundo seus próprios interesses culturais (Elias, 1998; Munn, 1992). A

chegada da estação seca é percebida quando a haste da espiga do capim atu se quebra, por

volta de maio. Outro sinal de que o tempo dos Wakmeye está a principiar é o aparecimento

da gramínea homrenré (Melatti, 1978: 83).

Várias são as atividades econômicas que seguem o curso da estação seca. A pesca,

que não tem peso significativo no regime alimentar Krahô, é praticada sobretudo nesta

estação, pois os cursos d'água estão baixos e correm devagar, o que favorece o uso de

vegetais tóxicos, tais como o tingui e o timbó; mas outras técnicas também são utilizadas,

como o arco e flecha e a pesca com anzóis (Melatti, 1978: 41-2). Na estação seca, tem-se

os momentos iniciais do ciclo da agricultura, principal fonte de subsistência. Os Krahô

praticam a agricultura de coivara em terras que margeiam os rios do seu território.

Portanto, começam a preparar as roças já no mês de junho com o corte da vegetação baixa,

etapa a que dão o nome sertanejo de "broca". Em julho ocorre o corte das árvores, que são

deixadas a secar. Em agosto, setembro põem fogo nos troncos e galhos, pois esta etapa

deve preceder a queda das primeiras chuvas. Também em agosto e setembro ocorre a

semeadura do milho e da fava; em setembro planta-se o chamado arroz "tardão", assegura

Melatti (1978: 46-48). Este autor lembra ainda (Idem: 356) que o plantio, deste como de

outros gêneros, é cercado por evitações simbólicas - não comer certos alimentos e/ou

determinadas partes de certos animais - cuja não observância tem por conseqüência ou a

perda completa da plantação ou o crescimento inadequado. Assim, os tabus ligados ao

plantio concorrem para a codificação do calendário (Bourdieu, 2002 [1977]: 97-8).

Por volta do começo de outubro, caem as primeiras chuvas, sinal de que a estação

chuvosa está começando. Mas, antes delas, o aparecimento das Plêiades no horizonte

ocidental, depois do pôr-do-sol, sinalizava, em junho, a aproximação da estação das águas

e que, por isso, já era tempo de fazer as clareiras no mato para preparar a roça

(Nimuendajú, 1946: 62; 233). No começo da estação chuvosa, entre outubro e novembro,

planta-se a mandioca, principal gênero alimentício juntamente com o arroz, que costuma

ser semeado em dezembro e janeiro, na sua variedade "ligeiro". Aliás, os Krahô dizem que

o melhor mês para se plantar esse arroz é janeiro, porque, sendo colhido no início da

estação seca, é melhor preservado em virtude da ausência de umidade (Melatti, idem: 48).

Em janeiro colhe-se o milho comum e em março, o arroz "tardão"119. Acrescente-se que na119 Os Krahô plantam ainda melancia, inhame e batata-doce. Apesar de contribuírem pouco para a dietaalimentar, existem rituais associados a essas duas últimas espécies. Para maiores detalhes da agricultura

Page 63: Noção de tempo entre os índios Krahô

estação chuvosa, principalmente entre dezembro e fevereiro, é quando a coleta de frutos

silvestres dá melhores resultados, com as mulheres voltando do cerrado com seus cestos

abarrotados de mangaba, buriti, piaçava, bacuri e outros (Melatti, idem: 41).

O início da estação chuvosa, setembro-outubro, é um momento crítico não somente

porque marca a chegada das águas e a conseqüente alteração nos afazeres cotidianos, mas

também porque é quando acabam os últimos gêneros alimentícios, a mandioca e o arroz,

segundo dados de Melatti (Ib. idem: 49). Assim, as estações têm seu caráter dual marcado

pela disponibilidade de alimentos e quantidade de trabalho em cada uma delas: na estação

seca trabalha-se menos, mas há fartura de alimentos; na estação chuvosa, a maior

quantidade de trabalho não supera a escassez . "O cultivo se dá num período em que

alimentação é difícil: os gêneros plantados nas roças anteriores já estão esgotados",

compadece-se Melatti (Idem: 51). Isto confere sentido à observação de Jean Lave (1977:

313) com relação aos Canela-Ramkokamekrá que, acredito, pode ser estendida aos Krahô.

Segundo ela, há uma oposição entre um período - a estação chuvosa - no qual as energias

pessoais e coletivas estão concentradas principalmente em atividades produtivas/naturais

baseadas nos laços de família e um período - a estação seca - em que são as atividades

cerimoniais que envolvem a comunidade mais ampla cujos vínculos são estabelecidos

pelos nomes, a estação seca120.

Nem mesmo a caça, que é mais fácil na estação chuvosa, os supre do necessário,

porque, além de pouca, a carne é somente um acompanhante dos gêneros principais. Mas,

ainda assim, falemos da caça, porque nesta prática podemos melhor vislumbrar como as

noções duais de Wakmeye e Katamye funcionam como operadores classificatórios.

Classificadores práticos, veremos, veiculam noções com certo grau de abstração, como a de

tempo, aponta Lévi-Strauss (2002 [1962]: 163). As "representações coletivas" do tempo de

uma sociedade, já sugeria Marcel Mauss (1968a [1904-05]: 448-9), no começo do século

XX, podem fundamentar seu esquema de classificação do mundo natural e social, além de

terem implicações práticas como um arcabouço de informações sobre o que, quando e

onde certas ações podem ser realizadas.

A alternância climática impõe a alternância nos ambientes de caça. Vimos que

durante a estação seca os índios preferem caçar nas matas porque a maior claridade permite

a visualização das presas e porque há menor possibilidade de encontrar cobras. Na estação

Krahô, cf. Melatti (1978: 46-52).120 Segundo Melatti (1978: 50), as roças são trabalhadas pelas famílias elementares. Este autor lembra que atransição da estação seca para a chuvosa era, no passado, marcada também por uma expedição de caça ecoleta, realizada logo após o plantio, visando suprir as carências de alimentos que caracterizam este período(Idem: 200). O mito de origem das metades sazonais faz referência a esta expedição, como veremos abaixo.

Page 64: Noção de tempo entre os índios Krahô

chuvosa, preferem as caçadas no cerrado porque, este estando úmido, a percepção das

pegadas dos animais é facilitada. De séculos de observação do ambiente natural, resultou

um conhecimento ecológico que consegue apontar a ligação de certos animais com

determinadas plantas, a época do ano em que as espécies aparecem e o período do dia em

que podem ser encontradas (Melatti, 1978: 42).

Portanto, na base deste conhecimento partilhado, e do qual dependem os caçadores,

está um sistema de classificação onde o par de conceitos de tempo Wakmeye-Katamye

desempenha o papel de "eixo lógico-sincrônico" por meio do qual relações simbólicas

entre os seres e as coisas são construídas121 (Lévi-Strauss, 2002 [1962]: 79-80). Nesse

sentido, Melatti (1978b: 37) argumenta que o sistema de classificação Krahô fundamenta-

se sobremaneira no comportamento das espécies naturais. Animais que vivem no cerrado,

têm atividade diurna e aparecem principalmente na estação seca serão agrupados na

categoria Wakmeye, enquanto que aqueles que vivem na mata, em buracos, em ambientes

aquáticos, aparecem na estação chuvosa ou têm hábitos noturnos serão Katamye122. Isto nos

lembra a constatação de Mauss (1968a: 450) de que as noções de estação podem servir para

definir gêneros de coisas e de seres.

Melatti (Idem: 36) evoca o mito da festa dos bichos como um esboço dessa

classificação. Nele, o que teria definido a classe a que passariam a pertencer os animais

teria sido uma corrida disputada pelos animais dois a dois, no sentido da mata. Os

vencedores passariam a viver no cerrado, os perdedores viveriam na mata123. Os primeiros,

mais corajosos, são Wakmeye; os da mata, medrosos porque se escondem, são Katamye.

Esta convenção mitológica põe em evidência a observação de Lévi-Strauss (2002 [1962]:

109) de que os sistemas de representações simbólicas, muitos dos quais baseados nos

mitos, servem para estabelecer relações de homologia entre as condições naturais e as

condições sociais, ou seja, "leis de equivalência entre contrastes significativos situados em

vários planos", como os geográficos, zoológicos, econômico, social, ritual, filosófico.

Há que se atentar, pois, para o fato de que a noção Wakmeye denota o dia, o claro, a

luz e Katamye, a noite, a escuridão, a cor preta. Segundo Carneiro da Cunha (1978: 116-7),

são justamente as noites (augapôt, que se traduz como "seres que, de dia, se retraem e

121 Este "eixo sincrônico" dita que, p. ex., o campeiro e a ema pertencem a uma mesma categoria porqueambos andam pelo cerrado, de dia. Sobre outros seis eixos lógicos sobre os quais os sistemas de classificaçãopodem ser construídos, cf. Lévi-Strauss (Idem). Um outro caso etnográfico em que símbolos temporais sãoutilizados como operadores classificatórios pode ser encontrado em Adam (1997: 36). No caso Krahô, comoem outros, operam vários eixos de classificação das coisas e dos seres do universo (Melatti, 1981: 121).122 Os vegetais são classificados em Wakmeye ou Katamye conforme dêem flores ou frutos numa ou noutraestação. 123 Cf. Schultz (1950: 138-143) para uma versão rica em detalhes deste mito, que contém outros episódiosalém deste da corrida dos animais. Melatti (1978: 313-17) apresenta outra versão.

Page 65: Noção de tempo entre os índios Krahô

escondem nos buracos do nariz, por baixo das pedras, nos ocos das árvores, nos lugares

recônditos") e os dias da estação chuvosa os momentos em que os mekarõ (alma dos

mortos) realizam sua andanças pelo mundo. Eles também gostam de lugares escuros, como

as matas e os buracos, onde vivem os animais Katamye. Assim, esses operadores

classificatórios Krahô se utilizam de oposições que organizam grupos sociais para elaborar,

sob "a forma transformada" de um sistema de relações simbólicas, as ferramentas

cognitivas de que se servem as pessoas nos seus propósitos práticos (Bourdieu, 2002

[1977]: 97).

Vê-se que os sistemas de classificação cumprem não somente funções de pura

cognição. Operações práticas de construção do mundo, sublinha Bourdieu (Idem),

demandam sistemas de classificação que organizam a percepção e a apreciação do mundo e

que estruturam a ação. Nesse sentido, o caçador Krahô, querendo matar um veado-

campeiro, só deve comer carne de animais que andam de dia e evitar a carne daqueles que

têm atividades noturnas, pois o campeiro anda durante o dia (Melatti, 1978b: 36). Estas

observâncias rituais se aplicam a qualquer tipo de caça: "o caçador só pode comer animais

cujos hábitos, noturnos ou diurnos, coincidam com o da presa a caçar" (Melatti apud.

Carneiro da Cunha, 1978: 101). Caçando na estação chuvosa ou nas matas, o caçador deve

tomar precauções técnicas e simbólicas para apanhar sua presa, mas também para não ser

apanhado por algum mekarõ, porque são os tempos e lugares dos espíritos dos mortos.

Além disso, a classificação Krahô em seres Wakmeye e seres Katamye estrutura até mesmo

as brincadeiras das crianças, como o "morcego", uma brincadeira que ocorre no pôr-do-sol

e que faz referência direta a este animal de hábitos noturnos (Melatti, 1978: 65-66).

Mas como cada estação tem seu momento próprio para chegar e para se retirar,

deixando que a outra entre em ação, conformando uma espécie de reciprocidade temporal,

também as metades associadas a elas encontraram suas formas de reciprocidade. Nesse

sentido, Nimuendajú (1946: 86) verificou que, entre os Canela, a ascendência ritual dos

Kamakra durante a estação seca implica que os membros desta metade têm direito a mais

carne dos animais abatidos nas caçadas coletivas e que na estação chuvosa a precedência é

dos Atukmakra. Segundo José Aurélio, informante de Melatti nos anos 60, na estação

chuvosa quem parte um animal morto durante uma caçada coletiva são os Wakmeye, e de

uma maneira tão desigual que os Katamye carregam a parte menor. Quando o bicho é

pequeno, como veado ou caititu, os Katamye não carregam nada, só os Wakmeye. Na seca,

ocorre o contrário, ficando o trabalho pesado de carregar a caça com os Katamye. Por outro

lado, na estação seca, quando se coleta mel no cerrado são os Katamye que podem comê-lo

Page 66: Noção de tempo entre os índios Krahô

por ali mesmo, sem ter que esperar chegar à aldeia. Na estação chuvosa, esse direito é dos

Wakmeye.

Ritos que fazem os ciclos sazonais

Nimuendajú (1946: 02) foi talvez o primeiro etnólogo a destacar que, entre os

Timbira Orientais, "a aguda divisão em períodos de seca e de chuvas afeta não somente a

economia mas também a vida social". De fato, vimos que um dos principais pares de

metades Krahô, Wakmeye-Katamye, está associado a essa alternância ecológica. Mas, além

disso, esse par é que realiza os ritos do ciclo anual, aqueles que sinalizam as mudanças nas

estações e no comando das atividades diárias da aldeia, realizando, assim, a conversão

simbólica do "tempo ecológico" para o "tempo estrutural" com base na homologia

natureza-sociedade. Lembremos da figura mitológica da velha senhora que, no “mato”,

conheceu a linguagem do tempo através da qual ensinou aos Krahô que a organização

social dos seres humanos deve acompanhar as alternâncias temporias. O movimento de ida

ao mato e retorno à aldeia são a própria expressão dessa alternância: ela sai velha e, quando

chega, rejuvenesce. Com a velha senhora os Krahô aprenderam a se dividir nas metades

ligadas ao movimento alternado do tempo, Wakmeye (nascente, dia, estação seca) e

Katamye (poente, noite, estação chuvosa), e a realizar os rituais que dotam de qualidades

distintas cada estação do ano.

A humanização do tempo não está tão-somente na transformação dos códigos dos

ritmos naturais em códigos de organização social, como assegura o mito e como, de fato,

fazem as metades Wakmeye e Katamye. Não basta a percepção dos sinais "naturais" da

mudança de estação, como o florescimento do capim atu e o aparecimento da gramínea

homrenré para a estação seca ou as Plêiades e as primeiras chuvas para a estação das águas.

Porque mesmo estes fenômenos "naturais" só se tornam sinais, signos do tempo, após

terem sido selecionados por um "olhar" culturalmente orientado. De qualquer modo, é

preciso que uma prática humana sacramente a alternância do tempo. São os rituais, pois,

que operam a transição de uma estação para outra.

O ano dos Timbira Orientais é dividido em dois grandes períodos qualitativamente

diferenciados. São, aqui também, cantos e danças os marcadores simbólicos da alternância

Page 67: Noção de tempo entre os índios Krahô

temporal. Cada um desses períodos é aberto e encerrado com rituais, realizados em datas

fixadas socialmente. Esses são rituais que ocorrem, portanto, em momentos de transição no

tempo "longo", anual (Nimuendajú, 1946: 163; Carneiro da Cunha, 1986: 37). Mas eles

não se conformam simplesmente à estrutura do "tempo ecológico", senão que concorrem

para a própria configuração do caráter do tempo em geral: os rituais ajudam a "fazer o

tempo" como alternância (Mauss, 1968b, 1974; Leach, 1974). Já os vimos, aliás,

estruturando o tempo da cotidianidade.

Além de terem dias certos para ocorrer em função da chegada ou do fim das chuvas,

os ritos que marcam o ciclo anual devem acontecer em determinados períodos do ano

porque estão ligados ou ao plantio e crescimento de determinados vegetais ou à sua

colheita, como a batata-doce e o milho (Melatti, 1978: 154). Diferentemente ocorre com os

ritos que expressam a distinção entre parentes consangüíneos e afins, que podem ser

realizados em qualquer época do ano124. De qualquer modo, vale destacar, estes e os demais

ritos que os Krahô ainda realizam ou que outrora realizaram somam algo em torno de

quarenta, segundo Melatti (Idem: 13). Os Krahô são, assim, a mais vívida expressão

etnográfica da afirmação de Roger Caillois de que "os homens vivem na recordação de

uma festa e na expectativa de uma outra" (1988: 97). Suas duas estações são, ademais,

estações cerimoniais porque preenchidas por vários amnikhin ("alegrar-se", festa).

Daí que o que diz Nimuendajú sobre a centralidade da vida cerimonial, entre os

Canela, acredito poder ser aplicado plenamente aos Krahô: a vida cerimonial é da mais alta

importância, "absorvendo grande parte do tempo e da energia das pessoas" (1946: 163).

Mesmo não podendo abordar muitos deles aqui, por razões óbvias, fica assinalado que o

ritual é o que estrutura os tempos sociais, sendo portanto o "tempo dominante" dos Krahô

porque em torno dele se articulam o tempo da família e do grupo doméstico e o tempo das

atividades econômicas (Sue, 1995). Tanto que o seu modelo ideal de sociedade é o de uma

sociedade cerimonial (Carneiro da Cunha, 1986: 36), onde o pátio figura no centro da

aldeia e é associado ao sol, à vida, ao belo. Vejamos pois quais são os amnikhin que

sinalizam a mudança nos períodos sazonais e quais os preenche.

A fim de ajudar na compreensão dos significados imanentes aos ritos do tempo

anual Krahô, ofereço uma descrição sintética dos contextos rituais onde as ações

simbólicas são levadas a efeito. Procuro apresenta a totalidade dos ritos que marcam o

124 Sobre esses ritos, cf. Melatti ( Idem: 129-53). Além de focar os ritos do ciclo anual, tratarei de algunsritos ligados ao ciclo de vida, pois a noção de tempo Krahô também perpassa as cerimônias que concorrempara a construção da pessoa humana.

Page 68: Noção de tempo entre os índios Krahô

início e o fim dos ciclos sazonais, lembrando a advertência de Leach de que, para se

apreciar o quanto os rituais servem para ordenar o tempo de uma sociedade, é preciso ver o

sistema como um todo e não apenas rituais particulares isolados (1974: 208). Partamos,

pois, da abertura da estação seca e rumemos no sentido do encerramento da estação

chuvosa, quando então teremos completado todo o ciclo anual.

O rito marca o início da estação seca e, logo, o tempo os Wakmeye é realizado no

nascente, no pátio, entre os meses de abril e maio. Começa com os Katamye postados a

oeste de costas para os Wakmeye, que ficam a leste. Um dos membros da metade Katamye,

voltado para a outra metade mas com o rosto escondido sob um ramo verde, dirige-se ao

pátio, onde um cantor Wakmeye entoa os cânticos típicos da sua metade. O cantor

Wakmeye vai e volta na direção daquele membro da metade Katamye, que havia saído da

sua posição no lado oeste do pátio e ruma no sentido do centro. Quando aí chega, o rito se

encerra (Melatti, 1978: 154-5). Nesse mesmo dia, corre-se a primeira corrida com as toras

Wakmeti ("tora grande"). São as metades Wakmeye e Katamye os times que a disputam,

vindo de fora da aldeia com as toras previamente cortadas pelos homens Wakmeye, de

quem é o privilégio (ou contrapartida do fato de coordenarem as atividades da aldeia

durante a estação seca) de preparar as Wakmeti durante toda a sua estação. Segundo a

descrição de Melatti (Idem: 156), às três da tarde, portanto com o sol alto e quente, os times

entram na aldeia, onde depositam as toras diante da casa de uma menina wïtï.

Esta é somente a primeira de uma série de corridas levadas a cabo com a toras

Wakmeti (Idem: 156). Estas toras têm como características o diâmetro maior que o

comprimento, ornamentação vermelha, listras no sentido do comprimento (: 159). Esses

dois últimos, aliás, são signos gráficos da metade Wakmeye. São, portanto, os signos da

própria estação seca, de maneira que esta estação tem seu colorido próprio, pois estas toras

expressam a duração da estação (Carneiro da Cunha, 1986: 40-41). Tanto o é que as toras

com as quais se corre no começo da estação são maiores do que aquelas com as quais se

corre no final, chamadas Wakmeré, "tora pequena" (Melatti, 1978: 158). A diminuição

progressiva do tamanho das toras Wakmeti é a representação simbólica do escoamento da

estação, expressão da consciência de que o tempo tem também uma natureza linear: no

começo tem-se uma energia vigorosa que vai se esvaindo até que no final é exigida a

renovação. O tempo altera-se, vem outra estação com energias novas125.

125 O rito de Përteré, que os Krahô realizam hoje em dia segundo a maneira aprendida junto aos Canela-Apaniekrá, no passado era um dos ritos que marcavam a chegada da estação seca. Corriam, então, com astoras chamadas de Përteré, no amanhecer, as metades Wakmeye e Katamye. Antes da corrida começar, haviacânticos. Depois da corrida e já no pátio, os homens dividiam-se em Harãkateye e Khöikateye para receberpaparutos das suas parentes consangüíneas. Finda esta refeição corriam com a primeira tora Wakmeti. Essa

Page 69: Noção de tempo entre os índios Krahô

No rito que encerra, em meados de setembro, a estação seca ocorre uma caçada

coletiva, tal como descreveu Melatti (156-8). A aldeia toda divide-se em Wakmeye e

Katamye. Os homens membros desta última ficam incumbidos de cortar a carne dos

animais mortos; alguns homens Wakmeye preparam as toras com as quais correm no

retorno da caçada. Cada homem entrega a carne que recebe a uma mulher da metade

oposta, em troca da qual recebe um alimento cozido. Se a mulher for solteira, ela leva a

carne para a casa materna, de onde retira o alimento preparado para levar ao campo no qual

as trocas são realizadas e que fica localizado fora da aldeia. Se a mulher é casada, ela retira

o alimento preparado da casa da sogra pois para lá leva a carne que obteve. Assim, no

mesmo rito que encerra a estação seca está inserido um rito no qual é expressada a

distinção entre parentes consangüíneos e parentes afins, pois as mulheres solteiras dirigem-

se para a casa dos seus consangüíneos, onde ainda moram, e as casadas vão até outro

segmento residencial, onde estão seus parentes afins. Assim, fica realçada também a

ligação entre segmentos residenciais da aldeia que é estabelecida através do casamento126.

Mas o que sacramenta de fato o final da estação seca é a "morte" do Wakmeti. Um

dos líderes dos Katamye vai até a praça, onde canta o recitativo da sua metade voltando-se

para as casas de membros da metade Wakmeye e batendo no chão com um pedaço de pau

(Idem: 158). Isto ocorre no primeiro dia da estação chuvosa, que sucede o dia em que se

corre com o último Wakmeti, morto para que então nasça o período em que se corre com o

Katamti. É o cantor Katamye, portanto, que anuncia com sua voz a chegada da estação

chuvosa. É ele que, com sua voz e gestos, finaliza o tempo dos Wakmeye "matando" a

expressão maior da sua duração, os Wakmeti. O fim deste período impõe a descontinuidade

no tempo, que vinha fluindo linearmente, e a inversão dos opostos (Leach, 1974: 195; 206).

Após o primeiro Katamti, volta o tempo a fluir linearmente.

Quando caem as primeiras chuvas, e esta é a condição primeira para sua realização,

é realizado o ritual chamado Apïnuré-Hokhi'yere, que a um tempo abre a estação chuvosa e

era a maneira Krahô de realizar o Përtere. Melatti (Idem: 180-82) diz que, das vezes em que assistiu aoPërteré, teve a impressão de haver uma incidência da sua realização na estação chuvosa. Mas eu tive aoportunidade de assisti-lo no final da estação seca, nos dias 07 e 08 de setembro de 2003. Foi realizado damesma maneira de que nos fala esse autor, mas com um detalhe bastante interessante: era um "Përteré dasmulheres". Disseram-me que de uns anos para cá têm-no feito, vez ou outra, invertendo os papéis de homense mulheres. Assim, naquela ocasião, as mulheres é que deveriam entregar a carne para os seus parentesconsangüíneos preparem o paparuto. Contudo, como elas não dominam nem as técnicas da caça nem as dapesca, seus maridos é que foram caçar e pescar, a fim de propiciar às suas mulheres a carne a ser trocada peloalimento preparado pelos seus parentes masculinos. A inversão só não foi uma paródia completa - os parentesdas mulheres não deixaram de lhes solicitar auxílio na elaboração do bolo, pois eles, por sua vez, nãodominam as técnicas da cozinha - porque foram as mulheres que se dirigiram ao pátio para comer o paparutoe lá se postaram não a oeste, mas a leste. 126 Este rito das trocas de alimentos pode ocorrer em outros momentos da estação seca, p. ex., no seucomeço.

Page 70: Noção de tempo entre os índios Krahô

põe em relevo as relações entre consangüíneos. Dois dias antes da sua realização, os

homens saem para caçar e a carne obtida é entregue a uma parente consangüínea, que

retribui com um paparuto. No dia em que a troca é efetivada, há cantos e danças no pátio,

no nascer do sol, com os homens voltados para o oeste. Depois de cantarem e dançarem, se

dirigem até a casa das suas parentes, onde recebem o paparuto. Daí retornam para o pátio,

onde, divididos nas metades de idade, repartem entre si os bolos recebidos (Melatti, 1978:

159-61).

No mesmo dia da realização do Apïnuré-Hokhi'yere, corre-se com as primeiras

toras Katamti, as toras com as quais correrão as metades Wakmeye e Katamye durante toda

a estação chuvosa. O rito do primeiro Katamti assinala, em conjunção com o rito anterior, a

abertura da estação chuvosa. As toras Katamti não são feitas somente de buriti, podendo

ser confeccionadas também com talos de bananeira ou outro material que julgarem

apropriado. O importante é que elas tenham o comprimento maior que o diâmetro. Outra

característica é que recebem desenhos pretos, cujos padrões gráficos são, segundo os

índios, "enfeites da sucuriju", pois o Katamti é a sucuriju (Idem: 162-3), animal das águas,

símbolo da estação chuvosa. Assim, se o Wakmeti é a expressão da duração da estação

seca, o Kamtati é a da estação chuvosa. A forma destas duas toras, os desenhos que

recebem e suas cores dizem que são, pois, durações contrárias mas complementares (: 163).

Juntamente com o Apïnuré-Hokhi'yere, ou poucos dias depois, corre-se com as

toras Ro?ti. Estas são as próprias sucuriju: são troncos finos e compridos, um pouco tortos,

cuja base representa a cabeça e a extremidade, a cauda. Antes do nascer do sol tem início a

corrida entre Wakmeye e Katamye, que partem de um ponto localizado fora da aldeia. Ao

chegarem ao pátio, os Katamye deixam sua "sucuriju" cair na borda, enquanto a dos

Wakmeye é conduzida até o centro. Assim, a sucuriju é trazida de fora para dentro da

aldeia, uma representação simbólica da chegada das águas que passam a influenciar o

cotidiano de todos durante toda uma estação127 (: 164-5). Contudo, o rito no qual a

administração das atividades cotidianas da aldeia é passada dos Wakmeye para o Katamye é

o Põhïyõkróu ("tora de milho"), realizado alguns dias após o Apïnuré-Hokhi'yere. Ele está

associado ao ciclo de desenvolvimento do milho, mais especificamente seu plantio e

crescimento, tanto que o tamanho das toras com as quais se corre depende do tamanho que

127 Dentre os ritos da estação chuvosa, há ainda o rito Rópyõpi, no qual o caçador entrega carne obtida à suaesposa. Ela prepara um paparuto para seu marido, que o troca com os companheiros num dos caminhosradiais da aldeia. Segundo Melatti (Idem: 166), este é o rito em que são acentuadas as relações dentro dafamília elementar ou do grupo doméstico, pois pedaços do paparuto também são dados ao cachorro docaçador. Outros ritos que os Krahô não realizam mais são o Apïnuré (: 167-8) e o Penhok (:175-6). Dequalquer modo, Melatti não nos assegura estarem eles relacionados ao ciclo anual.

Page 71: Noção de tempo entre os índios Krahô

os pés de milho tenham alcançado (: 169).

Antes do sol nascer, a primeira voz que se ouve é a do cantor, que, no pátio, é

acompanhado pelas mulheres na tarefa de "anunciar o tempo" dos Katamye (: 170).

Cantando, faz com que todos acordem, "faz" o dia começar. De manhã cedo, ao nascer do

sol, os membros da metade Katamye entregam ritualmente o machado (de ferro, com cabo)

aos Wakmeye, que cortam as toras Põhïyõkróu. Segundo Melatti (Idem: 170), a entrega do

machado aos Wakmeye é uma forma de empréstimo, pois o machado está com os Katamye

porque o rito ocorre após a estação chuvosa já ter começado. É uma entrega simbólica.

Depois de entregue o machado, ocorre a corrida com as toras Põhïyõkróu, que são trazidas

de fora para dentro da aldeia. No pátio, o cantor e a hõkrepoi (cantora) cantam em torno

das toras, enquanto que os homens dançam em volta delas, no sentido anti-horário (: 171).

O propósito destes cantos e danças seria o de fazer o milho crescer? Acredito que sim, pois

a tora do milho (Põhïyõkróu) é o próprio milho e os ritos, como venho argumentando, são

uma "força" capaz de provocar efeitos sobre o mundo físico (Mauss, 1968b, 1974; Leach,

1983 [1958]).

À tarde, petecas de palha de milho confeccionadas pelos Katamye são atiradas e

rebatidas no pátio por pessoas que cumprem estes papéis rituais em virtude de seus nomes

pessoais. Os atiradores e rebatedores Katamye são adornados com penas de gavião coladas

aos seus corpos em linhas horizontais, enquanto que os Wakmeye recebem penas de

papagaio no sentido vertical. Isto, porque o gavião é classificado como Katamye e o

papagaio, Wakmeye (Melatti, 1978: 172-3). Depois de rebaterem as petecas, é realizada a

corrida com as toras Hodré, pequenas, menores que as Ro?ti. Os Wakmeye conduzem sua

tora até o centro, os Katamye levam a sua somente até a periferia, o círculo das casas.

Depois desta corrida, os Wakmeye conduzem os Katamye até o pátio, onde lhes

entregam oficialmente a administração da aldeia. Melatti (Ib. idem: 174) observa que, da

periferia ao pátio, caminham lentamente através de um dos caminhos radiais. Isto não

somente para que pudesse um dos antigos prefeitos dar conselhos aos Katamye que estão

assumindo, mas principalmente para que dê tempo de escurecer completamente, pois o dia

é dos Wakmeye e a noite, dos Katamye. "A administração da aldeia passa de uma metade

para outra metade do mesmo modo que a noite sucede o dia" (Melatti, 1978: 174).

Assim, no rito do Põhïyõkróu também temos expressa a equivalência entre as

alternâncias cotidiana e sazonal. Além disso, é a afirmação simbólica da ordem dos lugares

e dos tempos de cada metade: as toras dos Wakmeye são depositadas no centro da aldeia e

as dos Katamye, na periferia; a administração deve ser repassada para os Katamye à noite,

Page 72: Noção de tempo entre os índios Krahô

após o sol ter ido embora, num ritual, aliás, que começou antes de ele sair, com cantos e

danças. Vemos, assim, que os ritos do ciclo anual são a representação simbólica da noção

Krahô segundo a qual o tempo é feito da alternância seca e chuva, dia e noite, mas também

da linearidade que se faz presente tanto no interior de cada ciclo que alterna quanto no

desenvolvimento dos seres, pois "construtos cosmológicos estão inseridos nos ritos, e os

ritos, a seu turno, ordenam e encarnam concepções cosmológicas" (Tambiah apud. Peirano,

2001: 26).

Além do Põhïyõkróu, existem mais dois ritos associados ao ciclo do milho que

ocorrem durante a estação chuvosa. O Põhïpré, que não acontece todos os anos, segundo

Melatti (Idem: 176), é realizado durante a colheita desse grão, quando já está pronto para

ser consumido. É este rito que aparece no mito da origem das metades sazonais, no qual

também notamos uma referência à expedição de caça e coleta que os Krahô faziam

antigamente. Melatti argumenta que estas expedições eram cercadas de suspense porque,

sendo realizadas logo após o plantio do milho e de outros vegetais, as roças ficavam à

mercê de ataques estrangeiros (Idem: 200). É, pois, interessante observar que neste rito são

encenados ataques às roças. Assim, os Katamye vão às roças da metade oposta roubar

alguns víveres, mas sem estragá-las muito. Num local exterior à aldeia, eles compõem

cestos contendo abóbora, batatas e milho, que são em seguida enviados aos Wakmeye.

Estes recebem os cestos no pátio, onde assam os gêneros recebidos; aí comem e dormem.

Os Katamye dormem fora da aldeia.

De manhã cedo, há uma corrida com feixes de víveres que os Katamye havia feito

com aqueles retirados das roças dos Wakmeye. Estes feixes são os Põhïpré. A corrida vai

de um ponto da periferia para o centro, onde os feixes são depositados pelos corredores.

Em seguida, são recolhidos por uma pessoa que desempenha o papel de Põhïprépupumkate

("catador de feixes") vinculado a seu nome. Há cantos em torno dos feixes. Mais tarde,

ocorre a inversão: os Wakmeye vão roubar nas roças dos Katamye; os gêneros são divididos

entre as duas metades no pátio, onde ambas dormem; os Wakmeye é que fazem os feixes

com os quais somente dois corredores, um de cada metade, correm no dia seguinte. Esta

corrida com os feixes, que vem de fora para dentro da aldeia, é sucedida por uma outra

realizada com pequenos troncos de buriti (: 176-7). Este rito termina no pátio, onde o

cantor e a hõkrepoi entoam cânticos e os rapazes dançam. As mulheres, que aí estão

presentes, atiram feixes de milho seco nos homens (: 177-8).

Já o Põhïprï é realizado quando o milho está seco. Este é o nome das flechas

Page 73: Noção de tempo entre os índios Krahô

produzidas com varas de canajuba, em cuja extremidade uma peteca de palha de milho lhe

envolve a ponta. O rito é iniciado com a retirada dos homens para o mato a fim de caçarem.

A carne que obtêm é levada às suas parentes consangüíneas, de quem esperam receber

paparuto em troca. No pôr-do-sol ocorre um cântico cuja letra faz referência ao Põhïprï, a

"flecha sem ponta". À noite, divididos em Khöikateye e Harãkateye, os homens atiram as

tais flechas uns nos outros. Este jogo pode durar a noite toda. Pela manhã, o padré recolhe

as flechas de maneira solene, quando então encerra o rito (: 178-9).

Outro rito que ocorre durante a estação chuvosa também está ligado às atividades

agrícolas. Trata-se do ritual Txëikhré, que é realizado logo após o plantio da batata-doce.

Este é o nome das toras com as quais correm os homens divididos em metades de idade.

Antes da corrida, eles saem para caçar. A carne é entregue a uma parente consangüínea,

que prepara para eles um paparuto. No mesmo dia da caçada, no pôr-do-sol, o cantor entoa

cantos, no pátio, juntamente com os rapazes; todos ficam voltados para a direção onde já

estão cortadas as toras, fora da aldeia. No outro dia, de manhã cedo, os Khöikateye e os

Harãkateye fazem a corrida, vindo de fora para dentro da aldeia. Quando as toras são

depositadas no centro do pátio, ocorrem novamente cânticos e os homens dançam em torno

das toras. Imagino que o propósito destes cantos e danças seja o mesmo daqueles que se

fazem em torno das toras Põhïyõkhróu, qual seja, fazer o vegetal crescer. As mulheres

assistem no lado oeste do pátio. Depois disso, os homens buscam o paparuto na casa da

parente a quem deram carne e de lá voltam para o pátio, onde se dividem em classes de

idade para comer os bolos. Feito isto, cantam o canto de Hamaro, canto matinal que deve

ser entoado por uma das metades de idade (: 150; 183-5).

O Përti-Yótyõpi é outro rito ligado à batata-doce, mas à sua colheita, sendo o mês

de abril considerado o mais apropriado para sua realização (: 185). É um rito, portanto, que

marca o fim da estação chuvosa e o começo da estação seca, juntamente com o Txëikhré.

Em torno de quatro ou cinco dias antes, alguns homens saem para caçar. Ao entardecer do

dia anterior ao da realização do rito, o cantor entoa cantos no pátio, acompanhado por

outros homens. Eles ficam voltados para a direção das toras com as quais correrão no dia

seguinte e que jazem fora da aldeia. O rito se inicia com a vozes do cantor e das mulheres

cantando no pátio, de madrugada, juntamente com a dança dos homens. Logo de manhã

cedo, tem-se a corrida entre as metades de idade, que vêm de fora da aldeia até o pátio,

onde depositam suas toras. Quando estas chegam, há troca de paparutos entre as casas

maternas de rapazes e moças cujo casamento estivesse combinado ou já efetivado, mas

ainda não consumado pelo nascimento do primeiro filho. Esta troca de paparutos é

Page 74: Noção de tempo entre os índios Krahô

reconhecimento público de que o casal está estabelecendo a relação de marido e esposa (:

187). Aliás, desde o "noivado" as casas dos rapazes e moças, mesmo que eles já estejam

vivendo juntos, vêm trocando paparutos todas as vezes que este rito é realizado e só

deixam de fazê-lo quando nasce o primeiro filho (Melatti, idem: 105).

Enquanto ocorrem as trocas de paparuto, entram em cena certos personagens rituais,

ligados aos nomes pessoais dos seus atores, a desfilar pelos caminhos radiais da aldeia (::

187-9). Após os desfiles dos personagens e a troca de paparuto, as metades Khöikateye e

Harãkateye defrontam-se de maneira simbólica no centro do pátio: "dando gritos agudos,

vão se aproximando uma da outra, ameaçando-se mutuamente, até se juntarem no meio do

pátio, dispersando-se" (: 189). No final da tarde, no caminho circular, passa o cortejo no

qual é conduzido um cesto com batatas que são atiradas em pessoas que se colocam diante

dele; o cortejo, puxado por dois cantores com seus maracás, termina no pátio, com o sol se

pondo. No poente, o cantor e a hõkrepoi cantam. Fogueiras são acendidas no pátio, uma no

centro ou a leste. À noite, ainda com cantos, os rapazes e moças que tenham trocado

paparuto pela manhã devem dar as mãos e caminhar em torno da fogueira. À noite também

atuam personagens rituais no pátio, após o que as moças cantam. De manhã bem cedo, no

nascer do sol, o cantor e a hõkrepoi cantam no pátio; são as primeiras vozes da aldeia. Ele

caminha em torno do lugar onde arderam as fogueiras. Diante de suas cinzas, cessa o canto.

Termina o rito (Melatti, idem: 188-92).

Mas, para que a estação chuvosa se dê por encerrada, é preciso "matar o Katamti".

Assim, um homem pertencente à metade Wakmeye vai e volta no caminho que leva do

pátio para a casa da wïtï associada aos homens adultos, entoando os cânticos próprios dos

Wakmeye. Como Melatti (Idem: 162) não se refere ao ato de bater no chão com uma vara,

imagino que o Katamti, ou seja, a duração da estação chuvosa, é "morto" unicamente com

os "ritos orais" (Mauss, 1968b), os cantos da metade que passa a assumir a coordenação

das atividades diárias da aldeia. A morte, sabemos, é o desfecho final do fluir linear do

tempo, cujo ponto de partida é o nascimento do ser. O pensamento Krahô articula essa

linearidade do tempo à alternância, de maneira que o Katamti "morre" para que nasça o

Wakmeti, fazendo com que a duração da estação chuvosa entre em latência para que a

estação seca surja em sua potência. E assim, o ciclo de "vida" e "morte" das toras Wakmeti

e Katamti configura a noção do tempo como uma "seqüência de oscilações polares"

(Leach, 1974: 195), ou seja, como alternância entre vida e morte, dia e noite, estação seca e

chuvosa, subjacente à qual está a experiência do tempo fluindo linearmente do nascimento

de um período à sua morte. Este é o momento da transição.

Page 75: Noção de tempo entre os índios Krahô

No passado, segundo Melatti (Idem: 200-01), os marcadores do início da estação

seca eram os rituais do Përteré e do Txëikhré, aquele sendo realizado depois deste. No

período de transição para a estação seca, dá-se o plantio da batata-doce, uma prática que é

levada a cabo coletivamente. Estes ritos abrem, além disso, a estação em que acontecem

atividades que exigem a solidariedade e cooperação nos grupos domésticos e nas metades

de idade, como a "broca", a derrubada e a queimada. Lembra, nesse sentido, que estes ritos

são justamente aqueles que enfatizam as relações entre os consangüíneos (as parentes

consangüíneas fazem paparutos para os homens) e entre os membros das metades de

classes de idade (há, nos ritos, momentos de comensalidade entre Khöikateye e

Harãkateye).

Por outro lado, isso contrasta com o tipo de relação que é destacada nos dois

últimos terços da estação chuvosa. Assim, nos ritos Põhïpré, Põhïprï e Përti-Yótyõpi há

episódios de agressão, seja entre afins (maridos e esposas), seja entre os membros das

metades de classes de idade. Para Melatti (Ib. idem: 200), isso se explica porque a colheita,

evento que estes ritos assinalam, é um momento que guarda um certo perigo, pois é quando

a inveja e a cobiça dos que não plantaram leva-os a fazer constantes pedidos aos mais

precavidos ou mesmo a assaltar as suas roças. Teríamos, então, uma oscilação no padrão de

relações sociais entre o final da estação chuvosa e a estação seca que se refletiria nos

ritos128.

Assim, os ritos do ciclo anual expressam também relações de parentesco. Melatti

(Idem: 201-02) identifica três tipos de relações: solidariedade entre consangüíneos,

presente nos ritos Apïnuré-Hokhi'yere (abertura da estação chuvosa), Põhïprï (final da

estação chuvosa), Përteré (antigamente, no início da estação seca), Txëikhré (transição da

chuvosa para a seca); entre afins efetivos e afins potenciais, cuja distinção é ressaltada nos

ritos Përti-Yótyõpi (final da estação chuvosa, início da seca), Wakmeti (início da estação

seca) e Rópyõpi (estação chuvosa). Apesar de não haver vínculo estreito entre os tipos de

relação de parentesco e a oscilação estação seca-estação chuvosa, vale ressaltar que estes

ritos, que têm datas fixas nos ciclos sazonais Krahô, servem de oportunidade para

expressar simbolicamente normas de conduta e de relacionamento que encontram (ou

devem encontrar) sua realização no fluxo do dia-a-dia, o que não deixa de ser mais uma

128 Sobre o Põhïprï ter tanto troca de carne por paparutos entre parentes consangüíneos quanto agressõesrituais entre os membros das metades de classes de idade, Melatti lembra que este rito é realizado quando omilho comum não é mais consumido e que, portanto, ocupa uma posição intermediária entre a colheita e oinício da estação seca (1978: 201).

Page 76: Noção de tempo entre os índios Krahô

mostra de que o pensamento Krahô articula a temporalidade anual com a temporalidade do

cotidiano e que os rituais são "momentos de intensificação do que é usual" (Peirano, 2001:

27).

Mas, como o que quero enfatizar são os rituais, os amnikhin, como a forma que os

Krahô encontraram para marcar mudanças no tempo, não só dizendo que ele mudou, mas

"fazendo" com que mude, devemos "gastar" algum tempo na análise do que Melatti

chamou de "ano minúsculo" Krahô. Lembremos, de saída, que Leach, seguindo a vereda

aberta por Mauss, argumenta que o comportamento simbólico do ritual não somente "diz"

alguma coisa, mas também "faz" coisas (1983 [1958]: 140; 147).

Observa Melatti (1978: 197-8) que os Krahô reproduzem todo o ciclo anual no

curto período que compreende os ritos Apïnuré-Hokhi'yere e o Põhïyõkróu, nos primeiros

dias da estação chuvosa. A corrida com as toras Ro?ti ocorre antes da cerimônia de

transferência da administração da aldeia para os Katamye, e a corrida com as toras Hodré

(no âmbito do Põhïyõkróu) se dá depois desta cerimônia. Melatti destaca ainda algumas

oposições complementares entre estes dois ritos: Ro?ti são toras compridas que se arrastam

pelo chão conduzidas numa corrida que ocorre ao nascer do sol, logo no início da estação

chuvosa, enquanto que as toras Hodré são bem pequenas e sua corrida é realizada dias

depois da primeira, à tarde. "É como se um estivesse na estação seca [Ro?ti] e outro na

estação chuvosa [Hodré], muito embora, na realidade, ambos já estejam na chuvosa" (Ib.

idem: 197). Caillois (1988: 110), nesse sentido, observa que muitas cerimônias que

assinalam mudança de ciclos procuram representar simbolicamente, num período reduzido

de poucos dias, a totalidade dos ciclos que se encadeiam no tempo129. Esta compressão do

tempo anual em poucos dias lembra a temporalidade rápida de Sol que aparece em diversos

mitos. Parece, assim, que o tempo deve ser compremido para depois se expandir

novamente segundo um ritmo mais lento, mais demorado, próprio de Lua. A pressa de Sol

e a demora de Lua seriam, pois, caracteres estruturais do tempo, segundo a perspectiva

Krahô.

A hipótese de Melatti para a existência deste "ano minúsculo", logo no início da

estação chuvosa, corrobora meu argumento de que são os rituais que "fazem o tempo"

Krahô. Para ele (Idem: 198), a administração da aldeia só é oficialmente repassada aos

Katamye no Põhïyõkróu, e não no Apïnuré-Hokhi'yere, para que eles não fiquem mais129 Esse "ano minúsculo" que os Krahô vivem nos primeiros dias da estação chuvosa, Melatti não nos diz setambém é vivenciado no início da estação seca (Idem: 198).

Page 77: Noção de tempo entre os índios Krahô

tempo no comando das atividades cotidianas do que os Wakmeye. Se os Katamye

tomassem a administração no começo do mês de outubro, quando então ocorre o Apïnuré-

Hokhi'yere, nas primeiras chuvas, ficariam um mês a mais com a "prefeitura" da aldeia.

"Fazendo-se a entrega da administração aos Katamye no rito de Põhïyõkróu, que ocorre

quase um mês depois do Apïnuré-Hokhi'yere, essa diferença é corrigida ou, pelo menos

diminuída" (Idem; grifos meus). Com isto, vemos a centralidade das práticas rituais no

ordenamento dos tempos sociais Krahô. Além de ocuparem a maior parte da energia das

pessoas, são os rituais que "fazem seu tempo" com os cantos e danças. Em todos o ritos do

ciclo anual notamos a presença de cantos e danças, marcando ora o início de um período,

ora o seu fim. Em muitos, o ideal expresso no mito do Khoiré se realiza: a voz do "pai do

Khoiré" inaugura e encerra o dia. São as vozes dos cantores Wakmeye e Katamye que

abrem as suas respectivas estações. Anunciando ao povo a mudança, as suas vozes ecoam o

próprio tempo130.

Por fim, vale observar que o rito de transmissão da responsabilidade administrativa

da aldeia para os Wakmeye é realizado de manhã, após o nascer do sol, enquanto que o rito

de transferência aos Katamye é realizado depois do pôr-do-sol. Se o dia é dos Wakmeye

assim como a estação seca, e a noite e a estação chuvosa são dos Katamye, então estamos

diante de um daqueles tipos de pensamento que Leach chamou de "economical thinking"

(1972 [1966]: 337). Ou seja, através destes dois conceitos polares, os Krahô bipartem todo

o conjunto dos cosmos, aplicando o mesmo conceito a grupos sociais, períodos de tempo,

corpos celestes, plantas, animais e seres metafísicos. Este procedimento intelectual, vimos,

é condensado de maneira simbólica nos ritos do ciclo anual. Eles são, assim, não somente a

linguagem que "faz" o tempo, mas também aquela que comunica e transmite as

informações e o conhecimento acerca da "natureza" e da sociedade (Idem: 336).

Informações e conhecimento estes que demandaram séculos de observação e experiência

por parte dos Krahô para que chegassem a viver segundo os princípios do Wakmeye e do

Katamye, que pressupõem o equilíbrio das forças que fazem o movimento do universo

tanto quanto daquelas que fazem o movimento da sociedade humana.

130 Sobre o papel dos cantos e danças como mecanismos simbólicos de manutenção dos ritmos cósmicos esociais, em dois contextos etnográficos distintos, cf. Mauss (1968a: 446, e 1968b: 475). Elias (1998: 45;152-3) sublinha que a prática de "anunciar" o tempo através da voz humana é tão antiga e disseminada quantoas próprias sociedades humanas e que ela compete a atores de importância simbólica, como reis, sacerdotes,astrólogos-mor, e cantores, acrescento. Nesse sentido, ele lembra que a palavra "calendário" vem do termocalendae, cuja raiz é o verbo latim calare. Na Roma Antiga, era um sacerdote que saía às ruas anunciando aopovo que a lua nova fora avistada e que, portanto, havia começado um novo mês. Sem a voz do sacerdote,não haveria mudança no tempo. Assim, "calendae" (calendário) nada mais é que "dias a serem proclamados".Notemos que, se o tempo é um assunto que interessa a todos, o cantor Krahô "anuncia" o tempo no pátio daaldeia e o sacerdote pelas ruas da cidade porque estes são lugares públicos.

Page 78: Noção de tempo entre os índios Krahô

Carregando o tempo nos ombros: considerações sobre as corridas de toras

Minha intenção, nas linhas que se seguem, é relacionar algumas corridas de toras

com a noção de tempo Krahô. Ressaltando o caráter simbólico das toras, pretendo

demonstrar que as corridas, como rituais que são, concorrem para a construção de uma

temporalidade concebida e vivida como alternância e linearidade. Melatti (1978: 360)

sublinha que as toras podem ser consideradas sob vários pontos de vista, pois os Krahô

fazem várias associações com elas. Assim, o que proponho aqui é uma interpretação muito

particular, baseada nas corridas de toras realizadas no âmbito dos ritos dos ciclos sazonais.

As corridas de toras são uma das mais tradicionais e conhecidas instituições dos Jê

Setentrionais (Nimuendajú, 1946: 136; Melatti, 1978b: 38). Os primeiros cronistas

acreditavam tratar-se de uma prova matrimonial; hoje, há um certo consenso entre os

antropólogos de que estas corridas são um misto de esporte e de ritual. Nimuendajú, já nos

anos 40, enfatizava sua estreita relação com a estrutura social dessas sociedades bem como

o caráter simbólico das toras (Idem: 136-45). Entre os Krahô, a corrida é sempre disputa

entre dois times: Wakmeye-Katamye, Khöikateye-Harãkateye, ou outro par de metades131.

Os times que realizam a corrida, as toras e o percurso dependem do rito que engloba a

corrida.

As corridas de toras estão inseridas na estrutura do cotidiano Krahô, não

passivamente, mas como um mecanismo de "temporalização" (Munn, 1992: 116), como

uma prática que ajuda a construir o tempo como um processo simbólico. Nesse sentido,

dois são os tipos de corrida. Uma vem de fora para dentro da aldeia e é realizada

normalmente no final da tarde, após uma atividade coletiva (caçada, mutirão na roça),

utilizando toras novas que são depositadas no centro da aldeia, o pátio, ou na periferia, na

casa de um dos wïtï, que também é uma forma de pátio, com vimos acima. A outra ocorre

pela manhã quando os moradores da aldeia se preparam para começar as atividades

cotidianas, cujo ponto de partida está localizado dentro da própria aldeia e cujo percurso é

sempre no sentido anti-horário pelo caminho circular (Melatti, 1976b: 38-41). Assim, as

corridas de toras se interpõem entre os cantos e danças no pátio e as reuniões do "conselho

masculino".131 Sobre os pares de metade que podem realizar as corridas de toras, bem como sobre as outras corridas queos Krahô praticam, além da corrida de toras, cf. Melatti (1976b: 41).

Page 79: Noção de tempo entre os índios Krahô

O fato de haver duas toras implica a existência da reciprocidade entre os dois times

que as disputam. A ocorrência dos dois times com duas toras não é aleatória, mas se deve

ao fato de ser um jogo ritual realizado no contexto de uma sociedade cuja organização está

assentada sobre o princípio dualista. Uma das características das organizações sociais

pautadas no dualismo é justamente a reciprocidade, que faz com que as corridas de toras

apresentem tanto aspectos de rivalidade quanto de solidariedade entre os times (Lévi-

Strauss, 1982 [1949]). Nesse sentido, alguns autores apontam para o duplo caráter de jogo

e de ritual das corridas de toras Krahô (Melatti, 1976b: 42-4; Carneiro da Cunha, 1986:

41). Isto, porque as condições não são sempre as mesmas para os dois times: um pode ter

mais participantes que o outro, ou algumas corridas podem começar com um time à frente

do outro. Por outro lado, há corridas em que os times trocam as toras, em determinado

ponto do percurso, de maneira a eliminar qualquer vantagem que um possa ter sobre o

outro, pois espera-se que não haja distância muito grande entre os dois grupos de

corredores. Por outro lado, quando um corredor vê que o oponente que vem atrás é seu

hõpin (amigo formal), ele diminui o passo para que seu amigo não se canse. Apesar de

haver uma diferença final, pois um time quase sempre chega na frente do outro, a vitória

não é festejada: o ideal não é vencer, mas simplesmente correr bem. Os bons corredores,

contudo, são tidos pelos Krahô em alto preço.

Os mitos asseguram que as corridas de toras sempre existiram, desde antes do

surgimento dos seres humanos. Vimos que Sol e Lua, quando descem à terra, já corriam

com toras. Foi graças à técnica corporal da corrida de toras que os seres humanos

conquistaram o fogo junto ao casal de onças. Foi também uma corrida que estabeleceu a

divisão dos animais em Wakmeye e Katamye: bichos da mata, da noite, da estação chuvosa

vs. bichos do cerrado, do dia, da estação seca. O próprio circuito das corridas matinais,

quase todos os dias e cujo ponto de chegada é a casa de um wïtï, está fundamento num

mito. Assim, segundo Melatti (1978: 359-60), o sentido anti-horário destas corridas

realizadas no caminho circular da aldeia estaria relacionado com atualização do mito do

mundo subterrâneo, sendo as várias voltas deste percurso, portanto, a representação da

subida do mundo subterrâneo para o patamar terrestre132. Some-se que o Khoiré, insígnia

do cantor e símbolo da periodicidade, somente seria entregue àquele que vencesse uma

corrida, conforme a versão do mito tomada por Harald Schultz (1950: 114-18).

Vemos então que as corridas de toras, além de estarem estreitamente vinculadas

132 Sobre este mito do mundo subterrâneo, cf. Chiara, 1961-2: 350-1.

Page 80: Noção de tempo entre os índios Krahô

com a estrutura social Krahô, têm um lugar central na cosmologia desta sociedade. Melatti

observa que, de modo geral, "as toras representam a assimilação pela aldeia dos elementos

do mundo externo" (1978: 360). Podemos ver esta assimilação como uma transformação

cultural de elementos localizados originariamente no domínio da natureza. As toras que os

corredores vão buscar no cerrado são, pois, a representação simbólica dos itens que há

muito, asseguram os mitos, sua cultura conquistou. Tanto isto é verdade que as corridas

nunca são realizadas do interior para o exterior da aldeia, enfatiza Melatti (1976b: 38). Os

corredores, podemos dizer, encarnam os heróis civilizadores de outrora. Este autor assevera

ainda que "tudo que faz parte de sua cultura os Krahô consideram como de origem externa"

(1978: 360), desde o fogo, a agricultura até os cantos e os ritos. Eu acrescentaria também o

tempo.

Neste sentido, é conveniente lembrarmos do mito das metades. A Noite e o Dia

moram no "mato", ou seja, na natureza, que é justamente de onde os seres humanos

retiram, através da velha senhora, todo seu conhecimento sobre o tempo e sobre a

organização em metades associadas a ele. Assim, sugiro que algumas toras estão

relacionadas a símbolos de tempo, principalmente aquelas com as quais correm os pares

Wakmeye-Katamye e Khöikateye-Harãkateye durante os ciclos sazonais: Wakmeti (a tora

da estação seca), Katamti (a tora da estação chuvosa), Ro?ti, Põhïyõkróu e Hodré (toras da

chegada da estação chuvosa), Txëikhré e Yótyõpin (toras do final da estação chuvosa,

começo da seca). Vistas em conjunto, estas toras condensam a concepção Krahô do tempo

como alternância e como linearidade.

Com base no mito do Khoiré, numa versão apresentada por Vilma Chiara, Carneiro

da Cunha (1986: 40-1) defende a tese de que as corridas de toras seriam expressão da

duração, ou da "alternância na duração", e os cantos e danças seriam os marcadores dos

seus limites. Assim, as corridas seriam a representação da alternância harmoniosa dos

grupos dominantes, o que exprimiria, outrossim, o "tempo estrutural" da alternância

Katamye e Wakmeye. Isto é verdade em se tratando das toras Katamti e Wakmeti, cada qual

cortada pela metade associada à estação em curso e da qual saem os dois "prefeitos" da

aldeia. De fato, a alternância entre períodos em que se corre com a toras Wakmeti e

Katamti fazem com que os Krahô vivam dois ciclos de atividades sociais e cerimoniais. Na

duração da estação seca, Wakmeye, corre-se com as toras Wakmeti, de diâmetro maior que

o comprimento e com desenhos vermelhos; na estação chuvosa, Katamye, corre-se com as

toras Katamti, cujo comprimento é maior que o diâmetro e decorada em preto (Melatti,

1978: 197). Mas estas mesmas toras prestam-se à função de marcadoras de tempo,

Page 81: Noção de tempo entre os índios Krahô

sinalizando o começo e o fim de períodos, como é o caso da primeira corrida com o

Wakmeti ou a primeira Katamti.

Isto deriva do fato de que as corridas, além de terem momentos certos do dia para

acontecerem, têm data certa do tempo anual para serem realizadas, pelo menos aquelas dos

ciclos sazonais. Assim, outra tora que representa o começo de um ciclo sazonal é a Ro?ti

(Melatti: 1976b: 42; 1978: 164-5). Carregando a "sucuriju", símbolo da estação chuvosa,

para dentro da aldeia, os corredores estão como que levando as primeiras chuvas para o

seio da comunidade. É uma representação ritual do início de um período do ano diferente

daquele que está acabando e que muda a vida cotidiana de todos. Por outro lado, no

passado, o começo da estação seca era também marcado por uma corrida de toras, o

Përteré (Melatti, 1978: 180). Se as corridas de tora podem assinalar o começo e o fim de

períodos, elas são, outrossim, expressão do tempo linear. De fato, Wakmeti vai diminuindo

de tamanho conforme a estação seca vai fluindo até que, no fim, o cantor Katamye o

"mata". Também o Katamti deve nascer e morrer, como nasce e morre a estação chuvosa.

O tamanho da tora do milho, Põhïyõkróu, depende do tamanho dos pés de milho quando da

realização deste rito, que marca a passagem da administração da aldeia para os Katamye.

Em suma, acredito poder afirmar que algumas corridas de toras são a representação

simbólica do tempo segundo o esquema cosmológico Krahô, pois são ritos que se dão na

alternância dos ciclos sazonais, marcando não somente a oscilação dos períodos de tempo,

mas também a sua duração. São exemplos de como, nesta sociedade, os rituais são de vital

importância para a manutenção dos ritmos cósmicos e sociais. Elas são a expressão de que

são determinadas práticas humanas dotadas de significados especiais que "fazem" a

regularidade da natureza. Nestas corridas de toras, os corredores carregam o tempo sobre

seus ombros. O revezamento entre eles na tarefa de conduzir as "toras do tempo" de fora

para dentro da aldeia é a afirmação ritual de que é dever da coletividade humana trabalhar

no sentido do equilíbrio dos elementos do universo, dentre os quais figura o tempo.

Devo acrescentar, seguindo Vilma Chiara (1978: 55-59), que as corridas de toras

são uma forma de conectar a sociedade com o Leste, o "pé-do-céu", a fonte da "energia

vital" que alimenta todos os seres, onde tudo é movimento: de lá vem o vento, a água

corrente, de lá vieram os cantos do Khoiré que enchem de beleza os ouvidos humanos133. O

Leste, não custa lembrar, é associado ao claro, ao belo, ao forte, ao movimento, em

133 Melatti (1978: 357) lembra que os rios do território Krahô têm suas cabeceiras localizadas na direção sul,que é identificado com o Leste. Suas águas são vistas, assim, como vindo do "pé-do-céu" e correndo para oOeste, a "direção do sem pé".

Page 82: Noção de tempo entre os índios Krahô

contraposição ao Oeste, lugar do escuro, do mole, da inércia, onde está assentada a "aldeia

dos mortos". Correndo com toras, os Krahô estão, portanto, afirmando a superioridade do

movimento sobre a inércia, do que corre sobre o que fica parado. As corridas que ocorrem

de manhã bem cedo não têm outro propósito se não o de "acordar" as pessoas, pô-las de pé,

colocar a aldeia em movimento (Melatti, 1976b: 39).

Page 83: Noção de tempo entre os índios Krahô

CAPÍTULO IV O DUALISMO DO TEMPO NA NOÇÃO DA PESSOA

A questão da visão que as sociedades Jê têm do corpo e da pessoa pode ser uma

via de acesso à compreensão da sua organização social e cosmologia. Se o corpo, nestas

sociedades, é uma "matriz de símbolos e um objeto de pensamento", como querem Seeger,

DaMatta e Viveiros de Castro (1979: 11), então proponho, neste capítulo, que na

construção da pessoa que fazem os Krahô podemos entrever a forma como eles pensam o

tempo, no que estarei caminhando pelas veredas abertas por Leach (1974: 195; 206) e

Geertz (1989: 225-77). Fazendo isto, sigo a sugestão de Melatti (1976) de que a concepção

que esta sociedade tem da pessoa humana está baseada em dois pólos semânticos

contrários e complementares: corpo vs. personagem. Veremos, porém, que as tradicionais

dicotomias dualistas não se sustentam se vistas como categorias estanques, pois isto

contradiz a dinâmica que insiste em se fazer presente na vida Krahô134. Na sua visão da

pessoa, o simbolismo da alternância temporal combina-se com cuidados com o corpo físico

que demandam uma temporalidade de tipo linear cujo ritmo é o do herói Lua (Pudleré), ou

seja, um tempo mais lento, mais ponderado face ao tempo precipitado de Sol (Pud).

Alternância e linearidade são aspectos complementares do tempo que permeiam a vida da

pessoa.

Cuidados com o corpo e a linearidade do tempo

A pessoa humana figura no pensamento Krahô como sendo composta por um

aspecto interno, onde se localizam as substâncias que promovem a reprodução biológica, e

por um aspecto externo, uma "pele social" formada pelas relações definidas pelo nome

pessoal e pelos papéis cerimoniais a ele associados. Existe uma ligação entre os fluidos

internos dos corpos que leva à formação de uma "unidade de substância" (Melatti, 1976:

142) entre o indivíduo gerado, seus genitores e co-gerados. Em contraposição, este

indivíduo estabelece uma relação de natureza ritual com aquele de quem recebeu o nome,

de quem nasceu para a vida cerimonial. Assim, estes dois tipos de relacionamentos -

biológico vs. social - guardam em si todo um conjunto de comportamentos que revelam a

134 O próprio Melatti (1978: 126) diz que a noção de pessoa, entre os Krahô, não pode ser reduzida àsimples dicotomia corpo – personagem.

Page 84: Noção de tempo entre os índios Krahô

sua qualidade enquanto relacionamentos opostos mas, sobretudo, complementares.

Para o primeiro tipo de relacionamento acho adequada a definição de "grupo de

descendência corporal", um grupo no qual um indivíduo é criado como membro em “sua

própria carne, sangue e ossos” (Seeger, op. cit.: 130). Em torno deste grupo pesa um

conjunto de tabus, tanto mais pesados quanto esteja ele passando por um momento crítico:

nascimento de um novo membro, quando alguém é picado por cobra ou sofre de alguma

doença grave. A razão para as relações no interior deste grupo serem tão estreitas e

delicadas reside no fato de que as substâncias corporais dos genitores (intxu: P, IP, FiP;

intxe: m) são partilhadas com o indivíduo gerado (ikhra) desde a sua gestação até o

momento em que atinge a maturidade135. Segundo Melatti (1976: 141), os Krahô acreditam

que tanto o homem quanto a mulher contribuem para a formação da constituição interna do

novo organismo através da transferência das suas próprias substâncias: o homem contribui

com o sêmen e a mulher com o sangue, mas também com os alimentos que passam para o

corpo do feto e, mais tarde, com a amamentação136.

Os tabus, alimentares em sua maioria, que perfazem o resguardo que os

genitores devem observar em virtude do nascimento de um filho têm por objetivo evitar

que alguma doença o afete, deixando-o defeituoso ou mesmo levando-o à morte; mesmo o

corpo do genitor pode ser afetado em caso de não observância das proibições (Melatti,

idem: 141-2). Estas se dão numa gradação inversa ao fluxo linear do desenvolvimento

corporal da criança, de maneira que à medida que ela cresce e fica forte, "durinha", o peso

das interdições diminui. Isto tem a ver com os cuidados com a "força vital" presente no

sangue, pois, observa Melatti (1978: 56), as restrições somente afrouxam quando a

parturiente deixa de sangrar. A displicência com o sangue que ainda pode sair do corpo da

mãe pode ter por conseqüência o enfraquecimento do sangue que começa a circular

naquele que ela gerou através do seu próprio fluido vital. O resguardo, assegura Carneiro

da Cunha (1978: 104-11), tem por objetivo restabelecer as fronteiras do "indivíduo

biológico" comprometidas por algum evento que leva o sangue à exterioridade e ao

contanto entre os corpos.

Assim, logo após o nascimento, os pais estão proibidos de comer carne, fumar, ter

relações sexuais, fazer serviço pesado, falar em voz alta, só podendo comer inhame, batata-

doce, milho branco, coco-macaúba. Passados alguns meses, outros vegetais e certas carnes

135 Sobre a terminologia de parentesco Krahô, cf. Melatti (1973: 06-10).136 Um indivíduo pode ter somente uma genitora, mas pode ter vários genitores, pois aqueles quemantiveram relações sexuais com sua mãe são vistos como tendo contribuído para a formação do seuorganismo (Melatti, idem; 1978: 55).

Page 85: Noção de tempo entre os índios Krahô

de determinados animais já são permitidos: anta, tamanduá-bandeira e mambira, boi,

porque são tidos como "animais fortes" (Melatti, 1978: 56). A essa altura as relações

sexuais são liberadas, pelo menos para o pai, pois a mãe continua proibida de tê-las até a

criança começar a andar. Quando ela atinge os sete anos, é suspensa a última proibição, a

de matar cobras137. Mesmo quando adulto, o filho afetado por alguma doença faz com que

seu(s) pai(s) e sua mãe fiquem de resguardo para que ele se recupere mais rapidamente; os

filhos adultos, a seu turno, devem fazer resguardo por seu(s) pai(s) e por sua mãe. Mas

estas observâncias se dão também entre siblings: o irmão deve fazer resguardo por aquele

com quem partilha pelo menos um genitor (Melatti, 1973: 10).

Tudo indica que, na base nas proibições de se comer certas carnes, também está

operando a concepção Timbira segundo a qual um indivíduo pode se transformar num

outro ser, ou ficar parecido come ele, caso se aproprie de suas qualidades substanciais, de

que nos fala Azanha (1984: 42). Portanto, parece haver uma contigüidade de corpos inter-

espécies que faz com que se coma, por exemplo, carne de boi ou de tamanduá porque são

animais fortes e, sendo assim, deixará fortes pais e filhos, como o próprio animal. O

consumo da carne de tamanduá pode ter também outro propósito. Segundo Nimuendajú,

quando as restrições pelo nascimento de um filho estão prestes a acabar, o pai sai em

viagem de caça a fim de matar uma espécie de tamanduá que, diz-se, "cuida de seus filhos

como um ser humano faz, carregando-o consigo em suas costas onde quer que vá" (1946:

108). Comendo a carne deste tamanduá, então, os pais terão excelência nos cuidados dos

seus filhos.

A relação entre genitores e gerados tem outros aspectos positivos relacionados ao

desenvolvimento corporal destes últimos que revelam uma verdadeira “ciência do

concreto” (Lévi-Strauss, 2002 [1962]). Além de os genitores serem os responsáveis por

suprir o alimento dos filhos, devem também cobrir seus corpos com certos amuletos que os

protejam de perigos decorrentes da quebra de resguardo e que propiciem um crescimento

saudável e vigoroso. Assim é que são usados ossos de papa-mel e de rabo de quati para

proteger os ossos da criança, caso ela caia; omoplata de jabuti, para não sentir sede com

facilidade; osso de asa de morcego, para poder correr à noite com toras e não tropeçar em

tocos no caminho; unha de tatu-canastra, para correr muito sem sentir dor no estômago; um

pedaço de galho de sucupira, para a criança não adoecer com facilidade (Melatti, 1978: 58).

A sucupira, aliás, parece ser um símbolo de vitalidade para os Timbira, pois Nimuendajú

(1946: 107) observa que, entre os Ramkokamekrá, a mãe guarda o cordão umbilical do137 Estas proibições não se aplicam a pais, mães e filhos classificatórios (Melatti, 1973: 10). Para umconjunto de proibições rituais envolvendo genitores e gerados, cf. Melatti (1978: 56-60).

Page 86: Noção de tempo entre os índios Krahô

filho numa cestinha com sementes de urucum; aos quatro anos a criança recebe tal cestinha

como presente e enterra o cordão no pé da sucupira, pois assim será forte e bela como esta

árvore.

Do que foi dito, vemos que há uma identificação biológica do indivíduo com seus

genitores que inclui os vínculos sociais (Melatti, 1973: 16; 1976: 143). Todos os cuidados

sobre os quais falamos acima têm a ver com uma preocupação com o crescimento corporal

e com o bem-estar físico da pessoa. É um conjunto de cuidados socialmente instituídos e

empreendidos para fazer com que o percurso linear do tempo, no indivíduo, não se

interrompa, de maneira que ele possa nascer, crescer forte, belo e saudável e seguir para a

velhice. Tanto é que a ligação biológica do indivíduo com aqueles que o geraram vai desde

o nascimento até a idade adulta. O tempo como linearidade está demonstrado na fala de

vários informantes de Melatti (1978: 57), segundo os quais a quebra no resguardo traz por

conseqüência o branqueamento precoce dos cabelos dos pais. O corpo que sofre tais

restrições rituais é o do indivíduo, mas numa tal trama que faz com que o fluxo linear do

tempo, que preside ao crescimento biológico do organismo, seja um “assunto” social de

domínio do “grupo de descendência”.

Os cuidados com as substâncias físicas não têm outro lugar para acontecer se não

no interior das casas, na periferia, portanto. É na casa que o indivíduo nasce, e é lá que seus

pais observaram a semântica proibitiva da alimentação cuja duração é medida pelos meses.

A esta altura é interessante lembrar que foi Lua (Pudleré) que impôs o resguardo

prolongado em meses, com proibições alimentares e sexuais, ao contrário da vontade de

Sol (Pud). No mito, recordemos, subjacente ao embate entre os dois heróis estava em jogo

um tempo que flui mais rápido (o de Sol) e um que se escoa mais lentamente (o de Lua).

Lua venceu, e os resguardos que foram ensinados aos seres humanos seriam mais sofridos,

porque mais prolongados. Lua ainda criou a morte e, com ela, a impossibilidade de

renascimento, o tempo como alternância como era o desejo de Sol. Desde então, todos os

seres humanos seguem o mesmo destino fatal, o mesmo trajeto temporal previsível que vai

do nascimento à morte. Mas a linearidade do tempo de Lua também é criativa, também é

vida. Os cuidados mais demorados envolvendo pai(s), filhos e mãe têm por objetivo

assegurar que as pessoas cresçam fortes e saudáveis; são cuidados que demandam a

paciência que somente pode ser posta em exercício no círculo da periferia, o lugar dos

ritmos lentos da vida real que não reconhecem fronteiras rígidas entre corpo e personagem,

natureza e cultura.

Page 87: Noção de tempo entre os índios Krahô

Nomes, vida cerimonial e alternâncias do tempo

As relações cujos elos são os nomes pessoais marcam o contraponto da construção

da pessoa. Através destas relações de caráter ritual, os indivíduos figuram como

personagens que atuam em grupos sociais opostos e complementares permeados do

simbolismo do tempo como alternância: nascente–poente, dia-noite, seca-chuva. Através

do nome pessoal, o indivíduo herda certas prerrogativas rituais e passa a pertencer a uma

rede de relações sociais e cerimoniais mais vasta: o nome veste o indivíduo com a roupa

social da pessoa. Além dos grupos aos quais tem acesso pelo nome pessoal, a pessoa do

sexo masculino é inserida numa das metades de classes de idade quando atinge a

puberdade. De qualquer maneira, fazendo parte das classes de idade, a pessoa também atua

como personagem ritual (Melatti, 1978: 358) em grupos sociais ligados à alternância

nascente - poente.

Quando passa a fazer parte efetiva das metades cerimoniais, o homem passa a

freqüentar o pátio. Os momentos de alternância, nascente e poente, são particularmente

masculinos, porque neles é que os homens vão para pátio a fim de realizarem as reuniões

do "conselho masculino". Melatti (1973: 23) afirma que a transmissão dos nomes

masculinos é mais importante que a dos nomes femininos porque ela implica no

preenchimento de papéis rituais e na afiliação a certos grupos rituais que atuam em

cerimônias nas quais os homens têm maior participação. Mas tanto homens quanto

mulheres são nomeados, de maneira que, com o nome, a pessoa passa a fazer parte da

complexa trama de relações sociais e cerimoniais que constituem a sociedade Krahô. De

fato, o nome dá o direito a homens e mulheres de pertencer às metades Wakmeye e

Katamye, e aos homens o direito de integrar um dos oito grupos da praça divididos nas

metades Khöirumpekëtxë e Harãrumpekëtxë, a primeira associada ao leste e a segunda, ao

oeste. Este último par atua nos ritos de iniciação Khetwaye e Pempkahok (Melatti, 1973:

01-02; 1978: 88-90). O nominado passa a manejar os mesmos termos de parentesco do seu

nominador, exceção feita aos consangüíneos mais próximos (Melatti, 1978: 60). Com o

nome, ele herda também certos papéis rituais, como aqueles que vimos em ação em alguns

ritos do ciclo anual. Neste sentido, há, por exemplo, os atiradores e rebatedores de petecas

de palha de milho, no rito de Põhïyõkróu, o que corta mechas de cabelos dos que cantam, o

que escolhe os homens que devem quebrar a casa de maribondos no rito Pembkahëk

(Melatti, 1976: 141-2; cf. também Nimuendajú, 1946: 137; 158). Os nomes masculinos e

os femininos também transferem as relações de "amizade formal", relações estas de

Page 88: Noção de tempo entre os índios Krahô

extremo respeito e evitação (cf. Melatti, 1978: 63-4; Carneiro da Cunha, 1979).

Dentre aqueles parentes consangüíneos que podem dar nome ao indivíduo do sexo

masculino estão o Im, Imm, Pm, IPm, PP, IPP, sendo que a preferência está com o

primeiro, o irmão da mãe. Com relação ao nome feminino, podem transmiti-lo: iP, fiP,

ffiP, mP, imP, mm, imm. Neste caso, a irmã do pai é a nominadora preferencial. O

nominador, Keti, e a nominadora, Tëi, chamam aquele/a a quem deram nome pelo termo

Ipantu (Melatti, 1973: 10; 1976: 142). Assim, temos dois conjuntos de termos de

parentesco que permitem distinguir os dois grupos com relações distintas. O primeiro

forma uma "unidade de substância" por aqueles que partilham fluidos internos e cuja esfera

de atuação é a periferia; o segundo, é formado por aqueles ligados através do nome e que

têm no pátio o seu lugar de manifestação. Em síntese, os que produzem o corpo de Ego não

podem lhe transmitir o nome138 (Melatti, 1973: 15; 1976: 142-3). A relação entre

nominador/a e nominado/a é, antes de tudo, ritual. O Keti costuma dar um arco e flechas ao

seu Ipantu, e a Tëi dá um cinto (ipré) feito de várias voltas de tucum à sua Ipantu quando

ela atinge a puberdade (Melatti, 1973: 11), numa afirmação simbólica de que os

nominadores/as são os que fazem os indivíduos nominados nascerem para a vida social.

Os nomes pessoais Krahô são séries que podem ir de duas a sete termos. Embora

façam referência a seres do mundo "natural", como plantas, animais, rochas e estrelas, na

maior parte dos casos, conexões semânticas entre os termos estão ausentes, o que parece

ser, aliás, uma característica Timbira (Melatti, 1976: 142; Lave, 1979: 19). Além disso, os

nomes Krahô configuram mais um simbolismo social que cosmológico, pois tal sistema

funciona como um código que indica às pessoas a quais grupos cerimonias elas fazem

parte, quais papéis rituais elas devem desempenhar e como devem estabelecer tal ou qual

tipo especial de relação (Ladeira, 1982: 16-17). Neste sentido, a onomástica Krahô seria

um "sistema dialético" de nominação, porque baseada na própria sociedade (Gonçalves,

1993: 14). Ou seja, os nomes Krahô designam relações sociais, definem grupos e

identidades coletivas, ao contrário de um "sistema exonímico", no qual os nomes vêm de

fora da sociedade: deuses, mortos, animais. Se o nome "veste" a pessoa com os padrões de

pintura corporal da sua metade sazonal ou do grupo da praça aos quais pertence, como

indica Melatti (1973: 16), vamos encontrar então uma correspondência entre os códigos

onomástico e gráfico.

Pois bem, sendo o grafismo uma linguagem que exprime a concepção da pessoa

138 Como Melatti faz questão de lembrar, os Krahô reconhecem laços sociais entre genitores e gerados, evínculos biológicos entre nominadores e nominados (1976: 143). O que fazem, porém, é enfatizar a diferençanos tipos de vínculos.

Page 89: Noção de tempo entre os índios Krahô

humana (Vidal e Silva, 2000), os padrões gráficos corporais entre os Krahô são de uma

natureza tal que emitem mensagens que permitem aos sujeitos identificar seu portador com

um determinado grupo, bem como o comportamento que se espera daquele que vê a pintura

e daquele que a ostenta. As marcas visuais do corpo "identificam indivíduos e grupos,

expressando seu lugar e estabelecendo as bases para suas relações recíprocas" (Idem: 287).

Mas as pinturas corporais das metades Wakmeye e Katamye, a "pele social" que a pessoa

usa em virtude de seu nome, não se prestam somente à expressão da relações entre grupos

sociais. As listas verticais em tons vermelhos (Wakmeye) e as horizontais cujos tons mais

fortes são em preto (Katamye) são também uma linguagem através da qual estes conceitos,

que têm um "quadro cósmico de referência" (Whorf, 1968), ganham suporte visual que

permite definir as pessoas por sua identificação com tais ou quais períodos alternados de

tempo: nascente ou poente, dia ou noite, estação seca ou estação chuvosa. A pintura

corporal é mais um exemplo de que corpo e personagem, ou natural e social, não podem

ser vistos como noções estanques. Além disso, os Krahô se valem do corpo para despertar

e desenvolver sua sensibilidade estética que, como lembra Geertz (2002: 149), é

“essencialmente uma formação coletiva”.

Alternância e linearidade: duas forças criativas do tempo

Podemos ver, do que foi discutido até aqui, que os nomes servem para perpetuar a

sociedade naquilo que ela julga ser sua razão de ser, a vida ritual, cuja continuidade é

assegurada pelo sistema de nominação. É neste ponto que vemos como os nomes pessoais,

entre os Krahô, correspondem à noção de personagem. A seguinte afirmação de Melatti é

um excelente indicativo do ponto ao qual quero chegar:

"Cada nome pessoal seria como que o nome de um personagem. A sociedade Krahôseria constituída por um conjunto de personagens que, tais como os do teatro,seriam eternos, fadados a repetirem sempre os mesmos atos. Os atos e relaçõesdesses personagens seriam somente aqueles transmitidos junto com os nomespessoas. Embora eternos, tais personagens seriam encarnados por atores diversos,que se sucederiam no tempo" 139 (Melatti, 1976: 144; grifos meus).

Ora, além de estar implicado no simbolismo da alternância temporal das metades

139 Segundo este autor (1973: 16), os nomes pessoais têm implicações em outras situações além daquelas davida ritual. O nome pode, por exemplo, fazer com que um indivíduo pode não se casar com outro ou evitematar outra pessoa, em caso de litígio.

Page 90: Noção de tempo entre os índios Krahô

sazonais, o sistema de nominação faz com que haja uma alternância mesmo na transmissão

dos nomes: numa geração o sujeito é Ipantu, na seguinte será Keti. Nesse sentido, DaMatta

diz que, entre os Jê do Norte, essas substituições ao longo do tempo têm relação com "uma

idéia nítida de dualidade" (DaMatta apud. Carneiro da Cunha, 1978: 141). Eu diria que

essas substituições entre consangüíneos expressam uma certa alternância, pois deve haver

uma diferença no tempo, entre nominador e nominado, de pelo menos uma geração

(Ladeira, 1982: 23). A transmissão do corpo segue uma linha tal que permanece nos limites

estreitos de um grupo doméstico, ou de "descendência corporal". Ao contrário, a

transmissão dos nomes e dos personagens se realiza através da alternância entre grupos

domésticos.

Essa alternância, por certo, faz com que a nominação garanta a "continuidade de um

sociedade igual a si mesma", como também sublinha Carneiro da Cunha (Idem: 121).

Assim, o que diz Melatti sobre a característica dos nomes pessoais Krahô de concorrerem

para a definição da persona do indivíduo e para a perpetuidade, a continuidade da

sociedade definida como um repertório de papéis rituais, leva-me a ver nos personagens a

eles vinculados a noção de reencarnação e a de tempo cíclico ou alternado que ela implica,

pois, como observa Leach (1974: 195), à noção de tempo como alternância entre opostos

corresponde o sujeito que alterna. Vanessa Lea também percebeu que, entre os Kayapó-

Mebengokre, os nomes têm a ver com uma noção do tempo como alternância. Segundo ela,

"os nomes ajudam a regenerar a sociedade através do processo cíclico de reavivamento

perene dos seus personagens" (1992: 130). A existência dos personagens rituais põe em

evidência, pois, a roupagem social do corpo que se usa no pátio, onde as pessoas

desempenham seus papéis rituais enquanto membros das metades sazonais, das metades

dos "grupos da praça" (Melatti, 1981), ou da metade de classes de idade: grupos sociais

permeados do simbolismo da alternância.

Aqui, devemos atentar para o seguinte ponto. Embora existam algumas instituições

que associam o homem ao movimento e à vida, como as danças no pátio (Melatti, 1978:

352) e a regra da matrilocalidade, que faz com que o homem circule entre os segmentos

residenciais, há, por outro lado, instituições que reforçam a mulher como elemento do

movimento: são os nomes femininos que circulam pela aldeia (Melatti, 1973: 23). Segundo

este autor, há uma tendência dos nomes masculinos a se concentrarem em certas casas ou

segmentos residenciais, onde o homem deixa "uma imagem sua na pessoa do filho da

irmã", enquanto que os nomes femininos tenderiam a se espalhar por toda a aldeia Os

nomes pessoais, nesse sentido, podem servir também como mecanismos de aliança entre

Page 91: Noção de tempo entre os índios Krahô

segmentos residenciais.

Ladeira (1982: 18) lembra que a relação de nominação é estabelecida desde criança

entre dois irmãos de sexo oposto que se comprometem a trocar nomes: o irmão dará seu

nome para o filho da irmã, que passa então a ser chamada de ipantumetxi ("mãe do meu

ipantu"), e a irmã compromete-se a dar seu nome à filha do irmão, seu ipantuhum ("pai do

meu ipantu"). A tese de Ladeira, vale dizer, é que troca de nomes e troca de cônjuges

“caminham juntos”. Ou seja, se o nome do filho de sexo oposto ao de Ego é determinado

desde a infância pela relação ipantumetxi-ipantuhum, o nome do filho do mesmo sexo só

será conhecido quando do casamento do próprio Ego: no caso do filho de Ego masculino,

seu nome virá do irmão da esposa, e no caso da filha de Ego feminino, seu nome será dado

pela irmã do marido (Idem: 24). Isso introduz uma nuance que põe em relevo o fato de que

o dualismo Timbira não é tão rígido, pois os nomes pessoais são também assunto da

periferia e das mulheres e não somente do domínio masculino cuja efetivação se dá no

pátio, o que é confirmado pelo mito das metades sazonais, segundo o qual o saber ligado ao

funcionamento do sistema de nominação é transmitido pelas mulheres.

É certo que nas casas os atores crescem e lá devem morrer. Assim, a linearidade

temporal que preside o desenvolvimento dos seres está vinculada à periferia, pois, como

argumenta Geertz (1989: 255), a concepção de tempo de um grupo humano está

estreitamente relacionada à maneira como vê o envelhecimento biológico. Esse caráter do

tempo impõe a descontinuidade irrevogável criada por Lua através da morte. Mas a

temporalidade lenta de Lua é também responsável pelo movimento da vida. Foi ele,

Pudleré, que instaurou o tempo da paciência que deve ser dispensada àqueles que passam

por momentos delicados nos quais suas vidas estão em risco. Dele deriva o ritmo

cadenciado do crescimento dos animais, das plantas e dos seres humanos que, se

pacientemente cuidados, na época apropriada “nascerão” para a vida cerimonial. Ademais,

sem a periferia e sem mulheres, elementos ligados a Lua, não haveria atores para vestir as

fantasias dos personagens rituais.

A alternância também instaura a descontinuidade, mas com um qualificativo tal que

pressupõe a volta do elemento complementar. Assim, o Sol é associado ao ritmo mais

acelerado próprio das práticas rituais, ao renascimento dos personagens, que não morrem e

sim oscilam entre Keti e Ipantu, numa alternância que garante, a seu turno, a continuidade

da vida cerimonial. Alternância e linearidade são dois modos complementares do

movimento criativo do tempo. Não nos esqueçamos que quem transimitu o conhecimento

do tempo como alternância foi uma personagem que sentiu no próprio corpo os efeitos do

Page 92: Noção de tempo entre os índios Krahô

seu fluir e refluir linear: a velha senhora.

Sol, energia vital e a pessoa

Neste ponto, é interessante evocar outras equivalências. Já vimos que o Leste é

associado aos vivos, ao sol, ao pátio, ao alto e o Oeste, aos mortos, à lua, à periferia e ao

baixo. Pois bem. Na casa fica a cama onde o homem repousa seu corpo na imobilidade do

sono. Quando jovens, ele e sua mulher têm a cama junto ao teto da casa; na maturidade, ela

está a uma altura relativamente baixa. "A altura da cama vai diminuindo com o tempo", diz

Melatti (1978: 358). Quando um deles morre, são retiradas as forquilhas de sustentação de

maneira que a cama receba o corpo sem alma junto ao chão. Depois, este corpo é levado

para o cemitério, localizado a Oeste. Não é outro senão o tempo linear que faz a pessoa, do

vigor da juventude, "descer" à decrepitude da velhice. Os velhos, aliás, que passam a maior

parte do seu tempo dentro de casa, estão no limiar entre o mundo dos vivos e a "aldeia dos

mortos", tanto que os tabus alimentares sobre eles praticamente deixam de existir, inclusive

aqueles referentes à comida que é oferecida às almas dos mortos (Melatti, idem: 73). Se,

enquanto corpo, a pessoa se desloca para baixo, para o Oeste, como personagem ritual cujo

palco maior é o pátio, o deslocamento é para cima, no sentido do Leste. Nesse sentido, diz

Melatti (Idem: 358) que, "como membro de uma classe de idade, ele é um personagem

ritual que se desloca sempre para o sul, que equivale a se dirigir para cima".

Como personagens das metades de classes de idade ligadas à alternância nascente -

poente, as pessoas vão se dirigindo no sentido do "pé-do-céu", o Leste. Sobre esta região

do cosmos, sobre a qual já falei algo, diz o mito que

...os índios vinha morrendo de um a um dos bichos ferozes que pegavam os índiosque estavam procurando o dia, durante as viagens. (...) E dando direção que rumopodia viajar, na direção que o morcego guiava. Até que saiu na claridade do dia. Equando ele voltava [o herói homem-morcego], algum perguntava: 'Que tal, achouo dia por aí?' E ele dizia que ainda não alcançava. Até que foi na última viagemque ele foi, ele saiu no dia. E voltou-se e disseram po povo que ia acompanhandoele: 'Ah! meu amigo, nóis estamos na claridade, aqui ninguém morre mais' (...) 140

Dirigindo-se para a claridade do Leste, onde o sol nasce a cada dia para renovar as energias

vitais do conjunto de seres que habitam o mundo, os personagens rituais não morrem: dão

continuidade à sociedade dos vivos, tornando-a eterna através dos movimentos de

140 Mito da Grande Escuridão, conforme transcrição de Schultz (1950: 159).

Page 93: Noção de tempo entre os índios Krahô

alternância do tempo. Lembremos que de Leste vem o vento, alimento primeiro da vida e

do movimento, pois, como lembra Carneiro da Cunha (1978: 10), para os Krahô, "respirar

é por excelência o ato vital. O vento (Khwôk) invade a garganta, chega ao coração (Itotok)

e torna a sair: este sopro vital (...) controla todos os movimentos, os sentidos e o

pensamento"141.

O ciclo de vida de uma pessoa, do nascimento à morte, se assemelha ao ciclo

cotidiano do Sol, onde "o Leste é a fonte do fluxo vital que percorre a terra e que se

arrefece ao chegar ao país dos mortos [Oeste]" (Chiara, 1978: 53). Essa divisão do cosmos

inscreve-se no corpo humano, fazendo com que a parte acima da cintura seja identificada

com o Leste e a parte de baixo, com o Oeste (Chiara, idem: 54). O morto, contrariamente

ao que poderia se pensar, deve ser enterrado com a cabeça voltada para o oriente, para que

seu karõ (alma) caminhe corretamente até a aldeia dos mortos onde viverá durante algum

tempo entre os consangüíneos já idos. Os jiraus onde dormem os vivos, pelo menos em

teoria, também devem estar voltados com a cabeça para o Leste, o nascente, pois Pud, Sol,

é que alimenta a sabedoria (Chiara, 1978: 54; Carneiro da Cunha, 1978: 25). Diz um

informante de Manuela Carneiro da Cunha que a cabeça deve estar voltada para o Leste

"pra alma ficar sabida, pra subir e atravessar na água. Se dormir com cabeça para oeste,

fica doente e morre" (Idem). No mito das metades, a velha heroína conseguiu encontrar o

caminho de volta para a aldeia graças à orientação do Dia, em estado nascente (vide

acima). Assim, parece haver uma conexão entre a linha que leva dos pesados resguardos

que cercam o recém-nascido ao afrouxamento quase total das proibições alimentares na

velhice e a linha que vai da plenitude de energias do nascente ao seu arrefecimento

praticamente completo no poente. Lembrando mais uma vez Carneiro da Cunha (Idem: 26),

o corpo é o protótipo do macrocosmos.

Os ritos também “fazem” a pessoa

Os ritos de iniciação, sabemos, concorrem para a construção da pessoa. Eles

promovem a transformação dos jovens imaturos em adultos plenos, traduzindo a

maturidade biológica como a maturidade social. Contudo, não poderei entrar, neste

trabalho, na discussão dos ritos de iniciação Krahô. Nem tanto porque eles não são mais,

hoje em dia, realizados numa determinada ordem de maneira a formarem um ciclo

(Melatti, 1978: 203), ao contrário do que ocorre entre os Canela-Ramkokamekrá

141 Cf. mito de Hartãt, em anexo.

Page 94: Noção de tempo entre os índios Krahô

(Nimuendajú, 1946: 170 ss; Lave, 1979), e sim porque são, cada um, de uma extrema

complexidade: vários são os pares de metades que tomam parte, vários são os personagens

rituais ligados a nomes pessoais e várias são as referências aos níveis cósmicos da visão

Krahô do universo. Um só rito seria tema de toda uma dissertação! Contento-me, aqui, a

sublinhar que os ritos de iniciação Krahô são mais uma maneira que a sociedade encontrou

para construir a temporalidade, desta feita sobre a pessoa humana. Em todos os ritos de

iniciação, cantos e danças são componentes imprescindíveis, ocorrendo nos momentos de

transição, nascente e poente; em alguns eles são realizados também à noite e de madrugada

(Melatti, 1978: 210-46). Além disso, vale lembrar, estes rituais ocorrem em momentos de

transição no ciclo de vida da pessoa, quando ela está entre a condição de jovem e de

adulto. Os jovens só deixam a reclusão - marginalização espacial que reflete a

marginalização social - quando nasce seu primeiro filho, quando então entra num novo

estágio de idade e está definitivamente pronto para assumir sua condição de personagem no

palco da vida ritual (Melatti, 1978: 203).

Construir a pessoa, por meio dos rituais de iniciação, por vezes demanda uma

interferência direta sobre o fluxo linear do tempo, de maneira a fazê-lo "correr" mais

depressa. Isso é evidente do rito de Ikhréré e no Khetwaye, onde os reclusos são

constantemente alimentados e banhados por suas parentas consangüíneas para crescerem

mais rápido142 (Melatti, idem: 204-10; 274-302). A água é o elemento que, para os Timbira,

acelera o crescimento, que faz amadurecer rapidamente, ao contrário do fogo que opera

separações irreversíveis, como aponta Carneiro da Cunha (1986: 33-4). Esta autora, aliás,

demonstrou a existência desse uso ritual da água, no contexto do movimento messiânico

Canela. Contudo, as mulheres mais velhas aqui, cumprindo o papel de fazer o tempo correr

mais rápido, põem em movimento uma competência ligada à temporalidade de Sol. Assim,

através dos rituais de iniciação, a comunidade interfere na linearidade do tempo linear para

fazer os futuros homens aprenderem mais rapidademente que o mundo é feito de

alternâncias, de dualismos. Tanto é verdade que a principal característica destes ritos,

conforme sugere Melatti (Ib. idem: 298; 357), é que eles representam a ida dos iniciandos

aos domínios celeste, subterrâneo ou aquático e seu retorno ao plano onde habita

comunidade dos vivos. Ida e retorno, como fazem Sol e Lua em seu eterno movimento.

* * * * * * *

142 O rito de Ikhréré não é mais realizado.

Page 95: Noção de tempo entre os índios Krahô

Vemos, no que foi dito, que os personagens rituais expressam uma luta contra a

fuga linear do tempo, contra sua passagem: eles são a afirmação da perenidade do social

contra o biológico que evanesce. Aqui, então, vislumbramos o dualismo na noção de tempo

sobre o qual falávamos nos outros capítulos: um tempo visto e experimentado como

alternância que produz continuidade da vida cerimonial através das metades e dos

personagens a elas vinculados que nascem e renascem nos rituais contra um tempo visto e

vivido como linearidade, como um fluxo que traz os atores mas que os leva para sempre.

Este é o dualismo de que nos fala Lévi-Strauss (1970 [1956]: 170-71) entre "continuidade"

e "descontinuidade": os personagens e a sociedade “ritual” continuam através do nome,

enquanto que entre os atores a morte introduz-se como elemento de descontinuidade. Mas

continuidade e descontinuidade, estando ligados à categoria de tempo, não devem ser vistas

com rigidez, pois a continuidade das atividades rituais depende das casas, das “unidades

biológicas” pois delas é que saem os atores.

.

Page 96: Noção de tempo entre os índios Krahô

CONCLUSÃO

Antes de mais nada, deve ser dito que pretendo realizar no doutorado uma

etnografia de fôlego que me permita superar algumas das limitações desta dissertação. A

falta de uma longa experiência de campo entre os Krahô impossibilitou-me dar

informações mais detalhadas e mais vívidas. Isto se percebe, por exemplo, quando discuto

os cantos para o quais Anthony Seeger (1980: 86) sugere uma "etnografia da execução

musical". Nesse sentido, pretendo pesquisar mais sobre as canções Krahô, que são tão

importantes na cosmologia e na vida ritual. Outra questão que continua me intrigando é a

correspondência entre a noção de “força vital” de que nos fala Carneiro da Cunha (1978:

104-11) e a de “fluxo vital” que aparece em Chiara (1978: 53). O sangue é a força que

sustenta os corpos dos vivos e que, portanto, diminui com a idade; e “o Leste é a fonte do

fluxo vital que percorre a terra e que arrefece ao chegar ao país dos mortos [Oeste]"

(Chiara, 1978: 53). Como correlacionar estas duas observações, creio que somente uma

etnografia de "primeira mão" poderá responder. Ademais, por que tantos tabus alimentares

envolvendo o nascimento (início da vida) e por que os velhos (fim da vida) estão livres

deles? Esta é uma das muitas perguntas que me acompanharão, após a conclusão deste

trabalho, para a qual buscarei respostas.

Ao redigir esta dissertação, procurei enfatizar a “especificidade complexa" (Geertz,

1989: 34) da temporalidade Krahô como uma forma outra de se conceber e vivenciar o que

chamamos tempo, como sua noção implica num complexo sistema de classificação e

conhecimento dos mundos “natural” e social e como isto orienta as práticas sociais. Se sua

concepção de tempo guarda alguma distância da nossa, isto se deve antes de tudo ao fato de

ela estar ancorada num outro universo simbólico. Ademais, como sustentei desde o início,

a temporalidade é um importante índice de diferenciação sociocultural. Busquei, nesse

sentido, realçar a importância tanto das alternâncias quanto da linearidade do tempo no

pensamento Krahô. Por isto foi que apresentei primeiro os ciclos míticos nos quais

podemos perceber o dualismo na noção de tempo desta sociedade. Há um primeiro

dualismo referente à natureza do tempo em geral: alternância versus linearidade; e outro,

mais particular, diz respeito à própria alternância: nascente vs. poente, dia vs. noite, estação

seca vs. chuvosa. Dos mitos, partimos para ver como este dualismo complementar permeia

desde as práticas que “fazem” o ciclo cotidiano àquelas do ciclo anual e da noção de

Page 97: Noção de tempo entre os índios Krahô

pessoa, observando, ao longo do caminho, o quão centrais são os rituais nesta configuração

concebida e vivenciada do tempo.

* * * * * * *

Esta “etnografia indireta” me permitiu tirar algumas conclusões.

A representação dominante do tempo é elaborada no interior das sociedades por

grupos sociais específicos na condição de dominantes na produção simbólica, como sugere

Roger Sue (1995: 125). O simbolismo temporal não é, pois, totalmente aleatório. A

primazia de uma prática eminentemente masculina, a dos rituais, enquanto pivô dos tempos

sociais dos Krahô, produz uma concepção da sociedade humana como sendo antes de tudo

uma sociedade cerimonial. Isto não diminui a força das práticas rituais como "fazedoras"

do tempo. São elas, com seus cantos e danças, que configuram a temporalidade Krahô; são

eles que assinalam as alternâncias nos ciclos diário e anual e nos ciclos vitais da pessoa,

para os quais não bastam as mudanças no clima, na temperatura ou na biologia.

Como bem demonstrou Norbert Elias (1995), as noções de “tempo” e de “natureza”

de uma sociedade estão interligadas. Assim, os conceitos Wakmeye e Katamye servem ao

propósito da bipartição tanto da natureza quanto do tempo na cosmologia dos índios

Krahô. Se todos os seres e coisas do universo podem ser agrupados em duas grandes

categorias, então o aspecto principal do tempo é visto como sendo o da oscilação, da

alternância entre dois períodos com qualidades distintas. Mas vimos o quão importante é a

linearidade na concepção Krahô do tempo, pois é ela que opera nos ciclos vitais de todos

os seres. É justamente o duplo movimento da alternância e do escoar que faz a dinâmica

complexa da vida. Se não fosse assim, por que então figuraria no mito uma mulher velha

como sendo a mestra da temporalidade?

A ideologia e a práxis Krahô parecem viver um paradoxo. A afirmação de que a

sociedade se faz pelas, e para as, atividades preponderantemente masculinas do

cerimonialismo contrasta com o fato de que as mulheres são reconhecidas como parceiras

ativas no processo de criação dos novos membros, dos “atores”, da sociedade. Contrasta,

além disso, com o fato de que são elas que protagonizam a trama que envolve as escolhas

Page 98: Noção de tempo entre os índios Krahô

de nomes pessoais e de nominadores, uma prova, aliás, de que a vida social é bastante rica

também na periferia. Não é somente no ritual que as pessoas põem em prática a capacidade

humana da sociabilidade. No caminho circular que passa diante das casas, o Krïkapé, são

realizados diversas procissões rituais além de cantos e danças; na periferia estão plantadas

as casas de wïtï, uma instituição central no sistema social Krahô.

Em suma, na periferia o movimento da vida também acontece, da vida também feita

de cuidados com o corpo e de afetividades que cercam os núcleos domésticos; na periferia

a mulher prepara os alimentos manejando o fogo que, na sua cozinha, é um “fogo criador”

como já disse Lévi-Strauss (1991: 184). O movimento da vida social que tem lugar no

círculo das casas é mais lento, mais refletido e mais maduro, como é próprio da

temporalidade de Lua, astro-herói associado às mulheres. As mulheres e a vida social que

gira em torno delas oferece o contraponto temporal ao ritmo acelerado das atividades

masculinas do ritual. A temporalidade apressada, a rapidez de Sol (Pud), que faz os seres

crescerem mais rapidamente como asseguram os mitos, é aquela da qual as práticas rituais

procuram se aproximar. Os ritmos de Pud, por outro lado, se afastam do que podem os

seres humanos nos seus afazeres cotidianos. Tanto assim que é Lua (Pudleré), insistindo

em seus ritmos mais dilatados, que dota o mundo criado pelos dois astros-heróis de uma

temporalidade mais humana. Mas isto ainda não explica o por que da velha senhora.

Talvez cheguemos perto de uma resposta se lembrarmos dos mitos que vimos

acima, nos quais a mulher aparece como elemento dinamizador. No mito de Túlkrén, o

homem sai da terra e vai ao céu para aprender; ele parte de uma condição original que é a

ignorância. Nos mitos em que a personagem central é feminina, dá-se o inverso. Assim, os

Krahô devem tudo que sabem acerca da agricultura e da culinária a uma mulher, Katxerê,

que desceu do céu para ensinar. Também devem tudo o que conhecem acerca das metades

sazonais e do tempo à velha senhora, que foi ao “mato” e de lá voltou para transmitir tudo

o que aprendeu. Katxerê e a velha senhora são heroínas que põem em questão a associação

das mulheres com a “natureza” e os homems com a “cultura”, pois todo e qualquer saber é

patrimônio da cultura.

Voltando ao ponto que interessa, ou seja, o da velha senhora como dona do saber

acerca do tempo, o primeiro dado a ser considerado é que, nesta altura da vida, a mulher

está desincumbida das atividades ligadas à procriação e, assim, não está presa à casa. Por

isso, ela pôde ir ao mato, onde se encontrou com o Dia e a Noite. Além disso, nesta idade a

pessoa sente em seu próprio corpo a experiência do longo fluir do tempo: somente quem já

viveu tanto pode ter algo a ensinar sobre as qualidades do tempo. Ademais, se o tempo é

Page 99: Noção de tempo entre os índios Krahô

criativo, é uma velha senhora, com suas palavras e gestos, que ajuda a criá-lo. A mulher

tem na periferia o seu domínio da atuação. O círculo das casas vive segundo o tempo de

Lua, um tempo mais dilatado, mais ponderado. Na esfera das casas a vida é cuidada com

atenção, com paciência; frutos, ações e idéias amadurecem conforme um movimento

temporal mais demorado. Somente uma termporalidade mais lenta favorece a reflexão e a

maturidade, permitindo o aprendizado dos ritmos sociais e “naturais” de alternância e de

linearidade.

Neste ponto, sugiro uma mudança algo ousada de perspectiva no que se refere à

constante reiteração do dualismo Jê-Timbira entre “pátio” e “periferia”. Se tomarmos o

conceito de “abrangência dos contrários” de Dumont (apud. Ramos, 1990: 162), veremos

que, de fato, a “periferia” passa a ser o círculo abrangente que engloba o pátio . A

associação do pátio como centro da vida social deve ser posta em suspenso ante tudo o que

foi dito da “periferia” como o lugar de inclusão vital, sem o qual o palco das práticas rituais

perderia todo seu movimento. Das casas saem os homens para as reuniões do pátio, para

elas retornando; nas casas os corpos das pessoas emergem para a vida, nelas são cuidados e

a elas retornam quando alcançam o ponto final. No círculo das casas se dão os embates

acerca da escolha dos nomes e nominadores, senhas de acesso ao mundo ritual. Em suma,

talvez as noções de “centro” e “periferia” não sejam as mais produtivas para dar conta da

dinâmica social Krahô.

Assim, vemos que a figura da velha senhora apresenta nuances críticas do dualismo

Krahô. Ela é que teria lhes ensinado a organização em metades sazonais e o simbolismo de

alternância associado a elas: dia-noite, seca-chuva. Maybury-Lewis (1979: 237) aponta

como solução Timbira para as ambigüidades da organização dualista a oposição da

formalidade da vida ritual do pátio contra a informalidade dos laços de parentesco que se

tecem no círculo das casas. Porém, isto só faz as ambigüidades ficarem mais fortes. Apesar

de o pátio ser o lugar da vida ritual, dos grupos duais e do homem, é uma mulher velha que

aparece no mito como sendo a mestra do dualismo. Ambigüidades e paradoxos aparecem

ainda no rito de iniciação do Ikhréré. Nele, são as mulheres velhas as responsáveis por

“fazer” o tempo correr mais rápido por meio de um ato ritual. Além de corroborar a

hipótese de que as mulheres são como que guardiãs do conhecimento acerca dos

movimentos do tempo, traz o paradoxo da inversão das equivalências. Ou seja, neste rito,

as mulheres aparecem associadas à compressão do tempo, à pressa teatral, própria de Sol, e

não ao fluir demorado da temporalidade de Lua.

Contudo, somente uma pesquisa de campo seguindo a temporalidade demorada de

Page 100: Noção de tempo entre os índios Krahô

Lua e com a luz sábia de Sol poderei chegar a um entendimento do dualismo Krahô que

equacione estas ambigüidades e paradoxos.

Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (Op. cit.: 14) afirmam que a corporalidade e

a construção da pessoa foram as formas encontradas pelas sociedades indígenas das Terras

Baixas de "negar o tempo", o tempo que encadeia gerações e estabelece vínculos de

continuidade entre vivos e mortos. Para mim, a negação da morte e a conseqüente

afirmação da vida e dos vivos estão, pelo menos entre os Krahô, na ênfase ritual e

cosmológica que eles põem sobre a natureza dinâmica do tempo como alternância e como

linearidade porque são estas duas forças juntas que produzem a vida no sentido pleno da

palavra: a vida que não vê fronteiras entre “natureza” e cultura. Foi o que procurei

demonstrar.

Page 101: Noção de tempo entre os índios Krahô

ANEXO

Hartãt e o machado Khoiré 143

Hartãt convidou os rapazes para caçar lá no lugar em que ele nasceu. Mandou asmulheres fazerem a comida. Passaram três dias trabalhando na comida. Fizerampuba seca, enxugando a massa. Mandou a rapaziada por a comida bem adiante,cerca de três léguas. Fizeram três caminhadas com a comida. Então saíram todos, sóos homens, ficando as mulheres. Arrancharam lá onde tinham posto a comida edormiram lá. De manhã foram por a comida mais adiante: três viagens novamente.Foram outra vez e arrancharam.

Era o lugar onde iam matar muito rato, naqueles locos (buracos) de pau (árvore):pequizeiro, puçá etc. Hartãt mandou-os dar uma caçada. Saíram todos para a caçadae voltaram com os cofos cheios de ratos, porque era muito povo e só num loco de pause tirava duzentos ratos. Fizeram um monte de ratos. Chegaram todos. Hartãt falouaos rapazes: "Agora, não presta assar no moquém; vocês vão fazer um grandeborralho para assar." Cada um fez a sua fogueira, a sua cinza. Tiraram os ratos doborralho. Todos estavam comendo rato. E um dizia para o outro: "É, é verdade, seusogro diz a verdade, só num dia caçamos muito rato." Secaram os ratos no fogo,puseram em cofos e colocaram numa árvore.

Caminharam de novo. A uma légua arrancharam. Hartãt falou à rapaziada: "Agoravocês vão tirar abelha; aqui é lugar de abelha, não sei se já foram embora, mas aquié lugar de abelha." Eles foram. Só tiraram abelhas nos cupins (Rorhahakti). Tirarammel de toda abelha: tiúba, tubi manso, tubi brabo, mandaçaia (tataíra não, porque éfogo). Chegaram com muito mel. Comeram. Esse não deu jeito para guardar.Quando saíram, derramaram tudo.

De manhã, sairam de novo. Caminharam cerca de uma légua e arrancharam. Hartãtfalou: "Agora, aqui é que eu estava contando; aí vocês vão matar paca, este é que é oribeirão, lugar de paca, podem caçar, não sei se ainda estão aí, não sei se foramembora." Quando foi de tarde, cada um chegou com um feixe de pacas: cinco pacas,dez pacas. Cada um fez moquém. Assaram as pacas. Quando estavam assadas,tiraram as pacas do moquém. Hartãt não queria pacas velhas, só queria comernovinhas. Arranjou umas três pacas novinhas, molinhas e comeu. De manhã secaramas pacas como tinham secado os ratos: em jirau. Passaram um dia nesse lugar.Quando acabaram de secar, arrumaram e guardaram as pacas.

Saíram. Caminharam uma légua. Aí estavam duas serras (dois morros). Hartãt falou:"Agora vocês vão lá naquele loco de pedra; aí é lugar de morcego, não sei se aindaestão lá. Quebraram palha. Encheram o loco de pedra e puseram fogo. Os morcegos,muitos, cairam. Era um monte de morcegos. Todos encheram os cofos e voltarampara o rancho. Fizeram outra vez cinza. Assaram os morcegos. Tiraram e comeram.De manhã arrumaram e guardaram.

143 Narrado por Pedro Penõ, em 17-11-63, a Julio Cezar Melatti, que me autorizou publicá-lo em 03 defevereiro de 2004.

Page 102: Noção de tempo entre os índios Krahô

Caminharam uma légua e arrancharam outra vez. Estava lá uma carreira de porco.Um dos rapazes falou: "Oh meu tio, vamos matar estes mesmo!" "Não, vocês nãoconhecem; se vocês acharem um que corta mesmo, vocês morrem, porco é valente!"Hartãt foi reparar: "Não, não é este não." Depois reparou outro e disse: "É estemesmo." E avisou: "Aqueles acolá são mesmo porcos." E a rapaziada foi no rumodos porcos. Mataram um bocado. Chegaram com os porcos. Hartãt disse: "É dessesque estou falando, desses que estou contando; vocês não vão matar muitos paradestruir não, porque um dia viremos outra vez aqui." Então fizeram moquém outravez. Assaram. Quando deu hora, tiraram do moquém e todos comeram. Hartãt sócomia fígado de porco. Passaram um dia lá naquele lugar, secando porcos.Arrumaram outra vez, guardaram no lugar. Saíram.

Caminharam uma légua e encontraram uma mata. Arrancharam. Hartãt disse:"Agora, aqui é lugar de anta, bandeira, caititu. Podem ir caçar por aí. Não sei seainda acham. Quando dá fé, já foram embora." Deram nas antas e mataram umascinco antas naquele mato mesmo. Levaram para o rancho e fizeram moquém.Moquearam. Quando estavam assadas, tiraram do moquém. Comeram. Depoissecaram. Passaram uns dois dias lá e aí saíram.

Cerca de uma légua arrancharam outra vez. Hartãt disse: "Aqui é lugar de canastra,lugar de tatu, de peba; não sei se saíram; quando dá fé, foram embora." Acharamtatu, canastra, quati, peba. Caçaram dois dias naquele lugar e saíram outra vez.

Arrancharam outra vez, distante uma légua. Hartãt disse: "Agora aqui é outro lugar.É lugar de onça, capivara, suçuapara, veado. Podem caçar por aqui. Não sei se essesbichos já foram embora." Foram caçar. Mataram duas onças, dez capivaras - emuma lagoa -, três suçuaparas e quatro veados do campo. Chegaram ao rancho.Fizeram moquém e moquearam. Assaram veado, suçuapara, onça - diz-se quecomiam onça -, capivara ... Tiraram do moquém e comeram. Hartãt pegou uma"mão" de onça e com a unha triscava (tocava, arranhava) nos braços da rapaziada,rasgando só um pouquinho, passando a cinza, não sei de que, porque os antigos,quando matavam onça, faziam assim pr'o mó de criar coragem ao lutar com oinimigo.

Saíram de novo. Caminharam uma légua e já chegaram a um barro que grudava osbichos. Hartãt mostrou ao genro dele: "Oh, está aqui. Isso é que eu estou contando.Se este barro pegar você, se você não escapar, eu volto daqui mesmo, porque eu estouna lembrança da velha (esposa), não vou demorar mais." Khwök, genro de Hartãt,virou passarinhozinho, voou, foi com aquelas cantiguinhas e devagarzinho pousou,andou devagarzinho, deu a volta em torno da lagoa e voou. E foi ficar no seco e virougente de novo e falou ao sogro: "Eh, meu sogro, é só os bichos esta coisa pega; euacho que vou voltar e ainda ver sua filha com esta cara!" O sogro só escutou, semresponder.

Saíram e foram ao Krouapok (pé de buriti seco, furado por dentro). O pé de buritiestava com fogo dentro, do qual só aparecia uma pontinha. Quando algum bicho deasa ia pousar nele, o fogo sapecava a asa. Já havia muito bicho de asa debaixo dessepé de buriti. Hartãt falou: "Agora vai acabar com vocês, eu quero voltar daquimesmo, que eu já estou na lembrança de minha velha." O genro não disse nada.Virou arara verde. Ficou no olho de uma árvore. Depois foi gritando com grito de

Page 103: Noção de tempo entre os índios Krahô

arara e pousou no pé de buriti, mas só fez bater nele e voltar. O fogo saiu danado,mas tornou a ir abaixando, até afundar, só ficando mesmo a pontinha de fora. E ele,de volta outra vez, e só fez bater na beirada e virou para acolá, indo assentar nochão. E disse: "Oh meu sogro, acho que eu não vou me acabar por aqui não, achoque ainda vou aparecer com esta cara para ver sua filha." Hartãt só fez escutar.

Viajaram de novo. Chegaram à beira de um rio. Lá estava um jacaré com a bocaaberta na praia. Hartãt falou ao genro: "Este vai engolir você, eu quero voltar daquimesmo, sobre este é que eu estava contando." O genro não falou nada. Foi ficar [não,palavra evidentemente a mais] longe e virou Iunré (beija-flor). O jacaré pegava todosos bichos de asa, fechando apenas a boca. Foi no rumo do jacaré. Chegou perto daboca do jacaré, e passou de raspão, e o jacaré bateu o queixo. Mas Khwök ficou láno galho da árvore. Voltou outra vez, ficou perto dele e saiu e pousou no seco. Edisse: "Eh meu sogro, acho que não me vou acabar aqui não; ainda vou aparecerpara ver sua filha com esta cara."

Viajaram outra vez. Chegaram a uma aranha. A aranha estava de boca aberta. Hartãt disse: "Está aqui, esta é que eu estou contando, se esta pegar você, eu volto daquimesmo; eu já estou com saudade." Khwök virou Iunré, foi chegando devargazinho epassou de raspão. Voltou e passou outra vez.

Caminharam outra vez. Chegaram à porta do vento. A casa do vento é uma casa boa,bem tapada e a boca é a porta. E o vento vai devagarzinho e o lugar por onde sai ovento forte já é um caminho liso. O filho de Hartãt, cunhado de Khwök, pediu a estepara espantar o vento também. Khwök respondeu: "Não, cunhado, você não vai não;vou apenas eu mesmo." "Eu vou." "Não cunhado, você não vai não; porque este ventoarriba você e atira longe." O cunhado teimou. Khwök respondeu: "Está bem, se vocêvai morrer com seu gosto, não tem nada, eu não estou mandando; é você mesmo quequer." O cunhado dele ficou no limpo do vento e gritou para o vento. O vento zooumesmo e quase o derrubava, mas, assim mesmo ele conseguiu sair. "Eh, você vaimorrer mesmo", disse Khïok e acrescentou: "Cunhado, espere aí, você vai fazerassim: eu vou para você ver, para pegar meu jeito, senão você morre! Khwök gritouuma vez e saiu. O vento forte saiu, mas só mexeu com os cabelos dele. Khwök disse:"Olhe, é assim; não fique no limpo não; fique na beirada." Mas o cunhado não seimportou e gritou para o vento lá no meio do limpo. E o vento veio e arribou. Ocunhado de Khwök sumiu e não apareceu mais. Khwök ficou pensando, comsaudade do cunhado dele. Hartãt falou: "Meu filho morreu por gosto dele mesmo;não é nada, pois não fui eu quem mandou, nem o cunhado dele mandou. Agora nósvamos chegar lá perto da porta do vento para você ver." Subiram ao alto e viram oKarõ ("alma") daquele que o vento tinha levado, lá na porta do vento. Chamaram-no,sacudiam a mão, mas ele não se importava, pois Karõ não se importa mais. DisseHartãt àqueles que queriam chamar seu filho: "Não, aquele não vem mais não; éKarõ, não está mais se importando não. Vamos embora."

Já iam de volta. Mas não retornaram pelo caminho por onde vieram. Entraram emoutro rumo. Chegaram primeiro ao lugar de uma cobra muito grande, da grossura deuma casa, com cem metros de comprimento. O pessoal rodou em torno da cobra,quando ela estava dormindo. A cobra acordou e batia com o rabo. Era noite. Aquelesque não sabem e passam pela cabeça da cobra, ela engole todos de uma vez. Hartãt[acordo, ilegível] e disse: "Olhe, pessoal, acendam fogo; por onde ela está batendonós vamos sair." Vieram todos acompanhando Hartãt, que escutava o rumo onde

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estava batendo. E saíram todos. Nenhum morreu.

Caminharam um pedação, três léguas mais ou menos, de noite e dormiram lá.Caminharam de novo. Chegaram a uma casa de Khëiré (machado de pedra). Umrapaz que sabia cantar disse que queria ganhar um. Ficaram aí até o anoitecer.Hartãt disse: "Bem, agora eu vou falar com Khëiré; talvez ele dê um! Ele pediu e oKhëiré disse que dava, mas só de madrugada. Hartãt voltou para a rapaziada econtou. Deitaram. Khëiré cantou muito, até de madrugada. Quando o dia já vinhaclareando, Hartãt caminhou para lá. Chegou lá; ele lhe entregou o Khëiré e pediu aHartãt: "Oh, vou recomendar a você: este não é para dormir calado, não é paraaquietar, é para cantar dia e noite, porque esse não é para guardar quieto não; elequer refrescar o couro." Hartãt voltou com o Khëiré. Chegou e deu-o para o rapaz. Orapaz disse: "Sou eu quem vai ficar com ele." Ele deu.

Quando o sol saiu caminharam o dia inteiro e arrancharam para dormir. Na boca danoite o rapaz queria cantar logo com o Khëiré. Começou a cantar e o guariba gritoualto: "Você não sabe cantar, você não escuta a cantiga!" Hartãt falou: "Estáescutando? Eu estava bem dizendo que você não cantasse logo com esse Khëiré; sóquando chegar lá na aldeia. O lugar aqui é outro. Todos os bichos respondem comogente mesmo." O rapaz aquietou e não cantou mais.

Quando amanheceu, caminharam outra vez. Passaram o dia todinho caminhando edormiram. Com três dias a fome já estava apertando o pessoal. Chegaram a um matoonde havia muito inhame do mato. Inhame bom e inhame ruim misturados. Dois nãoesperaram por Hartãt Hartãt falou: "Vocês esperem, porque está misturado; há uminhame que, se vocês comerem, virarão mulher." Mas dois não se importaram:acenderam fogo, arrancaram inhame, assaram e comeram. E os que esperaramHartãt foram arrancar inhame bom, assaram e comeram. Escureceu. Fizeram cama.Todos deitaram, dormiram. Os dois que não esperaram por Hartãt estavamdormindo. Ù meia-noite, quiseram urinar, levantaram-se. E já tinham peito; e tudo oque mulher tem eles já tinham. Viraram mulher. Quando amanheceu, todos os viram,olhando mesmo: "Vocês não tiveram paciência; e agora, quando chegarem, comovão fazer com as mulheres? Vão morar duas mulheres numa casa?"

De manhã saíram todos, inclusive as duas mulheres. Depois de três dias chegaramperto da aldeia. Mandaram portador para avisar as mulheres para fazer comida. Amulher que soube que o marido tinha voltado fêmea não achou bom. Fizeram tora,correram, chegaram à aldeia. Os dois que viraram mulher, vieram devagar, comvergonha. As mulheres despacharam os dois.

[No final o narrador assegura que Hartãt era de outra aldeia, mas era Krahô, e aaldeia em que estava também era Krahô].

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