no reino da assunção, reina truká

127

Click here to load reader

Upload: nucleo-literaterras

Post on 23-Mar-2016

341 views

Category:

Documents


60 download

DESCRIPTION

Nesta obra literária No Reino da Assunção Reina Truká, o Povo Truká escreve pela primeira vez a sua versão da história. Contam sobre o processo de esbulho do seu território, desde o tempo da colonização até os dias atuais, destacando todo o processo de resistência e luta que os conduziu à retomada de grande parte do seu território tradicional.

TRANSCRIPT

Page 1: No Reino da Assunção, Reina Truká

Organização das Professoras Truká – OPITOrganização das Professoras Truká – OPIT

Secretaria de EducaçãoContinuada, Alfabetização

e Diversidade

Page 2: No Reino da Assunção, Reina Truká

Presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministro da EducaçãoFernando Haddad

Secretário-ExecutivoJairo Jorge da Silva

Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e DiversidadeAndré Luiz de Figueiredo Lázaro

Page 3: No Reino da Assunção, Reina Truká
Page 4: No Reino da Assunção, Reina Truká

APOIO À PUBLICAÇÃO

Faculdade de Letras - UFMGDiretor Jacyntho José Lins Brandão

Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras: escrita, leitura, traduçõesCoordenadora Maria Inês de Almeida

Este livro foi publicado com subsídios da Comissão Nacional de Apoio à Produção de Material Didático Indígena - CAPEMA instituída no âmbito da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD através da portaria nº 13 de 21 de julho de 2005.

Ficha catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias da FALE/UFMG

N739 No reino da Assunção, reina Truká / organização das professoras

Truká – OPIT ; [textos e ilustrações : professoras do Povo Truká :

Adriana Maria dos Santos ... [et al.]] – [Belo Horizonte] : FALE/

UFMG : SECAD/MEC, 2007.

124 p. : il.

ISBN: 978-85-7758-027-9

1. Índios Truká – Pernambuco. 2. Índios da América do Sul –

Brasil. 3. Literatura indígena – Brasil. I. Santos, Adriana Maria dos.

CDD : 898

Page 5: No Reino da Assunção, Reina Truká

Organização das Professoras Truká – OPIT

FALE/UFMG e SECAD/MEC2007

Page 6: No Reino da Assunção, Reina Truká

Expediente

Textos e Ilustrações:Professoras do Povo Truká: Adriana Maria dos Santos, Andréa Maria dos Santos, Ângela Maria dos Santos, Antonia Anselmo dos Santos, Artenízia Luiza da Silva Pereira, Assuera dos Santos Ribamar, Betânia Maria dos Santos, Cícera Antonia da Silva, Claudete dos Santos Barbosa, Dercy Antonia da Conceição, Edilane dos Santos Barros, Edilene Bezerra Pajeú, Edileuza Rodrigues dos Santos, Edna Bezerra Pajeú, Eliane dos Santos Nascimento, Eliane Maria Gonzaga, Eliene Maria dos Santos, Erisvania Maria de Menezes Araújo, Eulália da Silva Souza, Francisca Leontina da Cruz, Ildenildo de Souza Santos, Ivanira Orcelina dos Santos, Izanele Maria da Silva Gonzaga, Izomar Hermina da Silva Santos, Jaciene da Cruz e Silva, Lucimar Maria Mendes, Maria Aparecida da Conceição, Maria Aparecida da Conceição Barros, Maria Cleonice dos Santos Silva, Maria das Dores da Cruz Delfino, Maria das Dores da Silva, Maria Eunice Alventina de França, Maria Gilvanete Rodrigues dos Santos, Maria Lesihei da Costa Cavalcante, Maria Senhora dos Santos, Maria Sonia dos Santos, Maria Zenaide Alves de Souza, Poliana dos Anjos Alberto, Raimunda Ana de Souza, Raimunda Monteiro, Rita de Cássia Pereira de Brito, Sandra Soares da Silva, Selma Olinda da Conceição, Silvani Santos dos Anjos, Sonileide dos Santos, Vicência Maria da Silva, Vilaneide Conceição de França.

Realização:Centro de Cultura Luiz Freire

Coordenação:Organização das Professoras Truká - OPIT

Organização:Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)- Caroline Leal, Eliene Amorim, Heloisa Eneida.

Revisão:Caroline Leal Heloisa Eneida Saulo Feitosa Ângelo Bueno Edson Hely Silva

Revisão Ortográfica e Gramatical:Rogério Barata – CCLF

Revisão Geral:Caroline Leal – CCLF

Professoras, lideranças, anciãos e anciãs do povo Truká: Aurivan dos Santos Barros – Cacique, Joaquim Pereira da Silva – Cacique, Adailson Vieira dos Santos – Pajé, Ângelo Cirilo dos Santos, Antonio Alberto da Luz, Antonio Cirilo dos Santos, Antonio de Guê, Antonio Emiliano de Barros, Antonio Emiliano de Barros Filho, Augusto Felix da Silva, Damião Pereira da Silva, Deodato dos Santos, Ducarmo Felix de Barros, Ednaldo dos Santos, Francisco de Assis Barros de Sá, Francisco Magno de Sá Rodrigues, João Batista da Anunciação, José Alfredo Carinhanha, José Carlos dos Santos, José Francisco Vieira, José Leonardo Neto, Josefa Maria dos Santos, Luiz Alves Sufia, Maria de Fátima Delfino da Silva, Maria de Loudes dos Santos (Loudes Cirilo), Maria de Lourdes da Conceição (Lourdes Ciriaco), Maria de Lurdes dos Santos Barros, Mozeni Araújo de Sá, Paulo Alvino dos Santos, Pedro Alberto Maciel, Pedro Hermenegildo dos Santos, Sebastião Deodato dos Santos, Teodoro Luiz de França, Ulisses Mendes da Silva, Valdemar Joaquim da Silva.

Parceria:Comissão de Professores e Professoras Indígenas em Pernambuco – COPIPE

Conselho Indigenista Missionário – CIMI

Centro de Cultura Luiz FreireRua 27 de Janeiro, 181, Carmo, Olinda/PE. CEP: 53020-020.Fone: (81) 330152-41 - Fax: (81) 3429-4881www.cclf.org.br - [email protected]

Projeto Gráfico:Via Design Projetos de Comunicaçãowww.viadesign.com.br

Page 7: No Reino da Assunção, Reina Truká

Prefácio

Dedicatória

Apresentação

A nossa história

Essa Terra é Nossa!

A nossa organização é o centro da nossa luta

A geografia da Ilha da Assunção

Meio Ambiente e os Truká

Nossa Economia

Nosso dia-a-dia

Nossa religião e festas

Glossário

Referências

6Sumario,

9

10

12

44

52

68

78

88

110

119

32

120

Page 8: No Reino da Assunção, Reina Truká

Prefacio Registrar, através de textos e ilustrações, o acervo de histórias orais guardado pelos sábios e sábias do Reino da Assunção é mais uma conquista do povo Truká. Revisitar o passado histórico, observar o presente e cada detalhe do cotidiano é mergulhar nos saberes dos anciãos e anciãs. Visando a construção de um projeto societário que reafirme a condição de Povo Indígena, essa é uma experiência que se insere no contexto atual de luta pela efetivação dos direitos garantidos constitucionalmente, em especial o direito a uma educação escolar específica, diferenciada e intercultural.

Nesta obra literária No Reino da Assunção Reina Truká, o Povo Truká escreve pela primeira vez a sua versão da história. Contam sobre o processo de esbulho do seu território, desde o tempo da colonização até os dias atuais, destacando todo o processo de resistência e luta que os conduziu à retomada de grande parte do seu território tradicional.

Essa terra é nossa! Afirmam ensinando à sociedade envolvente que são sujeitos políticos fortes e organizados, e que atuam autonomamente na vida política, econômica, social e cultural deste país, contrariando o senso comum que insiste em propagar uma idéia ultrapassada sobre os povos indígenas, como selvagem ou incapazes.

É nas águas do Rio São Francisco – morada sagrada dos seus Encantos de Luz – que o Povo Truká fortalece a sua identidade, natureza e espiritualidade são intrínsecas, e no capítulo que trata da geografia teremos o privilégio de conhecer um pouco desse universo mítico e religioso, como o da ilha do Camaleão, ilha da Onça, ilha do Tatu, a Lagoa do Canudo e tantos outros.

,

Page 9: No Reino da Assunção, Reina Truká

7

A manutenção de seus locais sagrados é condição essencial para a sobrevivência cultural deste povo, por isso denunciam que qualquer empreendimento que afete o Rio São Francisco compromete a existência do seu povo e também dos outros povos ribeirinhos. O Povo Truká, que vem resistindo há mais de 500 anos de investida contra seu território, contra suas lideranças, que são barbaramente assassinadas e perseguidas sem que nenhuma providência seja tomada pelo Estado brasileiro, mais uma vez está em luta! Agora, também pela defesa do Rio São Francisco para impedir que sejam vítimas de mais um etnocídio.

O livro No Reino da Assunção Reina Truká, uma obra de autoria coletiva, simboliza a capacidade do Povo Truká continuar resistindo e, neste processo, ressaltamos a importância de todos e todas: lideranças, anciãos, anciãs do povo, destacando o papel fundamental do conjunto de professoras Truká que desde 1999 vem incansavelmente pesquisando, escrevendo, ilustrando as páginas deste livro, além de assumir responsabilidades diversas na organização interna do povo, de serem educadoras, mães, esposas, agricultoras, guerreiras.

O Centro de Cultura Luiz Freire reconhece todo o aprendizado adquirido no acompanhamento ao povo Truká na construção de uma escola que fortaleça a sua identidade étnica. A organização deste livro é um aspecto desse trabalho, que já dura oito anos, pois é mais um componente significativo na garantia de um escola que o povo Truká afirma e nós sabemos que é FORMADORA DE GUERREIROS!

Equipe IndigenistaCentro de Cultura Luiz Freire

Page 10: No Reino da Assunção, Reina Truká
Page 11: No Reino da Assunção, Reina Truká

9

Dedicatoria,

Viajando no tempo, visitando o “Reino da Assunção”, você conhecerá quem foram os guerreiros e guerreiras que se destacaram na luta dos Truká.

Esses heróis e heroínas contam, vivenciam e fazem a verdadeira história. Em suas memórias estão as marcas profundas das lutas travadas, do sangue derramado e da terra conquistada. Baseadas em seus relatos, nós conseguimos registrar toda nossa história até os dias atuais.

Então, para aqueles e aquelas que tombaram na luta e para os que ainda estão entre nós, dedicamos a nossa mais bela arte que viajará no além e na terra em busca da luz que anda.

A vocês:Acilon Ciriaco da LuzAntonio Cirilo dos SantosAdenilson dos Santos Vieira

A todas as lideranças Truká;A todos anciãos e anciãs;A toda comunidade Truká

Em especial a todos os professores e professoras Truká que contribuíram na construção desse livro e foram as autoras principais da obra.

Organização das Professoras Indígenas Truká - OPIT

Page 12: No Reino da Assunção, Reina Truká

10

Apresentacao,

Há muitos anos, nós educadores e educadoras Truká, junto com as lideranças, vimos a importância de registrar um documento que mostrasse para todos e todas a verdadeira história do nosso povo e que fosse contada por nós mesmos.

A idéia do livro Truká nasce no contexto da formação política e pedagógica na qual os professores e professoras estavam inseridos desde 1999, ano em que passamos a compreender o verdadeiro sentido da escola para nosso povo e de que forma ela contribuiria nos projetos de vida da comunidade.

Este livro que chamamos No Reino da Assunção, Reina Truká irá nos propiciar a oportunidade de viajarmos no tempo e conhecermos a fundo uma história de luta e resistência; quais foram as estratégias que utilizamos para fortalecer nossa organização social, a nossa identidade e a conquista da nossa Mãe Terra.

Contribuirá também no processo de desenvolvimento étnico e na compreensão do nosso povo sobre as conseqüências do processo histórico que vivenciamos, que ao longo do tempo sofremos influências e agressões da colonização, a causa pela qual hoje nossa cultura é reelaborada, porque ela é dinâmica de acordo com o tempo e o momento.

,

Page 13: No Reino da Assunção, Reina Truká

11

Nossa luta é atuar junto às lideranças e comunidade para construirmos, com ajuda desse livro, uma sociedade mais justa, que reconheça e valorize a diversidade existente em nosso País na busca da “Terra Sem Males”.

No Reino da Assunção, Reina Truká foi fruto de um trabalho coletivo entre os educadores, educadoras, lideranças e comunidade, valorizando principalmente as histórias orais, advindas dos mais velhos, através das pesquisas de campo, que envolveram todas as pessoas que contribuíram com a nossa luta. Foi um trabalho abençoado pelos Encantos de Luz e a proteção de Tupã.

Também recorremos a pesquisa documental e bibliográfica para dialogarmos com outros conhecimentos já produzidos acerca da nossa realidade e que nos interessou na nossa investigação.

Contamos ainda com assessoria da equipe Educação e Etnia de Centro de Cultura Luiz Freire – CCLF e outros parceiros aliados na luta pela garantia dos direitos Truká.

Reina Assunção, Reina Truká.... Naê, Naê, Naê, Na-ô-a, Naê, Na-ô-a

Page 14: No Reino da Assunção, Reina Truká

12

Page 15: No Reino da Assunção, Reina Truká

13

Page 16: No Reino da Assunção, Reina Truká

14

Vamos começar agora contando a história dos nossos antepassados... Quando Deus fez o mundo tinha este homem por nome Velho Cá. Era um índio que vivia no deserto. Deus andava com São Pedro e eles descansaram no pé da jurema. São Pedro disse:- Senhor, tanta árvore importante de sombra para nós descansarmos e vamos descansar embaixo desta que só tem espinhos! Deus respondeu:- Pedro, de “tudo se precisa”. Quando nós sairmos daqui esta árvore vai ficar diferente das outras. Ficará umas com espinhos e outras sem espinhos. Vai ter um homem para sonhar arrancando a raiz desta árvore e colocar água parecendo com meu sangue. Nesse momento eu vou dando a ele minhas ciências. E continuou:- Aqueles que se lembrarem de mim para se livrar dos maus, continuarão todo o trabalho da parte indígena. Essa geração vai ser começada em toda parte, serão os indígenas. Deus disse isso tudo por causa daquele homem no deserto, o Velho Cá. Quando São Pedro chegou no outro mundo, Deus mandou ele vir a terra para passar três dias observando o trabalho daquele homem. Depois desses dias, Deus falou novamente:- Pedro, está com três dias que você saiu. Pedro respondeu:- É, Senhor, eu estava assistindo o trabalho daquele homem que o Senhor “tudo precisava”. E Deus terminou sua palestra:- Pois é, Pedro, eu não disse que aquela árvore ia ficar diferente das outras para as pessoas continuarem seu trabalho de ciência? O índio é aquele que se lembra de mim!

O começo de tudo

Page 17: No Reino da Assunção, Reina Truká
Page 18: No Reino da Assunção, Reina Truká

1�

A colonização no Sertão do São Francisco e os nossos antepassados Kariri

Quando os colonizadores chegaram às nossas terras, não aceitaram o nosso jeito de ser e tinham todo interesse no nosso território e nas nossas riquezas naturais. Chegaram ao litoral do Nordeste: os portugueses, depois os holandeses, os espanhóis, enfim, todos esses europeus, que nós conhecemos como os colonizadores ou homens brancos. Junto com eles também tinham os padres, representando a Igreja Católica Apostólica Romana. Destes tinham os Jesuítas, Capuchinhos franceses, Capuchinhos italianos e os Franciscanos. Todos eles se instalaram em Pernambuco e criaram missões nas terras dos índios com o objetivo de “salvar” as nossas almas e nos tornar “mansos” para melhor servirmos a coroa e sermos escravizados. Naquele período da história, Dom João III , o Rei de Portugal, mandou um homem de sua confiança para governar o Brasil, o seu nome era Tomé de Souza, que foi o Primeiro Governador Geral do Brasil. Este, por sua vez, também tinha o seu homem de confiança: Garcia D’Ávila, que era funcionário da Coroa Portuguesa. Ao chegar ao Brasil, ele apossou-se de muitas extensões de terra e tornou-se muito rico juntamente com outros portugueses influentes, criando animais e escravizando os índios do sertão, com muita violência, para serem seus vaqueiros. Garcia D’Ávila queria se apossar das terras dos índios, mas eles não deixavam. D’Ávila trouxe muitas cabeças de gado para as Ilhas da Assunção e Aracapá e colocava gente não-índia para tomar conta do gado, mas os índios botavam essa gente pra correr.

Page 19: No Reino da Assunção, Reina Truká

Brigaram muitas vezes, porque, além das tentativas de invadir as terras, o gado comia a plantação dos índios e estes muito brabos começaram a comer o gado dos D’Ávila. Então, os D’Ávila deram parte ao Governo de Pernambuco que mandou tirar com o uso da força os índios das ilhas. Os índios reagiram e houve muitas guerras, mas, como só os portugueses tinham armas de fogo, muitas vezes nossos antepassados foram vencidos. Mesmo não saindo todos da Ilha da Assunção, foi assim que os nossos antepassados Kariri se espalharam por Rodelas, Águas Belas, Serra do Umã e outros lugares. A geração que saiu da Ilha não voltou mais, e os que ficaram renderam e se misturaram com negros, índios de outras etnias e não-índios.

17

Page 20: No Reino da Assunção, Reina Truká

18

Quando Garcia D’Ávila morreu, seus filhos e netos continuaram entrando no Sertão e tomaram posse das terras do São Francisco, apoiados pelo governo. A família D’Ávila aumentava o seu prestígio junto às autoridades coloniais através das guerras que lideravam contra os índios, período conhecido como “de caça ao índio” , pois os governadores gerais queriam aumentar cada vez mais a criação do gado e para isso tinham que ficar livres dos índios que lutavam até o fim por suas terras. No século XVI, o nosso litoral tornou-se área de plantio agrícola, principalmente da cana-de-açúcar, pois o nosso clima e o nosso solo eram muito bons. Os primeiros a enfrentarem os colonizadores foram os povos litorâneos. Depois os portugueses sentiram necessidade de criar animais como bois, porcos, galinha, cabra, como vimos na história dos D’Ávila, só que não dava certo no litoral, porque os animais invadiam as roças e comiam tudo. Então, a partir de 1573, os colonizadores decidiram continuar a invasão, expandindo para o Sertão, pensando em conseguir mais terras para criar os seus animais e assim avançaram em mais e mais terra. Mas foi na metade do século XVII em diante que alcançaram nosso rio e, seguindo o curso do São Francisco, foram invadindo as terras dos índios que viviam nos sertões implantando as fazendas de gado e propiciando o aparecimento das vilas, paróquias e cidades.

Page 21: No Reino da Assunção, Reina Truká

Continuam as invasões

No século XVIII, vamos falar das leis de Marquês de Pombal. Ele tentou a todo custo expropriar nossas terras, criando uma legislação para integrar os índios à sociedade não-índia da época. Isso afetou a vida dos índios do Sertão do São Francisco, nossos antigos parentes. Vamos ver algumas delas: • Alvará de 14/ 04/ 1755 - dizia que os índios eram iguais aos

colonos e incentivava os casamentos de índios com não-índios;• Lei de 0�/ 0�/ 1755 - tratava da forma como os índios deveriam se

organizar em povoados. A idéia era nos “civilizar”;• Alvará de 07/ 0�/ 1755 - passava a administração da aldeia para os

próprios índios. Esse alvará teve a má intenção de colocar índios contra índios, pois os administradores não eram as lideranças escolhidas pelo povo e sim funcionários do governo.

Como podemos observar, já são três séculos de dominação e desrespeito aos povos indígenas. E a história não parou aqui...

19

Page 22: No Reino da Assunção, Reina Truká

20

Foi no século XIX que a nossa história ficou marcada por muita disputa entre os índios da Assunção com os chamados “poderosos de Cabrobó”, que além de quererem a posse das terras do nosso aldeamento, também tinham como objetivo controlar os nossos rebanhos e os próprios índios para mão-de-obra escrava. Para piorar a situação, o Imperador do Brasil D. Pedro II publicou, no ano de 1845, um regulamento que reduziu a capacidade civil dos índios, ou seja, nos tornou semelhante a crianças órfãs. Isto porque era intenção do governo se apossar de uma vez das terras indígenas e de fato o fez, quando no ano de 1850, o Imperador mandou incorporar aos nacionais as terras de índios que estivessem “confundidos com a população civilizada”. Para o Imperador, os índios e índias que tivessem realizado casamento com não-índios, tendo filhos com estes e aprendido os costumes da região, não eram mais índios. E tudo isso aconteceu porque fomos obrigados pela lei anterior, a do Pombal, e também pelas constantes expulsões de nossas terras que nos obrigou a perambular nesses Sertões.

Page 23: No Reino da Assunção, Reina Truká

21

Para fazer valer a Lei de Terras de 1850, o Ministro da Agricultura ordenou a extinção de três aldeias do Vale do São Francisco, entre elas a Aldeia da Assunção no ano de 1872 , segundo consta nos documentos oficiais. Porém, não desistimos da luta. Tínhamos o nosso Capitão, o Maioral da Aldeia da Assunção, Capitão Bernardino, que em 1857 escreveu para a Diretoria Geral dos Índios em Pernambuco e denunciou nossa situação, pedindo providência sobre extorsões violentas que nosso povo vinha sofrendo, além de perseguições e extermínio.

Bernardino informava que, após a Independência do Brasil, pessoas poderosas da região apossaram-se da Ilha da Assunção e dos bens que nela havia, como as roças, casas e as criações dos índios. Outro movimento do nosso povo ficou registrado no ano 1870. Tratou-se de um abaixo-assinado denunciando as invasões e pedindo um diretor parcial para barrar a ação dos cabroboenses contra nosso povo.

Após a transferência da sede da Comarca da Ilha da Assunção para Cabrobó, a Comarca Municipal arrendou toda a ilha e o grupo de ilhotas sob sua jurisdição, ficando assim os índios dependentes de favores dos rendeiros para poder manter suas famílias unidas e plantar para sua sobrevivência.

Page 24: No Reino da Assunção, Reina Truká

22

A doação da Terra para Santa

E a Igreja tomou as nossas terras... Os nossos antepassados, através da colonização, passaram a ser católicos. Por conta dessa devoção, tornaram-se filhos e filhas de Nossa Senhora Rainha dos Anjos. Contam os mais velhos que o Bispo de Pesqueira, dizendo-se representante legal da Santa na Terra, sem o conhecimento dos nossos índios, foi até o Cartório de Belém do São Francisco e no ano de 1920 registrou as nossas terras como patrimônio da Igreja, dizendo que os índios haviam doado a terra para a Santa. O Bispo, por sua vez, loteou as terras e vendeu para os fazendeiros e roubou o dinheiro arrecadado com a venda que seria para a Igreja. Neste tempo haviam três homens poderosos na região com interesse no nosso território: Alexandre da Guerra, Coronel D.João e o Major Otacílio. O Major Otacílio, de Juazeiro da Bahia, disse que dava �0 Contos de Réis pela Ilha, mas o Bispo teria que expulsar os índios de todo território, o Bispo não aceitou e preferiu vender por 40 contos ao Coronel D.João por este deixar todos os índios dentro da Ilha. Até a época de Dom João, o Bispo vinha celebrar missa todo ano no mês de agosto na festa de nossa padroeira, quando de repente ele deixou de vir. Foi quando Dom João contou que tinha comprado a Ilha por 40 contos ao Bispo, e todo mundo ficou sujeito a ele. Ele disse: - Comprei a Ilha por 40 Contos de Réis e agora vocês vão ficar pagando imposto do cercado para mim. E conseguiu. Como ninguém tinha condição, não podia ir lá no Rio de Janeiro saber de nada com Marechal Rondon, que era o responsável do governo pelos assuntos indígenas através do SPI - Serviço de Proteção ao Índio.

Page 25: No Reino da Assunção, Reina Truká

23

Page 26: No Reino da Assunção, Reina Truká

24

Depois Dom João morreu, mas tinha três filhos: um filho homem, que se chamava Alexandre Dom João e herdara a Ilha, e duas filhas mulheres, uma que se casou com um advogado chamado Eduardo e a outra que se casou com Pereira Dum. Pereira Dum ficou com a parte de cima da Ilha e Alexandre Dom João com a parte de baixo, e os índios ficaram pagando o imposto a eles. O tratamento era de pressão. O povo querendo trabalhar e eles sem querer deixar. Depois vieram outros como: Antônio Sampaio, que comprou de um lado a outro, do rio pequeno ao rio grande. Apesar de o Bispo ter vendido as terras ao Coronel, nossos antepassados não fraquejaram e assim houve um processo de união mais forte, através de uma importante escolha feita pelos encantados!

Page 27: No Reino da Assunção, Reina Truká

25

A escolha dos Encantos

Foi através de um sonho que os Encantos levantam Acilon Ciriaco da Luz para dar continuidade à luta do povo Truká. Ele passou muito tempo em estado de paralisação e quando despertou deste período, contou que foi solicitado pelos antepassados para ser a pessoa que iria reunir novamente o povo Turká, descendente de Kariri. Mas ele não deu importância e por isso começou a ficar doente. Isso foi um castigo dos Encantos para mostrar a Acilon a sabedoria de como iniciar os trabalhos da ciência. Um certo dia, ele começou a cantar linha de Toré junto com alguns parentes mais próximos, quando de repente todos caíram no chão. Sua esposa, D.Rosa, chamou João Amaro, que já conhecia da ciência, pois

trabalhava com Maria Cabocla na ponta da ilha. Quando chegou, defumou Acilon e todos levantaram. Acilon deu continuidade a seus trabalhos de ciência.

As primeiras pessoas que dançaram o Toré com Acilon foram Manoel Martins, José Martins, Zefinha de Bastião, Prosperina, Antonia Ciriaco, Marina, Prosperina, Salú, Lurdes Ciriaco. Depois vieram Petrina, Bia, Maria Caboca, João Pandé e outros...

Page 28: No Reino da Assunção, Reina Truká

2�

Surge a Nação Turká A origem do nome nunca teve quem descobrisse, pois esse nome Turká vem dos Encantos. Acilon passou algum tempo sem saber o nome dessa aldeia. Depois da viagem ao Rio de Janeiro, ele trabalhou com a cabocla Luizinha e Antonio Cirilo mais de um mês para descobrir o nome da aldeia junto aos encantos. Um dia deitou e sonhou: Tuxi, Tuxá , Tumbalalá, Nação Turká! Quando ele acordou, contou a Antonio Cirilo que o nome era Turká

Page 29: No Reino da Assunção, Reina Truká

27

Sou a caboca MacinaNão tenho o que procurarApenas eu vim dizerQue a nossa aldeia é Turká Vala-me Nossa SenhoraPor Deus queira nos valerDepois que os índios TurkáEssa batalha vencer Eu fui um EncantoLá vi uma mesa galanteNa cabeceira da mesaLá tava o mestre TurkáO capitão BernardinoCom seu cartãozinho na mãoDando sua declaração

Eia eia reina eiaEia eia reina oa

Eu andava pelo chãoRodando o chão deste mundoEu me acostei nos antigosSombra de D.Pedro segundo

Eia eia reina eiaEia eia reina oa

Até logo ó meus índiosEu já vou me arretirarVocês me encomendem a DeusAté lá no juremá

Todo caboco é poetaOs índios é lugiadorSei que os índios agoraÉ o encanto de amor

Eia eia reina eiaEia eia reina oa

Adeus, adeus ô meus índiosEu já vou me arretirarVocês me encomendem a DeusAté lá no beira-mar.

Ei naei naei naei naoa Nae enaoa

Esse toante veio para confirmar o nome da aldeia que era Turká. Com o tempo, as pessoas trocavam as letras e os funcionários do governo escreviam como queriam, até que se transformou em Truká.

Page 30: No Reino da Assunção, Reina Truká

28

A luta de Acilon e Antonio Cirilo

A revelação dos Encantos possibilitou que nossos guerreiros Acilon Ciriaco da Luz e Antonio Cirilo iniciassem uma nova fase da nossa luta pela reconquista da Ilha da Assunção. Foi através das viagens e das retomadas que os nossos anciãos fizeram o governo brasileiro reconhecer o nosso território tradicional. Nesse tempo, eles se organizavam através de encontros, se juntavam e iam conversar para decidir o que iam fazer. Na nossa organização dessa época não havia cacique nem pajé. Havia uns enfrentantes que chamávamos de Capitão, e no ritual eram chamados de mestre e Contra-Mestre. Nosso Mestre foi Antonio Ciríaco da Luz e o nosso Contra-Mestre Antonio Cirilo. Viajavam em busca de informações e apoio dos índios de Águas Belas, os Fulni-ô, de Rodelas, os Tuxá, e de Brejo dos Padres, os Pankararu. As viagens eram de canoa, de trem de vapor, de caminhão, de navio, de várias maneiras. Eram pagas pelos próprios índios, não tinha quem desse apoio à luta. Outra espécie de viagem era aquela para a antiga capital do Brasil, o Rio de Janeiro. Acilon, acompanhado dos seus índios, ia em busca de uma conversa com o Marechal Rondon para denunciar a situação de intrusão das nossas terras e para registrar a Aldeia da Assunção como terra de índio. Foram várias viagens até que o povo Truká recebeu a visita oficial do Inspetor Tubal Viana, do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Os índios então trabalharam na ciência três dias e três noites e Dr. Tubal confirmou que se tratava de trabalho indígena, pois nossos antepassados comprovaram que sua ciência tinha origem na jurema. Na despedida, os índios levaram Tubal até a canoa e cantaram uma cantiga que fizeram para ele. Os mais velhos contam que ele muito se emocionou e partiu da Assunção chorando.

Page 31: No Reino da Assunção, Reina Truká

29

Depois da visita de Tubal Viana, Acilon e Antonio Cirilo viajaram até Recife para se encontrar com Raimundo Dantas Carneiro e conseguiram que o SPI iniciasse um processo jurídico para garantir a nossa posse legal das terras da Assunção. Esse processo se chamou de “Ação de Nulidade de Venda e Reintegração de Posse”. Contudo, foi uma luta muito difícil, pois esta ação percorreu o foro Municipal, Estadual até chegar ao Supremo Tribunal da União. Isso levou 50 anos! A briga mais difícil foi no foro estadual quando os advogados de defesa dos posseiros diziam que aqui na Assunção não existiam mais índios e por isso não tínhamos direito algum às nossas terras. Isso provocou morosidade da justiça e enquanto nossa Ação Judicial não avançava, o Governo do Estado de Pernambuco se tornou mais um invasor de nossas terras...

Page 32: No Reino da Assunção, Reina Truká

30

O Governo de Pernambuco invadiu nossa terra

O fazendeiro Pereira Dum vendeu a Ilha para Antonio Sampaio, que depois de alguns anos de exploração da mão-de-obra dos índios e da riqueza do nosso solo vendeu parte da ilha ao Governo do Estado de Pernambuco, que, no ano de 19�5, instalou a Companhia de Revenda e Colonização (CRC). É importante destacar que o Governo do Estado ignorou a Ação Judicial e compra terra em área indígena, o que significava na nossa linguagem que se tratava de um ocupante de má fé. A Companhia fornecia terra e financiamento de produção agrícola para os regionais, ou seja, trouxe novamente pessoas de fora para a comunidade que passaram a sentir-se donos do nosso território tradicional. Isso abalou muito os mais velhos que lutavam desde a década de 1940, incansavelmente, para verem o título de posse da Assunção, terra dos antepassados. Essa ocupação durou alguns anos, pois depois que a CRC fechou por problemas financeiros o Governo instalou em seu lugar a Companhia de Produção de Mudas e Sementes Selecionadas do Estado de Pernambuco - SEMEMPE, gerando novas tensões, e grande parte de nossa área transformou-se em campo de produção de mudas e éramos proibidos de plantar para garantir a nossa sobrevivência. E, mais uma vez, foi necessário reunir forças, trabalhar com os Encantos e a geração dos filhos, filhas, netos e netas se uniram aos anciãos e desencadearam o processo de luta que resultou na reconquista de todo o nosso território. Em 19�7, foi instituída a FUNAI - Fundação Nacional de Assistência ao Índio, que substituiu o SPI - Serviço de Proteção ao Índio. A política da FUNAI, desde a sua criação, nunca foi de proteger os índios, mas de querer impor uma cultura de hierarquia, se sobrepondo à forma de organização social do povo.

Page 33: No Reino da Assunção, Reina Truká

31

Com a chegada do chefe de posto no povo Truká, foi criado um Conselho Tribal, influenciado pela FUNAI, composto por doze homens, segundo critérios estabelecidos pela Fundação : • Ser do sexo masculino• Ser mais velho A idéia de organização imposta pela FUNAI não seguia a mesma lógica de organização social que tinha nosso povo, uma vez que nossos líderes eram escolhidos pela Natureza, obedecendo às seguintes orientações: • Ser de famílias tradicionais• Ser participativo do Toré e no Particular • Ser referendado pelos Encantos O primeiro Conselho Tribal foi formado por Pedro Alberto, Antonio Bingô, Do Carmo, Pedro Felix, Antonio Pachola, Pedro Hermenegildo, Quinca, Pedro Birô, Manoel Deodato, Verbino Ciriaco, Augusto Felix, Joaquim Gavião. O objetivo do Conselho Tribal, criado pela FUNAI, era de interferir na luta social do povo e escolher um novo Cacique para conduzir a luta, que anteriormente era conduzida pelo Capitão Deodato, Antonio Cirilo dos Santos, Manoel Hermenegildo e Verbino Ciriaco. Com a criação do Conselho Tribal, houve uma eleição para escolha de um novo Cacique, sendo Deodato substituído por Joaquim Pereira da Silva (Quinca). A FUNAI pouco fez para levar adiante a Ação Judicial que iria garantir a nossa posse, ao contrário, procedeu de maneira burocrática, enviando ao longo dos anos equipes e equipes de antropólogos para dizer se na Assunção havia índios de fato.

Page 34: No Reino da Assunção, Reina Truká

32

Page 35: No Reino da Assunção, Reina Truká

33

Page 36: No Reino da Assunção, Reina Truká

34

As retomadas Até que uma nova geração decidiu levar a luta de uma maneira mais direta, pois que não se podia esperar nada do Governo, que aliás era invasor de nossa terra junto com outros fazendeiros. Era um período, não diferente dos anteriores, de grande violência entre índios e posseiros, hostilizações por parte dos funcionários da SEMEMPE- Companhia de Sementes e Mudas de Pernambuco e da força policial local. Houve vários conflitos que nos obrigou a abandonar novamente nossas terras.

Page 37: No Reino da Assunção, Reina Truká

35

Alguns foram morar em ilhotas, outros na periferia da cidade de Cabrobó, outros migraram para outras cidades e alguns permaneceram trabalhando no território como meeiros (empregados dos posseiros). Porém, não se identificavam como índios e tinham que fazer os rituais em lugares escondidos e de difícil acesso como Ilha da Onça e Ilha do Camaleão. Passamos muito tempo nesta situação. O problema se agravou quando o Departamento de Produção Vegetal - DPV/ SEMEMPE destruiu com trator nossas plantações de feijão e cebola que eram feitas de mutirão. Toda essa ação de destruição foi acobertada pelos policiais da cidade de Cabrobó. Houve desespero, gritos e choros de crianças, mulheres e homens por verem toda a sua roça acabada. Naquele momento não enfrentamos aquele massacre sofrido e preferimos registrar em documento a agressão para reivindicar justiça junto aos órgãos competentes. E mesmo os Truká sendo prejudicados nas suas plantações e sofrendo agressões, fomos submetidos a uma intimação para comparecermos à Delegacia Regional de Petrolina-PE, onde a justiça estipulou um prazo de três dias para desocuparmos a terra. Nós índios dissemos que não iríamos sair e fomos à procura de nossos direitos. Daí então começamos a nos reorganizar para conquistar nosso território, nos relatos dos nossos mais velhos, passamos por um processo de quatro retomadas. Sendo que em 1981 retomamos 2 lotes (14 ha) da SEMEMPE. Nessa época houve um grande conflito no cemitério e perdemos um grande guerreiro, Antonio Bingô, deixando o povo abatido e enfraquecido na luta. Em 1982, nós Truká passamos por uma ação mais direta e retomamos o trecho conhecido como Bomba 1, com 70 hectares. Nessa retomada, sofremos ameaças dos funcionários da SEMEMPE e da polícia local.

Page 38: No Reino da Assunção, Reina Truká

3�

Apesar de toda repressão, permanecemos na terra, embora fosse insuficiente para garantir a produção agrícola do povo. Os conflitos entre os Truká e a SEMEMPE continuaram, de forma mais organizada, pressionamos a FUNAI e, com o apoio do Conselho Indigenista Missionário - CIMI, mobilizamos a imprensa local e nacional para denunciar a difícil situação que o povo se encontrava. Em 1984, a FUNAI designou, através da Portaria nº 1.�47/E de 05/0�/84, uma comissão para fazer os estudos de identificação dos limites da área, delimitando-a a uma extensão de aproximadamente 1.�50 hectares. Isto correspondia a uma parte da cabeça da Ilha (área que ocupava a CRC). Sendo que os índios só ocupavam uma extensão inferior a �00 hectares e o restante ficando nas mãos dos posseiros. Neste mesmo ano, houve mais uma retomada feita por nós na área delimitada, conquistando mais 350 hectares. A FUNAI, de posse da Portaria nº 1.�47 foi obrigada a dar cobertura aos índios para permanecermos nela. Havia também outra parte da terra que reivindicávamos, próxima ao Posto Indígena, que tinha 150 hectares. Todas essas pequenas retomadas foram estratégicas para o nosso povo ter a posse dos 1.�50 hectares delimitados. Durante um período de dez anos os índios Truká amadureceram as idéias para fazer uma segunda retomada, que ocorreu em 31 de maio de 1994, na fazenda de Apolinário Siqueira (conhecido como Xinxa da cebola), equivalente a �50 hectares. Durou noventa dias. Nesta retomada sofremos várias ameaças por parte do fazendeiro que não se conformava em devolver as terras que pertenciam aos Truká. Houve grande participação da comunidade e, pela primeira vez, registrou-se a liderança dos filhos e filhas, netos e netas de Acilon e Antonio Cirilo, responsabilizando-se pela condução política dos trabalhos. São eles; Lourdes Cirilo, Lourdes Ciríaco, Quinca (Cacique), Dão, Neguinho, Tom Velho, Chofreu, Deodato, Manoel Peixe, Víctor,

Page 39: No Reino da Assunção, Reina Truká

37

Page 40: No Reino da Assunção, Reina Truká

Pedro Alberto, Sr Pedrinho, Zé de Nô, Pedão, Odila, Sr. Ângelo Cirilo, Sr Toinho, Sr. Antonio Chico, João Caititu, Lurdes Barros, Laura, Manoel Boi, Titico, Jovem, Ulisses, Cícera, Izomar,Penha, Pedro Baiano, Paulo Alvino (Mãe Rosa), Valmir, Demar Gavião e vários outros índios que deram a sua contribuição. Durante essa retomada, a terra foi insuficiente para todos, ficaram algumas famílias sem terra, a exemplo de Dona Lourdes Cirilo e os índios que a acompanhavam. Mas Dona Lourdes teve um grande incentivo da pessoa de Seu Antonio Emiliano (Seu Toinho), que sabia o caminho para encontrar a documentação que reconhecia a Ilha da Assunção como território tradicional do povo Truká, dessa forma teria apoio legal para continuar a reconquista do território. Viajaram até a cidade de Campina Grande, no Estado da Paraíba, à procura da antropóloga que participou do trabalho de identificação da terra. Chegando lá, conseguiram a cópia do documento e retornaram para a aldeia, desencadeando assim mais uma retomada.

38

Page 41: No Reino da Assunção, Reina Truká

39

Dona Lourdes se organizou juntamente com o seu povo e liderou a terceira retomada realizada em 17 de setembro de 1995, na Caatinga Grande, com 5�5 hectares, enfrentando o fazendeiro conhecido como Cícero Caló e o IPA(Instituto Pernambucano de Pesquisa Agropecuária). Dona Lourdes Cirilo teve o apoio de seu esposo Ulisses e das lideranças: Sr. Antonio Chico, Antonio Emiliano (Toinho), Joaquim, Ângelo Cirilo, Adailson, Neguinho, Dena, Caboco, Geronimo e as Famílias Borges, Procópios,Delfino, Carinhanha, Bezerra, Pereira, Ilarios, Cirilo, Mendes, Toinha de Assis, Preta (índia Atikum), Cornéu, Caititu, Firmino e outras famílias que também contribuíram para garantir o direito a terra. Foi uma luta muito grande, pois foi a única retomada que teve reintegração de posse, ou seja, os índios tiveram que sair da área ocupada por eles, expulsos por policiais militares sob o comando do Comandante Vidigal. A expulsão durou um dia, pois os índios retornaram ao acampamento novamente e permaneceram lá durante vários meses, até que a FUNAI iniciou o processo de indenização. Os moradores de Cícero Calo, sob pressão dos índios, iam desocupando as casas e a terra do povo Truká. À medida que saiam íamos plantando roças comunitárias. Foi nessa retomada também que os filhos dos antepassados foram voltando... Uma retomada que tinha muitas crianças e jovens que foram se formando na luta. Eles vivenciaram todo sofrimento, discriminação e perseguição do nosso povo e com isso pensavam em retomar a ilha toda para os mais velhos, que estavam cansados de tanto sofrimento. E foi com esse pensamento que os índios se organizaram mais uma vez para fazerem a retomada de todo território tradicional, o restante da ilha, pois ainda existia uma grande porcentagem de posseiros em nosso território.

Page 42: No Reino da Assunção, Reina Truká

40

As nossas lideranças jovens, na calada da noite, foram de casa em casa chamar os índios e índias para retomada. Isso foi exatamente em 2� de janeiro de 1999. Trezentas famílias levantaram acampamento na cabeça da ponte, área que liga a aldeia à cidade de Cabrobó, e começamos um processo importantíssimo para a conquista da terra. Nós mesmos expulsamos os intrusos da Ilha, soltamos os seus bois ponte afora até a praça da cidade de Cabrobó, isso para que todos vissem que, diferente dos posseiros que roubaram nossos gados, nós não queríamos os deles. Apenas alguns bois foram pegos para alimentar os índios e as lideranças avisavam aos donos que a FUNAI pagaria junto com as indenizações. Muitos posseiros saíram antes que chegássemos até eles, outros se negavam a devolver as terras e começaram a se aliar a poderosos da cidade que odiavam o povo Truká. Eles sabiam que quem liderava a retomada eram os herdeiros dos índios que eles muito pisaram, os filhos de Dona Lourdes e netos de Antonio Cirilo, eram eles: Isô, Neguinho, Adailson e Dena. Juntaram-se a eles outros guerreiros e guerreiras que participaram da retomada de 1995, que foram voltando de vários locais da região para reconquista da nossa mãe terra. Também contamos com o apoio de nossos mais velhos, homens, mulheres jovens e crianças. Contamos ainda com o importante apoio do CIMI e do CCLF (Centro de Cultura Luiz Freire), organizações não-governamentais que atuaram sistematicamente nesta luta, apoiando nossas lideranças, nosso povo, pois se tratava da conquista final da Ilha da Assunção. Essa retomada também significava uma homenagem aos líderes Antonio Cirilo e Acilon Ciriaco, que começaram essa luta em 1940.

Page 43: No Reino da Assunção, Reina Truká

41

Apesar de tanto apoio interno e externo, começamos a viver momentos de horrores, pois dia após dia deparávamos com policiais fortemente armados, alguns a mando de fazendeiros, invadindo nossas casas, roças, batendo nos nossos índios e discriminando nossos jovens e crianças. Muitas vezes fomos surpreendidos com helicópteros sobrevoando nossas cabeças com armas apontadas pra nós. Como vimos até aqui, desde a colonização que nossas terras foram sendo invadidas... O Estado brasileiro, que deveria nos proteger, pois a terra é nossa por direito, era exatamente quem mais nos ameaçava através das polícias militar e federal.

Page 44: No Reino da Assunção, Reina Truká

42

Passamos um ano de retomada e foi um ano de muita aflição, mas também de muita esperança. E nossas lideranças são criminalizadas... As perseguições aumentavam e com isso os poderosos investiram na marginalização do nosso povo através de processos, mandato de prisões e acusações equivocadas contra nossas lideranças. Tudo isso porque foi nessa retomada de 1999 que o povo Truká se destacou e retomou a sonhada mãe terra que se encontra hoje em nossas mãos. É a própria justiça, através da Promotoria de Cabrobó, que insiste em nos incriminar e assume uma rotina costumeira de expedir mandatos de prisões preventivas para as nossas lideranças. Pensam eles que dessa forma vão desmobilizar a nossa luta, mas a história dos povos indígenas tem mostrado justamente o contrário. Como são os casos de outros parentes cujo sangue foi derramado na luta: Xicão, do Povo Xukuru; Galdino, do povo Pataxó, e recentemente Dena Truká e seu filho Jorge, que foram executados por agentes da Policia Militar, no dia 30 de junho de 2005, com intenção de mais uma vez nos desorganizar e enfraquecer nosso processo de luta pela homologação do nosso território. Depois de tudo isso que contamos, falta ainda a homologação do território. Bem, mas essa é apenas mais uma etapa de nossa incansável luta. Por isso, nunca deixaremos de entoar nosso canto sagrado: Reina Assunção, Reina Truká

Page 45: No Reino da Assunção, Reina Truká

43

Page 46: No Reino da Assunção, Reina Truká

44

Page 47: No Reino da Assunção, Reina Truká

45

Page 48: No Reino da Assunção, Reina Truká

4�

O Povo Truká se organiza para que cada pessoa tenha uma função específica dentro do povo. A nossa organização política e religiosa é o centro da nossa luta. Ela é constituída pelas lideranças, Cacique, Pajé, conselheiros, conselheiras e Capitão. Para ser liderança tem que trabalhar e ter fé na nossa religião e quem escolhe quem vai ser liderança é a comunidade. Nossa organização tem um jeito próprio Estamos organizados em três áreas que denominamos de: Retomada, Caatinga Grande e Ponta da Ilha (CRC). Temos dois caciques: O cacique velho, Seu Quinca, e o cacique novo, Neguinho. Nossos caciques atuam de forma autônoma, cada um cuida dos problemas das comunidades que pertencem à sua liderança. Seu Quinca, da Ponta da Ilha e Caatinga Grande, e Neguinho, da Retomada. Nas questões da luta mais ampla, aquelas que interessam a todas as aldeias, como representação e participação externa do povo nos espaços de discussão e controle das políticas públicas, não nos distinguimos por área, mas nos apresentamos como Povo Truká. Na nossa história, a sucessão das nossas lideranças foi assim: Primeiro foi o Capitão Bernardino que passou o título para seu sobrinho Capitão Duardo. Estes morreram e depois de muitos anos os Encantados levantam o Capitão Acilon, que recebe o título do Encanto Bernardino.

Page 49: No Reino da Assunção, Reina Truká

47

Quando Acilon morreu, seu filho por afinidade, Hermenegildo, deu continuidade à luta. Quando adoeceu, já velhinho, passou a responsabilidade para seu companheiro de luta, Seu Deodato. Este foi o primeiro a receber o título de Cacique. Em seu tempo, havia outras representações políticas de Cacique, que eram Seu Antonio Cirilo, Manoel Hermenegildo e Virbino Ciriaco. Em seguida, houve a primeira eleição no povo para Cacique, Seu Quinca foi eleito e Sr. Deodato assumiu o título de capitão no cacicado de Sr.Quinca. Alguns anos após, durante a retomada de 1999, o povo decidiu eleger Ailson, neto de Antonio Cirilo, como Cacique que, depois de alguns anos, passou o título para seu irmão mais novo, Aurivan, ou como chamamos, Neguinho Truká.

Page 50: No Reino da Assunção, Reina Truká

48

Toda essa organização funciona também a partir da nossa geografia. São 25 aldeias e cada uma delas tem uma liderança ou mais de uma.

Page 51: No Reino da Assunção, Reina Truká

49

Na organização cada um tem sua responsabilidade O Caciqueé o nosso maior representante. É ele quem responde pelo povo e quem dá a direção à luta. É escolhido pelo povo e representa a comunidade juntamente com o Conselho de Lideranças diante do poder público, conferências, assembléias, seminários e outros espaços que discutem as questões indígenas. Ele também articula as lideranças e comunidade para tomadas de decisões e participa de todos os eventos do povo. O Conselho de Liderançasseus membros representam o povo em todas as instâncias públicas ou não. Resolvem questões internas, promovem eventos e articulam reuniões entre as comunidades. Cada aldeia escolhe seu líder para acompanhar o cacique e o capitão e é também papel das lideranças ouvir e serem ouvidas em todo e qualquer problema relacionado à aldeia. Ressaltamos que as estratégias de luta no povo Truká se dão de forma coletiva, a exemplo das retomadas de terra que ora se deram de forma planejada, ora de repente. O Capitãoé o responsável pelas atividades na ausência do cacique e deve fazer a vigília permanente em todo o território, cuidando da segurança da comunidade. O Pajé é membro do Conselho de Pajelança e cuida da ciência do povo. Ele é quem domina o saber das ervas medicinais que curam as enfermidades, aconselha e orienta o povo. O Conselho de Pajelança e/ou Conselho de Ciências Ocultasseus membros cuidam da religião e ciência do povo.

Page 52: No Reino da Assunção, Reina Truká

50

O Chefe do Ritual é o responsável pela religião junto com o Pajé. É ele quem ensina as linhas de Toré e orienta a comunidade na religião, incentivando sempre que as crianças e jovens pratiquem o Toré. O Chefe de Terreiro é quem abre e fecha o ritual, ele não pode sair antes de terminar. Os anciãos e anciãs são a base fundamental da nossa organização social, pois são os mais velhos que dominam a história do povo, garantem sua transmissão através da oralidade, dão sustentabilidade a nossa luta, orientando as lideranças na condução nos caminhos a serem percorridos. O Conselho de Saúdetemos dois conselhos que são compostos pelos membros da comunidade. Os conselhos se encontram sempre que necessário para definirem ações conjuntas referentes à saúde do nosso povo. Além das questões na aldeia, são os conselheiros que participam de um conselho regional, junto com os índios de outros povos para juntos propor, acompanhar e fiscalizar a política nacional de saúde. A Organização dos/as Professores/as Indígenas Truká (OPIT)a coordenação é composta por quatorze professoras do povo e duas lideranças. A OPIT tem como atribuições: representar os professores (as) em tudo que diz respeito à educação diante do Poder Público, da comunidade e demais organizações; resolver questões internas no âmbito da educação; fiscalizar os recursos destinados à educação; discutir, acompanhar e avaliar ações, programas e projetos que nos dizem respeito; articular os professores (as) para a tomada de decisões; promover, organizar e planejar encontros nas diversas aldeias; acompanhar, avaliar e garantir o desenvolvimento do projeto político-pedagógico das nossas escolas; participar de todos os eventos na comunidade.

Page 53: No Reino da Assunção, Reina Truká

51

A Organização dos/as Jovens Indígenas Truká (OJIT)a coordenação é composta por dez jovens da comunidade. Tem como atribuição articular a juventude para discutir assuntos de interesse específicos, acompanhar as lideranças nos movimentos, articular-se com jovens de outros povos e propor atividades de formação e lazer. A Associaçãotemos 4 associações para elaborar projetos de desenvolvimento econômico, de sustentabilidade do povo. Precisamos das associações porque o estado brasileiro não reconhece a nossa forma de organização própria, então temos que criar associações para nos adequar à burocracia do governo no que diz respeito a esses tipos de projetos.

Page 54: No Reino da Assunção, Reina Truká

52

Page 55: No Reino da Assunção, Reina Truká

53

Page 56: No Reino da Assunção, Reina Truká

54

O dilúvio

Há muito, muito tempo, aconteceu um dilúvio. A nossa aldeia era unida no estado de Pernambuco, pois só havia uma perna do rio São Francisco. Esse era o único leito que nos separava do pedaço de terra que conhecemos hoje como estado da Bahia. Quando aconteceu o dilúvio, as águas enfrentaram a terra e, vencendo-a, criou uma outra perna de rio, formando assim a nossa ilha. Os colonizadores passaram a chamá-la de Ilha do Pambú, por localizar-se em frente ao povoado do Pambú, na Bahia. Foi invadida pelos colonizadores, quando teve início um aldeamento, ou como chamavam: “missão de índios”. Foi construída uma paróquia e depois se tornou Vila de Nossa Senhora da Assunção, tendo lugar o ato da instalação, no dia 23 de setembro de 17��, pelo ouvidor da comarca da Alagoas Dr. Manoel Gouvêa Álvares. Foi esse o motivo que a ilha passou a se chamar Ilha da Assunção, onde vive até os dias atuais o Povo Truká.

Page 57: No Reino da Assunção, Reina Truká

55

Quantos somos

Atualmente o povo Truká tem uma população aproximada de 4 mil índios que habitam os �.200 hectares da Ilha da Assunção e os 970 hectares do arquipélago, que abrangem 84 ilhas menores. Aos poucos a nossa população foi crescendo porque conseguimos retomar toda a nossa ilha. Nossos parentes que estavam fora, os descendentes daqueles que foram expulsos pela igreja e pelos fazendeiros, foram retornando à sua verdadeira casa. Vários documentos informam essa oscilação populacional na ilha, em decorrência das seqüentes invasões. Vamos ver o que dizem esses registros: 171� - 100 fogos, aproximadamente 270 casas;17�1 - 270 casas;1789 - 400 indígenas;1817 - 154 indígenas;1853 - �20 indígenas. Como vemos, o aumento da nossa população hoje representa para nós uma grande conquista! Apesar de toda política de governo para nos extinguir, resistimos e hoje a população indígena no Brasil está crescendo para mostrar ao país como é bonita a diversidade.

Page 58: No Reino da Assunção, Reina Truká

5�

A mata e os animais

A nossa vegetação é caatinga e muitos de nós a chamamos de “mata”. Para nós, Truká, ela é muito importante para sobrevivência e vida de todos os índios e índias do nosso povo, pois é através dessa vegetação, presente na nossa natureza, que retiramos o alimento, as plantas medicinais, a matéria-prima da nossa arte e a ciência para os rituais. Na caatinga, temos vários tipos de árvores que produzem frutos nas épocas de chuva, que são: umbuzeiro, juazeiro, marizeiro, xiquexique, que servem para a alimentação dos animais e que também ajudam na alimentação do nosso povo. E também o junco, a macela, a jurema e outras ervas da medicina tradicional. Nem tudo na terra é para comércio. A caatinga representa para nosso povo o trabalho da ciência oculta. Quando sentamos embaixo de algumas árvores antigas para fazer nosso ritual, entendemos que a natureza nos oferece outros tipos de riqueza que alguns não-índios não compreendem. É dela também que colhemos as sementes do chocalinho e da bage da Turquia para colocar no maracá, fazer colar, brincos, pulseiras. Retiramos também o caroá para fazer os nossos atavios do ritual. A caatinga da Ilha da Assunção era muito rica até os engenheiros agrônomos da Companhia de Revenda e Colonização - CRC (aquele órgão do Governo do Estado de Pernambuco que invadiu nosso território no ano de 19�5) trazerem as algarobas. Por causa da algaroba desapareceu a coronheira, o pau-brasil, a lã de ceda já não tem mais como tinha antes, jatobaceiro, pau-ferro, umburana de cheiro, brauna, aroeira e carcarejeiro. Tudo era caatinga que tinha aqui e desapareceu. A lã de ceda era vendida para a tecelagem, mas a CRC desmatou para fazer plantio, argumentando que os índios tinham muita terra e não trabalhavam.

Page 59: No Reino da Assunção, Reina Truká

57

Page 60: No Reino da Assunção, Reina Truká

58

Com a destruição de parte da nossa vegetação pelos não-índios, muitos animais também desapareceram ou existem de forma rara, como o preá, a cobra, saruê, gambá, raposa, gato-do-mato, guará, rato, peba, tatu, camaleão, teiú, calango, bico doce, lagartixa, veado, seriema, juriti. Sabemos que sem a preservação da flora dificilmente a fauna sobreviverá, por isso nosso povo entende que, com a retomada total do nosso território, é hora de cuidar da natureza sagrada.

O clima na Assunção

O clima predominante na nossa região é o semi-árido. Estamos em uma Ilha cercada pelo Rio São Francisco, então nosso clima tem muita interferência das águas e dos ventos. Varia de acordo com os meses do ano, mas é predominantemente quente. Porém, por causa do rio, nossas manhãs e os anoiteceres são mais frios, principalmente nos meses de junho, julho e agosto. Outra característica do semi-árido são as chuvas irregulares. Há períodos de longa escassez e outros de muita chuva. Na nossa história, a Ilha da Assunção foi afetada por sete enchentes, nem todas foram provocadas por força da natureza, mas também porque o homem alterou e manipulou o meio ambiente.

Page 61: No Reino da Assunção, Reina Truká

59

As enchentes

Nosso povo explica assim: “No tempo que os padres moravam dentro da ilha, há séculos, os índios construíram uma igreja, levando pedra na cabeça. Depois de pronta, se enterrava gente dentro dela. Um dia, quando o padre terminou de celebrar a missa, falou para o pessoal que tinha um corpo enterrado dentro da igreja, mas que o chão não comeu. Então ele falou para o povo desenterrar o corpo e queimar no local onde ficava o gado ou que jogasse dentro da água. Esse corpo veio da Ilha da Aracapá, corpo de uma mulher. Disse ainda que se não tomasse providências, só iria dar jeito com uma enchente muito grande. Como de fato veio a enchente e derrubou a igreja, e junto com ela se acabou a maior parte do povo indígena”.

Page 62: No Reino da Assunção, Reina Truká

�0

Page 63: No Reino da Assunção, Reina Truká

�1Vinte seis anos depois da construção da Paróquia e da Vila de Cabrobó, em 1792 ocorreu a maior enchente de todos os tempos do Rio São Francisco, destruindo totalmente a vila sem deixar nenhum vestígio, restando apenas as ruínas da Paróquia, que ainda desafia o tempo. Houve outras grandes enchentes nos anos de 1839, 1843, 1906 e 1919, que levaram tudo de roldão: animais, plantações e cercados com a fúria das águas, causando assim sérios prejuízos aos índios Truká, e moradores do município de Cabrobó, que dependiam dessas plantações. Destacando a enchente de 1919, de todas as construções que havia em Cabrobó, resistiu apenas a Igreja Nossa Senhora da Conceição. Depois foi construída uma segunda igreja por Brígida de Alencar, uma fazendeira da região. Em 1960 houve uma das maiores enchentes que inundou todas as terras baixas da ilha da Assunção e, neste mesmo ano, a Ilha da Onça, local que serviu de refúgio para nós, quando éramos perseguidos pelos posseiros. Foi totalmente inundada e a Família Cirilo, que nela habitava, por terem sido expulsos da Assunção por Cícero Florentino Cavalcanti (Cícero Caló), teve que morar nas periferias da cidade de Cabrobó, enfrentando grandes discriminações por serem índios.

Page 64: No Reino da Assunção, Reina Truká

�2

No ano de 1979, o Rio São Francisco voltou a transbordar, uma grande enchente inundou quase toda Ilha e maior parte da cidade de Cabrobó, levando os índios e a população Cabroboense a grande desespero, já que as ilhas na qual tiravam o sustento através da agricultura, estavam todas debaixo das águas do velho Chico. Nesta época o nosso povo passou por muitas necessidades e nos alimentávamos apenas com peixes jogados pela enchente nos córregos, lagoas e lugares baixos da ilha, pois a dificuldade de fazer a feira na cidade era imensa e também não havia dinheiro, porque não tínhamos de onde tirar, já que os meios de sobrevivência vinham da agricultura. Ainda com essa enchente, muitos índios que perderam suas moradias, foram recolhidos nos prédios escolares da cidade de Cabrobó pelo prefeito da época, também adoeciam muito por conta das águas contaminadas, pois morriam muitos animais com a enchente. Esses doentes só foram atendidos depois que águas do rio baixaram. Foi quando pode circular o ônibus da unidade móvel do Funrural que além da assistência médica, distribuía remédios gratuitamente. Nós, os índios e as demais populações ribeirinhas, sentíamos a morte na pele, pois as ameaças de “quebra” da barragem de Sobradinho eram muitas e nós não tínhamos para onde correr. Até que, felizmente para nossa alegria vimos as águas do rio baixar em seu nível e pudemos seguir nossas vidas. Todo esse mal foi culpa da CHESF (Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco), pois os técnicos calcularam a capacidade de acúmulo de água errado e o leito do rio subiu de 1.800 m³ para 14.000 m³, deixando assim não só os índios da Assunção, mas também toda população ribeirinha desabrigada por muito tempo.

Page 65: No Reino da Assunção, Reina Truká

�3

Com a construção da Barragem de Sobradinho, o Rio São Francisco não foi mais o mesmo. Suas águas nunca mais voltaram ao nível normal, perderam a maior parte de suas matas ciliares que são a sua proteção, provocou a escassez de vários tipos de peixes e, principalmente, mexeu com os encantos da água: a lontra, nego d’água, cavalo-marinho e a mãe-d’água que deixaram de aparecer para nós com freqüência. Em fevereiro de 2004, surge uma nova ameaça de enchente, devido às chuvas fortes e constantes. Dessa vez houve grande inquietação do povo Truká e dos urbanistas cabroboenses que tiveram suas residências destruídas. Mais uma vez o temor de que se quebrasse a barragem de Sobradinho pairou sobre nós, Truká, e populações ribeirinhas. Nós ficamos preocupados, pois a única estrada que dava acesso à cidade transformou-se num enorme vale de águas, impedindo o tráfego de transportes. Para chegar até a cidade nossa comunidade utilizava dois transportes: um que levava até o vale e outro depois do vale, até a cidade. A travessia do vale se fazia por uma ponte pequena de madeira que os homens improvisaram. As motos e bicicletas pararam de trafegar. Houve também grandes prejuízos econômicos, pois as criações que ficavam nos currais, nas vazantes, como cabra e ovelha, foram levadas nas correntezas. Perdemos muitos plantios de arroz e outros cultivos que são plantados nas vazantes. Muitas moradias foram ao chão, deixando muitos de nós desabrigados. De lá pra cá, o Rio está mais calmo, reconstruímos nossas roças, casas e plantações, e esperamos que o Pai Tupã e os Encantos de Luz cuidem dos seus índios e não deixem que soframos tanto pela falta de sabedoria dos não-índios que manipulam a natureza sagrada.

Page 66: No Reino da Assunção, Reina Truká

�4

Os tipos de solo

Na nossa ilha há dois tipos principais de solos: barro e areiusca O do tipo “barro” é o solo argilo-arenoso. Esse é o que retém mais água e é usado nas plantações de cebola e arroz. Este solo é predominante no nosso território. O outro tipo é o areiusca, solo basicamente de areia. Esse é o que tem maior impermeabilidade, por isso é nele que plantamos feijão, batata, milho, abóbora e macaxeira. Os outros tipos de solo da nossa área são o pedregoso; aquele que sustenta a mata (caatinga) e que tem esse nome devido ao grande número de pedras arredondadas, conhecidas como seixo rolante, presente também nas margens do rio.

O outro tipo é o aluvial: aquele das áreas alagadas, que nas épocas mais secas é usado para a agricultura. O maior problema encontrado nos nossos solos é o alto índice de salinização. Isso se deve a um conjunto de fatores resultante da ocupação indevida de fazendeiros na nossa terra por um longo período de anos. Vamos ver os principais problemas: • evapotranspiração: a água não se infiltra nos solos, ficando na

superfície e assim evapora. Os sais presentes na água ficam retidos no solo e o tornam salino. Esse problema é agravado pelo uso constante de sistemas de irrigação, deixados pelos fazendeiros, e que ainda usamos, pois com a construção da barragem de Sobradinho (BA), não pudemos mais plantar de vazante, como faziam os mais velhos.

• agrotóxicos: o uso excessivo de defensivos e fertilizantes químicos também contribui para a salinização, pois os sais presentes em sua composição também ficam retidos no solo.

• queimadas: destroem todos os nutrientes do solo, deixando o sal que o enfraquece.

Page 67: No Reino da Assunção, Reina Truká

�5

Conhecemos dois tipos de salinidade na nossa terra, o sal frio no qual o solo ainda responde, permitindo que algumas plantas cresçam, e o sal quente no qual o solo já está sem fertilidade. Hoje nossa luta é romper com as técnicas deixadas pelos não-índios, que degradam nosso solo, e buscar tecnologias alternativas de agricultura que produzam nosso alimento cuidando do nosso meio ambiente, juntando com os saberes dos mais velhos.

Page 68: No Reino da Assunção, Reina Truká

O relevo na Ilha é plano

O nosso relevo é plano, mas tem leves ondulações entre o local que construímos nossas casas e a margem do rio. A área de maior altitude tem como característica uma caatinga mais densa, onde existem mais rochas, seixos, e é onde construímos nossas casas, escolas e demais construções. A área de menor altitude é chamada por nós de vazante. É uma área boa para plantio, pois tem mais matéria orgânica.

��

Page 69: No Reino da Assunção, Reina Truká

Os limites da Ilha de Assunção

O nosso território tradicional tem quatro léguas na parte do estado de Pernambuco, segue o Rio Tucutu, dirige-se ao Serrote de Ponta e à Letra. Da Letra, dirige-se a Serra de Santa Rosa; da Serra de Santa Rosa, dirige-se à Barra de Aracapá e assim tá feito o círculo da aldeia Truká. Porém, com as inavasões o nosso domínio foi reduzindo gradativamente, até o tempo quando a Funai demarcou nossa terra em �.200 há, ficando assim delimitada: Ao Norte - a divisão do rio grande e pequeno. (Rio São Francisco )Ao Sul - encontros dos rios.A Leste - passagem do rio pequeno.A Oeste - passagem do rio grande.

�7

Page 70: No Reino da Assunção, Reina Truká

�8

Page 71: No Reino da Assunção, Reina Truká

�9

Page 72: No Reino da Assunção, Reina Truká

70

Opará: Rio São Francisco Sua geografia

O território Truká é rodeado pelo Rio São Francisco que começa na ponta de cima da Ilha, abrindo-se em dois rios: o rio grande e o rio pequeno, terminando na ponta de baixo da ilha, que chamamos “na boca do braço”. O Rio tem sua nascente no estado de Minas Gerais, na Serra da Canastra. Segue em direção ao Norte, passando pela Bahia, desvia seu curso para o leste, passando por Pernambuco, Alagoas e Sergipe para finalmente desembocar no Oceano Atlântico em Alagoas no município de Piaçabuçu (hoje). É um dos maiores rios brasileiros e, junto com seus afluentes e sub-afluentes, forma uma bacia hidrográfica que abrange uma parte considerável do território pernambucano. É onde ele faz divisa com a Bahia e Pernambuco que passa pela Ilha da Assunção.

Page 73: No Reino da Assunção, Reina Truká

71

Page 74: No Reino da Assunção, Reina Truká

72

Sua História

O nome São Francisco foi dado pelos não-índios que preferiram não respeitar o nome que vários povos ribeirinhos davam ao rio, que é Opará. Isto porque, quando o colonizador Américo Vespúcio encontrou a foz e subiu rio acima, os não-índios relacionaram esse acontecimento ao dia do Santo Italiano São Francisco de Assis. A partir daí, ficou definitivamente com o nome de Rio São Francisco. Vários colonizadores exploraram o nosso rio, como os portugueses comandados por Garcia D’Ávila, que vieram com o objetivo de criar gado e, como vimos no capítulo da história, foi a partir daí que se iniciou a invasão das terras indígenas. Garcia D’Ávila fez vários curais às margens do São Francisco para colocar o gado da raça malabar, que ele trazia do recôncavo baiano para esta região. Com o aumento da criação do gado, aumentou o número de pessoas que eram trazidas para o trabalho na lavoura. Com isso, famílias foram aumentando, os currais foram se transformando em sede das fazendas, depois em vila e muitas delas em cidades. As embarcações que fizeram a navegação no Rio São Francisco, - hoje quase totalmente desativadas, - foram inicialmente as canoas feitas de madeiras amarradas com cipós colhidos nas próprias margens do rio. Depois surgiram as barcas ajojos, os vapores, os barcos sergipanos, os rebocadores, existentes até hoje, e agora pequenos barcos e lanchas modernas.

Page 75: No Reino da Assunção, Reina Truká

73

O rio está poluído

Atualmente, a água do rio está doente, boa parte do seu fluxo está poluída por muitos metais pesados, dejetos humanos e restos industriais. As grandes barragens, os grandes paredões, fizeram com que ocorressem esses problemas com as águas. Através da contaminação das águas, perdemos peixes, a caça, as matas ciliares, as plantas medicinais no leito do rio (erva cidreira, macela, junco e alecrim). Isso é muito triste. O Rio São Francisco, desde o tempo da colonização, vem sofrendo com a destruição de suas matas ciliares e por isso algumas espécies vegetais se encontram em fase de extinção em quase toda a bacia, como é o caso dos jatobazeiros, os manguezais, o munquém, o zozó e a principal responsável pela sustentação das barrancas: as ingazeiras. Com a ausência das árvores o rio vai se tornando cada vez mais estreito. Sem a vegetação, desaparecem os abrigos das espécies animais terrestres e aquáticos, Por exemplo; o paturi, que faz o seu ninho nos ocos das árvores, os peixes, que na piracema desovam nas lagoas marginais, e assim por diante. Sem a presença dos elementos básicos para a reprodução das espécies, a tendência é se extinguirem.

Page 76: No Reino da Assunção, Reina Truká

74

O Rio e os Truká

O Rio São Francisco é muito importante para nós, pois é das águas deste rio que tiramos nosso alimento, nossas plantações, nos fortalecemos espiritualmente através das correntes dos encantos das águas, pois toda nossa força encontra-se em suas correntes. O Rio está sempre presente nas histórias que nosso povo conta, nos nossos mitos e na nossa religião através dos festejos de São Francisco de Assis, na Aldeia Caatinguinha, no mês de outubro. Faz parte da identidade do povo Truká. Foi usado como ponto de ligação pelos mais velhos que, proibidos de fazerem o nosso ritual naquela época, atravessavam o rio que guardava locais sagrados para nós. Por isso tem sua historia, que jamais conseguiríamos apagar. Para nós, Truká, lutar em defesa do velho Chico é lutar pela existência do nosso povo, já que ele é parte de nossa vida. Não existe Truká sem o Rio, nem o Rio sem Truká.

Page 77: No Reino da Assunção, Reina Truká

Meio ambiente e a identidade Truká

O meio ambiente está ligado ao nosso dia-a-dia, ao que comemos, ao que bebemos, à nossa religião, tudo vem da natureza! A nossa terra nos foi dada pelos encantos de luz que aqui viveram na caatinga, no rio, e que hoje vivem no ar, nos dando força pra continuar a luta. Essa terra é nossa e a nossa identidade, a nossa história, isso ninguém pode refazer novamente. Um exemplo da relação entre a nossa identidade e o meio ambiente é o rio São Francisco. Ele é como se fosse o sangue que corre em nossas veias. Quando ele está fraco, nós enfraquecemos, Mas quando ele está cheio de vida, Nós nos sentimos fortes!Com isso, a nossa identidade se fortalece. É nessa dinâmica que a identidade do povo Truká se relaciona com o meio ambiente no qual convivemos. Sabemos que precisamos preservar o nosso rio e mata, porque sem o meio ambiente a nossa cultura não seria a mesma. Foi através da força da natureza que recebemos o direito de sermos os verdadeiros donos da Ilha da Assunção !

75

Page 78: No Reino da Assunção, Reina Truká

7�

Locais sagrados

Ilha do Camaleãonela se encontrava muito camaleão, então começaram a chamá-la assim. Os índios que não tinham terra, porque os não-índios invadiram, trabalhavam lá. Plantavam batata, mandioca, milho e feijão. Lá também faziam os trabalhos de ciência e dançavam o Toré. Dançavam nesta ilha porque na Ilha da Assunção o povo tinha medo de ser castigado, pois os invasores não deixavam. Contam os velhos que D. Prosperina tinha uma casa que abrigava os dançadores do Toré, pois eram muitos: Margarida, Adalgisa, Marina Ciriaco, Hermina Gavião, Antonia Ciriaco, Nenê de João Amaro, Antonio Bingô, Deodato, Odila de Paulo (baiana), Hermenegildo, Dardô Pachola, Rosa de Acilon, Joana Severo, Pedro Birô, Zé Birô, Verbino, Lurdes de Acilon e outros. Hoje, quem cuida da Ilha do Camaleão é Deodato, João Gavião, Joaquim Gavião e Zé Birô. Ilha da Favelao nome Ilha da Favela é porque tinha uma planta chamada faveleira. Lá era onde a finada Maria Cabocla dançava o Toré às escondidas. Ilha da Onçaé um local sagrado onde se dança Toré. Era também um local de refúgio quando os índios eram expulsos de suas terras. Nessa ilha se conseguia fazer o ritual em paz. Esse nome foi dado pelos mais velhos que contam que na ilha não havia animais selvagens, mas um dia um índio encontrou uma onça pintada e até hoje ninguém sabe dizer como ela surgiu. Lagoa do Canudoera uma mata muito preservada, onde tinha uma lagoa no meio que até hoje tem muito peixe e caça. Lá tem muito Encanto onde Acilon e seu povo adquiriu ciência junto com jurema para seus trabalhos de ritual.

Page 79: No Reino da Assunção, Reina Truká

77

Campo do Boimé um local sagrado, que fica na caatinga do gavião. Era onde os antepassados praticavam a nossa religião, dançavam o Toré e trabalhavam as ciências ocultas, escondidos dos não-índios. Ainda hoje tem um rego que é o lugar onde os índios ficavam, no Alto do Gavião perto da igreja. Cemitérioantigamente se enterravam os mortos em jarras de barro. Os índios cortavam o morto, colocavam dentro de jarras e enterravam na caatinga em qualquer lugar, porque os brancos não podiam saber onde tinham enterrado os índios. Com o passar do tempo, quando começaram a limpar as terras, o pessoal encontrava as jarras quebradas com pedaços de ossos dos índios, é por isso que muita gente vê visagem em algumas estradas: vê luz, barulho de gente cantando, gritando, rezando, são os caboclos índios. Alto da Piçarraesse é um local misterioso que fica na aldeia Caatinga Grande. Muitas pessoas na aldeia já ouviram barulhos estranhos ao passar por esse local, como assobios, pedra rolando e visões de pilão e outras coisas. Pedra do Padreé outro local misterioso, os mais velhos contam que um padre, há muitos anos, enterrou ouro, prata e jóias. Dizem que esse lugar é “vigiado” até hoje pelo padre, que não deixa ninguém cavar perto da pedra. Ilha do Tatué um local sagrado que fica na aldeia Alto do Gavião. Lá eram realizados os trabalhos de ciência por Rosa de Acilon, Adalgiza, Prosperina, Neném de João Amaro, Maria Ciriaco, Leontina e Maria Ribeiro. Ilha do Cruzeirolocal sagrado onde Acilon colocou um cruzeiro para fazer o ritual quando era perseguido pelos posseiros.

Page 80: No Reino da Assunção, Reina Truká

78

Page 81: No Reino da Assunção, Reina Truká

79

Page 82: No Reino da Assunção, Reina Truká

80

Somos um povo agricultor

Somos um povo agricultor. A nossa economia tem como base o arroz, somos o maior produtor de arroz do estado de Pernambuco. Além dessa cultura, plantamos cebola, mandioca, feijão, milho. Na fruticultura, temos goiaba, manga, coco, maracujá, acerola. As frutas nativas são o umbu, mari, carapu, melão-são-caetano, fruto do xique-xique, jatobá, fruto do mandacaru. No tempo dos mais velhos, o povo Truká vivia da pesca, mas por causa do processo de destruição do Rio São Francisco, através da construção de barragens e hidrelétricas ao longo de seu curso e de poluentes, alguns peixes desapareceram e outros já estão em extinção como o surubim, piranha-do-papo amarelo, matrinxã, pacamã, pira, dourado, traíra e outros. Atualmente, os peixes mais pescados são o carí, xotó, piau, pacu, piranha branca, tucunaré. Também se praticava a caça e lavoura nas vazantes do rio e nas ilhotas. Cultivava-se milho, cana de açúcar, batata - angélica, batata orelha de cachorro, batata-melão, macaxeira-branca, macaxeira-preta, mandioca, mandioca-castiliana, mandioca-lagoa, piquitir ou folha-virada, abóbora, jerimum, macabeira-preta e branca, feijão-de-arranca, feijão-mulatinho, feijão-grugutuba, feijão-mamoninha, feijão-caboclo, feijão-mata-gorda, feijão-ribeiro, feijão-fogo-na-serra, fava, lã-de-seda e algodão. E na caça de animais como preá, tatu, peba, capivara, jacaré, veado, camaleão. Hoje tudo isso está mais escasso, também devido à destruição do rio. A molhação era com uma cuia do próprio cultivo, hoje molha com motores elétricos (bombas) e toda a agricultura é irrigada.

Page 83: No Reino da Assunção, Reina Truká

81

Antes as pessoas criavam muitos animais para o sustento da família como o porco, o bode, a galinha e uma vaquinha leiteira. Hoje criamos mais para a comercialização e investimento como a criação de boi, ovelhas, bode, guiné, peru e a galinha-de-capoeira.

Page 84: No Reino da Assunção, Reina Truká

82

Page 85: No Reino da Assunção, Reina Truká

83

A feira de Cabrobó A feira que participamos fica na cidade mais próxima, que é Cabrobó, e é realizada aos sábados o dia todo. Os feirantes começam a arrumar as bancas às cinco horas da manhã. Ela tem grande importância para os Truká, porque quase todos vivem da comercialização de frutas, verduras, legumes e plantas medicinais. Na feira comercializamos o arroz, milho, feijão, farinha, cebola, peixes e a venda de animais. Existem pessoas que comercializam roupas em bancas, outros vendem leite, queijo, manteiga de gado, mel-de-abelha, melancia, pimentão, tomate, coco e maracujá. Nesse dia, as pessoas da aldeia se deslocam até a cidade para fazer compras de produtos que não são produzidos na aldeia, como, por exemplo, o óleo, macarrão, farinha de trigo, açúcar, sal, pimenta-do-reino, refrigerante, roupas, calçados, perfumes, eletrodomésticos e outros. Os mais velhos lembram que seus pais catavam lã-de-seda, algodão e fiavam para fazer bolas de linhas e vender na feira para comprar alimentos para o sustento da família. Hoje não é mais preciso, pois já existem outras fontes de sobrevivência. Aqui em Truká a comercialização dos nossos produtos funciona da seguinte forma: temos os produtos que são comercializados aqui dentro que é a rede de pescar, tarrafa, pote, panela-de-barro, canoa, esteira, maracá, cataioba, colar, pulseira. Já o estrume, a algaroba, a palha-de-arroz e o coco, são produtos que os compradores vêm comprar na própria aldeia. Os que são comercializados fora são: cebola, banana, maracujá, feijão, manga, goiaba, melancia e o arroz.

Page 86: No Reino da Assunção, Reina Truká

84

Trabalhamos muito

Além de agricultores, no nosso povo há agentes comunitários de saúde, professoras, motoristas, merendeiras, estudantes, enfermeira e artesãos. Vamos ver o que cada um faz: Na Saúde Os agentes indígenas de saúde fazem um trabalho importantíssimo. São eles que orientam a comunidade para a saúde preventiva sobre as doenças, auxiliam na ida ao médico, marcam as visitas da equipe de saúde, acompanham os médicos nas visitas domiciliares, as enfermeiras nas campanhas de vacinação, levam os remédios alopáticos para as pessoas em tratamento. Acompanham os hipertensos, diabéticos, o crescimento das crianças, verificam os cartões de vacina e dão orientações em outros temas de interesse e necessários à saúde da comunidade. Os médicos realizam as consultas médicas nas aldeias e também no hospital. Em caso de urgências, encaminham para hospitais públicos mais equipados que são em Petrolina e Recife.

Page 87: No Reino da Assunção, Reina Truká

85

As enfermeiras realizam consultas e pré-natal, acompanham os agentes de saúde nas suas tarefas, fazem acompanhamento de hipertensos, diabéticos, acompanham crianças e dão palestras na comunidade. Os auxiliares de enfermagem realizam vacinas, curativos, fazem retirada de pontos, aplicam injeções, entregam as medicações de controle e acompanham as equipes nas visitas domiciliares. O dentista acompanha a equipe nas visitas domiciliares para aplicação de flúor, faz palestras educativas, faz obturações, extrações em seus consultórios na cidade. Ainda não temos médicos, médicas, enfermeiros, enfermeiras e dentistas índios, mas nossas lideranças estão se empenhando para que a juventude da aldeia consigam estudar e se formar nas diversas áreas de conhecimento da sociedade envolvente para trabalharem para o povo, com compromisso e respeito aos saberes dos mais velhos, a nossa organização e jeito de ser.

Page 88: No Reino da Assunção, Reina Truká

8�

Isso porque, mais do que as inúmeras orientações levadas à comunidade sobre cuidados com o lar, saúde, ambiente e outros, nós indígenas temos um papel maior do que compor o corpo da equipe multidisciplinar de saúde, que atua dentro da comunidade. Por sermos do povo, convivemos, conhecemos e sabemos da importância da medicina tradicional para os Truká. Embora a medicina farmacêutica exista dentro do povo, entendemos que o que vale é a preventiva usada pelos mais velhos que, até hoje permanece, fazendo parte do processo de resistência, mantendo viva a nossa cultura e tradição. Isso porque a medicina sempre esteve ligada a uma forma muito religiosa e sagrada do povo Truká. O profissional de saúde indígena não é aquele que entrega a ficha de procedimento no pólo-base, constando que cumpriu o seu cronograma do mês. É aquele que acima de tudo é entendedor da luta, conhece as necessidades do povo e se preocupa em pesquisar as potencialidades de curas e prevenções ainda existentes no povo.

Na educaçãoAs professoras, além de ensinar às crianças os conteúdos da escola, são também pesquisadoras. Buscam trazer para a escola a história do povo. Elas têm a missão de formar guerreiros e guerreiras, dando conta de uma educação escolar de qualidade. As professoras também participam, articulam e organizam vários tipos de encontros e eventos na comunidade. São na maioria mulher, mas existem homens desempenhando esse papel. As merendeiras além da comida para as crianças, ajudam a manter o ambiente escolar limpo e organizado. Elas se dedicam no preparo de uma boa alimentação, fazem um grande esforço para isso, pois a Secretaria de Educação não garante uma merenda de qualidade, sendo esta uma grande luta.

Page 89: No Reino da Assunção, Reina Truká

87

Os motoristas transportam as professoras, alunos e alunas dentro da aldeia e da aldeia para a cidade, pois como não temos a educação básica ofertada em todos os seus níveis dentro da aldeia, muitos jovens terminam seus estudos nas escolas de Cabrobó. Diferente da saúde, na educação todos os profissionais são indígenas. Essa é uma luta que vamos contar mais adiante. No artesanatoOs artesãos e artesãs são aqueles que fazem o colar, arco e flexa, a borduna, os atavios do ritual, pote de barro e outros. São muito importantes na comunidade, porque são eles e elas que guardam os saberes da nossa cultura material, que é passada para as novas gerações.

No geral, nós, Truká, fazemos um pouco de tudo. Trabalhamos na agricultura, na escola, na saúde. Cuidamos dos nossos filhos e filhas, da nossa luta e da nossa religião. Quando falamos da economia, temos uma necessidade de romper com esse modelo de economia da sociedade dos não-índios que influencia os povos indígenas desde a colonização. Queremos fazer diferente e para isso procuramos nos organizar coletivamente e administrar nossos próprios produtos. Com a reconquista da Ilha da Assunção, as terras foram divididas por famílias, mas ainda assim não há terra suficiente para todos os índios habitarem e trabalharem. Então, o que fazer para quem não tem terra? Como ficam os índios que moram na aldeia e trabalham em outro lugar por não terem onde trabalhar aqui? Precisamos de meios para conseguir recursos para o nosso povo trabalhar, tendo também informação e formação para proteger as nossas terras dos agrotóxicos que estão acabando com a saúde da nossa natureza.

Page 90: No Reino da Assunção, Reina Truká

88

Page 91: No Reino da Assunção, Reina Truká

89

Page 92: No Reino da Assunção, Reina Truká

90

Cada um tem sua importância: crianças, jovens, homem, mulher, anciãos, anciãs.

Todos têm sua importância porque nos momentos mais importantes da luta se completam, dando fortalecimento à historia dos Truká, com suas diferentes maneiras de viver. As crianças traduzem o que será do futuro do povo, por isso, nascem acompanhando os pais no dia-a-dia, nos trabalhos de casa e principalmente na roça de onde ajudam a tirar o sustento. Elas aparecem nos rituais ainda bebês e logo se vê no terreiro nossos meninos e meninas, com seus maracás na mão e cataioba, fazendo parte da corrente que vive nessa Assunção. As crianças são a atenção do povo, pois é neles que estão nossas futuras lideranças.

Page 93: No Reino da Assunção, Reina Truká

91

Aqui em Truká bem cedinho a criança já tem que aprender a lidar com a mãe terra, com o rio, valorizando e cuidando. O aprendizado em casa é essencial na sua formação e quando vão às escolas na aldeia, conhecem mais a fundo a historia dos nossos antepassados, amadurecem suas habilidades e desenvolvem os seus saberes adquiridos com seus pais. Toda criança Truká precisa saber cantar as linhas de toré, dançar e conhecer a historia do seu povo. Os jovens, moças e rapazes, também exercem um papel importante e representativo dentro da comunidade e fora dela. São o presente e força futura, que junto com as crianças, lideranças e anciãos lutam pelos direitos do nosso povo. A educação que recebem tem como base principal o dia-a-dia na aldeia. Essa formação começa na comunidade, como fruto dos ensinamentos e experiências dos mais velhos, convivendo com as lideranças nas viagens, nos movimentos, e assim aprendem o sentido da luta pela terra, da luta pela autonomia; aprendem a reconhecer e valorizar a sua identidade. E, bem organizados hoje, assumem a responsabilidade com o futuro do povo, sempre orientados pelas lideranças. A juventude organizada se torna fortaleza da organização social da comunidade. Os homens Truká, trabalhadores, lideranças, guerreiros na história, sempre foram os escudos de proteção da comunidade e sua sabedoria é o instrumento de luta. Possuem muitas atribuições na aldeia, entre elas ajudam na formação dos filhos e filhas. Os homens são exemplos aos olhos das crianças e adolescentes Truká, são eles que ensinam a trabalhar na terra e a sua importância, abrem os caminhos para o povo avançar. Fazendo uma viagem na história do nosso povo sempre se revelam os grandes e valentes guerreiros, responsáveis pela existência e resistência do povo.

Page 94: No Reino da Assunção, Reina Truká

E ao lado deles também está o mistério da força das mulheres Truká. Quando conversamos com os mais velhos perguntamos qual era o papel da mulher Truká naquela época. Então, logo percebemos que não se resumia aos fazeres domésticos, ao contrário, além do seu papel fundamental dentro de casa, elas conduziam as atividades quando os seus índios iam para luta e, na maioria das vezes, os acompanhavam nessas caminhadas, como fazem até hoje. Nossas mulheres são agricultoras, parteiras, recadeiras, e as mais velhas, que não têm escolaridade, são sábias por natureza. Essa é uma face da identidade das mulheres Truká: Exercem o papel de liderança no seu lar, na roça, no ritual e, principalmente, na luta do povo. Isso é tão forte que elas continuam a reinar na nossa história.

92

Page 95: No Reino da Assunção, Reina Truká

Como exemplo, temos as nossas anciãs que para nós são como um “Encanto” vivo, um retrato do tempo que não acompanhamos, e dizemos que elas são nossa biblioteca muito viva, porque tudo que existe de precioso, raro da nossa historia, reflete nessas mulheres de fibra. E as que tombaram nas batalhas renasceram no espírito das mulheres de agora, pois assim como a cultura e as tradições, a bravura delas também passa de geração a geração. Hoje estamos com nosso território livre, levando à frente a luta do nosso povo. Hoje as mulheres estão indo bem mais além, com uma participação ativa e assumindo cada vez mais papéis importantíssimos nesse processo. Fazem parte da organização interna, pensam e agem na construção do projeto de futuro do povo. As experiências das guerreiras mais velhas informam nossa luta atual: mulheres sempre agricultoras, donas de casa, mulheres educadoras, agentes de saúde, mulheres que vão ser doutoras, mulheres que são mãe, que são jovens e velhas, que são bonitas como o Rio São Francisco e que serão lutadoras e sempre mulheres Truká, essa é a outra face da identidade das mulheres do nosso povo.

93

Page 96: No Reino da Assunção, Reina Truká

94

Page 97: No Reino da Assunção, Reina Truká

95

Namoro, casamento e família

Antigamente na cultura do povo Truká, os mais velhos queriam que índio casasse com índio para não haver mistura com os não-índios e assim continuaria a mesma tradição e costume do povo. Mas, a outra cultura da cidade - forró e outras diversões - atraíam a juventude e assim os pais não controlavam seus filhos e filhas que freqüentavam esse lazer. Assim os índios acabavam se envolvendo com as não-índias e os casamentos misturados acontecendo. E, no tempo mais remoto, havia leis que incentivavam este tipo de casamento, como vimos no capítulo da história o Alvará de 14/04/1755, do Marquês de Pombal. Nesse processo histórico que passamos, a cidade ficou pertinho de nossa aldeia, muitos dos costumes e valores dos brancos foram incorporados pelos índios e índias. Isto é, muitas coisas que eram importantes para os não - índios em relação ao comportamento da juventude era também para nossos avós. Por exemplo, os namoros... Só acontecia com a presença dos pais, ao rapaz que freqüentava a casa da moça, não era permitido que sentasse junto e passavam o tempo do namoro conversando com os pais da índia. Durante um ou dois meses o pai perguntava ao rapaz qual era as intenções dele com a sua filha, se o rapaz respondesse que seriam boas, então era agilizado o casamento, se ele não quisesse, tinha que terminar o namoro, porque na casa dele ninguém alisava banco e nem secava candeeiro. Se o pai da moça pegasse o rapaz conversando sozinho ou segurando a mão da sua filha, seria motivo para fazer o casamento sendo namorado ou não. Quando o pai de uma índia não permitia o namoro ou casamento, o rapaz a roubava e quando retornava os pais faziam o casamento. Atualmente é diferente, para os índios e também para a cidade. O casal de namorados tem mais liberdade no namoro, com direito a escolher com quem quer namorar ou casar. Há varias formas de casamento.

Page 98: No Reino da Assunção, Reina Truká

9�

Uma delas é o casamento religioso que é realizado com a presença de um sacerdote para dar a benção, nele é feito um juramento diante de Deus e testemunhas selando o ato, com a troca de alianças que simboliza o amor e união entre ambos. Após a cerimônia, os pais da noiva oferecem comes e bebes e um forró pra animar. Um outro é o casamento civil, que é feito antes do religioso. Este dá direito a divisão de bens, em caso de separação. Este casamento é feito através de um juiz e testemunhas. Há índios que preferem casar somente no religioso ou só no civil. Outra forma de casamento bem comum no povo é a união de duas pessoas que se amam e decidem viver e manter um relacionamento junto, abençoado pela natureza. Após esses processos de namoro e casamento, forma-se a família que é resultado da união e amor entre o casal.

Moradia

No povo Truká, há uma diversidade de moradias... Podemos considerar como moradas temporárias e sagradas, os locais de retomadas, quando nos organizamos para recuperar nossas terras e ficamos todos juntos, morando debaixo de um pé de pau e em barracas feitas no acampamento. Temos as casas de taipa, construída com varas finas e madeira grossa para dar sustentabilidade, rebocadas com barro, com cobertura de palha de coqueiro, palha de carnaubeira ou telha. Essa moradia tem uma tradição que ainda prevalece: o chamado BARRO. Para a sua construção o dono coloca as varas e forquilha (madeira grossa) e telhado, depois ele convida a comunidade para fazer um mutirão e fazer o barro. Ele oferece comida e bebida para animar a comunidade.

Page 99: No Reino da Assunção, Reina Truká

97

Page 100: No Reino da Assunção, Reina Truká

98

Devido às doenças, principalmente de Chagas, transmitida pelo mosquito barbeiro, as casas são feitas de alvenaria, tijolos, cimento, areia, barro, madeira de serraria e coberta com telha. Essa casa é muito comum no povo e para sua construção os donos costumam dar uma ajuda pra diminuir as despesas, mas precisam chamar um profissional (pedreiro) para a construção. Gostamos de plantar no terreiro das nossas casas plantas e fruteiras. Também pé de pimenta, coentro, manjericão, batatinha, cenoura, alface, plantas medicinais e criamos galinha para preparar uma gostosa galinha de capoeira. Os Truká moram por toda ilha grande, algumas ilhotas não são habitadas pelos Truká porque lá já moram “encantos”. Essas ilhas também são sagradas e respeitadas pelos índios.

Tempo para tudo

É através do tempo que nossos antepassados deixaram ensinamentos que fortalecem nossas lutas e nossa identidade. Utilizamos nosso tempo nas diversas passagens da vida. Há tempo em nosso dia-a-dia: de casar, de trabalhar na terra, nos afazeres domésticos, de ir à escola, de festejarmos, de participarmos das reuniões, de retomarmos nossas terras e sempre é tempo para reivindicarmos nossos direitos e para dançarmos o nosso Toré. Vejam como organizamos o nosso tempo Feira sábado Toré quartas e sábadosFrutas todo o ano Caça ano todo Pesca fevereiro a outubro Frio mês de junhoCalor agosto a outubro Chuva dezembro a fevereiroPlantio ano todo

Page 101: No Reino da Assunção, Reina Truká

99

Page 102: No Reino da Assunção, Reina Truká

100

Nossas datas importantes são aquelas que marcaram o tempo das nossas lutas: As retomadas 1984 - Cabeça da Ilha (contra o Governo do Estado de Pernambuco)1994 - 31 de maio, Cabeça da Ilha (contra Xinxa)1995 - 17 de setembro, Caatinga Grande (contra Cícero Caló e IPA)1999 - 2� de Janeiro, Retomada (conquista final)

Festas religiosas Março - Caminhada dos Penitentes e Novena da QuaresmaMaio - Novenário de MariaAgosto - Novenário de Nossa Senhora Rainha dos Anjos (0� a 15)Outubro - Novenário de São Francisco de Assis (04)Novembro - Dia de Todos os Santos (02)Dezembro - Nossa Senhora da Conceição (08) e Santa Luzia (13) A partida de nossos guerreirosAcilon Ciriaco - 10 de dezembro de 195�.Antonio Cirilo - 13 de dezembro de 1982.Antonio Bingo - 02 de novembro de 1981.Joaquim Antonio Ferreira - 17 de outubro de 2004Dena e Jorge - 31 de junho de 2005.Manoel DeodatoMaria CiriloBerto CiriloRosa CocoFrancisco EmilianoJoaquim José da SilvaEmídia CiriloJoao Antonio da Anunciação

Page 103: No Reino da Assunção, Reina Truká

101

Nossa Educação Escolar

Antigamente não tinha escola e as professoras ensinavam em casa. Os pais e mães queriam ver os filhos e filhas estudando e para isto tinham que pagar por essas aulas que eram chamadas “aula de banca”. Sempre funcionavam na sexta-feira pela manhã. A primeira escola que surgiu foi a Martiliano Ribeiro de Souza em 1982, na aldeia Coronheira, com a professora Raimunda Ana de Souza, em um quarto de tijolo. Nessa época era responsabilidade do município. Os prédios escolares foram sendo construídos mais ou menos pelo ano de 1995.

A comunidade sonhava que um dia poderia mudar essa forma de ensino, porque eles gostariam que suas crianças aprendessem a ler para fortalecer a luta pelo restante da terra que na época estava nas mãos de posseiros. O Conselho Indigenista Missionário - CIMI reuniu professoras e lideranças para nos ajudar na busca por uma escola específica e diferenciada. Com o passar do tempo o CIMI deixou a assessoria na educação e nós também não demos continuidade aos trabalhos. Como as escolas eram consideradas rurais e tinham que obedecer ao regimento imposto pela secretaria de educação, nós professoras e lideranças sentimos a necessidade de nos organizar e mudar. Foi aí que convidamos o Centro de Cultura Luiz Freire para nos dar assessoria e em reunião com as lideranças e professoras, demos início ao Projeto Escola de Índio no ano de 1999. ... E acontece a nossa educação escolar com o nosso jeito

Page 104: No Reino da Assunção, Reina Truká

102

A primeira coisa que fizemos foi o diagnóstico: “a escola que temos - a escola que queremos”, que é a escola formadora de guerreiros e guerreiras. Fizemos isso ouvindo a comunidade, fazendo pesquisa da história oral com os mais velhos, oficinas de leitura e formação política. Nesse processo, qualificamos a nossa prática e começamos a produzir nossos próprios materiais didáticos, os primeiros foram: a cartilha Educação Indígena se Aprende mesmo é na Comunidade, o jornal A Borduna, os livros Caderno do tempo e Meu Povo Conta. O próximo é este livro No Reino da Assunção, Reina Truká que é o resultado de todo esse trabalho que começou em 1999. Ouvir os mais velhos, comunidade e nossas crianças possibilitou que nós, professoras, rompêssemos com o modelo de escola que foi imposto a nós pela sociedade envolvente. Começamos a compreender que a educação escolar deve ter uma função que sirva para o povo e assim pensamos o nosso projeto de futuro e definimos como a nossa escola vai contribuir para ele se realizar. Dessa maneira chegamos aos cinco eixos que norteiam a nossa educação escolar: Terraporque o território para nós é um lugar sagrado, terra de nossos antepassados. Nele depositamos a esperança e os sonhos de construção do nosso Projeto de Vida. É o lugar também de moradia dos nossos Encantados. Precisamos na nossa terra para nossa sobrevivência física e cultural.

Page 105: No Reino da Assunção, Reina Truká

103

Identidadea identidade Truká nasce e se constrói nesse território. Ela é reencontrada e afirmada na história contada pelos mais velhos. A nossa identidade é dinâmica e se alimenta na luta da terra, no toré, no banho do rio, no meio ambiente. Ser Truká é tudo isso e a escola tem que fortalecer. Históriaconhecer a história do nosso povo é condição essencial para continuidade das nossas identidades, pois as crianças precisam ter como referência de vida os seus antepassados, aqueles que vivenciaram uma história de sofrimento, perseguição, mas também de resistência e luta. Durante muitos anos fomos influenciados por idéias equivocadas e valores diferentes dos nossos. A escola tem que ensinar a nossa versão da história, trazendo para o presente a luta do passado. Organizaçãoa organização social e política do nosso povo é outro elemento importante de sustentação da educação escolar, pois a escola nos povos indígenas tem um papel estratégico de contribuir para fortalecer a identidade étnica das crianças e jovens. Dessa forma, a participação, o apoio e o respeito às organizações existentes são conteúdos transmitidos nos processos educativos do nosso povo. E mais, nossa escola deve ter a cara e o jeito da nossa organização social e política.

Page 106: No Reino da Assunção, Reina Truká

104

Interculturalidadeporque a escola tem que dialogar com os conhecimentos da sociedade envolvente. Nossas crianças e jovens precisam compreender que cada povo tem uma cultura própria, diferente uma das outras. E que não há cultura melhor nem pior. Que as culturas são diferentes. Hoje temos 11 escolas com 02 anexos, 49 professoras Truká e �20 alunos e alunas da educação infantil, primeira à quinta série do Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos (EJA). Antes as nossas escolas eram nomeadas pelo prefeito, com nomes de posseiros e pessoas que não faziam parte da nossa história. Com a retomada da nossa educação, mudamos o nome de cada escola, homenageando nossos guerreiros e guerreiras que fazem parte da nossa resistência. Hoje estão assim: Aldeia - EscolaCaatinga Grande - Antonio Cirilo dos SantosPanela - Maria Antonia da Conceição PraçaCaititu - Rosa Maria da ConceiçãoCoronheira - Maria Rosa da ConceiçãoCamelão - Acilon Ciriaco da LuzUmbuzeiro - Martiliano Ribeiro de SouzaLagoa Branca (sede) - Herenegildo dos SantosCajueiro - Maria Ciriaco da LuzPambuzinho - Berto Cirilo dos SantosCaatinguinha - Manoel Deodato dos SantosAlto do Gavião - João Alberto MacielJibóia - Militão Primo dos Santos Todas essas conquistas se inserem no conjunto mais amplo da educação escolar indígena no Estado de Pernambuco, pois somos 10 povos unidos numa mesma luta por meio da Comissão de Professores Indígenas de Pernambuco - COPIPE.

Page 107: No Reino da Assunção, Reina Truká

105

Foi criada a COPIPE - Comissão de Professores Indígenas de Pernambuco em novembro de 1999 e no ano de 2001 criamos a OPIT - Organização de Professoras Indígenas Truká. A COPIPE é formada por dois professores/as e uma liderança de cada povo. A OPIT surgiu da nossa necessidade de nos organizar internamente para garantir a nossa educação diferenciada, colocar em prática a nossa autonomia, a sabedoria do nosso povo, dando assim um grande passo para a mudança de nossa escola. Atribuições da OPIT• Representar as professoras em tudo que diz respeito à educação diante do poder público, da comunidade e demais organizações;• Resolver questões internas no âmbito da educação;• Fiscalizar os recursos destinados à educação;• Discutir, acompanhar e avaliar ações, programas e projetos que nos

dizem respeito;• Articular as professoras para a tomada de decisões coletivas;• Promover, organizar e planejar encontros nas diversas aldeias;• Acompanhar, avaliar e garantir o desenvolvimento do Projeto Político

Pedagógico das nossas escolas;• Participar de todos os eventos na comunidade;• Promover, organizar e planejar encontros nas diversas aldeias; Perfil do/a representante da OPIT• Ser índio / a;• Ter compromisso com a causa;• Ter disponibilidade;• Ser comunicativo/a com lideranças, comunidades e professores /as;• Respeitar as decisões do coletivo;• Ser dinâmico /a;• Saber ouvir, ser flexível;• Ter coletividade e transparência;• Ser honesto / a

Page 108: No Reino da Assunção, Reina Truká

10�

Saúde: um conhecimento da Natureza

Existe hoje no nosso povo a conciliação da medicina alternativa e a medicina da farmácia. O uso das plantas medicinais ainda é feito pelos mais velhos, pois acreditam que temos a nossa medicina é de grande valia. Esse é um conhecimento da Natureza e dos mais antigos: para colher as ervas medicinais, nós Truká acreditamos muito na natureza, pois se retirarmos as ervas do lado oposto ao nascente do sol, as mesmas não servem para curar as doenças. Os antepassados nos ensinaram que das plantas podemos colher flores, raízes, cascas, frutos e sementes para os remédios caseiros que chamamos de mesinha. Aprendemos na aldeia que há uma variedade de plantas que servem para cura, como: aroeira, umburana, quixabeira, juazeiro, pau-ferro, favela, quebra-pedra, papaconha, jurema, fedegoso, mandacaru, velame, melão de São Caetano, bom nome, jarrinha, pau-prá-tudo, coronha, tamboril, jatobá, pau-branco e quebra mandinga e vários outros. Esses remédios são utilizados no combate a doenças como: febre, infecção, gripe, irritação na pele e tantas outras.

Conhecemos várias receitas:• Pau-ferro, nosso povo toma para curar gripe forte. • Junco, para dor no corpo.• Quebra-faca cura dor de barriga e fígado.• A raiz do canapú é boa para o fígado.• Aroeira cura inflamação.• Velame é para quem tem reumatismo. • Leite de lã de ceda é para dor de dente.• A dor de ouvido é curada com a folha de muçambê, hortelã, flor de

abóbora. • A cabeça de prego (furúnculo) é curada com a semente do linhaço,

feijão de corda, azeite de mamona e folha de pimenta. • Coceira se cura usando a salsa, matacabra, melão de São Caetano.

Page 109: No Reino da Assunção, Reina Truká

107

• Erva cidreira é para quando a gente está sem querer comer. • Hortelã cura gripe, cólicas menstruais; arruda também é bom para

cólicas menstruais.• Capim-santo é bom para acalmar os nervos, pressão alta e também

para cólicas menstruais.• Eucalipto cura febre; a jarrinha é boa para dor nas juntas.• O caroço da imburana de cheiro é bom para comida que faz mal. • Boldo também é bom para problemas de fígado.• A canela a gente usa para fraqueza. • Mastruz é bom para machucaduras. Serve também para os pulmões.• A cana caiana é boa para pressão alta. • Para acidente, pinto vivo com tudo e água previne o tétano.

Para as mulheres que ganham bebê, também existe uma ciência:• Depois do parto, casca de pau de aroeira ou cajueiro. • Na hora que sente a dor, antes do parto, chá de gergelim, caroço de

imburana de cheiro, caroço de coentro• Quando nascem os filhos, banho de casca de umburana de cheiro e

incenso de alfazema para incensar as crianças e as roupas dela. • A alimentação das crianças, além do leite materno, é bom chá de

endro, flor de sabugo e chá preto para limpar o intestino. • No resguardo, macela e água inglesa para não interromper o sangue e

nem ter outros problemas. Apesar desse conhecimento, a comunidade tem utilizado muito a medicação da farmácia e recorrido com muita freqüência à medicina do não-índio. Existe uma preocupação por parte dos agentes indígenas de saúde e lideranças em valorizar os saberes da tradição, pois sabemos que as plantas medicinais curam muitas doenças que a medicina de farmácia não cura. Como antigamente tínhamos muitas dificuldades para levar nossos filhos, filhas ou parentes ao hospital, então eram feitos todos os esforços para

Page 110: No Reino da Assunção, Reina Truká

108

curar em casa mesmo com a medicina caseira ou chamando a benzedeira para benzer. Nesse tempo não tinha médico na região, só em Recife ou em outras cidades grandes. Na atualidade, temos em nossa aldeia atendimento específico na saúde, fruto da luta de nossas lideranças. Esse atendimento é feito por equipes interdisciplinares: médicos, enfermeiras, dentista, auxiliares de enfermagem, agentes indígenas de saúde. Quem conhece a medicina presente na história do povo Truká sabe que ela ocorre na valorização e fortalecimento das práticas do que sempre foi de costume fazer, do que sempre foi feito de forma saudável: dançar o Toré, cantar as linhas no trabalho de mesa, beber a jurema e sentir a força e a luz dos encantos, sair ao sereno na madrugada pra ir a roça, a caatinga ou até ao banho no rio São Francisco ao anoitecer, isso tudo sempre fez parte da medicina do povo, da saúde do povo.

O convívio com os não-índios

Durante o processo de (re)conquista do nosso território sofremos muita discriminação por parte da sociedade envolvente que é presente até hoje. Quando os jovens vão estudar na cidade de Cabrobó, as pessoas nos chamam de ladrões de terra, negam a nossa identidade porque não correspondemos ao imaginário que eles têm de índio, como aquele que é selvagem, anda nu, tem cabelo liso e pena colorida na cabeça. A sociedade é muito desinformada sobre os povos indígenas. Durante 500 anos exigiram que nós fôssemos iguais a eles e agora querem exigir que sejamos como há 500 atrás. Ser Truká é cultura. Ser Truká é ser descendente dos guerreiros e guerreiras que iniciaram esta luta, é beber a jurema, balançar o maracá. É participar do toré, do particular, das festas e retomadas. É respeitar nossas lideranças e os saberes dos mais velhos. Não importa a roupa ou o cabelo. O que importa é continuar a luta dos mais velhos.

Page 111: No Reino da Assunção, Reina Truká

109

Como muitos têm dificuldade de entender isso, os conflitos permanecem exatamente por não admitirem que somos filhos e filhas da Assunção. E que temos o direito sobre ela e de viver livremente praticando nossos rituais e tradições no local onde nossos antepassados foram mortos e expulsos pelos fazendeiros pra não deixarem viver nossa história. Mas a raiz é sempre muito resistente e nos fez renascer para a luta. Nos esforçamos para romper os preconceitos, mas sem deixar de defender a nossa terra, o nosso rio São Francisco, os nossos direitos conquistados na Constituição Federal de 1988. Com trabalho e fé nos Encantos, nossa resistência nos tornou hoje os maiores produtores de arroz do Vale São Francisco. Sustentamos o mercado local com nossas produções e com a nossa cultura levamos o nome da cidade de Cabrobó até para fora do país. Mas o mundo é cheio de pessoas diferentes e entre os não-índios temos muitos amigos, amigas, aliados que acreditam e contribuem com nosso fortalecimento, como os sem-terra, os quilombolas, professores e professoras das universidades, educadores e educadoras da região, organizações não-governamentais que apóiam a causa indígena. Somos um povo que, embora vítimas de agressões, de assassinatos, de marginalizações cometidas pelos anti-indígenas, acredita na justiça do grande Pai Tupã, e buscaremos a PAZ sempre. Temos a esperança de que é possível superar os males para a construção de um novo mundo, onde sejam respeitados os direitos dos povos indígenas, comunidades negras e não-índios no geral. E a luta sempre vai continuar porque ...

A Aldeia Truká é forte, é forte e será.A Aldeia Truká é forte. E tem Caboco pra guerrear.

Page 112: No Reino da Assunção, Reina Truká

110

Page 113: No Reino da Assunção, Reina Truká

111

Page 114: No Reino da Assunção, Reina Truká

112

Vamos falar um pouco da religião do nosso povo

O Toré é um ritual sagrado e nele nos fortalecemos, recebemos orientações dos Encantados, bebemos a jurema que nos purifica dando sabedoria para seguirmos o caminho da verdade. A nossa religião está ligada à Natureza, é obra divina, que o homem não pode mudar. Nós dançamos o Toré em vários momentos: nas batalhas de reivindicação de nossos direitos; nas retomadas, que é a luta pela terra; nas tristezas, quando partem nossos parentes queridos, e na prática religiosa que acontece regularmente nas quartas e sábados. Na nossa aldeia, dançamos o Toré em locais sagrados e nos terreiros existentes nas várias localidades do nosso território. Nele usamos vários atavios que são confeccionados na própria comunidade. Cada um deles tem um significado para nós: • Cataioba - saias feitas do fio do caroá ;• Pujá - também feito de caroá e usamos na cabeça;• Jurema - bebida sagrada, preparada pelos juremeiros;• Quaqui - a gente fuma e defuma devido à obrigação;• Apito - é pelo apito que a gente reúne toda comunidade sem dar

conhecimento ao mundo• Maracá - é a entoada do encanto, é a ciência. Cremos nos Encantados de Luz que nos ajudam a adquirir a sabedoria, ciência destinada à cura do corpo e da alma. Encanto quer dizer espírito de luz. Há costumes nos Truká de irmos para uma Ilha que chamamos “Ilha da Onça” e lá fazermos o retiro, para recebermos os Encantos de Luz. Temos a nossa bebida “Jurema”, que tem uma ciência oculta de como é feita e não podemos relatar por ser um segredo dos antepassados. O Toré também é uma forma de unir o povo e agradecer ao Pai Tupã pelas bênçãos recebidas. Além do Toré, temos outros rituais que fazem parte da nossa religião e que também não podem ser revelados, apenas que chamamos de Mesa ou Particular.

Page 115: No Reino da Assunção, Reina Truká

113

Também somos católicos... A religião Católica Romana foi imposta pela Igreja no período da colonização. Fomos catequizados pelo Frei Martin de Nantes e ainda hoje continuamos com essa religião. Com o passar dos tempos, nós a reelaboramos e fizemos a diferença. Passamos a participar das missas colocando elementos do ritual Truká, a exemplo das linhas de Toré (toantes), que são realizados na Ilha da Assunção, e da noite dos índios, durante o Novenário de Nossa Senhora da Conceição, realizado no mês de dezembro na cidade de Cabrobó, na beira rio na igreja da Matriz. Essa Santa é respeitada por nós porque na tradição indígena é a Rainha das Águas. Outra santa de muito valor para nós é a Nossa Senhora Rainha dos Anjos, que é nossa Padroeira. Comemoramos essa festa no dia 15 de agosto e este dia para nós é muito especial, sendo feriado na Ilha da Assunção.

Page 116: No Reino da Assunção, Reina Truká

114

A imagem dessa santa é de muito valor para os Truká, mas infelizmente ela nos foi tirada no ano de 1958. Vamos contar essa história: Nossa Senhora Rainha dos Anjos foi para a Serra da Estrema,

local no município de Cabrobó, porque Antonio Sampaio, um posseiro, mandou que retirassem a santa da igreja para no

tempo da festa o povo não pisar a roça dele. Por conta disso, não passou nem oito dias, foi uma chuva, houve

muita água, uma enchente que a força da água arrancava até pé de juazeiro pela raiz. Era trovão, relâmpago, muita,

muita água mesmo que a gente não sabia o que fazer.

Para proteger a santa, os índios pediram que Ana Celeiro, uma pessoa respeitada na comunidade e que era responsável pela novena, guardasse a santa para que no dia que os índios retomassem suas terras a santa pudesse voltar para sua verdadeira casa. Como a nossa luta demorou muitos anos, Ana Celeiro morreu e sua filha ficou responsável. Como era a mãe que sabia do compromisso, a filha colocou dificuldade e até hoje ela não devolveu a imagem da santa para nós. E, sempre que precisamos da imagem para o festejo, enfrentamos muitas dificuldades para conseguir que ela seja liberada para vir para sua casa que é aqui na Ilha da Assunção. Nós não nos conformamos com essa situação e estamos lutando para conseguir trazê-la de volta, pois segundo as lideranças e anciãos, muita coisa ruim se abateu sobre o povo porque a santa não está na sua morada. E todas as vezes que ela vem nos enche de alegria e esperança. Sempre que vai embora, choramos sentindo falta de nossa mãe.

Page 117: No Reino da Assunção, Reina Truká

115

Nossas festas

São Gonçaloé uma festa consagrada ao santo para pagamento de promessas. A Roda de São Gonçalo é um ritual religioso onde são cantadas músicas de acordo com a região. O nosso povo Truká também dança o São Gonçalo, apesar de não ser de origem indígena. É muito considerada por nós e dançamos com muito apreço. As vestes para a dança são rigorosamente respeitadas e dançamos em duas filas indianas. Não se pode errar e a idade não é definida, qualquer um pode dançar. Os instrumentos musicais que acompanham são o violão, o pife, o pandeiro e suas músicas são cantadas em forma de versos: Quem tiver suas promessasPaguem logo enquanto é cedoPra depois não vir em mortoAos vivos fazendo medo Se quiser que eu vá e volte Mande varrer a calçada Que é para as pedras não rangerem Quando eu vir de madrugada

Page 118: No Reino da Assunção, Reina Truká

11�

Semana dos Povos Indígenascomo já sabemos, o índio sempre foi muito discriminado. Os brancos querem tirar os nossos direitos e não nos consideram índios. Mas lutamos todos os dias, levamos a vida assim dançando o Toré e trabalhando todos os dias, não apenas no dia 19 de abril. São Joãoé uma festa tradicional do Brasil que nós também comemoramos. Comemoramos dançando com muito forró. É uma festa animada, todos se preparam de longe. Compram roupa nova que é para passar o São João bonito, acendem fogueira para ser compadre e comadre, é muito animado. Nossa Senhora Rainha dos Anjoscomemoramos as festas de nossa Padroeira no dia 15 de agosto em 9 noites de novenas. É a coisa mais bonita: se toca o pife e a zabumba. Tem muita barraca, dança, muitos, mais muitos fogos que estremecem! O povo come galinha, bode, boi, queijo e rapadura. Em cada noite tem um responsável que chamamos de noiteiro. Eles são responsáveis por toda a organização da novena. O povo reza no mês de agosto até o dia 15 que é o encerramento com missa, batizado, casamento e procissão com a imagem de Nossa Senhora Rainha dos Anjos. São Francisco de Assisno dia 04 de outubro, comemoramos São Francisco na Aldeia Caatinguinha. O novenário inicia dia 25 de setembro até 03 de outubro, finalizando a festa no dia seguinte com missa, procissão, batismo e casamento. Nessa festa também lembramos da importância do rio São Francisco para nós, Truká. Como nos demais novenários, cada noite tem um noiteiro que fica responsável pelos fogos, velas e flores. Durante o novenário, nas quartas e sábados, dançamos o Toré.

Page 119: No Reino da Assunção, Reina Truká

117

A noite dos “penitentes”A lua é a única testemunha da caminhada dos penitentes na Ilha da Assunção. Durante toda a Quaresma, duas a três vezes por semana eles se reúnem e saem em procissão para cumprir a penitência durante a quaresma. Ninguém pode saber quem são os penitentes, apenas os Curiãos. O nosso Curião é o índio Zé Borges e Deodato e eles são os únicos que podem mostrar os rostos. Os demais são protegidos pela escuridão e pelo capuz sobre toda a cabeça. Borges e Deodato são os conselheiros espirituais, uma espécie de pais dos penitentes.

Page 120: No Reino da Assunção, Reina Truká

118

Já foi bem maior o número de penitentes, cerca de 40 ou mais... Hoje encontrá-los está cada vez mais difícil. Eles não fazem mais o trajeto que cortava a cidade até o cemitério na Sexta-Feira da Paixão, isso como medida para preservarem com segurança o anonimato. Nosso trajeto agora é somente na Ilha da Assunção, o anonimato é de fato, uma das características mais marcantes desses religiosos. Há penitente que só se descobre após sua morte, porque o mesmo é vestido com sua batina. O Curião como líder tem que zelar pelas regras da irmandade: um penitente não pode beber álcool, freqüentar casas noturnas, fumar ou mesmo cortar as barbas e os cabelos durante toda a quaresma. Quem desobedece é castigado. Na Sexta-Feira da Paixão do ano de 2002, na Ilha da Assunção, o grupo de dez penitentes se reuniu embaixo de uma algaroba, rezou e, ao toque do berrante, saiu em procissão, percorrendo seis quilômetros na Ilha até uma casa no Porto do Pambú. Lá deixaram a cruz de baraúna, que tem mais de um século e pesa cerca de dez quilos. A cruz fica sendo zelada nesta última casa até a próxima quaresma. O líder Borges recebeu a cruz em 19�3 e o título de Chefe do já falecido Alexandre Pereira, filho de Joaquim Pereira. A tradição sempre esteve presente na ilha dos Truká e se depender dos penitentes nunca vai acabar.

Page 121: No Reino da Assunção, Reina Truká

119

Apossar – tomar posse à força. Os não índios faziam isso com a nossa terra.Cercado – pedaço de terra cercado com arame para indicar propriedade.Linha de Toré – cantos, toantes.Retomada – recuperar a terra que é nossa e que foi roubada desde a colonização.Enfrentantes – lideranças, pessoas que enfrentam a luta.Mestre e Contra-Mestre – pessoas responsáveis pelos rituais.Intrusão – invadir a terra indígena.Trabalho indígena - ritual.Posseiros – quem roubou a terra dos índios, invadiu nosso território.Noitero – o índio que fica responsável pela organização das festas durante os novenários.Perna do Rio – leito do rio.Ciência – sabedoria religiosa.Ciência oculta ou Particular – ritual onde é proibida a participação de não índios.Atavios – indumentárias utilizadas no ritual.Roldão – de uma vez.Encantos de Luz – antepassados.Vale de água – entrada inundada.Légua – medida de terra, 1 légua corresponde a � Km.Visagem – visão.Caroá – planta típica da caatinga, da qual os índios extraem a fibra para confeccionar a saia do ritual (cataioba).

Page 122: No Reino da Assunção, Reina Truká

120

ARRUTI, José Maurício Andion. Morte e vida no Nordeste indígena: a emergência étnica como fenômeno histórico regional. In:____. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGU,1995. v. 8, n.º. 15, p. 57-94.

BATISTA, Mércia Rejane Rangel. De caboclos da Assunção a índios Truká. 1992. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Museu Nacional/PPGAS, Rio de Janeiro, 1992.

CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Os direitos Indígenas na Constituição Federal: cartilha para os povos indígenas no Brasil, Recife: CIMI-NE, 1993.

______. Truká: violência, impunidade e descaso. Série 500 anos de resistência. Recife: Recife Gráfica Editora S.A., 1992.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

______. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. DANTAS, B.G; SAMPAIO, J.A.L. Os Povos Indígenas do Nordeste: Um esboço

histórico. In M.R.G & CARVALHO. História dos índios. FADESP. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

FERRAZ, Arrison de Souza. Cabrobó Cidade Pernambucana. São Paulo: Associação Paulista de Imprensa, 19��.

FRESCAROLO, Fr. Vital de. Informações sobre os índios bárbaros dos sertões de Pernambuco. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. XLVI, [s.d]

Page 123: No Reino da Assunção, Reina Truká

121

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. (Brasil). Estudo Etnoecológico Terra Indígena Truká (relatório parcial). Brasília,2005.

MARTIN, Gabriela. Pré-história do Nordeste do Brasil.Recife: UFPE,199�.

NANTES, Pe. Martins. Relação de uma missão no rio São Francisco. [S.l]: Aquimper,1979.

OLIVEIRA, João Pacheco de.(Org.). A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999.

OLIVEIRA, João Pacheco. Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Revista Mana - estudos de antropologia social. Rio de Janeiro, n.4/1, p. 47-78, abril, 1998.

PORTO ALEGRE, M.Sylvia. Cultura e história: sobre o desaparecimento dos povos indígenas. Ver. de .C. Sociais. Fortaleza, V.XXIII/XXIV, nº 1/2 , p. 213-225,1992/1993.

SANTOS, Ivanira Orcelina. Truká x Cabrobó. Relatório Final, Proformação. Cabrobó, 2001.

SILVA, Edson. Índios organizados, mobilizados e atuantes: história indígena em Pernambuco nos documentos do Arquivo Público. Revista do Arquivo Público Estadual de Pernambuco/APEJE. Recife, 200� (no prelo).

______. Memórias Xukuru e Fulni-ô da Guerra do Paraguai. In:___. Ciência em Revista . São Luís: UFMA, 2005. v.3, nº2, p.51-58.

Page 124: No Reino da Assunção, Reina Truká

122

______. História indígena no Nordeste: “os caboclos” que são índios. In:___. Portal do São Francisco. Revista do Centro de Ensino Superior do Vale do São Francisco. Belém de São Francisco: CESVASF, 2004. Ano III, nº 3, p.127-137.

______.Povos indígenas e Ensino de História: subsídios para a abordagem da temática indígena em sala de aula. In___. História & Ensino. Revista do Laboratório de Ensino de História da UEL. Londrina,2002. v.8, p.45-�2.

______. Povos indígenas no Nordeste: contribuição à reflexão histórica sobre o processo de resistência, afirmação e emergência étnica. In___. Revista CEPAIA: realidades afro-indígenas americanas. Salvador: UNEB (Universidade do Estado da Bahia), 2002. Ano 2, n° 2/3 jan./dez., p.105-109.

Documentos

BRASIL, Resolução nº 03 de 1999. Fixa Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 13 de abril de 1999. Seção 1, p. 18.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO.(Brasil). Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas. Brasília, 1998.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção 1�9 sobre povos indígenas e tribais em países independentes e Resolução referente à ação da OIT sobre povos indígenas e tribais. 2. ed. Brasília: OIT,2005.

PERNAMBUCO, Secretaria de Educação. História e Memória dos Povos Indígenas em Pernambuco. Recife.1988

Page 125: No Reino da Assunção, Reina Truká
Page 126: No Reino da Assunção, Reina Truká
Page 127: No Reino da Assunção, Reina Truká

Organização das Professoras Truká – OPITOrganização das Professoras Truká – OPIT

Secretaria de EducaçãoContinuada, Alfabetização

e Diversidade