nº13 - gaivotas

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Colaboração www.fluirperene.com Fluir Perene Sempre me fascinaram as gaivotas. Não tanto pelo seu andar que por vezes apresenta ar meio desengonçado. Antes pelas suas cores, pela sua forma. Sobretudo pelo seu sábio planar assombroso com que, de forma hábil, aproveitam a brisa e os ventos para – quase sem esforço, quase sem mexerem asas – subirem em altura até serem quase pontos no infinito, e com elas nos elevarem os olhos no azul denso. Ver-vos voar no voo planado e lento de quem segura o vento e o leva em suas asas. O equilíbrio instável da vida na hora da decisão e do futuro. O corpo, quedo e parado, goza o sabor do vento. Apenas de vez em vez leve torção do pescoço ou o flectir ligeiro das asas largas. Tudo fácil, exacto, metódico; tudo executado no instante certo e preciso. E a olhar-vos me fiquei e fui nas asas que não tenho, mas me oferecestes na imaginação que me toma, eleva. E o corpo, em ascese, levita nas asas que me dais e me transportam ao azul de outro sul. (do Prefácio) JOSÉ RIBEIRO FERREIRA FOTOGRAFIAS DE INÊS CEROL Fluir Perene Colecção GAIVOTAS José Ribeiro Ferreira, nascido em Santo Tirso, em 1941, é profes- sor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Inves- tigador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da mes- ma Universidade. Tem mais de centena e meia de trabalhos — entre livros, artigos em revistas e enciclopédias — publicados em Portugal e no estrangeiro, com realce para Hélade e Helenos. I – Génese e Evolução de um Conceito (1983, 2 1993); A Democracia na Grécia Antiga (1990); A Grécia Antiga. Sociedade e Política (1992); Civilizações Clássicas I – Grécia (1996); Manuel Alegre: Ulisses ou os Caminhos da Eterna Busca (2001); Os Sons e os Silêncios. A memória, a culpa e a valsa (viagem a Berlim, Viena e Salzburgo) (2005. 2ª edikção revista e aumentada, 2008); Mitos das Origens. Rios e Raízes (2008). No domínio da poesia, publicou Os Olhos no Presente (1982, com 2ª edição em 1998), Pesa o Momento a Eternidade (1984), Veleiro da Areia (1985), O Santuário e o Oráculo (1985), Ficta Imagem (1992), Variações sobre o tema de Síbaris (1994), Telhas de Outro Alpendre (1994), A Outra Face do Labirinto (2002). Associação Portuguesa de Estudos Clássicos (APEC) Gaivotas Colecção Fluir Perene Volumes já publicados N.º 1 José Ribeiro Ferreira, Mitos das Origens - Rios e Raízes (2008). N.º 2 Rodolfo Pais Nunes Lopes, Batracomio- maquia: a Guerra das Rãs e dos Ratos (2008). N.º 3 Carlos A. Martins de Jesus, A Flauta e a Lira: Estudos sobre Poesia Grega e Papirologia (2008). N.º 4 José Ribeiro Ferreira, Os Sons e os Silêncios – A Memória, a Culpa, a Valsa (2008). N.º 5 José Ribeiro Ferreira, Labirinto e Minotauro - Mito de Ontem e de Hoje (2008). N.º 6 José Ribeiro Ferreira, Atenta Antena - A Poesia de Sophia e o Fascínio da Grécia (2008). N.º 7 Rui Morais, A Colecção de Lucernas Romanas do Norte de África no Museu D. Diogo de Sousa (2008). N.º 8 Armando Nascimento Rosa, Antígona Gelada (2008). N.º 9 José Ribeiro Ferreira, Rui Morais, A Busca da Beleza: Vol. 1 - Arquitectura Grega (2008). N.º 10 José Jorge Letria, Os Lugares Cativos (2009). N.º 11 José Ribeiro Ferreira, Três Mestres Três Lições Três Caminhos (2009). N.º 12 Carlos A. Martins de Jesus, Anacreontea. Poemas à maneira de Anacreonte (bilingue) (2009). JOSÉ RIBEIRO FERREIRA INÊS CEROL

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Page 1: Nº13 - Gaivotas

Colaboração

www.fluirperene.comFluir Perene

Sempre me fascinaram as gaivotas. Não tanto pelo seu andar que por vezes apresenta ar meio desengonçado. Antes pelas suas cores, pela sua forma. Sobretudo pelo seu sábio planar assombroso com que, de forma hábil, aproveitam a brisa e os ventos para – quase sem esforço, quase sem mexerem asas – subirem em altura até serem quase pontos no infinito, e com elas nos elevarem os olhos no azul denso.

Ver-vos voar no voo planado e lento de quem segura o vento e o leva em suas asas. O equilíbrio instável da vida na hora da decisão e do futuro. O corpo, quedo e parado, goza o sabor do vento. Apenas de vez em vez leve torção do pescoço ou o flectir ligeiro das asas largas. Tudo fácil, exacto, metódico; tudo executado no instante certo e preciso.

E a olhar-vos me fiquei e fui nas asas que não tenho, mas me oferecestes na imaginação que me toma, eleva. E o corpo, em ascese, levita nas asas que me dais e me transportam ao azul de outro sul.

(do Prefácio)

José RibeiRo FeRReiRaFotogRaFias de inês CeRol

Fluir PereneColecção

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tas

José Ribeiro Ferreira, nascido em Santo Tirso, em 1941, é profes-sor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Inves-tiga dor do Centro de Estudos Clássi cos e Humanísticos da mes-ma Universidade.Tem mais de centena e meia de trabalhos — entre livros, artigos em revistas e enciclopédias — publicados em Portugal e no estrangeiro, com realce para Hélade e Helenos. I – Génese e Evolução de um Conceito (1983, 21993); A Democracia na Grécia Antiga (1990); A Grécia Antiga. Sociedade e Política (1992); Civilizações Clássicas I – Grécia (1996); Manuel Alegre: Ulisses ou os Caminhos da Eterna Busca (2001); Os Sons e os Silêncios. A memória, a culpa e a valsa (viagem a Berlim, Viena e Salzburgo) (2005. 2ª edikção revista e aumentada, 2008); Mitos das Origens. Rios e Raízes (2008).No domínio da poesia, publicou Os Olhos no Presente (1982, com 2ª edição em 1998), Pesa o Momento a Eternidade (1984), Veleiro da Areia (1985), O Santuário e o Oráculo (1985), Ficta Imagem (1992), Variações sobre o tema de Síbaris (1994), Telhas de Outro Alpendre (1994), A Outra Face do Labirinto (2002).

Associação Portuguesa deEstudos Clássicos (APEC)

Gaivotas

Colecção Fluir PereneVolumes já publicados

N.º 1 José Ribeiro Ferreira, Mitos das Origens - Rios e Raízes (2008).

N.º 2 Rodolfo Pais Nunes Lopes, Batracomio-maquia: a Guerra das Rãs e dos Ratos (2008).

N.º 3 Carlos A. Martins de Jesus, A Flauta e a Lira: Estudos sobre Poesia Grega e Papirologia (2008).

N.º 4 José Ribeiro Ferreira, Os Sons e os Silêncios – A Memória, a Culpa, a Valsa (2008).

N.º 5 José Ribeiro Ferreira, Labirinto e Minotauro - Mito de Ontem e de Hoje (2008).

N.º 6 José Ribeiro Ferreira, Atenta Antena - A Poesia de Sophia e o Fascínio da Grécia (2008).

N.º 7 Rui Morais, A Colecção de Lucernas Romanas do Norte de África no Museu D. Diogo de Sousa (2008).

N.º 8 Armando Nascimento Rosa, Antígona Gelada (2008).

N.º 9 José Ribeiro Ferreira, Rui Morais, A Busca da Beleza: Vol. 1 - Arquitectura Grega (2008).

N.º 10 José Jorge Letria, Os Lugares Cativos (2009).

N.º 11 José Ribeiro Ferreira, Três Mestres Três Lições Três Caminhos (2009).

N.º 12 Carlos A. Martins de Jesus, Anacreontea. Poemas à maneira de Anacreonte (bilingue) (2009).

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GAIVOTAS

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José Ribeiro Ferreira

GAIVOTAS

Coimbra — 2009

José Ribeiro Ferreira

Fotografias de Inês Cerol

Coimbra – 2009

GAIVOTAS

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AUTORJosé Ribeiro Ferreira

TÍTULOAs Gaivotas

FOTOGRAFIASInês Cerol

CAPA e FOLHA DE ROSTOFotografias de Inês Cerol

EDITORJosé Ribeiro Ferreira

CONCEPÇÃO GRÁFICAFluir Perene

IMPRESSÃO Simões & Linhares, Lda.Av. Fernando Namora, nº 83 - Loja 4

3030-185 Coimbra

PEDIDOSAssociação Portuguesa de Estudos Clássicos (APEC).

Faculdade de Letras – Universidade de CoimbraTel.: 239 859 981 / Fax: 239 836 733

3000-447 COIMBRA

ISBN: 978-989-96078-3-5

DEPÓSITO LEGAL: 303504/09

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TÁBUA

Prefácio ………................................................ 7

Fímbria de água ............................................... 15

Fímbria de água ........................................ 17

No azul limpo da manhã ………….….... 19

Arcos da Ponta de Piedade …….............. 21

O ‘Gigante’ .............................................. 25

Gaivotas emigram .................................... 27

Nos barcos por esse mar azul .................. 29

Gaivotas do céu de Lagos ........................ 33

Veleiro da areia ........................................ 41

Planar de gaivota ....................................... 45

Asas ........................................................... 49

Lagos ......................................................... 53

A voz das ondas ......................................... 59

O vento de Lagos ....................................... 63

O azul envolve ........................................... 77

Ali à mão ................................................... 79

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Amizade ……………………………….. 81

A janela ..................................................... 85

Se fôramos gaivotas ................................. 87

O mundo e o infinito ......................................... 95

Arte poética ............................................... 97

Na limpidez da manhã ………………….. 111

A voz do mar ............................................. 123

O sol despede-se por trás dos outeiros ….. 131

O mundo e o infinito …………….............. 139

Epílogo .............................................................. 151

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7

Prefácio

Sempre me fascinaram as gaivotas. Não tanto pelo seu andar que por vezes apresenta ar meio desengonçado. Antes pelas suas cores, pela sua forma. Sobretudo pelo seu sábio planar assombroso com que, de forma hábil, aproveitam a brisa e os ventos para – quase sem esforço, quase sem mexerem asas – subirem em altura até serem quase pontos no infinito, e com elas nos elevarem os olhos no azul denso.

Ver-vos voar – e retomo, quer com ligeiros retoques, quer com alterações mais ou menos drásticas, um texto escrito em Lagos, em 24 e 25 de dezembro de 2000 e saído nos Cadernos de Poesia “Costa d’ Oiro” (nº 157), com o título O voo das gaivotas –, ver-vos voar no voo planado e lento de quem segura o vento e o leva em suas asas. O equilíbrio instável da vida na hora da decisão e do futuro.

O corpo, quedo e parado, gozava o sabor do vento. Apenas de vez em vez leve torção do pescoço ou o flectir ligeiro das asas largas. Tudo fácil, exacto, metódico; tudo

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executado no instante certo e preciso. E a olhar-vos me fiquei e fui nas asas que não tenho,

mas me oferecestes na imaginação que me toma, eleva. E o corpo, em ascese, levita nas asas que me dais e me transportam ao azul de outro sul.

E a viagem é sonho no azul nítido da tarde. Como se, ponto distante, a infância recolhesse do fundo do passado, a desdobar o fio da memória que me faz e me sustenta. Tantos os passos da incerta vida vária.

A Póvoa de Varzim dos meus primeiros anos. E desses tempos, apenas a vaga lembrança da casa pequena, alugada. A mãe sempre presente e a visita do pai nos fins de semana, que nos outros dias o trabalho impunha a sua lei. As ondas redondas que se aproximavam, medonhas, e, quais garras, as mãos seguras do banheiro a mergulhar-nos. O medo engolia a água salgada, goelas assustadas.

A Azurara da minha juventude, com Mindelo e Vila do Conde à vista. E logo Santa Clara, altaneira, vinha rever-se nas águas do Ave, ainda límpidas. Passava-se a ponte, e o rio media o ritmo dos versos de Régio, antes de, suspenso, respirar e de seguida celebrar o encontro com o mar. E nas praias, na Avenida Marginal, subindo o rio ou sobrevoando a vila, a vossa presença assentou na memória e lá se recolheu no silêncio fundo e fecundo.

A aristocrática Ericeira sentia-se orgulhosa na

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sonoridade das botas, fardas e patentes. Aí vos olhava, gaivotas, e todo me despia das mágoas de ruas e tapada de Mafra, alargava os horizontes dos longos corredores do Convento pejados de ecos e silêncios. O ritmo encurvado das ondas me lançava e convosco, gaivotas, seguia no voo que não tinha e de vós tomava. E o espírito partia por mundos, sonhos e futuros – então e ao longo dos tempos.

A Praia de Mira, da barrinha e dos palheiros, aconchega-se nas dunas para que passe o vendaval. Aí, pouco vos vi e nem me lembro de voo vosso que me levasse ou montasse espera na memória. Apenas o farfalhar dos pinhais e o marulho do mar, cujas ondas, quais crinas de cavalo revoltas ao vento, avançavam brancas de espuma e ameaça. Talvez a causa de as gaivotas recolherem nas areias da praia, escondidas nos recessos, e não as encontrar no novelo do tempo.

As praias da Figueira da Foz e de Buarcos, nas dobras da Boa Viagem resguardadas do vento norte, recolhem as águas calmas do Mondego e todas se revêem nos largos areais das suas praias. Aí as gaivotas, em bandos, ora se passeiam na areia fina em alegre algazarra, ora seguem os barcos que partem do porto ou da faina regressam. Aconchegadas na sua modorra, sedentárias, vivem em evidente apatia e em permanente sonolência. É raro contemplá-las a voar em altitude. Apenas uma por outra rara

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vez as vejo planar e convidar para com elas partir na distância.

Fora do país também as gaivotas vieram ter comigo. De uma viagem à Escócia, retenho no novelo da memória dois encontros de fascínio com as gaivotas: em Aberdeen e em Inverness. Na primeira cidade, acordei meio estremunhado com o seu som galrador, impositivo. Chegados já noite caída a Aberdeen e convidados a recolher por chuva miúda e pelo cansaço, não houvera o habitual passeio nocturno nem a localização do hotel se fizera. E pela manhã sinto-me acordado por um charivari quase assustador, que parecia vir do exterior, muito perto, ou mesmo da própria parede. Ao abrir a janela, entra pelo quarto o ar fresco da manhã e o sol radioso que o inunda de luz. E, pousadas num paredão onde o mar vinha bater, quase encostado ao hotel, saúdam-me festivas as gaivotas, que chegam, partem, esvoaçam, olham atentas, se cumprimentam, se tocam em ademanes de conquista – salutar algaraviada. E a vida entrou no quarto, em mim e aí se instalou para todo o dia.

Em Inverness – mais encorpadas, de cor mais homogénea em cada uma delas – encontrei as gaivotas e o seu andar balanceado a passear nas ruas com as pessoas, a entrar nas lojas de comércio e a quase se sentar connosco a uma mesa de café. E sempre aqueles seus olhos

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vivos, atentos, interessados, interrogativos, como a perguntar-nos se estávamos bem com a vida. Não mais deparei com gaivotas assim tão dadas com os homens e com o seu viver do dia a dia. Só mais tarde, na Marina de Lagos uma me veio interpelar à mesa de café e, despertando o novelo da memória, quase me fez lembrar as sociais gaivotas de Inverness.

E foi precisamente em Lagos que aprendi a dimensão

do voo das gaivotas. A sua presença surge insistente em tudo quanto seja sítio: nos céus, longe, perto, pontos

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indistintos; nas ruas, nos passeios, nos beirais, nos postes de iluminação, sobre o porto, na marina, nos mastros dos barcos ancorados, nas praias, nas falésias. Nem vento, nem calmaria lhes tolhe os movimentos seguros, metódicos, certos. A cada passo apenas pontos distantes no azul sem sombra de nuvens, são apelo de partida e de procura. E sente-se a alma leve, intensa, fugidia.

As gaivotas de Lagos, de planar sereno ou rápido, sempre a despertar o desejo de errância, de sonho e de partida. Ora transmitem calma enternecida, e o espírito, sereno, discorre por longes e pensares; ora trazem distância, inquietação de alma nunca satisfeita com a Ítaca ou a definição a que se chega. Sempre a partida no brilho dos olhos e o infinito por mitigar.

Gaivotas dos céus de Lagos, eu vos saúdo, bendigo e sigo na descoberta de outras margens, na mira do sul e do azul, na busca de tudo quanto espero.

Os poemas aqui coligidos abrangem datas que se

estendem por três décadas, alguns deles até já se encontram publicados em livros meus anteriores. É o caso de “Fímbria de água”, “Arcos da Ponta de Piedade”, “O Gigante”, “Gaivotas emigram”, “Nos barcos por esse mar azul”, “Gaivotas do céu de Lagos” e “Veleiro da areia” que saíram no livro Veleiro da Areia (1985), respectivamente pp. 5, 11

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e 12, 13, 23, 21, 25 e 36; o caso de “Planar de gaivota”, “Ali à mão”, “Amizade” e “Janela” que se encontram em Olhos no Presente (1982 e 21999), respectivamente pp. 34, 33, 17 e 24; o caso ainda de “Arte poética” e “O azul envolve” que foram publicados, respectivamente, em Pesa o Momento a Eternidade (1984, p. 1-10) e Telhas de outro Alpendre (1994, p. 30).

Vários outros apareceram em plaquetas na colecção “Costa d’ Oiro” – já conta com 256 números –, dirigida por Cristiano Cerol que, anualmente, no dia 27 de dezembro, promove em Lagos um encontro de poetas, com entrega ao Museu de Lagos de um exemplar de todos os números publicados nesse ano. Saíram nessa colecção “Lagos” (nº 4), “Vento de Lagos” (nº 247), “Ali à mão” (nº 66), “Se fôramos gaivotas” (nº 256), “Na limpidez da manhã” (nº 226), “A voz do mar” (nº 140), “O mundo e o infinito”.

Outros, porém, são inéditos e apresentam-se pela primeira vez ao público.

De qualquer modo, mesmo os já publicados e incluídos em colectâneas anteriores, todos eles, aparecem em Gaivotas alterados, com novas roupagens, ou remodelados de forma significativa. Alguns quase solicitam a qualidade de novos poemas.

Todos eles todavia – publicados ou inéditos, parcamente remodelados ou por completo desconjuntados e

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com profundas alterações –, todos pedem vénia e aceitam leitura interessada.

Os poemas têm a companhia de imagens em

fotografia de Inês Cerol – jovem arquitecta e minha afilhada – que, em resposta a um desafio que lhe lancei, leu os textos e procurou adequar-lhes as fotos que das gaivotas de Lagos foi colhendo.

O conjunto é vosso. Talvez vos possa despertar alguns sonhos e desejo de partida para longes e infinito. O mundo é belo e a Terra é mãe solícita, criadora e dadivosa. Mas a vida que nela habita nem sempre lhe faz jus, e é mesquinha, pequena, invejosa, dolosa. E nós somos sempre os eternos insatisfeitos, trazemos na alma o desejo constante de procura, em nenhum lugar encontramos a felicidade e a plenitude do Ser. Enfim, nunca chegamos à Ítaca que com denodo buscamos.

Dezembro de 2009

José Ribeiro Ferreira

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FÍMBRIA DE ÁGUA

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Fímbria de água

Rasga o céu um voo de gaivota.

Difusa se perde na distância

Fímbria de água

No devir da vida e do cansaço.

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No azul limpo da manhã

O planar feliz das gaivotas saúda a manhã

E sorriem as ruas no sol que desponta.

Nos corpos acorda morena a vida

E povoa a cidade o fluir quente do tempo.

Tece o desejo o passar dos dias e das horas

Num denso tecido que nos marca de ausência.

Desenhos que se cruzam precisos e seguros,

Rasgam as gaivotas o azul limpo da manhã.

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Arcos da Ponta da Piedade A Walter de Medeiros

Partem as gaivotas e retornam

Sem cessar.

As rochas ganham forma e vida,

Lançam arcos de futuro.

Arcos em procura repetida

Que transpõem sombras e incerteza.

Paciência longamente executada

No fluxo das ondas e da espuma.

Os olhos e sonhos no longe e no futuro,

A obra nasce onda a onda inacabada:

Busca do para-lá de si e do destino.

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Dia a dia sentinelas da espera

Voam de vós as gaivotas uma a uma.

Cruza o ar um adejo de beleza.

Certo e seguro tudo se conforma.

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Tudo tem o seu início e o seu fim

Certo e seguro.

Somos barcos que deslizam

Suspensos do destino?

Ou gaivotas que planam

E procuram, leves, o azul?

Sem cessar,

Partem as gaivotas e retornam.

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O ‘Gigante’

Olha o mar o teu estar aí

Sentinela do além.

De adejar e sonhos te coroam as gaivotas.

E a espuma tece

E te veste de linhos de noivado.

Dos barcos que partem guarda seguro,

No mar te ergueste e aí ficaste.

Trono sereno e reino de gaivotas.

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Gaivotas emigram

Em minha vida emigram as gaivotas.

O sonho pressentido na manhã

Olha o futuro com pensar pressago.

O destino denso da maçã

Que na ponta do ramo se oferece.

Na minha vida emigram as gaivotas.

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Nos barcos por esse mar azul

Nos barcos por esse mar azul...

Em rasto de espuma enrodilhado atrás de si

Dobram o recorte da falésia os barcos.

À volta volitam agitadas as gaivotas.

Os barcos aconchegam a esperança

E nos longes o afago acena e chama.

Nos barcos por esse mar azul...

Indeciso desejo imerso no meu ser,

Desliza a pressa dos barcos

E voam seguras as gaivotas.

Nos barcos por esse mar azul...

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A partida dia após dia procurada.

– Íntimo desejo de sem retorno romper

O limite que susta e que encerra.

Nos barcos por esse mar azul...

Carne e osso agarra-nos à terra.

Espírito somos nos longes dela:

A eterna ânsia de tempo que não chega.

Nos barcos por esse mar azul...

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E sempre o aqui nos encontra

No partir e no sonho...

No dobrar da curva

Sempre o vazio e o desejo

À espera de outra curva.

Nos barcos por esse mar azul...

Dobram os barcos as rochas da falésia.

E em roda volitam as gaivotas

Ou planam no azul distante.

E os olhos partem, sôfregos de lonjura.

Nos barcos por esse mar azul...

Que rotas e acasos levam os barcos?

Que longes os chamam e que apelos?

Verão no regresso o aceno das gaivotas?

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Gaivotas do céu de Lagos

1 Nos céus de Lagos planam as gaivotas

A adiar a partida dia a dia sem cessar.

Que espera vos detém e vos sofreia?

Ao balouçar das quilhas e do tempo

Nas amarras e mastros ancoradas,

Embalam a vida no calor da manhã

Ou saúdam os raios fugidios da tarde?

Em suas asas adeja a madrugada

A abraçar a terra de luz e limpidez.

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2

Partam também os barcos e regressem.

No mar cor de vinho não naufrague

Não feneça nunca

A esperança dia a dia acalentada.

Asas imponderáveis de vento e precisão

A vencer os voláteis grãos do tempo

Sem temor do fugaz fluir frágil..

Planam nos céus de Lagos as gaivotas.

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3

Gaivotas que cruzais os céus de Lagos!

Voai, gaivotas, geométricas nos céus de Lagos,

Voai nas horas todas, a planar no azul profundo,

Perto ou longe, pontos perdidos na distância.

Parti com a luz e trazei o azul profundo

– O múrmuro ritmo da métrica das ondas.

Alegre rumorejo de frescura e mar sereno,

Vinde gaivotas, vinde sempre, vinde todas.

Impulso imponderável de partir todos os dias,

Vogai serenas nas asas do vento norte ou sul

Gaivotas que voais nas tardes e na procura…

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E as manhãs sorriem nos olhares de todos

No voo planado que sois e na graça de o ver.

Sonho de ser as asas na liberdade do azul

A transpor as grávidas sombras do futuro

Que nos marcam e nos cercam os passos.

E asas no vento e na luz suave da manhã

O corpo leve dissolve as sombras e temores.

Em voo medido e seguro, partem as gaivotas.

A deslaçar os limites que vedam e tolhem.

A luz fresca da manhã e o afago do sonho,

Sedutores, leves, trazem o azul e o voo.

E com o voo chega a voz e a cor do mar.

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Tudo concentrado nas linhas que traçais,

– Um complexo desenho nunca satisfeito,

Gaivotas a planar no azul limpo e sem limites..

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Veleiro da areia

Na areia imprime os contornos o veleiro.

Gaivotas nas amarras, nas velas a esperança,

Leva a mundos e longes que se buscam.

Um dia

O vento que passou e o fluxo das ondas

Deliram persistentes as formas do veleiro.

Sem velas nem gaivotas nas amarras

Já não voga a esperança no veleiro.

Agora

Passam as ondas e o rigor dos ventos

E, nos limites estreitos de praia deserta,

Encontram apenas a sombra do delido.

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Agora

Os barcos passam no mar ao largo sem parar.

Sem futuro morrem os sonhos ao nascerem.

Dobadoiras sem esperança e sem repouso,

Nunca mais

Em seu voo as gaivotas nele vão pousar.

O veleiro da esperança

Desfez-se na areia varrida pelos ventos

– Cansado desejo e busca do nunca mais…

Os mundos e longes que se buscam.

Ou espera que cheguem as velas do veleiro

Ou se fixem as linhas precisas das gaivotas.

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45

Planar de gaivota

Movimento

Lento.

Um ponto distante,

Quedo e constante.

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47

O vento braveja

O bosque braceja

Os pinhos ramalham

As ondas marulham.

Arrojo desfia

Tudo desafia.

O corpo parado

Concentra infinito,

No mar agitado.

Longe em longe um grito,

Mais nada se nota.

Planar da gaivota.

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49

Asas

Tinha as asas encantadas

Dos sonhos da vida inteira.

E tenho-as hoje cortadas,

Já nem alcanço a ladeira.

As asas me conduziam

Por terras, tempos, distância.

Memória e vida traziam,

Contornos densos de infância.

Palavras, sons me diziam

Essas asas do meu sonho.

Hoje apenas denunciam

Viver amargo, bisonho.

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Eram belas essas asas,

Planar branco de gaivotas.

Nada as tolhia, nem casas,

Muros, fronteiras ignotas.

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Rastejam nas ruas planas

Asas que eram meus sonhos.

Meus olhos sabem a terra,

Longe planam as gaivotas.

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Lagos

Nos céus de Lagos, no seu azul suave,

As gaivotas são pontos e traços no infinito,

Em complexas geometrias se cruzam

Precisas e sem erros ou enganos.

No declive suave das encostas

Debruçam-se as casas atentas

E espelham-se no miúdo revérbero das águas.

Descem em alvas escadas até ao porto.

A cidade revê-se vaidosa na concha da baía.

Por momentos, tropeçam os olhos descuidados

Nos campanários de Santa Maria e Santo António.

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As gaivotas planam na brisa da tarde

E signos traçam de ocultas mensagens:

O silêncio da escrita no rigor das imagens.

No pedestal da praça olha o Infante o longe.

Que mundos e segredos divisa além do mar?

Fixo silêncio vela o seu olhar atento.

Lamenta ao lado,

A memória de escravos de outros tempos.

Vozear de vida nas tardes de verão

À sombra do Forte e das muralhas

Que guardam a presença do passado.

Os sonhos que se geram, logo partem.

Fluxo e refluxo das gentes e das ondas.

Vem a enchente

E alarga-se o porto e o movimento.

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Quente nasce o verão na vida a cachoar,

Mas esfria o fervor o outono

E aos poucos rola o peso do silêncio:

Pacato adormece nas ruas o inverno.

Ocupa o vazio e cidade e se instala nos recantos

E as fugidias imagens das gaivotas

Que sonhos profetizam da cidade?

Germina a presença do passado

E grávido decorre o fluir presente.

As gaivotas povoam a memória

De leveza, de harmonia e de distância

– Fluxo e refluxo de vida e de silêncio.

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A voz das ondas

O silêncio fundo nas ruas de Lagos:

O cansaço do verão a descansar.

Recolhe o fino gume do frio do vento

E a cidade adormece na calma de Inverno.

As gaivotas hibernam e deixam que o sol aqueça,

Acena D. Sebastião aos transeuntes

— Os raros que por ali passam e o olham.

Pensa de certo como suster elmo tão pesado.

Gil Eanes recolhe à sombra das muralhas.

E D. Henrique sente a calma e o sossego

De olhar o mar e a distância irresistível.

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As gaivotas alimentam a memória de figuras

E a voz das ondas é mais forte e sedutora.

Chamares de sereias e de longes sem recusa.

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O vento de Lagos

Deitou-se a tarde na múrmura sombra das ondas,

E as gaivotas de Lagos, nítidas, nos céus recortadas.

Que lugares invisíveis, que cidades nos constroem

Os seus voos de arquitectura controlada, desenhada?

A bem medida segurança no espaço azul do infinito.

A perfeição de corpo no voo

E o controlo da vertigem no domínio dos ventos.

Planam ao rugir e silvo de nortadas e marés,

Planam as gaivotas,

Formas impassíveis na penumbra do anoitecer.

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Assobia o vento nas copas das palmeiras

E o sussurro percorre a avenida solitária.

Recolheu-se o inverno nas praças e ruas

E, denso, o silêncio da noite envolve Lagos.

Tudo parado em tensa espera de manhã de dezembro.

Só a rósea claridade e a brisa fresca parecem destoar,

Em anúncio de que o sol desponta e traz de novo a vida.

Bailam os sons na brisa da manhã

E leve sente-se o rumor dos tempos.

O sussurro da História nas ruas de Lagos.

Deitou-se a tarde na sombra das ondas.

Nítidas, em azul recortadas as gaivotas.

Que cidades invisíveis nos constroem

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Os seus voos de arquitectura controlada

– Desenho bem medido nos longes e infinito?

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Rugem as nortadas, estrugem nos rochedos as marés.

Leves nas asas do vento, planam as gaivotas de Lagos,

Formas impassíveis na penumbra do anoitecer.

A perfeição do corpo no voo

E o controlo da vertigem no domínio dos ventos.

Sonhar, bom é sonhar... Comanda

O sonho a vida e todos nós partimos

Demanda de novas Ítacas, outras sempre.

Ilhas imaginadas que nunca descobrimos.

Chegamos, porém, ao fim do dia,

Sufocam a alma o choro e as lágrimas.

Mágoa funda oprime a bloquear todos os poros.

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Os ventos sacodem a vida,

E ligam as linhas pontos e contactos.

Que mão secreta conduz o dia a dia?

Que força empurra os nossos gestos?

Que impositiva voz nos dita as palavras?

Esvaem-se todos os sonhos pela tarde.

Dos passos, palavras e gestos nem vestígio

Na crespa areia movediça do deserto.

Um ar de vento, um leve sopro tudo ruiu.

Frágeis casas de cartão nas cheias de outono.

Fumo e nada no labiríntico fio da memória.

Deitou-se a tarde na múrmura sombra das ondas.

E as gaivotas, nítidas, recortadas na densidade do azul.

Que cidades invisíveis nos constroem os seus voos

– Arquitectura controlada, desenhada, bem medida?

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As gaivotas de Lagos e seus voos precisos e simétricos!

Quase pontos indistintos no denso azul do infinito.

Desfia a memória o fino fio do rio do tempo

E a vazia corrente da vida desliza e não abarca nada,

Quais últimas folhas secas levadas pelos ventos.

Os passos medem os caminhos da existência

E marcam-nos as faces de sulcos e ausências.

Figuras recortadas na senda do passado,

Em traço grosso e vivo umas, mais delidas outras,

Ano a ano deixadas na tela da memória.

Nos mares e nos céus de Lagos

Mensageiros de paz e de união

Fossem barcos, corvetas, aviões.

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Em voos planados e linhas precisas e seguras,

Fossem as gaivotas apelos de longes e de infinito.

Fossem solidárias e atentas as pessoas,

Nos gestos, nos actos, nas palavras,

Nos olhares, nos sorrisos, nos silêncios!

Ouvisse cada um o marulho e cadência do mar

E sentisse o eco e o apelo apetente da distância

— Busca insistente que não encontra nunca!

Observasse a leve dança da espuma

E escutasse a música insistente do vento!

E na memória coexistiriam então ao menos

Alegria, felicidade e a ternura do afago de um olhar.

Ressoaria novo hino de seiva renascida sobre a Terra.

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As gaivotas, nítida perfeição do corpo no voo,

E o controlo da vertigem no domínio dos ventos.

Ao som do rugir de nortadas e marés vivas

Planam as gaivotas de Lagos,

Formas impassíveis na penumbra do anoitecer.

As gaivotas de Lagos e seus voos simétricos!

Quase pontos indistintos no denso azul do infinito.

Assobia o vento nas copas das palmeiras

E o sussurro percorre a avenida solitária.

Recolheu-se o inverno nas praças e ruas

E, denso, o silêncio da noite envolve Lagos.

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O azul envolve

O azul envolve

O voo das gaivotas.

Sem medo

Olha o céu

E pousa a confiança

A cabeça.

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Sem nuvens

O azul envolve...

Sem sombras

Seduz a esperança

E o sonho toma ao longe

A forma do voo das gaivotas.

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Ali à mão Desce a limpidez da tarde. Afluem as ideias, Uma após outra, Claras, ordenadas. No sonho real, o infinito Ali à mão. O voo pleno da gaivota.

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Amizade

Forte e intensa

A presença

Reflexa as ondas

E o planar sereno das gaivotas.

Afluem as imagens.

Memória acumulada

As vozes reconvocam.

Refazem-se de novo

Actos, palavras e gestos.

A manhã dedilha os poros

E voo relança o reencontro:

Harmonias, sensações e coros.

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Nos adustos passos da vida,

Um dossel de rosas

O brilho dos olhos jubila:

Asas da amizade nas ondas da brisa

– Planar sereno de gaivota

No azul límpido da manhã que nasce.

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A janela

Recortados na baía e na marina

A partida e o aceno das gaivotas.

O azul do mar reflexa o céu e a distância.

Ali à mão, a baía de Lagos

Recolhe as ondas no côncavo da concha

E atrai a cidade de casas debruçadas e atentas:

O horizonte desce da janela e nos longes se alarga.

Brilham os olhos felizes no alvor da espuma

E deles partem, fastas e festivas, galés e gaivotas.

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Se fôramos gaivotas

Se fôramos gaivotas, amada minha,

Ou cérilos.

Atravessávamos as procelas da vida

Nas longas buscas da memória perdida.

Forma-se aos poucos o denso tecido

Que nos faz

E é nosso rosto na visão dos outros.

E não mais

Nos abandonam as marcas que deixamos.

Tesselas que são no passeio da nossa vida.

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Cada um de nós, homem ou cidade,

O que é? Que lhe imprime carácter?

Apenas passado que o conforma faz e marca

E sonhos projectos que nutre e alimenta.

Se fôramos gaivotas, amada minha,

Ou cérilos.

As longas asas de aconchego acolheriam

O espesso passado de ternura e desencontros.

A origem leve e magra de um atrito…

Ou o tímido aflorar de um gesto de ternura.

Tão leve e tão inconsistente,

Simples esboço de mover de dedo…

E logo sombria a borrasca desaba

Ou húmido sorri o brilho inteiro dos olhos.

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Se fôramos gaivotas, amada minha,

Ou cérilos.

O denso novelo do tempo aos poucos

A memória, solícita, desfiaria:

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Actos gestos palavras olhares silêncio risos.

Todos nos púnhamos nesse tecer laborioso.

Tudo concentrado nas asas desse voo

Longo, medido, sempre exacto em cada lanço.

Nas linhas, nas curvas, no sereno azul intenso...

Nos ventos desencontrados...

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Se fôramos gaivotas, amada minha,

Ou cérilos…

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O MUNDO E O INFINITO

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Arte poética

1 Sentou-se na areia e lançou aos ventos as palavras

procuradas. E as vozes partiram nos ventos e nas brisas,

quais gaivotas ou cérilos.

Partiu a mensagem que trouxera nos dedos das

ondas, no suave fluir das brisas ou no agreste açoite dos

ventos. Pelo azul se espalhara, dispersara.

Aos poucos o poema se conforma no silêncio das

vozes que lhe traz o marulho do mar ou lhe escreve o

voo das gaivotas.

E espalham os ramos o poema e os olhos das

janelas. Um silêncio fundo se propaga na claridade da

manhã e frutifica no sazonamento e na madurez da

tarde...

E as vozes partiram nos ventos e nas brisas, quais

gaivotas ou cérilos.

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2 Nas areias finas e macias distende o corpo a

pensar no futuro. Estirado, atira ao vento as palavras e,

sem demora, sente o mar erguer-se e ser descanso para a

alma.

No azul intenso se concentra a luz clara de

realidade nova. Praia de luz sonora, pensa em si e entoa

um hino no rolar das ondas e no sumir da espuma.

Sem esperar a tarde, embarca logo na manhã que

estava ali e trazia um futuro para se colher e ser vivido.

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Embarcado, rema forte para o porto que trazia nos

olhos. Na praia deixara ventos e empecilhos. Com a

proa guiada pelo voo das gaivotas, transporta no bornal

a vida, os sonhos, a busca de lonjura.

A lancha de ondas e de espuma sulca a luz fresca

da manhã que ilumina os contornos e volumes do poema

que o poeta embala nos braços em carícia de dedos.

No fogo profético que transforma o brilho do

olhar, as palavras dispersam no bruaá que acolhe a sua

voz. E o sonho que trouxe abala e se esvai.

E as vozes partiram nos ventos e nas brisas, quais

gaivotas ou cérilos.

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100

3

Procura e movimento não podem calar-se. O

sonho os fecunda e impele-os o pulsar quente da cidade

acumulada na memória.

Sem uns e outros, búzio vazio dá à praia e as

ondas o arrastam de lado para lado. E não tem amanhã,

é sempre agora mesmo no transformar-se ondulado em

fluxo e refluxo.

Não se parte nunca amanhã. Vive-se sempre o

agora nas crinas sedutoras do que lento germina em

cada passo. E a presença está em cada acto que, mal

aflora, transpõe os umbrais do futuro.

No embalo das ondas, os pensamentos de mar em

movimento são estrada nova por onde tudo parte. Fácil

ou difícil que seja a caminhada, devem ser dados os

passos.

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101

O autocarro do futuro viaja por aí. Sem muitas

paragens, mas sempre as necessárias. E nele os sonhos e

a busca, o penar e o sorrir. Sempre se insinuam na

felicidade esforço e sofrimento.

Na viagem devem todos ter lugar. Nunca uma

estrada de coutada. Nunca o aviso a proibir a passagem

a pessoas estranhas. Estendidos os braços, deve o

ceifeiro moreno abarcar toda a seara no abraço pejado.

Nem esquinas que obstruam ruas, nem praças

desertas, nem harpas expostas aos quatro ventos, sem

cordas. Nas sendas e orquestras da memória, o fluir

permanente das imagens e dos sons.

E nesse rememorar procura sempre as vozes

sinceras e fortes que escutou e conformou. Empunhadas,

espalha-as nas palavras de vento, nas ondas.

E nesse rememorar procura sempre as vozes

sinceras e fortes que, escutadas ou vistas, se instalaram.

Empunhadas, espalha-as nas palavras de vento, nas

ondas.

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As vozes que partiram nos ventos e nas brisas,

quais gaivotas ou cérilos.

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103

4

A cidade mergulha no silêncio de esfera insegura?

Será que adormecida nessa quietude de noite? Ou atenta

escuta, ouve bater o coração da vida e das coisas?

Movimento de ondas e de espuma na quilha do

navio traz a vida nos dedos indistintos e multímodos. E

o ritmo, o múrmuro marulho acordam e instigam a

cidade.

Sem perder nunca os raios da manhã, invadem os

jardins, ruas, praças, vielas. E nas vozes que pressente

arde a chama em que pastam as palavras.

Quase sempre a voz nasce discreta, na penumbra.

Voz que traz as gaivotas e as acaricia na brancura da

página. E com elas, no rectângulo mágico, parte pelo

azul intenso do mar e do céu.

A voz canta nas ruas, na estrada e nos caminhos

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por onde tudo parte na manhã. Canta o porto onde todos

embarcam no veleiro para a mesma viagem.

E a voz, nas velas, é ventos, movimento; na proa,

ondas e espuma. De tudo se enfuna o pensamento. De

tudo se alimentam as palavras. E tudo entretece no ritmo

secreto do poema.

E as vozes partiram nos ventos e nas brisas, quais

gaivotas ou cérilos.

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5 Rolam na areia as ondas. Na manhã que se estende

e brilha na nitidez do azul, arde a chama do futuro. No

corpo a terra pulsa, geme em cada poro.

Uma sombra entristece o horizonte e aflora a

espaços o azul turquesa das águas da baía. A terra

estremece e afigura soluçar baixinho, em íntimo gemer.

Envenenam-lhe o corpo rios poluídos. Morrem as

brisas da tarde e capacetes de cinza envolvem as

cidades. A vida agoniza nos recantos, e tudo parece

querer tonificar-se, sorvendo o ar em haustos longos,

compassados.

E as vozes gemem nos ventos e nas brisas, quais

trenós de gaivotas ou de cérilos.

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6 Veio ter à praia em descanso nas areias quentes do

verão – o denso e consistente húmus da memória.

No olhar crepita o fogo e, labareda altiva, sua voz

é chama que incendeia. Combustão real e certa, arde a

esperança. Aberto e sem névoas tudo se modela.

Nova bandeira de vida e movimento drapeja na

cidade. Chegam gentes e carros, ruas e casas movem-se

no denso refluir das coisas e dos dias.

Sentado em rochedo afeiçoado, olha as gaivotas

que planam na distância da vida ou pousam na babugem

das ondas.

Por ele, perpassa a lembrança das cidades à

espera. À luz do entardecer da vida atira as palavras e

sonha. Uma espera serena e reflexiva.

Hoje, reclinado na praia, olha para trás e vê as

palavras que lhe deram. O tocar dos sinos chama as

ilusões – as palavras e as formas chegam mesmo na

sombra da madrugada.

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Na praia, olha o horizonte longínquo. Os olhos,

seguindo o voo de gaivota, fixam o infinito.

Atento desdoba o novelo o inconsútil tecer do

tempo. Em sucessão, umas às outras se empurram as

questões.

As suas palavras semearam esperança e

movimento? Ou enquistaram em quietude estéril,

amorfa e fútil? Ficara esquecimento ou lembrança do

fogo?

O brilho dos seus olhos consome o desfiar da

memória.

E as vozes e imagens partem nos ventos e nas

brisas, quais gaivotas ou cérilos.

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108

7 Vogam corvetas de sonho em que todos querem

partir. As lanchas navegam nas ondas e na espuma, o

bulício ocupa praias e cidades.

As nuvens brancas passam pelo céu. Deitado na

praia e no marulho, pensa as palavras que espalhou.

Procura colhê-las ainda, a ver se lhe enchem a mão.

Tão sáfara a colheita! E tanto sonho investido nos

passos, nos gestos, nas palavras. Tão sáfara a colheita!

E as vozes e imagens calam nos ventos e nas

brisas, quais gaivotas ou cérilos recolhidos nos recantos.

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109

8 As gaivotas apelam à distância. E a impositiva voz

a insistir:

«Não se demore o descanso na tepidez enlaçante

da areia. Chama a vida sempre a espera.

Vai poeta, vai espalhar o fogo que te arde e sê as

ondas em que navegue a realidade dia a dia.»

O cansaço tolhe os membros e a vontade. Densa

desilusão parece apagar todos os passos marcas vozes e

palavras.

A frustração medrou, raízes fundas na vontade que

havia e nunca acolhida. Um vazio, que pode ser tudo,

cobre a alma de silêncio e expectativa.

Só o voo das gaivotas não deixa de chamar o

poeta e o leva no seu seguro voo planado.

O apelo de longes e infinito.

E as vozes imagens partem nos ventos e brisas,

quais chamares incessantes de gaivotas ou de cérilos.

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111

Na limpidez da manhã

1

Cruzam o céu cinzento as gaivotas em linhas e

figuras bem medidas. Todo o espaço lhes pertence, num

planar certo e seguro, mais leves do que o vento ou a brisa.

Luminosas na réstia de sol que rompe as nuvens,

parecem penetrar os longes e distâncias

Na limpidez da manhã rememoro o tempo que todo

flui e se desenrola no momento – no momento preciso que

passa, e nos foge mal se pensa.

Nunca as mesmas águas nos banham o corpo ou

repetem os acasos e actos sentidos ou vividos. Sempre

outras, as imagens desfiam no rio do tempo, reais, nítidas,

espessas, consistentes.

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O dia corre cinzento, ventoso, salpicado a espaços

por chuveiros. O vento fresco, por vezes agreste, tresmalha

o cabelo. A sensação de que o frio penetra os poros e quer

residir.

E as gaivotas, plumas serenas na grisalha espessura

dos céus de Lagos, esquecem o momento. São liberdade do

corpo, elevação do espírito, alegria do coração.

E vamos com as gaivotas no dobar da memória que

leve desfia o tempo e recorda as marcas do passado: cores,

sonhos, sabores, cheiros, sons, imagens, relevos,

espessuras.

Da esplanada onde me sento, olho-as, interessado e

divertido. Olho-as, sempre atentas que as vejo às nortadas e

a tudo quanto em redor se move.

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2

As nuvens, alvas, diáfanas ou mais grisalhas, são

vertigem de carrossel. No seu enlouquecido curso, parecem

competir com as gaivotas que as cruzam e recruzam.

De entretido na contemplação não noto sequer que

uma delas me espia: uma das muitas que planavam.

Gaivota atrevida, trocista.

Pousa no rebordo da marina, caminha no seu andar

lento e cadenciado, pára junto à porta da esplanada, de

cabecita ao lado, olhos vivos, atentos, investigativos, de

quem se lembra de passadas eras e de outras encarnações.

Que me querem dizer seus olhos, intensos,

brilhantes, percucientes? Miro-a e adivinho qualquer laivo

de ironia ou troça naquele brilho dos olhos miúdos. Que se

esconde naquele inquisitivo olhar vivaz?

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117

A fundura das coisas chega-me da luz que neles

pressinto. E já nem sei se sou eu que me penso ou se todo o

passado se concentra naquele momento para ser quem sou.

O pensar sai de mim à desfilada, e tenho de o seguir,

lesto, apressando o passo. E enquanto estugo o andar para

o não perder, a gaivota continua atenta e concentrada.

Tem agora a companhia zelosa, interessada. E o cão

rafeiro – que agora na porta também se perfila – acumula

ternura nos olhos que pedem, imploram mesmo.

E os ingleses, sempre efusivos, entram, saem,

reentram na esplanada. E tudo parece domínio de herança,

território afanosamente conquistado.

Entretenho-me a olhar a gaivota que da porta da

esplanada observa por bom bocado e depois parte no seu

passo lento, desengonçado. E perco-me a pensar…

Na limpidez da memória, a gaivota regressa do seu

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118

passeio explorativo, olha-nos por momentos da porta da

esplanada, com os mesmos olhos interrogadores, e logo

parte, em voo tenso e poderoso, a reunir-se às outras que

planam nos céus de Lagos, calmas, serenas, alheias a

ventos e tempestades.

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119

3

O silêncio denso forma-se aos poucos nos recessos

da memória e por aí se queda, aconchegado e mudo. O pai

natal tudo avassala e tudo mancha de vermelho.

Procuro com os olhos o leve e artístico voo das

gaivotas e dou com o bisonho pai natal a planar sobre a

Marina. Sobrevoa veleiros e iates, num baloiçar suave ou

sacudido, de acordo com a brisa ou ventania.

Quer a canhestra e vermelha criatura emular com as

figuras leves ziguezagueantes das gaivotas? O baloiçar

desengonçado com os desenhos seguros, precisos,

medidos?

A música não deixa de proclamar «Noite feliz! Noite

feliz!» e «Noite de paz! Noite de paz!». Ou será que nada

dizem já a mensagem e os votos formulados?

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121

As pessoas continuam apressadas e em constantes

atropelos, alheias de todo a tais apelos, e nem sequer os

ouvem na limpidez do dia que desponta.

Nessa luz íntima da manhã, só as gaivotas, cada vez

mais altas e mais distantes, parecem espalhar a mensagem

até ao infinito.

E sensação de paz começa em mim a ganhar

espessura. Sinto que se estende em redor e se espelha nas

coisas e no dia.

Dia de paz na limpidez da manhã.

Natal de 2005

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123

A voz do mar

Desertas e vazias, as ruas evitam o fino gume do

vento e recolhem os raros transeuntes na primeira porta

ou na esquina mais próxima. De quando em quando,

espreita um gato, mas de imediato encolhe o focinho.

Silêncio nas ruas e na vida.

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124

As gaivotas, quedas e mudas, hibernam num

torpor parado. Pousadas nas chaminés, casas ou

rochedos, olham a cidade, as ruas e a praia.

Interessadas em músicas e sons de longes e mares,

fixam o vago e a distância como se nada vissem.

Deixam apenas talvez que o sol aqueça ou que o tempo

passe.

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126

D. Sebastião, no meio da praça, pisca os olhos aos

raros transeuntes que por ali passam e o contemplam.

Cansado de guerra e de armadura tão pesada, pensa

talvez na impossibilidade de erguer e suster o elmo que

jaz aos pés.

Tão delicada a figura! E as armas, de tão pesadas,

assustam! E quase nem as gaivotas o visitam!

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127

Gil Eanes cobre o desabrigo da avenida com o

manto do arvoredo e adormece à sombra das muralhas.

Por vezes, parece, quem sabe, assustado com os gritos

que ouve – no hospital? – e o distraem da voz que o

chama.

Um apelo que lhe vem do mar e, premente, insiste.

E, a contemplar as evoluções e o planar seguro das

gaivotas, os seus olhos parecem seguir a distância dos

seus voos, na busca de transpor longes e medos.

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D. Henrique, na calma e no sossego da praça,

esquadrinha o mar e a distância irresistível. Tudo se concentra naquele olhar e rosto. Atento, ouve chamares e sons distantes – música e carícia lhe chegam de locais e longes, e apelam, e seduzem.

E o marulho das ondas cada vez mais forte, mais sedutor: vozes de sereias, chamares de longes sem recusa. Como se o mar cantasse e o apelo viesse do outro lado da terra, de além da vida, de além do sonho.

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Quem resiste àquela melodia insistente que envolve e toma as veias e o corpo?!

Tudo é apelo, chamar e voz de distância: desejo insatisfeito de quem sente a certeza de que esse distante apelo é a procurada Ítaca.

Sempre o mesmo sonho e a mesma busca nos

passos apressados ou nos silêncios contidos.

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O sol despede-se por trás dos outeiros

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O sol despede-se por trás dos outeiros e o dia

encolhe-se nas primeiras sombras da tarde.

Um anil de vinho espesso percorre os veios do mar

e tinge as águas serenas da baía.

O crepúsculo desce ternamente a envolver de

sombras e figuras as ruas, praças e recantos.

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Pontos distantes, delidos na tarde, as últimas

gaivotas aproveitam as asas da brisa, quase

imperceptível.

E planam, pouco mais que quedas, em estranha

emulação com o balancear cadenciado dos mastros na

Marina.

Por fim, só um ligeiro crucitar denuncia, na densa

capa da noite, o seu poiso nocturno.

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Tudo perde nitidez de traços e contornos –

pardacento fluir de imagens e de formas.

A noite ganha vida e movimento: nascem vozes,

vultos e vislumbres deslizam, assomam sombras

expectantes.

Numa espessura cada vez mais densa, suspende-se

a conversa, atentos aos contornos pressentidos num

recanto.

É cão, gato, alucinação ou par de duendes

abraçados?

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O forte perdera nitidez – contornos delidos

primeiro, depois silhueta na noite que aos poucos o

devora.

Estranho mundo de sombras, figuras imprecisas,

vagas formas, fugidios traços, grávidos de receios e

pavores.

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Um mundo de sombras. Até que, de súbito, a luz

dos holofotes ilumina o forte… e toda aquela dança se

desfaz.

E as gaivotas, sonolentas, erguem espantadas a

cabeça.

Leve sobressalto apenas. Logo cerram pálpebras e

recaem na mesma quietude.

A serena quietude da noite com seu manto denso a

envolver mazelas no aconchego da sua protecção.

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O mundo e o infinito

Traçam as gaivotas figuras de linhas certas e

medidas. E o espaço se preenche de imagens indistintas

que sublinham o azul fundo e concentrado.

Alongam os olhos o debrum da espuma. E os

contornos das figuras dirigem a mente em voos calmos ou

picados. Um silêncio corporiza e cria a sensação.

Ver as gaivotas planar em tardes de maresia adivinha

a harmonia dos contrários. Braveja o mar em ondas e em

espuma. Que voz o altera e aperta o coração?

O marulho reflexa as falésias e desdobra as ondas em

quebradas e penhascos – os ecos repetidos na distância.

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E as gaivotas cada vez mais meticulosas, tão calmas

de paradas, suspensas do infinito. Desenham o silêncio nos

olhos concentrados, onde se abrem sendas e sons.

Nem uma mancha macula a nitidez azul do céu. A

brisa nas tardes adustas de estio traz a voz de longes e

chamares.

Deitou-se a tarde na espuma das ondas. As sombras

estendem seu manto que lentamente se espessa. E as

gaivotas, nítidas, recortadas, cruzam o azul anilado da

tardinha.

Que cidades invisíveis nos constroem? Ou que

mundos nos chegam nas figuras que traçam? Reabre a

memória o baú e evoca tempos idos.

A perfeição de um corpo e o controlo da vertigem no

domínio dos ventos. No rugir de ventos e marés, planam as

formas, impassíveis, na penumbra do anoitecer.

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E o mar recolheu no rubor que aos poucos esmorece

o dia e adensa o horizonte. Um clarão de fogo incendiou o

mar e comprime o coração no peito sufocado.

Que laivos amadura o cair da tarde? Desce o silêncio

a envolver as coisas. E tudo fica suspenso.

Que segredos arrastam seus porões? Que promessas,

ameaças ou medos trazem suas sombras?

A noite dos fundos silêncios que tudo revela e

desmascara.

Na mente, as linhas dos voos das gaivotas insistem,

nítidas, multímodas, a traçar imagens, volumes e

contornos. Planam e a cidade adormecida ganha a forma

indistinta de um sonho e de um apelo.

O planar certo, metódico, medido.

Nos ventos que sacodem a vida, ligam as linhas

pontos e contactos. Que mão secreta conduz o dia a dia?

Os passos medem os caminhos da existência e

marcam-nos as faces de sulcos e ausências. Figuras

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recortadas na senda do passado, ano a ano deixadas na

memória.

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Nada nos deixa indiferentes: um simples cheiro, a

alfazema, a hortelã; um rude tacto, a casca rugosa da

figueira ou de uma amendoeira, de um pinheiro; um gosto,

um incisivo gosto, a erva azeda, a macela; ou a cor, a cor

sonora no verde de inverno, a brancura reluzente de uma

casa exposta ao sol.

Forte, o apelo cruzado desses traços invisíveis. Tudo

é construção real e pertinente. Tudo aflora denso, intruso,

intenso, impositivo.

Desdobam as linhas o fio do passado e assomam as

figuras às janelas do tempo: nítidas umas, outras difusas,

vislumbre rápido ainda outras, ou contornos apenas na luz

forte que sufoca a emoção.

E as imagens perfilam-se na mente; à desfilada

percorre a imaginação a memória. A fundura de que somos

abismo e o peso do passado que nos puxa e trava os

passos!

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Nada esquece a memória, quer certa e arrumada,

quer caótica e impulsiva. Incisivas curvas nas linhas

cruzadas das gaivotas. O destino rapidamente traçado em

dois lanços de vento?

A vida, que é a vida, ao olhá-la nas linhas medidas

do planar das gaivotas? Um poço cheio de sonhos

abortados antes de ganharem forma?

Tem asas a mente e nada a detém nas loucas

cavalgadas. Linhas concisas, contidas nos traços invisíveis

do voo das gaivotas. Em potência, mundos, sonhos,

emoções, o forte fluir das coisas.

A vida concentrada no voo das gaivotas: ponto

conciso, traçado pelo encontro do planar distante com a

linha do horizonte.

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Do fundo da memória afloram figuras e formas.

Na mente se perfilam reais e evidentes.

O mundo e o infinito.

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Epílogo

A impregnada névoa das idades

Que dilui todos os contornos.

E quase os não distingo.

Dispersos me fogem os olhos e atenção.

O azul do céu profundo recorta

A silhueta planada das gaivotas.

O horizonte atrai o azul insatisfeito do mar

E os olhos se nos vão na distancia que os apela.

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