não pense que eu vim trazer - eliezer estudos biblicos · 2020-01-24 · nota do autor quando eu...

234

Upload: others

Post on 24-Mar-2020

11 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Nãopensequeeuvimtrazerpazsobreaterra.Eunãovimtrazerpaz,masaespada.

(MATEUS10:34)

Nota do autor

Quandoeutinhaquinzeanos,encontreiJesus.Passeioverãodemeusegundoanouniversitárioemumacampamento

evangélicopara jovensnonortedaCalifórnia,um lugardebosquesecéuazul sem im onde, com tempo su iciente, quietude e palavras suaves deencorajamento, não se podia deixar de ouvir a voz de Deus. Em meio alagos arti iciais e majestosos pinheiros, meus amigos e eu cantávamos,praticávamos esportes e trocávamos segredos, divertindo-nos com nossaliberdade longe das pressões de casa e da escola. À noite, nosencontrávamos em uma sala de reuniões iluminada por uma lareira, nocentro do acampamento. Foi lá que eu ouvi uma história notável, quemudariaminhavidaparasempre.

Há 2mil anos, disseram-me, em uma terra antiga chamada Galileia, oDeus do céu e da terra nasceu na forma de uma indefesa criança. Acriança cresceu e tornou-seumhomemsem faltas.Ohomem tornou-se oCristo, o salvador da humanidade. Por meio de suas palavras e açõesmilagrosas, ele desa iou os judeus, que se acreditavam os escolhidos deDeuse,emtroca,osjudeusopregaramemumacruz.Emborapudesseterse salvadodaquelamortehorrível, ele, por espontâneavontade, escolheumorrer. De fato, suamorte é o ponto central de tudo, pois seu sacri íciosalvou todos nós do peso de nossos pecados. A história, contudo, nãoterminava aí, porque três dias mais tarde ele ressuscitou, grandioso edivino,demaneiraqueagoratodososqueacreditamneleeoaceitamemseuscoraçõestambémjamaismorrerãoeterãovidaeterna.

Para uma criança criada em uma família heterogênea demuçulmanosdesinteressados e ateus exuberantes, esta foi realmente amaior históriajamaiscontada.Nuncaantessentira tão intimamenteochamadodeDeus.No Irã,meu lugar de nascimento, eu eramuçulmano damesmamaneiraqueerapersa.Minhareligiãoeminhaetniaerammútuaseligadas.Como amaioriadaspessoasnascidasemumatradiçãoreligiosa,minha féera tãofamiliar para mim como a minha pele, e igualmente desconsiderada.Depois que a revolução iraniana forçou minha família a fugir de nossaterra,areligiãoemgeraleoIslãemparticulartornaram-setabuemnossa

casa.O Islã era a síntese de tudo o que havíamosperdidopara osmulásque agora governavam o Irã. Minha mãe ainda orava quando ninguémestava olhando, e você ainda podia encontrar um ou dois deslocadosvolumes do Alcorão escondidos em um armário ou em uma gavetaqualquer.Mas,namaiorparte, foramretiradostodososvestígiosdeDeusdanossavida.

Tudo bem para mim quanto a isso. A inal, na América da década de1980, sermuçulmanoera comoserdeMarte.Minha fé erauma ferida, osímbolomaisóbviodaminhaalteridade,queprecisavaserescondido.

Jesus, por outro lado,era aAmérica.Eleeraa igura centralnodramanacional dos Estados Unidos. Aceitá-lo emmeu coração era omais pertoque eu poderia chegar de sentir-me verdadeiramente americano. Eu nãoquerodizerqueaminhaconversãofoiporconveniência.Pelocontrário,adevoçãopelaminhanovaféeraabsolutamentefervorosa.Fuiapresentadoaum Jesusqueeramenos “SenhoreSalvador” emaisummelhoramigo,alguém com quem eu podia ter um relacionamento profundo e pessoal.Sendo um adolescente tentando entender um mundo indeterminado doqualeutinhaacabadodetomarconhecimento,essefoiumconvitequeeunãopodiarecusar.

Nomomentoemquevolteiparacasa,depoisdoacampamento,comeceiansiosamente a compartilhar as boas-novas de Jesus Cristo com meusamigos e minha família, meus vizinhos e colegas de escola, com pessoasque eu acabara de conhecer e com estranhos na rua: havia aqueles queouviamdebomgradoeaquelesqueasjogavamdevoltanaminhacara.Noentanto,algo inesperadoaconteceunaminha tentativadesalvarasalmasdo mundo. Quanto mais eu sondava a Bíblia para me armar contra asdúvidas dos incrédulos, maior era a distância que eu descobria entre oJesusdosevangelhoseo Jesusdahistória–entre JesusCristoe JesusdeNazaré. Na faculdade, onde comecei meu estudo formal de história dasreligiões, aquele desconforto inicial logo cresceu para se tornarconsistentesdúvidaspróprias.

Abasedocristianismoevangélico,pelomenoscomomefoiensinado,éacrençaincondicionaldequecadapalavradaBíbliaéinspiradaporDeuseverdadeira, literal e infalível. A súbita consciência de que essa crença épatente e irrefutavelmente falsa, de que a Bíblia está repleta dos maisgritanteseevidenteserrosecontradições,talcomoseriadeesperardeumdocumentoescritoporcentenasdemãosdiferentesatravésdemilharesdeanos, me deixou espiritualmente confuso e sem rumo. E assim, como

muitaspessoasemminhasituação,descarteicomraivaaminhafé,comoseela fosse uma falsi icação cara que eu tinha sido levado a comprar.Comecei a repensar a fé e a cultura demeus antepassados, encontrandonelas,comoadulto,umafamiliaridademaisprofundaemaisíntimadoqueeu jamais tivera quando criança, do tipo que vem quando nosreconectamoscomumvelhoamigodepoisdemuitosanosdedistância.

Enquantoisso,continueimeutrabalhoacadêmicoemestudosreligiosos,mergulhando de volta na Bíblia não como um crente incondicional, mascomoumestudioso inquisitivo.Nãomais acorrentado à suposiçãode queashistóriasqueliaeramliteralmenteverdade,eumetorneiconscientedeuma verdade mais signi icativa no texto, uma verdade separada demaneira intencionaldasexigênciasdahistória. Ironicamente,quantomaiseu aprendia sobre a vida do Jesus histórico, omundo turbulento emqueeleviveue abrutalidadedaocupação romanaqueeledesa iou,mais eraatraídoparaele.Defato,ocamponêsjudeuerevolucionárioquedesafiouogoverno domais poderoso império que o mundo já conheceu, e perdeu,tornou-se muito mais real para mim do que o indivíduo desligado,sobrenatural,aquemeutinhasidoapresentadonaigreja.

Hoje,possodizercomcon iançaqueduasdécadasdepesquisarigorosasobreasorigensdocristianismo izeramdemimumdiscípulodeJesusdeNazaré mais genuinamente comprometido do que jamais fui de JesusCristo.Minha esperança comeste livro é difundir as boas-novasdo Jesusda história com o mesmo fervor que uma vez apliquei em espalhar ahistóriadeCristo.

Há algumas coisas para se ter emmente antes de começarmos nossoexame do Jesus da história. Para cada argumento bem-atestado, muitopesquisadoedegrandeautoridadeapresentadosobreoJesushistórico,háumargumentoigualmentebem-atestado,igualmentepesquisadoedeigualautoridadeseopondoaele.Emvezdesobrecarregaroleitorcomoseculardebate sobre a vida e a missão de Jesus de Nazaré, construí minhanarrativa sobre o que acredito ser o argumentomais preciso e razoável,combase emminhas duas décadas de pesquisa acadêmica sobre oNovoTestamento e a história cristã primitiva. Para os interessados no debate,detalheiexaustivamenteminhapesquisae,semprequepossível,ofereciosargumentosdosquenão concordamcomaminha interpretaçãona longaseçãodenotasnofinaldestelivro.

Todas as traduções gregas do Novo Testamento são deminha autoria(com a ajuda demeus amigos Liddell e Scott). Nos poucos casos em que

nãotraduzidiretamenteumapassagemdoNovoTestamento,apoiei-menatradução fornecida pelaNewRevisedStandardVersion daBíblia. Todas astraduçõesdohebraicoedoaramaico foram feitaspelodr. IanC.Werrett,professorassociadodeestudosreligiososdaUniversidadedeSt.Martin.

Ao longo do texto, todas as referências aomaterial da Fonte Q a serãomarcadas como (Mateus | Lucas), coma ordemdos livros indicandoqualevangelho estou citandomais diretamente. O leitor vai perceber quemeapoio principalmente no evangelho de Marcos e no material da Fonte Qpara formarmeu esboço da história de Jesus. Isso é porque estas são asfontesmaisantigase,assim,maiscon iáveisedisponíveisparanóssobreavida do Nazareno. Em geral, optei por não me aprofundar demais noschamados “evangelhos gnósticos”. Ainda que esses textos sejamextremamenteimportantesparadelinearovastolequedeopiniõesentreacomunidade cristã primitiva sobre quem era Jesus e o que signi icavamseus ensinamentos, eles não lançam muita luz sobre o Jesus históricopropriamentedito.

Emborasejaquaseunanimidadeque,comapossívelexceçãodeLucas-Atos, os evangelhos não foram escritos pelas pessoas segundo as quaisforamnomeados.Parafacilidadeeclareza,voucontinuarareferir-meaosescritores do evangelho pelos nomes com que hoje os conhecemos ereconhecemos. Além disso, faço referência ao Antigo Testamento, maisapropriadamente,comoBíbliaHebraicaouEscriturasHebraicas.

aFonteQ, tambémditoDocumentoQouEvangelhoQ(abreviaçãodapalavraalemãQuelle, fonte),refere-seaumahipotéticacoleçãodeescritosatribuídosaJesusequeaparecemnosevangelhosdeMateus e de Lucas, mas não no de Marcos. Acredita-se que esses textos estavam baseados natradiçãooraldocristianismoprimitivo.(N.T.)

Introdução

Éummilagreque saibamos alguma coisa sobre o homemchamado JesusdeNazaré.Opregadoritinerante,vagandodecidadeemcidadeclamandosobreo imdomundoesendoseguidoporumbandodemaltrapilhos,erauma visão comumno tempode Jesus – tão comum, de fato, que havia setornado uma espécie de caricatura entre a elite romana. Em umapassagem burlesca sobre uma dessas iguras, o ilósofo grego Celsoimagina um homem santo judeu perambulando pelos campos da Galileia,gritandoparaninguémemparticular: “Eu souDeus, ou o servodeDeus,ouumespíritodivino.Maseuestouchegando,poisomundojáestáemviasdedestruição.Eembrevetumeveráschegandocomopoderdoscéus.”

O século I foi uma era de expectativa apocalíptica entre os judeus daPalestina, a designação romana para a vasta extensão de terra queabrangeosatuaisEstadosdeIsrael/Palestina,bemcomograndepartedaJordânia, Síria e Líbano. Inúmeros profetas, pregadores e messiascaminhavam pela Terra Santa proclamando mensagens do iminentejulgamento de Deus. Conhecemos pelo nome muitos desses chamados“falsosmessias”.AlgunssãoatémesmomencionadosnoNovoTestamento.OprofetaTeudas, segundo o Livro deAtos, tinha quatrocentos discípulosantesdeRomaocapturare lhecortaracabeça.Uma iguracarismáticaemisteriosa conhecida apenas como “o Egípcio” levantou um exército deseguidores no deserto, e quase todos foram massacrados pelas tropasromanas. Em IV a.C., ano em que a maioria dos estudiosos acredita queJesus deNazaré nasceu, umpobre pastor chamadoAtronges colocou umdiadema na cabeça e coroou-se “rei dos judeus”; ele e seus seguidoresforam brutalmente mortos por uma legião de soldados. Outro aspirantemessiânico, chamado simplesmente de “o Samaritano”, foi cruci icado porPôncio Pilatos, embora não tivesse levantado nenhum exército e demaneira alguma tivesse desa iado Roma – uma indicação de que asautoridades,sentindo a febre apocalíptica no ar, tinham se tornadoextremamente sensíveis a qualquer sinal de sedição. Houve Ezequias,chefedosbandidos,SimãodaPereia, Judas,oGalileu, seunetoMenahem,Simão, ilho de Giora, e Simão, ilho de Kochba – todos postulantes de

ambiçõesmessiânicas e todos executadosporRomapor isso.Acrescente-se a essa lista a seita dos essênios, da qual algunsmembros viveram emreclusão no alto do planalto seco de Qumran, na costa noroeste do marMorto;opartidorevolucionário judeudoséculoI,conhecidocomopartidozelota,ouzelote,bqueajudoualançarumaguerrasangrentacontraRoma;e os temíveis bandidos-assassinos a quem os romanos apelidaram desicários (“homensdospunhais”), ea imagemqueemergedaPalestinanoséculoIéadeumaeraimersaemenergiamessiânica.

É di ícil enquadrar Jesus de Nazaré em qualquer um dosmovimentospolítico-religiosos conhecidos de seu tempo. Ele era um homem decontradições profundas, um dia pregando uma mensagem de exclusãoracial (“Eu fui enviado apenas às ovelhas perdidas de Israel”, Mateus15:24),nooutro,debenevolenteuniversalismo(“Idee fazeidiscípulosdetodasasnações”,Mateus28:19);àsvezesclamandoporpazincondicional(“Bemaventuradosospaci icadores,porqueelesserãochamados ilhosdeDeus”,Mateus5:9),àsvezespromovendoviolênciaecon litos (“Se tunãotensumaespada,vaivenderteumantoecomprauma”,Lucas22:36).

OproblemadesituaroJesushistóricoéque,foradoNovoTestamento,não há quase nenhum vestígio do homem que iria alterar de modopermanente o curso da história humana. A referência não bíblica maisantiga e mais con iável de Jesus é do historiador judeu Flávio Josefo, doséculo I (morto em 100 d.C.). Em uma breve passagem na sua obraAntiguidades, Josefo escreve sobre um diabólico sumo sacerdote judeuchamado Ananus que, após a morte do governador romano Festo,condenouilegalmenteumcerto“Tiago,irmãodeJesus,oqueeleschamamdemessias”aapedrejamentoportransgressãodalei.Apassagemcontinuarelatando o que aconteceu com Ananus após o novo governador, Albino,finalmentechegaraJerusalém.

Fugaz e indiferente como esta alusão pode ser (a frase “o que eleschamamdemessias”éclaramentedestinadaaexpressarescárnio),ela,noentanto,contémumenormesigni icadoparatodosaquelesqueprocuramqualquersinaldoJesushistórico.Emumasociedadesemsobrenomes,umnome comum como Tiago exigia um apelativo especí ico – lugar denascimentoouonomedopai–paradistingui-lodetodososoutroshomenschamadosTiagoperambulandopelaPalestina(daíJesusdeNazaré).Nessecaso, o apelativo de Tiago foi fornecido pela sua ligação fraternal comalguémqueJosefoassumeserfamiliaràsuaaudiência.Apassagemprovanão apenas que “Jesus, o que eles chamam de messias” provavelmente

existiu,masquepeloanode94d.C.,quandoaobraAntiguidadesfoiescrita,era amplamente reconhecido como o fundador de ummovimento novo eduradouro.

É esse movimento, não o seu fundador, que recebe a atenção dehistoriadores do século II, como Tácito (morto em 118) e Plínio, o Jovem(morto em 113), que mencionam Jesus de Nazaré mas revelam poucosobreelealémdesuaprisãoeexecução–uma importantenotahistórica,comoveremos,masquelançapoucaluzsobreosdetalhesdavidadeJesus.Somos,portanto,restritosàs informaçõesquepossamserobtidasapartirdoNovoTestamento.

O primeiro testemunho escrito que temos sobre Jesus de Nazaré vemdasepístolasdePaulo,umdosprimeirosseguidoresdeJesus,quemorreuporvoltade66d.C.(aprimeiraepístoladePaulo,1Tessalônicos,podeserdatada entre 48 e 50 d.C., cerca de duas décadas depois da morte deJesus). O problema com Paulo, no entanto, é que ele exibe umaextraordináriafaltadeinteressepeloJesushistórico.Apenastrêscenasdavida de Jesus são mencionadas em suas epístolas: a Última Ceia (1Coríntios 11:23-26), a cruci icação (1 Coríntios 2:2), e, mais importantepara Paulo, a ressurreição, sem a qual, segundo ele, “a nossa pregação évaziaesuafééemvão”(1Coríntios15:14).Paulopodeserumaexcelentefonte para os interessados na formação inicial do cristianismo,mas é umguiapobreparasedescobriroJesushistórico.

Issonosdeixacomosevangelhos,queapresentamseupróprioconjuntodeproblemas.Primeirodetudo,éprecisoreconhecerque,comapossívelexceção do evangelho de Lucas, nenhum dos evangelhos que temos foiescritopelapessoaqueonomeia.Issoéverdadeparaamaioriadoslivrosdo Novo Testamento. Tais obras, chamadas pseudoepigráficas – obrasatribuídas a um autor especí ico, mas não escritas por ele –, eramextremamente comuns no mundo antigo e não devem ser, de formaalguma, consideradas falsi icações. Nomear um livro em homenagem aalguém era uma forma padrão de re letir as crenças daquela pessoa ourepresentar sua escola de pensamento. Independentemente disso, osevangelhos não são, nem foram, jamais pensados para ser umadocumentação histórica da vida de Jesus. Eles não são relatos detestemunhasocularesdaspalavras e atosde Jesus.Eles são testemunhosdefécompostosporcomunidadesdeféeescritosmuitosanosdepoisdosacontecimentos que descrevem. Simpli icando, os evangelhos nos dizemsobreJesus,oCristo,enãosobreJesus,ohomem.

A teoria mais aceita sobre a formação dos evangelhos, “A teoria dasduas fontes”, sustenta que o testemunho de Marcos foi escrito algumtempo depois de 70 d.C., cerca de quatro décadas depois da morte deJesus. Marcos tinha à disposição um conjunto de tradições orais e talvezum punhado de tradições escritas que haviam sido repassadas pelosprimeiros seguidores de Jesus durante anos. Ao adicionar uma narrativacronológica a este amontoado de tradições, Marcos criou um gêneroliterário totalmente novo chamadoevangelho, palavra grega (evangelion)para“boanotícia”.Contudo,oevangelhodeMarcosé,paramuitoscristãos,curto e um tanto insatisfatório. Não há nenhuma narrativa da infância;Jesus simplesmente chega, um dia, às margens do rio Jordão para serbatizado por João Batista. Não há aparições da ressurreição. Jesus écruci icado. Seu corpo é colocado em um sepulcro. Poucos dias depois, otúmulo está vazio. Mesmo os primeiros cristãos ansiavam por maisinformações em função da brusca narrativa de Marcos sobre a vida e oministério de Jesus, por isso coube aos sucessores deMarcos –Mateus eLucas–aperfeiçoarotextooriginal.

Duas décadas depois de Marcos, entre 90 e 100 d.C., os autores deMateus e Lucas, trabalhando de forma independente um do outro etomando o manuscrito de Marcos por modelo, atualizaram a história doevangelho, adicionando suas próprias e exclusivas tradições, incluindoduas narrativas da infância diferentes e con litantes e uma série dehistóriasderessurreiçãoelaboradasparasatisfazerseus leitorescristãos.Mateus e Lucas também se basearam no que deve ter sido uma coleçãoantiga e bastante difundida de ditos de Jesus que os estudiosos têmdenominadoQ (do alemãoQuelle, ou “fonte”). Embora já não tenhamosnenhuma cópia ísica desse documento, podemos inferir seu conteúdocompilando versos que Mateus e Lucas têm em comum, mas que nãoaparecememMarcos.

Juntos, esses três evangelhos, Marcos, Mateus e Lucas, tornaram-seconhecidos como os sinópticos (grego para “vistos juntos”), porque elesmaisoumenosapresentamumanarrativaeumacronologiaiguaissobreavida e o ministério de Jesus, que é muito em desacordo com o quartoevangelho, o de João, que foi provavelmente escrito logo após o im doséculoI,entre100e120d.C.

Estes são, assim, os evangelhos canônicos.Mas eles não são os únicosevangelhos.Temoshoje acesso aumabiblioteca inteirade escriturasnãocanônicas, escritas principalmente nos séculos II e III, que fornecemuma

perspectivamuitodiferentesobreavidadeJesusdeNazaré.Estasincluemo evangelho de Tomé, o evangelho de Filipe, o Livro Secreto de João, oevangelho de Maria Madalena e uma série de outros chamados“evangelhosgnósticos”, descobertosnoaltoEgito,pertoda cidadedeNagHammadi,em1945.Emboraelestenhamsidodeixadosde foradoquesetornaria o Novo Testamento, esses livros são importantes namedida emque demonstram a dramática divergência de opinião que existia sobrequem era Jesus e o que Jesus signi icava, mesmo entre aqueles queandaram com ele, que compartilharam seu pão e comeram com ele, queouviramsuaspalavraseoraramcomele.

No inal,háapenasdois fatoshistóricosefetivossobre JesusdeNazarénosquaispodemosrealmentecon iar:oprimeiroéqueJesusfoiumjudeuqueliderouummovimentopopularjudaiconaPalestinanoiníciodoséculoI d.C.; o segundo é que Roma o cruci icou por isso. Por si sós, esses doisfatosnãopodemfornecerumretratocompletodavidadeumhomemqueviveu há 2 mil anos. Mas quando combinados com tudo o que sabemossobre a época tumultuada em que Jesus viveu – e graças aos romanossabemosbastante–,essesdois fatosajudamapintarumretratode Jesusde Nazaré que pode ter mais precisão histórica do que o pintado pelosevangelhos.Naverdade,oJesusqueemergedesseexercíciohistórico–umrevolucionário fervoroso arrebatado, como todos os judeus da época oforam,pelaagitaçãopolíticaereligiosadaPalestinadoséculoI–tempoucasemelhança com a imagem do manso pastor cultivado pela comunidadecristãprimitiva.

Considere o seguinte: a cruci icação era uma punição que Romareservavaquase exclusivamentepara o crimede sedição.AplacaqueosromanoscolocaramacimadacabeçadeJesusenquantoelesecontorciadedor – “Rei dos Judeus” – era chamada detitulus, e, apesar da percepçãocomum, não era para ser sarcástica. Todo criminoso que era penduradoem uma cruz recebia uma placa declarando o crime especí ico pelo qualestava sendo executado. O crime de Jesus, aos olhos de Roma, foi o debuscar o poder político de um rei (ou seja, traição), omesmo crime peloqualforammortosquasetodososoutrosaspirantesmessiânicosdaépoca.E Jesus também não morreu sozinho. Os evangelhos a irmam que emambososladosdeJesusestavampenduradoshomensque,emgrego,eramchamadoslestai,umapalavramuitasvezestraduzidacomo“ladrões”,masque, na verdade, signi ica “bandidos” e era a designação romana maiscomumparauminsurretoourebelde.

Trêsrebeldesemumacolinacobertadecruzes,cadacruzcomocorpotorturado e ensanguentado de um homem que ousou desa iar a vontadede Roma. Essa imagem por si só deveria lançar dúvidas sobre ainterpretação dos evangelhos de Jesus como um homem de pazincondicional quase totalmente isolado das convulsões políticas de seutempo. A ideia de que o líder de um movimento messiânico popularpedindo a imposição do “Reino de Deus” – um termo que teria sidoentendido, tanto por judeus quanto por gentios, como implicando revoltacontraRoma – pudesse ter permanecido sem envolvimento como fervorrevolucionárioqueatingiuquasetodososjudeusnaJudeiaésimplesmenteridícula.

Por que os escritores dos evangelhos iriam tão longe para amainar ocaráter revolucionário da mensagem e do movimento de Jesus? Pararesponderaessapergunta,devemosprimeiroreconhecerquequasetodahistóriadosevangelhosescritasobreavidaeamissãodeJesusdeNazaréfoicompostaapósarebeliãojudaicacontraRoma,em66d.C.Naqueleano,umgrupode rebeldes judeus, estimuladopor seu fervorporDeus, levouseus companheiros judeus à rebelião. Milagrosamente, os rebeldesconseguiram libertar aTerra Santadaocupação romana.Durantequatroanos gloriosos, a cidade de Deus esteve de novo sob controle judaico.Então, em 70 d.C., os romanos voltaram. Depois de um breve cerco aJerusalém,os soldadosviolaramasmuralhasda cidadeedesencadearamumaorgiadeviolênciacontraseusresidentes.Elesmassacraramtodosemseucaminho,acumulandocadáveressobreoMontedoTemplo.Umriodesangue corria pelas ruas de paralelepípedos. Quando o massacre foicompletado,ossoldadosatearamfogoaoTemplodeDeus.Osincêndiosseespalharam para além do Monte do Templo, envolvendo os prados deJerusalém,asterrascultivadas,asoliveiras.Tudoqueimado.Tãocompletafoi a devastação praticada sobre a Cidade Santa que Josefo escreve quenada fora deixado que provasse que Jerusalém já tinha sido habitada.Dezenas de milhares de judeus foram massacrados. O resto foi levadoacorrentadoparaforadacidade.

O trauma espiritual enfrentado pelos judeus após esse eventocatastró ico é di ícil de imaginar. Exilados da terra a eles prometida porDeus,forçadosavivercomopáriasentreospagãosdoImpérioRomano,osrabinosdoséculoIIgradualedeliberadamentedivorciaramojudaísmodonacionalismo messiânico radical que tinha iniciado a guerra malfadadacomRoma.ATorásubstituiuoTemplonocentrodavidajudaica,esurgiuo

judaísmorabínico.Oscristãostambémsentiramnecessidadedesedistanciaremdofervor

revolucionário que levara ao saque de Jerusalém, não só porque issopermitia à Igreja primitiva afastar a ira de uma Roma profundamentevingativa,mas tambémporque, tendo a religião judaica se tornado pária,os romanos tinham se transformado no principal alvo de evangelismo daIgreja. Assim começou o longo processo de transformar Jesus de umnacionalista judeu revolucionário em um líder espiritual pací ico, semnenhuminteresseemqualquerassuntoterreno.EsseeraumJesusqueosromanos podiam aceitar, e de fato aceitaram três séculos mais tarde,quando o imperador romano Flávio Teodósio (morto em 395) fez domovimento do pregador judeu itinerante a religião o icial do Estado, enasciaoquehojereconhecemoscomoocristianismoortodoxo.

Este livro é uma tentativade recuperar, tantoquantopossível, o Jesusda história, o Jesusantes do cristianismo: o revolucionário judeupoliticamente consciente que, há 2 mil anos, atravessou o campo galileureunindo seguidores para um movimento messiânico com o objetivo deestabeleceroReinodeDeus,mas cujamissão fracassouquando–depoisde uma entrada provocadora em Jerusalém e um audacioso ataque aoTemplo – ele foi preso e executado por Roma pelo crime de sedição. Étambémsobrecomo,apósJesusterfracassadoemestabeleceroReinodeDeus na terra, seus seguidores reinterpretaram não só a missão e aidentidade de Jesus, mas também a própria natureza e de inição domessiasjudeu.

Háaquelesqueconsideramessatentativaperdadetempo,acreditandoqueo Jesusdahistóriaestá irremediavelmenteperdidoeé impossíveldeserrecuperado.Longevãoosdiasdeglóriada“buscapeloJesushistórico”,quando os estudiosos proclamavam con iantes que as ferramentascientí icas modernas e a pesquisa histórica nos permitiriam descobrir averdadeira identidade de Jesus. O verdadeiro Jesus já não importa,argumentamessesestudiosos.Devemosconcentrar-nosnoúnicoJesusqueéacessívelparanós:Jesus,oCristo.

Defato,escreverumabiografiadeJesusdeNazarénãoécomoescreverumabiogra iadeNapoleãoBonaparte.Atarefaéumpoucoparecidacomamontagemdeumquebra-cabeçaenorme, comapenasalgumasdaspeçasna mão; não se tem escolha senão a de preencher o resto do quebra-cabeça baseado na melhor das hipóteses, na mais bem-informadasuposição de como a imagem completa deveria ser. O grande teólogo

cristãoRudolfBultmanngostavadedizerqueabuscapeloJesushistóricoé, no im das contas, uma busca interna. Os estudiosos tendem a ver oJesus que eles querem ver. Muitas vezes eles veem a si próprios, seupróprioreflexonaimagemqueconstruíramdeJesus.

Mesmo assim, essa melhor e mais bem-informada hipótese pode sersu iciente para, no mínimo, questionar nossas suposições mais básicas arespeito de Jesus de Nazaré. Se expusermos as reivindicações dosevangelhosaocalordeanálisehistórica,podemos limparasescriturasdeseusfloreiosliterárioseteológicoseforjarumaimagemmuitomaisprecisado Jesus histórico. De fato, se nos comprometermos a colocar Jesusirmementedentrodocontextosocial,religiosoepolíticodaépocaemqueeleviveu–umaépocamarcadaporumapersistenterevoltacontraRomaqueiriatransformarparasempreaféeapráticadojudaísmo–,então,decertaforma,suabiografiaseescreveporsiprópria.

O Jesus que é revelado nesse processo pode não ser o Jesus queesperamos, e ele certamente não será o Jesus que os cristãos maismodernos reconheceriam.Mas, no inal, ele é o único Jesusquepodemosacessarpormeioshistóricos.

Todoorestoéumaquestãodefé.

bTermodecorrentedogregozelotes(ζηλωτήϚ)ecristalizadonamaiorpartedaslínguasneolatinascomozelota,aindaquesejacomumaformafrancesazeloteemportuguês.Aqui,optamosporzelota,maiscorrenteeconsolidadonoambientereligiosojudaico-cristãoenomundoacadêmico.(N.T.)

Cronologia

164a.C. Revoltadosmacabeus140 Iníciodadinastiadosmacabeus63 PompeuMagnoconquistaJerusalém37 Herodes,oGrande,énomeadoreidosjudeus4MortedeHerodes,oGrande4 RevoltadeJudas,oGalileu

4a.C./6d.C. NascimentodeJesusdeNazaré6d.C. AJudeiasetornaoficialmenteprovínciaromana

10 SéforissetornaaprimeirasederealdeHerodesAntipas18 JoséCaifásénomeadosumosacerdote20 TiberíadessetornaasegundasederealdeHerodesAntipas26 PôncioPilatossetornagovernador(prefeito)emJerusalém

26-28 IníciodoministériodeJoãoBatista28-30 IníciodoministériodeJesusdeNazaré30-33MortedeJesusdeNazaré

36 Revoltadossamaritanos37 ConversãodeSaulodeTarso(Paulo)44 RevoltadeTeudas46 RevoltadeJacóedeSimão,filhosdeJudas,oGalileu48 Pauloescreveaprimeiraepístola:1Tessalônicos56 AssassinatodosumosacerdoteJônatas56 Pauloescreveaúltimaepístola:Romanos57 Revoltadosegípcios62MortedeTiago,irmãodeJesus66MortedePauloedoapóstoloPedroemRoma66 Revoltajudaica70 DestruiçãodeJerusalém

70-71 OevangelhodeMarcoséescrito73 OsromanoscapturamMasada

80-90 ÉescritaaepístoladeTiago90-100 SãoescritososevangelhosdeMateuseLucas

94 JosefoescreveaobraAntiguidades100-120 ÉescritooevangelhodeJoão

132 RevoltadeSimão,filhodeKochba300 AsPseudo-Clementinassãocompiladas313 OimperadorConstantinoassinaoEditodeMilão325 ConcíliodeNiceia398 ConcíliodeHippoRegius

ParteI

Levanta-te!Levanta-te!Investe-tedetuaforça,óSião!Colocatuasbelasvestes,Jerusalém,aCidadeSanta;PoisoincircuncisoeoimpuroNuncanovamentedeverãoentraremti.Sacodeopódetimesma,ponha-tedepé,ÓcativaJerusalém;Liberaasamarrasdeteupescoço,ÓcativafilhadeSião.

(ISAÍAS52:1-2)

Prólogo:Umtipodiferentedesacrifício

AGUERRACONTRAROMAnãocomeçacomosomestridentedasespadas,mascom o ruído suave do cabo de um punhal sendo tirado da capa de umassassino.

TemporadadefestivalemJerusalém:ummomentoemqueosjudeusdetodo o Mediterrâneo convergem para a Cidade Santa levando oferendasperfumadas a Deus. Há no antigo culto judeu uma série de costumes ecelebraçõesanuaisquesópodemserrealizadosaqui,dentrodoTemplodeJerusalém, e na presença do sumo sacerdote, que reserva os dias dasfestasmaissagradas–Pêssach(aPáscoa judaica),Pentecostes,a festadacolheitadeSucot–parasipróprio,aomesmotempoembolsandoumaboataxa, oudízimo, como ele prefere, pelo seu incômodo. E que incômodo!Nesses dias, a população da cidade pode chegar a mais de 1 milhão depessoas. É preciso toda a força dos porteiros e sacerdotesmenores paraespremeramassadeperegrinosatravésdosPortõesHulda,naparedesuldoTemplo,paraconduzi-laaolongodasgaleriasescurasecavernosassobapraçadoTemploeguiá-laatéoduplolancedeescadasquelevaàpraçapúblicaeaomercadoconhecidocomoPátiodosGentios.

OTemplode Jerusaléméumaestruturamaisoumenosretangular,decerca de quinhentos metros de comprimento por trezentos de largura,equilibrada no topo do monte Moriá, no extremo leste da Cidade Santa.Suasparedesexternassãobordejadasporpórticoscobertos,cujostetosdelajes, suportados por lances de colunas de pedra branca brilhante,protegem as massas do sol impiedoso. No lado sul do Templo situa-se omaioremaisornamentadodospórticos,oPórticoReal–umsalãoalto,dedoisandares,dotipodeumabasílica,construídonoestilohabitualromano.EsseéoespaçoadministrativodoSinédrio,ocorporeligiososupremoeomaisaltotribunaljudiciáriodanaçãojudaica.Étambémondecomerciantese cambistas desmazelados icam ruidosamente à espera enquanto vocêpercorre o caminho até as escadas subterrâneas e alcança a espaçosapraçaensolarada.

Os cambistas desempenham um papel vital no Templo. Por uma taxa,eles trocam moedas estrangeiras pelo shekel hebraico, a única moedapermitidapelasautoridadesdoTemplo.Ostrocadoresdedinheirotambémcobrarão o meio shekel de imposto do Templo que todos os homensadultosdevempagarparapreservarapompaeespetáculodetudoquesevê ao redor: as montanhas de incenso queimando e os incessantessacri ícios,aslibaçõesdevinhoeasofertasdasprimeirasfrutascolhidas,ocoro levita cantando salmos de louvor e a orquestra que o acompanhavibrando liras e batendo pratos. Alguém tem que pagar por essasnecessidades. Alguém tem que arcar com o custo dos holocaustos quetantoagradamaoSenhor.

Com a nova moeda na mão, você agora está livre para examinar asgaiolas que forramas paredes periféricas e comprar o seu sacri ício: umpombo,umaovelha–dependedopesoquevocêtemnobolso,oudopesodeseuspecados.Seoúltimo formaiorqueoprimeiro,nãosedesespere.Oscambistasestãodispostosaoferecerocréditodequevocêprecisaparamelhorarosacri ício.Existeumcódigolegalrígidoqueregulamentaquaisanimaispodemseradquiridosparaaocasiãoabençoada.Elesdevemestarlivres demachucados. Devem ser domésticos, não selvagens. Não podemseranimaisdecarga.Sejaboioutouro,carneiroouovelha,devemtersidocriados para esse im. E não são baratos. Por que deveriam sê-lo? Osacri ícioéoprincipalobjetivodoTemplo.EssaéaprópriarazãodeserdoTemplo. As músicas, as orações, as leituras – todos os rituais queacontecem aqui surgiram a serviço desse ritual singular e mais vital. Alibaçãodesanguenãosólimpaospecados,elalimpaaterra.Elaalimentaaterra,renovando-aesustentando-a,protegendo-nosatodosdasecaoudafome, ou de coisa pior. O ciclo de vida e morte que o Senhor em suaoni icência decretou é totalmente dependente do sacri ício que você fará.Estenãoéomomentoparapoupar.

Então,compresuaoferenda,equesejaboa.Entregue-aaqualquerumdossacerdotesvestidosdebrancoquecirculampelapraçadoTemplo.Elessão os descendentes de Aarão, irmão de Moisés, responsáveis pelamanutençãodos ritosdiários doTemplo: a queimade incenso, o acenderdas lâmpadas, o soar de cornetas e, claro, o sacri ício das oferendas. Osacerdócio é uma posição hereditária, mas não há falta de sacerdotes,certamente não durante a temporada de festival, quando chegam emmassadeterrasdistantesparaajudarnas festividades.Elesseacumulamno Templo em turnos de 24 horas para garantir que os fogos para o

sacrifíciosejammantidosacesosdiaenoite.OTemploéconstruídocomoumasériedepátiosemsequência,cadaum

menor, mais elevado e mais restrito do que o anterior. O pátio maisexterno, o Pátio dos Gentios, onde você comprou sua oferenda, é umaampla praça aberta a todos, independentemente de raça ou religião. Sevocêé judeu–um judeusemqualquerproblema ísico(semferidas, semparalisias)edevidamentepuri icadoporumbanhoritual–,podeseguirosacerdotecomasuaoferendaatravésdeumaespéciedegradedepedraeavançar para o próximopátio, o Pátio dasMulheres (a placa em cima domuroavisatodososdemaisparanãoiremalémdoátrioexterior,sobpenade morte). Aqui é onde o óleo e a madeira para os sacri ícios sãoarmazenados. É também o pontomais interno do Templo onde qualquermulher judia pode chegar; homens judeus podem continuar até umpequenolancesemicirculardeescadasatravésdoPortãoNicanorechegaraoPátiodosIsraelitas.

IssoéomaispróximoquevocêpoderáchegardapresençadeDeus.Ocheiro de carni icina é impossível de se ignorar. Ele se agarra à pele, aocabelo, tornando-seumfardodesagradáveldoqualvocênãovai se livrartãocedo.Ossacerdotesqueimamincensoparaafastarofedoreadoença,mas a mistura de mirra e canela, açafrão e olíbano não conseguemmascarar o insuportável mau cheiro da matança. Ainda assim, éimportante manter-se onde você está e testemunhar seu sacri ícioacontecernopróximopátio,oPátiodosSacerdotes.Aentradanessepátioépermitida unicamente aos sacerdotes e funcionários do Templo, pois éonde icaoaltardoTemplo:umpedestaldequatrochifresfeitodebronzeemadeira–decincocôvadosdecomprimento,cincocôvadosdelargura–arrotandogrossasnuvenspretasdefumaçanoar.

Osacerdotelevaoseusacri ícioparaumcantoesepuri icanumabaciapróxima.Então, comuma simplesoração, ele rasga a gargantado animal.Umassistentecoletaosangueemumatigelaparaespargirsobreosquatrocantoscornudosdoaltar,enquantoosacerdotecuidadosamenteestripaedesmembraacarcaça.Apeledoanimaléparaele;elaalcançaráumbompreço no mercado. As entranhas e o tecido adiposo são arrancados docadáver, levados por uma rampa para o altar e colocados diretamentesobre o fogo eterno. A carne do animal é cuidadosamente retirada ecolocadadeladoparaossacerdotessebanquetearemapósacerimônia.

Toda a liturgia é realizada diante do pátio mais interior do Templo, oSantodosSantos–umsantuáriocomcolunas,banhadoaouro,nocoração

do complexo do Templo. O Santo dos Santos é omais alto ponto em todaJerusalém.Suasportassãocobertasde tapeçariasdecorroxaeescarlatebordadas com uma roda do zodíaco e um panorama dos céus. Este é olugar onde a glória de Deus habita isicamente. É o ponto de encontroentreosreinosterrenoecelestial,ocentrodetodaacriação.

AArcadaAliança,contendoosmandamentosdeDeus,umavezesteveaqui, mas ela foi perdida há muito tempo. Nada existe agora dentro dosantuário. É um vasto espaço vazio, que serve como um conduto para apresençadeDeus,canalizandoseuespíritodivinodoscéus,fazendo-o luirparaforaemondasconcêntricas,portodasascâmarasdoTemplo,atravésdoPátiodosSacerdotesedoPátiodos Israelitas,doPátiodasMulheresedoPátiodosGentios,porsobreasparedescompórticosedescendoparaacidadede Jerusalém,por todaaregiãoda Judeia,paraaSamariaeEdom,PereiaeGalileia,atravésdoimpériosemlimitesdapoderosaRomaeparaorestodomundo,atodosospovosenações,todoseles–judeusegentiosigualmente – nutridos e sustentados pelo espírito do Senhor da Criação,um espírito que tem uma única fonte e nenhuma outra: o santuáriointerior, o Santo dos Santos, encravado dentro do Templo, na cidadesagradadeJerusalém.

A entrada para o Santo dos Santos é barrada a todos, exceto ao sumosacerdote – que, nessa época, 56d.C., é um jovem chamado Jônatas, ilhode Ananus. Como a maioria de seus antecessores recentes, Jônatascomprou o cargo diretamente de Roma, e sem dúvida por um preçoelevado.Ocargodesumosacerdoteé lucrativo, reservadoaumpunhadode famílias nobres que passam a posição entre si como um legado (ossacerdotesmenoresgeralmentevêmdeorigensmaismodestas).

OpapeldoTemplona vida judaicanãopode ser exagerado.OTemploservecomocalendárioerelógioparaosjudeus,seusrituaismarcamociclodoanoemoldamasatividadesdodiaadiadetodohabitantedeJerusalém.É o centro de comércio para toda a Judeia, sua principal instituiçãoinanceiraeseumaiorbanco.OTemploétantoamoradadoDeusdeIsraelquantoasededasaspiraçõesnacionalistasde Israel;elenãosóabrigaosescritossagradosepergaminhosdasleisquemantêmocultojudaico,comotambéméorepositórioprincipaldosdocumentoslegais,notashistóricaseregistrosgenealógicosdanaçãojudaica.

Ao contrário de seus vizinhos pagãos, os judeus não têm umamultiplicidade de templos espalhados por todo o país. Há apenas umcentrodeculto,umafonteúnicaparaapresençadivina,umlugarsingular

enenhumoutroondeumjudeupodecomungarcomoDeusvivo.AJudeiaé,paratodososefeitos,umtemplo-Estado.Oprópriotermo“teocracia” foicunhadoespecificamenteparadescreverJerusalém.“Algumaspessoastêmcon iado o poder político supremo amonarquias”, escreveu no século I ohistoriador judeu Flávio Josefo, “outros a oligarquias, outros ainda àsmassas[ademocracia].Nossolegislador[Deus],noentanto,nãofoiatraídopornenhumadessas formasdepolítica,masdeua suaconstituiçãosobaformaque–seumaexpressãoforçadaforpermitida–podeserchamadade ‘teocracia’ [ theokratia], colocando toda a soberania e autoridade nasmãosdeDeus.”

Pense no Templo como uma espécie de Estado feudal, empregandomilhares de padres, cantores, porteiros, servos e ministros, mantendovastas extensões de terras férteis cultivadas por escravos em nome dosumo sacerdote e em seu bene ício. Adicione a isso a receita arrecadadapelosimpostos do Templo e o luxo constante de dádivas e ofertas devisitantes e peregrinos, para não mencionar as enormes somas quepassampelasmãosdoscomerciantesecambistas,dasquaisoTemplotiraumaparte,eéfácilverporquetantosjudeus–citandoJosefo–veemtodaa nobreza sacerdotal, e o sumo sacerdote emparticular, comonadamaisqueumbandodeavarentos“amantesdeluxo”.

Imagine o sumo sacerdote Jônatas de pé diante do altar, o incensoardendolentamentenamão,eéfácilverdeondeessainimizadevem.Atémesmo suas vestes sacerdotais, recebidas de ricos antecessores, atestamsua opulência. O longomanto semmangas tingido de púrpura (a cor dosreis) e bordejado por franjas delicadas e pequenos sinos douradoscosturadosnaorla,opesadopeitoral,salpicadocomdozepedraspreciosas,uma para cada uma das tribos de Israel; o turbante imaculado sobre acabeça, como uma tiara, encimado por uma placa de ouro em que estágravado o indizível nome de Deus; o Urim e o Tumim, uma espécie dedadossagradosfeitosdemadeiraeossoqueosumosacerdotecarregaemuma bolsa perto do peito e através dos quais revela a vontade de Deustirando a sorte – todos esses símbolos de ostentação se destinam arepresentaroacessoexclusivodosumosacerdoteaDeus.Eles sãooquetornaosumosacerdotediferente,poiselesodistinguemdetodososoutrosjudeusdomundo.

É por essa razão que só o sumo sacerdote pode entrar no Santo dosSantos,esóemumdiaporano,noYomKippur,oDiadaExpiação,quandotodos os pecados de Israel são limpos.Nesse dia, o sumo sacerdote vai à

presença de Deus para expiar pela nação inteira. Se ele for digno dabênção de Deus, os pecados de Israel estão perdoados. Se não for, umacordaamarradaàcinturagaranteque,quandoDeus tocá-locomamorte,ele poderá ser arrastado para fora do Santo dos Santos sem ninguémmacularosantuário.

Éclaroque,nessediaemparticular,osumosacerdotemorre,masnão,aoqueparece,pelamãodeDeus.

Asbênçãossacerdotaiscompletaseoshemácantado(“Ouve,óIsrael:oSenhorénossoDeus,apenasoSenhor”),osumosacerdoteJônatasafasta-se do altar e desce a rampa para os pátios exteriores do Templo. NomomentoemqueelechegaaoPátiodosGentios,éengolidoporumfreneside exaltação.Os guardasdoTemplo formamumabarreiradepureza emtornodele,protegendo-odasmãoscontaminadasdasmassas.Noentanto,éfácilparaoassassinosegui-lo.Elenãoprecisaseguirobrilhoofuscantedesuasvestesenfeitadas.Precisaapenasseguirosomdossinospenduradosnabarradomanto.Amelodiapeculiaréosinalmaissegurodequeosumosacerdoteestáchegando.Osumosacerdoteestápróximo.

O assassino abre caminho através damultidão, apertando-se perto deJônatas o su iciente para avançar uma mão invisível, agarrar as vestessagradas,puxá-loparaforadoalcancedosguardasdoTemploemantê-loirme, apenas por um instante, tempo su iciente para desembainhar opunhaledeslizá-loporsuagarganta.Umtipodiferentedesacrifício.

Antes que o sangue do sumo sacerdote se derrame sobre o piso doTemplo,antesqueosguardaspossamreagiraoritmointerrompidodeseupasso,antesquealguémnopátiosaibaoqueaconteceu,oassassino jásemisturoudevoltanamultidão.

Você não deve se surpreender se ele for o primeiro a gritar:“Assassinato!”

1.Umburaconocanto

QUEM MATOU JÔNATAS, ilho de Ananus, quando ele atravessava oMonte doTemplo no ano 56 d.C.? Sem dúvida, havia muitos em Jerusalém queansiavam por matar o voraz sumo sacerdote, e outros mais que teriamgostadodeacabarcomoinchadosacerdóciodoTemploemsuatotalidade.PoisoquenuncadeveseresquecidoquandosefaladaPalestinadoséculoI é que essa terra – essa terra sagrada da qual o espírito de Deus luíapara o resto do mundo – era território ocupado. Legiões de soldadosromanos estavam posicionadas em toda a Judeia. Cerca de seiscentossoldados romanos residiam no topo do próprioMonte do Templo, dentrodos altos muros de pedra da fortaleza Antônia, que escorava o cantonoroeste da parede do Templo. O centurião impuro de capa vermelha ecouraça lustrosa que des ilava pelo Pátio dos Gentios, a mão pairandosobre o punho da espada, era um lembrete pouco sutil, se tal fossenecessário,dequemrealmentegovernavaaquelelugarsagrado.

O domínio romano sobre Jerusalém começou em 63 a.C., quando omestre estrategistadeRoma,PompeuMagno, entrouna cidade com suaslegiões conquistadoras e sitiou o Templo. Nessa época, Jerusalém haviapassadohámuitodeseuapogeueconômicoecultural.OpovoadocananeuqueoreiDavitinharemodeladocomosededeseureino,acidadequeeletinhalegadoaseu ilhorebelde,Salomão,queconstruiuoTemplodeDeus–saqueadoedestruídopelosbabilôniosem586a.C.–,acidadequetinhasidoacapitalreligiosa,econômicaepolíticadanação judaicapormilanosera, no momento em que Pompeu atravessou os portões, reconhecidamenosporsuabelezaegrandiosidadedoquepelofervorreligiosodesuaincômodapopulação.

SituadanoplanaltosuldasásperasmontanhasdaJudeia,entreospicosgêmeos monte Scopus e Monte das Oliveiras, e ladeada pelo vale doCedron,aleste,eoíngreme,proibitivovaledeGeena,aosul,Jerusalém,nomomentodainvasãoromana,abrigavaumapopulaçãodecercade100milpessoas. Para os romanos, era um inconsequente pontinho no mapaimperial, uma cidade que o prolixo estadista Cícero classi icou como “umburaconocanto”.Mas,paraosjudeus,esseeraoumbigodomundo,oeixo

douniverso.Nãohouvecidademaisoriginal,maissanta,maisveneradaemtodoomundodoqueJerusalém.

As vinhas roxas, cujas videiras se retorciam e se arrastavam atravésdas planícies, os campos bem cultivados e verdes pomares repletos deamendoeiras, igueiras e oliveiras, as camas verdes de papiro lutuandopreguiçosamente ao longo do rio Jordão – os judeus não só conheciam eamavam profundamente todas as características dessa terra consagrada,eles reivindicavam tudo isso. Tudo, desde as terras cultivadas da Galileiaaté as colinas baixas da Samaria e as periferiasmais distantes do Edom,ondeaBíbliadizqueascidadesamaldiçoadasdeSodomaeGomorraumavezexistiram,foidadoporDeusaosjudeus,embora,defato,osjudeusnãogovernassem nenhuma parte disso, nem mesmo Jerusalém, onde overdadeiro Deus era adorado. A cidade que o Senhor tinha vestido emesplendoreglóriaecolocado,comooprofetaEzequieldeclarou,“nocentrode todas as nações”, a sede eterna do Reino de Deus na terra, era, noalvorecerdoséculoI,apenasumaprovínciamenore,alémdisso,irritante,nocantomaisdistantedopoderosoImpérioRomano.

NãoéqueJerusalémnãoestivesseacostumadaainvasõeseocupações.Apesar de seu status exaltado nos corações dos judeus, a verdade é queJerusalém era pouco mais que uma insigni icância a passar por umasucessãodereiseimperadoresqueserevezavampilhandoesaqueandoacidadesagradaemseucaminhoparaambiçõesbemmaisgrandiosas.Em586 a.C., os babilônios – senhores daMesopotâmia – invadiram a Judeia,arrasando até o chão tanto Jerusalém quanto o Templo. Os babilôniosforam conquistados pelos persas, que permitiram que os judeusretornassemàsuaamadacidadeereconstruíssemseutemplo,nãoporqueadmirassem os judeus oulevassem seu culto a sério, mas porqueconsideravam Jerusalém um local irrelevante, de pouco interesse oupreocupaçãoparaumimpérioqueseestendiaportodoocomprimentodaÁsia Central (ainda assim, o profeta Isaías agradeceu ao rei persa Ciro,ungindo-ocomomessias).

O Império Persa, e Jerusalém com ele, caiu diante dos exércitos deAlexandre, o Grande, cujos descendentes imbuíram a cidade e seushabitantes com a cultura e as ideias gregas. Após a prematuramorte deAlexandre, em 323 a.C., Jerusalém foi passada como despojo para adinastiaptolomaicaegovernadaapartirdodistanteEgito,emboraapenaspor pouco tempo. Em 198 a.C., a cidade foi arrancada do controleptolomaicopeloreiselêucidaAntíoco,oGrande,cujo ilhoAntíocoEpifânio

se imaginavaDeusencarnadoeesforçou-separapôr imdeumavezportodas ao culto da divindade judaica em Jerusalém. Mas os judeusresponderam a tal blasfêmia com uma implacável guerra de guerrilhaliderada pelos valentes ilhos deMatatias, o Hasmoneu – osmacabeus –,querecuperaramaCidadeSantadocontroleselêucidaem164a.C.e,pelaprimeiravezemquatroséculos,restauraramahegemoniajudaicasobreaJudeia.

Pelos cem anos seguintes, os macabeus governaram a terra de Deuscom punho de ferro. Eles eram reis-sacerdotes, cada um servindo tantocomo rei dos judeus como sumo sacerdote do Templo. Mas quando aguerracivileclodiuentreos irmãosHircanoeAristóbulopelocontroledotrono, cada irmão tolamente pediu apoio a Roma. Pompeu tomou assúplicasdosirmãoscomoumconviteparatomarJerusalémparasimesmo,assim colocando im ao breve período de domínio judaico direto sobre acidadedeDeus.Em63a.C., a Judeia tornou-seumprotetoradoromano,eosjudeustornaram-semaisumavezumpovodominado.

Odomínioromano,ocorrendo,comoaconteceu,depoisdeumséculodeindependência,nãofoirecebidocalorosamentepelosjudeus.Adinastiadosmacabeus foi abolida, mas Pompeu permitiu que Hircano mantivesse aposiçãodesumosacerdote.IssonãoagradouaospartidáriosdeAristóbulo,que lançaram uma série de revoltas às quais os romanos responderamcomacostumeiraselvageria–queimandocidades,massacrandorebeldes,escravizando populações. Enquanto isso, o abismo entre os famintos epobres endividados labutando no campo e a classe provincial abastadagovernando em Jerusalém cresceu ainda mais. Era a política romanapadrão forjar alianças, em cada cidade capturada, com a aristocraciafundiária,tornando-adependentedossenhoresromanosparaterpodereriqueza. Ao alinhar seus interesses com os da classe dominante, Romagarantia que os líderes locais permanecessem totalmente investidos namanutençãodosistemaimperial.

Claro que, em Jerusalém, “aristocracia fundiária” signi icavabasicamente a classe sacerdotal e, especi icamente, umpunhado de ricasfamílias sacerdotais que mantinham o culto do Templo. Como resultado,tais famílias foram encarregadas por Roma de coletar os impostos etributosedemanteraordementreapopulaçãocadavezmais inquieta–tarefaspelasquaiseramricamentecompensadas.

A luidez que existia em Jerusalém entre os poderes religiosos epolíticos tornou necessário para Roma manter uma estreita vigilância

sobreocultojudaicoe,emparticular,sobreosumosacerdote.ComochefedoSinédrioe “líderdanação”, o sumosacerdoteerauma igura tantodeprestígiopolíticocomoreligioso,famosopelopoderdedecidirsobretodasas questões religiosas, de fazer cumprir a lei de Deus e até mesmo deefetuar prisões, embora apenas nas proximidades do Templo. Se osromanosqueriamcontrolarosjudeus,tinhamquecontrolaroTemplo.Esequeriam controlar o Templo, tinham que controlar o sumo sacerdote,sendoporissoque,logodepoisdetomarocontroledaJudeia,Romatomoupara si a responsabilidade de nomear e destituir (de forma direta ouindireta)oocupantedessecargo,transformando-oessencialmenteemumfuncionário romano. Roma mantinha até mesmo a custódia das vestessagradas, entregando-as somente nas festas sagradas e con iscando-asimediatamenteapósotérminodascerimônias.

Ainda assim, os judeus estavam em melhor situação do que algunsoutros súditos romanos. Demaneira geral, os romanos aceitavam o cultojudaico,permitindoseminterferênciaarealizaçãodosrituaisesacri ícios.Osjudeusforamatémesmodispensadosdaadoraçãodiretadoimperador,queRomaimpunhaaquasetodasasoutrascomunidadesreligiosassoboseudomínio.TudooqueRomapediade Jerusalémerao sacri íciodeumtouroedois cordeirosemnomedo imperadorepor suaboasaúde,duasvezes por dia. Continue fazendo o sacri ício, mantenha-se em dia com osimpostosetributos,sigaasleisprovinciaiseRomaestaráfelizemdeixá-laempaz,bemcomoaoseudeuseaoseutemplo.

Os romanos tinham, a inal, razoável consciênciadas crenças epráticasreligiosas dos povos dominados. A maior parte das terras queconquistaram foi autorizada a manter seus templos sem ser molestada.Deusesrivais, longedeseremvencidosoudestruídos,muitasvezesforamassimiladosnocultoromano(foiassimque,porexemplo,ocananeudeusBaal tornou-se associado ao deus romano Saturno). Emalguns casos, sobuma prática chamadaevocatio, os romanos poderiam tomar posse dotemplo de um inimigo – e, portanto, de seu deus, pois os dois eraminseparáveis nomundo antigo – e transferi-lo para Roma, onde ele seriacoberto de riquezas e generosos sacri ícios. Tais demonstrações visavamenviar um sinal claro de que as hostilidades eramdirigidas não contra odeus do inimigo, mas contra seus combatentes; o deus continuaria a serhonrado e adorado emRoma, bastandoque seusdevotosdepusessemasarmasesedeixassemserabsorvidospeloImpério.

Se geralmente eram tolerantes em relação aos cultos estrangeiros, os

romanoseramaindamaislenientescomosjudeusesua idelidadeaoseuúnicoDeus–oqueCíceromenosprezavacomo“bárbarassuperstições”domonoteísmojudaico.Osromanospodemnãoterentendidoocultojudaico,comsuasestranhasregrasesuaobsessãoexageradacompurezaritual–“Os judeus consideramprofano tudooqueparanósé sagrado, enquantopermitem tudooque abominamos”, escreveuTácito –,mas, no entanto, otoleravam.

O que mais confundia Roma sobre os judeus não eram os seus ritosdesconhecidos ou sua estrita devoção às leis,mas sim o que os romanosconsideravam ser o seu incomensurável complexo de superioridade. Anoção de que uma tribo semita insigni icante, residente em um cantodistante do poderoso Império Romano exigisse, e de fato recebesse,tratamentoespecialdoimperadorera,paramuitosromanos,simplesmenteincompreensível. Como eles se atreviam a considerar o seuDeus o únicodeusnouniverso?Comoelesseatreviamamanter-seseparadosdetodasas outras nações? Quem esses atrasados e supersticiosos homens tribaispensavamqueeram?O ilósofoestoicoSênecanãofoioúnicoentreaeliteromana querendo saber como tinha sido possível que, em Jerusalém, “ovencidotivesseimpostoleisaosvencedores”.

Paraos judeus,noentanto,essasensaçãodeexcepcionalidadenãoeraumaquestãodearrogânciaouorgulho.EraummandamentodiretodeumDeuscioso,quenão toleravaapresençadeestrangeirosna terraqueeletinha reservado para o seu povo escolhido. É por isso que, quando osjudeus chegaram a essa terra, mil anos antes dos romanos, Deus haviadecretado que eles massacrassem cada homem, mulher e criança queencontrassem,queabatessemcadaboi, cabra,ovelhaque lhescruzasseocaminho, que queimassem cada fazenda, cada campo, cada cultivo, cadacoisa viva sem exceção, de modo a assegurar que a terra pertencesseexclusivamenteaosqueadoravamesseDeusenenhumoutro.

“Quanto às cidades dessas pessoas que o Senhor vosso Deus vos estádandocomoherança”,disseDeusaosisraelitas,“vósnãodeveisdeixarquenadaquerespirepermaneçavivo.Vósaniquilareistodoseles–oshititaseos amorritas, os cananeus e os perizeus, os hivitas e os jebuseus, assimcomo o Senhor vosso Deus ordenou.” (Deuteronômio 20:17-18) A Bíbliaa irma que foi só depois que os exércitos judeus tinham “totalmentedestruídotudooquerespirava”nascidadesdeLibnaeLachisheEglomeHebroneDebir,na regiãomontanhosaenoNeguebe,nasplaníciesenasencostas, somente depois de cada antigo habitante dessa terra ter sido

erradicado,“comooSenhorDeusdeIsraelhaviaordenado”(Josué10:28-42),queosjudeusforamautorizadosaseestabeleceremali.

E, no entanto, mil anos mais tarde, essa mesma tribo que tinhaderramado tanto sangue para puri icar a Terra Prometida de todoelementoestrangeiro,demodoagoverná-laemnomedeseuDeus,agoraseencontravasofrendosobabotadeumpoderimperialpagão,forçadaacompartilhar a Cidade Santa com gauleses, espanhóis, romanos, gregos esírios–todoselesestrangeiros,todoselespagãos,obrigadaporleiafazersacri íciosno próprio Templo de Deus em nome de um idólatra romanoqueviviaamaisdemilquilômetrosdedistância.

Como os heróis de antigamente responderiam a tal humilhação edegradação? O que Josué ou Aarão ou Fineias ou Samuel fariam aosincrédulosquehaviammaculadoasterrasseparadasporDeusparaoseupovoescolhido?

Eles iriam inundar a terra com sangue. Iriam esmagar as cabeças dospagãos e dos gentios, queimar seus ídolos até a base, chacinar suasesposaseseus ilhos. Iriammataros idólatrasebanharospésnosanguedos inimigos, exatamente como o Senhor ordenara. Eles clamariam paraque oDeus de Israel irrompesse dos céus em seu carro de guerra, paraesmagarasnaçõespecadorasefazerasmontanhassecontorceremdiantede sua fúria.Equantoao sumosacerdote, odesgraçadoque traiuopovoescolhido de Deus, entregando-o a Roma por algumas moedas e pelodireitodeexibir-seemsuasroupasbrilhantes?Suaexistênciamesmaeraum insulto a Deus. Era uma praga sobre toda a terra. Tinha de serextirpado.

2.Reidosjudeus

NOS ANOS DE TUMULTO que se seguiram à ocupação romana da Judeia,enquanto Roma enredava-se em uma guerra civil debilitante entrePompeu Magno e seu antigo aliado Júlio César, até mesmo enquanto osrestos da dinastia dos macabeus continuavam disputando os favores deambos os homens, a situação para os agricultores e camponeses judeusquearavamesemeavamaterradeDeuspioravanotavelmente.

As pequenas chácaras familiares que durante séculos tinham servidocomo a principal base da economia rural foram gradualmente engolidaspelas grandespropriedades administradaspor aristocracias, sobobrilhoderecém-cunhadasmoedasromanas.Arápidaurbanizaçãosobodomínioromanoalimentouamigraçãointernaemmassadocampoparaascidades.A agriculturaque tinha sustentado asparcaspopulaçõesdas vilas estavaagora quase totalmente voltada para alimentar os inchados centrosurbanos, deixando os camponeses rurais na fome e na miséria. Ocampesinato não só era obrigado a continuar pagando seus impostos edízimosparaosacerdóciodoTemplo,comoeraforçadoapagarumpesadotributoaRoma.Paraosagricultores,ototaldosencargospoderiachegaraquasemetadedoseurendimentoanual.

Aomesmotempo,assecassucessivasdeixaramvastasáreasdocamposemcultivoeemruínas,jáquegrandepartedocampesinatojudaicotinhasido reduzida à escravidão.Aquelesque conseguirammanter-se em seuscampos arruinados muitas vezes não tinham escolha a não ser pediremprestadas grandes somas à aristocracia fundiária, com taxas de jurosexorbitantes. Pouco importava que a lei judaica proibisse a cobrança dejurossobreempréstimos–aspesadasmultasqueforamlançadassobre ospobresparapagamentosematrasotiveram,basicamente,omesmoefeito.Em todo caso, a aristocracia fundiária esperava que os camponeses nãopagassemseusempréstimos,poisesteseramuminvestimento.Defato,seo empréstimo não fosse pronta e totalmente reembolsado, a terra docamponês poderia ser con iscada e o camponêsmantido na propriedadecomoumrendeirotrabalhandoemnomedonovoproprietário.

Poucosanosapósaconquistade Jerusalémpelosromanos,umamassa

de camponeses sem terra encontrou-se despojada de suas propriedades,sem nenhum meio para alimentar-se ou a suas famílias. Muitos dessescamponeses migraram para as cidades em busca de trabalho. Mas, naGalileia, um punhado de agricultores e proprietários que tinhamperdidosuas terras trocaram os arados por espadas e começaram a lutar contraaqueles que consideravam os responsáveis por suas desgraças. De seusesconderijos em cavernas e grutas da zona rural da Galileia, essescamponeses guerreiros lançaram uma onda de ataques contra aaristocraciajudaicaeosagentesdarepúblicaromana.

Eles vagavam pelas províncias, reunindo ao grupo os a litos, os queforam expropriados e estavam atolados em dívidas. Como Robin Hoodsjudeus, eles roubavam dos ricos e, às vezes, davam aos pobres. Para osiéis, essas gangues camponesas eram nada mais nada menos que apersonificaçãofísicadaraivaedosofrimentodospobres.Eleseramheróis:símbolos de fervor contra a agressão romana, dispensadores da justiçadivina para os judeus traidores. Os romanos tinham um termo diferenteparaeles.Elesoschamavamdelestai.Bandidos.

“Bandido” era o termo genérico para qualquer rebelde ou sublevadoque empregava a violência armada contra Roma ou contra oscolaboradores judeus.Paraosromanos,apalavra“bandido”erasinônimode “ladrão” ou “agitador”. Mas estes não eram criminosos comuns. Osbandidos representavamos primeiros sinais do que viria a tornar-se ummovimento de resistência nacionalista contra a ocupação romana. Essapode ter sido uma revolta camponesa – as quadrilhas de bandidosprecipitavam-sedealdeiaspobrescomoEmaús,Beth-HoromeBelém.Maselafoioutracoisa,também.OsbandidosalegavamseragentesdavingançadeDeus.ElesvestiamseuslíderescomemblemasdosreiseheróisbíblicoseapresentavamsuasaçõescomoumprelúdioparaarestauraçãodoReinode Deus na terra. Os bandidos aproveitavam-se da generalizadaexpectativaapocalípticaquetinhatomadoosjudeusdaPalestinadepoisdainvasãoromana.Umdosmaistemíveisdetodososbandidos,ocarismáticochefeEzequias, abertamentedeclarou ser omessias, o prometido, aquelequeiriarestaurarosjudeusparaaglória.

Messias signi ica “ungido”. O título alude à prática de derramar oupingar óleo sobre alguém encarregado de um o ício divino: um rei, comoSaul ou Davi ou Salomão; um sacerdote, como Aarão e seus ilhos, queforamconsagradosparafazeraobradeDeus;umprofeta,comoIsaíasouEliseu, que tinham uma relação especial com Deus, uma intimidade que

vem de ter sido designado representante de Deus na terra. A principaltarefadomessias–que,segundoacrençapopular,eradescendentedoreiDavi – era reconstruir o reino de Davi e restabelecer a nação de Israel.Assim,chamarasimesmodemessias,naépocadaocupaçãoromana,eraequivalente a declarar guerra a Roma. Na verdade, o dia viria em queessesbandosdecamponesesraivosos formariamaespinhadorsaldeumexército apocalíptico de revolucionários fervorosos, que forçariam osromanos a fugir humilhados de Jerusalém. Naqueles primeiros anos deocupação,noentanto,osbandidoserampoucomaisdoqueumincômodo.Ainda assim, eles precisavam ser contidos; alguém tinha que restaurar aordemnocampo.

EssealguémacabouporseruminteligentejovemnobrejudeudeEdomchamado Herodes. O pai de Herodes, Antípater, teve a sorte de estar nolado certo da guerra civil entre Pompeu Magno e Júlio César. Césarrecompensou Antípater por sua lealdade, concedendo-lhe a cidadaniaromanaem48a.C.edando-lhepoderesadministrativosemnomedeRomasobre toda a Judeia. Antes de morrer, alguns anos depois, Antípatercimentou sua posição entre os judeus, nomeando seus ilhos Fasael eHerodescomogovernadoresdeJerusalémedaGalileia,respectivamente.ÉprovávelqueHerodestivesseapenasquinzeanosdeidadenaépoca,maslogodistinguiu-secomolídere icazedefensorenérgicodeRoma,lançandoumacruzadasangrentacontraasquadrilhasdebandidos.Ele capturouochefe dos bandidos Ezequias e cortou-lhe a cabeça, colocando um im(temporário)àameaçarebelde.

Enquanto Herodes livrava a Galileia das quadrilhas de bandidos,Antígono, ilho de Aristóbulo, que havia perdido o trono e o sumosacerdócioparaseuirmãoHircanoapósainvasãoromana,estavacriandoproblemasem Jerusalém.Comaajudadospartos, inimigosdeclaradosdeRoma, Antígono sitiou a Cidade Santa em 40 a.C., tomando comoprisioneiros tanto o sumo sacerdote Hircano como Fasael, irmão deHerodes.Hircano foimutilado,oqueo tornou inelegível,deacordocomalei judaica, para continuar servindo como sumo sacerdote; o irmão deHerodes,Fasael,cometeusuicídionocativeiro.

O Senado romano determinou que a maneira mais e icaz de retomarJerusalém do controle parta era fazer Herodes seu rei-cliente e deixá-lorealizar a tarefa em nome de Roma. A nomeação de reis-clientes erapráticacomumduranteosprimeirosanosdoImpérioRomano,permitindoa Roma expandir suas fronteiras sem gastar recursos valiosos para

administrardiretamenteasprovínciasconquistadas.Em37a.C.,Herodesmarchoupara Jerusalémcomumenormeexército

romano sob seu comando. Ele expulsou as forças partas da cidade eeliminouoquerestavadadinastiadosmacabeus.Emreconhecimentoporseusserviços,Romaonomeou“reidos judeus”, concedendo-lheumreinoqueacabariaporcrescermaisdoqueodoreiSalomão.

Herodes era um governante perdulário e tirânico, marcado porexcessos ridículos e atos bestiais de crueldade. Era implacável com seusinimigos e não tolerava nenhum indício de revolta dos judeus sob seureinado. Ao subir ao trono, ele massacrou quase todos os membros doSinédrio e substituiu os sacerdotes do Templo por uma claque deadmiradores e bajuladores que compraram suas posições diretamentedele. Esse ato efetivamente neutralizou a in luência política do Templo eredistribuiu o poder a uma nova classe de judeus, cuja dependência dosfavores do rei os transformou em uma espécie de aristocracia nouveauriche.ApropensãodeHerodesparaaviolênciaesuasdisputasdomésticasamplamentedivulgadas, que beiravam o burlesco, levaram-no a executartantosmembrosdesuaprópriafamíliaqueCésarAugustocertavezfezumcomentárioque se tornou famoso: “Eupreferia serumporcodeHerodesdoqueseufilho.”

Naverdade,seroreidos judeus,notempodeHerodes,nãoera tarefainvejável. Havia, de acordo com Josefo, 24 seitas judaicas rebeldes emJerusalém e ao seu redor. Embora nenhuma tivesse domínio completosobre as outras, três seitas, ou melhor, escolas, foram particularmentein luentesna formaçãodopensamento judaicona época: os fariseus, queeram principalmente rabinos e estudiosos de classe baixa e média queinterpretavamas leisparaasmassas;ossaduceus,maisconservadorese,no que diz respeito a Roma, sacerdotesmais complacentes, provenientesde famílias mais ricas, de proprietários de terras; e os essênios, ummovimentopredominantemente sacerdotal que se separouda autoridadedo Templo e fez sua base em uma estéril colina no vale do mar MortochamadaQumran.

Encarregado de paci icar e administrar uma indisciplinada eheterogênea população de judeus, gregos, samaritanos, sírios e árabes –queoodiavammaisdoqueseodiavamunsaosoutros–,Herodes fezumtrabalho magistral de manter a ordem em nome de Roma. Seu reinadomarcou o início de uma era de estabilidade política entre os judeus quenãotinhasidovistaporséculos.Eleiniciouumaconstruçãomonumentale

projetos de obras públicas que empregavam dezenas de milhares doscamponesesediaristas, alterandopermanentementeapaisagem ísicadeJerusalém.Construiumercadoseteatros,palácioseportos,tudoinspiradonoestilogregoclássico.

Para pagar por seus colossais projetos de construção e satisfazer suaprópria extravagância, Herodes cobrava impostos esmagadores de seussúditos, a partir dos quais continuava amandar um pesado tributo paraRoma, e com prazer, como expressão de sua estima pelos senhoresromanos. Herodes não era apenas um rei-cliente do imperador; era umamigo próximo e pessoal, um cidadão leal da República que queriamaisque imitarRoma– queria refazê-la nas areias da Judeia. Ele instituiu umprograma de helenização forçada para os judeus, trazendo ginásios,an iteatrosgregos e banhos romanos para Jerusalém. Fez do grego alinguagemdacorteecunhoumoedascomletrasgregaseinsígniaspagãs.c

No entanto, Herodes também era judeu e, como tal, entendia aimportânciadeapelarparaassensibilidadesreligiosasdeseussúditos.Foipor isso que embarcou em seu projetomais ambicioso: a reconstrução eampliação do Templo de Jerusalém. Foi Herodes quem ergueu o TemploemumaplataformanotopodomonteMoriá,omaisaltopontodacidade,eo embelezou com largas colunatas romanas e pilastras de mármoreenormesquebrilhavamsobosol.OTemplodeHerodesfoiconcebidoparaimpressionar seus patronos emRoma,mas ele tambémqueria agradar aseus companheiros judeus,muitos dos quais não consideravam o rei dosjudeus como sendo um judeu ele próprio. Herodes era um convertido,a inal de contas. Sua mãe era árabe. Seu povo, os edomitas, tinha seconvertido ao judaísmo apenas uma ou duas gerações antes. Areconstrução do Templo era, para Herodes, não apenas um meio desolidi icar sua dominação política, era um apelo desesperado para seraceitoporseussúditosjudeus.Nãofuncionou.

Apesar da reconstrução doTemplo, o ousado helenismodeHerodes esuas agressivas tentativas de “romanizar” Jerusalém enfureceram osjudeus religiosos, que parecem nunca ter deixado de ver o rei como umescravo de senhores estrangeiros e um devoto dos deuses estrangeiros.NemmesmooTemplo, o símbolo supremoda identidade judaica,poderiamascarar o encantamento de Herodes com Roma. Pouco antes daconclusão da obra, Herodes colocou sobre o portal principal uma águiadourada,símbolododomínioromano,eobrigouosumosacerdotequeelemesmo selecionara a oferecer dois sacri ícios por dia em nome de César

Augusto como “o Filho de Deus”. No entanto, é um sinal de quãoirmementeHerodesmantinhaseureinosobcontroleofatodequeoódiogeral dos judeus em relação a seu reinado nunca chegou ao nível deinsurreição,pelomenosnãodurantesuavida.

QuandoHerodes, oGrande,morreu, em4 a.C.,Augustodividiuo reinoentreos três ilhosdoantigo rei:Arquelau recebeua Judeia, a SamariaeEdom; Herodes Antipas, conhecido como “a Raposa”, reinava sobre aGalileia e a Pereia (uma região na Transjordânia, a nordeste do marMorto),eaFilipefoientregueocontrolesobreGaulanitis(hoje,Golan)easterrasanordestedomardaGalileia.Anenhumdostrês ilhosdeHerodesfoi dado o título de rei: Antipas e Filipe foram nomeados tetrarcas, quesigni ica “governante de um trimestre”, e Arquelau foi nomeado etnarca,ou “governante de um povo”; ambos os títulos foram deliberadamentedestinadosaassinalarofimdamonarquiaunificadasobreosjudeus.

A divisão do reino deHerodes acabou sendo umdesastre paraRoma,pois toda a raiva e o ressentimento que haviam sido represados duranteseulongoeopressivoreinadoexplodiramemumainundaçãodetumultoseviolentosprotestosqueseusfracos ilhos,entorpecidosporumavidadeociosidade e langor, di icilmente poderiam conter. Os manifestantesqueimaram um dos palácios de Herodes, às margens do rio Jordão. Porduasvezes,opróprioTemplofoiinvadido:primeiroduranteoPêssach,emseguidanoShavuot,ouFestivaldasSemanas.Nocampo,asquadrilhasdebandidos que Herodes tinha dominado mais uma vez começaram aatravessar a Galileia, matando os partidários do antigo rei. Em Edom, aregiãodeorigemdeHerodes,2mildosseussoldadosseamotinaram.AtémesmoaliadosdeHerodes, inclusiveseupróprioprimoAchiab, juntaram-seàrebelião.

Essas revoltas foram, sem dúvida, alimentadas pelas expectativasmessiânicas dos judeus. Na Pereia, um ex-escravo de Herodes – umimponenteegigantescohomemchamadoSimão–coroouasiprópriocomomessiasejuntouumgrupodebandidosparasaquearospaláciosreaisemJericó.A rebelião terminouquandoSimão foi capturadoedecapitado.Umpouco mais tarde, outro aspirante messiânico, um pobre jovem pastorchamadoAtronges,colocouumacoroasobreacabeçaelançouumataquetemerário contra as forças romanas. Ele, também, foi capturado eexecutado.

OcaoseoderramamentodesanguecontinuaramsemdiminuiratéqueCésarAugusto inalmentemandousuasprópriastropasparaaJudeia para

pôr im ao levante. Embora o imperador tivesse permitido que Filipe eAntipas permanecessem em seus cargos, ele mandou Arquelau para oexílio, colocou Jerusalém sob um governador romano e, no ano 6 d.C.,converteu toda a Judeia em uma província governada diretamente porRoma. Não haveriamais semi-independência. Nãomais reis-clientes. Nãomaisreidosjudeus.JerusalémagorapertenciatotalmenteaRoma.

Segundoatradição,Herodes,oGrande,morreunavésperadoPêssachem 4 a.C., com a idade madura de setenta anos, tendo reinado sobre osjudeuspor37anos.JosefoescrevequenodiadamortedeHerodeshouveumeclipsedaLua,umsinaldemauagouro,talvezpressagiandootumultoqueviriaaseguir.Existe,claro,umaoutratradiçãoquetratadamortedeHerodes,oGrande:queemalgummomentoentreasuamorte,em4a.C.,eatomadadecontroledeRomasobreJerusalém,em6d.C.,emumaobscuraaldeiaaopédeumamontanhanaGalileia,nasceuumacriançaqueumdiareivindicariaparasiomantodeHerodescomoreidosjudeus.

c A cultura grega, dominante no Mediterrâneo ocidental a partir do século V a.C., integrou-se àcultura romanadesde seusprimeiros contatos, por volta de150 a.C.OdomíniodeRoma sobre aGrécia, a partir de 120 a.C., ampliou a difusão da cultura grega. A língua culta era o grego, e issoperduroulongamente.(N.T.)

3.Vóssabeisdeondevenho

AANTIGANAZARÉREPOUSA sobreo cume irregulardeummorrobatidopelosventosnabaixaGalileia.Nãomaisdoqueumacentenade famílias judiasvivem nessa pequena aldeia. Não há estradas, não há edi ícios públicos.Nãohásinagoga.Osmoradorescompartilhamumúnicopoçodeondetirarágua fresca. Uma única casa de banho, alimentada por um io de chuvacaptadoearmazenadoemcisternassubterrâneas,servetodaapopulação.É uma aldeia de camponeses em sua maioria analfabetos, agricultores ediaristas,umlugarquenãoexisteemnenhummapa.

As casas de Nazaré são simples, com uma única sala sem janelasdivididaemdois–umespaçoparaafamília,outroparaosanimais–,feitasde barro caiado e pedras e coroadas com um telhado plano, onde osmoradores se reúnem para rezar, onde espalham sua roupa para secar,onde fazemsuas refeiçõesnasnoitesmaisquentes eonde,nosmesesdeverão, desenrolam suas esteiras empoeiradas e dormem. Os habitantescom sorte têm um pátio e um pequeno pedaço de terra para cultivarlegumes,poisnão importaapro issãoouhabilidade, cadanazarenoéumagricultor.Oscamponesesquechamamessaaldeiaisoladadelarsão,semexceção, cultivadores da terra. É a agricultura que alimenta e sustenta aescassapopulação.Todomundocriaseusprópriosanimais,todosplantamseus próprios cultivos: um pouco de cevada, algum trigo, alguns talos depainçoeaveia.Oestrumerecolhidodosanimaisalimentaaterra,queporsua vez alimenta os moradores que, em seguida, alimentam o gado. Aautossuficiênciaéaregra.

Nazaré, essa aldeiana encostadomorro, é tãopequena e tãoobscuraque seu nome não aparece em nenhuma fonte judaica antiga antes doséculo IIId.C.,nemnaBíbliaHebraica,nemnoTalmude,nemnoMidrash,nem em Josefo. Ela é, em suma, um lugar irrelevante e totalmenteesquecível.Elaé,também,acidadeemqueJesusprovavelmentenasceuecresceu. Que ele veio dessa aldeia bastante isolada, de algumas centenasde judeus empobrecidos, pode ser muito bem a única verdade sobre ainfância de Jesus sobre a qual podemos estar razoavelmente con iantes.Jesuseratãoidenti icadocomNazaréquefoiconhecidoemtodaasuavida

simplesmente como “oNazareno”.Considerandooquãocomum Jesuseracomoprimeironome, a cidadede seunascimento tornou-se suaprincipalalcunha. Era a única coisa sobre a qual todos os que o conheciam, seusamigoseseusinimigosigualmente,pareciamconcordar.

Porque,então,MateuseLucas–eapenasMateus(2:1-9)eLucas(2:1-21) – a irmam que Jesus nasceu não emNazaré,mas em Belém,mesmoque o nomeBelémnão apareça emnenhumoutro lugar em todo oNovoTestamento(nememqualqueroutrolugaremMateusouLucas,sendoqueambos referem-se repetidamente a Jesus como “o Nazareno”), a não serporumúnicoversículonoevangelhodeJoão(7:42)?

ArespostapodeserencontradajustamentenesseversodeJoão.Era, escreve o evangelista, no início do ministério de Jesus. Até esse

ponto,Jesus,demaneirageral,restringira-seapregarsuamensagemparaos pobres agricultores e pescadores daGalileia – seus amigos e vizinhos.MasagoraqueaFestadosTabernáculoschegou,afamíliadeJesusinsistequeeleviajecomelesparaa Judeiaa imdecelebraroalegre festivaldacolheitajuntos,eparaqueelesereveleàsmassas.

“Vem”,dizemeles.“Mostra-teparaomundo.”Jesusrecusa.“Idevós”,elediz.“Eunãovouaessefestival.Aindanãoéomeumomento.”

A famíliade Jesusodeixapara trásedirige-se juntaparaa Judeia.Noentanto,semoconhecimentodeles,Jesusdecidesegui-losatélá,senãoporoutra razãoque a de vagar secretamentenomeiodamultidão reunida eouviroqueaspessoasestãodizendosobreele.

“Eleéumbomhomem”,alguémsussurra.“Não.Eleestádesencaminhandoopovo”,dizoutro.Algumtempomaistarde,depoisqueJesusserevelaàmultidão,alguns

começam a fazer suposições sobre sua identidade. “Certamente, é umprofeta.”

Eentãoalguémfinalmenteodiz.Todomundoestáclaramentepensandoisso; como poderiam não estar, com Jesus de pé no meio da multidão,declarando: “Que venham amim e bebam aqueles que têm sede?” Comoelesdeveriamentendertaispalavrasheréticas?Quemmaisseatreveriaadizertalcoisaabertamenteeaoalcancedaescutadosescribasedoutoresda lei,muitosdosquais, segundonosdizem,não gostariamdemaisnadaalémdesilenciareprenderesseirritantepregador?

“Estehomeméomessias!”Essanãoéumasimplesdeclaração.É,naverdade,umatodetraição.Na

PalestinadoséculoI,simplesmentedizeraspalavras“esteéomessias”em

voz alta e em público poderia ser um crime, punível por cruci icação. Éverdade que os judeus do tempo de Jesus tinham uma visão um tantocon litante sobre o papel e a função do messias, alimentada por váriastradiçõesmessiânicas e contos folclóricos populares lutuandopela TerraSanta. Alguns acreditavam que o messias seria uma igura restauradoraquedevolveriaos judeusàsuaposiçãoanteriordepodereglória.Outrosviamomessiasemtermosmaisapocalípticoseutópicos,comoalguémqueaniquilaria o mundo presente e construiria um novo mundo mais justosobreasruínas.

Haviaaquelesquepensavamqueomessiasseriaumrei,eaquelesquepensavam que ele seria um sacerdote. Os essênios, aparentemente,esperavam por dois messias separados – um real, outro sacerdotal –,embora a maioria dos judeus achasse que o messias possuiria umacombinação de ambas as características. No entanto, entre amultidão dejudeusreunidosparaaFestadosTabernáculosteriahavidoumconsensorazoável sobre quem o messias deveria ser, e o que o messias deveriafazer:eleéodescendentedoreiDavi,elevempararestaurarIsrael,paralibertaros judeusdo jugodaocupaçãoeestabeleceropoderdeDeusemJerusalém. Chamar Jesus de messias, portanto, era colocá-loinexoravelmenteemumcaminho–jábemtrilhadoporváriosmessiasquefalharam,vindosantesdele–paraocon lito,arevoluçãoeaguerracontraos poderes dominantes. Onde esse caminho acabaria por levar, ninguémno festival poderia saber com certeza. Mas parecia haver algum acordosobreondeocaminhodeveriacomeçar.

“NãodizaEscrituraqueomessiasédadescendênciadeDavi?”Alguémna multidão pergunta. “Que ele vem da aldeia onde Davi morava? DeBelém?” “Mas sabemos de onde vem esse homem”, a irma outro. Naverdade, a multidão parece conhecer bem Jesus. Eles conhecem seusirmãos, que estão lá com ele. Toda a sua família está presente. Elesviajaramparaofestivaljuntos,desuacasa,naGalileia.DeNazaré.

“Atentai para isso”, diz um fariseu, com a con iança que vem de umavida a examinar as escrituras. “Vós ireis ver: o profeta não vem daGalileia.”

Jesusnãonegaaalegação.“Sim,todosvósmeconheceis”,eleadmite.“Evóssabeisdeondevenho.”Emvezdisso,eledesviainteiramenteoassuntode sua casa terrena, preferindo enfatizar suas origens celestiais. “Eu nãovimaquiporcontaprópria;aquelequemeenviouéverdadeiro.Eele,vósnão conheceis.Mas eu o conheço. Eu sou dele. Foi ele quemme enviou.”

(João7:1-29)Tais declarações são comuns em João, o último dos quatro evangelhos

canônicos, composto entre 100 e 120 d.C. João não mostra nenhuminteressesobreonascimento ísicodeJesus,emboraelemesmoreconheçaque Jesus eraum “Nazareno” (João18:5-7).Navisãode João, Jesus éumsereterno,ologos,queestavacomDeusdesdeoiníciodostempos,aforçaprimordial pormeio da qual toda a criação surgiu e sem a qual nada foicriado(João1:3).

AmesmafaltadepreocupaçãosobreasorigensterrenasdeJesuspodeserencontradanoprimeiroevangelho,Marcos,escritologoapós70d.C.OfocodeMarcosémantidobasicamentenoministériodeJesus;elenãoestáinteressadonemnonascimentodeJesus,nem,talvezsurpreendentemente,naressurreiçãodeJesus,jáquenãoescrevenadasobrenenhumdosdoiseventos.

A comunidade cristã primitiva não parece ter estado particularmentepreocupada comqualquer aspecto da vida de Jesus antes do lançamentode seu ministério. Histórias sobre seu nascimento e infância estãoconspicuamenteausentesdosprimeirosdocumentosescritos.OmaterialQ,que foi compilado por volta de 50 d.C., não faz nenhuma menção aqualquer coisa que tenha acontecido antes do batismo de Jesus por JoãoBatista. As cartas de Paulo, que compõem a maior parte do NovoTestamento, são totalmente desvinculadas de qualquer acontecimento navidadeJesus,anãoserpelasuacruci icaçãoeressurreição(emboraPaulomencioneaÚltimaCeia).

Mas como o interesse na pessoa de Jesus cresceu após sua morte,surgiu entre alguns membros da comunidade cristã primitiva umanecessidadeurgentedepreencheraslacunasdosprimeirosanosdeJesuse,emparticular,deresolveraquestãodeseunascimentoemNazaré,queparece ter sido utilizada por seus detratores judeus para provar que elenãopoderiatersidoomessias,pelomenosnãodeacordocomasprofecias.Algum tipo de solução criativa foi necessário para superar essa crítica,algumamaneira de levar os pais de Jesus aBelémpara que ele pudesseternascidonamesmacidadequeDavi.

ParaLucas,arespostaestáemumcenso. “Naquelesdias”,escreveele,“chegouumdecretodapartedeCésarAugustoparaqueomundoromanointeiro fosse registrado. Esse foi o primeiro registro a ocorrer quandoQuirinoeragovernadordaSíria.Todomundofoiparaasuacidadenatalaimdeserregistrado.JosétambémsubiudacidadedeNazaré,naGalileia,

para a Judeia, para Belém, a cidade de Davi.” Então, caso seus leitorestivessemperdidooponto,Lucasacrescenta,“porqueJosépertenciaàcasaeàlinhagemdeDavi”(Lucas2:1-4).

Lucasestácertosobreumacoisaeapenasumacoisa.DezanosdepoisdamortedeHerodes,oGrande,noano6d.C.,quandoa Judeia tornou-seo icialmente uma província romana, o governador da Síria, Quirino,convocou um censo para todas as pessoas, bens e escravos na Judeia,Samaria e Edom – não “todo omundo romano”, como Lucas reivindica, ede initivamentenãoaGalileia,ondeafamíliadeJesusvivia(LucastambémestáerradoaoassociarocensodeQuirino,em6d.C.,comonascimentodeJesus, que a maioria dos estudiosos coloca próximo de 4 a.C., o anomencionadonoevangelhodeMateus).Alémdisso,comooúnicopropósitode um censo era iscal, o direito romano avaliava a propriedade de umindivíduono localderesidência,enãono lugardonascimentodealguém.Não há nada escrito em nenhum documento romano da época (e osromanoserammuitohábeisemdocumentação,particularmentequandosetratavadeimpostos)paraindicarocontrário.AsugestãodeLucas,dequetoda a economia romana periodicamente seria colocada em espera, poistodosúditoromanoeraforçadoaarrancarasimesmoeatodasuafamíliadecasaa imdeviajargrandesdistânciasatéolocaldenascimentodeseupai, e então esperar pacientemente, talvez por meses, para que umfuncionário izesseumbalançodesuafamíliaedeseusbens,osquais,emqualquer caso, ele teria deixado para trás em seu lugar de residência, é,emumapalavra,umdisparate.

Oqueé importanteentenderarespeitodanarrativadeLucassobreainfânciade Jesus é que seus leitores, ainda vivendo sobdomínio romano,teriamsabidoqueorelatodocensodeQuirinoerafactualmenteimpreciso.OpróprioLucas,escrevendopoucomaisdeumageraçãoapósoseventosquedescreve, sabiaqueoque estava escrevendo era tecnicamente falso.Esta é uma questão extremamente di ícil para os leitores modernos dosevangelhosentenderem,masLucasnuncaquisqueasuahistóriasobreonascimento de Jesus em Belém fosse entendida como um fato histórico.Lucasnãotinhanenhumaideiadoquenós,nomundomoderno,queremosdizercomapalavra“história”.Anoçãodehistóriacomoumaanálisecríticados fatos observáveis e veri icáveis do passado é um produto da eramoderna; teria sido um conceito totalmente estranho para os escritoresdos evangelhos, para quem a história não era uma questão de descobrirfatos,masderevelarverdades.

Os leitores do evangelho de Lucas, como a maioria das pessoas domundo antigo, não faziamumadistinção nítida entremito e realidade; osdois estavam intimamente ligados em sua experiência espiritual. Ou seja,eles estavam menos interessados no que realmente acontecera do quenaquiloquesigni icava.Teriasidoperfeitamentenormal–naverdade,eraoqueseesperava–queumescritordomundoantigonarrassecontosdedeuseseheróiscujosfatosfundamentaiseramreconhecidoscomoirreais,mascujamensagemsubjacenteseriavistacomoverdadeira.

Isso explica a igualmente fantasiosa narrativa deMateus sobre a fugade JesusparaoEgito, aparentementeparaescaparaomassacrede todosos ilhos nascidos dentro e ao redor de Belém, emuma busca infrutíferape lobebê Jesus. Tal evento não tem um pingo de evidência que ocorrobore emqualquer crônica ou história da época, seja judia, cristã ouromana–umfatonotável,considerando-seasmuitascrônicasenarrativasescritassobreHerodes,oGrande,queera,a inal,omaisfamosojudeuemtodooImpérioRomano(oreidosjudeus,nadamenos!).

Tal como acontece com o relato de Lucas sobre o censo de Quirino, orelatodeMateussobreomassacredeHerodesnãofoiconcebidoparaserlido como o que hoje consideramoshistória, certamente não pela suaprópria comunidade, que com certeza se lembraria de um evento tãoinesquecívelcomoomassacredeseuspróprios ilhos.MateusprecisaqueJesussaiadoEgitopelamesmarazãoqueprecisaqueelenasçaemBelém:paracumprirasváriasprofeciasdeixadasporseusantepassadosparaqueele e seus companheiros judeus decifrassem, para colocar Jesus naspegadasdosreiseprofetasquevieramantesdelee,acimade tudo,pararesponder ao desa io feito por detratores de Jesus, que questionavam seesse simples camponês, que morreu sem cumprir a única e maisimportantedasprofeciasmessiânicas–adarestauraçãodeIsrael–eradefato“oungido”.

O problema enfrentado por Mateus e Lucas é que simplesmente nãoexiste narrativa profética única e coesa sobre o messias nas EscriturasHebraicas. A passagemdo evangelho de João citada acima é um exemploperfeito da confusão geral que existia entre os judeus em relação àsprofeciasmessiânicas.Poismesmoquandoosescribaseprofessoresdaleiproclamam de forma con iante que Jesus não poderia ser o messiasporque não é, como as profecias exigem, de Belém, outros na multidãoargumentamqueoNazarenonãopoderia seromessiaspoisasprofeciasdizem que “quando omessias chegar, ninguém saberá de onde ele vem”

(João7:27).A verdade é que as profecias dizem asduas coisas. De fato, se fosse

seguidooconselhodadoparaamultidãodofestivalpelocéticofariseu,de“atentarparaisso”,seriadescobertaumasériedeprofeciascontraditóriassobreomessias, recolhidasao longodecentenasdeanospordezenasdemãos diferentes. Muitas dessas profecias não são nemmesmo profecias.ProfetascomoMiqueias,Amóse Jeremias,queparecemestarprevendoavindadeumfuturopersonagemsalvadordalinhagemdoreiDavi,queumdia iria restaurar Israel à sua antiga glória, estãode fato fazendo críticasveladas a seu reiatual e à ordemdaquele momento, que os profetassugerem ter caído aquém do ideal de Davi. (Há, no entanto, uma coisasobre a qual todas as profecias parecem concordar: omessias é um serhumano,nãodivino.Acrençaemummessiasdivinoteriasidoumanátemapara tudo o que representa o judaísmo, razão pela qual, sem exceção,todosostextosnaBíbliaHebraicaquetratamdomessiasoapresentamnoexercíciodassuasfunçõesmessiânicasnaterra,nãonocéu.)Assimsendo,sevocêquiserencaixarseucandidatomessiânicopreferidonessaconfusatradiçãoprofética,deveprimeirodecidirquaisdosmuitostextos,tradiçõesorais,históriasecontospopularesquerconsiderar.Comovocêrespondeaessaperguntadependeemgrandepartedoquevocêquerdizer sobreoseumessias.

Mateus faz Jesus fugir para o Egito para escapar do massacre deHerodes, não porque isso aconteceu,mas porque cumpre as palavras doprofetaOseias:“DoEgitochameimeu ilho.”(Oseias11:1)Anarrativanãotema intençãoderevelarqualquer fatoarespeitode Jesus;elapretenderevelar esta verdade: que Jesus é o novo Moisés, que sobreviveu aomassacredos ilhosdosisraelitaspelofaraóesaiudoEgitocomumanovaleideDeus(Êxodo1:22).

Lucas coloca o nascimento de Jesus em Belém não porque ele aliocorreu,mas por causa das palavras do profetaMiqueias: “E tu, Belém…detisairáparamimumgovernanteemIsrael.”(Miqueias5:2)LucasquerdizerqueJesuséonovoDavi,oreidosjudeus,colocadonotronodeDeuspara reinar sobre a Terra Prometida. Simpli icando, as narrativas dainfâncianos evangelhosnão são relatoshistóricos, nem foram feitasparaserem lidascomotal.Sãoa irmações teológicasdostatusde JesuscomooungidodeDeus.OdescendentedoreiDavi.Omessiasprometido.

Esse Jesus–oeternologosdequemsurgiuacriação,oCristo,queestásentado à direita de Deus – você vai encontrar enrolado em uma

manjedouraimundaemBelém,cercadoporsimplespastoreseporsábiosquetrazempresentesdooriente.

MasoverdadeiroJesus,opobrecamponêsjudeuquenasceuemalgummomento entre 4 a.C. e 6 d.C., na desordem da área rural da Galileia –busque-onascasasdebarroesfarelentoetijolossoltosaninhadasemumapequenaaldeiavarridapelosventos,Nazaré.

4.AQuartaFilosofia

AQUIESTÁOQUEsabemossobreNazarénomomentodonascimentodeJesus:haviapoucoláparaumcarpinteirofazer.Istoé,a inal,oqueatradiçãodizser a ocupação de Jesus: umtekton – um carpinteiro ou construtor –,embora valha a penamencionar que há apenas um versículo em todo oNovoTestamentoemqueéfeitaessaa irmaçãosobreele(Marcos6:3).Seessa a irmação é verdadeira, então, como um trabalhador artesanal ediarista, Jesus teria pertencido à classe mais baixa de camponeses naPalestina do século I, um pouco acima do indigente, do mendigo e doescravo. Os romanos usavam o termo tekton como gíria para qualquercamponês ignorante ou analfabeto, e Jesus foi muito provavelmente asduascoisas.

As taxasdeanalfabetismonaPalestinado século I eram incrivelmentealtas, sobretudo entre os pobres. Estima-se que cerca de 97% doscamponeses judeus não sabiam ler nem escrever, um número nãoinesperadopara as sociedadespredominantemente orais como a emqueJesus viveu. Certamente as Escrituras Hebraicas desempenharam umpapelproeminentenavidadopovojudeu.MasaesmagadoramaioriadosjudeusnotempodeJesusteriatidoapenasumacompreensãorudimentardohebraico, apenas o su iciente para compreender as escrituras quandolhes eram lidas na sinagoga. O hebraico era a língua dos escribas eestudiosos da lei, a língua do conhecimento. Camponeses como Jesusteriamtidoenormedi iculdadeemcomunicar-seemhebraico,mesmoemsua forma coloquial, razão pela qual a maior parte das escrituras foitraduzida para o aramaico, o idioma principal do campesinato judaico: alínguadeJesus.ÉpossívelqueJesustivessealgumconhecimentobásicodegrego, a língua franca do Império Romano (ironicamente, o latim era alíngua menos utilizada nas terrasocupadas por Roma) –, o su iciente,talvez,paranegociarcontratoselidarcomosclientes,mascomcertezanãoo su iciente para pregar. Os únicos judeus que podiam se comunicarconfortavelmente em grego eram da elite helenizada de Herodes, aaristocracia sacerdotalda Judeia, eosmais educados judeusdadiáspora,masnãooscamponesesetrabalhadoresdiaristasdaGalileia.

Sejam quais forem os idiomas que Jesus possa ter falado, não hánenhumarazãoparapensarqueelepudesselerouescreveremqualquerumdeles,nemmesmooaramaico.OrelatoqueLucasfazdeJesusaosdozeanos, no Templo de Jerusalém, debatendo os pontos mais delicados dasEscrituras Hebraicas com rabinos e escribas (Lucas 2:42-52), ou suanarrativa de Jesus na sinagoga (inexistente) de Nazaré, lendo opergaminho de Isaías para espanto dos fariseus (Lucas 4:16-22), sãoelaborações fabulosasconcebidaspelopróprioevangelista. JesusnãoteveacessoaotipodeeducaçãoformalnecessárioparatornarorelatodeLucasmesmo remotamente passível de crédito. Não havia escolas em Nazarépara crianças camponesas frequentarem. A educação que Jesus recebeuteriavindodiretodesuafamíliae,considerandoseustatusdetrabalhadorartesanal e diarista, ela teria sido quase exclusivamente centrada emaprenderoofíciodeseupaiedeseusirmãos.

Que Jesustinha irmãosépraticamente indiscutível,apesardadoutrinacatólica sobre a virgindade perpétua deMaria, suamãe. Trata-se de umfatocomprovadováriasvezestantopelosevangelhoscomopelascartasdePaulo. Até mesmo Josefo faz referência a Tiago, irmão de Jesus que setornariaomaisimportantelíderdaIgrejacristãprimitiva,apósamortedeJesus.NãohánenhumargumentoracionalcontraanoçãodequeJesuseraparte de uma grande família, que incluía pelo menos quatro irmãosnomeados nos evangelhos – Tiago, José, Simão e Judas – e um númerodesconhecido de irmãs que, embora os evangelhos mencionem,infelizmentenãosãonomeadas.

Muito menos se sabe sobre o pai de Jesus, José, que rapidamentedesaparece dos evangelhos após as narrativas da infância. O consenso éque José morreu enquanto Jesus era ainda criança. Mas há aqueles queacreditamque José nunca realmente existiu, que ele era uma criação deMateuseLucas–osdoisúnicosevangelistasqueomencionam–paradarcontadeumacriaçãomuitomaiscontroversa:onascimentovirginal.

Porumlado,ofatodequeambos,MateuseLucas,narramonascimentovirginal em suas respectivas narrativas da infância, apesar da crença dequeelesnãotinhamnenhumaconsciênciadotrabalhoumdooutro,indicaqueatradiçãodonascimentovirginalerabemantiga,talvezantesmesmodoprimeiroevangelho,odeMarcos.Poroutrolado,alémdasnarrativasdainfânciadeMateusedeLucas,onascimentovirginalnãoénunca sequerinsinuado por qualquer outra pessoa no Novo Testamento: não o é peloevangelistaJoão,queapresentaJesuscomoumespíritosobrenatural,sem

origens terrenas, nem por Paulo, que pensa em Jesus como literalmenteDeus encarnado. Essa ausência levou a uma grandedose de especulaçãoentreosestudiosossobreseahistóriadonascimentovirginalfoiinventadaparamascararumaverdadedesconfortávelsobreapaternidadedeJesus,ouseja,queelenasceuforadocasamento.

Esteénarealidadeumvelhoargumento,apresentadoporadversáriosdomovimentodeJesusdesdeosseusprimeirosdias.OescritordoséculoII Celso narra uma história indecente; ele conta ter ouvido de um judeupalestino que a mãe de Jesus foi engravidada por um soldado chamadoPanthera.AhistóriadeCelsoétãoclaramentepolêmicaquenãopodeserlevadaasério.Noentanto,elaindicaque,menosdecemanosapósamortede Jesus, já circulavam na Palestina rumores sobre o seu nascimentoilegítimo.Esses rumorespodem ter sido correntesmesmodurantea vidade Jesus. Quando ele começa a pregar em sua cidade natal de Nazaré, éconfrontado com o murmúrio dos vizinhos, e um deles pergunta semrodeios:“Nãoéesteo ilhodeMaria?”(Marcos6:3)Estaéumadeclaraçãosurpreendente, que não pode ser facilmente descartada. Chamar umhomem primogênito judeu na Palestina pelo nome da mãe – JesusbarMaria, em vez de Jesusbar José – não é apenas incomum, é escandaloso.No mínimo, é uma ofensa deliberada com implicações tão óbvias queredaçõesposterioresdeMarcosforamobrigadasainserirnoversoafrase“filhodocarpinteiro,edeMaria”.

Um mistério ainda mais controverso sobre Jesus envolve seu estadocivil. Embora não haja nenhuma evidência no Novo Testamento paraindicar que Jesus fosse casado, teria sido quase impensável para umhomem judeu de trinta anos de idade, no tempo de Jesus, não ter umaesposa. O celibato era um fenômeno extremamente raro na Palestina doséculo I. Um punhado de seitas, como a dos já mencionados essênios ouuma dos chamados terapeutas, praticavam o celibato, mas eram ordensquase monásticas; eles não só se recusavam a se casar como sedivorciavam totalmente da sociedade. Jesus não fez nada do tipo. Noentanto, embora possa ser tentador presumir que ele era casado, não sepode ignorar o fato de que emnenhum lugar, entre todas as palavras jáescritas sobre JesusdeNazaré, dos evangelhos canônicos aos evangelhosgnósticos e às cartasdePaulo, oumesmonaspolêmicas judaicas epagãsescritascontraele,háqualquermençãoaumaesposaoufilhos.

No imdascontas,ésimplesmenteimpossíveldizermuitosobreoinícioda vida de Jesus em Nazaré. Isso porque, antes de Jesus ser declarado

messias, não importava que tipo de infância um camponês judeu de umvilarejoinsigni icantenaGalileiapudesseounãotertido.DepoisqueJesusfoi declarado messias, os únicos aspectos de sua infância e adolescênciaque contavam eram os que poderiam ser criativamente imaginados parasustentar qualquer pretensão teológica que se estivesse tentando fazersobre a identidade de Jesus como Cristo. Para melhor ou pior, o únicoacesso que se pode ter ao verdadeiro Jesus não vem das histórias queforam contadas sobre ele após sua morte, mas sim do conhecimento deuma série de fatos que podemos reunir de sua vida, como parte de umagrande família judaica de carpinteiros/construtores lutando parasobrevivernapequenaaldeiagalileiadeNazaré.

O problema com Nazaré é que ela era uma cidade de barro e tijolos.Mesmoasconstruçõesmaiselaboradas,porassimdizer,teriamsidofeitasde pedra – mas havia vigas de madeira nos telhados e, certamente, asportas teriam sido feitas desse material. Um punhado de nazarenospoderiatersidocapazdepagarmobiliáriodemadeira–umamesa,algunsbancos,e talvezalgunspoderiam terpossuído jugosearadosdemadeiracom quesemear suas magras parcelas de terra. Mas, mesmo seconsiderarmosquetektonsigni icaumartesãoquetrabalhacomqualqueraspecto dos negócios de construção, as cerca de cem famíliasempobrecidas de um vilarejo modesto e totalmente esquecível comoNazaré,amaioriadasquaisviviapoucoacimadoníveldesubsistência,nãopoderiam,denenhuma forma, tersustentadoa famíliade Jesus.Talcomoacontece com a maioria dos artesãos e diaristas, Jesus e seus irmãostiveram que ir para vilarejos ou cidades maiores para oferecer seutrabalho. Felizmente, Nazaré estava a uma curta caminhada de uma dasmaioresemaisricascidadesdaGalileia–suacapital,Séforis.

Séforis era umametrópole urbana so isticada, tão rica quanto Nazaréerapobre.EnquantoNazarénãotinhaumaúnicaestradapavimentada,asestradas em Séforis eram largas avenidas calçadas com lajes de pedrapolida e ladeadas por casas de dois andares ostentando pátios abertos ecisternasprivativasescavadasnarocha.Osnazarenoscompartilhavamumúnicobanheiropúblico.EmSéforis,doisaquedutos separados fundiam-seno centro da cidade, fornecendo água su iciente para os grandes banhosluxuososelatrinaspúblicasqueserviamquasetodaapopulaçãodecercade40milhabitantes.Haviavilas romanasemansõespalacianas, algumascobertas de mosaicos coloridos representando alegres homens nuscaçando aves, mulheres com guirlandas carregando cestas de frutas,

meninosdançandoetocandoinstrumentosmusicais.Umteatroromano,nocentrodacidade,tinha4.500assentos,eumaintrincadateiadeestradaserotasdecomércioligavaSéforisàJudeiaeaorestodascidadesdaGalileia,fazendodelaumimportantepolodeculturaecomércio.

Embora Séforis fosse uma cidade predominantemente judaica, comoevidenciadopelassinagogasecasasdebanhoritualládescobertas,elaerahabitada por um tipo de judeus totalmente diferente dos que eramencontrados em grande parte da Galileia. Rica, cosmopolita,profundamente in luenciada pela cultura grega e cercada por umapanóplia de raças e religiões, os judeus de Séforis eram o produto darevoluçãosocialdeHerodes–osnovos-ricosqueganharamdestaqueapósomassacredavelhaaristocraciasacerdotal.Acidadeemsifoiumgrandemarco por muitosanos – depois de Jerusalém, é a cidademais citada naliteraturarabínica.SéforisfoiocentroadministrativodaGalileiaduranteadinastiadosmacabeus.DuranteoreinadodeHerodes,oGrande,tornou-seum posto militar vital, onde as armas e provisões de guerra eramarmazenadas.Noentanto,nãofoisenãoapósAntipas(a“Raposa”), ilhodeHerodes, tê-laescolhidocomosederealdesua tetrarquia,provavelmentepor volta da virada do século I d.C., que a valente cidade de Séforis setornouconhecidaemtodaaPalestinacomo“oornamentodaGalileia”.

Comoseupai,Antipastinhaumapaixãoporprojetosdeconstruçãoemgrande escala, e em Séforis ele encontrou uma folha em branco sobre aqual projetar uma cidade com o seu per il. Isso porque, quando AntipaschegouaSéforiscomumgrupodesoldadosromanosatiracolo,acidadejánãoeramaisopontocentraldaGalileia,comotinhasidosobogovernodeseupai.Eraaindaumamontoadofumegantedecinzasepedra,umavítimada retaliação romana às rebeliões que tinham estourado em toda aPalestinanaesteiradamortedeHerodes,oGrande,em4a.C.

Quando Herodes morreu, deixou para trás muito mais do que umapopulaçãofervilhanteansiosaparasevingardeseusamigosealiados.Eletambém deixou uma multidão de desempregados pobres que tinhainundadoJerusalém,vindadasaldeiasruraisparaconstruirseuspaláciose teatros. A diversão de Herodes com as construções monumentais, eespecialmente o seu projeto de expansão do Templo, havia empregadodezenasdemilharesdecamponesesediaristas,muitosdosquaishaviamsidoexpulsosdesuasterraspelasecaoupelafomeou,muitasvezes,pelapersistênciamalévolados cobradoresdedívidas.Mas como imdoboomda construção em Jerusalém e a conclusão do Templo pouco antes da

mortedeHerodes,essescamponesesetrabalhadoresdiaristasderepentese viram desempregados e expulsos da Cidade Santa para se viraremsozinhos. Como resultado, o campo mais uma vez tornou-se um foco deatividade revolucionária, tal como acontecera antes de Herodes ter sidodeclaradorei.

Foinessaépocaqueumnovoemuitomais temívelgrupodebandidossurgiunaGalileia, lideradoporumprofessorcarismáticoerevolucionárioconhecidocomoJudas,oGalileu.AstradiçõesdizemqueJudasera ilhodofamoso chefe dos bandidos Ezequias, o messias fracassado que Herodeshavia capturado e decapitado quarenta anos antes como parte de suacampanhaparalimparocampodaameaçadosbandidos.DepoisdamortedeHerodes, Judas, o Galileu, juntou forças com ummisterioso fariseu denome Zadoque para lançar um movimento de independência totalmentenovo que Josefo chama de a “Quarta Filoso ia”, para diferenciá-la dasoutras três “ iloso ias”: os fariseus, os saduceus e os essênios. O quecolocava os membros da Quarta Filoso ia à parte do resto era seucompromisso inabalável com a libertação de Israel do jugo estrangeiro esua insistência fervorosa, até a morte, de que eles serviriam a nenhumsenhor, mas apenas ao Deus Único. Havia um termo bem-de inido paraesse tipo de crença, um termo que todos os judeus piedosos,independentemente da posição política, teriam reconhecido eorgulhosamentereivindicadoparasi:zelo.

ZeloimplicavaumaadesãoestritaàToráeàLei,umarecusaemservira qualquer mestre estrangeiro – servir a qualquer mestre humano demaneira geral – e uma devoção intransigente à soberania de Deus. SerzelosoaoSenhoreraandarnaspegadasardentesdosprofetaseheróisdopassado,homensemulheresquenãotoleraramninguémquequisesseseassociaraDeus,quenãosecurvaramanenhumreiexcetooReidoMundoe que lidaram cruelmente com a idolatria e com aqueles quetransgrediram a lei de Deus. A própria terra de Israel tinha sidoconquistadaatravésdozelo,poisforamosguerreiroszelososdeDeusquea puri icaram de todos os estrangeiros e dos idólatras, assim comoDeustinha exigido. “Quem sacri icar a qualquer deus que não ao Senhor serátotalmenteaniquilado.”(Êxodo22:20)

Muitos judeus na Palestina do século I se esforçaram para viver umavidadezelo,cadaumàsuaprópriamaneira.Mashouvealgunsque,a imde preservar os seus ideais zelosos, estavam dispostos a recorrer a atosextremos de violência se necessário, não apenas contra os romanos e as

massasnãocircuncidadas,mascontraoscompatriotasjudeus,aquelesqueousaramsesubmeteraRoma.Elesforamchamadosdezelotas.

Esses “zelotas” não devem ser confundidos com o partido zelota quesurgiria sessenta anos mais tarde, após a revolta judaica em 66 d.C.Duranteavidade Jesus,ozelotismonãosigni icavaumaclaradesignaçãosectáriaouumpartidopolítico.Erauma ideia,umaaspiração,ummodelode piedade indissoluvelmente ligado ao sentimento generalizado deexpectativa apocalíptica que tinha tomado os judeus na esteira daocupação romana. Havia um sentimento, especialmente entre oscamponeses e os pobres devotos, de que a presente ordem das coisasestava chegando ao im, de que uma ordem nova e de inspiração divinaestava prestes a revelar-se. O Reino de Deus estava próximo. Todosfalavam sobre isso. Mas esse Reino só poderia ser anunciado pelos quetivessemozelodelutarporele.

Tais ideias já existiam muito antes de aparecer Judas, o Galileu. MasJudas foi talvez o primeiro líder revolucionário a fundir banditismo efanatismozelotaemumaúnicaforçarevolucionária,fazendodaresistênciaaRomaumdeverreligiosodetodososjudeus.FoiaferozdeterminaçãodeJudas de fazer o que fosse preciso para libertar os judeus do jugoestrangeiroelimparaterraemnomedoDeusdeIsraelquefezdaQuartaFiloso ia um modelo de resistência zelosa para os inúmerosrevolucionários apocalípticos que, algumas décadas mais tarde, uniriamforçasparaexpulsarosromanosdaTerraSanta.

Em 4 a.C., com Herodes, o Grande, morto e enterrado, Judas e seupequeno exército de zelotas izeram um assalto ousado em Séforis. Elesinvadiram o arsenal real da cidade e apreenderam para si as armas eprovisões que estavam armazenadas no interior. Agora totalmentearmados e acompanhados por alguns simpatizantes seforianos, osmembrosdaQuartaFiloso ialançaramumaguerradeguerrilhaemtodaaGalileia, saqueandoas casasdos ricos epoderosos, incendiando aldeias erepartindo a justiça de Deus sobre a aristocracia judaica e os quecontinuavamadeclararsualealdadeaRoma.

Omovimentocresceuemtamanhoe ferocidadedurante todaadécadaseguinte, marcada por violência e instabilidade. Então, no ano 6 d.C.,quando a Judeia tornou-se o icialmente uma província romana e ogovernador da Síria, Quirino, pediu um censo para registrar, cadastrar etaxar devidamente as pessoas e os bens em algumas partes da regiãorecém-adquirida, os membros da Quarta Filoso ia aproveitaram a

oportunidade. Eles usaram o censo para fazer um apelo inal aos judeusparaque seunissemaeles contraRomae lutassempor sua liberdade.Ocenso,argumentavam,eraumaabominação.Eraaa irmaçãodaescravidãodosjudeus.Servoluntariamenteregistrado,comoovelhas,era,navisãodeJudas,equivalenteadeclarar idelidadeaRoma.Eraumaadmissãodequeos judeusnãoeramatriboescolhidadeDeus,masapropriedadepessoaldoimperador.

Não era o censo propriamente que tanto enfurecia Judas e seusseguidores; era a própria ideia de pagar qualquer imposto ou tributo aRoma. Que sinal mais evidente da subserviência dos judeus serianecessário?Otributoeraparticularmenteofensivo,umavezqueimplicavaque a terra pertencia a Roma, e não a Deus. De fato, o pagamento dotributotornou-se,paraoszelotas,umtestedereligiosidadeede idelidadea Deus. Simpli icando: se você pensa que é lícito pagar tributo a César,entãovocêéumtraidoreumapóstata.Vocêmerecemorrer.

Inadvertidamente ajudando a causa de Judas havia o canhestro sumosacerdotenaépoca,umlacaioromanochamadoJoazar,quedebomgradoconcordoucomocensodeQuirinoeencorajouseuscompanheiros judeusa fazeremomesmo.Aconivênciadosumosacerdoteera todaaprovadequeJudaseseusseguidoresnecessitavamdequeopróprioTemplotinhasido contaminado e deveria ser forçosamente resgatado das mãospecadoras da aristocracia sacerdotal. Do ponto de vista dos zelotas deJudas,aaceitaçãodocensoporJoazarfoisuasentençademorte.Odestinoda nação judaica dependia de matar o sumo sacerdote. O zelo assim oexigia.Assimcomoos ilhosdeMatatias“mostraramzelopelalei”aomatarosjudeusquefaziamsacri íciosaqualquerumquenãoaDeus(Macabeus2:19-28), assimcomo Josias, reide Judá,massacrou todososhomensnãocircuncidadosemsuaterraporcausado“zelopeloPoderoso”(2Baruque66:5), agora esses zelotasdeviam fazer voltar a iradeDeus sobre Israel,livrandoaterradosjudeustraidores–comoosumosacerdote.

Fica claro, a partir do fato de que os romanos removeram o sumosacerdote Joazar de seu posto não muito tempo depois de ter eleincentivadoos judeusaobedeceremao censo,queoargumentode Judasprevaleceu.Josefo,quetinhamuitopoucodepositivoadizersobreJudas,oGalileu(eleochamade“so ista”,umpejorativoqueparaJosefosigni icavaum encrenqueiro, um perturbador da paz, um enganador dos jovens),observa um tanto enigmaticamente que Joazar foi “derrubado” peloargumentodoszelotas.

Oproblemade Josefo com Judasparecenão ter sido sua “so ística” ouseu uso da violência, mas sim o que ele chama, ironicamente, as“aspiraçõesreaisdeJudas”.OqueJosefoquerdizeréqueaolutarcontraasubjugação dos judeus e preparar o caminho para o estabelecimento doReinodeDeusna terra, Judas, como seupai, Ezequias, antesdele, estavareivindicandoparasiomantodomessias,otronodoreiDavi.E,comoseupaiantesdele,Judasiriapagaropreçodesuaambição.

Poucodepoisde ter lideradoo ataque contrao censo, Judas, oGalileu,foi capturadoporRomaemorto.Comoretribuiçãopor teremcedidosuasarmasparaosseguidoresde Judas,osromanosmarcharamsobreSéforiseaqueimaramatéochão.Oshomens forammassacrados,asmulheresecrianças, leiloadas comoescravas.Maisde2mil rebeldes e simpatizantesforam cruci icados em massa. Pouco tempo depois, Herodes Antipaschegou e começou a trabalhar imediatamente para transformar asesmagadas ruínas de Séforis em uma extravagante cidade, digna de umrei.

JesusdeNazaréprovavelmentenasceunomesmoanoemqueJudas,oGalileu – Judas, o messias fracassado, ilho de Ezequias, o messiasfracassado –, tumultava o campo, ardendode zelo. Ele teria cerca de dezanos de idade quando os romanos capturaram Judas, cruci icaram seusseguidoresedestruíramSéforis.QuandoAntipascomeçouareconstruiracidade com toda a dedicação, Jesus era um homem jovem, pronto paratrabalhar no comércio de seu pai. Nessa época, praticamente todos ostrabalhadores artesanais e diaristas da província teriam a luído a Séforispara tomarpartenoque foiomaiorprojetoderestauraçãodoperíodo,epode-se estar certo de que Jesus e seus irmãos, que viviam a uma curtadistância, emNazaré, teriamestadoentreeles.De fato,desdeomomentoemquecomeçouseuaprendizadocomotektonatéodiaemquelançouseuministériocomopregadoritinerante, JesusteriapassadoamaiorpartedesuavidanãonapequenaaldeiadeNazaré,masnacapitalcosmopolitaqueeraSéforis:omeninocamponêsemumacidadegrande.

Seisdiasporsemana,desolasol,Jesusteriatrabalhadonacidadereal,construindo casas principescas para a aristocracia judaica durante o dia,retornando à sua arruinada casa de paredes de barro à noite. Ele teriatestemunhado por si mesmo a rápida e crescente divisão entre osabsurdamente ricos e os pobres endividados. Teria se misturado com apopulação helenizada e romanizada da cidade: aqueles ricos,desobedientes judeus que passavam tanto tempo elogiando o imperador

de Roma como o faziam ao Senhor do Universo. E certamente teriaconhecidoasfaçanhasdeJudas,oGalileu.

Pois enquanto a população de Séforis parecia ter sido domesticada etransformada, após a rebelião de Judas, em um modelo de cooperaçãoromana– tantoque, em66d.C., quando amaioria daGalileia juntou-se àrevolta contra Roma, Séforis imediatamente declarou sua lealdade aoimperador e tornou-se uma guarnição romana durante a batalha pararecuperarJerusalém–,amemóriadeJudas,oGalileu,edoqueelerealizounão desapareceram de Séforis. Essa memória não desapareceu entre ostrabalhadores braçais e os despossuídos, entre aqueles que, como Jesus,passavam seus dias assentando tijolos para construir outramansão paramaisumnobre judeu.Semdúvida, Jesus tambémteria tidoconhecimentodas aventurasdeHerodesAntipas, “aquelaRaposa”, como Jesuso chama(Lucas 13:31), que viveu em Séforis até por volta de 20 d.C., quando semudouparaTiberíades,nacostadomardaGalileia.Defato,JesuspodetervistoregularmenteohomemqueumdiairiacortaracabeçadeseuamigoementorJoãoBatista,equeprocurariafazeromesmocomele.

5.Ondeestásuafrotaparavarrerosmaresromanos?

O PREFEITO PÔNCIO PILATOS chegou a Jerusalém no ano 26 d.C. Ele era oquinto prefeito, ou governador, que Roma enviava para supervisionar aocupaçãoda Judeia.ApósamortedeHerodes,oGrande,eademissãodeseu ilho Arquelau como etnarca em Jerusalém, Roma decidiu que seriamelhor governar a província diretamente, ao invés de fazê-lo novamentepormeiodeoutrorei-clientejudeu.

Os Pôncio eram samnitas, descendentes da região montanhosa doSamnio, ao sul de Roma, uma nação resistente, de pedra e sangue e dehomens brutais que haviam sido vencidos e absorvidos à força peloImpérioRomanonoséculoIIIa.C.Pilatoseraumepítetoquesignifica“hábilcom uma lança”, um tributo talvez ao pai de Pilatos, cuja glória comosoldado romano sob JúlioCésar tinhapermitido aosPôncio subir de suasorigenshumildesparaaclassedecavaleirosromanos.Pilatos,comotodosos cavaleiros romanos, cumpria seu dever militar esperado para com oImpério.Maselenãoeraumsoldadocomoopai–eraumadministrador,mais confortável comcontase registrosdoquecomespadase lanças.Noentanto, não era um homem menos duro. As fontes o descrevem comosendo cruel, insensível e rígido: um orgulhoso e imperioso romano, compoucaatençãoparaassensibilidadesdospovossubmetidos.

OdesprezodePilatosparacomos judeus icouóbviodesdeoprimeirodia em que chegou a Jerusalém, adornado com túnica branca e couraçadourada, uma capa vermelha sobre os ombros. O novo governadoranunciou sua presença na Cidade Santa marchando pelos portões deJerusalém seguido por uma legião de soldados romanos carregandoestandartes coma imagem do imperador, uma ostentação de desprezoparacomassensibilidadesjudaicas.Maistarde,eleintroduziuumconjuntode escudos romanos dourados dedicados a Tibério, “ ilho do divinoAugusto”, no Templo de Jerusalém. Os escudos eram uma oferenda emnome dos deuses romanos, a sua presença no Templo judeu um atodeliberado de blasfêmia. Informado por seus engenheiros que Jerusalémprecisava reconstruir seus velhos aquedutos, Pilatos simplesmentepegouodinheiroparapagaroprojetodo tesourodoTemplo.Quandoos judeus

protestaram,Pilatosenviousuastropasparamatá-losnasruas.Os evangelhos apresentam Pilatos como um homem justo, mas sem

força de vontade e tão perturbado pela dúvida de condenar Jesus deNazaré à morte que faz tudo em seu poder para salvá-lo, inalmentelavandoasmãosdetodooepisódioquandoos judeusexigemseusangue.Issoépura icção.Pilatoseramaisconhecidoporsuaextremadepravação,seu total desrespeito pela lei e as tradições judaicas, sua aversão maldisfarçada pela nação judaica como um todo. Durante seu mandato emJerusalém,eletãoavidamenteenvioumilharesemilharesdejudeusparaacruz, e sem julgamento, que o povo de Jerusalém se sentiu obrigado aapresentarumaqueixaformalaoimperadorromano.

Apesardisso,outalvezporcausadessafriaeduracrueldadeparacomos judeus, Pôncio Pilatos se tornou um dos mais longevos governadoresromanos na Judeia. Era um trabalho perigoso e volátil. A tarefa maisimportante do governador era garantir o luxo ininterrupto de receitasiscaisparaRoma.Mas,paraisso,eletinhaquemanterumrelacionamentofuncional, embora frágil, com o sumo sacerdote; o governadoradministraria os assuntos civis e econômicos da Judeia, enquanto o sumosacerdote manteria o culto judaico. A ligação tênue entre os dois cargossigni icava que nenhum governador romano ou sumo sacerdote judeuduravamuito tempo, especialmente nas primeiras décadas após amortede Herodes. Os cinco governadores antes de Pilatos serviram apenaspoucos anos cada um, a única exceção sendo o antecessor imediato dePilatos, Valério Grato. Mas, enquanto Grato nomeou e exonerou cincodiferentessumossacerdotesemseutempocomogovernador,ao longo domandato de uma década de Pilatos ele teve apenas um sumo sacerdotecomquemtratar:JoséCaifás.

Como a maioria dos sumos sacerdotes, Caifás era um homemextremamente rico, embora essa riqueza possa ter vindo de sua esposa,ilha de um sumo sacerdote anterior chamado Ananus. Caifásprovavelmentefoinomeadoparaocargonãoporseuprópriomérito,maspor meio da in luência do sogro, um personagem surpreendente, queconseguiupassaraposiçãoparacincodeseus ilhos,permanecendoumaforçasigni icativadurantetodaaadministraçãodeCaifás.DeacordocomoevangelhodeJoão,depoisqueJesusfoipresonoJardimdoGetsêmani,elefoilevadoatéAnanusparainterrogatórioantesdeserarrastadoatéCaifásparaojulgamento(João18:13).

Grato havia designado Caifás como sumo sacerdote no ano 18 d.C., ou

seja,elejácumpriraoitoanosnocargoquandoPilatoschegouaJerusalém.Parte da razão de Caifás ter sido capaz de ocupar o posto por inéditosdezoitoanosfoiaestreitarelaçãoqueacabouforjandocomPôncioPilatos.Os dois homens trabalhavam bem juntos. O período de seu governocombinado, de 18d.C. a 36d.C., coincidiu como períodomais estável emtodo o século I. Juntos, eles conseguiram manter inoperante o impulsorevolucionário dos judeus, tratando cruelmente qualquer indício deperturbaçãopolítica,nãoimportaquãopequena.

No entanto, apesar de seus melhores esforços, Pilatos e Caifás foramincapazesdeextinguirozeloquetinhasidoacesonoscoraçõesdosjudeuspelos levantes messiânicos que ocorreram na virada do século, os deEzequias, o chefe dos bandidos, Simão da Pereia, Atronges, o meninopastor,eJudas,oGalileu.NãomuitotempodepoisdePilatosterchegadoaJerusalém, uma nova safra de pregadores, profetas, bandidos e messiascomeçouaperambularpelaTerraSanta, reunindodiscípulos,pregandoalibertação deRoma e prometendo a vinda doReino deDeus. Em28 d.C.,umpregadorascetachamadoJoãocomeçouabatizaraspessoasnaságuasdorioJordão,iniciando-asnoqueeleacreditavaseraverdadeiranaçãodeIsrael. Quando a popularidade de João Batista tornou-se grande demaispara ser controlada, o tetrarca de Pilatos na Pereia, Herodes Antipas,mandou prendê-lo e o executou por volta de 30 d.C. Poucos anos maistarde, um carpinteiro de Nazaré chamado Jesus guiou um grupo dediscípulosemumaprocissãotriunfanteparadentrodeJerusalém,ondeeleatacouoTemplo,virouasmesasdoscambistasesoltoudesuasgaiolasosanimais para sacri ício. Ele também foi capturado e sentenciado à mortepor Pilatos. Três anos depois, em 36 d.C., um messias conhecido apenascomo “o Samaritano” reuniu um grupo de seguidores no topo do monteGerizim, onde alegou que revelaria “vasos sagrados” escondidos lá porMoisés.PilatosrespondeucomumdestacamentodesoldadosromanosqueescalaramGerizimecortaramempedaçosafielmultidãodosamaritano.

Foi esse ato inal de violência desenfreada no monte Gerizim queencerrouomandatodegovernadordePilatosemJerusalém.ConvocadoaRoma para explicar suas ações ao imperador Tibério, Pilatos nuncamaisvoltouparaa Judeia.Ele foiexiladoparaaGáliaem36d.C.Considerandosuaestreitarelaçãodetrabalho,podenãoserporacasoqueJoséCaifásfoidemitidodocargodesumosacerdotenomesmoano.

SemPilatoseCaifás,nãohaviamaisqualqueresperançadesufocaraspaixõesrevolucionáriasdos judeus.Nametadedoséculo, todaaPalestina

estava cheia de energia messiânica. Em 44 d.C., um profeta milagrosochamado Teudas coroou-se messias e trouxe centenas de seguidores aoJordão,prometendodividiraságuasdorio,assimcomoMoisés tinha feitonomarVermelhomilanosantes.Isso,segundoele,seriaoprimeiropassopara recuperar a Terra Prometida de Roma. Os romanos, em resposta,enviaram um exército para cortar a cabeça de Teudas e dispersar seusseguidores no deserto. Em 46 d.C., dois ilhos de Judas, o Galileu, Jacó eSimão, lançaramseuprópriomovimentorevolucionárionospassosdeseupaieavô;ambosforamcrucificadosporsuasações.

O que Roma necessitava paramanter essas agitaçõesmessiânicas sobcontroleeradeumamão irmeesensível,alguémque iriaresponderaosprotestosdosjudeuseaindamanterapazeaordemnaregiãodaJudeiaenos campos daGalileia. O queRoma enviou a Jerusalém em vez disso foiuma série de governadores despreparados, cada um mais cruel egananciosodo que o anterior, cuja corrupção e inépcia transformariam araiva,oressentimentoeamaniaapocalípticaquevinhaseacumulandoemtodaaPalestinaemumarevoluçãoemgrandeescala.

TudocomeçoucomVentídioCumano,queestavabaseadoemJerusalémem48d.C.,doisanosapósarevoltados ilhosdeJudastersidodebelada.Comogovernador,Cumanoerapoucomaisqueumladrãoeumtolo.Umdeseus primeiros atos foi alocar soldados romanos sobre os telhados dospórticos do Templo para ostensivamente evitar o caos e a desordemduranteafestadoPêssach.Nomeiodascelebraçõessagradas,umdessessoldadospensouqueseriadivertidobaixararoupaemostrarasnádegasnuas para a congregação abaixo, aomesmo tempo gritandopalavras queJosefo,emseudecoro,descrevecomo“palavrasquesepoderiaesperardetalpostura”.

Amultidão icoufuriosa.UmmotimeclodiunapraçadoTemplo.Emvezdeacalmarasituação,CumanoenviouumgrupodesoldadosromanosatéoMontedoTemploparamassacraraturbaempânico.Osperegrinosqueescaparam do assassinato icaram imprensados nas saídas estreitas dopátio do Templo. Centenas de pessoas foram pisoteadas. As tensõesaumentaram aindamais quando um dos legionários de Cumano agarrouum rolo da Torá e o rasgou em pedaços na frente de uma assembleiajudaica. Cumano executou o soldado às pressas, mas não foi o su icienteparaacabarcomacrescenteraivaedescontentamentoentreosjudeus.

AcriseseacentuouquandoumgrupodeviajantesjudeusdaGalileiafoiatacadoaopassarpelaSamariaacaminhode Jerusalém.QuandoCumano

negouoapelodosjudeusporjustiça,supostamenteporqueossamaritanoso tinham subornado, um grupo de bandidos, liderados por um homemchamado Eleazar, ilho de Dinaeus, tomou a justiça nas próprias mãos epartiu para o ataque na Samaria, matando cada samaritano queencontrava. Issoeramaisdoqueumatodevingançasangrenta:eraumaa irmaçãode liberdadedeumpovo fartodepermitirquea leieaordemicassemnasmãosdeumadministradordeRomadesonestoeinconstante.O surto de violência entre os judeus e os samaritanos foi a gota d’águaparaoimperador.Em52d.C.,VentídioCumanofoienviadoparaoexílioeAntônioFélixfoimandadoparaJerusalémemseulugar.

Como governador, Félix não se saiu melhor que o antecessor. AssimcomoCumano,tratouosjudeussobseucomandocomtotaldesprezo.Usouo poder do dinheiro para jogar as diferentes facções judaicas emJerusalémumascontraasoutras,sempreaseufavor.Parecia,aprincípio,desfrutarumarelaçãoestreitacomosumosacerdoteJônatas,umdoscincoilhosdeAnanusqueserviramnaposição.FélixeJônatastrabalharamemconjunto para reprimir as quadrilhas de bandidos na região da Judeia;Jônatas pode até mesmo ter desempenhado um papel na captura, porFélix, do chefe dos bandidos Eleazar, ilho de Dinaeus, que foi enviado aRomae cruci icado.Mas,umavezqueo sumosacerdote tinha servidoaopropósito de Félix, foi deixado de lado. Alguns dizem que Félix tevein luêncianoqueaconteceuemseguida,pois foisobseugovernoqueumnovotipodebandidosurgiuemJerusalém:umobscurogrupoderebeldesjudeus que os romanos chamaramde sicários, ou “homens dos punhais”,devido à sua propensão para as armas pequenas, fáceis de esconder,chamadassicae,comosquaiselesassassinavamosinimigosdeDeus.

Ossicárioseramzelotasalimentadospelavisãoapocalípticadomundoeuma fervorosa devoção em estabelecer o governo deDeus na terra. Eleseramfanáticosemsuaoposiçãoàocupaçãoromana,emborareservassemsuavingançaparaos judeus, especialmenteentreos ricosdaaristocraciasacerdotal, que se submetiam ao domínio romano. Destemidos eincontroláveis,ossicáriosassassinavamseusadversárioscomimpunidade:no meio da cidade, em plena luz do dia, no meio de grandes multidões,durante os dias de festa e festivais. Eles se misturavam às massas, ospunhais escondidos dentro das capas, até que estivessem próximos osu icienteparaatacar.Então,quandoohomemmortocaíanochão,cobertode sangue, os sicários embainhavam o punhal furtivamente e juntavamsuasvozesaosgritosdeindignaçãodamultidãoempânico.

O líder dos sicários à época era um jovem judeu revolucionáriochamado Menahem, neto de ninguém menos que o messias fracassadoJudas, o Galileu. Menahem compartilhava o ódio do avô pela ricaaristocraciasacerdotal em geral, e os untuosos sumos sacerdotes emparticular.Paraossicários, Jônatas, ilhodeAnanus,eraumimpostor:umladrãoeumvigaristaquetinhacrescidorico,explorandoosofrimentodaspessoas. Ele era tão responsável pela escravidão dos judeus como oimperador pagão em Roma. Sua presença no Monte do Templocontaminavatodaanação.SuaexistênciaeraumaabominaçãoaoSenhor.Eletinhaquemorrer.

No ano 56 d.C., os sicários, sob a liderança de Menahem, inalmenteforamcapazesdeconseguiroqueJudas,oGalileu,sótinhapodidosonharem realizar. Durante a festa do Pêssach, um assassino sicário abriucaminhoatravésdamassadeperegrinosquelotavamoMontedoTemploaté chegar perto o su iciente do sumo sacerdote Jônatas para sacar umpunhal e passá-lo em sua garganta. Depois, dissolveu-se de novo namultidão.

O assassinato do sumo sacerdote lançou Jerusalém em pânico. Comopoderia o líder da nação judaica, o representante de Deus na terra, sermortoemplena luzdodia,nomeiodopátiodoTemploe,aparentemente,comimpunidade?Muitosserecusavamaacreditarqueoculpadopoderiater sido um judeu. Havia rumores de que o governador romano, Félix,tinhaencomendadooassassinatoelepróprio.QuemmaispoderiatersidotãoprofanoapontodederramarosanguedosumosacerdotenoterrenodoTemplo?

Noentanto,ossicáriostinhamapenascomeçadoseureinadodeterror.Gritando a palavra de ordem “Nenhum senhor senão Deus!”, elescomeçaram a atacar os membros da classe dirigente judaica, saqueandoseus bens, sequestrando seus familiares e queimando suas casas. Comessas táticas, eles semearam o terror nos corações dos judeus, de modoque, como Josefoescreve: “Mais terrívelque seus crimeseraomedoqueeles despertavam, cada homemesperando amorte a qualquermomento,comonaguerra.”

Com a morte de Jônatas, o ardor messiânico em Jerusalém atingiu oauge. Havia um sentimento generalizado entre os judeus de que algoprofundo estava acontecendo, uma sensação nascida do desespero,alimentadapeloanseiodeumpovopelalibertaçãododomínioestrangeiro.Zelo,oespíritoquetinhaalimentadoofervorrevolucionáriodosbandidos,

profetasemessias,estavaagorapercorrendoapopulaçãocomoumvírusavançandopelocorpo.Jánãopodiasercontidonocampo;suainfluênciafoisentida nas cidades, mesmo em Jerusalém. Não eram apenas oscamponesesemarginaisqueestavamcochichandosobreosgrandesreiseprofetasquetinhamlibertadoIsraeldeseusinimigosnopassado.Osricoseosqueestavamemascensão tambémforamse tornandocadavezmaisanimados pelo ardente desejo de puri icar a Terra Santa da ocupaçãoromana.Ossinaisestavamportodaparte.Asescriturasestavamprestesasercumpridas.Ofimdosdiasestavapróximo.

Em Jerusalém, um homem santo chamado Jesus, ilho de Ananias,apareceu de repente, profetizando a destruição da cidade e o iminenteretornodomessias.Outrohomem,umfeiticeirojudeumisteriosochamadode“oEgípcio”,declarou-sereidosjudeusereuniumilharesdeseguidoresnoMontedasOliveiras,ondeprometeuque,comoJosuéemJericó,fariaosmuros de Jerusalém desmoronarem a seu comando. A multidão foimassacrada pelas tropas romanas, mas, até onde se sabe, o Egípcioescapou.

AreaçãoatrapalhadadeFélixaessesacontecimentoslevou, inalmente,à sua demissão e substituição por outro homem, Pórcio Festo.Mas FestonãosesaiumelhordoqueFélixemlidarcomapopulaçãojudaicarebelde,sejanocampo,ondeonúmerodeprofetasemessiasreunindoseguidorese pregando a libertação deRoma estava crescendo fora de controle, sejaem Jerusalém, onde os sicários, impulsionados pelo sucesso em matar osumo sacerdote Jônatas, estavam agora assassinando e saqueando àvontade. Festo icou tão sobrecarregado pelo estresse da posição quemorreu logo depois de tomar posse do cargo. Ele foi seguido por LuceioAlbino,umnotóriodegenerado,vigaristae incompetentequepassouseusdoisanosemJerusalémenriquecendo,saqueandoariquezadapopulação.Depois de Albino veio Gessio Floro, cuja breve e turbulenta gestão élembradaporque,primeiro,fezosanossobAlbinoparecerempací icosemcomparação,esegundo,porqueeleseriaoúltimogovernadorromanoqueJerusalémteria.

Era agora 64 d.C. Em dois anos a raiva, o ressentimento e o zelomessiânicoquevinhamcrescendoemtodoopaísiriamentraremerupção,em uma revolta em grande escala contra Roma. Cumano, Félix, Festo,Albino,Floro,cadaumdessesgovernadoreshaviacontribuído,pormeiodeprevaricação,paraa revolta judaica.AprópriaRoma tinhaculpa,por suamá gestão e tributação excessiva da população sitiada. Certamente, a

aristocracia judaica, com seus con litos incessantes e seus esforçosbajuladores para ganhar poder e in luência, subornando autoridadesromanas, compartilhava a responsabilidade pela deterioração da ordemsocial. E, sem dúvida, a liderança do Templo desempenhou um papelimportante na promoção do sentimento generalizado de injustiça epobreza esmagadora que tinha deixado tantos judeus sem escolha a nãoser apelar para a violência. Adicione a tudo isso o con isco de terrasprivadas, os altos níveis de desemprego, o deslocamento e a urbanizaçãoforçadadoscamponeseseasecaea fomequedevastaramoscamposdaJudeiaedaGalileia,eerasóumaquestãodetempoantesqueosfogosdarebelião engolissem toda a Palestina. Parecia que toda a nação judaicaestavaprontaparaexplodiremrevoltaabertaàmenorprovocação–queFlorofoitoloosuficienteparafazer.

Emmaiode66d.C.,FloroanunciouderepentequeosjudeusdeviamaRoma100mil denários em impostos não pagos. Seguido por um exércitodeguarda-costas,ogovernadorromanomarchouparaoTemploeinvadiua tesouraria, saqueando o dinheiro que os judeus tinhamoferecido comoum sacri ício a Deus. Tumultos se seguiram, e Floro respondeu enviandomilharesdesoldadosromanosparaacidadealtaparamataràvontade.Ossoldados mataram mulheres e crianças. Invadiram casas e abaterampessoas em suas camas. A cidade tornou-se um caos. A guerra estava nohorizonte.

Para acalmar a situação, os romanos enviaram aos judeus um deles:Agripa II, cujo pai, Agripa I, era um amado líder judeu que tinhaconseguido manter estreita ligação com Roma. Embora o ilho nãocompartilhasseapopularidadedofalecidopai,eraamelhoresperançaqueosromanos tinhamparadiminuira tensãoem Jerusalém.O jovemAgripafoilevadoàspressasparaaCidadeSantaemumúltimoesforçoparaevitara guerra. De pé no telhado do palácio real, com sua irmãBerenice a seulado,ele suplicou aos judeus que encarassem a realidade da situação.“Vocês vão desa iar todo o Império Romano?”, perguntou. “Qual é oexército,ondeestãoasarmas?Ondeestáasuafrotaparavarrerosmaresromanos? Onde está o seu tesouro para cobrir o custo das campanhas?Vocês realmente acham que estão indo para a guerra contra egípcios ouárabes? Vocês vão fechar os olhos para o poder do Império Romano?Vocês não vãomedir sua própria fraqueza? Vocês sãomais ricos que osgauleses, mais fortes que os germanos, mais inteligentes que os gregos,mais numerosos do que todos os povos domundo? O que é que inspira

vocêscomtantaconfiançaparadesafiarosromanos?”Claro, os revolucionários tinham uma resposta à pergunta de Agripa.

Era o zelo que os inspirava. O mesmo zelo que levou os macabeus a selivraremdocontroleselêucidadoisséculosantes,ozeloquetinhaajudadoos israelitas a conquistar a Terra Prometida, em primeiro lugar, e queagoraajudavaobandodesorganizadoderevolucionáriosjudeusaquebrarosgrilhõesdaocupaçãoromana.

Ridicularizados e ignorados pela multidão, Agripa e Berenice nãotinhamescolhasenãofugirdacidade.Aindaassim,atéesseponto,aguerracontraRomapoderiatersidoevitadasenãofossepelasaçõesdeumjovemchamadoEleazar,que,comocapitãodoTemplo,eraooficialsacerdotalcompoderesparapoliciarosdistúrbiosnasimediações.Apoiadoporumgrupode sacerdotes de classe baixa, Eleazar assumiu o controle do Templo ecolocou um im aos sacri ícios diários em nome do imperador. O sinalenviado aRoma era claro: Jerusalémhavia declarado sua independência.Em um curto espaço de tempo, o resto da Judeia e da Galileia, Edom ePereia, Samaria e todas as aldeias espalhadas pelo vale domar Morto aseguiriam.

Menahem e os sicários uniram-se ao capitão do Templo. Juntos,expulsaramtodososnãojudeusdeJerusalém,comoexigiamasescrituras.Eleslocalizaramemataramosumosacerdote,queseesconderaassimquea luta começou. Então, em um ato de profundo simbolismo, atearam fogoaos arquivos públicos. Os livros dos cobradores de dívidas e agiotas, asações de propriedade e registros públicos, tudo icou em chamas. Nãohaveria mais registro de quem era rico e quem era pobre. Todos nessanovaedivinamenteinspiradaordemmundialiriamcomeçardenovo.

Com a cidade baixa sob seu controle, os rebeldes começaram aforti icar-se para o inevitável ataque romano. No entanto, ao invés deenviar um enorme exército para retomar Jerusalém, Roma,inexplicavelmente,enviouumapequena força,queosrebeldes facilmenterepeliramantesdevoltar suaatençãoparaa cidadealta, ondeospoucossoldados restantes deixados em Jerusalém estavam escondidos em umaguarnição romana. Os soldados concordaram em se render em troca depassagemseguraparaforadacidade.Masquandodepuseramasarmasesaíramdoseureduto,osrebeldessevoltaramcontraeles,matandotodosaté o último soldado, removendo completamente o lagelo da ocupaçãoromanadacidadedeDeus.

Depoisdisso,nãohaviacomovoltaratrás.Osjudeustinhamacabadode

declararguerraaomaiorimpérioqueomundojáconheceu.

6.AnoUm

NO FINAL, restaram apenas mil homens, mulheres e crianças – os últimosrebeldes a sobreviverem ao ataque romano. Era o ano de 73 d.C. Faziasentidoqueoqueseiniciaracomossicáriosterminassecomossicários.Acidade de Jerusalém já havia sido queimada até o chão, suas paredes,derrubadas, suapopulação,massacrada.TodaaPalestinaestavaumavezmais sob o controle romano. Tudo o que restava da rebelião eram essesúltimossicáriosquehaviamfugidodeJerusalémcomsuasesposase ilhoseseen iadonointeriordafortalezadeMasada,nacostaocidentaldomarMorto.Agora,aquiestavameles,presosnotopodeumpenhascoisoladonomeio de um deserto estéril, assistindo, impotentes, a uma falange desoldados romanos gradualmente abrir caminho até a face do rochedo –escudos levantados, espadas desembainhadas –, pronta para colocar umpontofinalàrebeliãoquehaviacomeçadoseteanosantes.

Os sicários vieramoriginalmenteparaMasada logonosprimeiros diasapós o início da guerra contra Roma. Como uma fortaleza naturalmenteforti icadaequaseinexpugnávelsituadamaisdemilmetrosacimadomarMorto,Masadatinhaservidopormuitotempocomorefúgioparaosjudeus.Davi veio aqui para se esconder do rei Saul, quando este enviou seushomenspara caçar omeninopastor queumdia iria tomar sua coroa.Osmacabeus usaramMasada como base militar durante a revolta contra adinastia selêucida. Um século depois, Herodes, o Grande, transformaraMasada em uma verdadeira cidade-fortaleza, achatando a cúpula emformadebarcoeacircundandocomummuromaciçofeitocomaspedrasbrancas de Jerusalém. Herodes acrescentou armazéns e silos, cisternasparaaáguadachuvaeatéumapiscina.EletambémescondeuemMasadaarmassu icientes,dizia-se,paraarmarummilhardehomens.Parasiesuafamília, Herodes construiu um monumental palácio em três níveis quependia da proa norte do penhasco, logo abaixo da borda do cume,completo com salas de banho, ileiras de colunas cintilantes, mosaicosmulticoloridos e uma deslumbrante vista de 180 graus do vale branco esalgadodomarMorto.

DepoisdamortedeHerodes, a fortaleza e ospalácios emMasada, e o

esconderijo de armas ali armazenadas, caíram nas mãos dos romanos.Quandoarebeliãojudaicacomeçouem66d.C.,ossicários,sobaliderançade Menahem, retomaram Masada e levaram suas armas de volta aJerusalém, para unir forças com Eleazar, o capitão do Templo. Depois deter tomado o controle da cidade e destruído os arquivos do Templo, osrebeldes começaram a cunhar moedas para celebrar a independênciaduramenteconquistada.Elasforamgravadascomossímbolosdavitória–cáliceseramosdepalmeira–e inscritascomdivisascomo“LiberdadedeSião” e “Jerusalémé santa”, escritasnão emgrego, a línguadospagãos eidólatras, mas em hebraico. Cada moeda foi conscientemente datada de“Ano Um”, como se toda uma nova era tivesse começado. Os profetastinhamrazão.Certamente,esseeraoReinodeDeus.

No entanto, em meio às celebrações, enquanto Jerusalém ia sendomantida e uma frágil calma ia descendo lentamente sobre a cidade,Menahem fez algo inesperado. Vestindo-se de roxo, ele fez uma entradatriunfal no pátio do Templo, onde, ladeado por seus devotos entre ossicários, todos armados, declarou-se abertamente o messias, rei dosjudeus.

Decerta forma,asaçõesdeMenahem faziam todosentido.A inal, seoReinodeDeusdefatotinhasidoestabelecido,entãoerahoradeomessiasaparecer,a imdegoverná-loemnomedeDeus.Equemmaisdeveriausaras vestes reais e sentar-se no trono senão Menahem, neto de Judas, oGalileu,bisnetodeEzequias,ochefedosbandidos?AsuposiçãomessiânicadeMenahemera,paraseusseguidores,apenasarealizaçãodasprofecias:aetapafinalnainauguraçãodosúltimosdias.

MasnãofoiassimqueEleazar,ocapitãodoTemplo,viuasituação.Eleeos sacerdotes menores que lhe eram associados icaram furiosos com oqueviamcomouma tomadadepoder lagrantepelos sicários.Montaram,então,umplanoparamataroautoproclamadomessiaselivraracidadedeseus violentos seguidores. EnquantoMenahem des ilava pelo Templo emsua vestimenta real, os homens de Eleazar correram para o Monte doTemploedominaramseusguardas.ElesarrastaramMenahemparaforaeotorturaramatéamorte.OssicáriossobreviventesmalconseguiramfugirvivosdeJerusalém.Elessereuniramemsuabase,notopodafortalezadeMasada,ondeesperaramduranteorestodaguerra.

Os sicários esperaram por sete anos. Quando os romanos sereagruparamevoltaramparaarrancaraPalestinadocontrole rebelde, àmedida que as cidades e aldeias da Judeia e da Galileia eram arrasadas

umaapósaoutraesuaspopulaçõesdomadaspelaespada–eenquantoaprópria Jerusalém era cercada e seus habitantes lentamentemorriamdefome–,os sicáriosesperaramemsua fortalezanasmontanhas.Sódepoisde todas as cidades rebeldes terem sido destruídas e a terra, mais umavez, estar sob seu controle é que os romanos voltaram suas vistas paraMasada.

O regimento romano chegou ao pé de Masada em 73 d.C., três anosdepois da queda de Jerusalém. Como os soldados não podiam atacar afortalezadiretamente,elesprimeiroconstruíramummuromaciçoemvoltade todaabasedamontanha,paragarantirquenenhumrebeldepudesseescaparsemserdetectado.Comaáreaprotegida,osromanosconstruíramumarampa íngremeatéoabismo,no ladoocidentalda facedopenhasco,raspando lentamente dezenas de milhares de quilos de terra e pedradurantesemanasa io,mesmocomosrebeldesatirando-lhespedrasládoalto.Emseguida,empurraramumaenormetorredecercoatéarampa,apartir da qual passaram dias bombardeando os rebeldes com lechas ebolas de balista. Quando o perímetro do muro de Herodes inalmentecedeu, tudo que separava os romanos do últimodos rebeldes judeus erauma parede interior apressadamente construída. Os romanos atearamfogo à parede e voltaram para seus acampamentos, para esperarpacientementequeelaentrasseemcolapsoporcontaprópria.

AmontoadosdentrodopaláciodeHerodes,ossicáriossabiamqueo imhavia chegado. Os romanos certamente fariam com eles e suasfamílias oque tinham feito comos habitantes de Jerusalém. Emmeio ao silêncio deaço,umdoslíderessicárioslevantou-seedirigiu-seatodos.

“Meusamigos,jáqueresolvemoshámuitotemponuncaserservosdosromanos, nem de ninguém mais além do próprio Deus, que é o únicoSenhor verdadeiro e justo da humanidade, chegou omomento de tornaressa resoluçãoverdadeiranaprática.”Desembainhandoopunhal, ele fezumúltimoapelo.“Deusconcedeu-nosopoderdemorrerbravamente,eemestadodeliberdade,oquenãofoiocasoparaaqueles[emJerusalém]queforamconquistadosdeformainesperada.”

Odiscursoteveoefeitodesejado.Enquantoosromanospreparavam-separa o assalto inal a Masada, os rebeldes sortearam entre eles paradecidiraordemcomqueprosseguiriamcomoseuplanomacabro.Então,pegaram seus punhais, os mesmos punhais que lhes tinham dadoidentidade, os punhais que tinham, com um golpe na garganta do sumosacerdote,iniciadoaguerramalfadadacontraRoma,ecomeçaramamatar

suasesposaseseus ilhos,antesdedirigiraslâminasunscontraosoutros.Os últimos dez homens escolheramumdentre eles paramatar os outrosnove.Oúltimohomemincendiouopaláciointeiro.Emseguida,sematou.

Namanhãseguinte,quandoosromanospisaramtriunfantessobreaatéentão inexpugnável fortalezadeMasada, tudooqueencontraramfoiumacalmafantasmagórica:960homens,mulheresecriançasmortos.Aguerrafinalmenteterminara.

Aquestãoé:porquedemoroutantotempo?A notícia da revolta judaica tinha viajado rapidamente ao imperador

Nero, que de imediato mandou um de seus homens de maior con iança,TitoFlávioVespasiano,pararetomarJerusalém.Assumindoocomandodeum enorme exército de mais de 60 mil combatentes, Vespasiano partiuimediatamente para a Síria, enquanto seu ilho Tito foi para o Egitoconvocar as legiões romanas estacionadas em Alexandria. Tito iria levarsuastropasparaonorteatravésdeEdom,enquantoVespasianoavançarianadireçãosul,atéaGalileia.Oplanoerapaie ilhoespremeremosjudeusentreosdoisexércitosesufocaremarebelião.

UmaaumaascidadesrebeldescederamaopoderiodeRomaenquantoTito e Vespasiano esculpiam um rastro de destruição em toda a TerraSanta.Em68d.C.,todaaGalileia,bemcomoSamaria,Edom,Pereiaetodaaregião do mar Morto, exceto Masada, estavam irmemente de volta aocontrole romano. Tudo o que restava a Vespasiano fazer era enviar seusexércitosparaaJudeiaedevastarasededarebelião:Jerusalém.

Quando estava se preparando para o ataque inal, porém, Vespasianorecebeu a notícia de que Nero havia cometido suicídio. Roma estava emtumulto. A guerra civil estava dilacerando a capital.No espaço de poucosmeses,trêshomensdiferentes–Galba,OtoeVitélio–tinhamsedeclaradoimperador, cada um, por sua vez, violentamente derrubado por umsucessor.HouveumcolapsototaldaleiedaordememRoma,comladrõesevândalossaqueandoapopulação, semmedodeconsequências.Desdeaguerra entre Otávio e Marco Antônio cem anos antes, os romanos nãoexperimentavam tal agitação civil. Tácito descreveu o período como “ricoem desastres, terrível, com batalhas, dilacerado por lutas civis, horrívelmesmoempaz”.

Estimulado pelas legiões sob seu comando, Vespasiano interrompeu acampanhanaJudeiaevoltouapressadamenteaRomaparafazervalerseuprópriodireitoaotrono.Apressa,aoqueparece,eradesnecessária.Muitoantes de chegar à capital, no verão de 70 d.C., seus seguidores haviam

tomado o controle da cidade, assassinado seus rivais e declaradoVespasianoimperadorúnico.

Noentanto,aRomaqueVespasianoagoragovernavahaviapassadoporuma profunda transformação. A agitação civil em massa dera origem auma enorme consternação quanto ao declínio do poder e da in luênciaromana.AsituaçãonadistanteJudeiaeraparticularmenteirritante.Jáeraruim o su iciente que os judeus inferiores tivessem se rebelado emprimeiro lugar, e era inconcebível que, depois de três longos anos, arebeliãoaindanãotivessesidoesmagada.Outrospovosdominadostinhamse revoltado, é claro. Mas aqueles não eram gauleses ou bretões; eramcamponesessupersticiososatirandopedras.Aprópriaescaladadarevoltajudaica, e o fato de que ela havia chegado emummomento de profundaangústiasocialepolíticaemRoma,criaraalgosemelhanteaumacrisedeidentidadeentreoscidadãosromanos.

Vespasianosabiaque,paraconsolidarsuaautoridadeeresolveromal-estarqueseabaterasobreRoma,precisavadesviaraatençãodaspessoaspara longe de seus problemas domésticos e em direção a uma conquistaestrangeira espetacular. Uma pequena vitória não serviria. O que oimperadorprecisavaeradeumavitóriaabsolutacontraumaforçainimiga.Ele precisava de um triunfo: a exibição fabulosa do poderio de Roma,repleta de prisioneiros, escravos e despojos para conquistar os cidadãosdescontentes e infundir terror nos corações dos súditos. Assim, logo aoassumir o trono, Vespasiano decidiu-se por completar a tarefa que haviadeixado inacabadana Judeia.Elenão iria simplesmenteanular a rebeliãojudaica – isso seria insu iciente para seu objetivo. Ele iria aniquilartotalmente os judeus. Iria varrê-los da face da terra. Devastar seusterritórios.Queimarseutemplo.Destruirseuculto.Matarseudeus.

DesuaelevadaposiçãoemRoma,Vespasianomandoudizeraseu ilhoTito que marchasse imediatamente para Jerusalém e não poupassenenhuma despesa para levar a rebelião dos judeus a um im rápido edecisivo.Oqueoimperadornãopoderiasabereraquearebeliãoestavaàbeiradeentraremcolapsoporcontaprópria.NãomuitotempodepoisdoassassinatodeMenahemedeossicáriosteremsidobanidosdeJerusalém,os rebeldes começaram a se preparar para a invasão romana que elespreviamcomocerta.Osmurosquecercavamacidadeforamforti icadosepreparativos foram feitos para reunir tanto equipamento militar quantoestavadisponível.Espadase lechasforamcoletadas,armaduras,forjadas,catapultasebolasdebalista,empilhadasaolongodoperímetrodacidade.

Osrapazesforamrapidamentetreinadosemcombatecorpoacorpo.TodaacidadeestavaempânicoenquantoosrebeldestomavamsuasposiçõeseesperavamqueosromanosvoltassempararecuperarJerusalém.

Masosromanosnuncavieram.Osrebeldescertamenteestavamcientesdadevastaçãoocorrendoaoseuredor.Cadadiaumahordaderefugiadosferidos e sangrando chegava a Jerusalém – a cidade mal cabia em suasfronteiras. Mas as represálias romanas tinham sido, até então, dirigidasexclusivamente ao campo e aos principais redutos rebeldes, comoTiberíades,GamalaeGischala.Quantomaistempoosrebeldesesperavampela chegada dos romanos a Jerusalém, mais fracionada e instável setornavaaliderançadacidade.

Logo no início, formara-se um tipo de governo de transição, compostoprincipalmente por membros da aristocracia sacerdotal que tinham sejuntado à rebelião, muitos deles com relutância. Essa chamada facção“moderada” era a favor de chegar a um acordo comRoma, se isso aindafosse possível. Eles queriam render-se incondicionalmente, implorar pormisericórdia e apresentar-se mais uma vez ao domínio romano. Osmoderados desfrutavam de uma boa dose de apoio em Jerusalém,especialmente entre os judeusmais ricos, que estavam procurando umamaneira de preservar o seu status e sua propriedade, para não falar daprópriavida.

MasumafacçãoaindamaiorecommaisvozestavaconvencidadequeDeushavialevadoosjudeusàguerracontraRoma,equeDeusoslevariaàvitória. As coisas poderiam parecer sombrias no momento, e o inimigo,invencível.Mas isso fazia parte do plano divino deDeus.Os profetas nãotinham advertido que nos últimos dias “os lugares semeados devemparecernãosemeadoseosdepósitosdeverãoserencontradosvazios” (2Esdras 6:22)? No entanto, se os judeus permanecessem iéis ao Senhor,então muito em breve veriam Jerusalém vestida de glória. As trombetassoariam e todos os que as ouvissem seriam atingidos pelo medo. Asmontanhas seachatariamea terra seabririaparaengoliros inimigosdeDeus.Tudooqueeranecessárioerafé.Féezelo.

Àfrentedessegrupoexistiaumacoalizãodecamponeses,sacerdotesdeordens inferiores,ganguesdebandidoserefugiadosrecém-chegadosquese juntaram para formar uma facção revolucionária chamada partidozelota.Pobres,piedososeantiaristocráticos,osmembrosdopartidozelotaqueriampermanecer iéisà intençãooriginaldarevolta:puri icaraTerraSantaeestabelecerogovernodeDeusna terra.Eleseramviolentamente

contrários ao governo de transição e seus planos para a rendição dacidade a Roma. Aquilo era uma blasfêmia. Era traição. E o partido zelotaconheciabemapuniçãoparaambas.

OpartidozelotadominouopátiointeriordoTemplo,queerapermitidoapenas aos sacerdotes, e a partir daí desencadeou uma onda de terrorcontra os que eram considerados insu icientemente leais à rebelião: aaristocracia rica, os judeusde classe alta, os antigosnobresherodianos eosex-líderesdoTemplo,ossumossacerdotese todosaquelesquefossemdo lado moderado. Os líderes do partido zelota formaram seu própriogovernoparaleloesortearamqualdelesseriaopróximosumosacerdote.A sorte saiu para um camponês analfabeto chamado Fanni, ilho deSamuel,que,trajadocomasvestesvistosasdosumosacerdote,foicolocadodiante da entrada do Santo dos Santos para que lhe ensinassem comorealizar os sacri ícios, enquanto os remanescentes da nobreza sacerdotalassistiamdelonge,chorandocomoqueelesentendiamcomoaprofanaçãodesuasantalinhagem.

Àmedidaqueoderramamentodesangueeasbatalhas internasentregrupos rivais continuavam,mais refugiados inundavama cidade, jogandolenha na fogueira de sectarismo e discórdia que ameaçava engolir todaJerusalém.Comosmoderadossilenciados,haviaagoratrêsprincipaisladosque disputavam entre si o controle da cidade. Enquanto o partido zelota,comcercade2.500homens,mantinhaopátiointeriordoTemplo,ospátiosexteriores caíram nasmãos do ex-líder da rebelião em Gischala, um ricourbanita chamado João, que por pouco havia escapado da destruiçãoromanaemsuacidade.

Nocomeço, JoãodeGischala juntouseubandoaopartidozelota, comoqual compartilhava adevoção aosprincípios religiososda revolução. Se opróprioJoãopoderiaserchamadodezelotaédi ícildizer.Era,semdúvida,um nacionalista feroz, com um ódio profundo de Roma em ummomentoem que o sentimento nacional e a expectativa messiânica eramindissociáveis. Ele chegou a derreter os vasos sagrados do Templo paratransformá-los em instrumentos de guerra com os quais combater osexércitos de Roma. Mas uma luta pelo controle do Templo inalmenteforçou João a romper comopartido zelota e formar suaprópria coalizão,queconsistiaemcercade6milcombatentes.

OterceiroemaiorgruporebeldeemJerusalémeralideradoporSimão,ilho de Giora, um dos chefes dos bandidos que lutaram contra o assaltoinicial a Jerusalém por Céstio Galo. Simão passara o primeiro ano da

revolta judaica vasculhando a região da Judeia, saqueando as terras dosricos, libertando escravos e ganhando reputação como defensor dospobres.ApósumabreveestadacomossicáriosemMasada,SimãochegouaJerusalémcomumenormeexércitopessoalde10milhomens.Noinício,a cidade acolheu-o, esperando que ele pudesse controlar os excessos dopartidozelotaecortarasasasdeJoãodeGischala,queestavasetornandocada vez mais autoritário. Embora Simão não tivesse sido capaz dearrebataroTemplodequalquerumdosseusrivais,eleconseguiutomarocontrolesobreamaiorpartedascidadesaltaebaixa.

No entanto, o que realmente separava Simão do resto dos líderesrebeldes em Jerusalém é que, desde o início, ele descaradamenteapresentou-secomomessiaserei.ComoMenahemantesdele,Simãovestiumantos reais e des ilou pela cidade como seu salvador. Declarou-se“Mestre de Jerusalém” e usou sua posição divinamente ungida paracomeçar a acertar as contas e executar os judeus de classe alta a quemsuspeitava de traição. Como resultado, Simão, ilho de Giora, acabou porser reconhecido como o comandante supremo da fraturada rebelião – ebemnahora.PoistãologoSimãotinhaconsolidadosuaautoridadesobreorestodosgruposrebeldes,Titoapareceuàsportasdacidade,comquatrolegiõesromanasareboque,exigindoarendiçãoimediatadeJerusalém.

De repente, o sectarismo e as rixas entre os judeus deram lugar aospreparativosfrenéticosparaoataqueromanoiminente.MasTitonãotinhapressa ematacar. Emvezdisso, ordenou a seus homens a construçãodeummuro de pedra ao redor de Jerusalém, prendendo todos lá dentro ecortandotodooacessoàcomidaeàágua.Ele,então,montouacampamentono Monte das Oliveiras, de onde tinha uma visão desobstruída dapopulaçãodacidadeenquantoelalentamentemorriadefome.

Eafomequeseseguiufoihorrível.Famíliasinteirasmorreramemsuascasas.Asruasestavamcheiasdecorposdemortos;nãohaviaespaçonemforça para enterrá-los corretamente. Os habitantes de Jerusalém searrastavamatravésdosesgotosembuscadealimento.Aspessoascomiamestrumedevacaetufosdecapimseco.Rasgavamemastigavamocourodecintos e sapatos. Houve relatos dispersos de judeus que sucumbiram ecomeram os mortos. Aqueles que tentavam fugir da cidade eramfacilmente capturados e cruci icados no Monte das Oliveiras, para quetodospudessemver.

Teria sido su iciente para Tito simplesmente esperar que a populaçãomorresseporcontaprópria.Elenãoterianecessidadededesembainhara

espadaparaderrotarJerusalémeacabarcomarebelião.Masnãofoiparafazer isso que seu pai o enviara. Sua tarefa não era submeter os judeuspela fome, era erradicá-los da terra que alegavam como sua. E assim, noinaldeabrilde70d.C.,quandoamorteespreitavaacidadeeapopulaçãoperecia às centenas de fome e sede, Tito reuniu suas legiões e invadiuJerusalém.

Osromanoslançaramplataformasaolongodasparedesdacidadealtaecomeçaramabombardearosrebeldescomartilhariapesada.Construíramum grande aríete que facilmente violou o primeiromuro que circundavaJerusalém. Quando os rebeldes retiraram-se para uma segunda paredeinterior, esta também foi violada e as portas, incendiadas. Enquanto aschamas lentamente feneciam,acidade foiexposta,nua,paraas tropasdeTito.

Os soldados lançaram-se sobre todos – homem,mulher, criança, ricos,pobres,osquehaviamsejuntadoàrebelião,osquesemantiveram iéisaRoma,osaristocratas,os sacerdotes.Não faziadiferença.Elesqueimaramtudo.Acidadeinteiraestavaemchamas.Orugidodofogosemisturavaaosgritosde agonia àmedidaqueo enxame romanovarria a cidade alta e abaixa,espalhandocorpospelochão,chapinhandoatravésdecorrentesdesangue, literalmente escalando montes de cadáveres em busca dosrebeldes,atéquepor imoTemploestavadiantedeles.Comoúltimodoscombatentes rebeldes preso no pátio interno, os romanos incendiaramtodo o complexo, fazendo parecer que o Monte do Templo estivessefervendoemsuabasecomsanguee fogo.AschamasenvolveramoSantodosSantos,amoradadoDeusdeIsrael,eofezcairnochãoemumapilhade cinzas e pó.Quando o fogo inalmente diminuiu, Tito deu ordens paradestruir o que restava da cidade, para que nenhuma geração futurasequerlembrasseonomedeJerusalém.

Milharespereceram,emboraSimão, ilhodeGiora–Simão,ofracassadomessias–, tenhasidocapturadovivoparapoder serarrastadodevoltaaRoma,acorrentado,paraoTriunfoqueVespasiano tinhaprometidoaseupovo. JuntocomSimãoseguiramos tesourossagradosdoTemplo:amesade ouro e os pães da proposição oferecidos ao Senhor, o candelabro e amenorá de sete braços, os queimadores de incenso e os copos, astrombetas e os vasos sagrados. Tudo isso foi carregado em procissãotriunfal pelas ruas de Roma, enquanto Vespasiano e Tito, coroados delourosevestidoscomvestesroxas,assistiamcomsilenciosadeterminação.Finalmente, no inal da procissão, o último dos despojos era carregado

paraque todospudessemver:umacópiadaTorá, o símbolo supremodareligiãojudaica.

O ponto de Vespasiano era bem claro: esta tinha sido uma vitória nãosobre umpovo,mas sobre o seu deus.Não era a Judeia,mas o judaísmoque havia sido derrotado. Tito apresentou publicamente a destruição deJerusalémcomoumatodepiedadeeumaoferendaaosdeuses romanos.Nãotinhasidoelearealizartaltarefa,alegou.Eletinhaapenasentregadosuasarmasparaoseudeus,quetinhamostradosuairacontraodeusdosjudeus.

Extraordinariamente, Vespasiano decidiu renunciar à prática habitualdoevocatio, pela qual um inimigo vencido tinha a opção de adorar o seudeus em Roma. Não só os judeus seriam proibidos de reconstruir o seutemplo, direito oferecido a quase todos os outros povos dominados doImpério,comoseriamobrigadosapagarumimpostodeduasdracmasporano, a quantidade exata que homens judeus antes pagavam, em shekels,para o Templo em Jerusalém, a im de ajudar a reconstruir o Templo deJúpiter,acidentalmenteincendiadoduranteaguerracivilromana.Todososjudeus – não importa onde no Império vivessem, não importa o quantotivessempermanecido leaisaRoma,não importa se tinham tomadopartenarebeliãoounão–,todososjudeus,incluindomulheresecrianças,eramagora obrigados a pagar para a manutenção do culto pagão central deRoma.

Daí em diante, o judaísmo não seria mais considerado um cultorespeitável. Os judeus eram agora o eterno inimigo de Roma. Embora atransferência de população em massa nunca tivesse sido uma políticaromana,Romaexpulsou todosos judeussobreviventesde Jerusalémedeseussubúrbios,vindoarenomearacidadecomoAeliaCapitolina,ecolocoutoda a região sob direto controle imperial. Toda a Palestina tornou-sepropriedade pessoal de Vespasiano, e os romanos se esforçaram paracriar a impressão de que nunca houvera qualquer judeu em Jerusalém.Porvoltadoano135d.C.,onomedeJerusalémdeixoudeexistiremtodososdocumentosoficiaisromanos.

Para os judeus que sobreviveram ao banho de sangue – aquelesamontoados nus e esfomeados atrás dos muros desabados das cidades,assistindo com horror aos soldados romanos urinarem sobre as cinzasfumegantes da Casa de Deus –, era perfeitamente claro quem era oculpado pelamorte e a devastação. Com certeza não tinha sido o SenhordosExércitos d quehavia trazido tantadestruição sobre a cidade sagrada.

Não.Foramos lestai,osbandidoseosrebeldes,oszelotaseossicários,osrevolucionários nacionalistas que haviam pregado a independência deRoma, os chamados profetas e falsos messias, que haviam prometido asalvação de Deus em troca de sua lealdade e zelo. Eles foram osresponsáveispeloataqueromano.ElesforamosúnicosaquemDeushaviaabandonado.

Nos anos seguintes, os judeus começaramadistanciar-se tantoquantopossível do idealismo revolucionário que levou à guerra com Roma. Elesnão abandonariam completamente as expectativas apocalípticas. Pelocontrário, escritos apocalípticos loresceriam durante o próximo século,re letindo o desejo contínuo de libertação divina do domínio romano. Osefeitosprolongadosdesse fervormessiânico levarammesmoàeclosãodeumabrevesegundaguerrajudaicacontraRoma,em132d.C.,lideradapelomessiasconhecidocomoSimão, ilhodeKochba.Namaiorpartedasvezes,noentanto,osrabinosdoséculoIIeramcompelidospelascircunstânciasepelomedo de represália romana a desenvolverem uma interpretação dojudaísmo que se desviava do nacionalismo. Eles passariam a ver a TerraSanta em termos mais transcendentais, promovendo uma teologiamessiânicaquenegavaambiçõespolíticasevidentes,àmedidaqueosatosdepiedadeeoestudodaleitomavamolugardossacri íciosnoTemplonavidadosjudeusobservantes.

Masissoestavaamuitosanosdedistância.Naqueledia–odiaemqueos restos espancados e ensanguentados da antiga nação judaica foramarrancadosdesuascasas,deseuTemplo,deseuDeus,eobrigadosasairda Terra Prometida para a terra dos pagãos e idólatras –, tudo o quepareciacertoéqueomundocomoelesoconheciamtinhachegadoaofim.

Enquanto isso, naRoma triunfante, pouco tempo depois que o TemplodoSenhortinhasidoprofanado,anação judaicaespalhadaaosventoseareligiãotransformadaempária,atradiçãodizqueumjudeuchamadoJoãoMarcos pegou sua pena e compôs as primeiras palavras do primeiroevangelhoescritosobreomessiasconhecidocomoJesusdeNazaré–enãoemhebraico, a língua deDeus, nem em aramaico, a língua de Jesus,masem grego, a língua dos pagãos. A língua do impuro. A língua dosvencedores.

Esteéocomeçodasboas-novasdeJesus,oCristo.

dUmtermobastantefrequente,noVelhoTestamento,paraYaweh,Deus.(N.T.)

ParteII

OespíritodoSenhorDeusestásobremimPorqueoSenhormeungiuParatrazerumaboanotíciaparaosmansos;Enviou-meparacurarosdecoraçãopartido,ParaproclamaraliberdadedoscativosElibertarosprisioneirosqueestãoamarrados;ParaproclamaroanodagraçadoSenhor,EodiadavingançaparanossoDeus.

(ISAÍAS61:1-2)

Prólogo:Zeleporsuacasa

DE TODAS AS HISTÓRIAS contadas sobre a vida de Jesus deNazaré, há uma –retratada em inúmeras peças de teatro, ilmes, pinturas e sermões dedomingo – que, mais do que qualquer outra palavra ou ação, ajuda arevelarquemeraJesuseoqueJesusquisdizer.Éumdospoucoseventosdo ministério de Jesus atestado por todos os quatro evangelhoscanonizados, Mateus, Marcos, Lucas e João – o que acrescenta algumamedida de peso para sua historicidade. No entanto, todos os quatroevangelistasapresentamessemomentograndiosode formacasual,quasefugaz, como se fossemalheios ao seu signi icado ou,mais provavelmente,deliberadamente subestimassem um episódio cujas implicações radicaisteriamsido imediatamentereconhecidaspor todosqueo testemunharam.TãoreveladoréessemomentoúniconabrevevidadeJesusqueporsisópode serusadopara esclarecer suamissão, sua teologia, suapolítica, suarelaçãocomasautoridadesjudaicas,suarelaçãocomojudaísmoemgerale sua atitude em relação à ocupação romana.Acimade tudo, esse eventosingular explica por que um simples camponês das baixas colinas daGalileiaeravistocomoumaameaçaaosistemaestabelecidoapontodesercaçado,preso,torturadoeexecutado.

O ano é 30 d.C. e Jesus acaba de entrar em Jerusalém,montado numjumentoe ladeadoporumamultidãofrenéticagritando:“Hosana!BenditooquevememnomedoSenhor!BenditosejaoreinovindourodenossopaiDavi!”Opovo, emêxtase, cantahinosde louvoraDeus.AlgunsespalhamcapasnaruaparaJesuspassarporcima,assimcomoosisraelitas izeramparaJeúquandofoideclaradorei(2Reis9:12-13).Outroscortampalmase as acenam no ar, em memória dos macabeus heroicos que libertaramIsraeldo domínio estrangeiro dois séculos antes (1Macabeus 13:49-53).Todo o espetáculo foi meticulosamente orquestrado por Jesus e seusseguidores, em cumprimento da profecia de Zacarias: “Alegra-temuito, óilha de Sião; grite, ilha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti, justo evitorioso, humilde e montado sobre um jumento, sobre um jumentinho,

filhodeumjumento.”(Zacarias9:9)A mensagem transmitida aos habitantes da cidade é inconfundível: o

aguardadomessias–overdadeiroreidosjudeus–veioparalibertarIsraeldaescravidão.

TãoprovocantecomoessasuaentradaemJerusalémpossaser,issonãoé nada em comparação ao que Jesus faz no dia seguinte. Com seusdiscípulose,supõe-se,comamultidãoalouvá-loareboque,JesusentranopátiopúblicodoTemplo–oPátiodosGentios–ecomeçaa“limpá-lo”.Numacesso de raiva, ele derruba as mesas dos cambistas e expulsa osvendedores de comida barata e souvenirs. Solta as ovelhas e o gadoprontos a serem vendidos para sacri ício e abre as gaiolas de pombas epombos,colocandoasavesemfuga.“Tiraiessascoisasdaqui!”,elegrita.

Com a ajuda de seus discípulos, ele bloqueia a entrada do pátio,proibindo qualquer pessoa que transporte mercadorias para venda ouescambodeentrarnoTemplo.Então,enquantoamultidãodevendedores,iéis, sacerdotes e curiosos embaralha-se sobre os detritos espalhados,enquantoosanimaispartemassustadosemdebandada,perseguidospelosproprietários em pânico, correndo freneticamente para fora dos portõesdo Templo e para as ruas lotadas de Jerusalém, enquanto uma tropa deguardas romanos e de policiais do Templo fortemente armados invade opátio procurando prender quem quer que seja responsável pelo caos, láestáJesus,segundoosevangelhos,distante,aparentementeimperturbável,gritandoacimadobarulho:“Estáescrito:aminhacasaseráchamadacasadeoraçãoparatodasasnações.Masvósfizestesdelaumcovildeladrões.”

As autoridades estão iradas, e com razão. Não há nenhuma lei queproíba a presença de vendedores no Pátio dos Gentios. Outras partes doTemplo podem ter sido sacrossantas e fora dos limites para os coxos, osdoentes,osimpurose,maisespecialmente,paraasmassasdegentios.Maso átrio exterior era um local livre para todos, que servia tanto como umbazar movimentado quanto como a sede administrativa do Sinédrio, oconselhojudaicosupremo.Oscomercianteseoscambistas,quevendemosanimaisparaosacri ício,osimpuros,osgentioseoshereges,todostinhamdireitodeentrarnoPátiodosGentioscomoquisessemeláfazernegócios.Nãoédeseestranhar,portanto,queossacerdotesdoTemploexijamsaberexatamentequemesseagitadorpensaqueé.Comqueautoridadeeletema pretensão de limpar o Templo? Que sinal ele pode oferecer parajustificarumatotãodescaradamentecriminoso?

Jesus,comoéseucostume,ignoraessasquestõescompletamentee,em

vez disso, responde com a sua profecia enigmática. “Destruam esteTemplo”,elediz,“eemtrêsdiaseuoreerguerei.”

A multidão ica muda, tanto que aparentemente não percebe Jesus eseusdiscípuloscalmamentesaíremdoTemploecaminharemparaforadacidade, tendo terminado de tomar parte no que as autoridades romanasteriam considerado uma ofensa capital: sedição, punível por cruci icação.A inal de contas, um ataque aos negócios do Templo é semelhante a umataque à nobreza sacerdotal, o que, considerando-se a relaçãoemaranhadadoTemplocomRoma,equivaliaaumataqueàprópriaRoma.

Ponhadeladoporummomentoosséculosdeacrobaciasexegéticasqueforam lançadas sobre esse episódio confuso no ministério de Jesus,examineocasoapartirdeumaperspectivapuramentehistóricaeacenasimplesmente confunde a mente. Não é a precisão da profecia de Jesussobre o Templo que nos preocupa. Os evangelhos foram escritos após adestruição doTemplo em70 d.C.; a advertência de Jesus a Jerusalém, deque “dias virão em que teus inimigos criarão muralhas a teu redor e tecercarãoeesmagarãonochão–atieateus ilhos–,enãodeixarãoemtipedra sobre pedra” (Lucas 19:43-44), foi colocada em sua boca pelosevangelistasapósofato.Emvezdisso,oqueésignificativosobreoepisódio– o que é impossível de ignorar – é a forma como são lagrante einescapavelmentezelosasasaçõesdeJesusnoTemplo.

Os discípulos certamente reconhecem isso. Observando Jesus quebrarjaulas e chutar mesas em alvoroço, o evangelho de João diz que osdiscípulosforam lembrados das palavras do rei Davi, que gritou: “Zelarpelatuacasameconsumiu”(João2:17;Salmos69:9).

AsautoridadesdoTemplotambémreconhecemozelodeJesusecriamum ardiloso enredo para levá-lo a se implicar como um revolucionáriozelota.AvançandoatéJesusàvistadetodosospresentes,elesperguntam:“Mestre, sabemos que és verdadeiro, que ensinas o caminho de Deussegundoaverdadeequenãoreverenciasnenhumhomem.Diz-nos:élícitopagarotributoaCésarounão?”

Essa não é uma pergunta simples, claro. É o teste essencial dopertencimento à crença zelota. Desde a revolta de Judas, o Galileu, aquestãodesabersealeideMoiséspermitiapagartributosaRomatornou-se a característica distintiva dos que aderiam aos princípios zelotas. Oargumento era simples e entendidopor todos: a demandade tributo porRomademonstravanadamenosdoqueumareivindicaçãodepropriedadesobreaterraeseushabitantes.MasaterranãopertenciaaRoma.Aterra

pertencia a Deus. César não tinha direito a receber tributo, porque nãotinhadireitoà terra.Aoperguntara Jesussobrea legalidadedo tributoaRoma, as autoridades religiosas estavam fazendo-lhe uma perguntatotalmentediferente:vocêéounãoéumzelota?

“Mostrai-me um denário”, diz Jesus, referindo-se à moeda romanausadaparapagarotributo.“Dequeméestaimagemeestainscrição?”

“ÉdeCésar”,asautoridadesrespondem.“Bem, então, devolvei a César a propriedade que pertence a César, e

devolveiaDeusapropriedadequepertenceaDeus.”É surpreendente que séculos de estudos bíblicos tenham deturpado

essaspalavrascomoumapelode Jesusparapôrde ladoas “coisasdestemundo” – os impostos e tributos – e concentrar o coração, em vez disso,nas únicas coisas que importam: a adoração e a obediência a Deus. Talinterpretação acomoda perfeitamente a percepção de Jesus como umespírito celeste destacado, totalmente despreocupado com questõesmateriais, uma a irmação curiosa sobre umhomemque não só viveu emumdosperíodosmaispoliticamentecarregadosnahistóriade Israel,masquea irmavaseroprometidomessiasenviadopara libertaros judeus daocupação romana. Namelhor das hipóteses, a resposta de Jesus foi vistacomo um débil compromisso entre as posições sacerdotais e as zelotas –entre os que achavam lícito pagar o tributo a Roma e os que nãoconcordavamcomisso.

Averdadeéquea respostade Jesusé adeclaraçãomais claraque sepodeencontrarnosevangelhossobreonde,exatamente,elesesituavanodebate entre sacerdotes e zelotas, e não sobre a questão do tributo,massobre a questão muito mais signi icativa da soberania de Deus sobre aterra. As palavras de Jesus falampor si: “Devolvei (apodidomi) a César apropriedade que pertence a César…” O verbo grego apodidomi, muitasvezes traduzido como “tornar-se”, é na verdade uma palavra composta:apo é uma preposição que nesse caso signi ica “retorno”;didomi é umverbo que signi ica “dar”.Apodidomi é usado especi icamente quando sepaga a alguém uma propriedade sobre a qual se tem direito; a palavraimplicaqueapessoaquerecebeopagamentoéolegítimoproprietáriodacoisaqueestásendopaga.Emoutraspalavras,deacordocomJesus,Césartem direito a “receber de volta” a moeda de denário não porque elemereça o tributo, mas porque é a sua moeda: seu nome e imagem estãoestampados nela. Deus não temnada a ver com isso. Por extensão, Deustemodireitode“receberdevolta”aterraqueosromanostomarampara

si, porque é a terrade Deus: “A terra é minha”, diz o Senhor (Levítico25:23).Césarnãotemnadaavercomisso.

Então,devolvaaCésaroqueédele,edevolvaaDeusoquepertenceaDeus. Esse é o argumento zelota em sua formamais simples e concisa. Eparece ser su iciente para as autoridades em Jerusalém rotularemimediatamenteJesuscomolestes.Umbandido.Umzelota.

Alguns dias depois, após compartilhar em segredo uma refeição doPêssach, Jesus e seus discípulos dirigem-se na escuridão da noite para oJardim do Getsêmani, para se esconder entre os arbustos e as oliveirasretorcidas.Éaqui,naencostaocidentaldoMontedasOliveiras,nãomuitolongedeonde,algunsanosmaistarde,ogeneralromanoTitoirialançarocercosobreJerusalém,queasautoridadesvãoencontrá-lo.

“Vós viestes aqui com espadas e clavas para me prender como a umbandido[lestes]?”,Jesuspergunta.

Foiporissoexatamentequeelesvieramprendê-lo.OevangelhodeJoãodiz que uma “coorte” (speira) de soldados marchou para o Getsêmani –uma unidade formada por algo entre trezentos e seiscentos guardasromanos – juntamente com a polícia do Templo, todos levando “tochas earmas” (João18:3). João estáobviamente exagerando.Masos evangelhosconcordamtersidoumgrupograndee fortementearmadoqueveioparaprenderJesusnomeiodanoite.Essademonstraçãodeforçapodeexplicarporque,antesde irparaoGetsêmani, Jesus fezcomqueseusseguidoresestivessemarmadostambém.

“Se tu não tens uma espada”, Jesus instrui seus discípulosimediatamente após a refeição do Pêssach, “vai vender teu manto ecomprauma.”

“Mestre”,osdiscípulosrespondem,“aquiestãoduasespadas.”“Éosuficiente”,dizJesus(Lucas22:36-38).Não seria. Depois de uma breve mas sangrenta disputa com os

discípulos, os guardas prendem Jesus e o levam para as autoridades deJerusalém,ondeeleéacusadodesedição,entreoutrascoisas,“proibindoopagamentode tributo aRoma”, umaacusaçãoque Jesusnãonega (Lucas23:2).

Declarado culpado, Jesus é enviado aoGólgota para ser cruci icado aolado de dois outros homens, que são especi icamente chamados lestai,bandidos (Mateus27:38-44;Marcos15:27).Tal comoacontececomtodosos criminosos pendurados em uma cruz, a Jesus é dada uma placa, outitulus,detalhandoocrimepeloqualestá sendocruci icado.Notitulus de

Jesus se lê rei dos judeus. Seu crime: lutar pelo poder real – sedição. Eassim, como todobandido e revolucionário, todo agitador zelota e profetaapocalípticoqueveioantesoudepoisdele,comoEzequiaseJudas,TeudaseAtronges,oEgípcioeoSamaritano,Simão, ilhodeGiora,eSimão, ilhodeKochba – Jesus deNazaré é executado por ousar reivindicar omanto dereiemessias.

Paraserclaro,Jesusnãoeraummembrodopartidozelotaquelançouaguerra contra Roma, porque não se pode dizer que tal partido existissesenão trinta anos após sua morte. Nem era Jesus uma violentorevolucionário defendendo a rebelião armada, embora seus pontos devistasobreousodaviolênciasejammuitomaiscomplexosdoquemuitasvezesseadmite.

MasolheatentamenteparaaspalavraseaçõesdeJesusnoTemploemJerusalém–oepisódioque,semdúvida,precipitousuaprisãoeexecução–eessefatotorna-sedi ícildenegar:Jesusfoicruci icadoporRomaporquesuas aspirações messiânicas ameaçavam a ocupação da Palestina e suaexasperada devoção colocava em perigo as autoridades do Templo. Essefato singular deveria colorir tudo o que lemos nos evangelhos sobre omessiasconhecidocomoJesusdeNazaré,desdeosdetalhesdesuamorteem uma cruz no Gólgota até o lançamento de seuministério público, nasmargensdorioJordão.

7.Avozclamandonodeserto

JOÃO BATISTA SAIU do deserto como uma aparição – um homem selvagemvestido com pelos de camelo, um cinto de couro amarrado na cintura,alimentando-sedegafanhotosemelsilvestre.Eleviajouocomprimentodorio Jordão,atravésda JudeiaedaPereia,pelaBetâniaeAenon,pregandoumamensagemsimpleseterrível:o imestavapróximo.OReinodeDeusestavapróximo.EaidaquelesjudeusquepensavamquesuadescendênciadeAbraãoiriasalvá-losdojuízoqueseaproximava.

“Omachadojáestácolocadojuntoàraizdaárvore”,alertouJoão,“etodaárvorequenãoproduzbonsfrutosserácortadaelançadaaofogo.”

Para os ricos que vinham a ele em busca de conselhos, João dizia: “Oque tem duas túnicas deve compartilhar com quem não tem nenhuma,aquelequetiveralimentosdevefazeromesmo.”

Para os coletores de impostos que lhe perguntavam o caminho dasalvação,eledizia:“Nãocobrainadaalémdaquiloquefoiestabelecidoparavóscobrardes.”

Para os soldados que pediam orientação, ele dizia: “Não intimidai, nãochantageaiecontentai-voscomvossossalários.”

Notícias do Batista se espalhavam rapidamente por toda a região. Aspessoas vinham de tão longe como a Galileia, algumas viajando por diasatravésdoseverodesertodaJudeiaparaouvi-lopregaràsmargensdorioJordão.Umavez lá, elas retiravamsuas vestes exteriores e atravessavampara amargem leste, onde João esperava para levá-las pelamão. Uma auma,eleasmergulhavanaságuasvivas.Quandosaíam,cruzavamdevoltapara a margem ocidental do rio Jordão, como seus antepassados tinhamfeito mil anos antes – de volta para a terra prometida por Deus. Dessaforma, os batizados se tornavam anova nação de Israel: arrependida,redimidaeprontaparareceberoReinodeDeus.

À medida que as multidões que a luíam para o Jordão se tornavammaiores, as atividades do Batista chamaram a atenção de Antipas (“aRaposa”), ilho de Herodes, o Grande, cuja tetrarquia incluía a região daPereia, na margem oriental do rio. Se acreditarmos na narrativa doevangelho, Antipas prendeu João porque ele criticou seu casamento com

Herodias, que era a esposa de seu meio-irmão (também chamado deHerodes). Não satisfeito com apenas encarcerar João, a astuta Herodiasarquitetouumplanoparamatá-lo. Por ocasiãodo aniversáriodeAntipas,Herodias obrigou sua ilha, a sensual e sedutora Salomé, a executar umadançalascivaparaseutioepadrasto.Tãoexcitado icouovelholibidinosotetrarcapelosmovimentosde Saloméque ele imediatamente lhe fezumapromessafatal.

“Peça-meoquequiseres”,arfouAntipas, “eeuodareia ti,mesmoquesejaametadedomeureino.”

Saloméconsultouamãe.“Quedevopedir?”“AcabeçadeJoãoBatista”,respondeuHerodias.Infelizmente, o relato do evangelho não deve ser acreditado. Pormais

deliciosamente escandalosa que a história da execução de João Batistapossa ser, ela está repleta de erros e imprecisões históricas. Osevangelistasidenti icamerradamenteoprimeiromaridodeHerodiascomoFilipe, e parecem confundir o local da execução de João, a fortaleza deMaqueronte, comacortedeAntipasnacidadedeTibério.Todaahistóriado evangelho parece um conto fantástico com ecos deliberados do relatobíblicodoconflitodeEliascomJezebel,mulherdoreiAcabe.

A explicação mais prosaica, porém muito mais con iável, da morte deJoão Batista pode ser encontrada na obraAntiguidades, de Josefo. Deacordo como autor, Antipas temia que a crescente popularidade de Joãolevasse a uma insurreição, “pois as pessoas pareciam dispostas a fazerqualquercoisaqueeleaconselhasse”. Issopode ter sidoverdade.OavisodeJoãosobreachegadadairadeDeuspodenãotersidonovoouoriginalnaPalestinadoséculoI,masaesperançaqueeleofereceuàquelesquesepuri icaram, que se izeramnovos e procuraram o caminho da honradezteve enorme apelo. João prometeu aos judeus que foram a ele uma novaordem mundial, o Reino de Deus. E embora ele pareça nunca terdesenvolvido o conceito muito além de uma vaga noção de igualdade ejustiça, a promessa em si já era su iciente, naquele sombrio e turbulentoperíodo, para levar até eleumaondade judeusde todosos tipos, ricos epobres,poderososefracos.AntipastinharazãoemtemerJoão,poisatéosseus soldados estavam se dirigindo a ele. Mandou então que ocapturassem, acusou-o de sedição e enviou-o para a fortaleza deMaqueronte,ondeoBatistafoimortosemalardeemalgummomentoentre28e30d.C.

No entanto, a fama de João sobreviveu em muito a ele. De fato, essa

fama sobreviveu aAntipas, pois se acreditava amplamenteque aderrotado tetrarca nas mãos do rei nabateu Aretas IV, em 36 d.C., seu exíliosubsequenteeaperdadeseutítuloesuaspropriedadeseramumcastigodivinoporeleterexecutadoJoão.MuitotempodepoisdamortedoBatista,osjudeusaindaestavamponderandosobreosigni icadodesuaspalavrase atos; seusdiscípulos aindaestavamvagandopela Judeia epelaGalileia,batizando as pessoas em seu nome. A vida e a lenda de João forampreservadas em “tradições batistas” independentes, compostas emhebraicoe aramaicoedivulgadasde cidadeemcidade.Muitospensavamque ele era o messias. Alguns pensavam que ele iria ressuscitar dosmortos.

Apesar de sua fama, no entanto, ninguém parece ter sabido então –comoninguémsabehoje–quem,exatamente,eraJoãoBatistaoudeondeele tinha vindo. O evangelho de Lucas apresenta um relato fantástico dalinhagemdeJoãoeseunascimentomilagroso,queamaioriadosestudiososrejeita. Se houver alguma informação histórica a ser obtida a partir doevangelhodeLucas,noentanto,équeJoãopodetervindodeumafamíliasacerdotal; seu pai, diz Lucas, pertencia à ordem sacerdotal de Abias(Lucas1:5).Seissofosseverdade,eradeesperarqueJoãotivesseaderidoàlinhagemsacerdotaldopai,emboraopregadorapocalípticoquesaiudodeserto “não comendo pão nem bebendo vinho” tenha claramenterejeitado suas obrigações de família e seus deveres para com o Temploparalevarumavidadeascetismonodeserto.Talvezfosseessaafontedaimensa popularidade de João entre as massas: ele mesmo teria sedespojadodosprivilégiossacerdotaisdemodoaofereceraos judeusumanova fontede salvação, umaquenão tinhanada a ver comoTemplo e odetestávelsacerdócio:obatismo.

Narealidade,batismoserituaisdeáguaerambastantecomunsemtodoo antigo Oriente Próximo. Bandos de “grupos de batismo” percorriam aSíriaeaPalestinainiciandoos iéisemsuasordensimergindo-osemágua.Gentios convertidos ao judaísmo muitas vezes tomavam um banhocerimonial para livrar-se de sua antiga identidade e entrar na triboescolhida.Osjudeusreverenciavamaáguaporsuasqualidadesliminares,acreditandoqueelatinhaopoderdetransportarumapessoaouobjetodeumestadoaoutro:dosujoao limpo,doprofanoaosagrado.ABíbliaestárepleta de práticas de ablução: objetos (uma tenda, uma espada) eramaspergidos com água para serem dedicados ao Senhor, as pessoas (osleprosos, as mulheres menstruadas) eram totalmente imersas em água

como um ato de puri icação. Os sacerdotes do Templo de Jerusalémderramavamágua em suasmãos antesde se aproximaremdo altar parafazer sacri ícios.O sumo sacerdote passava por uma imersão ritual antesde entrar no Santo dos Santos no Dia da Expiação (Yom Kippur), e poroutraimediatamentedepoisdetomarsobresiospecadosdanação.

Amais famosa seitadaépocaapraticar abluçõesera a jámencionadacomunidade dos essênios. Estes não eram estritamente um movimentomonástico.AlgunsviviamemcidadesealdeiasportodaaJudeia,enquantooutrossesepararamcompletamentedorestodosjudeus,emcomunidadescomo aquela emQumran, onde praticavamo celibato emantinham todosos bens em comum (os únicos itens de propriedade pessoal que osessênios em Qumran poderiam ter eram ummanto, um pano de linho euma machadinha para cavar uma latrina no deserto, quando surgisse anecessidade). Como os essênios viam o corpo ísico como vil e corrupto,eles desenvolveram um rígido sistema de banhos de imersão total quedeviasercompletadorepetidasvezesparamanterumconstanteestadodepureza ritual. No entanto, os essênios também praticavam um ritual deiniciação com água único, uma espécie de batismo, que era usado pararecebernovosrecrutasemsuacomunidade.

EssapodetersidoaorigemdoincomumritobatismaldeJoão.OpróprioJoãopodetersidoumessênio.Existemalgumasconexõestentadorasentreambos. Tanto João quanto a comunidade dos essênios estavam baseadosnaregiãododesertodaJudeia,aproximadamentenamesmaépoca:Joãoéapresentado como indopara o desertoda Judeia quandopequeno, o queestariadeacordocomapráticadosessêniosdeadotare treinaros ilhosdesacerdotes.TantoJoãoquantoosessêniosrejeitavamasautoridadesdoTemplo: os essênios mantinham um calendário distinto e suas própriasrestriçõesdietéticas,erecusavamoconceitodesacri ícioanimal,queeraaatividade principal do Templo. Ambos viam a si mesmos e a seusseguidores como a verdadeira tribo de Israel, e ambos estavam sepreparando ativamente para o im dos tempos: os essênios aguardavamansiososumaguerraapocalíptica,quando“osFilhosdaLuz”(osessênios)iriam combater “os Filhos das Trevas” (os sacerdotes do Templo) paraganhar controle sobre o Templo de Jerusalém, que os essênios iriampurificaresantificarnovamentesobasualiderança.EtantoJoãoquantoosessêniosparecemterseidenti icadocomo“avozqueclamanodeserto”deque fala o profeta Isaías: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai oscaminhos do nosso Deus” (Isaías 40:3). Todos os quatro evangelhos

atribuem esse versículo a João, enquanto para os essênios o versículoserviu como a passagemmais importante das escrituras para de inir seuconceitosobresimesmosesuacomunidade.

Mesmo assim, há diferenças su icientes entre João e os essênios parasermos cautelosos em estabelecer uma conexão muito irme entre eles.Joãoéapresentadonãocomomembrodeumacomunidade,mascomoumsolitário, uma voz solitária clamando no deserto. A sua não éabsolutamente uma mensagem exclusivista, mas sim aberta a todos osjudeus dispostos a abandonar seus maus caminhos e viver uma vida deretidão. Mais marcante, João não parece estar obcecado com a purezaritual – seu batismoparece ter sido projetado especi icamente como algoparaserfeitoumaúnicavez,enãoalgoaserrepetidodeformacontínua.João pode ter sido in luenciado pelos rituais da água de outras seitasjudaicasdaépoca,incluindoosessênios,masparecequeobatismoqueeleoferecianaságuasdorioJordãoerainspiraçãoexclusivamentesua.

Oque,então, signi icaobatismode João?OevangelhodeMarcos fazasurpreendentea irmaçãodequeoque Joãoestavaoferecendono Jordãoera “um batismo de arrependimento para a remissão dos pecados”(Marcos1:4). Anatureza inequivocamente cristã dessa frase lança sériasdúvidassobresuahistoricidade.SoamaiscomoumaprojeçãocristãsobreasaçõesdoBatistadoquealgoqueesteteriareconhecidocomoseu–mas,seissoforverdade,éumaa irmaçãoestranhaparaaIgrejaprimitivafazerarespeitodeJoão:queeleteriaopoderdeperdoarpecados,mesmoantesdeconhecerJesus.

Josefo a irma explicitamente que o batismo de João “não era para aremissãodospecados,masparaapurificaçãodocorpo”.Issofariadoritualmaisumritode iniciação,ummeiodeentraremsuaordemouseita, tesecorroborada no Livro de Atos, em que um grupo de coríntiosorgulhosamentea irmatersidobatizadonobatismodeJoão(Atos19:1-3).Mas isso também teria sido problemático para a comunidade cristãprimitiva.Porqueseháumacoisasobreaqualtodososquatroevangelhosconcordamquando se trata de JoãoBatista é que em algummomento aoredorde seu trigésimoano, epor razõesdesconhecidas, JesusdeNazarédeixou a pequena aldeia montanhesa de Nazaré, na Galileia, abandonousua casa, sua família e suasobrigações, e caminhouatéa Judeiapara serbatizadopor Joãonorio Jordão.Naverdade,avidado Jesushistóriconãocomeçacomoseunascimentomilagrosoousuajuventudeobscura,masnomomentoemqueeleencontrapelaprimeiravezJoãoBatista.

OproblemaparaosprimeiroscristãoseraquequalqueraceitaçãodosfatosbásicossobreainteraçãodeJoãocomJesusteriasidoumaadmissãotácita de que João era, pelo menos num primeiro momento, uma igurasuperior. Se o batismo de João fosse para o perdão dos pecados, comoa irma Marcos, então a aceitação do batismo por Jesus indicaria anecessidadedeterseuspecadospuri icadosporJoão.SeobatismodeJoãoeraumritodeiniciação,comoJosefosugere,entãoéclaroqueJesusestavasendo admitido no movimento de João como apenas mais um de seusdiscípulos.Essa foiprecisamenteareivindicaçãofeitapelosseguidoresdeJoão,que,muitotempodepoisqueosdoishomenstinhamsidoexecutados,recusavam-se aser absorvidos pelo movimento de Jesus, argumentandoque o seu mestre, João, era maior do que Jesus. A inal, quem batizaraquem?

AimportânciahistóricadeJoãoBatistaeoseupapelnolançamentodoministério de Jesus criou um dilema di ícil para os escritores dosevangelhos. João era um sacerdote e profeta popularmuito respeitado equaseuniversalmentereconhecido.Sua famaeragrandedemaisparaserignorada,oseubatismode Jesusconhecidodemaisparaserescondido.Ahistória tinha que ser contada. Mas também tinha que ser maquiada etornada segura. Os papéis dos dois homens tinham que ser invertidos:Jesus devia ser mostrado como superior, e João como inferior. Daí adiminuição progressiva do personagem de João desde o primeiroevangelho,Marcos,ondeeleéapresentadocomoumprofetaementordeJesus,atéoúltimoevangelho,João,emqueoBatistaparecenãoservirparanenhumobjetivo,excetoodereconheceradivindadedeJesus.

Marcos apresenta João Batista como uma igura totalmenteindependente que batiza Jesus como um entre muitos que vinham a elebuscar o arrependimento. “Iam ter com ele gente de toda a Judeia, e deJerusalém, para serem batizados por ele no rio Jordão, e confessar seuspecados … e aconteceu que, naqueles dias, Jesus veio da Galileia, deNazaré,eeletambémfoibatizadoporJoãonorioJordão.”(Marcos1:5,9)OBatistadeMarcos admitequeelepróprionãoéomessiasprometido–“Háumquevemdepoisdemimqueémaisfortedoqueeu”,dizJoão,“umcujas sandálias não sou digno de desatar” (Marcos 1:7-8) –, mas,estranhamente,JoãonuncarealmentereconheceJesuscomosendoaqueleaquemeleserefere.MesmodepoisdobatismoformaldeJesus,quandoocéuseabreeoEspíritodeDeusdescesobreelenaformadeumapomba,com uma voz celestial dizendo “Tu és meu ilho, o amado. Em ti me

regozijo”,Joãonãonotanemcomentaessemomentodeintervençãodivina.Para João, Jesus é apenasmais um suplicante, outro ilho de Abraão queviaja até o Jordão para ser iniciado na renovada tribo de Israel. Elesimplesmentesedirigeàpróximapessoaesperandoparaserbatizada.

Escrevendocercadeduasdécadasmaistarde,Mateusrelataobatismode Jesus quase palavra por palavra a partir de Marcos, mas toma ocuidadode resolver pelo menos uma das omissões gritantes do seuantecessor:nomomentoemqueJesuschegaàsmargensdoJordão,Joãooreconheceimediatamentecomo“aquelequevemdepoisdemim”.

“Euvosbatizocomágua”,dizoBatista.“ElevosbatizarácomoEspíritoSantoecomfogo.”

Noinício,o JoãoBatistadeMateusserecusaabatizar Jesus,sugerindoser elemesmoquemdeveria serbatizadopor Jesus. Sódepoisque JesuslhedápermissãoéqueJoãoousabatizarocamponêsdeNazaré.

Lucasvaiumpassoalém, repetindoamesmahistória apresentadaemMarcos e Mateus mas escolhendo encobrir o batismo propriamente deJesus. “Agora, quando todas as pessoas tinham sido batizadas, e Jesustambém foi batizado, os céus se abriram…” (Lucas 3:21) Em outraspalavras,LucasomitequalqueragentenobatismodeJesus.NãoéJoãoquebatiza Jesus. Jesus é batizado, simplesmente. Lucas reforça seu ponto devista dando a João sua própria narrativa de infância, ao lado da queinventa para Jesus, para provar que, mesmo enquanto fetos, Jesus foi aiguramaior:onascimentodeJoãodeumamulherestéril,Isabel,podetersidomilagroso,masnão foi tãomilagroso comoonascimentode Jesusdeuma virgem. Isso tudo é parte de um esforço proposital de Lucas, que oevangelistalevaadiantenacontinuaçãodeseuevangelho,oLivrodeAtos,para convencer os discípulos de João a abandonar seu profeta e seguirJesusemseulugar.

NomomentoemqueoevangelhodeJoãonarraobatismodeJesus,trêsdécadas depois de Marcos, João Batista não é mais um batista – o títulonuncaéusadoparaele.Defato,JesusnuncaérealmentebatizadoporJoãoBatista. O único propósito do Batista no quarto evangelho é dartestemunhodadivindadedeJesus.Jesusnãoéapenas“maisforte”doqueJoãoBatista.Eleéa luz,oSenhor,oCordeirodeDeus,oEscolhido.Eleéologospreexistente,que“existiaantesdemim”,dizoBatista.

“Eu mesmo vi o Espírito Santo descer sobre ele do céu como umapomba”, João a irma de Jesus, corrigindo outra das omissões originais deMarcos, antes de expressamente comandar seus discípulos a deixá-lo e a

seguir Jesus em seu lugar. Para João, o evangelista, não era su icienteapenas reduzir o Batista; o Batista tinha que reduzir-se, denegrir-sepublicamenteperanteoverdadeiroprofetaemessias.

“Eunãosouomessias”,admiteJoãoBatistanoquartoevangelho.“Eufuienviado antes dele …Ele deve aumentar, assim como eu devo diminuir .”(João3:28-30)

Essa tentativa frenéticade reduzir o signi icadode JoãoBatista –parafazê-loinferioraJesus,paratorná-lopoucomaisdoqueoarautodeJesus– traiumanecessidadeurgenteporpartedacomunidadecristãprimitivadecontra-atacaroqueaevidênciahistóricasugereclaramente:sejaquemfosse Batista, viesse de onde viesse, e fosse o que fosse que elepretendesseemseuritualdebatismo,Jesusmuitoprovavelmentecomeçouseuministériocomoapenasmaisumdeseusdiscípulos.Antesdoencontrocom João, Jesus era um camponês desconhecido e diarista labutando naGalileia.ObatismoporJoãonãosófezdelepartedanovaeredimidanaçãodeIsrael,comotambémoiniciounocírculoíntimodeJoão.Nemtodosqueforam batizados por João tornaram-se seus discípulos; muitossimplesmente voltaram para suas casas. Mas Jesus não o fez. OsevangelhosdeixamclaroqueemvezderetornarparaaGalileiadepoisdobatismo, ele foi “para o deserto” da Judeia; isto é, Jesus foi diretamenteparaolugardeondeJoãotinhaacabadodesair.Eele icounodesertoporum tempo, não para não ser “tentado por Satanás”, como os evangelistasimaginam,masparaaprendercomJoãoecomungarcomseusseguidores.

AsprimeiraspalavrasdoministériopúblicodeJesusecoamasdeJoão:“Otempoestácumprido.OReinodeDeusestápróximo.Arrependei-voseacreditai nas boas-novas.” (Marcos 1:15) O mesmo acontece com aprimeiraaçãopúblicadeJesus:“DepoisdissoJesuseseusdiscípulosforampara a Judeia e lá eles estavam batizando, e João também estavabatizando…”(João3:22-23)Claro,osprimeirosdiscípulosde Jesus,AndréeFilipe,nãoeramdemaneiraalgumaseusdiscípulos–eramdiscípulosdeJoão(João1:35-37).ElesapenasseguiramJesusdepoisqueJoãofoipreso.Jesusatémesmosedirigeaseusinimigosentreosescribasefariseuscomamesma frase especí ica que João usa para eles: “Sua raça de víboras!”(Mateus12:34)

Jesus permaneceu na Judeia durante algum tempo depois do batismo,movendo-se para dentro e para fora do círculo de João, pregando aspalavras de seumestre e batizando outros ao lado dele, até queAntipas,assustado com o poder e popularidade de João, manda que este seja

agarradoeatiradoemumcalabouço.SóentãoJesusdeixaaJudeiaevoltaparacasa,parasuafamília.

Seria de volta na Galileia, entre seu próprio povo, que Jesus vestiriatotalmenteomantodeJoãoecomeçariaapregarsobreoReinodeDeuseo julgamento que estava por vir. No entanto, Jesus não simplesmenteimitava João. Sua mensagem seria muito mais revolucionária, suaconcepção do Reino de Deus muito mais radical, e seu senso sobre aprópria identidade e missão muito mais perigoso do que qualquer coisaque JoãoBatistapudesse ter concebido. Joãopode terbatizadocomágua.MasJesusbatizariacomoEspíritoSanto.OEspíritoSantoeofogo.

8.Segui-me

AGALILEIAPARAAQUAL JesusretornouapósseuperíodocomJoãoBatistanãoeraaquelaemqueele tinhanascido.AGalileiada infânciade Jesus tinhasofrido um trauma psíquico profundo, tendo sentido a total força davingançadeRomacontraasrevoltasqueeclodiramemtodoopaísapósamortedeHerodes,oGrande,em4a.C.

A resposta romanaà rebelião,não importaondeela surgisseno reino,era roteirizada e previsível: queimar as aldeias, arrasar as cidades,escravizarapopulação.Essefoiprovavelmenteocomandodadoàslegiõesenviadas pelo imperador Augusto, depois da morte de Herodes, paraensinar uma lição aos judeus rebeldes. Os romanos facilmente apagaramas revoltas na Judeia e na Pereia. Mas uma atenção especial foi dada àGalileia,ocentrodarevolta.Milharesdepessoasforammortas,ocampofoiincendiado. A devastação se espalhou por cada cidade e aldeia, poucosforampoupados.AsaldeiasdeEmaúseSamphoforamdevastadas.Séforis,quehaviapermitidoqueJudas,oGalileu,assaltasseoarsenaldacidade,foiarrasada. A Galileia inteira foi consumida em fogo e sangue. Mesmo apequenaNazarénãoteriaescapadodairadeRoma.

Roma pode ter tido razão em se concentrar de forma tão brutal naGalileia. A região tinha sido um foco de atividade revolucionária porséculos.Muitoantesdainvasãoromana,otermo“galileu”tinhasetornadosinônimo de “rebelde”. Josefo fala do povo local como “acostumado àguerra desde a infância”, e a própria Galileia, que se bene iciou de umatopogra iaacidentada,deterrenomontanhoso,eledescrevecomo“sempreresistenteàinvasãohostil”.

Nãoimportaseos invasoreseramgentiosoujudeus,osgalileusnãosesubmetiam à dominação estrangeira. Nem mesmo o rei Salomão pôdedomar a Galileia – a região e seus habitantes resistiram ferozmente aospesadosimpostoseaotrabalhoforçadoqueelelhesimpôsparacompletaraconstruçãodoprimeiroTemplodeJerusalém.Tampoucoconseguiramosmacabeus – os reis-sacerdotes que governaram a terra de 140 a.C. até ainvasão romana em 63 a.C. – induzir completamente os galileus asubmeter-seaoTemplo-Estadoqueelescriaramna Judeia.EaGalileia foi

um espinho constante para o rei Herodes, que não foi nomeado rei dosjudeussenãodepoisdeterprovadoquepodialivrararegiãoproblemáticadaameaçadebanditismo.

Parece que os galileus se consideravamumpovo totalmente diferentedos demais judeus na Palestina. Josefo refere-se explicitamente a elescomo uma etnia ou nação separada; a Mishnáe a irma que os galileustinham regras e costumes diferentes dos judeus quando se tratava deassuntoscomocasamentooupesosemedidas.Eleserampastores,pessoasdo campo facilmente identi icáveis por seus costumes provinciais e seusotaque distintamente rústico (foi o sotaque galileu que revelou SimãoPedro como um seguidor de Jesus depois de sua prisão: “Certamente, tutambémésumdos[discípulosdeJesus],poisteusotaquetetrai.”(Mateus26:73)Aeliteurbanana Judeiareferia-seaosgalileus ironicamentecomo“povo da terra”, um termo usado para indicar sua dependência daagricultura de subsistência. Mas a expressão tinha uma conotação maissinistra,indicandoosignoranteseímpiosquenãocumpriamcorretamentea lei, em especial quando se tratava de pagar os dízimos obrigatórios efazerasofertasparaoTemplo.Aliteraturadaépocaestácheiadequeixasde Judá sobre a frouxidão dos galileus empagar suas dívidas ao Templodentro do prazo, enquanto uma série de escrituras apócrifas, como Otestamento de Levi eO livro de Enoque, re lete uma crítica distintamentegalileiaaoestilodevida luxuosodos sacerdotesda Judeia, aomodocomoexploravamoscamponeseseasuavergonhosacolaboraçãocomRoma.

Semdúvidaosgalileussentiamumaconexãosigni icativacomoTemplocomo o lugar onde habitava o espírito de Deus, mas eles tambémevidenciavamumdesprezoprofundoemrelaçãoaossacerdotesqueviamasimesmoscomoosúnicosárbitrosdavontadedivina.Háevidênciasquesugerem que os galileus foram seguidores menos atentos dos rituais doTemploe,dadaadistânciadetrêsdiasentreaGalileiaeJerusalém,menospropensos a fazer visitas frequentes a ele. Os agricultores e camponesesda Galileia que podiam juntar dinheiro su iciente para dirigirem-se aJerusalém para as festas sagradas teriam se encontrado na posiçãohumilhante de entregar seusmagros sacri ícios para os ricos sacerdotesdoTemplo,algunsdosquaispoderiamserosproprietáriosdas terrasemque esses mesmos camponeses e agricultores trabalhavam em seusvilarejos.

A diferença entre a Judeia e a Galileia cresceumais ainda depois queRomacolocouaGalileiasobodomíniodiretodeAntipas, ilhodeHerodes,

o Grande. Pela primeira vez em sua história, os galileus tinham umgovernante que realmente residia na região. A tetrarquia de Antipastransformou a província em uma jurisdição política separada, não maissujeita à autoridade direta do Templo e à aristocracia sacerdotal deJerusalém.OsgalileusaindadeviamseusdízimosparaovoraztesourodoTemploeRomaaindaexerciacontrolesobretodososaspectosdavidanaGalileia:Roma tinha instaladoAntipaseRomaocomandava.Seugoverno,porém,permitiaumapequenamassigni icativaautonomia.Nãohaviamaistropas romanas estacionadas na província; elas tinham sido substituídaspelos soldados do próprio Antipas. E pelo menos Antipas era um judeuque, na maior parte das vezes, tentava não ofender as sensibilidadesreligiosas daqueles sob seu governo, não obstante seu casamento com amulherdoirmãoeaexecuçãodeJoãoBatista.

Porvoltade10d.C.,quandoAntipasestabeleceusuacapitalemSéforis,até 36d.C., quando foi depostopelo imperadorCalígula e enviadopara oexílio, os galileus desfrutaram um período de paz e tranquilidade quecertamentefoiumalívioemrelaçãoàdécadaderebeliãoedeguerraqueo precedera. Mas a paz era um ardil, a cessação do con lito era umpretexto para a transformação ísica da Galileia. Pois no período dessesvinte anos, Antipas construiu duas novas cidades gregas – sua primeiracapital, Séforis,seguida pela segunda, Tiberíades, na costa do mar daGalileia – que transformaram completamente a sociedade galileiatradicional.

Essas foram as primeiras verdadeiras cidades que a Galileia já tinhavisto,eelaseramquasetotalmentepovoadaspornãogalileus:mercadoresromanos, gentios de língua grega, obesos colonos da Judeia. As novascidades colocaram uma enorme pressão sobre a economia da região,essencialmentedividindoaprovínciaentreosquetinhamriquezaepodere os que os serviam, fornecendo amão de obra necessária paramanterseus luxuosos estilos de vida. Vilarejos em que a agricultura desubsistência ou a pesca eram a norma foram gradualmente dominadospelasnecessidadesdascidades, àmedidaqueaagriculturaeaproduçãodealimentosvoltaram-seprincipalmenteparasatisfazeranovapopulaçãocosmopolita. Impostos aumentaram, o preçoda terra dobrou e as dívidascresceram, lentamente desintegrando o modo de vida tradicional naGalileia.

QuandoJesusnasceu,aGalileiaestavaemchamas.Suaprimeiradécadadevidacoincidiucomapilhagemeadestruiçãodocampo,asegundacom

aremodelaçãonasmãosdeAntipas.Quando JesussaiudaGalileiaparaaJudeia, para encontrar João Batista, Antipas já havia trocado Séforis pelasederealaindamaioremaisornamentadaemTiberíades.Nomomentoemqueretornou,aGalileiaqueeleconhecia,deagriculturafamiliarecamposabertos, de pomares lorescentes e vastos prados cheios de loressilvestres,maissepareciacomaprovínciadaJudeia,queeletinhaacabadode deixar para trás: urbanizada, helenizada, iníqua e estritamenteestratificadaentreosquetinhameosquenãotinham.

A primeira parada de Jesus ao retornar deve certamente ter sidoNazaré,ondesua famíliaaindaresidia,maselenão icoumuito tempoemsua cidade natal. Jesus tinha partido de Nazaré como um simplestekton.Elevoltoucomooutracoisa.Suatransformaçãocriouumaprofundafendaem sua comunidade. As pessoas parecem reconhecer com di iculdade opregador itinerante que, de repente, reapareceu em sua aldeia. Osevangelhos dizem que a mãe, os irmãos e irmãs de Jesus estavamescandalizados com o que as pessoas estavam dizendo sobre ele – elestentaram desesperadamente silenciá-lo e contê-lo (Marcos 3:21). Noentanto, quando eles seaproximaramde Jesus e pediram-lhepara voltarparacasaeretomarosnegóciosdafamília,elerecusou.“Quemsãominhamãeemeusirmãos?”,perguntouJesus,olhandoparaaquelesaoseuredor.“Aquiestãominhamãeemeusirmãos.Todoaqueleque izeravontadedeDeusémeuirmão,irmãemãe.”(Marcos3:31-34)

Esse relato no evangelho de Marcos é frequentemente interpretadocomosugerindoqueafamíliadeJesusrejeitouseusensinamentosenegousua identidade comomessias.Masnãohánadana respostade Jesusquesugira hostilidade entre ele e os irmãos. Também não há nada nosevangelhos que indique que a família de Jesus rejeitou suas ambiçõesmessiânicas.Pelocontrário,osirmãosdeJesustiveramumpapelbastantesigni icativo no movimento que ele fundou. Seu irmão Tiago tornou-se olíderdacomunidadeem Jerusalémapósa cruci icação.Talvez sua famíliatenha sido lenta em aceitar os ensinamentos de Jesus e as suasextraordinárias a irmações. Mas a evidência histórica sugere que todosacabaramporacreditarneleenasuamissão.

Os vizinhos de Jesus, no entanto, foram uma história diferente. Oevangelho pinta seus compatriotas nazarenos como angustiados com oretornodo “ ilhodeMaria”.Emboraalguns falassembemdelee icassemespantados com suas palavras, a maioria estava profundamenteperturbada com sua presença e seus ensinamentos. Jesus tornou-se

rapidamenteumpárianapequenacomunidadenacolina.OevangelhodeLucas a irma que os moradores de Nazaré acabaram por levá-lo até ocumedomonteemqueavilafoiconstruídaetentaramempurrá-lodeumpenhasco(Lucas4:14-30).Ahistóriaésuspeita,nãoháprecipíciodeondeserempurradoemNazaré,apenasaencostasuavementeinclinada.Aindaassim,permaneceofatodeque,pelomenosnumprimeiromomento,Jesusfoi incapaz de encontrar seguidores em sua aldeia. “Nenhum profeta éaceitoemsuaterra”,disseeleantesdeabandonaracasadesua infância,trocando-aporumaviladepescadorespróxima, chamadaCafarnaum,nacostanortedomardaGalileia.

Cafarnaumerao lugar idealpara Jesus lançar seuministério,umavezquere leteperfeitamenteasmudançascalamitosasprovocadaspelanovaeconomiadaGalileiasobodomíniodeAntipas.Avilacosteiradecerca de1.500 habitantes, em sua maioria agricultores e pescadores, conhecidapelo clima temperado e o solo fértil, se tornaria a base de operações deJesusaolongodoprimeiroanodesuamissão.Todaaaldeiaseestendiaaolongodeumavastaextensãodacosta,permitindoqueofrescoarsalgadoalimentasse todos os tipos de plantas e árvores. Tufos de exuberantevegetaçãomarinhaprosperavamaolongodoextensolitoraldurantetodooano, enquanto moitas de nogueiras e pinheiros, igueiras e oliveiras seespalhavam pelas baixas colinas do interior. O verdadeiro dote deCafarnaum era mesmo seu magní ico mar, que fervilhava com umavariedadede peixes que tinhanutrido e sustentado a populaçãoduranteséculos.

Quando Jesus lá estabeleceu seuministério,noentanto, a economiadeCafarnaumtinhasetornadoquasetotalmentecentradanoatendimentoàsnecessidades das novas cidades que surgiram em torno dela,especialmenteanovacapital,Tiberíades,que icavapoucosquilômetrosaosul. A produção de alimentos aumentou exponencialmente e, com isso, aqualidadedevidadosagricultoresepescadoresquetiveramacapacidadedecomprarmais terrascultiváveisoumaisbarcose redes.Mas, comonoresto da Galileia, os lucros desse aumento dos meios de produçãobene iciavam mais os latifundiários e agiotas que residiam fora deCafarnaum:ossacerdotesricosdaJudeiaedanovaeliteurbanaemSéforise em Tiberíades. A maioria dos moradores de Cafarnaum tinha sidodeixada para trás pela nova economia. Seriam essas pessoas asespecialmentevisadasporJesus,aquelasqueseviramlançadasàmargemda sociedade, cujas vidas tinham sido interrompidas pelas rápidas

mudançassociaiseeconômicasquevinhamocorrendoemtodaaGalileia.IssonãoquerdizerqueJesusestivesseinteressadoapenasnospobres,

ou que só os pobres iriam segui-lo. Uma série de benfeitores bastanteprósperos – os coletores de pedágio Levi (Marcos 2:13-15) e Zaqueu(Lucas 19:1-10) e o rico benfeitor Jairo (Marcos 5:21-43), para citaralguns, inanciariam a missão de Jesus, fornecendo alimentação ehospedagem para ele e seus seguidores. Mas a mensagem de Jesus foiprojetadaparaserumdesa iodiretoaosricosepoderosos,fossemelesosocupantes, em Roma, os colaboradores do Templo ou a nova classeendinheirada nas cidades gregas da Galileia. Amensagem era simples: oSenhor Deus tinha visto o sofrimento dos pobres e despossuídos, tinhaouvido seus gritos de angústia. E inalmente faria algo sobre isso. Essapode não ter sido umamensagem nova – João pregara amesma coisa –,mas era umamensagemque estava sendo entregue a umanovaGalileia,porumhomemque,comoumexperienteeverdadeirogalileuelepróprio,compartilhava os sentimentos anti-Judeia, anti-Templo que permeavam aprovíncia.

Jesus não estava há muito em Cafarnaum quando começou a reunirconsigo um pequeno grupo de galileus que pensavam como ele,selecionadosprincipalmenteapartirdas ileirasdejovensdescontentesdavila de pescadores, que se tornariam os seus primeiros discípulos (naverdade, Jesus já chegara com alguns discípulos a reboque, aqueles quehaviam deixado João Batista depois de sua captura, passando a seguirJesus). De acordo com o evangelho de Marcos, Jesus encontrou seusprimeiros seguidores enquanto caminhava à beira do mar da Galileia.Observandodoisjovenspescadores,SimãoeseuirmãoAndré,lançaremasredes, ele disse: “Segui-me, e eu vos farei pescadores de homens.” Osirmãos,escreveMarcos, imediatamentedeixaramcairsuasredese foramcom ele. Algum tempo depois, Jesus encontrou outro par de pescadores,Tiago e João, os jovens ilhos de Zebedeu, e fez a mesma oferta. ElestambémdeixaramobarcoeasredeseseguiramJesus(Marcos1:16-20).

O que fazia os discípulos se destacarem das aglomerações queinchavameencolhiamsemprequeJesusentravaemumaaldeiaououtraéque eles realmente viajavam com Jesus. Ao contrário das massasentusiasmadas, mas inconstantes, os discípulos foram especi icamentechamados por Jesus a deixar suas casas e suas famílias para trás parasegui-lo de cidade em cidade, aldeia em aldeia. “Se alguém vem amim enãoodeiaseupaiesuamãeeesposae ilhos,eirmãos,eirmãse,sim,até

mesmoasuavida,elenãopodesermeudiscípulo.”(Lucas14:26|Mateus10:37)

O evangelho de Lucas a irma que havia 72 discípulos ao todo (Lucas10:1-12), e, sem dúvida, nesse número se incluíam mulheres – algumasdas quais, desa iando a tradição, são nomeadas no Novo Testamento:Joana,mulherdoadministradordeHerodes,Chuza;Maria,mãedeTiagoedeJosé;Maria,mulherdeCléofas;Susana;Salomé;etalvezamaisfamosadetodas,MariadeMagdala,aquemJesushaviacuradode“setedemônios”(Lucas8:2).Que essasmulheres funcionavamcomodiscípulosde Jesus édemonstradopelo fatodeque todososquatroevangelhosasapresentamcomo viajando com ele de cidade em cidade (Marcos 15:40-41; Mateus27:55-56; Lucas 8:2-3, 23:49; João 19:25). Os evangelhos a irmam que“muitasoutrasmulheres…seguiram[Jesus]eoserviram”(Marcos15:40-41), desde seus primeiros dias de pregação na Galileia até seu últimosuspironacolinadoGólgota.

Entre os 72, no entanto, houve um núcleo interno de discípulos, todoseleshomensqueteriamumafunçãoespecialnoministériodeJesus.Esteseram conhecidos simplesmente como “os Doze”. Eles incluíam os irmãosTiago e João, ilhos de Zebedeu, que seriam chamados deBoanerges, “osilhos do trovão”; Filipe, que era de Betsaida e começou como um dosdiscípulosde JoãoBatista, antesde transferir sua idelidadea Jesus (João1:35-44); André, que o evangelho de João a irma que também começoucomo um seguidor de João Batista, embora os evangelhos sinópticoscontradigam essa a irmação, localizando-o em Cafarnaum; o irmão deAndré,Simão,odiscípuloaquemJesusapelidoudePedro;Mateus,queàsvezes é erroneamente associado a outro dos discípulos de Jesus, Levi, ocobradordepedágio;Judas, ilhodeTiago;Tiago, ilhodeAlfeu;Tomé,quesetornoulendárioporterduvidadodaressurreiçãodeJesus;Bartolomeu,sobre o qual quase nada se sabe; um outro Simão, conhecido como “oZelota”,designaçãousadaparasinalizarseucompromissocomadoutrinabíblicadozelo,enãosuaassociaçãocomopartidozelota,quenãoexistiriapelospróximostrintaanos;eJudasIscariotes,ohomemqueosevangelhosafirmamqueumdiatrairiaJesusparaosumosacerdoteCaifás.

Os Doze serão os principais portadores da mensagem de Jesus – osapostolou,ou“embaixadores”–,apóstolosenviadosparacidadesealdeiasvizinhasparapregardeformaindependenteesemsupervisão(Lucas9:1-6). Eles não seriam os líderes do movimento de Jesus, mas sim seusprincipais missionários. No entanto, os Doze tinham outra função mais

simbólica,que se manifestaria mais tarde. Eles viriam a representar arestauraçãodasdozetribosdeIsrael,hámuitodestruídaseespalhadas.

Com sua base irmemente estabelecida e seu grupo de discípulosescolhidosadedocrescendo, Jesuscomeçouavisitarasinagogadaaldeiapara pregar sua mensagem para o povo de Cafarnaum. Os evangelhosdizemque aqueles queo ouviam se admiravamde suadoutrina, emboranão tanto por causa de suas palavras. Mais uma vez, naquele momento,Jesus estava apenas ecoando seu mestre, João Batista: “A partir dessemomento [quando Jesus chegou a Cafarnaum]”, escreve Mateus, “Jesuscomeçou a proclamar: ‘Arrependei-vos!OReino dos Céus está próximo.’”(Mateus 4:17) Em vez disso, o que surpreendeu a multidão naquelasinagogadeCafarnaumeraaautoridadecarismáticacomqueJesusfalava– “Porque os ensinava como alguém com autoridade e não como osescribas.”(Mateus7:28;Marcos1:22;Lucas4:31)

Acomparaçãocomosescribas,destacadaemtodosos trêsevangelhossinópticos, é notável e reveladora. Ao contrário de João Batista, queprovavelmentefoicriadoemumafamíliadesacerdotesdeJudá,Jesuseraumcamponês.Ele falavacomoumcamponês.Elepregavaemaramaico,alíngua comum. Sua autoridade não era a dos estudiosos livrescos e daaristocracia sacerdotal. A autoridade daqueles vinha da elucubraçãosoleneedaíntimaligaçãocomoTemplo.AdeJesusvinhadiretamentedeDeus. De fato, a partir domomento em que entrou na sinagoga naquelapequenaaldeiacosteira,Jesusfezquestãodecolocar-seemoposiçãodiretaaosguardiãesdoTemploeaocultojudaico,desa iandoaautoridadedelescomorepresentantesdeDeusnaterra.

Embora os evangelhos retratem Jesus como estando em con lito comtodaumagamadeautoridades judaicas,quemuitasvezes sãoagrupadasemcategoriasrepresentadasporfórmulascomo“osprincipaissacerdoteseosanciãos”,ou “osescribase fariseus”, essesgruposeramseparadosedistintos na Palestina do século I e Jesus tinha relações diferentes comcada um deles. Os evangelhos tendem a pintar os fariseus como osprincipais detratores de Jesus, mas o fato é que suas relações com eles,embora ocasionalmente irritadiças, eram, na maior parte, bastantecivilizadas e,às vezes, atémesmo amigáveis. Foi um fariseuque advertiuJesus de que sua vida estava em perigo (Lucas 13:31), um fariseu queajudou a enterrá-lo depois de sua execução (João 19:39-40), um fariseuquesalvouavidadeseusdiscípulos,depoisdeeletersubidoaocéu(Atos5:34). Jesus jantou com fariseus, debateu com eles, viveu entre eles –

algunsfariseusestavammesmopresentesentreosseusseguidores.Em contraste, o punhado de encontros que Jesus teve com a nobreza

sacerdotal e a educada elite de juristas (os escribas) que a representa ésempreretratadopelosevangelhossobluzbemhostil.AquemmaisJesusestariasereferindoquandodisse:“Vóstransformastesminhacasaemumcovildeladrões”?NãoeraaoscomerciantesecambistasqueeleestavasedirigindoquandopassoufuriosopelopátiodoTemplo,derrubandomesase abrindo jaulas. Era a quemmais lucrava com o comércio do Templo, equeofazianascostasdegalileuspobrescomoele.

Tal como seus antecessores zelosos, Jesus estava menos preocupadocomoimpériopagãoocupandoaPalestinadoquecomoimpostorjudaicoocupando o Templo de Deus. Ambos veriam Jesus como uma ameaça, eambos buscariam sua morte. Mas não pode haver dúvida de que oprincipal antagonista de Jesus nos evangelhos não é nem o imperadordistante, em Roma, nem seus funcionários pagãos na Judeia. É o sumosacerdote Caifás, que vai se tornar o principal instigador da conspiraçãopara executar Jesus, precisamente por causa da ameaça que elerepresentava à autoridade do Templo (Marcos 14:1-2; Mateus 26:57-66;João11:49-50).

Àmedidaqueoministériode Jesusseexpandia, tornando-secadavezmaisurgenteedeoposição, suaspalavraseaçõesre letiamumprofundoantagonismoemrelaçãoaosumosacerdoteeàinstituiçãoreligiosajudaica,que, nas palavras de Jesus, amava “pavonear-se em longas vestes e sersaudado com respeito nas praças, e ter os primeiros assentos nassinagogaseoslugaresdehonranasfestas”.

“Eles devoramas casas das viúvas e fazem longas orações emprol daaparência”, diz Jesus dos escribas. E, por isso, “a sua condenação serámaior” (Marcos12:38-40).Asparábolasde Jesus,especialmente,estavamcheiasdosmesmossentimentosanticlericaisquemoldaramapolíticaea féda Galileia, e que se tornariam a marca registrada de seu ministério.ConsidereafamosaparáboladoBomSamaritano:

Um homem descia de Jerusalém para Jericó. Ele caiu nas mãos desalteadoresqueodespojaramdesuasroupaseespancaram-no,deixando-omeiomorto.Poracaso,umsacerdoteveioporessecaminho,equandoviuo homem, passou pelo outro lado. Um levita (sacerdote) também passoupor aquele lugar, e, vendo o homem, também passou do outro lado.Masumsamaritanoemviagempassouporondeohomemestavae, quandooviu,tevecompaixão.Foiatéeleeenfaixousuasferidas,derramandoóleoe

vinhosobreelas.Colocouohomemsobreseupróprioanimal,levou-oparauma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, deu dois denários aohospedeiroedisse:“Cuidadele,quandoeuvoltarpagareitudoomaisquetugastarescomele.”(Lucas10:30-37)

Os cristãos têm há muito interpretado essa parábola como re lexo daimportância de ajudar as pessoas em di iculdades. Mas, para o públicoreunidoaospésdeJesus,aparábolateriamenosavercomabondadedosamaritanoquecomabaixezadosdoissacerdotes.

Os judeus consideravam os samaritanos como os mais humildes, aspessoas mais impuras na Palestina, por uma razão principal: ossamaritanos rejeitaramo primado doTemplo de Jerusalém como o únicolugar legítimode culto. Emvezdisso, eles adoravamoDeusde Israel emseuprópriotemplonomonteGerizim,namargemocidentaldorio Jordão.Para aqueles entre os ouvintes de Jesus que se identi icavam com omaltratado, ohomemmeiomortodeixadona estrada, a liçãodaparábolateriasidoevidente:osamaritano,quenegaaautoridadedoTemplo,saidoseu caminho para cumprir o mandamento do Senhor: “Amarás o teupróximo como a ti mesmo” (a própria parábola foi dada em resposta àpergunta: “Quem é o meu próximo?”). Os sacerdotes, que obtêm suariqueza e autoridade de sua conexão com o Templo, ignoram omandamento completamente, por medo de profanar sua pureza ritual epôrassimemriscoessaconexão.

O povo de Cafarnaum devorava essa mensagem agudamenteanticlerical.Quasede imediato,grandesmultidõescomeçaramasereuniremtornodeJesus.AlgunsreconheceramneleomeninonascidoemNazaréde uma família de carpinteiros. Outros ouviram falar do poder de suaspalavras e vieram para ouvi-lo pregar por curiosidade. Ainda assim,naquele momento, a reputação de Jesus estava contida ao longo dasmargens de Cafarnaum. Fora dessa vila de pescadores, ninguém tinhaainda ouvido falar do carismático pregador galileu – nem Antipas emTiberíades,nemCaifásemJerusalém.

Mas,então,aconteceualgoquemudariatudo.Enquanto estava na sinagoga de Cafarnaum, falando sobre o Reino de

Deus, Jesus foi subitamente interrompido por um homem que osevangelhosdescrevemcomotendo“umespíritosujo”.

“Oquetemosnósavercontigo,JesusdeNazaré?”,ohomemgritou.“Tuviestesparanosdestruir?Euseiquemtués,óSantodeDeus.”

Jesusinterrompeu-odeumasóvez.“Silêncio!Saiaforadele!”

O homem imediatamente despencou no chão, contorcendo-se emconvulsões.Umgrandegritosaiudesuaboca.Eeleficouimóvel.

Todos na sinagoga icaram surpresos. “O que é isso?”, as pessoasperguntavam umas às outras. “Um novo ensinamento? E com tantaautoridadequeeleordenaosespíritoseelesoobedecem.” (Marcos1:23-28)

Depois disso, a fama de Jesus já não podia limitar-se a Cafarnaum.Notíciasdopregadoritineranteseespalharamportodaaregião,emtodaaGalileia. Em cada cidade e aldeia a multidão crescia à medida que aspessoas de todos os lugares se aproximavam, não tanto para ouvir a suamensagem, mas para ver as obras maravilhosas de que tinham ouvidofalar.PoisenquantoosdiscípulosacabariamporreconhecerJesuscomoomessias prometido e herdeiro do reino de Davi, enquanto os romanos oviamcomoumfalsopretendenteaocargodereidosjudeuseosescribaseos sacerdotes do Templo viriam a considerá-lo uma ameaça blasfema aocontroledocultojudaico,paraagrandemaioriadosjudeusnaPalestina–aquelesqueelealegavatersidoenviadoparalibertardaopressão–Jesusnão eranemmessias, nem rei: era apenasmais ummilagreiro viajante eexorcistaprofissionalrodandopelaGalileiarealizandoseustruques.

e Uma das principais obras do judaísmo rabínico, é a primeira grande redação da tradição oraljudaica,chamadaaToráOral.(N.T.)

9.PelodedodeDeus

NÃODEMOROUMUITOparaqueopovodeCafarnaumpercebesseoquetinhaem seu meio. Jesus certamente não foi o primeiro exorcista a caminharpelasmargensdomardaGalileia.NaPalestinado século I, o pro issionalmilagreiro era uma vocação bem-estabelecida, como a de carpinteiro oupedreiro, e pagava bem melhor. Na Galileia, especialmente, abundavamvisionários carismáticos que a irmavam canalizar o divino por uma taxanominal.Noentanto,naperspectivadosgalileus,oquediferenciava Jesusde seus companheiros exorcistas e curandeiros é que ele parecia estarprestandoseusserviçosde formagratuita.Aqueleprimeiroexorcismonasinagoga de Cafarnaum pode ter chocado os rabinos e os anciãos queviramneleum“novotipodeensinamento”–osevangelhosdizemqueumaenorme quantidade de escribas começou a descer para a cidade logodepois, paraverempor simesmosodesa io à suaautoridadeporaquelesimples camponês.Mas para o povo de Cafarnaum, o que importava nãoeratantoafontedecurasdeJesus.Oqueimportavaeraocusto.

Quando chegou a noite, todos em Cafarnaum sabiam do curadorgratuitoemsuacidade. Jesuseseuscompanheirostinhamseabrigadonacasados irmãosSimãoeAndré,ondeasogradeSimãoestavadeitadanacama, com febre.Quandoos irmãoscontarama Jesus sobreadoença, elefoi até a mulher e pegou sua mão; imediatamente ela foi curada. Logodepois, uma grandemultidão reuniu-se diante da casa de Simão, levandoconsigo coxos, aleijados, leprosos e aqueles possuídos por demônios. Namanhã seguinte, a multidão de doentes e enfermos havia crescido aindamais.

Paraescapardasmultidões,JesussugeriudeixarCafarnaumporalgunsdias. “Vamos às aldeias vizinhas para que eu possa proclamar minhamensagem lá também.” (Marcos 1:38) Mas a notícia do milagreiroitinerante jáhaviaatingidoas cidadesvizinhas.Em todosos lugaresondeJesus foi – Betsaida, Gerasa, Jericó –, os cegos, os surdos, osmudos e osparalíticos a luíam a ele. E Jesus curava todos. Quando ele inalmentevoltouaCafarnaum,algunsdiasdepois,havia tantaspessoasamontoadasnaportadeSimãoqueumgrupodehomenstevequefazerumburacono

tetoparapoderdescerporaliseuamigoparalíticoparaJesuscurar.Para a mente moderna, as histórias de curas e exorcismos de Jesus

parecem improváveis, para dizer o mínimo. De fato, a aceitação de seusmilagres constitui a principal ruptura entre o historiador e o adorador, oacadêmico e o investigador. Pode parecer um tanto incongruente, então,dizer que hámaismaterial histórico acumulado con irmando osmilagresdeJesusdoquearespeitodeseunascimentoemNazaréousuamortenoGólgota. É bom deixar claro, não há nenhuma evidência que comprovequalqueraçãomilagrosaespecí icadeJesus.Astentativasdeestudiososdejulgar a autenticidade de uma ou outra das curas ou exorcismosresultaramemumexercícioinútil.Nãofazsentidoargumentarqueé maisprovável que Jesus tenha curado um paralítico, masmenos provável quetenha ressuscitado Lázaro dentre os mortos. Todas as histórias dosmilagresdeJesusforamembelezadascomopassardotempoeimbricadascomsignificadocristãoe,portanto,nenhumadelaspodeserhistoricamentevalidada. É igualmente sem sentido tentar desmisti icar os milagres deJesus,procurandoalgumabaseracionalparaexplicá-los: Jesussó pareceuandar sobre a água por causa da mudança das marés; Jesus apenasparecia exorcizar um demônio de uma pessoa que era, na realidade,epiléptica. Como alguém no mundo moderno vê as ações milagrosas deJesusé irrelevante.Tudooquepodeserconhecidoécomoaspessoasdoseu tempo viam tais ações. E é aí que reside a evidência histórica. Poisenquanto se debatia, dentro da Igreja primitiva, sobre quem era Jesus –umrabino?Omessias?Deusencarnado?–,nuncahouvequalquerdebate,quer entre seus seguidores quer entre os detratores, sobre o seu papelcomoumexorcistaemilagreiro.

Todos os evangelhos, inclusive as escrituras não canônicas, con irmamosatosmilagrososdeJesus,assimcomoo faztambémaFonteQ,materialde origemmais antiga. Quase um terço do evangelho deMarcos consistedas curas e exorcismos de Jesus. A Igreja primitiva não sómanteve umamemóriavivadessesmilagrescomotambémconstruiusuafundaçãosobreeles.Osapóstolosde Jesus forammarcadospor sua capacidadede imitaros poderesmiraculosos domestre, de curar e exorcizar pessoas em seunome.MesmoaquelesquenãooaceitavamcomomessiasviamJesuscomo“um fazedor de feitos surpreendentes”. Em nenhum momento nosevangelhososinimigosdeJesusnegamseusmilagres,emboraquestionemsua motivação e fonte. Já nos séculos II e III, os intelectuais judeus eilósofospagãosqueescreveramtratadoscontrao cristianismoaceitavam

ostatusde Jesuscomoexorcistaemilagreiro.ElespodemterdenunciadoJesuscomonadamaisdoqueummágicoambulante,masnãoduvidavamdesuashabilidadesmágicas.

Maisumavez, Jesusnão foi oúnicomilagreiro apercorrer aPalestinacurando enfermos e expulsando demônios. Aquele era um mundoimpregnadodemagia,eJesuseraapenasumdeumnúmeroincontáveldeadivinhos e intérpretes de sonhos, feiticeiros e curandeiros queperambulavam pela Judeia e a Galileia. Houve Honi, o Desenhador deCírculos,assimchamadoporque,duranteumtempodeseca,desenhouumcírculonochãoe icoudentrodele,gritandoaDeus:“Juroporseugrandenomequenãovou sairdaqui atéque tenhapiedadede seus ilhos.”E aschuvasvieram imediatamente.OsnetosdeHoni,AbbaHilqiaheHanan,oEscondido, também foram amplamente creditados por ações milagrosas;ambos viveram na Galileia por volta da mesma época que Jesus. Outromilagreirojudeu,orabinoHaninabenDosa,queresidianaaldeiadeArab,aapenasalgunsquilômetrosdacasadeJesusemNazaré,tinhaopoderderezar sobre os doentes e até mesmo interceder em seu nome paradiscernir quem iria viver e quem iria morrer. Talvez o mais famosomilagreiro da época fosse Apolônio de Tiana. Descrito como um “homemsanto”, ele pregava o conceito de um “Deus Supremo” e realizava açõesmilagrosas aonde quer que fosse. Ele curava os coxos, os cegos, osparalíticos.Chegoumesmoaressuscitarumamenina.

Nem era Jesus o único exorcista na Palestina. O exorcista judeuitineranteeraumavisãofamiliar,eexorcismospodiamseconstituiremumempreendimento lucrativo. Muitos exorcistas são mencionados nosevangelhos (Mateus 12:27, Lucas 11:19,Marcos 9:38-40, e também Atos19:11-17).Alguns–comoofamosoexorcistaEleazar,quepodetersidoumessênio – usavam amuletos e encantamentos para extrair demônios dosa litos através do nariz. Outros, como o rabino Simão ben Yohai, podiamexpulsar demônios simplesmente proferindo o nome deles; como Jesus,Yohai primeiro comandava o demônio a identi icar-se, o que lhe davaautoridade sobre o mesmo. O Livro de Atos retrata Paulo como umexorcista que usou o nome de Jesus como talismã de poder contra asforças demoníacas (Atos 16:16-18, 19:12). Instruções sobre exorcismoforamencontradasatémesmonosManuscritosdomarMorto.

ArazãoparaexorcismosseremtãocomunsnaépocadeJesuséqueosjudeus viam a doença como uma manifestação ou do juízo divino ou deatividade demoníaca. Não importa de que maneira se queira de inir a

possessão demoníaca – como um problema de saúde ou uma doençamental, epilepsia ou esquizofrenia –, a verdade é que as pessoas naPalestina entendiam esses problemas como sinais de possessão, e viamJesus comoum entre os exorcistas pro issionais como poder de trazer acuraparaaquelestocadosporessesmales.

Pode ser verdade que, ao contrário de muitos de seus companheirosexorcistas e milagreiros, Jesus também tinha ambições messiânicas. Mastambémas tinhamo fracassadomessiasTeudaseoEgípcio,ambos tendousado suas ações milagrosas para ganhar seguidores e fazerreivindicações messiânicas. Esses homens e seus companheirosmilagreiros eram conhecidos pelos judeus e gentios como “homens deações”, o mesmo termo que foi aplicado a Jesus. Além disso, a formaliterária das histórias milagrosas encontradas nos escritos judaicos epagãos dos séculos I e II é quase idêntica à dos evangelhos; o mesmovocabulário básico é usado para descrever tanto o milagre quanto omilagreiro. Simpli icando, o status de Jesus como um exorcista etaumaturgo pode parecer incomum, até mesmo absurdo, para os céticosmodernos,masnãoseafastavamuitodaexpectativanormaldeexorcistasemilagreirosnaPalestinadoséculoI.Fossemgregos,romanos, judeusoucristãos, todos os povos do antigo Oriente Próximo viammagia emilagrecomoumafacetapadrãodeseumundo.

Dito isso, havia uma nítida diferença entremagia e milagre namenteantiga; não em seus métodos e resultados – ambos eram consideradosformas de perturbar a ordem natural do universo –, mas na forma comque cada um era percebido. No mundo greco-romano, os magos eramonipresentes, mas a magia foi considerada uma forma de charlatanismo.Havia um punhado de leis romanas contra “trabalhos de magia”, e osprópriosmágicospoderiamserexpulsosoumesmoexecutadosse fossemdescobertospraticandooquefoiporvezesdenominadode“magianegra”.No judaísmo, também, os magos eram bastante presentes, apesar daproibiçãocontraamagianaleideMoisés,ondeelaépunívelcomamorte.“Ninguémpodeserencontradonomeiodevós”, aBíbliaadverte, “queseenvolva na adivinhação, ou é uma bruxa, um mago, ou um feiticeiro, oualguém que lança feitiços, ou quem consulta espíritos, alguém que é ummagoouumnecromante.”(Deuteronômio18:10-11)

A discrepância entre a lei e a prática, em relação às artes da magia,pode ser mais bem explicada pelas formas variáveis como “mágica” erade inida. A palavra em si tinha conotações negativas extremas, mas

somentequandoaplicadaàspráticasdeoutrospovosereligiões.“Emboraas nações que estás prestes a desapropriar deem ouvidos a videntes eadivinhos”, Deus diz aos israelitas, “quanto a ti, o Senhor teu Deus nãopermite que faças isso.” (Deuteronômio 18:14) E, contudo, os servos deDeus se envolvem em atosmágicos regularmente, a im de comprovar aforça divina. Assim, por exemplo, Deus ordena a Moisés e a Aarão que“realizemumamaravilha”nafrentedofaraó,transformandoumcajadoemumacobra.Masquando“homenssábios”dofaraófazemomesmotruque,eles são desconsiderados como “mágicos” (Êxodo 7:1-13, 9:8-12). Emoutraspalavras,umrepresentantedeDeus–comoMoisés,EliasouEliseu–realizamilagres,enquantoum“falsoprofeta”–comoossábiosdofaraóeossacerdotesdeBaal–fazmágica.

Isso explica por que os primeiros cristãos se esforçaram tanto emargumentarque Jesusnãoeraummágico.AolongodosséculosIIeIII,osdetratores judaicos e romanos da Igreja escreveram inúmeros pan letosacusando Jesusde terusadomagiapara cativaraspessoase induzi-lasasegui-lo.“Mas,emboraelestenhamvistotaistrabalhos,elesafirmaramqueera artemágica”, escreveu sobre seus críticos o apologista cristão JustinoMártir, no século II. “Pois se atreveram a chamar [Jesus] de mágico eenganadordopovo.”

Note que esses inimigos da Igreja não negaram que Jesus realizouprodígios. Eles simplesmente rotularam aqueles atos de “mágica”.Independentemente disso, os líderes da Igreja, comoo famoso teólogodoséculo III Orígenes de Alexandria, responderam furiosamente a taisacusações,condenandoa“acusaçãocaluniosaeinfantil[deque]Jesuseraum mágico” ou de que realizasse milagres por meio de dispositivosmágicos. Como o pai da Igreja primitiva Irineu, bispo de Lugdunum,argumentou, era justamente a falta de tais dispositivos mágicos quedistinguia as açõesmilagrosas de Jesus daquelas domago comum. Jesus,nas palavras de Irineu, realizava seus feitos “sem qualquer poder deencantamentos, sem o suco de ervas e gramíneas, sem qualquerobservaçãoansiosadesacrifícios,delibaçõesoudasestações”.

ApesardosprotestosdeIrineu,noentanto,asaçõesmilagrosasdeJesusnos evangelhos, especialmente no primeiro, o de Marcos, possuem umasemelhançaimpressionantecomasaçõesdosmagosemilagreirosdaquelaépoca, razão pela qual não são poucos os estudiosos contemporâneos daBíblia que têm abertamente rotulado Jesus demágico. Sem dúvida, Jesususatécnicasdeummágico–encantamentos,fórmulasensaiadas,cuspidas,

súplicas repetidas – em alguns de seus milagres. Uma vez, na região daDecápolis,fumgrupodealdeõestrouxeumhomemsurdo-mudodiantedeJesus e pediu-lhe ajuda. Jesus levou o homempara outro lugar, longe damultidão. Então, em um conjunto bizarro de ações ritualizadasquepoderiam ter vindo diretamente do manual de um antigo mago, Jesuscolocou os dedos nos ouvidos do surdo, cuspiu, tocou sua língua e,erguendo os olhos ao céu, cantou a palavraephphatha, que signi ica “seraberto” em aramaico. Imediatamente os ouvidos do homem se abriram esualínguasoltou-se(Marcos7:31-35).

EmBetsaida, Jesusrealizouumaaçãosemelhanteemumhomemcego.Ele levou o homem para longe damultidão, cuspiu diretamente em seusolhos,colocouasmãossobreeleeperguntou:“Estásvendoalgumacoisa?”

“Posso ver as pessoas”, disse o homem. “Mas elas parecem árvoresandando.”

Jesus repetiu a fórmula ritual uma vez mais. Dessa vez o milagrefuncionou–ohomemrecuperouavisão(Marcos8:22-26).

OevangelhodeMarcosnarraumahistóriaaindamaiscuriosa,deumamulher que sofria de hemorragia havia doze anos. Tinha visto muitosmédicosegastara todoodinheiroquepossuía,masnãoencontravaalíviopara sua condição. Tendo ouvido falar de Jesus, veio por trás dele juntocomamultidão,estendeuamãoetocou-lheomanto.Nomesmoinstanteahemorragiacessoueelasentiunoprópriocorpoquetinhasidocurada.

Oqueénotávelsobreessahistóriaéque,deacordocomMarcos,Jesus“sentiuopoderdrenadodele”.Eleparouemseucaminhoegritou:“Quemtocou em meu manto?” A mulher prostrou-se diante dele e confessou averdade.“Filha”,Jesusrespondeu.“Atuafétesalvou.”(Marcos5:24-34)

A narrativa de Marcos parece sugerir que Jesus era um condutorpassivoatravésdoqualopoderdecuracorriacomoumacorrenteelétrica.Isso está de acordo com a maneira como os processos mágicos sãodescritosnostextosdaépoca.Écertamentedignodenotaque,aorecontara história de Marcos sobre a mulher hemorrágica, vinte anos depois,MateusomitaaqualidademágicadaversãodeMarcos.EmMateus, Jesusseviraquandoamulherotoca,tomaciênciaesedirigeaela,esóentãoéqueeleativamentecurasuadoença(Mateus9:20-22).

Apesardoselementosmágicosquepodemser identi icadosemalgunsdos milagres, o fato é que em nenhum lugar nos evangelhos alguémrealmente acusa Jesus de realizar magia. Teria sido uma acusação fácilpara seus inimigos fazerem, e teria signi icado uma sentença de morte

imediata.Noentanto,quandoJesusestevediantedasautoridadesromanase judaicas para responder às acusações contra ele, os crimes elencadoseram muitos – sedição, blasfêmia, rejeitar a lei de Moisés, recusar-se apagarotributo,ameaçaroTemplo–,masserummagonãoeraumdeles.

Também é interessante notar que Jesus nunca cobrou uma taxa porseus serviços. Mágicos, curandeiros, milagreiros, exorcistas, essas erampro issõesquali icadasemuitobempagasnaPalestinadoséculoI.Eleazar,o Exorcista, foi uma vez solicitado a realizar seus feitos para ninguémmenos que o imperador Vespasiano. No Livro de Atos, um mágicoprofissionalpopularmenteconhecidocomoSimão,oMago,oferecedinheiroaosapóstolosparasertreinadonaartedemanipularoEspíritoSantoparacurar os enfermos. “Dai-me este poder também”, Simão pede a Pedro eJoão,“demodoquequalquerumemquemeucoloqueminhasmãospossareceberoEspíritoSanto.”

“Que o teu dinheiro pereça contigo”, Pedro responde, “porque tupensastequepoderiascomprarcomdinheirooqueDeusdácomoumdomgratuito.”(Atos8:9-24)

A resposta de Pedro pode parecer extrema. Mas ele está apenasseguindo o comando de seu messias, que disse aos discípulos: “Curai osenfermos,limpaiosleprosos,ressuscitaiosmortoseexpulsaiosdemônios.Vós recebestes [essespresentes] sempagamento. Dailos sempagamento.”(Mateus10:8|Lucas9:1-2)

No imdascontas,podeserinútildiscutirseJesuseraummágicoouummilagreiro.Magia emilagre talvezpossamsermaisbemvistos comodoislados da mesma moeda na antiga Palestina. Os pais da Igreja estavamcertossobreumacoisa,noentanto.Há,claramente,algoúnicoediferentesobre as açõesmilagrosas de Jesus nos evangelhos. Não é simplesmenteporque não fossem cobradas ou porque nem sempre empregassemmétodosdemágico.ÉqueosmilagresdeJesusnãopretendemserum imneles próprios. Ao invés disso, suas ações servem a um propósitopedagógico. Elas são um meio de transmitir uma mensagem muitoespecíficaaosjudeus.

Uma pista para entender o que possa ser essamensagem vem à tonaem uma passagem intrigante da Fonte Q. Conforme relatado nosevangelhosdeMateuseLucas, JoãoBatistaestáde inhandoemumacelano topo da fortaleza deMaqueronte, à espera da execução, quando ouvefalardosprodígiosque estão sendo feitosnaGalileia porumde seus ex-discípulos.Curiosoarespeitodasnotícias, Joãoenviaummensageiropara

perguntaraJesusseeleé“aquelequeestáporvir”.“Vai contar a João o que tu ouves e vês”, Jesus diz aomensageiro. “Os

cegosveem,oscoxosandam,osleprosossãopuri icados,ossurdosouvem,osmortos são ressuscitados e ospobres recebemboasnotícias.” (Mateus11:1-6|Lucas7:18-23)

As palavras de Jesus são uma referência deliberada ao profeta Isaías,que há muito tempo anunciara o dia em que Israel seria redimido eJerusalémrenovada,umdiaemqueoReinodeDeusseriaestabelecidonaterra. “Entãoosolhosdoscegosserãoabertoseosouvidosdossurdosseabrirão, os coxos saltarão como o cervo, e a língua do mudo cantará dealegria”, Isaías prometeu. “Os mortos viverão e os cadáveresressuscitarão.”(Isaías35:5-6,26:19)

Ao ligarseusmilagrescomaprofeciade Isaías, Jesusestádizendo,emtermos inequívocos, que o ano de graça do Senhor, o dia da vingança deDeusprevisto pelos profetas, inalmente havia chegado.OReinodeDeuscomeçara.“SepelodedodeDeuseuexpulsodemônios,entãocertamenteoReinodeDeuschegouatévós”(Mateus12:28|Lucas11:20).OsmilagresdeJesussãoapenasamanifestaçãodoReinodeDeusnaterra.ÉodedodeDeus que cura o cego, o surdo, omudo, o dedo deDeus que exorciza osdemônios. A tarefa de Jesus é simplesmente brandir esse dedo comoagentedeDeusnaterra.

Só que Deus já tinha agentes na terra. Eram aqueles trajando inasvestes brancas, circulando pelo Templo, pairando sobre montanhas deincensoeincessantessacri ícios.Aprincipalfunçãodanobrezasacerdotalnão era apenas presidir os rituais do Templo,mas controlar o acesso aocultojudaico.OpróprioprojetodoTemplodeJerusalém,comumasériedeingressos cada vez mais restritos, visava manter o monopólio sacerdotalsobrequempoderiaenãopoderia chegaràpresençadeDeus, eemquegrau. Os doentes, os coxos, os leprosos, os “endemoniados”, as mulheresmenstruadas, aqueles que excretaram luidos corporais, aquelas quetinham dado à luz recentemente – nenhum deles estava autorizado aentrar no Templo e participar do culto judaico, a não ser que fosseprimeiropuri icadodeacordocomocódigo sacerdotal.Comcada leprosopuri icado,cadaparalíticocurado,cadademônioexpulso,Jesusnãoapenasdesa iava o código sacerdotal, ele invalidava o próprio objetivo dosacerdócio.

Assim, no evangelho deMateus, quando um leproso vem implorar-lhepara ser curado, Jesus estende amão e o toca, curando sua doença.Mas

elenãoparaporaí.“Vaimostrar-teaosacerdote”,dizaohomem.“Ofereçaaele,comoumtestemunho,ascoisasquealeideMoisésdeterminouparasuapurificação.”

Jesusestágracejando.Seucomandoparaoleprosoéumagalhofa–umcalculado golpe no código sacerdotal. O leproso não está apenas doente,a inal de contas. Ele é impuro. Ele é cerimonialmente impuro e, portanto,indigno de entrar no Templo de Deus. Sua doença contamina toda acomunidade.DeacordocomaleideMoisés,aqueJesusserefere,aúnicamaneira de um leproso ser puri icado é completar um ritual muitotrabalhoso e caro, que poderia ser conduzido apenas por um sacerdote.Em primeiro lugar, o leproso deve levar ao sacerdote duas aves limpas,juntamente com um pouco de cedro, io carmesim e hissopo. Um dospássarosdeveserimediatamentesacri icado,eaaveviva,ocedro,o ioeohissopo,mergulhadosemseusangue.Osanguedeveentãoseraspergidosobre o leproso, e a ave viva liberada. Sete dias depois, o leproso deverapar toda a cabeça e se banhar em água. No oitavo dia, o leproso develevardois cordeiros, livresdedefeito, eumaovelha, tambémsemdefeito,bem como uma oferenda de farinha amassada com azeite, de volta aosacerdote,queosqueimaráemofertaaoSenhor.Osacerdotedeveentão,com o sangue da oferta, salpicar o lóbulo da orelha direita, o polegardireitoeodedãodopédireitodo leproso.Eledeve, emseguida, aspergirsetevezesoleprosocomoóleo.Sódepoisdetudoissofeitoseráoleprosoconsiderado livre do pecado e da culpa que levaram à sua lepra, emprimeirolugar,esóentãoeleterápermissãoparasejuntaràcomunidadedeDeus(Levítico14).

Obviamente, Jesus não está dizendo ao leproso que acabou de curarpara comprar dois pássaros, dois cordeiros, uma ovelha, uma tira demadeirade cedro, umcarretel de io carmesim,um ramodehissopo, umalqueiredefarinhaeumfrascodeóleoedartudoaosacerdotecomoumaoferenda a Deus. Ele está dizendo para o leproso se apresentar aosacerdote já tendo sido puri icado. Esse é um desa io direto não só àautoridadedosacerdote,masaopróprioTemplo.PoisJesusnãosócurouoleproso, ele o puri icou, tornando-o elegível a apresentar-se no Templocomo um verdadeiro israelita. E ele fez isso de graça, como um dom deDeus–semdízimo,semsacri ício–,portanto tomandoparasiospoderesconcedidosexclusivamenteaosacerdócioparajulgarumhomemdignodeentrarnapresençadeDeus.

Tal ataque lagrante sobre a legitimidade do Templo poderia ser

desprezadoedesconsiderado,desdequeJesuspermanecesseabrigadonaperiferia, na Galileia. Mas uma vez que ele e seus discípulos deixam suabase em Cafarnaum e começam lentamente a fazer o caminho paraJerusalém,curandoenfermoseexpulsandodemôniosaolongodocaminho,acolisãodeJesuscomasautoridadessacerdotais,eoImpérioRomanoqueas suporta, torna-se inevitável. Logo as autoridades em Jerusalém nãoserão mais capazes de ignorar esse exorcista itinerante e milagreiro.QuantomaispertoelechegardaCidadeSanta,maisurgentese tornaráanecessidadede silenciá-lo.Não sãoasaçõesmilagrosasde Jesusqueelestemem,masamensagemsimples,porémincrivelmenteperigosa,queJesusestátransmitindopormeiodelas:oReinodeDeusestápróximo.

fDecápolis,“dezcidades”emgrego,eraumgrupodedezcidades,outalvezmaisqueisso,todasdetradiçãogreco-romana,situadasentreaJudeiaeaSíria.(N.T.)

10.QuevenhaanósoteuReino

“A QUEHEIDECOMPARARoReinodeDeus?”,perguntou Jesus.Eleécomoumreipoderosoque, tendopreparadoumbanquetedecasamentograndiosoparao ilho,enviaseusservosaosquatrocantosdoreinoparachamarosconvidadosdehonraparaaalegreocasião.

“Diga aosmeus convidados que preparei o banquete”, o rei instrui osservos. “Osboiseoutrosanimais foramengordadoseabatidos.Tudoestápreparado.Venhaparaafestadecasamento.”

Osservos saemparaespalharasnotíciasdo rei.Noentanto,umaum,osconvidadosdehonrarecusamoconvite.“Eurecentementecompreiumpedaçodeterra”,dizum.“Tenhoquecuidardele.Porfavor,aceiteminhasdesculpas.”

“Compreicinco juntasdeboiseprecisotestá-los”,dizoutro. “Por favor,aceiteminhasdesculpas.”

“Euacabodemecasar”,dizumterceiro.“Nãopossoir.”Quando os servos retornam, eles informam ao rei que nenhum dos

convidados aceitou o convite, e que alguns deles não só se recusaram aparticipardacelebraçãocomodominaramosservosdorei,osmaltratarameatémesmoosmataram.

Numacessoderaiva,oreiordenaqueosservosprocurempelasruasevielasdo reino, reunindo todos aquelesquepossamencontrar – jovens evelhos,pobresefracos,oscoxos,osaleijados,oscegos,osmarginalizados–paratrazê-lostodosaobanquete.

Osservosassimofazemeafestacomeça.Mas,nomeiodascelebrações,oreipercebeumhóspedequenão foiconvidado,quenãoestáusandoasroupasdecasamento.

“Comochegasteaqui?”,oreiperguntaaoestranho.Ohomemnãotemresposta.“Amarrai-o pelos pés e pelasmãos!”, ordena o rei. “Jogai-o nas trevas,

ondehaveráprantoerangerdedentes.Poismuitosserãoconvidados,maspoucososescolhidos.”

Quanto aos convidados que se recusaram a ir ao casamento, aquelesquedominaramemataramos seus servos, o rei libera seu exército para

expulsá-losde casa, abatê-los comoovelhasequeimar suas cidadesatéochão.

“Aquelequetemouvidosparaouvir,queouça.”(Mateus22:1-4|Lucas14:16-24)

Dissonãosepodeterdúvida:otemacentraleuni icadordamensagemdos três breves anos doministério de Jesus foi a promessa do Reino deDeus. Praticamente tudo o que Jesus disse ou fez nos evangelhos tinha afunçãodeproclamarpublicamenteavindadoReino.Foi aprimeira coisasobreaqualelepregouapósaseparaçãodeJoãoBatista:“Arrependei-vos,oReinodeDeus estápróximo.” (Marcos1:15)EraonúcleodaoraçãodoSenhor, que João ensinou a Jesus e Jesus, por sua vez, ensinou a seusdiscípulos:“Painosso,queestásnoscéus,santi icadosejaoteunome.Quevenha a nós o teuReino…” (Mateus 6:9-13 | Lucas 11:1-2). Era o que osseguidores de Jesus foram orientados a se esforçarem para obter, acimadetudo–“BusquemprimeirooReinodeDeus,ea justiçadeDeus,entãotodasessascoisaslhesserãoacrescentadas”(Mateus6:33|Lucas12:31),pois somente abandonando tudo e todos pelo Reino de Deus eles teriamalgumaesperançadeneleentrar(Mateus10:37-39|Lucas14:25-27).

Jesusfalavatãofrequentemente,edeformatãoabstrata,sobreoReinodeDeusque édi ícil saber se elepróprio tinhauma concepçãouni icadadesse reino. A expressão – juntamente com seu equivalente em Mateus,“Reino do Céu” –mal aparece no Novo Testamento fora dos evangelhos.Embora numerosas passagens nas EscriturasHebraicas descrevamDeuscomo rei e único soberano, a expressão exata “Reino de Deus” apareceapenas no texto apócrifoSabedoria de Salomão (10:10), no qual ele évisualizadocomosituado isicamentenocéu,o lugarondeestáo tronodeDeus,onde a corte angelical atende a toda demanda sua e onde suavontadeéfeitasempreesemfalhas.

Noentanto,oReinodeDeusdosensinamentosdeJesusnãoéumreinocelestialexistenteemumplanocósmico.Aquelesquea irmamocontrárioapontamcomfrequênciaparaumaúnicapassagemnoevangelhode Joãoem que Jesus supostamente disse a Pilatos: “Meu reino não é dessemundo.” (João 18:36)Não apenas essa é a única passagemno evangelhoonde Jesus faz tal a irmação, ela é uma tradução incorreta do originalgrego. A frase “ouk estin ek tou kosmou” talvez seja mais bem traduzidacomo“nãoépartedessaordem/dessesistema[degoverno]”.Mesmoqueseaceiteahistoricidadedapassagem(emuitopoucosestudiososofazem),Jesus não está a irmando que o Reino de Deus é sobrenatural, ele está

dizendoqueédiferentedequalquerreinoougovernosobreaterra.Jesus também não apresenta o Reino de Deus como um reino futuro

distante,a serestabelecidono imdos tempos.Quando Jesusdiz “oReinodeDeusestápróximo”(Marcos1:15)ou“oReinodeDeusestánomeiodevós” (Lucas 17:21), ele está apontando para a ação salvadora de Deusnaquele momento, em seu tempo presente. É verdade, Jesus fala deguerras e revoltas, terremotos e fome, falsos messias e profetas queimpediriam o estabelecimento do Reino de Deus na terra (Marcos 13:5-37).Mas,longedeaugurarumfuturoapocalipse,aspalavrasdeJesussão,na realidade, uma descrição perfeita domomento em que ele vivia: umaeradeguerras, fomese falsosmessias.Naverdade, JesuspareceesperarqueoReinodeDeusseestabeleçaaqualquermomento:“Eulhesdigo,háaqueles aqui que não provarão a morte até que vejam o Reino de Deuschegarcompoder.”(Marcos9:1)

Se o Reino de Deus não é nem puramente celestial nem totalmenteescatológico,entãooqueJesusestavapropondodeveriaserumreinofísicoepresente:umreino real,comumreideverdadequeestavaprestesaserestabelecidonaterra.Écertamenteassimqueosjudeusteriamentendidoa proposta. A concepção particular de Jesus sobre oReino deDeus podetersidodiferenteeumtantooriginal,massuasconotaçõesnãoteriamsidoestranhas ao público. Jesus estava apenas reiterando o que os zelotasvinham pregando há anos. O Reino de Deus, nos ensinamentos de Jesus,eraapenasumatalhoparaaideiadeDeuscomooúnicosoberano,oúnicorei–enãoapenassobre Israel,massobre todoomundo. “Tudonocéuena terra Vos pertence”, diz a Bíblia sobre Deus. “Vosso é o reino… Vósgovernaissobretudo.”(1Crônicas29:11-12;vertambémNúmeros23:21,Deuteronômio 33:5) Na verdade, o conceito da soberania única de Deusestava por trás da mensagem de todos os grandes profetas do passado.Elias,Eliseu,Miqueias,Amós,Isaías,Jeremias–esseshomensprometeramqueDeus iria libertar os judeus do cativeiro e libertar Israel do domínioestrangeiroseelesserecusassemaserviraqualquersenhorterrestreoucurvar-se a qualquer rei, salvo o primeiro e único rei do universo. Essamesma crença formava a base de quase todos os movimentos deresistência judaica, desde os macabeus, que tinham libertado o país dojugo do domínio selêucida em 164 a.C., depois que o insano rei gregoAntíocoEpifânioexigiraqueosjudeusoadorassemcomoaumdeus,atéosradicais e revolucionários que resistiram à ocupação romana – osbandidos,ossicários,oszelotaseosmártiresemMasada–,todaalistaaté

o último dos grandes messias fracassados, Simão, ilho de Kochba, cujarebeliãoem132d.C.invocouaexataexpressão“ReinodeDeus”comoumapeloàliberdadedodomínioestrangeiro.

Avisãode Jesus a respeitoda soberaniaúnicadeDeusnãoeramuitodiferente da visão dos profetas, bandidos, zelotas e messias que vieramantesedepoisdele,comoevidenciadoporsuarespostaàperguntasobreopagamentode tributoaCésar.Naverdade, a suavisãodoReinodeDeusnão era muito diferente da de seu mestre, João Batista, de quem eleprovavelmente pegou a expressão. O que fez sua interpretação serdiferentedade João,noentanto, foiasuaconcordânciacomoszelotasdeque o Reino de Deus exigia não apenas uma transformação interna emdireção à justiça e à retidão, mas uma completa inversão do sistemapolítico, religioso e econômico do momento. “Bem-aventurados vós, ospobres,poisévossooReinodeDeus.Bem-aventuradosvósqueestaiscomfome, pois sereis alimentados. Bem-aventurados vós que chorais, porquelogoireissorrir.”(Lucas6:20-21)

Essas duradouras palavras das Bem-aventuranças são, mais do quequalquer outra coisa, uma promessa de iminente libertação dasubserviênciaedodomínioestrangeiro.Elaspreveemumaordemmundialradicalmente nova, onde os mansos herdam a terra, os doentes sãocurados,ofracosetornaforte,osfamintossãoalimentadoseospobressetornamricos.NoReinodeDeus,a riquezaserá redistribuídaeasdívidasserão canceladas. “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão osprimeiros.”(Mateus5:3-12|Lucas6:20-24)

Masissotambémsigni icaquequandooReinodeDeusforestabelecidonaterra,osricosserãopobres,osfortessetornarãofracoseospoderososserão substituídos pelos sem poder. “Quão di ícil será para os ricosentraremnoReinodeDeus!”(Marcos10:23)Emoutraspalavras,oReinode Deus não é uma fantasia utópica na qual Deus vinga os pobres e osdespossuídos. É uma nova e arrepiante realidade na qual a ira de Deusdeságua sobre os ricos, os fortes e os poderosos. “Ai de vós, os ricos,porque recebestesavossa consolação.Aidevósqueestais saciados,poistereisfome.Aidevósqueestaisrindoagora,poislogoireisvoslamentar.”(Lucas6:24-25)

As implicaçõesdaspalavras de Jesus são claras: oReinodeDeus estáprestesa serestabelecidona terra;Deusestáàbeirade restaurar Israelpara a glória. Mas a restauração de Deus não pode acontecer sem adestruição da ordem presente. O governo de Deus não pode ser

estabelecido sem a aniquilação dos atuais líderes. Dizer que “o Reino deDeusestápróximo”,portanto, éomesmoquedizerqueo imdo ImpérioRomano está próximo. Isso signi ica que Deus vai substituir César comogovernadordaterra.OssacerdotesdoTemplo,aricaaristocraciajudaica,aelite de Herodes e o usurpador pagão na distante Roma – todos essesestavamprestesasentirairadeDeus.

Simpli icando, o Reino de Deus é um chamado à revolução. E querevolução, especialmente uma contra um império cujos exércitos haviamdevastadoaterraseparadaporDeusparaseupovoescolhido,poderiaserlivre de violência e derramamento de sangue? Se oReino deDeus não éumafantasiaetérea,dequeoutra formapoderiaserestabelecidosobre aterraocupadaporumaenormepresença imperial, exceto atravésdousoda força? Os profetas, bandidos, zelotas e messias do tempo de Jesussabiamdisso, razão pela qual não hesitaram em empregar a violência natentativa de estabelecer o governo de Deus na terra. A questão é: Jesustambémsentiaomesmo?SeráqueeleconcordavacomseucolegamessiasEzequias,ochefedosbandidos, Judas,oGalileu,Menahem,Simão, ilhodeGiora, Simão, ilhodeKochba, eosdemais,queaviolênciaeranecessáriaparatrazeroReinodeDeusàterra?Seráqueseguiaadoutrinazelota,deque a terra tinha de ser forçosamente puri icada de todos os elementosestrangeiros,assimcomoDeushaviaexigidonasescrituras?

Pode não haver nenhuma questão mais importante do que essa paraaqueles que tentam separar o Jesus histórico do Cristo cristão. Arepresentação comum de Jesus como um paci icador inveterado que“amava seus inimigos” e “deu a outra face” foi construída principalmentepara retratá-lo como um pregador apolítico, sem interesse ou, mesmo,conhecimento do mundo politicamente turbulento em que viveu. EssaimagemdeJesusjáfoidemonstradacomosendoumacompletainvenção.OJesus da história tinha uma atitude bem mais complexa em relação àviolência. Não há nenhuma evidência de que o próprio Jesus defendesseabertamenteaçõesdesse tipo.Masele certamentenãoerapaci ista. “Nãopenseisquevimtrazerpazàterra.Eunãovimtrazerapaz,masaespada.”(Mateus10:34|Lucas12:51)

Após a revolta judaica e a destruição de Jerusalém, a Igreja cristãprimitivatentoudesesperadamentedistanciarJesusdonacionalismozelotaque levara àquela guerra terrível. Como resultado, declarações tais como“amar seus inimigos” e “dar a outra face” foram despidas de maneiradeliberada de seu contexto judaico e transformadas em princípios éticos

abstratos aos quais todos os povos poderiam aderir, independentementedesuasconvicçõesétnicas,culturaisoureligiosas.

Noentanto, sealguémquiserdescobrirnoquerealmenteacreditavaopróprio Jesus,nuncasedeveperderdevistaesse fato fundamental: JesusdeNazaréfoiumjudeuenadamais.Comojudeu, Jesusestavapreocupadoexclusivamente com o destino de seus companheiros judeus. Israel eratudooqueimportavaparaJesus.Eleinsistiaquesuamissãoera“somenteparaasovelhasperdidasdacasadeIsrael”(Mateus15:24)eordenavaaosdiscípulosque compartilhassemaboanotícia comninguémmais alémdeseus companheiros judeus: “Não passem perto dos gentios e não entremna cidade dos samaritanos.” (Mateus 10:5-6) Sempre que ele mesmoencontrava gentios, mantinha distância e muitas vezes os curava comrelutância.Comoexplicouàmulhersiro-feníciaqueveioaeleembuscadeajuda para a ilha: “Deixe os ilhos [que para Jesus signi icava Israel]serem alimentados primeiro, porque não é bom tomar o pão dos ilhos elançá-lo aos cães [quepara ele signi icava os gentios comoela].” (Marcos7:27)

Quando se tratavado coraçãoedaalmada fé judaica, a leideMoisés,Jesus era categóricoquea suamissãonãoera abolir a lei,mas cumpri-la(Mateus 5:17). Essa lei fazia uma clara distinção no que diz respeito àsrelaçõesentre os judeus e às relaçõesentre judeus e estrangeiros. Omandamento muitas vezes repetido de “amar o teu próximo como a timesmo” foi originalmente voltado de forma estrita para o contexto dasrelaçõesinternasdeIsrael.Oversículoemquestãodiz:“Nãotevingarásouguardarás rancor contraninguémdoteupovo ,masamaráso teupróximocomo a ti mesmo.” (Levítico 19:18) Para os israelitas, bem como para acomunidade de Jesus na Palestina do século I, “próximo” signi icava oscompanheiros judeus.Noquediz respeitoao tratamentoaestrangeiroseforasteiros, opressores e ocupantes, no entanto, a Torá não poderia sermaisclara:“Tudeverásexpulsá-losdediantedeti.Tunãofarásnenhumaaliança com eles e seus deuses.Eles não viverão na tua terra .” (Êxodo23:31-33)

Para aqueles que, literalmente, veem Jesus como o ilho gerado porDeus, o judaísmo de Jesus é totalmente irrelevante. Se Cristo é divino,entãoeleestáacimadequalquerleioucostumeespecial.Masparaaquelesque procuram o camponês judeu simples e o pregador carismático queviveunaPalestinahá2milanos,nãohánadamaisimportantedoqueessaverdade inegável: o mesmo Deus que a Bíblia chama de “homem de

guerra”(Êxodo15:3),oDeusquerepetidamentecomandaomassacredecada homem, mulher e criança estrangeiros que ocupam a terra dosjudeus, o “Deus borrifado de sangue” de Abraão, Moisés, Jacó e Josué(Isaías63:3),oDeusque“esmagaacabeçadeseusinimigos”,queordenaaseusguerreirosbanharemospésnosanguedosinimigosedeixaremoscorposparaos cães comerem(Salmo68:21-23), esseéoúnicoDeusqueJesusconheciaeoúnicoDeusqueeleadorava.

NãohánenhumarazãoparaconsideraraconcepçãodeJesusarespeitode seus vizinhos e inimigos como tendo sidomais oumenos inclusiva doqueadequalqueroutro judeudeseu tempo.Seuscomandospara “amaros vossos inimigos” e “dar a outra face” devem ser lidos como dirigidosexclusivamente aos seus companheiros judeus e concebidos como ummodelo de relações pací icas exclusivamente dentro da comunidadejudaica. Os mandamentos não têm nada a ver com a forma de tratar osestrangeirose forasteiros,especialmenteaqueles selvagens “saqueadoresdo mundo” que ocuparam a terra de Deus em violação direta da lei deMoisés–queJesusentendiaestarcumprindo.Elesnãodevemviveremtuaterra.

Emqualquercaso,nemomandamentodeamarosinimigosnemoapeloparadaraoutrafaceéequivalenteaumaconvocaçãoparaanãoviolênciaou não resistência. Jesus não era um tolo. Ele entendeu o que qualqueroutro pretendente aomanto domessias tinha entendido: a soberania deDeusnãopoderiaserestabelecidaanãoserpormeiodaforça.“DesdeosdiasdeJoãoBatistaatéagora,oReinodeDeustemvindoviolentamente,eosviolentostentamarrebatá-loparalonge.”(Mateus11:12|Lucas16:16)

Foi justamentepara se preparar para as consequências inevitáveis deestabeleceroReinodeDeusnaterraqueJesusescolheuadedoseusdozeapóstolos.OsjudeusdotempodeJesusacreditavamqueviriaodiaemqueas doze tribos de Israel seriam reconstituídas para formar uma únicanação,umanaçãounida.Osprofetastinhamprevisto:“Euvourestaurarodestinodomeupovo,IsraeleJudá,dizoSenhor,eeuvoutrazê-losdevoltapara a terra que dei a seus antepassados e eles tomarão posse dela.”(Jeremias 30:3) Ao designar os Doze e prometer que eles “sentar-se-iamemdozetronosparajulgarasdozetribosdeIsrael”(Mateus19:28|Lucas22:28-30),Jesussinalizavaqueodiaqueelesestavamesperando,quandooSenhordosExércitosiria“quebrarojugoqueestásobreopescoço”dosjudeuse “romper suas cadeias” (Jeremias 30:8), tinha chegado. Arestauração e renovação da verdadeira nação de Israel, que João Batista

haviapregado,estavafinalmenteaoalcance.OReinodeDeusestavaaqui.Esta foiumamensagemousadaeprovocadora.Porque,comooprofeta

Isaías advertira, Deus iria “reunir os povos dispersos de Israel e o povodisperso de Judá” para uma única inalidade: aguerra. O novo,reconstituído Israel, nas palavras do profeta, iria “levantar um sinal-estandarteparaasnações”,iria“atacarviolentamenteos ilisteusnooeste”e “saquear os povos do Oriente”. Ele reaveria a terra que Deus deu aosjudeus e limparia dela, para sempre, o fedor da ocupação estrangeira(Isaías11:11-16).

A designação dos Doze era, se não uma chamada para a guerra, umaadmissão de sua inevitabilidade, e é por isso que Jesus advertiu-osexpressamente do que estava por vir: “Se alguém quer me seguir,renuncieasimesmo,tomeasuacruzesiga-me.”(Marcos8:34)Essanãoéuma declaração de abnegação, como tão frequentemente vem sendointerpretada. A cruz é a punição por sedição, não um símbolo deabnegação. Jesus estava advertindo os Doze que seu status como apersoni icação das doze tribos que iriam reconstituir a nação de Israel elibertá-la do jugo da ocupação seria justamente compreendido por Romacomo traição e, portanto, inevitavelmente levaria à cruci icação. Era umaadmissão que Jesus fazia com frequência a si mesmo. Vezes sem contaJesus lembrava aos discípulos do que estava por vir para ele: rejeição,prisão, tortura e execução (Mateus 16:21, 17:22-23, 20:18-19; Marcos8:31, 9:31, 10:33; Lucas 9:22, 44, 18:32-33). Pode-se argumentar que osevangelistas, que estavam escrevendo décadas depois dos eventosdescritos,sabiamqueahistóriadeJesusiriaacabarnumacruznoGólgota,por issoelescolocaramessasprevisõesnabocade Jesusparacomprovarseu talento como profeta. Mas o grande volume de declarações de Jesussobre sua captura e cruci icação inevitável indicaque as suas frequentesprofecias sobre simesmopodem ser históricas.Denovo, não eraprecisoser profeta para prever o que aconteceria com alguém que desa iasse ocontrole sacerdotal do Templo ou a ocupação romana da Palestina. Ocaminhodiantede JesusedosDozehaviasidodemonstradopelosmuitosaspirantesmessiânicosquevieramantesdeles.Odestinoestavaclaro.

IssoexplicaporqueJesusesforçou-setantoemocultaraverdadesobreoReinodeDeus, a não ser para os seusdiscípulos. Ele reconhecia que anova ordem mundial que imaginava era tão radical, tão perigosa, tãorevolucionária que a única resposta possível de Roma seria prender eexecutar todos eles por sedição. Ele, portanto, conscientemente escolheu

velaroReinodeDeusemparábolasobscuraseenigmáticasquesãoquaseimpossíveis de se entender. “O segredo do Reino de Deus foi dado paraque vós o saibais”, Jesus diz aos discípulos. “Mas, para os de fora, tudo édito por parábolas, para que possam ver e não percebam, para quepossamouvirenãoentendam.”(Marcos4:11-12)

Qualé,então,oReinodeDeusnosensinamentosdeJesus?Éaomesmotempoafestadecasamentoalegredentrodosalãonobredoreieasruasbanhadas de sangue fora de seus muros. É um tesouro escondido numcampo;vendatudooquetiverecompreaquelecampo(Mateus13:44).Éumapérolaescondidadentrodeumaconcha;sacri iquetudoparabuscaraquelaconcha(Mateus13:45).Éumasementedemostarda–amenordassementes–enterradanosolo.Umdia,embreve,elavai loresceremumaárvore majestosa, e os pássaros se aninharão em seus ramos (Mateus13:31-32). É uma rede tirada domar, repleta de peixes bons e ruins; osbons devem ser mantidos e os ruins, descartados (Mateus 13:47). É umprado as ixiado de ervas daninhas e trigo. Quando o ceifeiro vier, vaicolherotrigo,masaservasdaninhaselevaijuntarejogarnofogo(Mateus13:24-30).Eoceifeiroestáquaseaqui.AvontadedeDeusestáprestesaserfeitanaterra,assimcomonocéu.Então,tireasuamãodoaradoenãoolhe para trás, deixe que osmortos enterrem osmortos, deixe para trásseumaridoe suaesposa, seus irmãose irmãse ilhos, eprepare-separareceber o Reino de Deus. “O machado já está colocado junto à raiz daárvore.”

Claro, nenhuma das misti icações de Jesus sobre o signi icado e asimplicaçõesdoReinodeDeus iria impedi-lode serpreso e cruci icado.Aa irmaçãodeJesusdequeaatualordemestavaprestesaserrevertida,dequeosricoseospoderososiamsetornarpobresefracos,dequeasdozetribosdeIsraelembreveseriamreconstituídasemumaúnicanaçãoedeque Deus, mais uma vez, seria o único governante em Jerusalém –nenhuma dessas declarações provocatórias teria sido bem recebida noTemplo, onde o sumo sacerdote reinava, ou na fortaleza Antônia, ondeRomagovernava.A inal, seoReinodeDeus, como Jesusapresentava,erade fato um reino real, ísico, então ele não exigia um rei real, ísico?Nãoestava Jesus requerendo aquele título real para simesmo? Ele prometeuumtronoparacadaumdos seusdozeapóstolos.Não tinhaeleemmenteumtronoparasipróprio?

De fato, Jesusnão forneceudetalhes sobreanovaordemmundialqueimaginou (e nenhum outro pretendente real de seu tempo o fez). Não

existem programas práticos, nem agendas detalhadas, nemrecomendações políticas e econômicas especí icas nos ensinamentos deJesussobreoReinodeDeus.Eleparecenãotertidonenhuminteresseemde inircomofuncionariaoReinodeDeusnaterra.IssocaberiasomenteaDeusdeterminar.MasnãohádúvidadequeJesustinhaumavisãoclaradeseupapelnoReinodeDeus:“SepelodedodeDeuseuexpulsodemônios,entãocertamenteoReinodeDeusjáchegouatévós.”

A presença doReino deDeus tinha dado poder a Jesus para curar osenfermos e os endemoniados.Mas, aomesmo tempo, eram as curas e osexorcismos de Jesus que estavam fazendo do Reino deDeus algo que sepodiaexperimentar.Foi,emoutraspalavras,umarelaçãosimbiótica.ComoagentedeDeusnaterra–aquelequebrandiaodedodeDeus–,opróprioJesus estava inaugurandooReinodeDeus e estabelecendoodomíniodeDeus por meio de suas ações milagrosas. Ele foi, com efeito, apersoni icaçãodoReinodeDeus.Quemmaisdeveriasentar-senotronodeDeus?

Nãoédeseadmirar,então,queno inaldesuavida,quandosepostouespancadoe feridodiantedePôncioPilatospara responderàs acusaçõesfeitas contra ele, uma única pergunta fosse feita a Jesus. Era a únicaquestão que importava, a única pergunta que ele deveria responder aogovernador romano antes de ser enviado para a cruz para receber apuniçãopadrãoreservadaatodososrebeldeseinsurgentes.

“Tuésoreidosjudeus?”

11.Quemvósdizeisquesou?

MAISOUMENOSDOISANOS sepassaramdesdeque JesusdeNazaréconheceuJoãoBatistaàsmargensdorioJordãoeseguiu-oparaodesertodaJudeia.Nesseperíodo,JesusnãosódivulgouamensagemdomestresobreoReinodeDeus;eleaexpandiuemummovimentodelibertaçãonacionalparaossofredoreseoprimidos–ummovimentofundadosobreapromessadequeDeus iriaembreve interviremnomedoshumildesedospobres,punirotemidopoder imperialromanocomopunirahámuitotempooexércitodofaraóe libertarseuTemplodasmãosdoshipócritasqueocontrolavam.Omovimento de Jesus atraiu um corpo de discípulos zelosos, a doze dosquaisfoidadaautoridadeparapregarasuamensagemporcontaprópria.Emcadavilarejoecidade,nasaldeiasenoscampos,grandesmultidõessereúnemparaouvirJesuseseusdiscípulospregaremeparaparticipardascuraseexorcismosgratuitosqueelesoferecemparaaquelesquebuscamsuaajuda.

Apesar de seu relativo sucesso, no entanto, Jesus e seus discípulosrestringiram amaior parte de suas atividades às províncias do norte daGalileia, Fenícia e Gaulanitis, sabiamentemantendo uma distância segurada JudeiaedasededaocupaçãoromanaemJerusalém.Elesdesenharamumcaminho tortuosoatravésdocampogalileu,desviandocompletamentedascapitaisreaisdeSéforiseTiberíades,paranãoenfrentarasforçasdotetrarca. Embora tivessem se aproximado das prósperas cidadesportuárias de Tiro e Sidon, abstiveram-se de realmente entrar emqualquer das duas. Eles vagaram ao longo da borda da Decápolis, masevitaram rigorosamente as cidades gregas e as populações pagãs nelasexistentes.Nolugardasricascidadesgrandesdaregião,Jesuscentrousuaatenção emaldeias mais pobres, como Nazaré, Cafarnaum, Betsaida eNaim,ondesuapromessadeumanovaordemmundialeraansiosamenterecebida,bemcomonascidadescosteirasquemargeiamomardaGalileia,exceto por Tiberíades, é claro, onde Herodes Antipas se sentava ansiosoemseutrono.

Depois de dois anos, notícias de Jesus e seu grupo de seguidoreschegaram inalmenteàcortedeAntipas.Certamente, Jesusnão tinhasido

tímido na condenação “daquela Raposa” que pretendia a tetrarquia daGalileia e da Pereia, nem tinha contido seu desprezo pelos sacerdotes eescribas hipócritas – a “raça de víboras” –, que ele a irmava que seriamdestituídos, na vinda do Reino de Deus, por prostitutas e cobradores depedágio. Ele não só curava aqueles a quem o Templo expulsava comopecadores sem salvação, mas puri icava-os de seus pecados, assimtornando irrelevante o inteiro estabelecimento sacerdotal e seus carosrituais exclusivistas. Suas curas e exorcismos atraíammultidões grandesdemais para o tetrarca emTiberíades ignorar, embora, pelomenos até omomento, as massas volúveis parecessem menos interessadas nosensinamentos de Jesus do que em seus “truques”, tanto que quandocontinuaram pedindo um sinal para que pudessem acreditar em suamensagem, Jesusparece inalmente ter se cansado. “Éumageraçãomáeadúltera que pede um sinal; nenhum sinal será dado a ela.” (Mateus12:38)

Toda essa atividade fazia com que os bajuladores na corte de Antipasdiscutissemnervosamentesobrequemessepregadorgalileupoderiaser.AlgunspensamqueeleéEliasrenascido,outalvezumdosoutros“profetasdo passado”. Essa não é uma conclusão totalmente irracional. Elias, queviveu no norte do reino de Israel no século IX a.C., foi o paradigma doprofeta milagroso. Um guerreiro de Yahweh temível e intransigente,esforçou-se para acabar com a adoração do deus cananeu Baal entre osisraelitas. “Quanto tempo vós ireis continuar mancando com doispensamentos?”, Elias perguntou ao povo. “Se Yahweh é Deus, segui-o; seBaaléDeus,entãoseguiaele.”(1Reis18:21)

ParaprovarasuperioridadedeYahweh,Eliasdesa iou450sacerdotesde Baal para uma competição. Eles iriam preparar dois altares, cada umcomumtourocolocadoemumpilardemadeira.Ossacerdotes orariam aBaalparaofogoconsumiraoferenda,enquantoEliasorariaaYahweh.

Dia enoiteos sacerdotesdeBaal oraram.Eles gritarame cortaram-secomespadase lanças,até icaremensopadosdesangue.EleschoravameimploravamesuplicavamaBaalparatrazerofogo,masnadaaconteceu.

Elias, então, despejou doze jarras de água em sua pira, deu um passopara trás e invocouoDeusdeAbraão, de Isaac e de Israel paramostrarsua força. No mesmo momento uma grande bola de fogo caiu do céu econsumiuotouro,alenha,aspedras,apoeiranochãoeaspoçasdeáguaem torno do sacri ício. Quando os israelitas viram a obra de Yahweh,caíramdejoelhoseoadoraramcomoDeus.MasEliasnãotinhaterminado.

Ele agarrou os 450 profetas de Baal, forçou-os para dentro do vale deWadiQuisome,deacordocomasescrituras,abateucadaumdeles,atéoúltimo,comasprópriasmãos,poiseleera“zelosoparacomoSenhorDeusTodo-Poderoso”(1Reis18:20-40,19:10).

Tão grande era a idelidade de Elias que ele não teve permissão paramorrer, tendosido levadoparao céunumredemoinhopara se sentaraolado do trono de Deus (2 Reis 2:11). Seu retorno, no inal dos tempos,quandoele iriareunirasdozetribosdeIsraeleacolheraeramessiânica,foi predita pelo profeta Malaquias: “Eis que eu vos envio o profeta Eliasantesquechegueograndee terríveldiadoSenhor.Elevoltaráocoraçãodos pais aos ilhos, e o coração dos ilhos a seus pais, para que eu nãovenhaefiraaterracomumamaldição.”(Malaquias4:5-6)

A profecia de Malaquias explica por que os cortesãos em Tiberíadesviam em Jesus a reencarnação do mais emblemático profeta do im dostempos. Jesus pouco fez para desencorajar tais comparações,conscientemente tomando para si os símbolos do profeta Elias – oministérioitinerante,aconvocaçãoperemptóriadediscípulos,amissãodereconstituirasdozetribos,ofocoestritonasregiõesdonortedeIsraeleossinaisemaravilhasquerealizavaemtodososlugaresaondeia.

Antipas, no entanto, não está convencido dos murmúrios de seuscortesãos. Ele acredita que o pregador de Nazaré não é Elias, mas JoãoBatista, a quem ele matou, ressuscitado dos mortos. Cego pela culpa daexecuçãode João, ele é incapaz de conceber a verdadeira identidade deJesus(Mateus14:1-2;Marcos6:14-16;Lucas9:7-9).

Enquanto isso, Jesuseseusdiscípuloscontinuamsua lenta jornadaemdireção a Judeia e Jerusalém. Deixando para trás a aldeia de Betsaida,onde,deacordocomoevangelhodeMarcos,Jesusalimentou5milpessoascom apenas cinco pães e dois peixes (Marcos 6:30-44), os discípuloscomeçamaviajaraolongodosarredoresdeCesareiadeFilipe,umacidaderomanaaonortedomardaGalileiaqueservecomosededatetrarquiadeFilipe, outro ilho de Herodes, o Grande. Enquanto caminham, Jesusperguntacasualmenteaseusseguidores:“Quemaspessoasdizemqueeusou?”

A resposta dos discípulos re lete as especulações em Tiberíades:“Alguns dizem que tu és João Batista. Outros dizem Elias. Ainda outrosdizemquetués Jeremiasouumdosoutrosprofetasressuscitadosdentreosmortos.”

Jesusparaevolta-separaosdiscípulos.“Masquemvósdizeisquesou?”

Cabe a Simão Pedro, líder nominal dosDoze, responder pelos demais:“Tuésomessias”,dizPedro, inferindonessemomento crucialnahistóriado evangelho o mistério que o tetrarca em Tiberíades não poderia demaneira alguma compreender (Mateus 16:13-16; Marcos 8:27-29; Lucas9:18-20).

Seis dias depois, Jesus leva Pedro e os irmãos Tiago e João, ilhos deZebedeu,aumaltomonte,ondeeleémilagrosamentetransformadodiantedeseusolhos.“Suasvestestornaram-sebrancasapontodeofuscar,comoaneve”,escreveMarcos,“maisbrancasdoquequalquertintureirosobreaterra poderia branquear.” De repente, Elias, o profeta e precursor domessias,aparecenamontanha.ComeleestáMoisés,ograndelibertadorelegislador de Israel, o homem que rompeu os grilhões dos israelitas econduziuopovodeDeusdevoltaparaaTerraPrometida.

ApresençadeEliasnamontanhajáforaantecipadapelasespeculaçõesemTiberíadesepelasreflexõesdosdiscípulosemCesareiadeFilipe.Masaaparição deMoisés é algo completamente diferente. Os paralelos entre achamada história da trans iguração e o relato no Êxodo de Moisésrecebendo a lei no monte Sinai são di íceis de ignorar. Moisés tambémlevoutrêscompanheiroscomeleatéamontanha–Aarão,NadabeeAbiú–,e também foi isicamente transformado pela experiência. No entanto,enquantoatransformaçãodeMoisés foioresultadodeseucontatocomaglóriadeDeus,Jesusétransformadoporsuaprópriaglória.Naverdade,acena é escrita de tal forma queMoisés e Elias – a lei e os profetas – sãoclaramenteapresentadoscomosubordinadosaJesus.

Osdiscípulos icamaterrorizadoscomavisão,ecomrazão.Pedrotentaaliviar a inquietação oferecendo-se para construir três tabernáculos nolocal: um para Jesus, outro para Elias e outro paraMoisés. Enquanto elefala,umanuvemenvolveamontanha–talcomoaconteceraséculosatrás,nomonte Sinai – e uma voz de dentro dela ecoa as palavras que foramproferidas do alto no dia em que Jesus começou o seu ministério no rioJordão: “Este é o meu ilho. O Bem-Amado. Ouçam-no”, diz Deus,concedendoa Jesusomesmoapelido(“hoAgapitos”, “oBem-Amado”)quetinha dado ao rei Davi. Assim, o que a corte de Antipas não poderiaconceber, e Simão Pedro só poderia supor, está agora divinamentecon irmado pela voz de uma nuvem no topo de umamontanha: Jesus deNazarééomessiasungido,oreidosjudeus(Mateus17:1-8;Marcos9:2-8;Lucas9:28-36).

O que faz comque essas três cenas claramente interligadas sejam tão

signi icativaséqueatéessepontonoministériodeJesus,particularmentecomovinhasendoapresentadonoprimeiroevangelho,odeMarcos, Jesusnão izera nenhuma declaração sobre sua identidade messiânica. Naverdade, ele tentara repetidamente ocultar quaisquer aspiraçõesmessiânicas que pudesse ter tido. Ele silencia os demônios que oreconhecem(Marcos1:23-25,34,3:11-12), faz jurarsegredoàquelesquecura (Marcos 1:43-45, 5:40-43, 7:32-36, 8:22-26). Ele se disfarça emparábolas incompreensíveisesedáaotrabalhodeocultarsua identidadeemissãodasmultidõesquesereúnememtornodele(Marcos7:24).Vezessem conta Jesus repele, evita, escapa e, às vezes, francamente rejeita otítulodemessiasconcedidoaeleporoutros.

Existeumtermoparaesseestranhofenômeno,quetemsuasorigensnoevangelho de Marcos, mas que pode ser rastreado ao longo dosevangelhos.Éochamado“segredomessiânico”.

Alguns acreditam que o segredo messiânico é invenção do próprioevangelista, que é ou um dispositivo literário para revelar lentamente averdadeira identidadede Jesusouum truque inteligenteparaenfatizaroquãomaravilhosaeconvincenteerasuapresençamessiânica,poisapesarde suasmuitas tentativas de esconder sua identidade dasmultidões, elasimplesmente não podia ser escondida. “Quantomais ele lhes ordenasse[nãocontaraninguémsobreele]”,escreveMarcos, “maisexcessivamenteelesoproclamavam.”(Marcos7:36)

No entanto, isso pressupõe um nível de habilidade literária noevangelho de Marcos para o qual não existe nenhuma evidência (oevangelhodeMarcoséescritoemumgregoelementarerústico,quetraiaeducaçãolimitadadoautor).Emprimeirolugar,anoçãodequeosegredomessiânicopossatersidoamaneiradeMarcos ir lentamenterevelandoaidentidade de Jesus contraria a a irmação teológica fundamental deabertura do evangelho: “Este é o começo das boas-novas de Jesus,oCristo.” (Marcos 1:1) Independentemente disso, mesmo no momento emque a identidademessiânica de Jesus é imaginada pela primeira vez porSimão Pedro em sua con issão dramática fora de Cesareia de Filipe – defato,atémesmoquandoasuaidentidadeéespetacularmentereveladaporDeusnamontanha–,Jesusaindacomandaseusdiscípulosafazeremsigilo,severamente ordenando a eles que não contem a ninguém o que Pedroconfessou (Marcos 8:30) e proibindo as três testemunhas de suatransfiguraçãodedizerumapalavrasobreoqueviram(Marcos9:9).

ÉmaisprovávelqueosegredomessiânicopossaseratribuídoaoJesus

histórico, embora talvez tenha sido embelezado e reconstruído noevangelhodeMarcos,antesdeseradotadoaesmoecomreservasóbviasporMateuseLucas.Queosegredomessiânicopossaserhistóricoajudaaexplicar por que os redatores de Marcos deram-se tanto trabalho paracompensarainterpretaçãodeseupredecessor,deummessiasqueparecenão querer nada a ver com o título. Por exemplo, enquanto o relato deMarcos sobre a resposta de Simão Pedro termina com Jesus sem aceitarnem rejeitar o título, mas simplesmente ordenando os discípulos a “nãocontar a ninguém sobre ele”, o relato deMateus sobre amesmahistória,que tomou forma vinte anos depois, termina com Jesus respondendo aPedro com uma retumbante con irmação de sua identidade messiânica:“Bem-aventurado sejas, Simão, ilho de Jonas!”, exclama Jesus. “Carne esangue não revelaram isso a ti: foi meu pai no céu que o fez.” (Mateus16:17)

Em Marcos, o momento milagroso no topo da montanha termina semcomentário de Jesus, apenas um lembrete irme para não contarem aninguémoquetinhaacontecido.MasemMateusatrans iguraçãoterminacom um longo discurso de Jesus no qual ele identi ica João Batista comoEliasrenascido,assimexplicitamentereivindicandoparasimesmo,comoosucessor de João/Elias, o manto do messias (Mateus 17:9-13). E, noentanto, apesar dessas elaborações apologéticas, mesmoMateus e Lucasconcluem tanto a revelação de Pedro quanto a trans iguração comcomandos rigorosos de Jesus para, nas palavras deMateus, “não dizer aninguémqueeleeraomessias”(Mateus16:20).

Se realmente o segredo messiânico pode ser atribuído ao Jesushistórico, entãoelepoderiamuitobemsera chaveparadesvendarnãooqueaIgrejaprimitivapensavaqueJesusfosse,masoqueopróprioJesuspensava ser. Na verdade, essa não é uma tarefa fácil. É extremamentedi ícil, se não impossível, contar com os evangelhos para acessar aautoconsciênciade Jesus.Como já foiditováriasvezes,osevangelhosnãosãosobreumhomemconhecidocomoJesusdeNazaré,queviveuhá2milanos,massobreummessiasqueosescritoresdoevangelhoviamcomoumser eterno sentado à direita de Deus. Os judeus do século I, queescreveram sobre Jesus, já tinham decidido quem ele era. Eles estavamconstruindoumargumentoteológicosobreanaturezaeafunçãodeJesuscomo Cristo , e não compondo uma biogra ia histórica sobre um serhumano.

Ainda assim, não há nenhuma dúvida sobre a tensão que existe nos

evangelhosentreaformacomoaIgrejaprimitivaviaJesuseaformacomoJesuspareceverasimesmo.Obviamente,osdiscípulosqueseguiramJesusviam-no como o messias, tanto durante a sua vida como imediatamenteapós a sua morte. Mas não se deve esquecer que as expectativasmessiânicas não eram absolutamente de inidas de modo uniforme naPalestinadoséculo I.Mesmoos judeusqueconcordavamque Jesuseraomessias não concordavam com o que realmente isso signi icava. Quandovasculhavamo punhado de profecias das escrituras, eles descobriamumelenco confuso,muitas vezes contraditório, de pontos de vista e opiniõessobre a missão e a identidade do messias. Ele seria um profetaescatológico, que inauguraria o Fim dos Dias (Daniel 7:13-14; Jeremias31:31-34). Ele seria um libertador que liberaria os judeus da escravidão(Deuteronômio18:15-19;Isaías49:1-7).EleseriaumpretendenterealqueiriarecriaroReinodeDavi(Miqueias5:1-5;Zacarias9:1-10).

Na Palestina do século I, quase todos os pretendentes ao manto domessias cabiam perfeitamente em um desses paradigmas messiânicos.Ezequias, o chefe dos bandidos, Judas, o Galileu, Simão da Pereia eAtronges, o pastor, todos modelaram-se a partir do ideal de Davi, assimcomoMenahem e Simão, ilho de Giora, durante a Guerra Judaica. Essesforam reis-messias cujas aspirações ao trono foram claramente de inidaspor suas ações revolucionárias contra Roma e os seus clientes emJerusalém. Outros, como o milagreiro Teudas, o Egípcio e o Samaritano,apresentam-se como messias libertadores no molde de Moisés, cadacandidato prometendo libertar seus seguidores do jugo da ocupaçãoromana pormeio de algum atomilagroso. Profetas oraculares como JoãoBatista e o santo homem Jesus ben Ananias podem não ter assumidoabertamentequaisquerambiçõesmessiânicas,massuasprofeciassobreoimdostemposeavindadojulgamentodeDeusclaramenteseadaptavamao arquétipo de profeta-messias presente tanto nas EscriturasHebraicascomo nas tradições rabínicas e nos comentários conhecidos como oTargum.

O problema para a Igreja primitiva é que Jesus não se adaptava aqualquer dos paradigmas messiânicos oferecidos pela Bíblia Hebraica,nem cumpria uma única exigência que fosse esperada domessias. Jesusfalousobreo imdosdias,masissonãoaconteceu,nemmesmodepoisqueos romanos destruíram Jerusalém e o Templo deDeus foi profanado. EleprometeuqueDeus iria libertaros judeusdaescravidão,masDeusnãoofez.PrometeuqueasdozetribosdeIsraelseriamreconstituídaseanação

restaurada; ao invés disso, os romanos expropriaram a Terra Prometida,massacraram seus habitantes e exilaram os sobreviventes. O Reino deDeus que Jesus previu nunca chegou, a nova ordem mundial que eledescreveu nunca tomou forma. De acordo com os parâmetros do cultojudaico e das Escrituras Hebraicas, Jesus foi tão bem-sucedido em suasaspiraçõesmessiânicasquantoqualquerumdosoutrospretensosmessias.

AIgrejaprimitiva,obviamente,reconheciaessedilemae,comoseverá,tomouumadecisãoconscientedemudarosparâmetrosmessiânicos.Elesmisturaram e combinaram as diferentes representações do messiasencontradasnaBíbliaHebraica para criar um candidato que transcendiaqualquermodeloouexpectativamessiânicaparticular. Jesuspodenãotersidoumprofeta,libertadorourei.Masissoéporqueelecresceuacimadetaisparadigmasmessiânicossimples.Comoatransfiguraçãoprovava,Jesusera maior do que Elias (o profeta), maior do que Moisés (o libertador),aindamaiordoqueDavi(orei).

Pode ter sido assim que a Igreja primitiva entendeu a identidade deJesus.MasparecenãosercomoopróprioJesusaentendia.A inal,emtodoo primeiro evangelho não existe uma única declaração messiânicade initivadopróprioJesus,nemmesmono inal,quandoeleestádiantedosumosacerdoteCaifáseumtantopassivamenteaceitao títuloqueoutroscontinuam lhe impingindo (Marcos 14:62).Omesmo é verdadeiro para omaterial da Fonte Q, que também não contém uma única declaraçãomessiânicafeitaporJesus.

Talvez Jesus estivesse relutante em assumir as múltiplas expectativasque os judeus tinham do messias. Talvez ele rejeitasse totalmente adesignação.Dequalquermaneira,o fatoéque,especialmenteemMarcos,cada vez que alguém tenta atribuir o título de messias a ele – seja umdemônioouumsuplicante,ouumdosdiscípulos,ouatémesmoopróprioDeus –, Jesus o desconsidera ou, na melhor das hipóteses, aceita-orelutantemente,esemprecomumaressalva.

SejadequemaneiraJesustenhaentendidoasuamissãoeidentidade–seelemesmoacreditavaseromessiasounão–,oqueaevidênciadomaisantigoevangelhosugereéque,poralgummotivo, JesusdeNazarénãosereferiaabertamenteasimesmocomomessias.Nem,aliás,Jesuschamavaasi mesmo de “Filho de Deus”, outro título que as pessoas parecem teratribuídoaele.Deveserdestacado,éclaro,que,aocontráriodaconcepçãocristã, o título “Filho deDeus” não era uma descrição da relação ilial deJesus comDeus,mas sim a designação tradicional para os reis de Israel.

Numerosas iguras são chamadas de “Filho deDeus” na Bíblia, nenhumadelasmais frequentementedoqueDavi,omaiordosreis (2Samuel7:14,Salmos2:7,89:26;Isaías42:1).Aocontrário,quandosereferiaasimesmo,Jesususavaumtítulocompletamentediferente,tãoenigmáticoeúnicoque,há séculos, os estudiosos tentam desesperadamente descobrir o que elepoderiaterqueridodizercomisso. Jesuschamavaasimesmode“oFilhodoHomem”.

Aexpressão “oFilhodoHomem”(“hohuios touanthropou ”, emgrego)apareceumasoitentavezesnoNovoTestamento,eapenasumavez–emumapassagempositivamenteoperísticanoLivrodeAtos–elaocorrenoslábios de outra pessoa que não Jesus. Nessa passagem, um seguidor deJesus chamado Estevão está prestes a ser apedrejado até a morte porproclamarqueJesuséomessiasprometido.Comumamultidãode judeusenfurecidosacircundá-lo,Estevãotemumasúbitavisão,arrebatadora,emque ele olha para o céu e vê Jesus envolto na glória de Deus. “Olhem!”,grita Estevão, com os braços erguidos no ar. “Eu posso ver os céus seabrindoeoFilhodoHomemempé àdireitadeDeus.” (Atos7:56)Essassãoasúltimaspalavrasqueelepronunciaantesqueaspedrascomecemavoar.

OusodotítuloporEstevão,claramentecomoumafórmulajámarcada,éa prova de que os cristãos de fato se referiam a Jesus como o Filho doHomem após sua morte. Mas a extrema raridade do termo fora dosevangelhos e o fato de que ele nunca ocorre nas cartas de Paulo tornamimprovável que “o Filho do Homem” fosse uma expressão cristológicacriada pela Igreja primitiva para descrever Jesus. Pelo contrário, essetítulo, que é tão ambíguo e tão raramente encontrado nas EscriturasHebraicasqueatéhojeninguémsabeaocertooquerealmentesigni ica,équasecertamenteumqueJesusdeuasimesmo.

Deve-se mencionar, é claro, que Jesus falava aramaico, não grego; ouseja, seaexpressão“oFilhodoHomem”naverdadepuderserrastreadaaté ele, ele teria usado a expressão “bar enash(a)”, ou talvez o seuequivalentehebraico, “benadam”, ambas asquais signi icam “ ilhodeumserhumano”.Emoutraspalavras,dizer “ ilhodohomem”emhebraicoouaramaicoéequivalenteadizer “homem”,queéexatamentecomoaBíbliaHebraica namaioria das vezes utiliza o termo: “Deus não é homemparaque minta, nem é ele um ilho de homem [ben adam] para que searrependa.”(Números23:19)

Poder-se-iaargumentarqueessatambéméaformacomoJesususouo

termo–comoumtermocomumhebraico/aramaicoparadizer“homem”.Osentido idiomático certamente está presente em algumas das primeirasmenções a “FilhodoHomem” encontradasna FonteQ e no evangelhodeMarcos:

“Asraposastêmsuastocaseasavesdocéutêmninhos,masoFilhodoHomem [i.e., ‘um homem como eu’] não tem onde reclinar a cabeça.”(Mateus8:20|Lucas9:58)

“Aquele que disser uma palavra contra o Filho do Homem [i.e.,‘qualquerhomem’], isso lhe seráperdoado,mas se alguém falar contraoEspírito Santo não será perdoado, nem neste mundo nem no que há devir.”(Mateus12:32|Lucas12:10)

AlgunsatéargumentamqueJesusdeliberadamenteutilizouaexpressãoparaenfatizarsuahumanidade,comoumaformadedizer:“Eusouumserhumano[barenash].”Noentanto,talexplicaçãoébaseadanasuposiçãodequeaspessoasdo tempode Jesusprecisassemser lembradasdequeeleera,naverdade,“umserhumano”,comosedissohouvessealgumadúvida.Certamenteissonãoocorria.OscristãosmodernospodemconsiderarJesuscomosendoDeusencarnado,mastalconcepçãodomessiaséumanátemapara5mil anosde escrituras, pensamento e teologia judaicos.A ideia dequeaaudiênciadeJesusteriaprecisadoserconstantementelembradadequeeleera“apenasumhomem”ésimplesmenteabsurda.

Dequalquermodo,seéverdadequeaexpressãoemaramaico,emsuaforma inde inida (bar enash, ao invés do de initivobar enasha), pode sertraduzidacomo“um ilhodehomem”,ouapenas“homem”,aversãogregahohuiostouanthropou sópodesigni icar“o ilhodohomem”.Adiferençaentre o aramaico e o grego é signi icativa e não é provável que sejaresultado de umamá tradução pelos evangelistas. Ao empregar a formade initivadafrase,Jesusaestavausandodeumamaneiracompletamentenova e sem precedentes: como umtítulo, não como uma expressãoidiomática. Simpli icando, Jesus não estava chamando a simesmode “umfilhodehomem”.EleestavachamandoasimesmodeoFilhodoHomem.

O uso idiossincrático dessa frase enigmática por Jesus teria sidocompletamente novo para seu público. Supõe-se com frequência que,quando Jesus falava de si mesmo como o Filho do Homem, os judeussabiamdoqueeleestavafalando.Elesnãosabiam.Naverdade,os judeusdo tempo de Jesus não tinham uma concepção uni icada de “ ilho dohomem”.Não é que os judeus não estivessem familiarizados com a frase,queteriadesencadeadoimediatamenteumasériedeimagensdoslivrosde

Ezequiel,DanieloudosSalmos.Équeelesnãoateriamreconhecidocomoumtítulo,damaneiraqueteriamreconhecido,digamos,FilhodeDeus.

Jesus também teria recorrido às Escrituras Hebraicas para construirsuasreferênciasde“oFilhodoHomem”comoumtermoindividualdistintoe não apenas um sinônimode “homem”. Ele poderia ter usado o livro deEzequiel, onde o profeta é mencionado como “ ilho do homem” quasenoventa vezes: “[Deus] disse-me: ‘Oh, ilhodohomem [ben adam], põe-teempéeeufalareicontigo.’”(Ezequiel2:1)Noentanto,seháumacoisaemqueosestudiososconcordaméquea fonteprimáriaparaa interpretaçãoparticulardeJesusdessaexpressãoveiodolivrodeDaniel.

Escrito durante o reinado do rei selêucida Antíoco Epifânio (175 a.C.-164a.C.)–oreiquepensavaserumdeus–,olivrodeDanielregistraumasériedevisõesapocalípticasqueoprofetaa irmatertidoenquantoserviacomo vidente para a corte babilônia. Em uma dessas visões, Daniel vêquatro animais monstruosos saírem de um grande mar – cada bestarepresentandoumdosquatrograndesreinos:Babilônia,Pérsia,Medeaeoreino grego de Antíoco. Os quatro animais são soltos sobre a terra parasaquear e espezinhar as cidades dos homens. No meio da morte e dadestruição, Daniel vê o que descreve como “o Ancião dos Dias” (Deus)sentadoemumtronofeitodechamas,suasroupasbrancascomoaneve,ocabelo como pura lã. “Mil milhares o serviam”, Daniel escreve, “e 10milvezes 10 mil estavam de pé para atendê-lo.” O Ancião dos Dias julga osanimais, matando e queimando alguns com fogo, tomando o domínio e aautoridadedosdemais.Então,enquantoDanieladmiraoespetáculo,elevê“umcomoumfilhodehomem[barenash]vindocomasnuvensdocéu”.

“EleveioatéoAnciãodosDiase foiapresentadoaele”,Danielescrevesobreaquela iguramisteriosa.“Eaeleforamdadosdomínioeglória,eumreino,paraquetodosospovos,naçõeselínguasoservissem.Seudomínioserá eterno, jamais será destruído.” (Daniel 7:1-14) Assim, para aquele“umcomoum ilhodehomem”,comoqueDanielpareceestarsereferindoa um indivíduo especí ico, é dada soberania sobre a terra e concedidospodereautoridadeparagovernarsobretodasasnaçõesetodosospovoscomorei.

Daniel eEzequiel não sãoosúnicos livrosqueusam “ ilhodohomem”para se referir a uma pessoa singular e especí ica. A expressão aparecebasicamente damesma forma nos livros apócrifos 4 Esdras e 1 Enoque,mais especi icamente na seção de parábolas de Enoque popularmentechamadadeSimilitudes(1Enoque37-72).Nessetrecho,Enoquetemuma

visãonaqualeleolhaparao céuevêumapessoaquedescrevecomo “oilho do homem a quem pertence a justiça”. Ele chama essa igura de “oEscolhido”esugerequeele foidesignadoporDeusantesdacriaçãoparadescer à terra e julgar a humanidade em seu nome. Ele receberá podereterno e soberania sobre a terra e vai julgar de forma in lamada os reisdessemundo.Os ricoseospoderososvão implorarpor suamisericórdia,masnenhumamisericórdiaserámostradaaeles.No inaldapassagem,oleitordescobrequeofilhodohomemnarealidadeéopróprioEnoque.

Em4Esdras,a igurado ilhodohomemirrompedomar,voandosobre“as nuvens do paraíso”. Como emDaniel e Enoque, o ilho do homem deEsdrastambémvemparajulgarosímpios.EncarregadodereconstituirasdozetribosdeIsrael,elevaireunirsuasforçasnomonteSiãoedestruirosexércitos dos homens. Mas apesar de o juiz apocalíptico de Esdrasaparecer como “algoparecido coma iguradeumhomem”, elenãoéummeromortal. Ele é um ser preexistente, com poderes sobrenaturais, quelançafogopelabocaparaconsumirosinimigosdeDeus.

Os dois textos, 4 Esdras e Similitudes de Enoque, foram escritos pertodo im do século I d.C., após a destruição de Jerusalém e muito tempodepois da morte de Jesus. Sem dúvida, esses dois textos apócrifosin luenciaram os primeiros cristãos, que podem ter se conectado com oidealmais espiritualdo ilhodohomempreexistente,nelesdescrito,parareinterpretaramissãoeaidentidadedeJesuseajudaraexplicarporqueelenãoconseguiurealizarnenhumadesuasfunçõesmessiânicasnaterra.Naverdade,oevangelhodeMateus,escritoporvoltadamesmaépocaqueSimilitudes e 4 Esdras, parece ter tomado emprestado deles uma grandequantidadede imagens, incluindoo “tronodeglória” sobreoqualoFilhodo Homem vai sentar-se no inal dos tempos (Mateus 19:28; 1 Enoque62:5) e a “fornalha de fogo” na qual ele vai jogar todos os malfeitores(Mateus13:41-42;1Enoque54:3-6);nenhumadessasexpressõesapareceemqualqueroutro lugarnoNovoTestamento.Masnãohácomo JesusdeNazaré, que morreu mais de sessenta anos antes de qualquer um dostextostersidocomposto,tersidoin luenciadoporeles.Assim,enquantoaimagem de Enoque/Esdras de um eterno ilho do homem escolhido porDeus, desde o início dos tempos, para julgar a humanidade e governar aterraemseunomeéeventualmente transpostapara Jesus (tantoque,nomomentoemque Joãoescreveu seuevangelho, oFilhodoHomeméumaigura puramente divina – o logos –, muito parecida com o homemprimitivoem4Esdras),opróprio Jesusnãopoderia terentendidooFilho

doHomemdamesmaforma.Seforaceitooconsensodosestudiosos,dequeaprincipalreferênciade

Jesus, se não a única, para o Filho doHomem foi o livro deDaniel, entãodevemosolharparaapassagemnosevangelhosemqueousodotítuloporJesus ecoamaisdepertoDaniel, a imdedescobrir oque Jesuspode terquerido dizer com ele. Na realidade, essa passagem em particular, queocorrepertodo imdavidade Jesus,éumaqueamaioriadosestudiososconcordaserautênticaepassíveldeserrastreadaatéoJesushistórico.

De acordo com os evangelhos, Jesus foi arrastado perante o Sinédriopara responder às acusações feitas contra ele. Àmedida que, um após ooutro, os principais sacerdotes, anciãos e escribas o acusavam, Jesuspermaneceimpassível, em silêncio e sem resposta. Finalmente, o sumosacerdote Caifás se levanta e pergunta a Jesus diretamente: “Tu és omessias?”

É aqui, no inal da viagem que começou nasmargens sagradas do rioJordão, que o segredo messiânico é inalmente desfeito e a verdadeiranaturezadeJesusrevelada.

“Eusou”,Jesusresponde.Mas logo em seguida essa que é a declaraçãomais clara e concisa de

Jesussobresua identidademessiânicaéembaralhadaporumaexortaçãodeêxtase,tomadadiretamentedolivrodeDaniel,quemaisumavezlançatudo em confusão: “E tu verás o Filho do Homem sentado à direita doPoder,evindocomasnuvensdoparaíso.”(Marcos14:62)

A primeira metade da resposta de Jesus ao sumo sacerdote é umaalusãoaosSalmos,emqueDeusprometeaoreiDaviqueeleseassentaráàsuadireita“atéqueeufaçadeteusinimigosumbancoderepousoparateuspés” (Salmo110:1).Masaparte “vindocomasnuvensdoparaíso”éumareferênciadiretaaofilhodohomemdavisãodeDaniel(Daniel7:13).

Essa não é a primeira vez que Jesus desvia a declaração de alguémsobre sua identidade como messias em uma diatribe sobre o Filho doHomem.Depois da con issão de Pedro, perto de Cesareia de Filipe, Jesusprimeiroosilencia,emseguidapassaadescrevercomooFilhodoHomemdeve sofrer e ser rejeitado antes de ser morto e ressuscitar três diasdepois (Marcos 8:31). Após a trans iguração, Jesus faz com que osdiscípulos jurem sigilo, mas apenas até que “o Filho do Homem sejaressuscitado dentre os mortos” (Marcos 9:9). Em ambos os casos, éevidente que a concepção de Jesus sobre o Filho do Homem temprecedência sobre a a irmação de outras pessoas sobre sua identidade

messiânica.Mesmono inaldesuavida,quandoestánapresençadeseusacusadores, ele está disposto a aceitar o título genérico demessias só seissopuderserfeitoparacaberemsuainterpretaçãoespecí ica,dolivrodeDaniel,sobreoFilhodoHomem.

Oque issosugereéqueachaveparadesvendarosegredomessiânicoe, portanto, o próprio sentido que Jesus faz de si mesmo depende dedecifrar-se sua invulgar interpretaçãode “umcomoum ilhodehomem”,emDaniel.EaquiéondesepodechegarmaispróximodedescobriroqueJesus pensava ser. Pois enquanto a curiosa igura do ilho do homememDanielnuncaé identi icadademaneiraexplícitacomomessias,elaéclaraeinequivocamentechamadaderei–aquelequevaigovernaremnomedeDeus sobre todos os povos da terra. Poderia ser o que Jesus quer dizerquandosedáoestranhotítulo“oFilhodoHomem”?Eleestáchamandoasimesmoderei?

Ocertoéque Jesus fala longamentesobreoFilhodoHomeme,muitasvezes, em termos contraditórios. Ele é poderoso (Marcos 14:62), massofredor(Marcos13:26).Eleestápresentenaterra(Marcos2:10),porémvirá no futuro (Marcos 8:38). Ele será rejeitado pelos homens (Marcos10:33), mas vai julgá-los (Marcos 14:62). Ele é ao mesmo tempogovernante (Marcos8:38)e servo (Marcos10:45).Masoqueaparecenasuper ície como um conjunto de a irmações contraditórias é, de fato,bastante consistente com a forma como Jesus descreve o Reino de Deus.Na verdade, as duas ideias – o FilhodoHomemeoReinodeDeus – sãomuitas vezes ligadas entre si nos evangelhos, como se representandoumúnico e mesmo conceito. Ambas são descritas em termossurpreendentemente semelhantes e, ocasionalmente, são apresentadascomo intercambiáveis, como quando o evangelho de Mateus muda ofamosoversículodeMarcos(9:1)–de“Digo-lhes,háaquelesaquiquenãoprovarãoamorteatéquevejamoReinodeDeuschegarcompoder”para“Digo-lhes,háaquelesdepéaquiquenãoprovarãoamorteatéquevejamoFilhodoHomemvirparaseureino”(Mateus16:28).

Ao substituir um termo pelo outro, Mateus infere que o reinopertencente ao Filho doHomemé omesmoque oReino deDeus. E umavez que o Reino de Deus é construído sobre uma inversão completa dapresenteordem,naqualospobrestornam-sericoseoshumildestornam-se poderosos, quemelhor rei para governá-lo em nome de Deus do queaquele que incorpora a nova ordem social já assim invertida em suacabeça?Umreicamponês.Umreisemlugarparareclinaracabeça.Umrei

que veio para servir, não para ser servido. Um rei montado em umjumento.

Quando Jesus chama a si mesmo de Filho do Homem, usando adescriçãodeDanielcomoumtítulo,eleestáfazendoumadeclaraçãoclarasobrea forma como vê a sua identidade e a sua missão. Ele estáassociando-se ao paradigma do messias davídico, o rei que governará aterraemnomedeDeus,quevaireunirasdozetribosdeIsrael(nocasodeJesus, por meio de seus doze apóstolos, que vão “sentar-se em dozetronos”) e restaurar a nação à sua antiga glória. Ele está pretendendo amesma posição que o rei Davi, “à direita do Poder”. Em resumo, ele estáchamando a si próprio de rei. Ele está dizendo, ainda que de formadeliberadamenteenigmática,queoseupapelnãoéapenasodeinauguraro Reino de Deus por meio de suas ações milagrosas – seu papel é o degovernaraquelereinoemnomedeDeus.

Reconhecendo o perigo óbvio de suas ambições régias e querendoevitar, se possível, o destino dos outros que ousaram reivindicar o título,Jesus tenta conter todas as declarações que o de iniam como messias,optando, ao invésdisso,pelomaisambíguo,menosabertamente saturadotítulode“oFilhodoHomem”.OsegredomessiâniconasceujustamentedatensãoquesurgedodesejodeJesusdepromoveraidentidadede“oFilhodoHomem”acimadotítulomessiânicodadoaeleporseusseguidores.

Independentementeda forma como Jesus via a simesmo, a verdade équeelenunca foicapazdeestabeleceroReinodeDeus.AescolhaparaaIgrejaprimitivaeraclara:ouJesuseraapenasmaisummessiasfracassadoouoqueosjudeusdaqueletempoesperavamdomessiasestavaerradoetinhaqueserajustado.Paraaquelesqueescolheramoajuste,as imagensapocalípticas de 1 Enoque e 4 Esdras, ambos escritos muito depois damorte de Jesus, abriram um caminho para prosseguir, permitindo que aIgrejaprimitivasubstituísseacompreensãodeJesussobresimesmocomorei emessias pelo novo paradigma, pós-revolta judaica, domessias comoum Filho do Homem preexistente, predeterminado, celestial e divino,aquelecujo“reino”nãoeradessemundo.

Mas o reino de Jesus – o Reino de Deus – era bem desse mundo. E,enquantoaideiadeumpobrecamponêsgalileupretendendorealezaparasi mesmo possa parecer ridícula, não é mais absurda do que a ambiçãorealdeoutroscompanheirosmessiasdeJesus:Judas,oGalileu,Menahem,Simão, ilhodeGiora,Simão, ilhodeKochba,eosdemais.Comoasdeles,asreivindicaçõesde Jesusà realezaestavambaseadasnãoemseupoder ou

riqueza. Como eles, Jesus não tinha um grande exército com o qualderrubarosreinosdoshomens,nemfrotaparavarrerosmaresromanos.A única arma que ele tinha com a qual construir o Reino de Deus eraaquela usada por todos os messias que vieram antes ou depois dele, amesmaarmausadapelosrebeldesebandidosqueacabariamporexpulsarodomínioromanodacidadedeDeus:zelo.

ComaproximidadedafestadoPêssach–acomemoraçãodalibertaçãode Israel do domínio pagão –, Jesus inalmente decide levar essamensagem a Jerusalém. Tomando o zelo como arma, ele vai desa iardiretamenteasautoridadesdoTemploeseussupervisoresromanossobrequem de fato governa essa terra santa.Mas, embora seja Pêssach, Jesusnão tem intenção de entrar na cidade sagrada como um humildeperegrino.Eleéo legítimoreide Jerusalém,eestávindopara fazervalersua pretensão ao trono de Deus. A única maneira como um rei deveriaentrar em Jerusalém seria com uma multidão de louvadores agitandoramos de palmeira, declarando sua vitória sobre os inimigos de Deus,lançando seus mantos sobre a estrada diante dele e gritando: “Hosana!Hosana aoFilho de Davi! Bendito o Rei que vem em nome do Senhor.”(Mateus21:9;Marcos11:9-10;Lucas19:38)

12.NenhumreisenãoCésar

ELE ESTÁ ORANDO quando inalmente chegam para buscá-lo: uma multidãodesordenadaempunhandoespadas, tochasebastõesdemadeira,enviadapelos principais sacerdotes e anciãos para prender Jesus em seuesconderijo no Jardim do Getsêmani. Amultidão não é inesperada. Jesushaviaadvertidoseusdiscípulosqueviriamatrásdele.Épor issoqueelesestão se escondendo no Getsêmani, envoltos em trevas e armados comespadas, exatamente como Jesus havia ordenado. Estão prontos para umconfronto. Mas o grupo de captura sabe exatamente onde encontrá-los.Eles foram avisados por um dos Doze, Judas Iscariotes, que conhece alocalização e pode facilmente identi icar Jesus. Ainda assim, Jesus e seusdiscípulosnãoserãopresos facilmente.Umdelessacaumaespadaeumabrevebrigasesegue,naqualumservodosumosacerdoteéferido.Masaresistência é inútil, e os discípulos são forçados a abandonar omestre efugir na noite, enquanto Jesus é pego, amarrado e arrastado de volta àcidadeparaenfrentarseusacusadores.

Eles o levam ao pátio do sumo sacerdote Caifás, onde os principaissacerdotes,escribaseanciãos–a totalidadedoSinédrio–estãoreunidos.Lá, eles o questionam sobre as ameaças que fez ao Templo, usando suasprópriaspalavrascontraele:“Nósoouvimosdizer: ‘EuvouderrubaresteTemplofeitopormãoshumanaseemtrêsdiasedi icareioutrofeitosemasmãos.’”

Essa é uma acusação grave.OTemplo é a principal instituição cívica ereligiosados judeus.Éaúnica fontedoculto judaicoeoprincipalsímbolodahegemoniadeRomasobreaJudeia.MesmoamenorameaçaaoTemplodespertaria imediatamente a atenção das autoridades sacerdotaiseromanas. Alguns anos antes, quando dois rabinos zelosos, Judas, ilho deSeforeus, e Matias, ilho de Margalus, compartilharam com seus alunosplanos para remover a águia dourada que Herodes, o Grande, tinhacolocado acima do portão principal do Templo, tanto os rabinos comoquarentadeseusalunosforamaprisionadosequeimadosvivos.

Jesus,noentanto,recusa-searesponderàsacusaçõeslevantadascontraele, provavelmente porque não há uma resposta a ser dada. A inal de

contas, ele ameaçou pública e repetidamente o Templo de Jerusalém,prometendoque “nemumapedra serádeixada sobre outra, tudo vai serderrubado” (Marcos 13:2). Ele está em Jerusalémhá poucos dias,mas jácausouumtumultonoPátiodosGentios, interrompendoviolentamenteastransações inanceirasdoTemplo.Substituiuocarosacri íciodesangueecarne comandado pelo Templo por suas curas e exorcismos gratuitos.Durante três anos, ele se enfureceu contra o sacerdócio do Templo,ameaçando sua primazia e poder. Condenou os escribas e anciãos comouma“raçadevíboras”eprometeuqueoReinodeDeusiriavarrertodaaclassesacerdotal.Seupróprioministérioé fundadosobreadestruiçãodaordematualearemoçãodopoderdecadapessoaqueestáagoranopapeldejulgá-lo.Oquemaisháparasedizer?

Pela manhã, Jesus é novamente amarrado e escoltado através dasásperasmuralhasdepedrada fortalezaAntônia para comparecer diantede Pôncio Pilatos. Como governador, a principal responsabilidade dePilatos em Jerusalém émanter a ordem emnome do imperador. A únicarazãopela qual um camponês judeupobre e diarista seria trazidodiantedele é se tivesse prejudicado essa ordem. Caso contrário, não haveriaaudiência, nem perguntas, nem necessidade de defesa. Pilatos, como ashistórias revelam, não era partidário de julgamentos. Em seus dez anoscomo governador de Jerusalém, ele tinha enviado milhares e milhares àcruz com um simples rabisco de sua pena de junco em um pedaço depapiro.Anoçãodequeele icarianamesmasalaque Jesuse,maisainda,dignar-se-iaaconceder-lheum“julgamento”requermuita imaginação.Oua ameaça que Jesus representa para a estabilidade de Jerusalém é tãogrande que ele é um entre poucos judeus a ter a oportunidade de estardiante de Pilatose responder por seus supostos crimes, ou então ochamado“julgamentodiantedePilatos”éumainvenção.

Hárazãoparasuspeitarqueaúltimahipótesesejaaverdadeira.Acenatemumarinconfundíveldeteatro.Esteéomomento inalnoministériodeJesus,o imdeumajornadaquecomeçouhátrêsanos,nasmargensdorioJordão.NoevangelhodeMarcos,Jesusfalaapenasmaisumavezdepoisdaaudiência com Pilatos, quando está se contorcendo na cruz. “Meu Deus,meuDeus,porquemeabandonaste?”(Marcos15:34)

Noentanto, nanarrativadahistóriaporMarcos, acontece algo entreojulgamentodeJesusperantePilatosesuamortenacruzqueétãoincrível,tão obviamente arti icial, que lança suspeita sobre todo o episódio quelevouàcruci icaçãodeJesus.Pilatos,depoisdeterquestionadoJesusetê-

lo julgado inocente de todas as acusações, apresenta-o aos judeus,juntamente com um bandido (lestes) chamado bar Abbas, acusado deassassinar guardas romanos durante uma insurreição no Templo. Deacordo com Marcos, era um costume do governador romano, durante afestadoPêssach, liberarumprisioneiroparaos judeus,qualquerumqueeles pedissem. Quando Pilatos pergunta à multidão que prisioneiro elagostaria de ver libertado – Jesus, o pregador e traidor de Roma, ou barAbbas,orebeldeeassassino–,amultidãoexigealibertaçãodorebeldeeacrucificaçãodopregador.

“Por quê?”, Pilatos pergunta, a lito com a ideia de ter quemandar umcamponêsjudeuinocenteàmorte.“Quemalfezele?”

Mas a multidão grita ainda mais alto, pedindo a morte de Jesus.“Crucifique-o!Crucifique-o!”(Marcos15:1-20)

Acenanão fazsentidoalgum.Vamosdesconsideraro fatodeque forados evangelhos não existe nem mesmo um fragmento de evidênciahistóricaparanenhumcostumecomoesseduranteoPêssach,porpartedequalquergovernadorromano.Oqueéverdadeiramente inacreditáveléoretratodePôncioPilatos–umhomemconhecidoporseuódioaos judeus,pelototaldesrespeitocomrituaisecostumesjudaicoseporsuapropensãopara distraidamente assinar tantas ordens de execução que uma queixaformal foi apresentada contra ele em Roma – gastando sequer ummomento que fosse de seu tempo re letindo sobre o destino demais umagitadorjudeu.

PorqueMarcosteriainventadoumacenatãopatentemente ictícia,quesua audiência judaica teria imediatamente reconhecido como falsa? Arespostaésimples:Marcosnãoestavaescrevendoparaumpúblicojudeu.OpúblicodeMarcosestavaemRoma,ondeelemesmoresidia.SeurelatosobreavidaeamortedeJesusdeNazaréfoiescritopoucosmesesapósarevoltajudaicatersidoesmagadaeJerusalém,destruída.

Assim como os judeus, os primeiros cristãos se esforçaram para darsentido ao trauma da revolta judaica e suas consequências. Mais do queisso,elestiveramquereinterpretaramensagemrevolucionáriadeJesusesuaautoidentidadecomoorégioFilhodoHomem,tendoemcontaofatodeque o Reino de Deus que estavam aguardando nunca se materializou.Espalhados por todo o Império Romano, era bastante natural que osautoresdosevangelhossedistanciassemdomovimentodeindependênciajudaica – apagando, tanto quanto possível, qualquer sinal de radicalismoou violência, revolução ou fanatismo da história de Jesus – e adaptassem

suas palavras e ações à nova situação política em que se encontravam.Essa tarefa foi um pouco mais fácil pelo fato de que muitos dentre acomunidadecristãdeJerusalémparecemter icadodeforadaguerracomRoma, vendo-a como um bem-vindo sinal do im dos tempos prometidopelo seu messias. De acordo com o historiador do século III Eusébio deCesareia,umgrandenúmerode cristãosde Jerusalém fugiuparaooutroladodorioJordão.“OpovodaIgrejaemJerusalém”,Eusébioescreveu,“deacordocomumcertooráculotransmitidopormeioderevelaçãoahomensali bem-aceitos, foi ordenado a se afastar da cidade antes da guerra, e ahabitar uma determinada cidade da Pereia a que chamaram Pella.”Segundo a maioria dos relatos, a igreja que deixaram para trás foidemolida em 70 d.C. e todos os sinais da primeira comunidade cristã deJerusalémforamenterradosemummontedeescombrosecinzas.

Com o Templo em ruínas e a religião judaica proibida, os judeus queseguiam Jesus como messias tinham uma decisão fácil a tomar: elespoderiamoptarpormanter suas conexõesde culto coma religião-mãe e,assim,continuaratraindoainimizadedeRoma(ainimizadedeRomaparacomoscristãosatingiriaopicomuitomaistarde),oupoderiamdivorciar-sedojudaísmoetransformarseumessiasdeumnacionalistajudeuferozemumpacifistapregadordeboasobras,cujoreinonãoeradestemundo.

Não era apenas o medo de represálias romanas que conduzia essesprimeiroscristãos.ComJerusalémdespojada,ocristianismodeixoudeseruma pequena seita judaica centrada em uma terra predominantementejudaica cercadapor centenasdemilharesde judeus.Depoisde70d.C., ocentrodomovimentocristãomudoudaJerusalémjudaicaparaascidadesgreco-romanas do Mediterrâneo: Alexandria, Corinto, Éfeso, Damasco,Antioquia, Roma. Uma geração após a cruci icação de Jesus, seusseguidores não judeus superavam e ofuscavam os judeus. Por volta doinal do século I, quando os evangelhos foram escritos, Roma – emparticularaelite intelectualromana–tinhasetornadooalvoprincipaldaevangelizaçãocristã.

Atingir esse público especí ico requeria um pouco de criatividade porparte dos evangelistas. Não só todos os vestígios de zelo revolucionáriodeveriam ser removidos da vida de Jesus como os romanos tiveram queser completamente absolvidos de qualquer responsabilidade pela mortedeJesus.Foramosjudeusquemataramomessias. OsromanoserampeõesinocentesdosumosacerdoteCaifás,quedesesperadamentequeriamatarJesus,mas que não tinha osmeios legais para fazê-lo. O sumo sacerdote

ludibriouogovernadorromanoPôncioPilatos,levando-oaumtrágicoerrojudicial.OpobrePilatostentoutudooquepodiaparasalvarJesus.Masosjudeus clamavam por sangue, deixando Pilatos sem escolha a não serconcordar com eles, entregando Jesus para ser cruci icado. Na verdade,quanto mais cada evangelho se distancia de 70 d.C. e da destruição deJerusalém,maisdestacadoeestranhosetornaopapeldePilatosnamortedeJesus.

OevangelhodeMateus,escritoemDamascocercadevinteanosapósarevolta judaica, pinta um retrato de Pôncio Pilatos esforçando-se paralibertarJesus.Tendosidoavisadopelaesposaparanãoternadaavercom“aquele homem inocente”, e reconhecendo que as autoridades religiosasestavamentregando Jesusaeleapenas “porciúmes”,oPilatosdeMateusliteralmente lavaasmãosdequalquerculpapelamortedeJesus. “Eu souinocente do sangue deste homem”, ele diz aos judeus. “Cuidai disso vósmesmos.”

NareleituradeMarcosfeitaporMateus,osjudeusrespondemaPilatos“comoum todo”, istoé, comoumanação inteira (“ pasho laos”, em grego),queelesmesmosaceitarãoa culpapelamortede Jesusdaquelediaatéoinal dos tempos: “Que seu sangue caia sobre nossas cabeças, e sobrenossosfilhos.”(Mateus27:1-26)

Lucas, escrevendo na cidade grega de Antioquia por volta do mesmoperíodo que Mateus, não só con irma a inculpabilidade de Pilatos pelamortedeJesus;eleinesperadamenteestendeaquelaanistiatambémparaHerodes Antipas. A cópia de Marcos por Lucas apresenta Pilatosreprimindo os principais sacerdotes, os líderes religiosos e o povo pelasacusaçõesqueousaramlevantarcontraJesus.“Vóstrouxestesessapessoaatémimcomoalguémqueestavaafastandoopovo[dalei].Examinei-oemsuapresençaenãooachoculpadodenenhumadasacusaçõesqueforamfeitascontraele.NemachouHerodes,quandoenviei[Jesus]aele.Elenãofez nada merecedor da morte.” (Lucas 23:13-15) Depois de tentar trêsvezes separadas dissuadir os judeus de sua sede de sangue, Pilatosrelutantemente concorda com as demandas e entrega Jesus para sercrucificado.

Não surpreende que seja o último dos evangelhos canônicos a levar apresunçãodainocênciadePilatos–eaculpadosjudeus–aoextremo.Noevangelho de João, escrito em Éfeso algum tempo depois de 100 d.C.,Pilatos faz tudo que pode para salvar a vida daquele pobre camponêsjudeu,nãoporqueachaqueJesuséinocente,masporquepareceacreditar

que Jesuspodede fato sero “FilhodeDeus”.Noentanto,depoisde lutarem vão contra as autoridades judaicas para libertar Jesus, o impiedosogovernantequecomandalegiõesdesoldadosequeregularmenteosenviapara as ruas para matar os judeus sempre que eles protestam contraqualquerumadesuasdecisões(comofezquandoos judeusseopuseramaoseufurtodotesourodoTemploparapagarosaquedutosdeJerusalém)éforçadopelasexigênciasdamultidãoincontrolávelaentregarJesus.

Quando Pilatos o entrega para ser cruci icado, Jesus remove toda adúvidaarespeitodequeméverdadeiramenteresponsávelporsuamorte:“Aquelequemeentregoua tiéculpadodeumpecadomaior”,diz JesusaPilatos, absolvendo-o pessoalmente de toda culpa e colocando-a nasautoridades religiosas judaicas. João então adiciona um insulto inal,imperdoávelparaumanação judaicaque,àépoca,estavaàbeiradeumarevolta em grande escala, atribuindo-lhe a mais chula, a mais blasfemapeçadepuraheresiaquequalquerjudeudoséculoInaPalestinapoderiapensar em pronunciar. Quando perguntados por Pilatos sobre o que eledeveria fazer com o “seu rei”, a resposta dos judeus foi: “Não temosnenhumreisenãoCésar.”(João19:1-16)

Assim, uma história inventada por Marcos estritamente para insevangélicos,paramudaraculpapelamortedeJesusparalongedeRoma,é esticada com o passar do tempo ao ponto do absurdo, tornando-se, noprocesso,abasepara2milanosdeantissemitismocristão.

Não é, naturalmente, inconcebível que a Jesus tivesse sido concedidauma breve audiência com o governador romano, porém, mais uma vez,somente se a magnitude de seu crime justi icasse uma atenção especial.Jesus não era um simples encrenqueiro, a inal. Sua entrada provocatóriaem Jerusalém, seguidopor umamultidão de devotos a declará-lo rei, seuatodeperturbaçãodaordempúblicanoTemplo,o tamanhodatropaquemarchou para o Getsêmani para prendê-lo, tudo isso indica que asautoridadesviamJesusdeNazarécomoumasériaameaçaàestabilidadeeà ordem da Judeia. Tal “criminoso” muito provavelmente teria sidoconsiderado digno da atenção de Pilatos. Mas qualquer julgamento queJesustivesserecebidoteriasidobreveesuper icial,oúnicoobjetivosendoo de registrar o icialmente as acusações pelas quais ele estava sendoexecutado. Daí a pergunta que Pilatos faz a Jesus em todos os quatroevangelhos:“Tuésoreidosjudeus?”

Seahistóriadoevangelhofosseumdrama(eé),arespostadeJesusàpergunta de Pilatos serviria como o clímax que desenrola o desfecho: a

cruci icação.Esseéomomentoemqueopreçodeveserpagopor tudooque Jesusdissee fezao longodosúltimostrêsanos:osataquescontraasautoridades sacerdotais, a condenação da ocupação romana, asreivindicações de autoridade real. Tudo isso levou àquele momentoinevitávelde julgamento, bem como Jesus disse que aconteceria. A partirdali,seráacruzeotúmulo.

E, no entanto, talvez nenhum outro momento na breve vida de Jesussejamais opaco e inacessível para os estudiosos do que esse. Isso tem aver, em parte, com as múltiplas tradições sobre as quais se baseia ahistória do julgamento e cruci icação de Jesus. Devemos lembrar que,emboraMarcos tenhasidooprimeiroevangelhoescrito,ele foiprecedidoporblocosdetradiçõesoraiseescritassobreJesus,transmitidosporseusprimeiros seguidores. Um desses “blocos” já foi apresentado: o materialexclusivodosevangelhosdeMateuseLucasqueosestudiososchamamdeFonte Q. Mas há razão para acreditar que outros blocos de tradiçõesexistiam,antesdoevangelhodeMarcos,tratandoexclusivamentedamortee ressurreição de Jesus. Essas passagens, chamadas de “narrativas dapaixão”, estabelecem uma sequência básica de eventos que os primeiroscristãos acreditavam terem ocorrido no inal da vida de Jesus: a ÚltimaCeia; a traição de Judas Iscariotes; a prisão no Getsêmani; a presençadiante do sumo sacerdote e de Pilatos; a cruci icação e o enterro; aressurreiçãotrêsdiasdepois.

Essasequênciadeeventosnãoerarealmenteumanarrativa,tendosidoprojetada estritamente para ins litúrgicos. Era ummeio de os primeiroscristãosreviveremosúltimosdiasdeseumessiaspormeioderituais–porexemplo,compartilhandoamesmarefeiçãoqueelecompartilhoucomseusdiscípulos, rezandoasmesmasoraçõesporeleoferecidasnoGetsêmanieassimpor diante. A contribuição deMarcos para as narrativas da paixãofoi a transformação dessa sequência ritualizada de eventos em umahistóriacoesasobreamortedeJesus,queseusredatores,MateuseLucas,integraramemseusevangelhos, juntamentecomosseuspróprios loreiosincomuns(Joãopodeterrecorridoaoconjuntoseparadodenarrativasdapaixão para seu evangelho, já que quase nenhum dos detalhes que elefornece sobre os últimos dias de Jesus combina com o que é encontradonossinópticos).

Talcomoemtudoomaisnosevangelhos,ahistóriadaprisãodeJesus,seu julgamento e execução foi escrita por uma só e única razão: paraprovarqueeleeraomessiasprometido.Exatidãofactualerairrelevante.O

queimportavaeraacristologia,nãoahistória.Osescritoresdoevangelho,obviamente,reconheciamcomoamortedeJesustinhafunçãointegradoraparaacomunidadenascente,masahistóriadetalmorteprecisavademaisdetalhes.Elaprecisava serabrandadae reorientada. Isso requeria certosdetalhes e embelezamentos por parte dos evangelistas. Como resultado,esse episódio inal e extremamente signi icativo da história de Jesus deNazaré é também omais obscurecido por acréscimos teológicos e óbviasinvenções.Oúnicomeioqueoleitormodernotemàdisposiçãoparatentarrecuperaralgumaaparênciadeprecisãohistóricanasnarrativasdapaixãoé tirar lentamente as camadas teológicas sobrepostas pelos evangelistasaos dias inais de Jesus e voltar para a versãomais primitiva da história,quepodeserescavadaapartirdosevangelhos.Eaúnicamaneiradefazerissoécomeçarpelofimdahistória,comJesuspregadonumacruz.

Acruci icaçãoerauma formageneralizadaeextremamentecomumdeexecução na Antiguidade, usada por persas, indianos, assírios, citas,romanosegregos.Mesmoosjudeuspraticavamacruci icação,sendoessapuniçãomencionadaváriasvezesemfontesrabínicas.Arazãoparaqueacruci icação fosse tão comum é que ela era muito barata. Podia serrealizadaempraticamentequalquerlugar,necessitando-seapenasdeumaárvore.Atorturapoderiadurardias,semanecessidadedeumtorturador.O procedimento da cruci icação, o modo como a vítima seria pendurada,eradeixadocompletamenteporcontadocarrasco.Algunserampregadosdecabeçaparabaixo.Algunstinhamaspartes íntimasempaladas.Algunseramencapuzados.Amaioriaeradesnudada.

FoiRomaquetornouacruci icaçãoaformaconvencionaldepuniçãodoEstado,criandocertauniformidadenoprocesso,especialmentequandosetratava de pregar as mãos e os pés a uma viga. Tão comum era acruci icação no ImpérioRomano que Cícero se refere a ela como “aquelapraga”. Entre os cidadãos, a palavra “cruz” ( crux) tornou-se umaprovocação popular e particularmente vulgar, semelhante a “vá seenforcar”.

No entanto, seria incorreto se referir à cruci icação como pena demorte, pois era frequente que a vítima fosse executada primeiro e, emseguida, pregada a uma cruz. O objetivo da cruci icação não era tantomatar o criminoso,mas servir como forma de dissuasão para outros quequisessemdesa iaroEstado.Poressarazão,ascruci icaçõeseramsemprerealizadasempúblico–nasencruzilhadas,nosteatros,nosmorrosouemterreno alto –, em qualquer lugar onde a população não tivesse escolha

senão testemunhar a cena macabra. O criminoso era sempre deixadopendurado por muito tempo após a morte; os cruci icados quase nuncaeramenterrados. A inal, o ponto principal da cruci icação era humilhar avítimaeassustarastestemunhas,comocadáverdeixadopenduradoparaser comido por cães e bicado até os ossos por aves de rapina. Os ossosseriamentão jogadosemumapilhade lixo,queécomooGólgota,o lugarda cruci icação de Jesus, ganhou seu nome:o local de crânios.Simpli icando, a cruci icação era mais do que uma pena de morte paraRoma–eraum lembretepúblicodoqueaconteciaquandosedesa iavaoImpério. Por isso, era reservada exclusivamente para os crimes políticosmaisradicais:traição,rebelião,sedição,banditismo.

Se alguémnão soubessemais nada sobre Jesus deNazaré exceto queelefoicruci icadoporRoma,saberiapraticamentetudooqueénecessárioparadescobrirquemeleera,oqueeleeraeporqueacaboupregadonacruz. Seu crime, aos olhos deRoma, é autoevidente. Foi gravado emumaplacaecolocadoacimadesuacabeçaparaquetodospudessemver: JesusdeNazaré,ReidosJudeus.Seucrimefoiousarassumirambiçõesrégias.

Os evangelhos testi icam que Jesus foi cruci icado ao lado de outroslestai, ou bandidos: revolucionários, exatamente como ele. Lucas,obviamentedesconfortávelcomas implicaçõesdotermo,mudalestaiparakakourgoi, “malfeitores”. No entanto, por mais que tentasse, Lucas nãopode evitar o fato mais básico sobre o seu messias: Jesus foi executadopelo Estado romanopelo crimede sedição. Tudo omais sobre os últimosdias de Jesus de Nazaré deve ser interpretado através desse singular,insistentefato.

Assim, então, pode-se descartar o julgamento teatral diante de Pilatoscomo pura fantasia, por todas as razões já expostas. Se Jesus de fatotivesseestadodiantedePilatos,teriasidoalgobrevee,dapartedePilatos,totalmente desprezível. Ele podenemmesmo ter se preocupado em tirarosolhosdeseulivroderegistrosotemposu icienteparaolharorostodeJesus, imagineentãoseenvolveremuma longaconversacomele sobreosignificadodaverdade.

Ele teria feito sua única pergunta: “Tu és o rei dos judeus?” E teriaregistrado a resposta de Jesus. Teria registrado o crime. E teriaencaminhado Jesus para se juntar aos muitos outros morrendo ou jámortosnoGólgota.

MesmoojulgamentoanteriorperanteoSinédriodeveserreexaminadoà luz da cruz. A história desse julgamento, como é apresentada nos

evangelhos,écheiadecontradiçõeseinconsistências,masoquadrogeraléo seguinte: Jesus é preso à noite, na véspera do sabá, durante a festa doPêssach. Ele é levado sob a proteção da escuridão para o pátio do sumosacerdote, onde os membros do Sinédrio esperam por ele. Ao mesmotempo,umgrupodetestemunhasapareceeatestaqueJesus fezameaçascontraoTemplodeJerusalém.QuandoJesusserecusaaresponderaessasacusações,osumosacerdote lheperguntadiretamenteseeleéomessias.A resposta de Jesus varia em todos os quatro evangelhos, mas sempreincluiumadeclaraçãodesimesmocomooFilhodoHomem.Adeclaraçãoenfureceo sumo sacerdote, que imediatamente acusa Jesusdeblasfêmia,cuja punição é a morte. Na manhã seguinte, o Sinédrio entrega Jesus aPilatosparasercrucificado.

Os problemas com essa cena são numerosos. O julgamento perante oSinédrioviolaquasetodososrequisitosestabelecidospelaleijudaicaparaum processo legal. A Mishná é in lexível a respeito desse assunto. OSinédrionãopode reunir-se ànoite.Nãoépermitido reunir-seduranteoPêssach.Nãoépermitidoreunir-seàsvésperasdosabá.Certamentenãoépermitidoreunir-sedeformatãocasualnopátio(aule)dosumosacerdote,comoMateuseMarcossustentam.Eo julgamentodevecomeçarcomumalistadetalhadadosporquêsdeoacusadoserinocenteantesquequalquerdas testemunhassejaautorizadaaseapresentar.Oargumentodequeasregras de julgamento estabelecidas pelos rabinos da Mishná não seaplicam aos anos 30, quando Jesus foi julgado, cai por terra quandolembramosqueosevangelhos tambémnão foramescritosnosanos30.Ocontexto social, religioso e político da narrativa do julgamento de JesusperanteoSinédrio foiposteriorao judaísmo rabínicode70d.C.: a eradaMishná. No mínimo, o que essas imprecisões lagrantes demonstram é acompreensão extremamente de iciente da lei judaica e da prática doSinédriopelosevangelistas. Issoapenas jádeveria lançardúvidassobreahistoricidadedojulgamentodiantedeCaifás.

Noentanto,mesmoqueseapontemtodasasviolaçõescitadas,oaspectomaisproblemáticodo julgamentodoSinédrioéo seuveredito. Seo sumosacerdotedefatoperguntouaJesussobresuasambiçõesmessiânicasesearespostade Jesus foiumablasfêmia,entãoaToránãopoderiasermaisclara sobre a punição: “Aquele que blasfemar contra o nome do Senhorcertamente será morto:a congregação deve apedrejá-lo até a morte .”(Levítico 24:16) Esse é o castigo in ligido a Estevão por sua blasfêmiaquandoele chama JesusdeFilhodoHomem(Atos7:1-60).Estevãonãoé

transferido para as autoridades romanas para responder por seu crime,ele foi apedrejado até a morte no local. Pode ser verdade que, sob odomínio romano, os judeus não tivessem autoridade para executarcriminosos (embora isso não os tenha impedido de matar Estevão). Masnão se pode perder de vista o fato fundamental com o qual começamos:Jesus não é apedrejado até a morte pelos judeus por blasfêmia, ele écrucificadoporRomaporsedição.

Assimcomopodehaverumfundodeverdadenahistóriadojulgamentode Jesus perante Pilatos, também pode haver um fundo de verdade nahistória do julgamento do Sinédrio. As autoridades judaicas prenderamJesus porque o viam como uma ameaça tanto ao controle do TemploquantoàordemsocialdeJerusalémque,segundooacordocomRoma,eleseram responsáveis por manter. Como as autoridades judaicastecnicamente não tinham jurisdição em casos de pena capital, elasentregaram Jesus aos romanos para responder por seus ensinamentossediciosos. A relação pessoal entre Pilatos e Caifás pode ter facilitado atransferência, mas as autoridades romanas certamente não precisavamser convencidas a levar à morte mais um encrenqueiro judeu. PilatostratouJesusdamaneiracomolidavacomtodasasameaçasàordemsocial:mandou-o para a cruz. Nenhum julgamento foi realizado. Nenhumjulgamentoeranecessário.EraPêssach,sempreummomentodeaumentodas tensões em Jerusalém.A cidade estava transbordandodeperegrinos.Qualquersinaldeproblemadeveriaserimediatamenteresolvido.EsejaláoquemaisJesuspudessetersido,eleeracomcertezaumproblema.

Com seu crime registrado no diário de Pilatos, Jesus teria sido guiadoatéafortalezaAntôniaelevadoparaopátio,ondeseriadespido,amarradoaumaestacaebarbaramenteaçoitado,comoeraocostumeparatodososcondenados à cruz.Os romanos teriam então colocado uma viga atrás desuanucaeen iadoseusbraços sobreela,por trás–denovo, comoeraocostume –, para que o messias que havia prometido remover o jugo daocupaçãodospescoçosdosjudeusestivesseelepróprioatreladocomoumanimallevadoaomatadouro.

Comoeraocasodetodososcondenadosàcruci icação,Jesusteriasidoforçado a levar a travedaprópria cruzparauma colina situada foradasmuralhasdeJerusalém,juntoàestradaquelevavaaosportõesdacidade–talvezomesmocaminhoqueeletinhafeitoalgunsdiasantes,aoentrarnacidade como seu legítimo rei. Dessa forma, cada peregrino que entrasseem Jerusalém para as festividades sagradas não teria escolha a não ser

testemunhar seu sofrimento, para ser lembrado do que acontecia comaquelesquedesa iavamo governodeRoma.A trave seria anexada aumandaime ou poste, os pulsos e tornozelos de Jesus seriam pregados naestruturacomtrêspregosdeferro.Umimpulsoeacruzseriacolocadanaposição vertical. A morte não demoraria muito. Em poucas horas, ospulmõesdeJesusteriamsecansadoearespiraçãoacabariaporsetornarimpossíveldesermantida.

É assim que, emuma colina sem árvores, coberta de cruzes, acossadopelos gritos e gemidos de centenas de criminosos agonizantes, com umbando de corvos circulando ansiosamente sobre sua cabeça, esperandoporseuúltimosuspiro,omessiasconhecidocomoJesusdeNazaréteriaomesmo im ignominioso de todos os outrosmessias que vieram antes oudepoisdele.

Sóque,aocontráriodosoutros,essenãoseriaesquecido.

ParteIII

SoaiatrombetanoSião;Levantaiumgritoemmeusantomonte!Quetremamtodososhabitantesdaterra,PoisodiadoSenhorestáchegando,estápróximo;umdiadetrevasemelancolia,umdiadenuvensedensastrevas.

(JOEL2:1-2)

Prólogo:Deusfeitocarne

ESTEVÃO, que foi apedrejado até amorte por blasfêmia, por umamultidãoenfurecidade judeus, foi oprimeirodos seguidoresde Jesus a sermortoapósacruci icação,enãoseriaoúltimo.Écuriosoqueoprimeirohomemmartirizado por chamar Jesus de “Cristo” não tivesse conhecido Jesus deNazaré. Estevão, a inal, não era um discípulo. Ele nunca conheceu ocamponêsdaGalileiaquereivindicouotronodoReinodeDeus.Nãoandoucom Jesusou falou comele. Elenão fezpartedamultidão emêxtasequeacolheu Jesus em Jerusalém como seu legítimo governante. Não tomouparte na perturbação no Templo.Não estava lá quando Jesus foi preso eacusadodesedição.ElenãoviuJesusmorrer.

Estevão não ouviu falar sobre Jesus de Nazaré até depois de suacruci icação. Um judeu de língua grega que vivia em uma das muitasprovínciashelenísticas foradaTerraSanta,Estevão tinha idoa Jerusalémemperegrinação, juntamentecommilharesdeoutros judeusdaDiásporacomo ele. Estava provavelmente apresentando seu sacri ício aossacerdotes do Templo quando avistou um grupo de agricultores epescadores, principalmente da Galileia, vagando no Pátio dos Gentios epregandosobreumnazarenosimplesaquemchamavamdemessias.

Por si só, tal espetáculo não teria sido incomum em Jerusalém,certamentenãoduranteos festivais ediasde festa, quandoos judeusdetodo o Império Romano a luíam à cidade sagrada para fazer suasoferendasaoTemplo. Jerusalémerao centrodaatividadeespiritualparaosjudeus,ocoraçãodocultodanaçãojudaica.Cadasectário,cadafanático,cadazelota,messiaseautoproclamadoprofetapoderiaterminarindoparaJerusalém, a im de pregar ou admoestar, de oferecer a misericórdia deDeus oualertar para a sua ira. Os festivais, em particular, eram ummomentoidealparaessescismáticosalcançaremumpúblicotãograndeeinternacionalquantopossível.

Assim, quando Estevão viu o bando de homens hirsutos e mulheresandrajosas amontoado sob um pórtico no pátio exterior do Templo –

simples provincianos que venderam suas posses e deram o dinheiro aospobres; que tinham todas as coisas em comum e nenhuma propriedadeparasipróprios,anãosersuas túnicase sandálias–,provavelmentenãoprestoumuitaatençãode início.Elepode terapuradoosouvidosapartirdainformaçãodequeessessectáriosespecí icosseguiamummessiasquejáhaviasidomorto(cruci icado,nadamenos!).Podeter icadosurpresoaosaber que, apesar do fato inalterável de que a morte de Jesus,pordefinição, o inabilitava como libertador de Israel, seus seguidores ainda ochamavammessias.MasmesmoissonãoteriasidocompletamenteinéditoemJerusalém.Nãoestavamosseguidoresde JoãoBatistaaindapregandoarespeitodeseufalecidomestre,aindabatizandojudeusemseunome?

O que realmente teria chamado a atenção de Estevão era asurpreendentealegaçãoporessesjudeusdeque,aocontráriodetodososoutros criminosos cruci icados por Roma, o seu messias não tinha sidodeixado na cruz para ter os ossos bicados pelos pássaros vorazes queEstevãotinhavistocirculandosobreoGólgotaquandoentroupelasportasde Jerusalém.Não, o cadáverdesse camponês emparticular – esse Jesusde Nazaré – tinha sido apeado da cruz e colocado em um extravagantetúmulo talhado na rocha, apropriado para o mais rico dos homens naJudeia.Aindamaisnotável,os seguidoresa irmavamque trêsdiasdepoisde seumessias ter sido colocado no túmulo de homem rico, ele voltara àvida.Deusoressuscitara,o libertaradasgarrasdamorte.Oporta-vozdogrupo,umpescadordeCafarnaumchamadoSimãoPedro,jurouquetinhatestemunhadoessaressurreiçãocomosprópriosolhos,assimcomomuitosoutrosentreeles.

Para ser claro, essa não foi a ressurreição dosmortos que os fariseusesperavamno inaldosdiasequeossaduceusnegavam.Essanãofoiumaressurreiçãodelápidesrachando-seeaterratossindoparaforaasmassasenterradas,comooprofetaIsaíastinhaimaginado(Isaías26:19).Nãotevenada a ver com o renascimento da “Casa de Israel” predito pelo profetaEzequiel, quandoDeus assopraria vidanovaparadentrodosossos secosda nação (Ezequiel 37). Aquilo tinha sido um indivíduo solitário,morto eenterradonarochapordiaslevantando-sederepenteesaindodotúmulopor vontade própria, não como um espírito ou fantasma, mas como umhomemdecarneeosso.

NadaparecidocomoqueessesseguidoresdeJesusestavama irmandoexistia naquela época. Ideias sobre a ressurreição dos mortos poderiamser encontradas entre os antigos egípcios e persas, é claro. Os gregos

acreditavamnaimortalidadedaalma,emboranãonadocorpo.Acreditava-se que alguns deuses – como Osíris – tivessem morrido e ressuscitado.Algunshomens– JúlioCésar,CésarAugusto– tornaram-sedeusesdepoisdemortos.Masoconceitodeumindivíduomorrereressuscitar,emcarnee osso, para uma vida eterna, era muito raro no mundo antigo epraticamenteinexistentenojudaísmo.

E,noentanto,oqueosseguidoresdeJesusestavamargumentandonãoera apenas que ele ressuscitara dosmortos,mas que a sua ressurreiçãocon irmava seu status comomessias, uma a irmação extraordinária, semprecedentes na história judaica. Apesar de dois milênios de apologéticacristã, o fato é que a crença em um messias morto e ressuscitadosimplesmente não existia no judaísmo. Na totalidade da Bíblia Hebraicanão há uma única passagem da escritura ou profecia sobre o messiasprometidoqueaomenosacenasseàsuamorteignominiosaemuitomenosà sua ressurreição corporal. O profeta Isaías fala de um exaltado “servosofredor”,queseria“feridopelastransgressõesdopovo[deDeus]”(Isaías52:13-53:12). Mas Isaías nunca identi ica esse servo sem nome como omessias,nema irmaqueo servo ferido ressuscitariadentreosmortos.OprofetaDanielmenciona“oungido”(istoé,omessias),que“serácortadoenão terá nada” (Daniel 7:26).Mas o ungido deDaniel não émorto, ele éapenas deposto por um “príncipe que deve vir”. Pode ser verdade que,séculosapósamortede Jesus,oscristãos interpretassemessesversosdemaneiraaajudá-losadarsentidoao fracassodeseumessiasemrealizarqualquer uma das tarefas messiânicas que se esperavam dele. Mas osjudeus dotempode Jesusnãotinhamqualquerconcepçãodeummessiasquesofreemorre.Elesesperavamummessiasquetriunfaevive.

O que os seguidores de Jesus estavam propondo era uma audazrede inição de tirar o fôlego – não apenas uma rede inição das profeciasmessiânicas, mas da própria natureza e função do messias judeu. Opescador,SimãoPedro,mostrandoacon iançaimprudentedealguémsemescolaridadeenão iniciadonasescrituras,chegouapontodeargumentarque o próprio reiDavi havia profetizado a cruci icação e ressurreição deJesusemumdeseusSalmos.“SendoumprofetaesabendoqueDeushaviafeitoumjuramentoaeledequeofrutodesuasentranhas,dasuacarne,selevantaria como o messias para se sentar no seu trono, Davi, prevendo[Jesus], falou da ressurreição domessias, dizendo que ‘sua alma não foideixada no inferno, nem a sua carne viu a corrupção’”, disse Pedro aosperegrinosreunidosnoTemplo(Atos2:30-31).

SeEstevãotivesseconhecimentossobreostextossagrados,sefosseumescribaouumestudiosoescoladonasescrituras, se tivesse simplesmentesidoumhabitantedeJerusalém,paraquemossonsdosSalmosescorrendodas paredes do Templo eram tão familiares como o som de sua própriavoz, ele teria sabido imediatamente que o rei Davi nunca disse qualquercoisasobreomessias.A“profecia”dequePedrofalanarealidadeeraumSalmoqueDavicantavasobresipróprio:

Porissoomeucoraçãosealegraenoíntimoexulto;meucorpotambémrepousarátranquilo.PorquevósnãodeixareisaminhaalmanoInfernooupermitireisqueovossosantosofraacorrupçãodasepultura[Pelocontrário]vósmeensinastesocaminhodavida;navossapresençaháabundânciadealegria,emvossamãodireitaháeternoprazer.

(Salmos16:9-11)

Mas – e aqui reside a chave para compreender a transformaçãodramática que teve lugar na mensagem de Jesus após a sua morte –Estevão nãoeraumescribaouestudioso.Elenãoeraumespecialistanasescrituras. Não vivia em Jerusalém. Como tal, ele era o público perfeitopara essa nova, inovadora e completamente heterodoxa interpretação domessias sendo difundida por um grupo de enlevados analfabetos cujacon iançaemsuamensagemeraigualadaapenasàpaixãocomqueelesapregavam.

Estevão se converteu ao movimento de Jesus pouco depois da mortedeste. Tal como aconteceu com a maioria dos convertidos da Diásporadistante, ele teria abandonado sua cidade natal, vendido suas posses,aplicadoos recursosna comunidade e feitoum larpara si em Jerusalém,sobasombradasparedesdoTemplo.Emborativessepassadoapenasumbreveperíodocomomembrodanovacomunidade, talvezumanooudois,suamorte violenta logoapós a conversão consagrariapara sempreo seunomenosanaisdahistóriacristã.

AhistóriadessamortecelebradapodeserencontradanoLivrodeAtos,que narra os primeiros vinte anos do movimento de Jesus após acruci icação.O evangelista Lucas, que supostamente compôs o livro comoumacontinuaçãodeseuevangelho,apresentaoapedrejamentodeEstevãocomo um movimento divisor de águas no início da história da Igreja.

Estevão é chamado de um homem “cheio de graça e poder [que] fezgrandesprodígiosedeixoumarcasentreopovo”(Atos6:8).Seudiscursoesabedoria, Lucas a irma, eram tão poderosos que poucos poderiam icarcontra ele. Na verdade, amorte espetacular de Estevão no Livro de Atostorna-se, para Lucas, um epílogo para a narrativa da paixão de Jesus.Apenas o evangelho de Lucas, entre os sinópticos, transfere para o“julgamento” de Estevão a acusação feita contra Jesus de que ele haviaameaçadodestruiroTemplo.

“Este homem [Estevão] nunca para de blasfemar contra este santolugar [o Templo] e a lei”, grita uma gangue de vigilantes empunhandopedras.“NósoouvimosdizerqueJesusdeNazarévaidestruirestelugaremudaroscostumesqueMoisésnostransmitiu.”(Atos6:13-14)

Lucas tambémdá aEstevãouma autodefesaque Jesusnunca teve emseu evangelho. Em uma longa e incoerente diatribe diante da multidão,Estevão resume quase toda a história judaica, começando com Abraão eterminando com Jesus. O discurso – que é, obviamente, uma criação deLucas–estárepletodeerrososmaisbásicos:eleidenti icaerroneamenteo local do enterro do grande patriarca Jacó e, inexplicavelmente, a irmaqueumanjodeualeiaMoisés,quandoatémesmoomenoseducadojudeunaPalestinateriasabidoquefoiopróprioDeusquemofez.Noentanto,overdadeirosigni icadododiscursoapareceno inal,quandoemumataquedeêxtaseEstevãoolhaparaocéuevê“oFilhodoHomemempéàdireitadeDeus”(Atos7:56).

A imagem parece ter sido uma das favoritas da comunidade cristãprimitiva.Marcos,maisumjudeudelínguagregadaDiáspora,colocaJesusdizendo,emseuevangelho,algosemelhanteparaosumosacerdote:“EtuverásoFilhodoHomemsentadoàdireitadoPoder.” (Marcos14:62) Issoé,então,copiadoporMateuseLucas–maisdoisjudeusdelínguagregadaDiáspora – em suas próprias narrativas. Mas enquanto Jesus, nosevangelhos sinópticos, está diretamente citando o Salmo 110 comomododeestabelecerumaconexãoentreele eo reiDavi, odiscursodeEstevãoem Atos conscientemente substitui a frase “à direita do Poder” por “àdireitadeDeus”.Háumarazãoparaamudança.NoantigoIsrael,adireitaerasímbolodepodereautoridade,esigni icavaumaposiçãodeexaltação.Sentar-se “à direita de Deus” signi ica participar da glória de Deus,uni icar-seaDeusemhonraeessência.ComoTomásdeAquinoescreveu:“Sentar-se à direita do Pai é nada mais do que compartilhar a glória daDivindade…[Jesus]estásentadoàdireitadoPai,porqueEletemamesma

naturezadoPai.”Em outras palavras, “o Filho do Homem” de Estevão não é a igura

majestosadeDanielquevem“comasnuvensdocéu”.Elenãoestabeleceoseu reino na terra “para todos os povos, nações e línguas o servirem”(Daniel7:1-14).Elenemmesmoémaisomessias.OFilhodoHomem,navisão de Estevão, é um ser celestial preexistente, cujo reino não é destemundo,queestáàdireitadeDeus, igualaeleemglóriaehonra,equeé,emformaesubstância,Deusfeitocarne.

Issoétudooqueeranecessárioparaaspedrascomeçaremavoar.É preciso entender que não poderia haver blasfêmia maior para um

judeu do que Estevão sugere. A alegação de que um indivíduomorreu eressuscitouparaavidaeternapodetersidosemprecedentesnojudaísmo.Masapresunçãodeum “homem-deus” era simplesmenteumanátema.OqueEstevão grita emmeio a seus estertores inais não é nadamenos doque o lançamento de uma religião inteiramente nova, radical eirremediavelmente divorciada de tudo que a própria religião de Estevãotinha pregado sobre a natureza de Deus e do homem e a relação entreambos.Defato,pode-sedizerquenãoerasóEstevãoquemorrianaquelediaforadosportõesdeJerusalém.Sepultadocomelesobosescombrosdepedras estava o último vestígio do personagem histórico conhecido comoJesusdeNazaré.Ahistóriadocamponêsgalileuzelosoejudeunacionalistaquevestiuomantodemessias e lançouuma rebelião temerária contraosacerdócio do Templo corrupto e da perversa ocupação romana chega aumfimabrupto,nãocomasuamortenacruznemcomotúmulovazio,masnoprimeiromomentoemqueumde seus seguidores seatrevea sugerirqueeleéDeus.

Estevão foimartirizado em algummomento entre 33 e 35 d.C. Dentreaqueles na multidão que assistiram a sua lapidação estava um jovemdevotofariseudeumaricacidaderomananomarMediterrâneochamadaTarso. Seu nome era Saulo, e ele era um verdadeiro zelota: um seguidorfervoroso da lei de Moisés, que havia construído uma reputação porreprimirviolentamenteblasfêmiascomoadeEstevão.Porvoltade49d.C.,apenasquinzeanosdepoisdeassistircomaprovaçãoàmortedeEstevão,esse mesmo fariseu fanático, agora um fervoroso cristão convertidorenomeadoPaulo,escreveriaumacartaparaseusamigosnacidadegregadeFiliposemque,de forma inequívocaesemreservas,chamadeDeusaJesus de Nazaré. “Ele estava na forma de Deus”, escreve Paulo, embora“tenhanascidoàsemelhançadoshomens.”(Filipenses2:6-7)

Como isso pode ter acontecido? Como poderia ummessias fracassado,quemorreu de forma vergonhosa comoum criminoso, ser transformado,no espaço de poucos anos, no criador dos céus e da terra: o Deusencarnado?

A resposta a essa pergunta dependede reconhecer este fato bastantenotável: praticamente cada palavra já escrita sobre Jesus de Nazaré,incluindotodasashistóriasdoevangelhodeMateus,Marcos,LucaseJoão,foiescritaporpessoasque,comoomártirEstevãoeoex-fariseuPaulo,naverdade nunca conheceram Jesus quando ele estava vivo (devemoslembrar que, com a possível exceção de Lucas, os evangelhos não foramescritos por aqueles em nome de quem foram nomeados). Aqueles queconheciamJesus–queentraramcomeleemJerusalém,proclamando-orei,eoajudaramalimparoTemploemnomedeDeus,queestavamláquandoelefoipresoequeovirammorrernumamortesolitária–desempenharamum papel surpreendentemente pequeno na de inição do movimento queJesusdeixou.OsmembrosdafamíliadeJesus,emespecialseuirmãoTiago,que lideraria a comunidade na ausência de Jesus, foram certamentein luentes nas décadas após a cruci icação. Mas foram prejudicados peladecisãodepermanecermaisoumenosabrigadosemJerusalémesperandoJesus voltar, até que eles e sua comunidade, como quase todomundo naCidade Santa, foram aniquilados pelo exército de Tito em 70 d.C. Osapóstolos que foram incumbidos por Jesus de espalhar a suamensagemdeixaram Jerusalém e se espalharam por todo o país levando as boas-novas de Jesus Cristo. Mas foram severamente limitados por suaincapacidade de explicar teologicamente a nova fé ou compor narrativasinstrutivas sobre a vida e a morte de Jesus. Eles eram agricultores epescadores,afinaldecontas,enãosabiamlernemescrever.

Atarefadede iniramensagemdeJesuscoubeentãoaumanovasafraeducada e urbanizada de judeus de língua grega da Diáspora, que setornariamosprincipaisveículosparaaexpansãodanovafé.Àmedidaqueesses homens e mulheres extraordinários, muitos deles imersos nailoso ia grega e nopensamentohelenístico, começarama reinterpretar amensagem de Jesus, de modo a torná-la mais palatável tanto para seuscompanheirosjudeusdelínguagregacomoparaseusvizinhosnãojudeusna Diáspora, eles pouco a pouco transformaram Jesus de um zelotarevolucionário emumsemideus romanizado, deumhomemque tentou enãoconseguiu libertaros judeusdaopressãoromanaemumsercelestialtotalmentedesinteressadodequalquermatériaterrena.

A transformação não ocorreu sem con litos ou di iculdades. Osseguidoresoriginaisde Jesus,de línguaaramaica– incluindoosmembrosdesua famíliaeorestodosDoze–,abertamenteseconfrontaramcomosjudeusdelínguagregadaDiásporaemrelaçãoàcorretacompreensãodamensagem de Jesus. A discórdia entre os dois grupos resultou nosurgimentodedoiscamposdistintoseconcorrentesdeinterpretaçãocristãnasdécadasapósacruci icação:umdefendidopeloirmãodeJesus,Tiago,eoutropromovidopeloex-fariseuPaulo.No imdascontas,seriaadisputaentreessesdoisadversáriosferrenhoseabertamentehostisque,maisdoquequalqueroutracoisa,iriamoldarocristianismocomoareligiãoglobalquehojeconhecemos.

13.SeCristonãofoiressuscitado

ERA A SEXTA HORA do dia, na véspera do sabá, quando, segundo osevangelhos, uma escuridão cobriu a terra inteira, como se toda a criaçãoparasse para testemunhar a morte desse nazareno simples, açoitado eexecutadoporchamarasiprópriodereidos judeus.Nanonahora, Jesusde repente gritou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”Alguémembebeuumaesponjaemvinagree levou-aaos seus lábiosparaaliviar o sofrimento. Finalmente, não mais capaz de suportar a pressãosibilante nos pulmões, Jesus ergueu a cabeça para o céu e, comum gritoaltoeagonizante,entregouseuespírito.

O imdeJesusteriasidorápidoedespercebidoportodos,salvo,talvez,por um punhado de discípulas que estavam chorando ao pé do morro,olhando para seu mestre aleijado e mutilado: a maioria dos homens sedispersarananoiteaoprimeirosinaldeproblemasnoGetsêmani.Amortede um criminoso de Estado pendurado em uma cruz no Gólgota era umevento tragicamente banal. Dezenas morreram com Jesus naquele dia,seuscorposquebradose lácidospenduradospordiasparaserviràsavesde rapinaque circulavamacimadelese aos cãesque saíamna caladadanoiteparaterminaroqueospássarosdeixavamparatrás.

No entanto, Jesus não era um criminoso comum, não para osevangelistasquecompuseramanarrativadeseusmomentos inais.Eleerao agente de Deus na terra. Sua morte não poderia concebivelmente terpassadodespercebida,fossepelogovernadorromanoqueomandouparaa cruz, fosse pelo sumo sacerdote que o entregou paramorrer. E assim,quandoJesussubmeteusuaalmaaocéu,nomomentoexatodeseuúltimosuspiro,osevangelhosdizemqueovéudoTemploqueseparavaoaltar doSantodosSantos,ovéusalpicadodesangue,aspergidocomosacri íciodemil milhares de ofertas, o véu que o sumo sacerdote, e só o sumosacerdote, levantava quando entrava na presença particular de Deus, foiviolentamenterasgadoemdois,decimaabaixo.

“Certamente,esteeraum ilhodeDeus”,declaraumcenturiãoperplexoao pé da cruz, antes de correr para Pilatos para relatar o que haviaacontecido.

O rompimento do véu do Templo é um inal apropriado para asnarrativasdapaixão,osímboloperfeitodoqueamortedeJesussigni icoupara os homens e mulheres que re letiram sobre ela décadas depois. Osacri ício de Jesus, eles argumentavam, removera a barreira entre ahumanidade e Deus. O véu que separava a presença divina do resto domundo tinha sido rasgado. Por meio da morte de Jesus, todos poderiamagora acessar o espírito de Deus, sem ritual ou mediação sacerdotal.Prerrogativadealtocustodosumosacerdote,opróprioTemploderepentetornou-se irrelevante. O corpo de Cristo tinha substituído os rituais doTemplo,assimcomoaspalavrasdeJesustinhamsuplantadoaTorá.

Claro,essassãore lexõesteológicasconstruídasanosapósoTemplotersido destruído; não é di ícil considerar a morte de Jesus como tendodeslocado um Templo que não mais existia. Para os discípulos quepermaneceramemJerusalémdepoisdacruci icação,noentanto,oTemploeosacerdócioaindaeramumaforterealidade.OvéuquependiadiantedoSanto dos Santos ainda era evidente para todos. O sumo sacerdote e suacorteaindacontrolavamoMontedoTemplo.OssoldadosdePilatosaindapercorriam as ruas de pedra de Jerusalém.Nada haviamudadomuito.Omundo permanecia essencialmente como era antes que seumessias lhestivessesidotirado.

Osdiscípulos enfrentaramumaprofundaprovade fé após amortedeJesus. A cruci icação marcou o im do sonho de derrubar o sistemaexistente, de reconstituir as doze tribos de Israel e governá-las emnomede Deus. O Reino de Deus não seria estabelecido na terra, como Jesushaviaprometido.Oshumildeseospobresnão trocariamde lugar comosricos e poderosos. A ocupação romana não seria derrubada. Tal comoacontecera com os seguidores de todos os outrosmessias que o Impériotinha matado, não havia nada mais para os discípulos de Jesus fazeremsenão abandonar a causa, renunciar às suas atividades revolucionárias evoltarparasuasfazendasealdeias.

Então, algo extraordinário aconteceu. O que exatamente é impossívelsaber. A ressurreição de Jesus é um tema di icílimo para o historiadordiscutir, no mínimo porque sai do âmbito de qualquer exame do Jesushistórico.Obviamente,anoçãodeumhomemmorrerumamortehorrívelevoltar à vida trêsdiasdepoisdesa ia toda lógica, razãoe sentido.Alguémpoderia simplesmente parar o argumento aí, descartar a ressurreiçãocomo uma mentira e declarar a crença em Jesus ressuscitado como oprodutodeumamentecrédula.

Noentanto, existe este fato enervante a se considerar: umapós outro,aquelesquea irmaramter testemunhadoJesusressuscitadoenfrentaramsuasprópriasmorteshorríveisrecusando-seanegarseutestemunho.Issonãoé,emsi,incomum.Muitosjudeuszelosostiverammorteshorríveisporse recusarem a negar suas crenças. Mas esses primeiros seguidores deJesusnãoestavamsendosolicitadosarejeitarquestõesdefébaseadasemeventos que aconteceram séculos, se não milênios, antes. Eles estavamsendo solicitados a negar algo que elesmesmos, em pessoa, vivenciaramdiretamente.

Osdiscípulosestavamelespróprios foragidosemJerusalém,cúmplicesna sedição que levara à cruci icação de Jesus. Foram presos erepetidamente maltratados por sua pregação: mais de uma vez seuslíderes foramlevadosperanteoSinédriopararesponderàsacusaçõesdeblasfêmia. Eles foram espancados, açoitados, apedrejados e cruci icados,masnãodeixaramdeproclamaroJesusressuscitado.Efuncionou!Talveza razão mais óbvia para não desprezar as experiências de ressurreiçãodosdiscípuloséque,entretodososoutrosmessiasfracassadosquevieramantes e depois dele, só Jesus é ainda chamado de messias. Foiprecisamente o fervor com que os primeiros seguidores de Jesusacreditavam na sua ressurreição que transformou essa pequena seitajudaicanamaiorreligiãodomundo.

Embora as primeiras histórias da ressurreição não tivessem sidoescritas até a segunda metade dos anos 90 d.C. (a ressurreição nãoaparecenemnosmateriaisdaFonteQ,compiladaporvoltade50d.C.,nemnoevangelhodeMarcos,escritodepoisde70d.C.),essacrençaparecetersido parte da primeira fórmula litúrgica da comunidade cristã nascente.Paulo – o ex-fariseu que se tornaria o mais in luente intérprete damensagem de Jesus – escreve sobre a ressurreição em uma cartaendereçadaà comunidadecristãnacidadegregadeCorinto,porvoltade50d.C.“Porqueeupassoavósasprimeirascoisasqueeupróprioaceitei”,Pauloescreve, “queCristomorreuporcausadosnossospecados, segundoas escrituras; que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo asescrituras; que foi visto por Cefas [Simão Pedro] e depois pelos Doze.Depois disso, ele foi visto pormais de quinhentos irmãos de uma só vez,muitosdosquaisaindaestãovivos,emboraalgunstenhammorrido.Depoisdisso,ele foivistopor [seu irmão]Tiago,depoispor todososapóstolos.E,porúltimo,foivistopormimtambém…”(1Coríntios15:3-8)

Paulopode terescritoessaspalavrasem50d.C.,masestá repetindoo

que é provavelmente uma fórmula muito mais antiga, que pode serrastreada até o início dos anos 40 d.C. Isso signi ica que a crença naressurreiçãodeJesusfoiumdosprimeirosatestadosdefédacomunidade,mais cedo do que as narrativas da paixão,mais antiga atémesmo que ahistóriadonascimentovirginal.

No entanto, permanece o fato de que a ressurreição não é umacontecimento histórico. Ele pode ter tido repercussões históricas, mas oeventoemsiestáforadoâmbitodahistóriaedentrodoreinodafé.É,defato, o derradeiro teste de fé para os cristãos, como Paulo escreveu namesma carta aos coríntios: “Se Cristo não foi ressuscitado, então a nossapregaçãoévaziaesuafééemvão.”(1Coríntios15:17)

Paulodestacaumpontofundamental.Semaressurreição,todooedifícioda reivindicação de Jesus ao manto do messias desaba. A ressurreiçãoresolve um problema insuperável, que teria sido impossível para osdiscípulosignorarem:acruci icaçãodeJesusinvalidasuapretensãodeseromessiasesucessordeDavi.DeacordocomaleideMoisés,acruci icaçãode Jesus, na verdade, marcou-o como o maldito de Deus: “Qualquer umpendurado em uma árvore [isto é, cruci icado] está sob a maldição deDeus.” (Deuteronômio 21:23)Mas se Jesus não chegou amorrer, se suamortefoiapenasoprelúdiodesuaevoluçãoespiritual,entãoacruzjánãoseriaumamaldiçãoouumsímbolodefracasso.Elaseriatransformadaemumsímbolodevitória.

Precisamente porque a alegação de ressurreição era tão absurda eúnica,umedi íciototalmentenovoprecisavaserconstruídoparasubstituiroquehaviadesmoronadoà sombrada cruz.Ashistóriasda ressurreiçãonosevangelhosforamcriadasparafazerexatamenteisso:colocarcarneeossosemcimadeumcredojáaceito;criarumanarrativaapartirdeumacrença estabelecida e, acima de tudo, para contrariar as acusações doscríticos que negavam a alegação, argumentando que os seguidores deJesus não viram nada mais do que um fantasma ou um espírito edefendendoquetinhamsidoosprópriosdiscípulosqueroubaramocorpodeJesus,parafazerparecerqueeletivesseressuscitado.Nomomentoemque as histórias de ressurreição foram escritas, seis décadas tinham sepassado desde a cruci icação. Nesse intervalo, os evangelistas tinhamouvido falar sobre todas as objeções possíveis à ressurreição e foramcapazesdecriarnarrativasparacombatercadaumadelas.

Osdiscípulosviramumfantasma?Poderiaumfantasmacomerpeixeepão,comoJesusressuscitadofazemLucas24:42-43?

Jesus era apenas um espírito incorpóreo? “Será que um espírito temcarne e ossos?”, Jesus ressuscitadopergunta a seus discípulos incrédulosoferecendo-lhesasmãoseospésparatocarcomoprova(Lucas24:36-39).

OcorpodeJesusfoiroubado?Comoassim,seMateusconvenientementecolocou guardas armados em seu túmulo – guardas que viram por simesmos Jesus ressuscitado,mas que foram subornados pelos sacerdotespara dizer que os discípulos haviam roubado o corpo debaixo de seusnarizes? “E essa história tem sido divulgada entre os judeus até o dia dehoje.”(Mateus28:1-15)

Novamente,essashistóriasnãosãofeitasparaseremrelatosdeeventoshistóricos, elas são cuidadosas construções para refutar um argumentoque está circulando fora de cena. Ainda assim, uma coisa é argumentarque Jesus de Nazaré ressuscitou dentre os mortos. Isso é, a inal,puramente uma questão de fé. Algo totalmente diferente é dizer que elefez issode acordo com as escrituras . Lucas retrata Jesus ressuscitadoabordando ele mesmo essa questão, explicando de modo paciente aosdiscípulos, que “esperavamque ele fosse aquele a redimir Israel” (Lucas24:21),comosuamorteeressurreiçãoeram,narealidade,ocumprimentodas profecias messiânicas, como tudo escrito sobre o messias “na lei deMoisés,nosprofetasenosSalmos”conduziaparaacruzeotúmulovazio.“Assim estava escrito que o messias iria sofrer e ressuscitar no terceirodia”,Jesusinstruiseusdiscípulos(Lucas24:44-46).

Sóque tal coisanãoestáescritaem lugaralgum:nãona leideMoisés,não nos profetas, não nos Salmos. Em toda a história do pensamentojudaiconãoháumaúnicalinhadeescrituraquedizqueomessiasdeverásofrer,morrer e ressuscitar no terceiro dia, o quepode explicar por queJesusnãosepreocupaemcitarqualquerescrituraespecí icaparabasearsuaincrívelreivindicação.

NãofoiàtoaqueosseguidoresdeJesustiverammomentostãodi íceisconvencendo seus companheiros judeus em Jerusalém a aceitar suamensagem.QuandoPauloescrevenacartaaoscoríntiosqueacruci icaçãoé “uma pedra no caminho para os judeus”, ele está subestimandogrosseiramenteodilemadosdiscípulos(1Coríntios1:23).Paraos judeus,omessiascruci icadoeranadamenosdoqueumacontradiçãoemtermos.O próprio fato da cruci icação de Jesus anulava suas reivindicaçõesmessiânicas.Atémesmoosdiscípulosreconheceramesteproblema.Éporisso que eles tão desesperadamente tentaram redirecionar suasesperanças frustradas, argumentando que o Reino de Deus que

esperavam estabelecer era, na realidade, um reino celestial, não terreno;que as profecias messiânicas tinham sido mal-interpretadas; que asescrituras, lidas de maneira correta, diziam o oposto do que todospensavam que dissessem; que profundamente incorporada nos textosestava uma verdade secreta sobre a morte e a ressurreição do messiasque só eles podiam descobrir. O problema é que, em uma cidade tãoimersa nas escrituras como Jerusalém, tal argumento teria caído emouvidosmoucos,especialmentequandovinhadeumgrupodecamponesesanalfabetosdosertãodaGalileiacujaúnicaexperiênciacomasescrituraseraopoucoquetinhamouvidofalardelasnassinagogasdeseuslocaisdeorigem. Por mais que tentassem, os discípulos simplesmente nãoconseguiam convencer um número signi icativo de moradores deJerusalémaaceitarJesuscomoolibertadortãoaguardadodeIsrael.

Os discípulos poderiam ter saído de Jerusalém, espalhado-se pelaGalileia com sua mensagem, voltado para suas aldeias a im de pregarentre seus amigos e vizinhos. Mas Jerusalém foi o local da morte eressurreiçãodeJesus,olugarparaondeacreditavamqueelelogovoltaria.Era o centro do judaísmo, e apesar de sua interpretação peculiar dasescrituras os discípulos eram, acima de tudo, judeus. Foi ummovimentototalmente judaico, pensado, naqueles primeiros anos após a cruci icaçãode Jesus, para um público exclusivamente judaico. Eles não tinhamnenhumaintençãodeabandonaracidadesagradaoudivorciar-sedocultojudaico, independentemente da perseguição que enfrentavam por partedas autoridades sacerdotais. Os principais líderes do movimento – osapóstolos Pedro e João e o irmão de Jesus, Tiago – mantiveram suaidelidade aos costumes judaicos e à lei de Moisés até o im. Sob sualiderança,a Igrejade Jerusalémtornou-seconhecidacomoa “assembleia-mãe”.Não importaquão longe tenha sepropagadoomovimento,quantasoutras “assembleias” tenham se estabelecido em cidades como Filipos,Corinto oumesmo Roma, quantos novos convertidos judeus ou gentios omovimento tenha atraído – cada assembleia, cada convertido e cadamissionário estaria sob a autoridade da “assembleia-mãe” em Jerusalém,atéodiaemqueelafoiqueimadaatéochão.

Havia outra vantagemmais prática da centralizaçãodomovimento emJerusalém. O ciclo anual de festivais traziamilhares de judeus de todo oImpério diretamente a eles. E, ao contrário dos judeus que viviam emJerusalém, que parecem ter descartado com facilidade os seguidores deJesuscomo,namelhordashipóteses,desinformados,e,napior,heréticos,

essesjudeusdaDiáspora,quemoravamlongedacidadesagrada eforadoalcancedoTemplo,mostravam-semuitomaissuscetíveisàmensagemdosdiscípulos.

Constituindo pequenas minorias que viviam em grandes centroscosmopolitas como Alexandria e Antioquia, os judeus da Diásporatornaram-se profundamente aculturados pelas ideias gregas e pelasociedaderomana.Cercadosporumasériedediferentesraçasereligiões,elestendiamasermaisabertosaoquestionamentodascrençasepráticasjudaicas, mesmo quando se tratava de assuntos tão básicos como acircuncisão e as restrições alimentares. Ao contrário de seus irmãos naTerra Santa, os judeus daDiáspora falavamgrego e não aramaico: gregoera a línguade seusprocessosmentais, a línguade seu culto. Eles forameducados nas escrituras não no original hebraico,mas em uma traduçãopara o grego (a Septuaginta), que oferecia novas e originais formas deexpressarsua fée lhespermitiaharmonizarmais facilmentea tradicionalcosmologia bíblica com a iloso ia grega. Considere as escrituras judaicasque provêm da Diáspora: livros como A sabedoria de Salomão, queantropomor izaasabedoriaemumamulheraserbuscadaacimadetudo,e Jesus, Filho de Sirach (comumente chamado de livro do Eclesiástico) separecemmaiscomtrechosfilosóficosgregosquecomescriturassemitas.

Nãoédeseestranhar,portanto,queosjudeusdaDiásporafossemmaisreceptivos à interpretação inovadora das escrituras oferecida pelosseguidoresdeJesus.Defato,nãodemoroumuitoparaqueessesjudeusdelíngua grega superassem os seguidores originais de língua aramaica deJesus em Jerusalém. De acordo com o Livro de Atos, a comunidade foidivididaemdoiscamposseparadosedistintos:os“Hebreus”,termousadonaobraparasereferiraoscrentesbaseadosemJerusalémsobaliderançade Tiago e os apóstolos, e os “Helenistas”, os judeus que vieram daDiásporaequefalavamgregocomolínguaprincipal(Atos6:1).

Não era só a língua que separava os Hebreus dos Helenistas. OsHebreus eram principalmente camponeses, agricultores e pescadores –transplantadosparaJerusalémdaJudeiaedaGalileia.OsHelenistaserammais so isticados eurbanos,maisbem-educados e certamentemais ricos,como evidenciado por sua capacidade de viajar centenas de quilômetrosparafazer a peregrinação aoTemplo. Foi, no entanto, a divisão da línguaqueacabouporserdecisivanadiferenciaçãoentreasduascomunidades.Os gregos, que adoravam Jesus em grego, contavam com uma linguagemqueforneciaumconjuntomuitodiferentedesímbolosemetáforasdoque

o aramaico ou o hebraico. A diferença de linguagem conduziugradualmente a diferenças na doutrina, à medida que os Helenistascomeçaram a forçar suas visões demundo, de inspiração grega, sobre aleiturajáidiossincráticadasescriturasjudaicasfeitapelosHebreus.

Quando eclodiu um con lito entre as duas comunidades a respeito dadistribuiçãoigualitáriadosrecursoscomuns,osapóstolosdesignaramsetelíderesentreosHelenistasparacuidaremdasnecessidadesdeseuprópriogrupo.Conhecidoscomo“osSete”,esses líderesestão listadosnoLivrodeAtos como Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Parmenas, Nicolau (um gentioconvertido da Antioquia) e, claro, Estevão, cuja morte nas mãos de umamultidão enfurecida tornaria permanente a divisão entre Hebreus eHelenistas.

A morte de Estevão resultou em uma onda de perseguição emJerusalém.Asautoridadesreligiosas,queatéentãopareciamtertoleradoacontragostoapresençados seguidoresde JesusnaCidadeSanta, icaramfuriosas com as palavras escandalosamente heréticas de Estevão. Já eraruim o su iciente chamar um camponês cruci icado de messias; erablasfêmia imperdoável chamá-lo de Deus. Em resposta, as autoridadesexpulsaramde formasistemáticaosHelenistasde Jerusalém,umatoque,curiosamente, não parece ter sido muito contestado pelos Hebreus. Naverdade, o fatodeque a assembleia de Jerusalém continuou a prosperarsobasombradoTemplodurantedécadasapósamortedeEstevãoprovaqueosHebreusforampoucoafetadospelaperseguiçãoaosHelenistas.Eracomo se as autoridades sacerdotais não considerassem os dois gruposcomosendorelacionados.

Enquantoisso,osHelenistasexpulsosa luíramdevoltaparaaDiáspora.Armados com a mensagem que tinham adotado dos Hebreus emJerusalém, eles começaram a transmiti-la, em grego, para seuscompanheiros judeusdaDiáspora, aquelesqueviviamnas cidadespagãsdeAshdodeCesareia,nasregiõescosteirasdaSíria-Palestina,emChipre,Fenícia e Antioquia – acidade em que eles foram, pela primeira vez,chamados de cristãos (Atos 11:27). Pouco a pouco, ao longo da décadaseguinte, a seita judaica fundada por um grupo de galileus rurais setransformou em uma religião de oradores gregos urbanizados.Desvinculados dos limites do Templo e do culto judaico, os pregadoresHelenistas começaram a gradualmente retirar damensagem de Jesus aspreocupações nacionalistas, transformando-a em um chamado universalque seria mais atraente para os que viviam em um ambiente greco-

romano. Ao fazê-lo, eles se desvencilhavam das escrituras da lei judaica,até que elas deixaram de ter qualquer primazia. Jesus não veio paracumpriralei,osHelenistasargumentavam;eleveioparaaboli-la.Jesusnãocondenavaos sacerdotesque contaminaramoTemplo com sua riqueza ehipocrisia;condenavaopróprioTemplo.

Ainda assim, até aquele momento, os Helenistas reservavam suapregaçãounicamenteaseuscompanheirosjudeus,comoescreveLucasnoLivro de Atos: “Eles não falavam a palavra a ninguém exceto os judeus.”(Atos11:19)Aqueleaindaeraummovimentoessencialmentejudaico,queloresceuatravésdaexperimentaçãoteológicaquemarcavaaexperiênciada Diáspora no Império Romano. Mas, então, alguns entre os HelenistascomeçaramacompartilharamensagemdeJesuscomosgentios,“demodoqueumgrandenúmerodelespassouacrer”.Amissãogentílicaaindanãoeraprimordial–nãoainda.MasquantomaisosHelenistasseespalhavamalém de Jerusalém e do coração domovimento de Jesus,mais o seu focopassou de uma plateia exclusivamente judaica a uma em suamaioria degentios. Quanto mais o foco mudou para converter os gentios, mais elespermitiramque certos elementos sincréticos emprestados do gnosticismogregoedereligiõesromanassein iltrassemnomovimento.Equantomaisomovimentoeramoldadoporessesnovosconvertidos“pagãos”,commaisforça ele descartava seu passado judaico em troca de um futuro greco-romano.

Tudo isso estava ainda a muitos anos de distância. Não seria senãodepois da destruição de Jerusalém em 70 d.C. que a missão aos judeusseria completamente abandonada e o cristianismo transformado em umareligiãoromanizada.Noentanto,mesmonessafaseinicialdomovimentodeJesus,ocaminhoparaodomíniogentioestavasendode inido.Opontodevirada, porém,nãoocorreria até queum jovem fariseu e judeuHelenistade Tarso chamado Saulo – o mesmo Saulo que havia encorajado oapedrejamentodeEstevãoporblasfêmia–encontrasseJesusressuscitadonaestradaparaDamascoeficasseconhecidoparasemprecomoPaulo.

14.Nãosoueuumapóstolo?

SAULO DE TARSO AINDA RESPIRAVA ameaças de morte contra os discípulosquando deixou Jerusalém em nome do sumo sacerdote para encontrar epunirosHelenistasquehaviam fugidode ládepoisdoapedrejamentodeEstevão.OsumosacerdotenãopediraaSauloparacaçaressesseguidoresde Jesus; Saulo se oferecera para o trabalho voluntariamente. Ele era ohomemperfeito para a tarefa: um educado judeu daDiáspora, de línguagrega e cidadão de uma das mais ricas cidades portuárias no ImpérioRomano,que,noentanto,permanecerazelosamentededicadoaoTemploeà Torá. “Circuncidado no oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo deBenjamim, hebreu ilho de hebreus”, ele escreve de si mesmo em umacarta aos ilipenses, “em relação à [ao conhecimento da] lei, um fariseu;quantoaozelo,umperseguidordaIgreja;quantoàcorreçãoemrelaçãoàlei,irrepreensível.”(Filipenses3:5-6)

FoiquandoestavaacaminhodacidadedeDamascoqueojovemfariseuteriaumaexperiênciadeenlevamentoquemudariatudoparaele,eparaafé que ele iria adotar como sua. Quando se aproximava dos portões dacidadecomseuscompanheirosdeviagem,elederepente foiatingidoporumaluzdocéupiscandoaoseuredor.Eledesmontounochão.Umavozlhedisse:“Saulo,Saulo,porquetumepersegues?”

“Queméstu,Senhor?”,perguntouPaulo.Arespostarompeualuzbrancaofuscante:“EusouJesus.”A experiência o deixou cego. Ainda assim, Saulo conseguiu chegar a

Damasco,ondeseencontroucomumseguidordeJesuschamadoAnanias,que impôs asmãos sobre ele e restaurou sua visão. Imediatamente, algocomoescamascaíramdosolhosdeSauloeelefoipreenchidopelo EspíritoSanto. Ali mesmo Saulo foi batizado no movimento de Jesus. Mudou seunome para Paulo e imediatamente começou a pregar sobre Jesusressuscitado,nãoparaseuscompanheirosjudeus,masparaosgentiosquetinham sido, até aquele ponto,mais oumenos ignorados pelos principaismissionáriosdomovimento.

A história da dramática conversão de Paulo na estrada de Damasco éum pouco de lenda propagandística criada pelo evangelista Lucas; o

próprioPaulonuncanarrouahistóriadesercegadopelavisãodeJesus.Seastradiçõespodemseracreditadas,LucaseraumjovemdevotodePaulo:ele é mencionado em duas cartas, Colossenses e Timóteo, comumenteatribuídas a Paulo,mas escritasmuito tempodepois de suamorte. LucasescreveuoLivrodeAtoscomoumaespéciedehomenagemaoseuantigomestre, uns trinta a quarenta anos depois que Paulo havia morrido. Defato,Atosémenosumanarrativasobreosapóstolosdoqueumabiogra iareverencial de Paulo; os apóstolos desaparecem do livro logo no início,servindocomopoucomaisdoqueaponteentreJesusePaulo.NareleituradeLucas,éPaulo–nãoTiago,nemPedro,nemJoão,nemqualquerumdosDoze – o verdadeiro sucessor de Jesus. As atividades dos apóstolos, emJerusalém, servem apenas como prelúdio para a pregação de Paulo naDiáspora.

Embora Paulo não tenha divulgado quaisquer detalhes sobre suaconversão, ele insistiu repetidamente em ter sido elepróprio testemunhadeJesusressuscitado,a irmandoqueessaexperiênciadotara-odamesmaautoridadeapostólicadosDoze.“Nãosoueuumapóstolo?”,Pauloescreveem defesa de suas credenciais, que eram colocadas frequentemente emdúvida.“AcasonãoviJesus,nossoSenhor?”(1Coríntios9:1)

Paulo pode ter considerado a si próprio um apóstolo,mas parece quepoucosdosoutroslíderesdomovimentoconcordavam.NemmesmoLucas–umbajuladordePaulocujosescritosrevelamumadeliberada,aindaquea-histórica, tentativa de elevar o status do seu mentor na fundação daIgreja – refere-se a Paulo como um apóstolo. Segundo Lucas, existemapenasdozeapóstolos,umparacada tribode Israel, conformea intençãode Jesus. Ao narrar a história de como os restantes onze apóstolossubstituíram Judas Iscariotes por Matias após a morte de Jesus, Lucasobservaque o novo recruta precisava ser alguém que “tivesseacompanhado[osdiscípulos]otempotodoemqueoSenhorJesusentrouesaiudentrenós,começandocomobatismodeJoãoatéodiaemque[Jesus]foi tirado de nós” (Atos 1:21). Tal exigência teria claramente descartadoPaulo, que se converteu ao movimento em torno de 37 d.C., quase umadécadadepoisdeJesustermorrido.MasissonãodetémPaulo,quenãosóexige ser chamado apóstolo – “mesmo que eu não seja apóstolo para osoutros,pelomenoseuosouparavós”,dizeleàsuaamadacomunidadedeCorinto (1 Coríntios 9:2) – como insiste ser muito superior a todos osoutrosapóstolos.

“São hebreus?”, Paulo escreve sobre os apóstolos. “Também sou! Eles

sãoisraelitas?Tambémsou!SãodasementedeAbraão?Tambémsou!Sãoservos de Cristo?Eu sou um melhor ainda (embora possa ser tolo dizerisso), commaiores trabalhos,mais lagelações,mais prisões emais vezespertodamorte.” (2Coríntios11:22-23)Paulo temespecialdesprezopelotriunvirato de Tiago, Pedro e João, com sede em Jerusalém; ele osridicularizacomo“oschamadospilaresdaIgreja”(Gálatas2:9).“Sejaoqueforem,nãofazdiferençaparamim”,escreve.“Oslíderesnãocontribuíramemnadaparamim.”(Gálatas2:6)Osapóstolospodemterandadoefaladocom o Jesus vivo (ou, como Paulo desdenhosamente o chama, “Jesus-em-carne-e-osso”).MasPaulocaminhaefalacomoJesusdivino,etemcomele,deacordocomseusrelatos, conversasemque Jesus transmite instruçõessecretas destinadas exclusivamente a seus ouvidos. Os apóstolos podemter sido escolhidos a dedopor Jesus enquanto trabalhavamno campoourecolhiam suas redes de pesca. Mas Jesus escolheu Paulo antes de elenascer: ele foi, segundo diz aos gálatas, chamado por Jesus para oapostolado quando ainda estava no ventre de suamãe (Gálatas 1:15). OquePaulo está sugerindo é que ele não é o décimo terceiro apóstolo. É oprimeiroapóstolo.

AreivindicaçãodoapostoladoéurgenteparaPaulo,umavezqueeraaúnica maneira de justi icar a sua missão totalmente autoatribuída emrelação aos gentios, que os líderes domovimento em Jerusalém parecemnão ter de início apoiado. Embora tenha havido uma grande discussãoentre os apóstolos sobre quão estritamente a nova comunidade deveriaaderiràleideMoisés,comalgunsdefendendoseucumprimentorigorosoeoutrostomandoumaposiçãomaismoderada,houvepoucadiscussãosobrea quem a comunidade deveria servir: aquele era ummovimento judaicodestinado a um público judeu. Mesmo os Helenistas reservavam suapregação principalmente para os judeus. Se um punhado de gentiosdecidisseaceitarJesuscomoomessias,queassimofosse,contantoquesetornassemprimeirojudeus,submetendo-seàcircuncisãoeàlei.

Noentanto,paraPaulo,nãoháespaçoalgumparadebateropapeldaleide Moisés na nova comunidade. Não só Paulo rejeita a primazia da leijudaica, ele se refere a ela como um “ministério da morte, esculpido emletras em uma tabuleta de pedra” que deve ser substituída por “umministériodoEspíritovindoemglória”(2Coríntios3:7-8).Elechamaseusirmãosquecontinuamapraticaracircuncisão,amarcaporexcelênciadanaçãodeIsrael,de“cãesemalfeitores”que“mutilamacarne”(Filipenses3:2).Sãodeclaraçõessurpreendentesparaumex-fariseu.MasparaPaulo

re letem a verdade sobre Jesus que ele sente que só ele reconhece, que“CristoéofimdaTorá”(Romanos10:4).

AdespreocupadarejeiçãodePauloàprópriabasedojudaísmoeratãochocanteparaoslíderesdomovimentoemJerusalémcomoteriasidoparao próprio Jesus. A inal, Jesus a irmou ter vindo para cumprir a lei deMoisés, não para aboli-la. Longe de rejeitar a lei, Jesus continuamente seesforçou para expandi-la e intensi icá-la. Onde a lei comanda “nãomatarás”, Jesus acrescentou: “Se estás irritado com teu irmão ou irmã,estás sujeito ao [mesmo] juízo.” (Mateus 5:22) Onde a lei diz “nãocometerásadultério”,Jesusestendeu-aparaincluir“todoaquelequeolharpara umamulher com luxúria” (Mateus 5:28). Jesus pode ter discordadodos escribas e estudiosos sobre a interpretação correta da lei,especialmente quando se tratava de assuntos tais como a proibição detrabalhar no sábado. Mas ele nunca rejeitou a lei. Pelo contrário, Jesusadvertiu que “aquele que violar umdosmenores dessesmandamentos eensinar os outros a fazê-lo será chamado o menor no reino dos céus”(Mateus5:19).

AlguémpoderiapensarqueaadmoestaçãodeJesussobrenãoensinarosoutrosaquebrara leideMoisés teria tidoalgum impactosobrePaulo.Mas este parece totalmente despreocupado com qualquer coisa que o“Jesus-em-carne-e-osso” possa ou não ter dito. Na verdade, Paulo nãodemonstra nenhum interesse pelo Jesus histórico.Não há quase nenhumtraçodeJesusdeNazaréemqualquerumadesuascartas.ComexceçãodacrucificaçãoedaÚltimaCeia,queeletransformadeumanarrativaemumafórmula litúrgica, Paulo não narra um único evento da vida de Jesus. EletambémnuncarealmentecitaaspalavrasdeJesus(denovo,comexceçãode sua montagem da fórmula eucarística: “Este é o meu corpo …”). Naverdade, Paulo, por vezes, contradiz diretamente Jesus. Compare o quePaulo escreve em sua epístola aos romanos, “Todo aquele que invocar onome do Senhor será salvo” (Romanos 10:13), e o que Jesus diz noevangelho de Mateus: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’entraránoreinodoscéus.”(Mateus7:21)

A falta de preocupação de Paulo com o Jesus histórico não é devida,comoalguns argumentam, à sua ênfase empreocupações cristológicas aoinvésdehistóricas.Édevidaao simples fatodequePaulonão tinha ideiadequemeraJesusemvida,nemseimportava.Elerepetidamenteseufanapor não ter aprendido sobre Jesus através dos apóstolos ou de qualqueroutrapessoaquepoderiatê-loconhecido.“MasquandoaprouveaDeus…

revelarseuFilhoamim,paraqueeupregassesobreeleentreosgentios,não consultei ninguém, nem subi a Jerusalém [para pedir permissão de]aos apóstolos antesdemim”, vangloria-sePaulo. “Emvezdisso, fui diretoparaaArábia,edepoisoutravezaDamasco.”(Gálatas1:15-17)

Só depois de três anos pregando umamensagem que insistia não terrecebidodequalquerserhumano(obviamentereferindo-seaTiagoeaosapóstolos), mas direto de Jesus, Paulo se dignou a visitar os homens emulheres de Jerusalém que tinham realmente conhecido aquele que eleprofessavacomoSenhor(Gálatas1:12).

PorquePauloseesforçatantonãosóparaselibertardaautoridadedoslíderes em Jerusalém, mas para denegri-los e descartá-los comoirrelevantesoupior?OcorrequeasopiniõesdePaulosobre Jesussãotãoextremas, tão além dos limites do pensamento judaico aceitável, queapenas a irmando que elas vêm diretamente do próprio Jesus é que elepoderia conseguir pregá-las. O que Paulo oferece em suas cartas não é,como alguns de seus defensores contemporâneos opinam, apenas umaformaalternativadeencararaespiritualidadejudaica.Paulo,emvezdisso,ofereceu uma doutrina completamente nova, que teria sido ela todairreconhecívelparaapessoaemquemelea irmasebasear.PoisfoiPauloquemresolveuodilemadosdiscípulos,deconciliaramortevergonhosadeJesus na cruz com as expectativasmessiânicas dos judeus, simplesmentedescartando essas expectativas e transformando Jesus em uma criaturacompletamente nova, que parece ser quase por inteiro de sua própriaautoria:Cristo.

Apesar de “Cristo” ser, tecnicamente, a palavra grega para “messias”,nãoéassimquePauloempregao termo.ElenãodotaCristodequalquerdasconotaçõesligadasaotermo“messias”nasEscriturasHebraicas,nuncafalade Jesuscomo“oungidode Israel”.Paulopode terreconhecido Jesuscomo descendente do rei Davi, mas ele não olha as escrituras paraargumentar que Jesus era o libertador davídico que os judeus estavamaguardando. Ele ignora todas as profecias messiânicas em que osevangelhos se apoiariam muitos anos mais tarde para provar que Jesusera o messias judeu (quando Paulo inalmente considera os profetashebreus–porexemplo,aprofeciadeIsaíassobrearaizdeJessé,queumdiairiaservircomo“umaluzparaosgentios”(Isaías11:10)–,eleachaqueos profetas estão prevendo ele, e não Jesus). Mais revelador é que, aocontrário dos escritores dos evangelhos (exceto João, é claro), Paulo nãochama JesusdeoCristo (YesushoXristos ), comoseCristo fosseum título.

Emvezdisso,chama-ode“JesusCristo”,ouapenas“Cristo”,comosefosseumsobrenome.Essaéumafórmulaextremamenteincomum,cujoparalelomais próximo é a maneira como os imperadores romanos adotaram“César”porcognome,comoCésarAugusto.

OCristodePaulonãoénemmesmohumano,emborativesseassumidoa semelhança de um ser humano (Filipenses 2:7). Ele é um ser cósmico,queexistiaantesdotempo.EleéaprimeiradascriaçõesdeDeus,pormeiode quem se formou o resto da criação (1 Coríntios 8:6). Ele é o Filhogerado por Deus, a descendência física de Deus (Romanos 8:3). Eleé onovo Adão, nascido não do pó, mas do céu. No entanto, enquanto oprimeiro Adão foi feito alma vivente, “o último Adão”, como Paulo chamaCristo, tornou-se “umespírito vivi icante” (1Coríntios 15:45-47). Cristo é,em suma, um novo ser abrangente. Mas ele não é único, é apenas oprimeiro de sua espécie: “O primogênito entremuitos irmãos.” (Romanos8:29).TodososquecreememCristo, comoPaulo faz–osqueaceitamosensinamentosdePaulosobreele–,podemtornar-seumcomele,emumauniãomística(1Coríntios6:17).Pormeiodesuacrença,seuscorposserãotransformadosnocorpogloriosodeCristo(Filipenses3:20-21).Elesvãosejuntar a ele em espírito e repartirão sua semelhança, que, como Paulolembraaseusseguidores,éasemelhançadeDeus(Romanos8:29).Assim,como “herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo”, os crentes podemtambém tornar-se seres divinos (Romanos 8:17). Eles podem se tornarsemelhantes a Cristo em sua morte (Filipenses 3:10), isto é, divinos eeternos,comaresponsabilidadedejulgaraoladodeletodaahumanidadeetambémosanjosdocéu(1Coríntios6:2-3).

OJesusretratadocomoCristoporPaulopodesoarfamiliaraoscristãoscontemporâneos – desde então se tornou a doutrina padrão da Igreja –,mas teria sido absolutamente aberrante e francamente bizarro aosseguidores judeus de Jesus. A transformação do nazareno em um ilholiteraldeDeus,divino,preexistente,cujamorteeressurreição lançamumnovo gênero de seres eternos responsáveis por julgar omundo, não tembase em quaisquer escritos sobre Jesus que sejammesmo remotamentecontemporâneos de Paulo (uma irme indicação de que o Cristo de Paulofoiprovavelmenteumacriaçãosua).NadaparecidocomoquePauloprevêexistenomaterialdaFonteQ,quefoicompiladaporvoltadamesmaépocaem que Paulo estava escrevendo suas cartas. O Cristo de Paulo não é,certamente, o Filho do Homem que aparece no evangelho de Marcos,escrito poucos anos depois da morte de Paulo. Em nenhum lugar nos

evangelhos de Mateus e Lucas, compostos entre 90 e 100 d.C., Jesus éconsideradocomoo ilholiteraldeDeus.Ambososevangelhosempregamo termo “Filho de Deus” exatamente como ele é usado ao longo dasEscriturasHebraicas:comoumtítuloreal,nãoumadescrição.Éapenasnoúltimodosevangelhoscanonizados,oevangelhodeJoão,escritoemalgummomento entre 100 e 120 d.C., que a visão de Paulo sobre Jesus comoCristo, oLogos eterno, o Filho Unigênito de Deus, pode ser encontrada.Claro que, naquela época, quase meia década após a destruição deJerusalém,ocristianismojáeraumareligiãocompletamenteromanizada,eo Cristo de Paulo tinha obliterado há muito qualquer último vestígio domessias judeu em Jesus. Durante a década dos anos 50 d.C., no entanto,quando Paulo está escrevendo suas cartas, sua concepção de Jesus comoCristoteriasidochocanteeclaramenteherética,razãopelaqual,porvoltade57d.C.,Tiagoeosapóstolos requeremquePaulováa Jerusalémpararesponderporseusensinamentosdesviantes.

Aquela não seria a primeira aparição de Paulo diante dos líderes domovimento. Como ele menciona em sua carta aos gálatas, inicialmenteconheceuosapóstolosemumavisitaàcidadesagradatrêsanosapóssuaconversão, em torno de 40 d.C., quando icou cara a cara com Pedro eTiago. Os dois líderes icaram aparentemente emocionados pelo fato deque “aquele que tinha nos perseguido agora está proclamando amensagem de fé que antes procurava destruir” (Gálatas 1:23).Glori icavamDeusporcausadePauloemandaram-noseguirseucaminhopara pregar a mensagem de Jesus nas regiões da Síria e Cilícia,oferecendo-lhe como companheiro e protetor um judeu convertido econfidentepróximodeTiagochamadoBarnabé.

AsegundaviagemdePauloa Jerusalémocorreucercadeumadécadamaistarde,emalgummomentodosanos50d.C.,efoimuitomenoscordialdoqueaprimeira.Eletinhasidoconvocadoparacomparecerperanteumareunião do Conselho Apostólico para defender seu papel autodesignadocomomissionário para os gentios (Paulo insiste que não foi convocado aJerusalém,masquefoiatéláporvontadeprópria,porqueJesusdisseaelepara ir). Com seu companheiro Barnabé e um convertido gregoincircuncisochamadoTitoaseulado,PauloseapresentoudiantedeTiago,Pedro, João e os anciãos da Igreja de Jerusalém para defenderfervorosamenteamensagemqueestavadivulgandoentreosgentios.

Lucas, escrevendosobreessa reunião cercadequarentaou cinquentaanos depois, pinta um quadro de perfeita harmonia entre Paulo e os

membrosdoConselho,comopróprioPedrodefendendoPauloe icandoaseulado.DeacordocomLucas,Tiago,naqualidadedelíderdaassembleiade Jerusalém e chefe do Conselho Apostólico, abençoou os ensinamentosdePaulo,decretandoquedaliemdianteosgentiosseriambem-vindosnacomunidade,semterqueseguiraleideMoisés,desdeque“seabstivessemdecoisaspoluídasporídolos,deprostituição,de[comer]coisasqueforamestranguladas ede sangue” (Atos15:1-21).AdescriçãoqueLucas fazdareunião é uma manobra evidente para legitimar o ministério de Paulo,carimbando-o com a aprovação de ninguém menos que o “irmão doSenhor”. No entanto, o relato do próprio Paulo sobre o encontro com oConselhoApostólico,escritoemumacartaaosgálatasnãomuitodepoisdeter ocorrido, pinta uma imagem completamente diferente do queaconteceuemJerusalém.

Pauloa irmatersidoemboscadonoConselhoApostólicoporumgrupode “falsos crentes” (osqueaindaestãoaceitandoaprimaziadoTemploeda Torá) que vinham secretamente espionando ele e seu ministério.Embora Paulo revele poucos detalhes sobre a reunião, ele não conseguedisfarçar a raiva pelo tratamento que diz ter recebido dos “líderessupostamente reconhecidos”da Igreja:Tiago, Pedro e João. Paulodiz que“se recusou a submeter-se a eles, mesmo por umminuto”, uma vez quenem eles nem a opinião deles sobre o seu ministério faziam qualquerdiferençaparaele(Gálatas2:1-10).

Sejaoque forqueaconteceuduranteoConselhoApostólico, a reuniãoparece ter sido encerrada com uma promessa de Tiago, o líder daassembleia, de não obrigar os seguidores gentios de Paulo a seremcircuncidados. No entanto, o que aconteceu logo depois indica que ele eTiagoestavamlongedeteremsereconciliado:quaseimediatamentedepoisde Paulo ter deixado Jerusalém, Tiago começou a enviar seus própriosmissionáriosàscongregaçõesdelenaGalácia,Corinto,Filiposenamaioriados outros lugares onde ele havia construído um grupo de seguidores,paracorrigirseusensinamentosnãoortodoxossobreJesus.

Paulo icou indignadocomessasdelegações,queeleviu, corretamente,comoumaameaçaàsuaautoridade.QuasetodasasepístolasdePaulonoNovoTestamentoforamescritasapósoConselhoApostólicoesãodirigidasàs congregações que haviam sido visitadas por esses representantes deJerusalém(aprimeiracartadePaulo,aostessalônicos,foiescritaentre48e 50 d.C.; a última, endereçada aos romanos, foi escrita por volta de 56d.C.).Éporissoqueessestextosdedicamtantoespaçoadefenderostatus

de Paulo como um apóstolo, divulgando sua conexão direta com Jesus eprotestando contra os dirigentes em Jerusalém que, “disfarçando-se emapóstolosdeCristo”,sãonaverdade,navisãodePaulo,servosdeSatanásqueenfeitiçaramosseusseguidores(2Coríntios11:13-15).

Noentanto,asdelegaçõesdeTiagoparecemtertidoalgumimpacto,poisPaulo reprova repetidamente suas congregações por abandoná-lo: “Estouespantadocomarapidezcomqueabandonaramaquelequevoschamou.”(Gálatas 1:6) Ele implora a seus seguidores que não ouçam essasdelegações – ou, aliás, qualquer outra pessoa –, mas apenas ele: “Sealguém prega um evangelho diferente do evangelho que vós recebestes[demim],queelesejaamaldiçoado.”(Gálatas1:9)Mesmoqueoevangelhovenha “de um anjo no céu”, escreve Paulo, suas congregações devemignorá-lo (Gálatas1:8).Emvezdisso,devemobedeceraPauloeapenasaPaulo:“Sedemeusimitadores,comoeuosoudeCristo.”(1Coríntios11:1)

Sentindo-se amargo e não mais preso à autoridade de Tiago e dosapóstolos em Jerusalém (“Seja o que eles forem, não faz diferença paramim”), Paulo passou os anos seguintes expondo livremente sua doutrinade Jesus como Cristo. Se Tiago e os apóstolos estavam totalmente cientesdas atividades de Paulo durante esse período é discutível. A inal, Pauloestava escrevendo suas cartas emgrego, uma línguaquenemTiagonemos outros sabiam ler. Além disso, Barnabé, a única ligação de Tiago comPaulo,tinha-oabandonadologoapósoConselhoApostólico,porrazõesquenão são claras (embora valha mencionar que Barnabé era um levita, ecomotalprovavelmenteteriasidoumobservadorrigorosodalei judaica).Independentemente disso, por volta do ano 57 d.C., os rumores sobre osensinamentosdePaulonãopodiammaisserignorados.Eassim,maisumavez,eleéconvocadoaJerusalémparasedefender.

Dessavez,TiagoconfrontaPaulodiretamente,dizendo-lhequechegaraa seu conhecimento que Paulo estava ensinando os crentes “a seapartarem de Moisés” e “a não circuncidar seus ilhos nem observar oscostumes [da lei]” (Atos 21:21). Paulo não responde à acusação, emborafosse issoexatamenteoquevinhaensinando.Elechegaramesmoa ir tãolongeapontodedizerqueaquelesquesedeixavamcircuncidarestavam“seseparandodeCristo”(Gálatas5:2-4).

Paraesclarecerasquestõesdeumavezpor todas,Tiago forçaPauloaparticiparcomoutrosquatrohomensdeumrigorosoritualdepuri icaçãonoTemplo–omesmoTemploquePauloacreditatersidosubstituídopelosangue de Jesus –, pois assim “todos saberão que não são verdade os

rumores sobre ti, e que tu observas e cumpres a lei” (Atos 21:24). Pauloobedece; eleparecenão ter escolha.Mas, quandoele está completandooritual,umgrupodejudeusdevotosoreconhece.

“Homens de Israel!”, gritam eles. “Socorro! Este é o homem que temensinado a todos, em toda parte, contra o nosso povo, a nossa lei e estelugar.” (Atos 21:27-28) Subitamente, umamultidão se arma em torno dePaulo.ElesoprendemeoarrastamparaforadoTemplo.Nomomentoemqueestãoprestes a linchá-lo, umgrupode soldados romanos aparecederepente. Os soldados dispersam a multidão e prendem Paulo, não porcausa da perturbação no Templo, mas porque o confundiram com outrapessoa.

“TunãoésoEgípcio,quealgunsdiasatrásliderouumarevoltade4milsicáriosnodeserto?”,umtribunomilitarperguntaaPaulo(Atos21:38).

ParecequeachegadadePauloaJerusalémem57d.C.nãopoderiatersido em um momento mais caótico. Os sicários tinham começado o seureinadode terror umano antes,matando o sumo sacerdote Jônatas. Elesestavam agora desenfreadamente assassinandomembros da aristocraciasacerdotal, incendiandosuascasas,sequestrandosuasfamílias,semeandomedo nos corações dos judeus. O fervormessiânico em Jerusalém estavanoauge.Umaum,oscandidatosaomantodomessiashaviamsurgidoparalibertar os judeus do jugo da ocupação romana. Teudas, o milagreiro, játivera a cabeça cortada por Roma por causa de suas aspiraçõesmessiânicas. Os ilhos rebeldes de Judas, o Galileu, Jacó e Simão, haviamsidocruci icados. O chefe dos bandidos Eleazar, ilho de Dinaeus, queestavadevastandoa zona rural, abatendo samaritanosemnomedoDeusdeIsrael,haviasidocapturadoedecapitadopeloprefeitoromanoFélix.E,por im,oEgípcioapareceranoMontedasOliveiras,prometendo fazerosmurosdeJerusalémdesmoronaremsoboseucomando.

Para Tiago e os apóstolos em Jerusalém, o tumulto só podia signi icarumacoisa:o imestavapróximo, Jesusestavaprestesaretornar.OReinode Deus que eles haviam acreditado que Jesus iria construir enquantoestava vivo seria agora, inalmente, estabelecido – razão a mais paraassegurar que os que defendiam ensinamentos desviantes em nome deJesusfossemtrazidosdevoltaparaorebanho.

Sobessaluz,aprisãodePauloemJerusalémpodetersidoinesperada,mas considerando-se as expectativas apocalípticas em Jerusalém, ela nãovinhaemmaumomento.Se Jesusestivesseprestesavoltar,nãoseriamáideiamanter Paulo esperando em uma cela de prisão, onde, pelomenos,

elee seuspontosdevistaperversospoderiamsercontidosatéque Jesuspudessejulgá-loselemesmo.MascomoossoldadosqueprenderamPaulopensaram que ele fosse o Egípcio, enviaram-no rapidamente para serjulgado pelo governador romano, Félix, que nesse momento estava nacidade costeiradeCesareia, tratandodeumcon litoque irromperaentreos judeus e os habitantes sírios e gregos. Embora Félix inalmenteinocentassePaulodos crimesdoEgípcio, ele, no entanto, jogou-o emumaprisão de Cesareia, onde Paulo de inhou até Festo substituir Félix comogovernadoreprontamentetransferirPauloparaRoma,aseupedido.

Festo permitiu que Paulo fosse para Roma porque ele alegou sercidadão romano. Paulo nascera em Tarso, uma cidade cujos habitantestinham recebido a cidadania romana deMarco Antônio, um século antes.Como cidadão, Paulo tinha o direito de exigir um julgamento romano, eFesto,queserviriacomogovernadorporumperíodoextremamentebreveetumultuadoemJerusalém,pareciafelizemconceder-lheisso,mesmoquepornenhumaoutrarazãosenãoadesimplesmenteselivrardele.

PodeterhavidoumarazãomaisurgenteparaPauloquerer iraRoma.Após o espetáculo embaraçoso no Templo, em que ele foi forçado arenunciar a tudo o que estava pregando há anos, Paulo queria ir omaislongepossíveldeJerusalémedacordacadavezmaisapertadacolocadaaoredordeseupescoçoporTiagoeosapóstolos.Alémdisso,Romapareciaolugar perfeito para Paulo. Era a Cidade Imperial, a sede do ImpérioRomano.Certamenteos judeushelenísticosquetinhamescolhidofazerdacasa de César a sua própria seriam receptivos aos ensinamentos poucoortodoxos de Paulo sobre Jesus Cristo. Roma já tinha um pequeno mascrescente contingente de cristãos que viviam ao lado de uma populaçãojudaicabastanteconsiderável.UmadécadaantesdachegadadePaulo,oscon litos entre as duas comunidades levaram o imperador Cláudio aexpulsarosdoisgruposdacidade.NomomentoemquePaulochegou,porvoltadoiníciodadécadade60d.C.,noentanto,ambasaspopulaçõeseramdenovoflorescentes.Acidadepareciamaduraparaasuamensagem.

Embora Paulo estivesse o icialmente sob prisão domiciliar em Roma,parece que ele foi capaz de continuar sua pregação sem muitainterferência das autoridades. No entanto, de qualquermodo, Paulo tevepoucosucessoemconverterjudeusdeRomaparaoseulado.Osjudeusdacidade não eram apenas pouco receptivos à sua interpretação única domessias – eles eram abertamente hostis a ela. Mesmo os gentiosconvertidosnãopareciamexcessivamenteacolhedoresemrelaçãoaPaulo.

Isso pode ser porque Paulo não era o único “apóstolo” pregando sobreJesus na cidade imperial. Pedro, o primeiro dosDoze, tambémestava emRoma.

Pedro tinha chegado a Roma poucos anos antes de Paulo,provavelmente sob o comando de Tiago, para ajudar a estabelecer umacomunidadepermanentedecrentesjudeusdelínguagreganocoraçãodoImpério Romano, uma comunidade que estaria sob a in luência daassembleia de Jerusalém e ensinada de acordo com a sua doutrina: emsuma, uma comunidade antipaulina. É di ícil saber o quão bem-sucedidoPedrotinhasidoemsuatarefaantesdePaulochegar.Mas,deacordocomo Livro de Atos, os Helenistas em Roma reagiram tão negativamente àpregação de Paulo que ele decidiu separar-se de uma vez por todas deseus companheiros judeus “que ouvem, mas nunca entendem … queolham,masnuncapercebem”.Pauloprometeuapartirdaquelemomentonão pregar a ninguém mais senão aos gentios, “pois eles ouvirão” (Atos28:26-29).

Não existe registro desses últimos anos da vida de Pedro e Paulo, osdoishomensquesetornariamas igurasmaisimportantesdacristandade.Estranhamente,LucasterminaseurelatodavidadePaulocomachegadadele a Roma, e nãomenciona que Pedro também estava na cidade.Maisestranho ainda, Lucas não se preocupou em registrar o aspecto maissigni icativo do tempo que os dois homens passaram juntos na CidadeImperial:em66d.C.,omesmoanoemqueentrouemerupçãoarevoltaemJerusalém, o imperador Nero, motivado por uma súbita onda deperseguição aos cristãos em Roma, prendeu Pedro e Paulo e executouambospordefenderemoqueelesupôsseramesmafé.

Eleestavaerrado.

15.OJusto

ELESCHAMAVAMATIAGO, irmãode Jesus,de “Tiago,o Justo”.Em Jerusalém,acidadequeeletransformaraemsuacasaapósamortedoirmão,Tiagoerareconhecido por todos por sua insuperável devoção e sua defesaincansável dos pobres. Ele próprio nada possuía, nemmesmo as roupasqueusava–roupassimples,feitasdelinho,nãodelã.Elenãobebiavinhonemcomiacarne.Não tomavabanho.Nenhumanavalha jamais tocousuacabeça,nemelesebesuntavacomóleosperfumados.Dizia-sequepassavatanto tempo dobrado em adoração, suplicando o perdão de Deus para opovo,queseusjoelhosficaramduroscomoosdeumcamelo.

Para os seguidores de Jesus, Tiago era o elo vivo com o messias, osangue do Senhor. Para todos os demais em Jerusalém, ele erasimplesmente “o Justo”. Mesmo as autoridades judaicas elogiavam Tiagopor sua retidão e seu compromisso inabalável com a lei. Não foi TiagoquemexecrouoheregePauloporabandonaraTorá?Nãofoieleaforçaroex-fariseu a se arrepender de seus pontos de vista e puri icar-se noTemplo?AsautoridadespodemnãoteraceitoamensagemdeTiagosobreJesusmaisdoqueaceitaramadePaulo,mas respeitavamTiagoeoviamcomoumhomemjustoehonrado.DeacordocomHegésipo(110-180d.C.),historiador dos primórdios do cristianismo, as autoridades judaicaspediramdiversasvezesaTiagoparausarsua in luênciaentreaspessoaspara dissuadi-las de chamar Jesus de messias. “Nós vos exortamos arefrearaspessoas,porqueelassedesviaramemrelaçãoaJesus,comoseele fosseoCristo”, pediram. “Pois testemunhamos, assimcomo todos,quevós sois justo e que não respeitais pessoas. Persuadi, então, amultidão anãoserdesencaminhadaarespeitodeJesus.”

Seus apelos foram ignorados, é claro. Pois embora Tiago fosse, comotodosatestam,umdevotofervorosodalei,eletambémeraum ielseguidorde Jesus; nunca iria trair o legado do irmão mais velho, nem mesmoquandofossemartirizadoporisso.

AhistóriadamortedeTiagopodeserencontradanaobraAntiguidades,de Josefo. Era o ano de 62 d.C. Toda a Palestina estava afundando naanarquia.Afomeeasecatinhamdevastadoocampo,deixandoterrassem

plantio e agricultores famélicos. O pânico reinava em Jerusalém, com ossicáriosassassinandoesaqueandoàvontade.O fervorrevolucionáriodosjudeusestavacrescendoforadecontrole,eatémesmoaclassesacerdotal,emquemRoma con iava paramanter a ordem, estava se digladiando: ossacerdotesricosemJerusalémtinhamarquitetadoumplanoparatomarosdízimos destinados a sustentar a classe mais baixa, os padres de aldeia.Enquanto isso, uma sucessão de governadores romanos ineptos – doexaltadoCumanoaocanalhaFélixeaodesafortunadoFesto–sótinhafeitopiorarascoisas.

Quando Festo morreu repentinamente, sem um sucessor imediato,Jerusalémcaiunocaos.Reconhecendoaurgênciadasituação,oimperadorNero rapidamente despachou Albino em substituição a Festo, pararestauraraordemna cidade.Mas levaria semanasparaAlbino chegar.Oatraso deu ao sumo sacerdote recém-nomeado, um jovem imprudente eirascível chamado Ananus, o tempo e a oportunidade para tentarpreencherelemesmoovácuodepoderemJerusalém.

Ananus era ilho do extremamente in luente ex-sumo sacerdote,também chamado Ananus, cujos cinco ilhos (e um genro, José Caifás)haviam se sucedido no posto. Foi, aliás, o Ananus mais velho – a quemJosefo chama de “o grande colecionador de dinheiro” – que instigou oesforço descarado para retirar do baixo sacerdócio os seus dízimos, suaúnica fontederenda.Semnenhumgovernadorromanoparacontrolarassuas ambições, o jovem Ananus começou uma campanha irresponsávelparaselivrardeinimigosconhecidos.Umadesuasprimeirasações,Josefoescreve, foi a de reunir o Sinédrio e trazer perante ele “Tiago, irmão deJesus, o que eles chamam de messias”, a quem acusou de blasfêmia etransgressãodaleiantesdesentenciá-loaserapedrejadoatéamorte.

A reação à execução de Tiago foi imediata. Um grupo de judeus dacidade, a quem Josefo descreve como “os mais justos e … estritosobservadores da lei”, icou indignado com as ações de Ananus. Elesinformaram Albino, que estava a caminho de Jerusalém, vindo deAlexandria, o que havia acontecido em sua ausência. Em resposta, Albinoescreveu uma carta furiosa para Ananus, ameaçando empreender umavingançaassassinacontraelenomomentoemquechegasse.MasquandoAlbino entrou em Jerusalém, Ananus já havia sido removido do posto desumo sacerdote e substituído por um homem chamado Jesus, ilho deDamneus, que seria deposto um ano depois, pouco antes do início darevoltajudaica.

ApassagemsobreamortedeTiago,emJosefo,éfamosaporseramaisantigareferêncianãobíblicaaJesus.Comoobservadoanteriormente,ousode Josefo da denominação “Tiago, irmão de Jesus, o que eles chamamdemessias” prova que no ano 94 d.C., quando a obra foi escrita, Jesus deNazaréjáerareconhecidocomoofundadordeummovimentoimportantee duradouro.No entanto, um olharmais atento à passagem revela que overdadeiro foco de Josefo não é Jesus, a quem ele descarta como “o queeleschamamdemessias”,masTiago,cujamorteinjustanasmãosdosumosacerdoteconstituionúcleodahistória.QueJosefomencioneJesusé,semdúvida, signi icativo.Maso fatodeumhistoriador judeuescrevendoparaum público romano contar em detalhes as circunstâncias da morte deTiagoeareaçãoextremamentenegativaàsuaexecução–nãodoscristãosem Jerusalém, mas dos mais devotos e obedientes judeus da cidade – éuma indicação clara do quão proeminente era a igura de Tiago naPalestinadoséculoI.Naverdade,TiagoeramaisdoqueapenasoirmãodeJesus. Ele era, como a evidência histórica atesta, o líder indiscutível domovimentoqueJesustinhadeixado.

Hegésipo, que pertencia à segunda geração dos seguidores de Jesus,con irma, em sua história de cinco volumes sobre a Igreja primitiva, opapel de Tiago como chefe da comunidade cristã. O historiador escreveque“ocontroledaIgrejapassou,juntamentecomosapóstolos,aoirmãodoSenhor,Tiago,aquemtodos,desdeotempodoSenhor,atéonossopróprio,chamamde‘oJusto’,poishaviamuitosTiagos”.NanãocanônicaepístoladePedro,oapóstolo-chefeelíderdosDozerefere-seaTiagocomo“SenhoreBispo da Santa Igreja”. Clemente de Roma (30-97 d.C.), que iria sucederPedrona cidade imperial, endereçaumacarta aTiago como “oBispodosBispos,quegovernaJerusalém,aSantaAssembleiadosHebreusetodasasAssembleias em toda parte”. No evangelho de Tomé, geralmente datadoentre o inal do século I e início do século II d.C., o próprio Jesus nomeiaTiagoseusucessor:“Osdiscípulosdisserama Jesus: ‘Sabemosquetuvaisnosdeixar.Quemseránossolíder?’Jesusdisse-lhes:‘Ondevósestiverdes,vósireisaTiago,oJusto,porquemocéueaterravieramaexistir.’”

OpaidaIgrejaprimitivaClementedeAlexandria(150-215d.C.)a irmaqueJesustransmitiuumconhecimentosecretoa“Tiago,oJusto,aJoãoeaPedro”, que por sua vez “o transmitiram aos outros apóstolos”. MasClementenotaque,entreostrês,foiTiagoquesetornou“oprimeiro,comoo registro nos diz, a ser eleito para o trono episcopal da Igreja deJerusalém”. Em sua obra Sobre homens ilustres , são Jerônimo (c.347-420

d.C.),quetraduziuaBíbliaparaolatim(Vulgata),escreveque,depoisqueJesussubiuaocéu,Tiagofoi“imediatamentenomeadobispodeJerusalémpelos apóstolos”. Na verdade, Jerônimo argumenta que a santidade e areputaçãodeTiagoentreaspessoaseramtãograndesque“seacreditavateradestruiçãode Jerusalémocorridoporcontadesuamorte”. Jerônimoestá referenciandouma tradiçãode Josefo,que tambémécomentadaporOrígenes, teólogo cristão do século III (c.185-254 d.C.), e registrada naHistóriaeclesiásticadeEusébiodeCesareia(c.260-c.339d.C.).Josefoafirmaque “essas coisas [a revolta judaica e a destruição de Jerusalém]aconteceram com os judeus em represália pelo que izeram a Tiago, oJusto,queerairmãodeJesus,conhecidocomoCristo,poisemboraelefosseo mais justo dos homens, os judeus o mataram”. Comentando essapassagem nãomais existente de Josefo, Eusébio escreve: “Tiago deve tersido uma pessoa tão notável, tão universalmente estimada pela retidão,quemesmoomaisinteligentedosjudeussentiaque,porisso,seumartíriofoi imediatamente seguido pelo cerco de Jerusalém.” (História eclesiástica2.23)

Mesmo o Novo Testamento con irma o papel de Tiago como chefe dacomunidade cristã: é Tiago quem geralmente é mencionado primeiroquando se listam os “pilares” da Igreja: Tiago, Pedro e João; Tiago que,pessoalmente, envia seus emissários para as diferentes comunidadesespalhadasnaDiáspora(Gálatas2:1-14);éTiagoaquemPedrorelatasuasatividadesantesdesairde Jerusalém(Atos12:17);eéTiagoquemlideraos“anciãos”quandoPaulochegaparafazersúplicas(Atos21:18).Tiagoéa autoridade que preside o Conselho Apostólico, quem fala por últimodurante suas deliberações e aquele cujo julgamento é de initivo (Atos15:13).De fato, apósoConselhoApostólico, os apóstolosdesaparecemdorestodoLivrodeAtos.MasTiagonão.Pelocontrário,éadisputadecisivaentre Tiago e Paulo, em que o primeiro envergonha publicamente osegundo por seus ensinamentos desviantes, exigindo que ele faça apuri icaçãonoTemplo,quelevaaoclímaxdolivro:aprisãodePauloesuaextradiçãoparaRoma.

Três séculos de documentação cristã primitiva e judaica, para nãomencionar o consenso quase unânime dos estudiosos contemporâneos,reconhecem Tiago, irmão de Jesus, como chefe da primeira comunidadecristã, acima de Pedro e do resto dosDoze; acima de João, “o discípulo aquem Jesusamava” (João20:2);emuitoacimadePaulo, comquemTiagoentrou repetidamente em confronto. Por que, então, Tiago foi quase

totalmente retirado do Novo Testamento e seu papel na Igreja primitivaofuscado por Pedro e Paulo na imaginação da maioria dos cristãosmodernos?

Em parte, isso tem a ver com a própria identidade de Tiago como oirmão de Jesus. Dinastia era a norma para os judeus daquele tempo. Asfamílias herodiana e hasmoniana, oumacabeia, os sumos sacerdotes e asaristocracias sacerdotais, os fariseus, mesmo as quadrilhas de bandidos,todospraticavamsucessãohereditária.Oparentescoeratalvezaindamaiscrucial paraummovimentomessiânico, comoode Jesus, quebaseou sualegitimidadenadescendênciadeDavi.A inal,seJesuseraumdescendentedo reiDavi, tambémo eraTiago. Porque então elenãodeveria liderar acomunidade de Davi após a morte do messias? E Tiago não foi o únicomembro da família de Jesus a receber autoridade na Igreja primitiva.Simeão, ilho de Cléofas, primo de Jesus, sucedeu Tiago como chefe daassembleia de Jerusalém, enquanto os outros membros de sua família,incluindodoisnetosdeoutroirmãodeJesus,Judas,mantiveram umpapelde liderança ativa durante todo o primeiro e segundo séculos docristianismo.

Por volta dos séculos III e IV, no entanto, àmedida que o cristianismogradualmentesetransformoudeummovimentojudaicoheterogêneo,comuma variedade de seitas e cismas, em uma religião imperialinstitucionalizada e rigidamenteortodoxadeRoma, a identidadedeTiagocomo irmão de Jesus tornou-se um obstáculo para os que defendiam avirgindadeperpétuadeMaria,suamãe.Algumassoluçõesexcessivamenteinteligentes foram desenvolvidas para conciliar os fatos imutáveis dafamília de Jesus com o dogma in lexível da Igreja. Havia, por exemplo, oargumento gasto e a-histórico de que os irmãos e irmãs de Jesus eramilhos de um casamento anterior de José, ou de que “irmão” na verdadesigni ica“primo”.Masoresultado inalfoiqueopapeldeTiagonoiníciodocristianismofoigradualmentediminuído.

Aomesmotempoemqueain luênciadeTiagoestavaemdeclínio,adePedro estava em ascensão. O cristianismo imperial, como o próprioImpério, exigia uma estrutura de poder facilmente determinável,preferivelmente com sede em Roma, não em Jerusalém, e ligadadiretamente a Jesus.Opapel dePedro comooprimeirobispodeRomaeseu status como o principal apóstolo izeram dele a igura ideal sobrequem basear a autoridade da Igreja romana. Os bispos que sucederamPedro em Roma (e que eventualmente se tornaram papas infalíveis)

justi icavam a cadeia de autoridade em que se apoiavam para manter opoder em uma igreja em constante expansão citando uma passagem doevangelho de Mateus em que Jesus diz ao apóstolo: “Eu lhe digo que tuserás chamado Pedro, e sobre esta pedra edi icarei a minha igreja.”(Mateus 16:18) O problema com esse versículo muito discutido, que amaioria dos estudiosos rejeita como não histórico, é que ele é a únicapassagemem todo oNovoTestamento que designaPedro como chefe daIgreja.Naverdade,éaúnicapassagememqualquerdocumentohistóricoantigo – bíblico ou não – que nomeia Pedro como o sucessor de Jesus elíder da comunidade que ele deixou. Em contraste, há pelo menos umadezena de passagens citando Tiago como tal. Os registros históricos queexistem sobre o papel de Pedro no cristianismo primitivo sãoexclusivamente sobre a sua liderança da Igreja em Roma, que, emboracertamente fosse uma comunidade signi icativa, era apenas uma dasmuitasassembleiasqueestavamsobaautoridadeabrangentedaqueladeJerusalém: a “assembleia-mãe”. Em outras palavras, Pedro pode ter sidobispodeRoma,masTiagofoio“BispodosBispos”.

Há,porém,umarazãomaisconvincenteparaaconstantediminuiçãodeTiago no cristianismo primitivo, uma que tem menos a ver com suaidentidade como irmão de Jesus ou sua relação com Pedro, e mais comsuas crenças e sua oposição a Paulo. Alguma medida do que Tiagorepresentava na primitiva comunidade cristã já foi revelado através desuasaçõesnoLivrodeAtosenassuasdivergênciasteológicascomPaulo.Masumacompreensãoaindamaisprofundadosseuspontosdevistapodeser encontrada em sua própria epístola, muitas vezes esquecida emuitodifamada,escritaentre80e90d.C.

Obviamente, Tiago não escreveu ele próprio a epístola – ele era, comoseu irmão Jesus e amaioria dos apóstolos, um camponês analfabeto, semeducação formal. O texto foi provavelmente escrito por alguém de seucírculoíntimo.Denovo,issoéverdadeparaquasetodososlivrosdoNovoTestamento, incluindoosevangelhosdeMarcos,Mateuse João,bemcomopara um bom número das cartas de Paulo (Colossenses, Efésios, 2Tessalônicos,1e2TimóteoeTito).Comojáfoidito,intitularumlivrocomonome de alguém signi icativo era uma maneira comum de homenagearessapessoaere letirseuspontosdevista.Tiagopodenãoterescritoasuaprópria carta, mas, sem dúvida, ela representa o que ele acreditava (aepístolaépensadaparaserumaversãoeditadaeampliadadeumsermãoque Tiago fez em Jerusalém, pouco antes de sua morte em 62 d.C.). O

consenso da maioria esmagadora dos estudiosos é que as tradiçõescontidasnaepístolapodem,comcon iança,seratribuídasaTiago,o Justo.Isso faria do texto sem dúvida um dos livros mais importantes do NovoTestamento, porque uma maneira possível de descobrir em que Jesusacreditavaédeterminarnoqueseuirmãoacreditava.

A primeira coisa a notar sobre a epístola de Tiago é sua preocupaçãopreponderante com a situação dos pobres. Isto, em si, não ésurpreendente. Todas as tradições pintam Tiago como o defensor dosdestituídos e despojados – foi como ele ganhou o apelido de “o Justo”. AassembleiadeJerusalémfoifundadaporTiagosobreoprincípiodoserviçoaospobres.Háaindaevidênciasquesugeremqueosprimeirosseguidoresde Jesus que se reuniram sob a liderança de Tiago referiam-se a sipróprios,coletivamente,como“ospobres”.

O que é mais surpreendente sobre a epístola é a sua amargacondenação dos ricos. “Eia agora, vós ricos, chorai e uivai pelasmisériasqueestãoprestesavirsobrevós.Asvossasriquezasestãoapodrecidas,eas vossas vestes estão roídas pela traça. O vosso ouro e prata estãocorroídos,eovenenodentrodelesdarátestemunhocontravós,ecomeráavossacarnecomosefossefogo.”(Tiago5:1-3)ParaTiago,nãohácaminhoparaasalvaçãodosricosque“acumulamtesourosparaosúltimosdias”eque “vivem na terra em luxo e prazer” (Tiago 5:3, 5). Seu destino estáescritoempedra.“Ohomemricopassarácomouma lornocampo.Poistãologo o sol nasce com seu calor abrasador e fazmurchar o campo, a lormorre e sua beleza perece. Assim será com o homem rico.” (Tiago 1:11)TiagoatémesmosugerequenãosepodeserumverdadeiroseguidordeJesus sem favorecer ativamente os pobres. “Vós, com vossos atos defavoritismo [para com os ricos], realmente acreditais em nosso gloriosoSenhor Jesus Cristo?”, ele pergunta. “Porque, se vósmostrais favoritismo,cometeis pecado e estais expostos como um transgressor da lei.” (Tiago2:1,9)

O julgamento feroz de Tiago sobre os ricos pode explicar por que eleatraiuairadogananciososumosacerdoteAnanus,cujopaitinhaplanejadoempobrecer os sacerdotes das aldeias, roubando seus dízimos. Mas averdade é que Tiago estava apenas ecoando as palavras do irmão nasBem-aventuranças: “Ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossaconsolação. Ai de vós que estais alimentados, pois tereis fome. Ai de vósqueestaisrindoagora,poislogoireischorar.”(Lucas6:24-25)Naverdade,grandepartedaepístoladeTiagorefleteaspalavrasdeJesus–sejaotema

ospobres(“NãoescolheuDeusospobresdomundoparaseremricosnafée herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam?”, Tiago 2:5;“Bemaventuradosospobres,poisoReinodeDeusédevós”,Lucas6:20),seja osjuramentos (“Não jura nem pelo céu nem pela terra, ou porqualqueroutrojuramento;queteusimsejasimeteunãosejanão”,Tiago5:12;“Nãojura,nempelocéu,queéotronodeDeus,nempelaterra,queéoescabelodeDeus…queoteusimsejasimeoteunãosejanão”,Mateus5:34, 37), seja a importância de colocar a própria fé em prática (“Sejamcumpridores da palavra e não apenas ouvintes que se enganam”, Tiago1:22; “Aquele que ouve estas minhas palavras e as põe em prática serácomo o homemprudente que edi icou a sua casa sobre a rocha… quemouve estas minhas palavras e não as pratica é como um insensato queconstruiuasuacasasobreaareia”,Mateus7:24,26).

Noentanto,oassuntosobreoqualTiagoeJesusestãomaisclaramentedeacordoéopapeleaaplicaçãoda leideMoisés. “Aquelequeviolarumdos menores desses mandamentos e ensinar os outros a fazê-lo seráchamado omenor no reino dos céus”, diz Jesus no evangelho deMateus(Mateus5:19).“Quemmantémtodaalei,maspisasobreumúnicoponto,éculpadode[violá-la]emtudo”,ecoaTiagoemsuaepístola(Tiago2:10).

AprincipalpreocupaçãodaepístoladeTiagoécomomanteroequilíbrioadequadoentreadevoçãoàToráea féemJesuscomomessias.Ao longodo texto, Tiago exorta repetidamente os seguidores de Jesus apermanecerem iéisàlei.“Masaquelequeolhaparaaleiperfeita–aleidaliberdade–epersevera [emsegui-la], sendonãoapenasumouvintequese esquece, mas um praticante que atua [sobre ela], esse será bem-aventurado no que izer.” (Tiago 1:25) Ele compara os judeus queabandonamaleiapósaconversãoaomovimentodeJesuscomaquelesque“olham-senoespelho…e,aoafastarem-se,esquecem-seimediatamentedecomosão”(Tiago1:23).

Não deveria haver dúvida quanto a quem Tiago está se referindonesses versos. Na verdade, a epístola de Tiago foi muito provavelmenteconcebidacomoumcorretivoparaapregaçãodePaulo,motivopeloqualédirigida às “DozeTribos de Israel espalhadas naDiáspora”. A hostilidadedaepístolaemrelaçãoà teologiapaulinaé inconfundível.EnquantoPaulodescarta a lei de Moisés como um “ministério da morte, esculpido comletrasemumatabuletadepedra”(2Coríntios3:7),Tiagoacelebracomo“aleidaliberdade”.Pauloa irmaque“ninguémsejusti icapelasobrasdalei,mas apenas através da fé em Jesus Cristo” (Gálatas 2:16). Tiago

enfaticamenterejeitaanoçãodePaulodequeaféporsisógerasalvação.“A crença pode salvá-lo?”, ele retruca. “Até os demônios creem – eestremecem.” (Tiago 2:14, 19) Paulo escreve em sua carta aos romanosque “o homem é justi icado pela fé independentemente dos trabalhos dalei” (Romanos 3:28). Tiago chama isso de opinião de uma pessoa “semsentido”,contrapondoque“afésemobrasémorta”(Tiago2:26).

OquetantoPaulocomoTiagoqueremdizercom“obras”ou“trabalhosdalei”éaaplicaçãodaleijudaicanavidacotidianados iéis.Ditodeformasimples,Pauloacreditaqueessas“obras”sãoirrelevantesparaasalvação,enquantoTiagoasvêcomoumrequerimentoparaacrençaemJesuscomoCristo. Para demonstrar seu argumento, Tiago usa um exemplosigni icativo, que mostra que ele estava especi icamente refutando Pauloem sua epístola. “Não foi o nosso pai Abraão justi icado pelas obras,quando ofereceu seu ilho Isaac sobre o altar?”, diz ele, referindo-se àhistória do quase sacri ício de Isaac por Abraão a mando do Senhor(Gênesis 22:9-14). “Vós vedes como a fé estava de mãos dadas com asobras [de Abraão], como foi através de suas obras que a sua fé foicompletada? Assim, o que as escrituras dizem foi cumprido: ‘AbraãoacreditouemDeus,eissolhefoiimputadocomojustiça’,eelefoichamadoamigodeDeus.”(Tiago2:23)

Oque tornaesseexemploparticular tãocuriosoéqueéomesmoquePauloutiliza frequentementeemsuascartasaodefenderopontodevistacontrário.“OquepodemosdizerarespeitodeAbraão,nossopaisegundoacarne?”, escrevePaulo. “Porque, seAbraão foi justi icadopelas obras, eletemdequeseglori icar,masnãodiantedeDeus.Aocontrário,oquedizaEscritura? ‘Abraão acreditou em Deus, e isso lhe foi imputado comojustiça.’”(Romanos4:1-3;vertambémGálatas3:6-9)

TiagopodenãotersidocapazdelerqualquerumadascartasdePaulo,mas ele estava obviamente familiarizado com seus ensinamentos sobreJesus.Osúltimosanosdesuavidaforampassadosadespacharosprópriosmissionários às congregações de Paulo, a im de corrigir o que via comoerrosdaquele.OsermãoquesetransformounaepístolaeraapenasoutratentativadeTiagodecontera in luênciadePaulo.A julgarpelasprópriasepístolas de Paulo, os esforços de Tiago foram bem-sucedidos, já quemuitosnas congregaçõesdePauloparecem ter virado as costas a ele emfavordospregadoresdeJerusalém.

A raiva e a amargura que Paulo sentia em relação a esses “falsosapóstolos [e] obreiros fraudulentos”, esses “servos de Satanás” enviados

parase in iltraremsuascongregaçõesporumhomemqueelecomraivadescartacomoumdos“supostamentereconhecidoslíderes”daIgreja–umhomemqueelea irmaqueem“nadacontribuiu”paraele–escoamcomoveneno através das páginas de suas epístolas posteriores (2 Coríntios11:13,Gálatas2:6).Noentanto, as tentativasdePaulode convencer suascongregações a não abandoná-lo acabariam por revelarem-se inúteis.Nunca houve qualquer dúvida sobre onde se colocaria a lealdade dacomunidadeemumadisputaentreumex-fariseueacarneeosanguedoCristo vivo.Não importa quãohelenísticos os judeus daDiáspora possamter se tornado, sua idelidade aos líderes da assembleia-mãe nãofraquejou.Tiago,Pedro,João,esteseramospilaresdaIgreja.Eleseramosprincipais personagens de todas as histórias que as pessoas contavamsobreJesus.ForamoshomensqueandaramefalaramcomJesus.Estavamentreosprimeirosavê-loressuscitardosmortos,eseriamosprimeirosavê-lo retornar com as nuvens do céu. A autoridade que Tiago e osapóstolos mantinham sobre a comunidade durante suas vidas erainabalável. Nem mesmo Paulo poderia escapar dela, como ele descobriuem57d.C.,quandofoiforçadoporTiagoasearrependerpublicamentedesuas crenças, tomando parte naquele rigoroso ritual de puri icação noTemplodeJerusalém.

TalcomoacontececomanarrativadoConselhoApostólicoalgunsanosantes, a descrição de Lucas desse encontro inal entre Tiago e Paulo noLivro de Atos tenta deixar de lado qualquer sinal de con lito ouanimosidade, apresentando Paulo como silenciosamente aquiescendo aoritoexigidodelenoTemplo.MasnemmesmoLucas consegueesconderatensão que, é óbvio, existe nessa cena. No relato, antes de Tiago enviarPaulo ao Templo para provar à assembleia de Jerusalém que “observa eguarda a lei”, ele primeiro faz uma distinção clara entre “as coisas queDeus fezentreosgentiosnoministério [dePaulo]”eos “muitosmilharesde crentes… entre os judeus [que] são todos zelososda lei” (Atos21:20).Tiago então mostra a Paulo “quatro homens que izeram um voto” e oinstruia“passarpeloritualdepuri icaçãocomelesepagarpelaraspagemdesuascabeças”(Atos21:24).

O que Lucas está descrevendo nessa passagem é o chamado “votonazireu”(Números6:2).OsnazireuseramdevotosestritosdaleideMoisésque se comprometiam a abster-se de vinho, se recusavam a raspar ocabelo ou a chegar perto de cadáveres por um determinado período detempo,comoumatodedevoçãoouemtrocadarealizaçãodeumdesejo–

uma criança com saúde ou uma viagem segura, por exemplo (o próprioTiago pode ter sido um nazireu, já que a descrição de quem fazia o votocombina perfeitamente com as descrições que temos dele nas crônicasantigas). Considerando as opiniões de Paulo sobre a lei de Moisés e oTemplo de Jerusalém, sua participação forçada em tal ritual teria sidoextremamente constrangedora para ele. Todo o propósito do ritual erademonstraràassembleiadeJerusalémqueelenãoacreditavamaisnoqueestava pregando há quase uma década. Não há outra maneira de ler aparticipação de Paulo no voto nazireu, exceto como uma renúncia solenedeseuministérioeumadeclaraçãopúblicadaautoridadedeTiagosobreele –mais uma razão para duvidar de Lucas representando Paulo comosimplesmenteindoparaoritualsemqualquercomentáriooureclamação.

De maneira curiosa, Lucas pode não ser a única narrativa dessemomentocrucial.Umahistóriaassustadoramentesemelhanteécontadanacompilação de escritos conhecidos de forma coletiva comoPseudo-Clementinas.Emboracompiladasporvoltade300d.C.(cercadeumséculoantes que o Novo Testamento fosse o icialmente canonizado), asPseudo-Clementinas contêm em si dois conjuntos separados de tradições quepodemserdatadosdemuitoantes.OprimeiroéconhecidocomoHomilias,e compreende duas epístolas: uma do apóstolo Pedro, outra do sucessordele emRoma, Clemente.O segundo conjuntode tradições é chamadodeReconhecimentos, epor suaévezbaseadoemumdocumentomais antigointituladoAscensãodeTiago,queamaioriadosestudiososdatademeadosdo século II d.C., talvez duas ou três décadas depois que o evangelho deJoãofoiescrito.

Reconhecimentos contém uma história incrível sobre a briga violentaqueTiago, irmãode Jesus, temcomalguémsimplesmente chamadode “oinimigo”.No texto,Tiago e o inimigo estão engajados emumadisputa aosgritosdentrodoTemploquando,derepente,oinimigoatacaTiagoemumacesso de fúria e o joga escada abaixo. Tiago é gravemente ferido naqueda,masseusseguidoreschegamrápidoemseusocorroeolevamparaum local seguro. De forma notável, o inimigo que atacou Tiago éposteriormente identi icado como ninguém menos que Saulo de Tarso(Reconhecimentos1:70-71).

Tal como acontece com a versão de Lucas, a história da briga entreTiago e Paulo emReconhecimentos temsuas falhas.O fatodequePauloémencionado como Saulo indica que o autor acredita que o acontecimentotenha ocorrido antes da conversão de Paulo (embora o texto nunca se

re ira, de fato, à conversão). No entanto, independentemente dahistoricidade da narrativa, a identidade de Paulo como “o inimigo” daIgrejaérepetidamentea irmada,nãosóemReconhecimentos,mastambémnos outros textos dasPseudo-Clementinas. Na epístola de Pedro, porexemplo,oapóstolo-chefee líderdosDozereclamaque“algunsdentreosgentiosrejeitaramminha ielpregação,ligando-seacertapregaçãoforadaleie insigni icantedohomemqueémeu inimigo” (EpístoladePedro2:3).Em outros lugares, Pedro categoricamente identi ica esse “falso profeta”queensina“adissoluçãodalei”comoPaulo,advertindoseusseguidoresa“não acreditarem em nenhum pregador, a menos que ele traga deJerusalém o testemunho de Tiago, irmão do Senhor, ou quem quer quevenhadepoisdele”(Reconhecimentos4:34-35).

O que o documentoPseudo-Clementinas indica, e o Novo Testamentocon irmaclaramente,équeTiago,Pedro, JoãoeosdemaisapóstolosviamPaulocomcautelaedescon iança,senãoescárnio,sendoporissoqueelestanto se esforçaramem contrariar seus ensinamentos, censurando-lhe aspalavras, alertando os outros a não segui-lo, até mesmo enviando seuspróprios missionários para as congregações dele. Não admira que Pauloestivessetão interessadoemfugirparaRomaapóso incidentenoTemploem 57 d.C. Ele certamente não estava ansioso para ser julgado peloimperadorporseussupostoscrimes,comoLucasparecesugerir.Paulofoipara Roma porque esperava poder escapar à autoridade de Tiago. Mas,comoeledescobriuquandochegouaRomaeviuPedrojáestabelecidoali,nãosepodiaescapartãofacilmentedoalcancedeTiagoedeJerusalém.

Enquanto Paulo passava os últimos anos de sua vida em Roma,frustrado pela falta de entusiasmo que sua mensagem recebeu (talvezporque os judeus estivessem atendendo ao chamado de Pedro a “nãoacreditar em nenhum pregador, a menos que ele traga de Jerusalém otestemunhodeTiago, irmãodoSenhor”),aassembleiadeJerusalémsobaliderançadeTiagoprosperava.OsHebreusemJerusalémcertamentenãoicaram imunes àperseguiçãoporpartedas autoridades religiosas. Erammuitasvezespresose,porvezes,mortosporsuapregação.Tiago, ilhodeZebedeu,umdosDozeoriginais,foiatémesmodecapitado(Atos12:3).Masessascrisesperiódicasdeperseguiçãoeramraraseparecemnãotersidoresultado de uma rejeição da lei por parte dos Hebreus, como foi o casocomosHelenistas,queforamexpulsosdacidade.Obviamente,osHebreustinham descoberto uma maneira de acomodarem-se às autoridadessacerdotais judaicas, caso contrário não poderiam ter permanecido em

Jerusalém. Eles foram certamente judeus cumpridores da lei quemantiveram os costumes e tradições de seus antepassados,mas que poracaso também acreditavam que o simples camponês judeu da GalileiachamadoJesusdeNazaréeraomessiasprometido.

Isso nãoquer dizer queTiago e os apóstolos estavamdesinteressadosem alcançar os gentios, ou que acreditavam que estes não poderiam sejuntar ao movimento. Como indicado por sua decisão no ConselhoApostólico, Tiago estavadisposto a renunciar à práticada circuncisão e aoutros“encargosdalei”paraosgentiosconvertidos.Elenãoqueriaforçarosgentiosasetornaremjudeusantesdeseremautorizadosasetornaremcristãos. Simplesmente insistiaqueelesnão sedivorciassem inteiramentedo judaísmo, que mantivessem certa idelidade às crenças e práticas dopróprio homem que eles alegavam estar seguindo (Atos 15:12-21). Casocontrário,omovimentoarriscavatornar-seumanovareligiãototalmente,eissoéalgoquenemTiagonemseuirmão,Jesus,teriamimaginado.

A liderança irmedeTiagosobreaassembleiade Jerusalémchegouaoim em 62 d.C., quando ele foi executado pelo sumo sacerdote Ananus –nãoporquefosseumseguidorde Jesuse,certamente,nãoporquetivessetransgredidoalei(senão“osmaisjustose…estritosobservadoresdalei”não teriam se levantado em armas contra sua injusta execução). Tiagoprovavelmente foi morto porque estava fazendo o que fazia de melhor:defendendoospobreseoprimidoscontraosricosepoderosos.Oesquemade Ananus para empobrecer o baixo sacerdócio, roubando o dízimo, nãoteria sidobem recebidoporTiago, o Justo. E, assim,Ananus aproveitou abreveausênciadaautoridaderomanaemJerusalémparase livrardeumhomemquesetornaraumapedraemseucaminho.

Não se pode saber como Paulo se sentiu em Roma quando soube damortedeTiago.MasseelepresumiuqueofalecimentodoirmãodeJesusiriarelaxaroapertodeJerusalémsobreacomunidade,estavaenganado.Aliderança da assembleia de Jerusalém passou rapidamente para outromembro da família de Jesus, seu primo Simeão, ilho de Cléofas, e acomunidade continuou inabalável atéquatro anos após amortedeTiago,quandoosjudeusderepenteselevantaramemrevoltacontraRoma.

Alguns entre os Hebreus parecem ter fugido de Jerusalém para Pellaquando a revolta começou. Mas não há nenhuma evidência para sugerirque a liderança do núcleo da assembleia-mãe tenha abandonadoJerusalém. Eles mantiveram sua presença na cidade da morte eressurreição de Jesus, aguardando ansiosamente o seu retorno, até o

momentoemqueoexércitodeTitochegouevarreuaCidadeSantaeseushabitantes, cristãos e judeus, da face da Terra. Com a destruição deJerusalém,aconexãoentreasassembleiasespalhadasportodaaDiásporae a assembleia-mãe enraizada na cidade de Deus foi de initivamentecortada,assimcomoofoiaúltimaligaçãofísicaentreacomunidadecristãeJesus,ojudeu.Jesus,ozelota.

JesusdeNazaré.

Epílogo:DeusverdadeirodeDeusverdadeiro

OSANCIÃOSDEBARBAGRISALHA equasecalvosque ixaramempedraa féeaspráticasdocristianismosereunirampelaprimeiraveznacidadebizantinade Niceia, na margem oriental do lago de Izmit, na atual Turquia. Era overão de 325 d.C. Os homens tinham sido reunidos pelo imperadorConstantino e ordenados a chegar a um consenso sobre a doutrina dareligião que ele tinha recentemente adotado como sua própria. Enfeitadocom vestes de púrpura e ouro, um áureo louro descansando em suacabeça,oprimeiroimperadorcristãodeRomachamouoconselhoàordemcomoseelefosseoSenadoromano,oqueécompreensível,considerando-sequeeraromanocadaumdoscercade2milbisposquesereuniramaliparadefinirpermanentementeocristianismo.

Os bispos não deveriam se dispersar até que tivessem resolvido asdiferenças teológicas entre si, especialmente quando se tratava danaturezade Jesus e sua relação comDeus.Ao longodos séculos, desde acruci icação de Jesus, houvemuita discórdia e debate entre os líderes daIgrejasobreahumanidadeoudivindadedeJesus.Eleera,comoafirmavamaquelescomoAtanásiodeAlexandria,oDeusencarnado,ouera, comoosseguidores de Ário pareciam sugerir, apenas um homem, um homemperfeito,talvez,masaindaassimumhomem?

Depois de meses de negociações acaloradas, o conselho entregou aConstantino o que icou conhecido como o Credo de Niceia, descrevendopelaprimeiravezascrençasortodoxas,o icialmentesancionadas,daIgrejacristã. Jesus é o ilho literal deDeus, o Credodeclarou. Ele é Luz da Luz,Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado, da mesmasubstânciadopai.QuantoàquelesquenãoconcordavamcomoCredo,que,como os seguidores de Ário, acreditavam que “houve um tempo quando[Jesus]nãoexistia”,elesforamimediatamenteexpulsosdoImpérioeseusensinamentosviolentamentereprimidos.

Pode ser tentador ver o Credo de Niceia como uma tentativaabertamente politizada de abafar as vozes legítimas de dissidência naIgreja primitiva. Sem dúvida, é fato que aquela decisão resultou em milanosoumaisdeindizívelderramamentodesangueemnomedaortodoxia

cristã. Mas a verdade é que os membros do conselho estavam apenascodi icando um credo que já era a opinião da maioria, não apenas dosbisposalireunidos,masdetodaacomunidadecristã.Naverdade,acrençaem Jesus como Deus tinha sido consagrada na Igreja séculos antes doConcíliodeNiceia,graçasàpopularidadeesmagadoradascartasdePaulo.

DepoisqueoTemplofoidestruído,aCidadeSantaqueimadaatéochãoe os remanescentes da assembleia de Jerusalém dispersos, Paulo passouporumareabilitaçãoimpressionantenacomunidadecristã.ComapossívelexceçãodaFonteQ (que é, a inal, um textohipotético), osúnicos escritossobreJesusqueexistiamem70d.C.eramascartasdePaulo.Essascartasjáestavamemcirculaçãodesdeosanos50d.C.Elasforamescritasparaascomunidades da Diáspora que, após a destruição de Jerusalém, eram asúnicas comunidades cristãs que sobraram no reino. Sem a assembleiaoriginalparaguiaros seguidoresde Jesus, a ligaçãodomovimentocomojudaísmofoicortadaePaulo tornou-seoprincipalveículoatravésdoqualumanovageraçãodecristãosfoiapresentadaaJesus,oCristo.Atémesmoos evangelhos foramprofundamente in luenciadospor suas cartas. Pode-se traçar a sombra da teologia paulina em Marcos e Mateus. Mas é noevangelho de Lucas, escrito por um dos discípulos iéis de Paulo, que sepodeverodomíniodosseuspontosdevista,enquantooevangelhodeJoãoépoucomaisqueateologiapaulinaemformadenarrativa.

A concepção de Paulo sobre o cristianismo pode ter sido um anátemaantesde70d.C.,mas,depois,suanoçãodeumareligiãointeiramentenova,livre da autoridade de umTemplo que já não existia, aliviada de uma leiquenãomaisimportavaedivorciadadeumjudaísmoquehaviasetornadopária, foi entusiasticamente abraçada por convertidos em todo o ImpérioRomano. Assim, em 398 d.C., quando, segundo a lenda, outro grupo debispos se reuniu em um conselho na cidade deHippo Regius, na Argéliamoderna, para canonizar o que se tornaria conhecido como o NovoTestamento, eles optarampor incluir nas escrituras cristãs uma carta deTiago, o irmão e sucessor de Jesus, duas cartas de Pedro, o chefe dosapóstoloseprimeiroentreosDoze,trêscartasdeJoão,odiscípuloamadoepilar da Igreja, e quatorze cartas de Paulo, o pária desviado que foirejeitadoe zombadopelos líderesem Jerusalém.De fato,maisdametadedos27 livrosqueagoracompõemoNovoTestamentosãooudePauloousobrePaulo.

Isso não deveria surpreender. O cristianismo depois da destruição deJerusalém era quase exclusivamente uma religião de gentios, que

precisava de uma teologia gentia. E isso foi precisamente o que Pauloforneceu. A escolha entre a visão de Tiago, de uma religião judaicaancoradana leideMoisésederivadadeumnacionalista judeuque lutoucontraRoma,eavisãodePaulo,deumareligiãoromana,quesedivorcioudoprovincianismojudeuenadaexigiaparaasalvaçãoanãoseracrençaemCristo,nãofoiumatarefadi ícilparaasegundaeterceirageraçõesdeseguidoresdeJesus.

Doismilanosdepois,oCristodacriaçãodePaulototalmentesubjugouoJesus da história. A memória do zelota revolucionário que atravessou aGalileiareunindoumexércitodediscípuloscomoobjetivodeestabeleceroReinodeDeusnaterra,opregadormagnéticoqueprovocouaautoridadedo sacerdócio do Templo em Jerusalém, o nacionalista judeu radical quedesa iouaocupaçãoromanaeperdeu, icouquasecompletamenteperdidaparaahistória.Issoéumapena.PorqueaúnicacoisaquequalquerestudoabrangentesobreoJesushistóricodeveriateresperançaderevelaréqueJesus de Nazaré, Jesus, o homem, é tão atraente, carismático e louvávelcomoJesus,oCristo.Eleé,emsuma,alguémemquevaleapenaacreditar.

Notas

Introdução

SoumuitogratoaoépicotrabalhodeJ.P.Meier, AMarginalJew:RethinkingtheHistoricalJesus, vols.I-IV. Conheci o padre Meier enquanto estava estudando o Novo Testamento na Universidade deSanta Clara, e foi o seu olhar de initivo sobre o Jesus histórico, que na época só existia em seuprimeiro volume, que plantou as sementes do presente livro emminhamente. O livro do padreMeierrespondeàperguntadeporquetemostãopoucainformaçãohistóricasobreumhomemquetão completamente mudou o curso da história humana. Sua tese, de que sabemos muito poucosobre Jesus porque, em sua vida, ele teria sido visto como poucomais que um camponês judeumarginaldosertãodaGalileia,constituiabaseteóricaparaolivroquevocêestálendo.

Claro, eu argumento ainda que parte da razão pela qual sabemos tão pouco sobre o Jesushistóricoéqueasuamissãomessiânica–histórica,comoacabouporserevelar–nãoeraincomumnaPalestinadoséculo I.DaíaminhacitaçãodeCelso– “EusouDeus,ouoservodeDeus,ouumespíritodivino…”–,quepodeserencontradanoestudoclássicodeR.Otto,TheKingdomofGodandtheSonofMan,p.13.

Umabrevepalavra sobreomeuusoda expressão “Palestinado século I” ao longodeste livro.Embora Palestina fosse a designação romana não o icial para a terra que engloba o territóriomodernodeIsrael,Palestina, Jordânia,SíriaeLíbanoduranteavidadeJesus,nãofoisenãoatéosromanossufocaremarevoltadebarKochbaemmeadosdoséculoIIquearegiãofoio icialmentenomeadaSíriaPalestina.Noentanto,aexpressão“PalestinadoséculoI” tornou-setãocomumnasdiscussões acadêmicas sobre a era de Jesus que não vejo nenhuma razão para não usá-la nestelivro.

ParasabermaissobreoscontemporâneosmessiânicosdeJesuschamados“falsosmessias”,vejaasobrasdeRichardA.Horsley,especi icamente“PopularmessianicmovementsaroundthetimeofJesus”; “Popular prophetic movements at the time of Jesus: their principal features and socialorigins”; e, com J.S. Hanson,Bandits, Prophets, andMessiahs, p.135-89. O leitor notará que eumeapoio muito no trabalho do professor Horsley. Isso porque ele é de longe o pensador maisimportantesobreotemadoapocalipticismonoséculoI.

Emboraachamada“TeoriadasDuasFontes”sejaquaseuniversalmenteaceitapelosestudiosos,há alguns teóricos bíblicos que a rejeitam como uma explicação viável para a criação dos quatroevangelhos canônicos como nós os conhecemos. Por exemplo, J. Magne, emFrom Christianity toGnosis and from Gnosis to Christianity, considera essa teoria como excessivamente simplista eincapaz de tratar de forma adequada o que ele vê como as complexas variantes entre osevangelhossinópticos.

Além da história do diabólico sacerdote judeu Ananus, há outra passagem deAntiguidades, deJosefo, quemenciona Jesus de Nazaré. Trata-se do chamadoTestimoniumFlavianum , no livro 18,cap.3, em que Josefo parece repetir toda a fórmula do evangelho. Mas essa passagem foi tãocorrompida por interpolações cristãs tardias que sua autenticidade é duvidosa na melhor dashipóteses,eas tentativasacadêmicasde iltrarnapassagemalgumanesgadehistoricidade foraminúteis. Ainda assim, essa segunda passagem é signi icativa na medida em que menciona acrucificaçãodeJesus.

Entre os romanos, a cruci icação surgiu como uma dissuasão contra a revolta de escravos,provavelmente já em 200 a.C. Na época de Jesus, era a principal forma de punição por “incitar

rebelião”(ouseja,traiçãoousedição),oexatocrimedoqualJesusfoiacusado.VejaH.Cancicketal.(orgs.),Brill’s New Pauly Encyclopedia of the Ancient World: Antiquity , p.60 e 966. A punição seaplicavaunicamenteaquemnãoeracidadãoromano.Cidadãosromanospodiamsercruci icados,noentanto,porumcrimetãograveque,basicamente,caçava-lhesacidadania.

Não há aparições da ressurreição no evangelho de Marcos, sendo consenso unânime dosestudiososqueaversãooriginaldoevangelhoterminaemMarcos16:8.Parasabermaissobreisso,vejaanotaaoCapítulo3adiante.

Em 313 d.C., o imperador Constantino assinou o Edito de Milão, que iniciou um período detolerância aos cristãos no Império Romano; as propriedades que haviam sido con iscadas doscristãospeloEstadoforamdevolvidas,eoscristãospassaramaserlivresparapraticarsuafé,semmedo de represálias por parte do Estado. Embora o Edito de Milão tenha criado espaço para ocristianismosetornarareligiãoo icialdoImpério,Constantinonuncaoinstituiucomotal.Juliano,oApóstata (morto em 363 d.C.), o último imperador não cristão, na verdade tentou empurrar oImpério de volta para o paganismo, enfatizando aquele sistema sobre e contra o cristianismo epurgandoogovernodelíderescristãos,emboranuncarevogasseoEditodeMilão.Nãoseriasenãonoano380d.C.,duranteoreinadodo imperadorFlávioTeodósio,queocristianismosetornariaareligiãooficialdoImpérioRomano.

ObreveresumodavidaedoministériodeJesusapresentadono inaldaIntroduçãodestelivrorepresenta a visão da grandemaioria dos estudiosos sobre o que se pode dizer com con iança arespeitodoJesushistórico.Parasabermais,consulteC.H.Talbert(org.),Reimarus:Fragments, e J.K.BeilbyeP.RhodesEddy(orgs.),TheHistoricalJesus:FiveViews.

ParteI

Prólogo:Umtipodiferentedesacrifício

AajudaparaadescriçãodoTemplodeJerusalémeossacri íciosnelefeitosvemdeumavariedadedefontes,bemcomodasminhasidasfrequentesaolocal.Masalgunslivrosforamparticularmenteúteis na reconstrução do antigo templo judaico,incluindo M. Jaffee,Early Judaism, especialmentep.172-88;J.Comay,TheTempleofJerusalem;eJ.Day(org.),TempleandWorshipinBiblicalIsrael.

Instruções para a construção do altar de quatro chifres do Templo foram dadas a Moisésenquantoeleeosisraelitasvagavampelodesertoàprocuradeumlar:“Etudevesfazeroaltardemadeiradeacácia.Edevesaporchifressobreseusquatrocantosporqueeledeveserchifrudo,edevescobri-locombronze.Edevesfazerpotesparareceberascinzas[doaltar],epás,ebacias,eosgarfoseosbraseiros;todososseusvasostumoldarásembronze.Edevesfazerparaeleumagrade,umarede feitadebronze,ena rede tudevesaporquatroargolasdebronzeparaosseusquatrocantos.Edevescolocá-lasobabordadoaltar,paraquearedeseestendaatéomeiodoaltar.Tufarás tambémvaraisparaoaltar,varaisdemadeiradeacácia, cobrindo-osdebronze.Eospostesdevemserinseridosnosanéis,demodoaqueospolosestejamnosdoisladosdoaltarquandofortransportado. Tu deves torná-lo oco, de tábuas, como foimostrado a ti namontanha. Assim seráfeito.”(Êxodo27:18)

Oquesigni icaoTemploseraúnicafontedadivinapresençadeDeus?Considereoseguinte:ossamaritanos negavam a primazia do Templo de Jerusalém como o único lugar de adoração. ElesadoravamDeus nomonteGerizim. Embora essa fosse, essencialmente, a única diferença entre asduaspopulações,jáerasu icienteparaqueossamaritanosnãofossemconsideradosjudeus.Haviaoutros locais de sacri ício para os judeus (por exemplo, em Heliópolis), mas eram consideradossubstitutos,enãoequivalentes.

Para sabermais sobre a Judeia como “Templo-Estado”, vejaH.D.Mantel, “ThehighpriesthoodandtheSanhedrininthetimeofthesecondTemple”,inM.Avi-YonaheZ.Baras(orgs.), TheWorldHistoryoftheJewishPeople:TheHerodianPeriod,p.264-81.AcitaçãodeJosefosobreJerusalémcomo

uma teocracia é deContraApion, Livro2, 17.Para sabermais sobreoTemplode Jerusalémcomoumbanco,vejaN.Q.Hamilton,“TemplecleansingandTemplebank”.UmaanálisemuitodetalhadadasreceitasdoTemplopodeserencontradaemM.Broshi,“TheroleoftheTempleintheHerodianeconomy”.

A comunidade de Qumran rejeitou o Templo de Jerusalém, por ter ele caído nas mãos desacerdotescorruptos.ElaseviaentãocomoumsubstitutotemporárioparaoTemplo,referindo-seàcomunidade como o “templo do homem/homens”, ou “miqdash adam”. Alguns estudiosos têmargumentadoqueéporissoqueosqumranitasestavamtãointeressadosnapurezaritual,poiselesacreditavamquesuasoraçõesepuri icaçõeserammaispotentesdoqueosrituaisesacri íciosemJerusalém, que haviam sido contaminados pelos sacerdotes do Templo. Para uma discussãodetalhada da expressão “templo do homem/homens” em Qumran, veja G. Brooke,Exegesis atQumran: 4QFlorilegium in its JewishContext, p.184-93, eD.Dimant, “4QFlorilegiumand the idea ofthe community as Temple”, in A. Caquot (org.), Hellenica et Judaica: Hommage à ValentinNikiprowetzky,p.165-89.

ÉJosefoquemnotoriamenteserefereatodaanobrezasacerdotalcomo“amantesdoluxo”em AGuerra Judaica, embora ele não estivesse sozinho em suas críticas. Há uma crítica semelhante nosManuscritos domarMorto, onde os sacerdotes são chamados de “buscadores de coisas suaves” e“buscadoresdebajulação”.

HáumadescriçãomaravilhosadosumosacerdotenafamosaCartadeAristeu,escritaporvoltadoséculo IIa.C.–cuja traduçãopodeserencontradanosegundovolumede J.H.Charlesworth(org.),TheOldTestamentPseudepigrapha,p.7-34.Eisotrecho:“Nós icamosmuitosurpresosquandovimosEleazar envolvido em seu ministério, sua vestimenta e a majestade de sua aparência, que erareveladapelomantoqueeleusavaeaspedraspreciosassobreasuapessoa.Haviasinosdouradospregados na roupa que iam até os pés, oferecendo um tipo peculiar demelodia, e em ambos oslados dos sinos havia romãs e lores variadas de um tommaravilhoso. Ele estava cingido por umcinto de beleza notável, tecido nas mais belas cores. No peito, usava o oráculo de Deus, como échamado,noqualdozepedras,dediferentestipos,estavaminseridas,presascomouro,contendoosnomes dos líderes das tribos, de acordo com sua ordem original, cada uma cintilando de formaindescritível com a sua própria cor especial. Na cabeça ele usava uma tiara, como é chamada, e,sobreela,nomeiodatesta,umturbanteinimitável,comodiademarealcheiodeglória,comonomedeDeus inscritoemletrassagradasemumaplacadeouro…ele tinhasido julgadodignodeusaresses emblemas em seu ministério. Sua aparência criava tal temor e confusão de espírito queprovocava a sensação de ter-se entrado na presença de um homem que pertencia a ummundodiferente. Estou convencido de que qualquer um que participe do espetáculo que descrevi serátomadodeespantoeadmiraçãoindescritíveiseseráprofundamenteafetadoemsuamentecomaideiadasantidade,queestáligadaacadadetalhedasolenidade.”

1.Umburaconocanto

ParaummanualsobreapolíticadeRomaaolidarcompopulaçõesdominadase,especialmente,suarelaçãocomosumosacerdoteeaaristocraciasacerdotaldeJerusalém,vejaM.Goodman,TheRulingClass of Judea, e também R.A. Horsley, “High priests and the politics of Roman Palestine”. A obraRome and Jerusalem: The Clash of Ancient Civilizations, de Goodman, fornece uma discussãoindispensável da atitude extremamente tolerante de Roma em relação aos judeus e, ao mesmotempo,ofereceumagamadepontosdevistadosromanossobreasexceçõesnamaneiraromanadetrataracausa judaica.Édo livrodeGoodman(p.390-1)queascitaçõesdeCícero,TácitoeSênecaforam extraídas. Uma discussão mais aprofundada das atitudes romanas em relação às práticasjudaicas pode ser encontrada em E.S. Gruen, “Roman perspectives on the Jews in the age of theGreatRevolt”,inA.M.BerlineJ.A.Overman(orgs.), TheFirstJewishRevolt ,p.27-42.ParasabermaissobreaspráticasreligiosaseoscultosdeRoma,vejaM.Beard,J.NortheS.Price,ReligionsofRome:ASourcebook.

Oatode “aniquilação total” (herem, emhebraico),emqueDeusordenaomassacrede “tudooquerespira”,éumtemarecorrentenaBíblia,comoexplicoemmeulivroHowtoWinaCosmicWar ,p.66-9. É uma “limpeza étnica comoummeiode garantir a purezado culto”, para citar o grandeestudiosobíblicoJohnCollins,“ThezealofPhinehas:TheBibleandthelegitimationofviolence”,p.7.

Para detalhes sobre impostos e medidas tomadas por Roma contra o campesinato judaico,consulte L.L. Grabbe,Judaism from Cyrus to Hadrian, p.334-7, e também R. Horsley e J. Hanson,Bandits, Prophets,Messiahs, p.48-87. Grabbe nota que alguns estudiosos têm dúvidas sobre se apopulação judaicaera forçadaapagar tributoaRoma, emboraninguémquestionequeos judeusforam forçados a inanciar a guerra civil romana entre Pompeu e Júlio César. Sobre o tema daurbanização emmassa e transferência de populações das zonas rurais para os centros urbanos,vejaJ.Reed,“InstabilityinJesus’Galilee:Ademographicperspective”.

2.Reidosjudeus

Otermo“messias”naBíbliaHebraicaéusadoemreferênciaaoreiSaul(1Samuel12:5),aoreiDavi(2Samuel23:1), ao rei Salomão (1Reis1:39)eao sacerdoteAarãoe seus ilhos (Êxodo29:1-9),assimcomoaosprofetasIsaías(Isaías61:1)eEliseu(1Reis19:15-16).Aexceçãoaestalistapodeser encontrada em Isaías 45:1, ondeo rei persaCiro, apesardenão conhecer oDeusdos judeus(45:4),échamadodemessias.Aotodo,são39ocorrênciasdapalavra“messias”naBíbliaHebraicareferindo-se especi icamente à unção de alguém ou de alguma coisa, como o escudo de Saul (2Samuel1:21)ouoTabernáculo(Números7:1).Noentanto,nenhumadessasocorrênciasrefere-seao messias como um futuro personagem salvacionista, que seria designado por Deus parareconstruir o reino de Davi e restaurar Israel a uma posição de glória e poder. Essa visão domessias,queparecetersidobastantebem-estabelecidanaépocadeJesus,foinaverdademoldadaduranteotumultuadoperíododoexíliobabilônio,noséculoVIa.C.

Embora pouco se duvide que as quadrilhas de bandidos da Galileia representassem ummovimentoapocalíptico,escatológicoemilenar,RichardHorsleye JohnHansonasveemcomotrêscategorias distintas e, como resultado, recusam-se a rotular os bandidos como um movimento“messiânico”. Em outras palavras, os autores defendem que “messiânico” e “escatológico” nãodevem ser vistos como equivalentes. No entanto, como eu discuto nesta seção, não há nenhumarazãoparaacreditarquetaldistinçãoexistianamentedocamponês judeuque, longede terumacompreensãoso isticadadomessianismo, teriaprovavelmenteaglomerado todasessas “categoriasdistintas” em uma vaga expectativa do “Fim dos Tempos”. Em qualquer caso, Horsley e Hansonadmitemque“muitasdascondiçõesessenciaisparaobanditismoeosmovimentosmessiânicossãoasmesmas.Naverdade,poderianãoterhavidonenhumadiferençaentreelessenãotivessehavidoentreos judeusuma tradiçãode realezapopulareprotótiposhistóricosdeum ‘ungido’popular”,emBandits,Prophets,andMessiahs,p.88-93.

ParaCésarcomoFilhodeDeus,vejaA.Y.Collins, “Markandhisreaders:TheSonofGodamongGreeksandRomans”.Doisrabinoszelosos– Judas, ilhodeSeforeus,eMatias, ilhodeMargalus–lideraramumarevoltaqueatacouoTemploetentoudestruiraáguiaqueHerodescolocaranotopode suas portas. Eles e seus alunos foram capturados e torturados até a morte pelos homens deHerodes.

Ascomplexidadesdosectarismo judaicono judaísmodoséculo Isãobemabordadaspor JeffS.AndersonemsuaconvincenteanáliseTheInternalDiversificationofSecondTempleJudaism.

Josefodiz que SimãodaPereia se chamoude “rei”, a partir doqueHorsley eHanson inferemque ele fazia parte dos “movimentos messiânicos populares” que surgiram depois da morte deHerodes. VejaBandits, Prophets, and Messiahs, p.93. Novamente, para mim, parece não havernenhuma razão para supor distinção de qualquer natureza nas mentes dos camponeses judeusentre“messias”e“rei”,namedidaemqueambosostítulosnãoseapoiavamnasescrituras,queagrandemaioria dos judeus não podia nem acessar nem ler,mas sim nas tradições e histórias de

movimentos messiânicos da história judaica popular, bem como oráculos, imagens populares,fábulas e tradições orais. Claro, alguns estudiosos chegam a recusar-se a considerar que “rei”signi icamessias.Emoutraspalavras,eles fazemumadistinçãoentreostermos,comoCraigEvanscoloca,“pretendentespolíticosàrealezaepretendentesmessiânicosàrealeza”.NesseterritórioestáM. De Jong,Christology inContext:TheEarliestChristianResponse to Jesus.Mas Evans está certo aoa irmar que, quando se trata de qualquer aspirante real na Palestina do século I, “a presunçãodeveserdequequalquerreivindicaçãojudaicaaotronodeIsraelé,comtodaaprobabilidade,deumreclamantemessiânico emalgumsentido”. Eu concordo inteiramente.VejaC. Evans, Jesus andHisContemporaries,p.55.

3.Vóssabeisdeondevenho

Sobre apopulaçãoda antigaNazaré, consulte a relevantemenção emTheAnchor BibleDictionary,organizadoporD.N.Freedmanetal.VejatambémE.MeyerseJ.Strange,Archaeology,theRabbis,andEarlyChristianity,eJ.D.Crossan,TheHistoricalJesus:TheLifeofaMediterraneanJewishPeasant ,p.18.Os estudiososdivergem sobrequantaspessoas viviamemNazaréno tempode Jesus, comalgunsa irmandoteremsidomenosdeduascentenaseoutrosdizendoatédoismilhares.Meuinstintoéode icarnomeiodaescala,daíaestimativadeumapopulaçãocompostaporcercadecemfamílias.ParasabermaissobreavidaprovincialnaGalileiadeJesus,vejaS.Korb,LifeinYearOne:WhattheWorldwaslikeinFirst-CenturyPalestine.

Apesar das histórias nos evangelhos sobre Jesus pregar na sinagoga de sua cidade natal,nenhumaevidênciaarqueológicafoidescobertaparaindicarapresençadeumasinagoganaantigaNazaré, embora nada impeça que ela tenha sido uma pequena estrutura que serviu como tal(lembre-se que “a sinagoga” no tempo de Jesus poderia signi icar algo tão simples como umcômodocomumrolodaTorá).Tambémdeveserlembradoquenomomentoemqueosevangelhosforam escritos, o Templo de Jerusalém havia sido destruído e o único local de encontro para osjudeuseramassinagogas.Portanto, faz sentidoque Jesussejaconstantementeapresentadocomoensinandonasinagogaemcadacidadequevisitava.

Não foram encontradas inscrições em Nazaré para indicar que a população era efetivamentealfabetizada. Os estudiosos estimam que entre 95% e 97% dos camponeses judeus na época deJesusnãosabiamlernemescrever.Sobreesteponto,vejaJ.D.Crossan,TheHistoricalJesus,p.24-6.

SobreNazarécomoolugardonascimentodeJesus,vejaJ.P.Meier, AMarginalJew,vol.1,p.277-8;E.P.Sanders,TheHistoricalFigureofJesus,eJ.D.Crossan,Jesus:ARevolutionaryBiography,p.18-23.

Para mais informações sobre visões do messianismo no tempo de Jesus, veja G. Scholem,TheMessianic Idea in Judaism, p.1-36. Scholem apresenta duas tendências messiânicas distintas nojudaísmoantigo: ada restauraçãoeautópica.Omessianismorestauradorbuscao retornoaumacondição ideal no passado glori icado, ou seja, considera a melhoria do presente como sendodiretamente ligada às glórias do passado. Mas, apesar de o polo restaurador encontrar suaesperançanopassado,eleéaindaassimdiretamenterelacionadocomodesejodeumfuturoaindamelhor, que traria “um estado de coisas que ainda nunca existiu”. Relacionado a esse polorestaurador existe o messianismo utópico. De caráter mais apocalíptico, ele busca a mudançacatastró ica coma vindadomessias, ou seja, a aniquilação domundo atual e o início de uma eramessiânica. O messianismo restaurador pode ser visto nas tradições régias que buscam o idealdavídico–queprocuraestabelecerumreinonotempopresente–,enquantoomessianismoutópicoestá associado à igura sacerdotal encontrada nosManuscritos do mar Morto, em Qumran.Naturalmente,nenhumadessas tendênciasmessiânicasexistia independentementedaoutra.Pelocontrário, ambos os polos existiam de alguma forma em quase todos os grupos messiânicos. Naverdade, foi a tensão entre essas duas tendências que criou o caráter variado do messias nojudaísmo. Para saber mais sobre o messianismo judaico, veja estudos de R. Horsley, incluindo“Messianic igures andmovements in irst-century Palestine”, in TheMessiah, organizado por J.H.Charlesworth,p.295;“PopularmessianicmovementsaroundthetimeofJesus”;e“‘Likeoneofthe

prophetsofold’:TwotypesofpopularprophetsatthetimeofJesus”.Todosostrêsestudosforamvitais para o meu exame de ideias messiânicas à época de Jesus. Eu também recomendo osrelevantesverbetesemD.N.Freedmanetal.(orgs.),TheAnchorBibleDictionary,e J.Werblowskyetal.(orgs.),TheEncyclopediaoftheJewishReligion.

ParecequeacomunidadedeQumran,defato,aguardavadoismessiasdiferentes.OEstatutodaComunidadesugereissoem9:12quandofaladavindade“oProfetaeoMessiasdeAarãoeIsrael”.Evidentemente se está fazendo uma diferenciação entre as igurasmessiânicas real e sacerdotal.Essa noção émais desenvolvida no Estatuto da Congregação.Nesse rolo, umbanquete é descritonos“últimosdias”emqueomessiasdeIsraelsesentaemumaposiçãosubordinadaaosacerdoteda congregação. Embora o texto não use a palavra “messias” para se referir ao sacerdote, suaposição superior à mesa indica seu poder escatológico. Esses textos têm levado os estudiosos adeduzir que a comunidade de Qumran acreditava na vinda de um messias real e um messiassacerdotal, com o último sendo dominante sobre o anterior. Veja J. Charlesworth, “From Jewishmessianology toChristian christology: Some caveats andperspectives”, in J.Neusner et al. (orgs.),JudaismsandTheirMessiahsattheTurnoftheChristianEra,p.225-64.

Deve-se notar que em nenhum lugar nas Escrituras Hebraicas o messias é explicitamentedenominadoodescendente ísicodeDavi, ou seja, “FilhodeDavi”.Maso imaginário associado aomessiaseo fatodequesua tarefaprincipal seria restabelecerpermanentementeo reinodeDaviligavamasaspiraçõesmessiânicasàlinhagemdeDavi.Istoé,emgrandeparte,devidoaochamado“pacto davídico”, baseado na profecia do profeta Natã: “Sua [de Davi] casa e seu reino serãogarantidos para sempre diante de mim; o seu trono será estabelecido para sempre.” (2 Samuel7:16)

A linhagemde Jesus a partir do reiDavi é a irmada repetidas vezes, não apenas ao longodosevangelhos, mas também nas cartas de Paulo, em que Jesus é repetidamente descrito como “dasementedeDavi”(Romanos1:3-4;2Timóteo2:8).Seéverdade,éimpossíveldizer.Muitaspessoasa irmavam descender do maior rei israelita (que viveu mil anos antes de Jesus de Nazaré) e,francamente, nenhumdeles poderia provar tal linhagem ou refutá-la.Mas, obviamente, a ligaçãoentre JesuseDavieravitalparaacomunidadecristãprimitiva,poisajudavaaprovarqueaquelehumildecamponêseradefatoomessias.

ÉamplamenteaceitoqueotextooriginaldeMarcosterminaem16:8equeMarcos16:9-20foiumaadiçãoposterior.ParaNormanPerrin: “Éaopiniãoquaseunânimedosestudiososmodernosque o que aparece namaioria das traduções do evangelho deMarcos 16:9-20 é umpastiche dematerialretiradodeoutrosevangelhoseadicionadoaotextooriginal,àmedidaqueeracopiadoetransmitido pelos escribas das antigas comunidades cristãs.” Veja N. Perrin,The ResurrectionAccordingtoMatthew,Mark,andLuke,p.16.Noentanto,aindaexistemalgunsquequestionamessahipótese,argumentandoqueumlivronãopodeterminarcomapalavragregaγαρ,gcomoaconteceemMarcos16:8.EssepontodevistafoidesmontadoporP.W.vanderHorst,“Canabookendwithγαρ?AnoteonMarkXVI.8”.Horstobservanumerosos textosda antiguidadequede fato acabamdessa maneira (por exemplo, Plotino 32º tratado). De qualquer maneira, quem lê Marcos nooriginalgregopodedizerqueumamãodiferenteescreveuosoitoversosfinais.

Paraprofeciasalegandoque“quandoomessiasvier,ninguémsaberádeondeelevem”,veja1Enoque 48:6 e 4 Esdras 13:51-52. Para uma análise completa dos chamados “textos de prova”messiânicos,vejaJ.J.M.Roberts,“TheOldTestament’scontributiontomessianicexpectations”,inJ.H.Charlesworth (org.),TheMessiah,p.39-51.SegundoRoberts,essestextossãoclassi icadosemcincocategorias. Primeiro, há aquelas passagens que parecem ser profeciasex eventu, feitas quando oautor já sabia dos acontecimentos. Roberts cita o oráculo de Balaão em Números 24:17 (“umaestrelasairádeJacó”)comoumcasoemqueumaprofeciaquepareceencontrarsuarealizaçãonoperíodomonárquicoantigo(nessecaso,acelebraçãodasvitóriasdeDavicomoreide IsraelsobreMoabe e Edom, como é indicado nos versículos 17b e 18) foi forçada a funcionar como umaprofecia sobre a realeza divina futura. Tal interpretação futurista, a irma Roberts, ignora aconfiguraçãooriginaldaprofecia.

A segunda categoria lida com passagens proféticas que parecem se basear nas cerimônias de

entronizaçãodosreisungidos.Porexemplo,oSalmo2(“Tuésmeu ilho…/hojeeumetorneiteupai”) e Isaías 9:6 (“Porque um menino nasceu para nós … e seu título será: MaravilhosoConselheiro, Poderoso Herói, Pai Eterno, Príncipe da Paz”) foram provavelmente compostos paraocasiõesespecí icasa imdeatenderaambasasfunções,religiosasepolíticas.Ousopolíticodessestextos é evidente em suas reivindicações de poder autoritário do rei e de sua ligação direta comDeus.Elestambémestabelecemumaligaçãoentreasresponsabilidadesdoreiparacomseupovoeos comandos deDeus. O rei que serve no lugar deDeus devemostrar a justiça deDeus.Mesmoassim, declarações tais como as encontradas nesses versos sem dúvida criariam uma ferramentapoderosaparaapropagandareal.Aterceiracategoriadostextosdeprovamessiânicosfala,defato,de um governante futuro, e esses são talvez os versosmais frequentemente citados por aquelesque querem dar uma interpretação salvacionista ao messias das Escrituras Hebraicas (Miqueias5:1-5, Zacarias 9:1-10). Esses textos falam da personi icação do ideal de Davi, metaforicamente(não isicamente) referido como um rei da linhagem de Davi, que irá restaurar amonarquia deIsrael à sua antiga glória. Mas para Roberts as promessas de um futuro rei (por exemplo, apromessa deMiqueias de um rei surgindo da humildade de Belém) “implicam uma crítica sériasobre o presente ocupante do tronodavídico como inferior ao adequadopara herdeiro deDavi”.Essacríticaéaparenteaolongodostextosproféticos(Isaías1:21-26,11:1-9,32:1-8).Robertsusaamesmaabordagemnoquarto grupode textosdeprovamessiânicos vislumbrandoum futuro rei.Estes, principalmente Jeremias e Ezequiel, Roberts situa no inal do reino da Judeia, quando arestauraçãodadinastiadavídica foiumarespostaàscrescentespreocupaçõesexistenciaissobreofuturodeIsraelcomoumateocracia.

Aúltimacategoriatratadostextospós-exílio.DeacordocomRoberts,apósoretornodoexílio,osjudeus foram confrontados com um Templo destruído, o sacerdócio desonrado e nenhum reidavídico. Os textos proféticos de Zacarias e Ageu trataram desses problemas em oráculos quecolocaramZorobabel naposiçãode restaurar amonarquiade Israel e doTemplo (Ageu2:20-23;Zacarias4:6-10).RobertsacreditaqueasprofeciassobrearestauraçãodacoroaedoTemplo(porexemplo, Zacarias 6:9-15) referem-se apenas às ações de Zorobabel e são uma resposta otimistadiante das circunstâncias terríveis que existiram no período pós-exílio. Ele também traça asposteriores expectativas sacerdotais do messias aos textos desse período, que incluem arestauração do sacerdócio sob Josué (Zacarias 3:1-10). Roberts está convencido por seu estudosobreos textosdeprovamessiânicosquea ideiadeummessiassalvadornãoestáexplicitamentedeclarada nas Escrituras Hebraicas, mas é, sim, um desenvolvimento posterior da escatologiajudaica que foi adotada pelos fariseus, talvez no século II ou I a.C., e mais tarde incorporada ao“judaísmonormativo”.

4.AQuartaFilosofia

Alguns estudiosos acreditam quetekton não signi ica “carpinteiro”, mas qualquer artesão quetrabalhana construção civil. EnquantoMarcos6:3 é o único versículoque chama Jesusdetekton,Mateus 13:55 a irma que o pai de Jesus era umtekton. Considerando as restrições da época, oversículoprovavelmentequeria indicarque Jesus eraumtekton também(emboraessapassagemdeMateusnaverdadenãonomeieopaide Jesus).Algunsestudiososacreditamqueosartesãosediaristasno tempode Jesusdevemser considerados comoumaclassemédiabaixanahierarquiasocial da Galileia, mas essa visão tem sido refutada por Ramsay MacMullen emRoman SocialRelations:50B.C.toA.D.384.

Muitosestudostêmsido feitossobrea línguade JesusedaPalestinadoséculo Iemgeral,masnenhum é melhor do que os de Joseph Fitzmyer. Consulte “Did Jesus speak Greek?” e “TheLanguages of Palestine in the First Century A.D.”, in S.E. Porter (org.), The Language of the NewTestament,p.126-62.OutrosbonsestudossobrealínguadeJesusincluemJ.Barr,“WhichlanguagedidJesusspeak?Someremarksofasemitist”,eM.O.Wise,“LanguagesofPalestine”,inJ.B.GreeneS.McKnight(orgs.),DictionaryofJesusandtheGospels,p.434-44.

JohnMeier faz um comentário interessante sobre a passagem de Lucas na qual Jesus está nasinagogalendoorolodeIsaías:“QualquerumquegostariadedefenderarepresentaçãodeLucasdaleituradeIsaíascomohistoricamentecon iável,mesmoemseusdetalhes,teriaqueexplicar(1)comoJesusconseguiulerapartirdeumrolodeIsaíasumapassagemcompostaporIsaías61:1a,b,d;58:6d;61:2a,comaomissãode61:1c,2d;(2)porqueéqueJesusleuumtextodeIsaíasqueébasicamente o da Septuaginta grega,mesmo quando às vezes o texto da Septuaginta diverge dotextomassorético.”Veja J.Meier,Marginal Jew, vol.1,p.303.Apesardisso,Meieracreditaque Jesusnão era analfabeto e que pode ter tido algum tipo de educação formal, e fornece um relatoesclarecedordodebate,abordandoambososlados(p.271-8).

Quanto aos irmãos de Jesus, alguns argumentos têm sido levantados por teólogos católicos (ealguns protestantes) sobre a palavra gregaadelphos (irmão) possivelmente signi icar “primo” ou“irmãopostiço”, ilhodepadrastooumadrasta.Embora issopossaserverdade,emnenhumlugardetodooNovoTestamentoapalavraadelphoséusadacomessesigni icado(eelaéusadacercade340 vezes). Marcos 6:17 usaadelphos para indicar “meio-irmão” quando se refere aorelacionamentodeFilipecomHerodesAntipas,masmesmoesseusosignifica“irmãofísico”.

UmanotalateralinteressantesobreafamíliadeJesuséquetodoselesforamnomeadosapartirde grandes heróis e patriarcas da Bíblia. O nome de Jesus era Yeshu, abreviação de Yeshua ouJoshua,ograndeguerreiroisraelitacujamatançadastribosquehabitavamCanaãlimpouoterrenoparaos israelitas.SuamãeeraMiriam,emhomenagemà irmãdeMoisés.Seupai, José, recebeuonome do ilho de Jacó, que se tornaria conhecido como Israel. Seus irmãos, Tiago, José, Simão eJudas, foramtodos chamados por nomes de heróis bíblicos. Aparentemente, a nomeação dascriançasemhomenagemaosgrandespatriarcastornou-sehabitualapósarevoltadosmacabeusepodeindicarumsentidodedespertardaidentidadenacional,queparecetersidoparticularmenteacentuadonaGalileia.

OargumentoemMateussobreonascimentovirginaldeJesustersidoprofetizadoemIsaíasnãosemantém,umavezqueosestudiosossãoquaseunânimesemtraduzirapassagemdeIsaías7:14nãocomo“eisqueavirgemconceberá”,mas“eisqueumajovemdonzela( alma)iráconceber”.Nãohádisputaaqui:almaéohebraicoparaumamulherjovem.

Paraumargumentoparticularmente controverso sobreonascimento ilegítimode Jesus, veja J.Schaberg,The Illegitimacy of Jesus. Schaberg sugere que Maria foi provavelmente estuprada,emboranãosejaclarocomoelachegaaessaconclusão.

AhistóriadeCelso sobreo soldadoPantheraéde seu tratadodo século IIDiscurso verdadeiro ,quenãomais existe.Nossoúnico acesso a ele vemda resposta polêmicadeOrígenes ao trabalhointituladoContraCelso,escritoemmeadosdoséculoIII.

Deve-se notar que tanto Mateus quanto Lucas recontam a passagem do “ ilho de Maria” deMarcos6:3,masamboscorrigemadeclaraçãodeMarcos referindo-se incisivamentea Jesuscomo“o ilho do carpinteiro” (Mateus 13:55) e “o ilho de José” (Lucas 4:22). Existem variantes deMarcosqueinserem“o ilhodocarpinteiro”nesseversículo,maségeralmenteaceitoqueessassãoadições posteriores. O original de Marcos 6:3, sem dúvida, chama Jesus de “ ilho de Maria”. Épossível, embora pouco provável, que Jesus fosse chamado assim porque José havia morrido hátanto tempo que fora esquecido.Mas JohnMeier observa que só há um único caso em todas asEscrituras Hebraicas em que um homem é chamado de ilho de suamãe: trata-se dos ilhos deZeruia – Joabe, Abisai e Asael –, que eram soldados do exército do rei Davi (1 Samuel 26:6; 2Samuel2:13).Todosostrêssãorepetidamentemencionadoscomo“ ilhosdeZeruia”.VejaJ.Meier,MarginalJew,vol.1,p.226.

Para saber mais sobre a questão de se Jesus era ou não casado, veja W.E. Phipps,Was JesusMarried? eThe Sexuality of Jesus. Karen King, professora da Universidade Harvard, descobriurecentementeumpequenopedaçodepapiro,queeladatadoséculoIV,contendoumafrasecoptaque se traduz em “Jesus disse a eles: ‘Minha esposa…’”. No momento da redação deste texto, ofragmentoaindanãohaviasidoautenticado,masmesmoquenãosejauma falsi icação,elesónosdizoqueaquelesnoséculoIVacreditavamarespeitodoestadocivildeJesus.

Há algumas grandeshistórias sobre omenino Jesusnos evangelhos gnósticos, especialmente o

evangelho de Tomé, em que um petulante Jesus ostenta seus poderes mágicos ao trazer à vidapássaros de barro ou atingindo com amorte crianças da vizinhança que não lhe demonstravamrespeito.AmelhoremaiscompletacoleçãodosevangelhosgnósticoseminglêséTheNagHammadiLibrary,organizadaporM.W.Meyer.

ParasabermaissobreSéforis,consulteorelevanteverbetedeZ.Weissem TheNewEncyclopediaofArchaeologicalExcavationsintheHolyLand,organizadaporE.Stern,p.1.324-8.ParaSéforiscomoum importante centro comercial na Galileia, veja A.Fradkin, “Long-distance trade in the LowerGalilee:Newevidence fromSepphoris”, inD.R.EdwardseC.T.McCollough (orgs.), ArchaeologyandtheGalilee,p.107-16.Háalgumdebatesobreseosmiqva’ot(banhosrituais)descobertosemSéforiseram realmente o local de banhos rituais; Hanan Eshel, da Universidade de Bar Ilan, está entreaqueles que não acreditam nisso. Consulte “A note on ‘Miqvaot’ at Sepphoris”, também emArchaeology and the Galilee, p.131-3. Veja também E. Meyers, “Sepphoris: City of Peace”, in A.M.BerlineA.J.Overman(orgs.),TheFirstJewishRevolt:Archaeology,History,andIdeology ,p.110-20.Eurealmente acho o argumento de Eshel bastante convincente, embora a maioria dos estudiosos earqueólogosnãoconcorde.

Não há como se ter certeza da data exata da declaração de Antipas e reconstrução de Séforiscomosuasedereal.EricMeyerdizqueAntipasmudou-separaSéforisquaseimediatamentedepoisqueosromanosarrasaramacidade,em4a.C.;vejaE.M.Meyers,E.NetzereC.L.Meyers,“OrnamentofallGalilee”.Noentanto,ShirleyJacksonCasecolocaadatamuitomaistarde,emtornode10d.C.,em seu estudo “Jesus and Sepphoris”. Seja como for, o mais próximo que podemos colocar aentrada de Antipas em Séforis é em torno da virada do século I. Deve-se notar que Antipasrebatizou a cidade de Autocratoris, ou “Cidade Imperial”, depois que fez dela a sede da suatetrarquia.

Para sabermais sobre a vida de Jesus em Séforis, veja R.A. Batey, Jesus and the Forgotten City:New Light on Sepphoris and the Urban World of Jesus . Trabalhos arqueológicos por Eric MeyerslançaramalgumasdúvidassobreanoçãogeneralizadadequeacidadefoiarrasadaporVaro,comoafirmaJosefoemsuaobraGuerra2:68.Consulte“RomanSepphorisinthelightofnewarcheologicalevidenceandresearch”,inL.I.Levine(org.),TheGalileeinLateAntiquity,p.323.

EmborapareçaqueJudasfosserealmentedacidadedeGamala,noGolan,eleeraconhecidoportodos como “Judas, o Galileu”. Há um grande debate sobre a relação entre Ezequias e Judas, oGalileu,eemboranãopossaserdefinitivamenteprovadoqueesteúltimofosseamesmapessoaqueJudas, o bandido, que era ilho de Ezequias, essa certamente é a suposição que Josefo faz (duasvezes!), e não vejo razão para duvidar dele. Veja Guerra 2.56 eAntiguidades 17.271-2. ParamaisinformaçõessobreaconexãogenealógicaentreJudaseEzequias,consulteorelevanteverbetedeG.VermesemWho’sWhointheAgeofJesus,p.165-7,etambémJ.Kennard,“JudastheGalileanandhisclan”. Para o ponto de vista oposto, veja R.A. Horsley, “Menahem in Jerusalem: A brief messianicepisode among the Sicarii – Not ‘ZealotMessianism’”. Sobre a inovação de Judas, o Galileu, e seuefeito sobre os grupos revolucionários que se seguiriam, consulteM. Smith, “The Zealots and theSicarii”.

Oconceitobíblicodezeloémaisbemdefinidocomo“raivazelosa”,eéderivadodocaráterdivinode Deus, que a Bíblia chama de “um fogo devorador, um Deus zeloso” (Deuteronômio 4:24). Omodelomais famoso de zelo bíblico é Fineias, neto de Aarão (irmão deMoisés), cujo exemplo deaçãoindividualespontâneacomoexpressãodaraivazelosadeDeusecomoexpiaçãopelospecadosda nação judaica tornou-se omodelo de retidão pessoal na Bíblia (Números 25). Vejameu livroHow toWin a CosmicWar , p.70-2, e também a entrada relevante noThe Anchor Bible Dictionary,p.1.043-54.

Mais uma vez, Richard Horsley rejeita a proposição de que Judas, o Galileu, tivesse aspiraçõesmessiânicas.Massuarejeiçãobaseia-seemdoispressupostos:primeiro,queJudas,oGalileu,nãoédescendente de Ezequias, o chefe dos bandidos, o que já questionamos anteriormente; segundo,queJosefonãochamadiretamenteJudasde“rei”ou“messias”,mas,aoinvés,ochamade“so ista”,um termo sem conotações messiânicas. VejaMenahem in Jerusalem, p.342-3. No entanto, Josefoclaramente ridiculariza Judas pelo que ele chama de suas “aspirações reais”. O que mais isso

poderia signi icar senão que Judas tinha ambiçõesmessiânicas (isto é, à realeza)? Além domais,Josefo usa o mesmo termo “so ista” para descrever tanto Matatias (Antiguidades 17.6), que foiabertamente ligadoàs aspiraçõesmessiânicasdurante a revoltadosmacabeus, quantoMenahem(A Guerra Judaica 2.433-48), cujas pretensõesmessiânicas não estão em disputa. Neste ponto euconcordocomMartinHengelquandoeleescreveque“umadinastiadelíderesderivoudeJudas[daGalileia],entreosquaisapretensãomessiânica tornou-seevidentepelomenosemum,Menahem,permitindo-nossuporquea ‘QuartaSeita’tinhaumabasemessiânica jáemsuafundação”;vejaoseuTheZealots,p.299.Noentanto,nãoconcordocomHengelqueosmembrosdaQuartaFiloso iapossamserrotulados,de formaadequada,comozelotas.Pelocontrário,a irmoqueelespregavam“zelotismo”comoumadoutrinabíblicaexigindoaremoçãodeelementosestranhosàTerraSanta,eéporissoqueusootermozelota,comzminúsculo,paradescrevê-los.ParasabermaissobreousoqueJosefo fazdotermo“so ista”,vejaanota71datraduçãodeWhistonde AGuerra Judaica [TheJewishWar],livro2,cap.1,seção3.

5.Ondeestásuafrotaparavarrerosmaresromanos?

ExistemuitopoucaevidênciahistóricasobreavidadePôncioPilatosantesdeseumandatocomoprefeito de Jerusalém,masAnnWroe escreveuum interessante trabalho intituladoPontius Pilateque, embora não seja um livro acadêmico, é de initivamente uma leitura simpática. No que dizrespeitoàdiferençaentreumprefeitoromanoeumprocurador,arespostacurtaéquenãohavianenhuma, pelo menos não em uma pequena e bastante insigni icante província como a Judeia.JosefochamaPilatosdeprocuradoremsuaobraAntiguidades18.5.6,enquantoFiloserefereaelecomo prefeito. Os termos eram provavelmente intercambiáveis à época. Eu escolhi usarsimplesmenteotermo“governador”parasignificartantoprefeitocomoprocurador.

Para mais informações sobre a introdução dos escudos no Templo de Jerusalém por Pilatos,recomendoG.Fuks,“AgainontheepisodeofthegildedRomanshieldsatJerusalem”,eP.S.Davies,“ThemeaningofPhilo’stextaboutthegildedshields”.

Muito tem sido escrito sobre as razões pelas quais os judeus se rebelaram contra Roma. Semdúvida, houve uma combinação de queixas sociais, econômicas, políticas e religiosas que levou àGuerraJudaica,masDavidRhoadsapresentaseiscausasprincipaisemseulivroIsraelinRevolution:6-74C.E.:(1)osjudeusestavamdefendendoaLeideDeus;(2)osjudeusacreditavamqueDeusirialevá-los à vitória; (3) os judeus queriam livrar a Terra Santa de estrangeiros e gentios; (4) osjudeus estavam tentando defender a cidade de Deus, Jerusalém, da profanação; (5) os judeusqueriam limparoTemplo; e (6)os judeusesperavamque isso inaugurasseo imdos tempose avinda do messias. No entanto, alguns estudiosos (e eu me incluo nessa categoria) enfatizam asmotivações escatológicas dos judeus sobre esses outrosmotivos. Veja, por exemplo A.J. Tomasino,“Oraclesofinsurrection:ThepropheticcatalystoftheGreatRevolt”.Outrosadvertemcontracolocarmuitopesonopapelqueofervorapocalípticoteveemlevarosjudeusàrevolta.Veja,porexemplo,T. Rajak, “Jewish millenarian expectations”, in A.M. Berlin e J.A. Overman (orgs.), The First JewishRevolt, p.164-88. Rajak escreve: “A expectativa de um Fim iminente … não era a mentalidadenormaldojudaísmodoséculoI.”Noentanto,achoqueasprovasemcontráriosuperamessepontodevista,poisoeloentreomessianismoearevoltajudaicanãopoderiasermaisclaronorelatodeJosefo.

Em relação à lista de candidatos messiânicos que surgiram no desenvolvimento da GuerraJudaica,P.W.BarnettsugerequeofatodeJosefonãochamaressas igurasde basileu,ou“rei”(comaexceçãode“oEgípcio”),provaqueelespensavamemsimesmosnãocomomessias,massimcomo“profetasdesignos”.MasBarnettobservaquemesmoessesprofetas “antecipavamalgumgrandeato de redenção escatológica” que, a inal, é o direito inerente domessias. Veja P.W.Barnett, “TheJewishsignprophets”.JamesS.McLarententa(e,naminhaopinião,falha)evitarcon iardemaisnaideia de que os judeus esperavam “ajuda divina” para derrotar os romanos ou de que eramalimentadosporfervormessiânico,a irmandoqueos judeus“foramsimplesmenteotimistassobre

teremsucesso”,damesmaformaque,porexemplo,osalemãesforamotimistasaopensarqueiriamderrotar a Grã-Bretanha. No entanto, o que mais “otimismo” signi icava na Palestina do século Isenão a con iança em Deus? Consulte “Going towar against Rome: Themotivation of the Jewishrebels”,inM.Popovic(org.),TheJewishRevoltAgainstRome:InterdisciplinaryPerspectives,p.129-53.

Deve-se notar que, enquanto “o Samaritano” se chamou de “messias”, ele não quis dizer issoexatamente no sentido judaico da palavra. O equivalente samaritano de “messias” éTaheb. Noentanto, oTaheb estava diretamente relacionado com o messias. Na verdade, as palavras eramsinônimas,comoevidenciadopelamulhersamaritananoevangelhodeJoãoquedizaJesus:“Euseiqueomessiasestáchegando.Quandoelechegar,elevainosmostrartodasascoisas.”(João4:25)

Josefo é o primeiro a fazer uso da palavra latina “sicários” (Josefo, AGuerra Judaica 2.254-55),embora seja óbvio que ele toma o termo emprestado dos romanos. A palavra aparece em Atos21:38, em referência ao “falso profeta” conhecido como “o Egípcio”, com quem Paulo foiconfundido.NoLivrodeAtossea irmaqueoEgípciotinha4milseguidores,queéumnúmeromaisprovável do que os 30 mil alegados por Josefo emA Guerra Judaica 2.247-70 (embora emAntiguidades20.171Josefoforneçaumnúmeromuitomenor).

Embora Josefo descreva os sicários como “um tipo diferente de bandido”, ele usa as palavras“sicários” e “bandidos” alternadamente emA Guerra Judaica. Na verdade, às vezes ele usa oprimeirotermoparadescrevergruposdebandidosquenãousamadagascomoarmas.Éprovávelque a sua razão para diferenciar os sicários dos “outros bandidos” eramanter todas as diversasquadrilhasdiferenciadas,pelobemdanarrativa,emborasepossadiscutirqueapósaascensãodeMenahem,noprimeiroanodaguerra,ossicáriostornaram-seumgruporeconhecívelemseparado–omesmogrupoqueassumiuocontroledeMasada.VejaS.Applebaum,“TheZealots:Thecaseforrevaluation”. Emminha opinião, omelhor emais atualizado estudo sobre os sicários é o deM.A.Brighton,TheSicariiinJosephus’sJudeanWar:RhetoricalAnalysisandHistoricalObservations.

Outrospontosdevistasobreossicários incluemE.Schurer,AHistoryof the JewishPeople in theTime of Jesus Christ, para quem os sicários são um desdobramento fanático do partido zelota;M.Hengel,TheZealots,quenãoconcordacomSchurer,argumentandoqueossicárioseramapenasumsubgrupo ultraviolento de bandidos; S. Zeitlin, “Zealots and Sicarii”, que acredita que sicários ezelotaseramdoisgruposdistintos “mutuamentehostis”;R.A.Horsley, “Josephusand theBandits”,para quem os sicários são apenas um fenômeno localizado, parte do movimento mais amplo de“banditismosocial”queeraabundantenoscamposdaJudeia;eM.Smith,“ZealotsandSicarii:TheirOrigins and Relation”, cuja visão de que rótulos como sicários e zelotas não eram designaçõesestáticasmas,aocontrário,indicavamumanseiogeneralizadoedifundidopeladoutrinabíblicadezeloéplenamenteadotadanestelivro.

EmAntiguidades, obra escrita algum tempo depois deAGuerra Judaica, Josefo sugere que foi oprocônsul romano Félix quem estimulou os sicários a assassinar o sumo sacerdote Jônatas, paraobterseusprópriosfinspolíticos.Algunsestudiosos,principalmenteM.Goodman,TheRulingClassofJudea, continuam a discutir este ponto, vendo os sicários como pouco mais que assassinos oumercenários contratados. Isso é improvável. Em primeiro lugar porque a explicação dada emAntiguidades contradizaobraanterioreprovavelmentemais con iávelde Josefo,A Guerra Judaica,que não faz qualquermenção àmão de Félix no assassinato de Jônatas. Na verdade, a descriçãodesseassassinatoemAntiguidadesnãomencionaemabsolutoopapeldossicários.Emvezdisso,otextorefere-seaassassinosgeralmentecomo“bandidos”( lestai).Emqualquercaso,anarrativadoassassinatodeJônatasemAGuerraJudaicaéescritadeliberadamenteparaenfatizarasmotivaçõesideológicas/religiosasdossicários(daíapalavradeordem“NenhumsenhorsenãoDeus!”),ecomoumprelúdioparaosassassinatosmuitomaissigni icativosdosumosacerdoteAnanusbenAnanus(62d.C.)eJesusbenGamaliel(63-64d.C.),queacabaramporfazereclodiraguerracontraRoma.

AcitaçãodeTácitosobreFélixvemdeG.Vermes,Who’sWhointheAgeofJesus,p.89.AcitaçãodeJosefosobreoshomensesperandoamorteaqualquerhoraédeAGuerraJudaica7.253.

RomarealmenteatribuiumaisumprocuradorparasucederGessioFloro:MarcoAntônioJuliano.Masissofoiduranteosanosdarevoltajudaica,eeleparecenuncaterpostoospésemJerusalém.

OdiscursodeAgripaédeAGuerraJudaica2.355-78.Pormaiscomoventequeodiscursopossa

ser,eleéobviamenteumacriaçãodopróprioJosefo.

6.AnoUm

ParasabermaissobreahistóriadeMasadaesuasmudançassobHerodes,vejaS.Zeitlin,“MasadaandtheSicarii”.

Josefo parece evitar deliberadamente o uso da palavra “messias” para se referir aMenahem,masaodescreveraposturadeste comoumpopularmente reconhecido “reiungido”eleestá, semdúvida,descrevendofenômenosque,deacordocomRichardHorsley,“podemserentendidoscomoexemplos concretos de ‘messias’ populares e seus movimentos”. R.A. Horsley, “Menahem inJerusalem”,p.340.

Paraalgunsótimosexemplosdemoedascunhadaspelosrebeldes judeusvitoriosos,consulteY.Meshorer,TreasuryofJewishCoinsfromthePersianPeriodtoBarKokhba.

O discurso do líder sicário foi feito por Eleazar ben Yair e pode ser encontrado em Josefo, AGuerraJudaica7.335.AdescriçãodeTácitosobreaépocaemRomaser“ricaemdesastres”vemdeM.Goodman,RomeandJerusalem,p.430.

Opartidozelota foi lideradoporumsacerdote revolucionário chamadoEleazar, ilhodeSimão.Alguns estudiosos a irmam que este era o mesmo Eleazar, o capitão do Templo, que assumiu ocontroledoTemplonoiníciodarevoltae interrompeutodosossacri íciosemnomedoimperador.Para essepontodevista, vejaD.Rhoads,Israel inRevolution, e G. Vermes,Who’sWho in theAgeofJesus, p.83. Vermes a irma que esse foi o mesmo Eleazar que atacou e matou Menahem. Isso éimprovável. O capitão do Templo chamava-se Eleazar, ilho de Ananus, e, como tanto RichardHorsley quanto Morton Smith mostraram, ele não tinha nenhuma conexão com Eleazar, ilho deSimão,queassumiua liderançadopartidozelotaem68d.C.VejaM.Smith, “ZealotsandSicarii”,eR.A.Horsley,“TheZealots:Theirorigin,relationshipandimportanceintheJewishRevolt”.

AmaioriadasinformaçõesquetemossobreJoãodeGischalavemdeJosefo,comquemJoãotinharelaçõesextremamentehostis.Assim,oretratoquesedepreendedosescritosdeJosefoéodeumtirano louco que colocou toda Jerusalém em perigo com sua sede de poder e sangue. Nenhumestudioso contemporâneo leva essa descrição a sério. Para um retratomelhor, veja U. Rappaport,“John of Gischala: From Galilee to Jerusalem”. No que diz respeito ao zelo de João e seus ideaisescatológicos, Rappaport está correto ao observar que, embora seja di ícil saber a sua exataperspectiva político-religiosa, a aliança com o partido zelota sugere, no mínimo, que ele erasimpático à ideologia zelota. Em qualquer caso, João inalmente conseguiu dominar os zelotas eassumir o controle do Templo interior – embora, tudo indica, tenha permitido a Eleazar, ilho deSimão, permanecer no comandodo partido zelota, pelomenos nominalmente, até omomento emqueTitoinvadiuJerusalém.

ParaumadescriçãodafomequeseseguiuemJerusalémduranteocercodeTito,vejaJosefo, AGuerraJudaica5.427-571,6.271-76. Josefo,queestavaescrevendoasuahistóriadaguerraparaopróprio homem que a venceu, apresenta Tito como tentando desesperadamente impedir seushomensdematardeformadesenfreadae,emparticular,dedestruiroTemplo. Istoéobviamenteumdisparate.ÉapenasJosefofavorecendosuaplateiaromana.Josefotambémde ineonúmerodejudeusmortosemJerusalémemummilhão.Issoéclaramenteumexagero.

ParaacoberturacompletadataxadecâmbioentreasmoedasantigasnaPalestinadoséculoI,veja a colossal obra de F.W. Madden,History of Jewish Coinage and of Money in the Old and NewTestament.MaddenobservaqueJoseforefere-seaoshekelcomoigualaquatrodracmasáticas,ouseja, duas dracmas valemmeio shekel (p.238). Veja também J. Liver, “The half-shekel offering inbiblicalandpost-biblicalliterature”.

Alguns estudiosos a irmam, de forma pouco convincente, que nenhuma mudança perceptívelocorreu na atitude romana em relação aos judeus; veja, por exemplo, E.S. Gruen, “Romanperspectiveson the Jews in theageof theGreatRevolt”, inA.M.Berline J.A.Overman (orgs.), The

First JewishRevolt , p.27-42. No que diz respeito ao símbolo de des ilar a Torá durante o Triunfo,acho queMartinGoodman foi preciso emRomeand Jerusalem: “Não poderia haver demonstraçãomaisclaradequeaconquistaestavasendocomemoradanãoapenassobrea Judeia,massobreojudaísmo.”(p.453)ParasabermaissobreojudaísmoapósadestruiçãodoTemplo,vejaM.S.Berger,“Rabbinic paci ication of second-century Jewish nationalism”, in J.K. Wellman, Jr., Belief andBloodshed,p.48.

É importante notar que os manuscritos mais antigos que temos do evangelho de Marcosterminamo primeiro verso em “Jesus, o Cristo”. Foi sómais tarde que um redator acrescentou aexpressão “o Filho deDeus”. O signi icado dos evangelhos serem escritos em grego não deve sermenosprezado. Considere que osManuscritos domarMorto, o conjunto mais contemporâneo deescritosjudaicosasobreviveràdestruiçãodeJerusalém,cujostemasetópicossãomuitopróximosaosdoNovoTestamento,foramescritosquasequeexclusivamenteemhebraicoearamaico.

ParteII

Prólogo:Zeleporsuacasa

A história da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém e a puri icação do Templo pode serencontrada emMateus 21:1-22, Marcos 11:1-19, Lucas 19:29-48 e João 2:13-25. Note-se que oevangelho de João coloca o evento no início doministério de Jesus, ao passo que os sinópticos ocolocam no inal. Que a entrada de Jesus em Jerusalém revela suas aspirações régias é bastanteclaro.Lembre-sequeSalomãotambémmontaumburroparaserproclamadorei(1Reis1:32-40),assimcomoAbsalão,quandotentatirarotronodeseupai,Davi(2Samuel19:26).DeacordocomDavid Catchpole, a entrada de Jesus em Jerusalém se encaixa perfeitamente em uma família dehistórias que detalham “a entrada comemorativa em uma cidade por um herói que conquistoupreviamente o triunfo”. Catchpole observa que esse “padrão ixo de entrada triunfal” ocorreprecedentementenãosóentreosreisisraelitas(veja,porexemplo,Reis1:32-40),mastambémnaentradadeAlexandreemJerusalém,nadeApolônio,nadeSimãoMacabeu,nadeMarcosAgripaeassimpordiante.VejaD.R.Catchpole,“The‘Triumphal’Entry”, inE.BammeleC.F.D.Moule(orgs.),JesusandthePoliticsofHisDay,p.319-34.

Jesususaexplicitamenteotermolestaiparasigni icar“covildeladrões”,emvezdapalavramaiscomumparaos ladrões,kleptai (vejaMarcos11:17).Emborapossapareceróbvioque,nessecaso,Jesusnãoestáusandootermonoseusentidopolitizadocomo“bandido”–signi icandoalguémcomtendências zelotas –, alguns estudiosos acreditam que Jesus está, de fato, referindo-seespeci icamenteaosbandidosnessapassagem.Naverdade, alguns ligamapuri icaçãodoTemploporJesusaumainsurreiçãolideradaporbarAbbasqueocorreulánamesmaépoca(vejaMarcos15:7).Oargumentoéoseguinte:comobarAbbasésemprecaracterizadocomoepítetolestai,ousodo termo por Jesus deve estar se referindo ao massacre que ocorreu no Templo durante ainsurreiçãodebandidosquebarAbbas liderou.Portanto, amelhor traduçãopara a admoestaçãode Jesus aqui não é “covil de ladrões”, mas sim “caverna de bandidos”, que signi ica “fortalezazelota” e, portanto, refere-se especi icamente à insurreição de bar Abbas. Veja G.W. Buchanan,“Mark 11:15-19: Brigands in the Temple”. Este é um argumento interessante, mas há umaexplicaçãomaissimplesparaousoporJesusdapalavralestaiaoinvésdekleptai.OevangelistaestáprovavelmentecitandooprofetaJeremias(7:11),emsuatradução(grega)Septuaginta:“Seráqueesta casa,que se chamapelomeunome, se tornouumacavernade salteadoresaosvossosolhos?Eis que eumesmo já vi, pronuncia o Senhor!” Essa tradução usa a frasespaylayon laystoun parasigni icar “covil de ladrões”, o que faz sentido namedida emque a Septuaginta foi escritamuitoantesquelestaisetornassesinônimode“bandidos”–defato,muitoantesdeexistirqualquercoisacomobandidosna JudeiaouGalileia.Aqui,lestaiéa traduçãogregapreferidadapalavrahebraicaparitsim,queémal-atestadanaBíbliaHebraicaeéusada,nomáximo,duasvezesemtodootexto.A

palavraparitsim pode signi icar algo como “os violentos”, embora emEzequiel 7:22, que tambémusaessapalavrahebraica,aSeptuagintatraduzaparaogregousandoafulaktos,quesigni icaalgocomo“semproteção”.Opontoéqueapalavrahebraica paritsimeraobviamenteproblemáticaparaostradutoresdaSeptuaginta,equalquertentativadelimitarosigni icadodepalavrashebraicasougregasparaumsigni icadoespecí icoouumcamposemânticoexcessivamentecircunscritoédi ícil,paradizeromínimo.Assim,éprovávelque,quandoJesususaapalavralestainessapassagem,elenãoqueira dizer nadamais complicadodo que “ladrões” – que, a inal, é a forma como ele via oscomerciantesecambistasdoTemplo.

OemaranhadoqueamarravaasautoridadesdoTemploaRomaeanoçãodequeumataqueaum teria sido considerado um ataque ao outro é um argumento feito brilhantemente por S.G.F.Brandon,Jesus and the Zealots, p.9. Brandon também observa corretamente que os romanos nãoteriam icadosemsaberdoincidentedapuri icação,umavezqueaguarniçãoromananafortalezaAntôniaabrangiaavisãodospátiosdoTemplo.ParaopontodevistaopostoàanálisedeBrandon,veja C.Roth,The Cleansing of the Temple and Zechariah XIV.21 ”. Roth parece negar qualquersigni icado nacionalista ou zelota que seja, quer na entrada de Jesus em Jerusalém, quer em suapuri icaçãodoTemplo,queelereinterpretaemum“sentidonãopolíticoebasicamenteespiritual”,a irmando que a principal preocupação de Jesus foi tirar do Templo quaisquer “operaçõesmercantis”.Outrosestudiosos levamesseargumentoumpassoadianteea irmamqueo incidenteda“limpeza”nemmesmoaconteceu,pelomenosnãocomotemsidoregistradoportodososquatroescritoresdoevangelho,porqueelecontrastamuitocomamensagemdepazdeJesus.VejaB.Mack,AMythof Innocence:MarkandChristianOrigins.Maisumavez,estepareceserumcasoclássicodeestudiososqueserecusamaaceitarumarealidadeóbviaquenãoseencaixaemsuasconcepçõescristológicas preconcebidas de quem era Jesus e do que Jesus quis dizer. A tese de Mack éhabilmente refutada por Craig Evans, que demonstra não só que o incidente da puri icação doTemplopodeseratribuídoaoJesushistóricomas,também,quenãopoderiatersidoentendidodequalqueroutraformasenãocomoumatodeprofundosigni icadopolítico.VejaEvans, JesusandHisContemporaries, p.301-18. No entanto, em outro estudo, Evans discorda de mim em relação àprevisãodeJesusdadestruiçãodoTemplo.ElenãosóacreditaqueaprevisãopodeseratribuídaaJesus – ao passo que eu a vejo como sendo colocada na boca de Jesus pelos escritores dosevangelhos–,comotambémachaquepodetersidooprincipalfatorquemotivouosumosacerdoteatomarmedidascontraele.VejaC.Evans,“JesusandpredictionsofthedestructionoftheHerodianTempleinthePseudepigrapha,QumranScrolls,andrelatedtexts”.

TantoJosefoquantooTalmudeBabilônioindicamqueosanimaisparasacri íciocostumavamseralojadosnoMontedasOliveiras,masqueporvoltade30d.C.Caifástransferiu-osparaoPátiodosGentios. Bruce Chilton acredita que a inovação de Caifás foi o impulso para as ações de Jesus noTemplo, bem como a principal razão para o desejo do sumo sacerdote em ter Jesus preso eexecutado;vejaB.Chilton,“ThetrialofJesusreconsidered”,inB.ChiltoneC.Evans(orgs.), Jesus inContext,p.281-500.

Aperguntafeitaa Jesussobrea legalidadedepagarotributoaCésarpodeserencontradaemMarcos 12:13-17, Mateus 22:15-22 e Lucas 20:20-26. O episódio não aparece no evangelho deJoão,porquenesteoeventodelimpezaécolocadoentreosprimeirosatosdeJesusenãono imdesuavida.VejaH.Loewe,RenderuntoCaesar.AsautoridadesjudaicasquetentamaarmadilhacontraJesus,perguntando-lhesobreopagamentodo tributo,sãovariadamentedescritasnosevangelhossinópticos como fariseus e herodianos (Marcos 12:13; Mateus 22:15), ou como “escribas e osprincipais sacerdotes” (Lucas 20:20). Essa mistura de autoridades díspares indica umasurpreendenteignorânciaporpartedosevangelistas(queestavamescrevendosuasnarrativasunsquarentaasessentaanosdepoisdoseventosquedescrevem)sobreahierarquiareligiosa judaicana Palestina do século I. Os escribas eram estudiosos de classe baixa ou média, enquanto osprincipais sacerdotes eram da nobreza aristocrática; os fariseus e herodianos eram tão distanteseconômica,sociale(seporherodianosMarcossugereumaligaçãocomossaduceus)teologicamentequantopossíveldeimaginar.Équasecomoseosescritoresdoevangelhoestivessemsimplesmentelançandoessasfórmulascomosinônimospara“osjudeus”.

Que amoeda que Jesus pede, o denário, é amesma usada para pagar o tributo a Roma estádefinitivamentecomprovadoporH.St.J.Hartem“Thecoinof‘RenderuntoCaesar’”,inE.BammeleC.F.D.Moule(orgs.),JesusandthePoliticsofHisDay,p.241-8.

Entre os muitos estudiosos que tentaram tirar da resposta de Jesus sobre o tributo o seusignificadopolíticoestãoJ.D.M.Derrett,LawintheNewTestament,eF.F.Bruce,“RendertoCaesar”,inJesus and the Politics of His Day , p.249-63. Pelo menos Bruce reconhece o signi icado da palavraapodidomi e, de fato, é a sua análise do verbo que eu referencio acima.HelmutMerkel é umdosmuitos estudiosos que veem a resposta de Jesus para as autoridades religiosas como uma nãoresposta; veja “The opposition between Jesus and Judaism”, in Jesus and the Politics of His Day ,p.129-44.MerkelcitaoestudiosoalemãoEduardLohseaorefutarBrandoneaquelesque,comoeu,acreditamquearespostadeJesusrevelaseussentimentoszelotas:“Jesusnãosedeixouludibriaraconferir qualidade divina à estrutura de poder existente, nem concordou com os revolucionáriosque queriammudar a ordem existente e obrigar a vinda do Reino de Deus pelo uso da força.”Primeirodetudo,deve-senotarqueousodaforçanãoéaquestãoaqui.SeJesusconcordoucomosseguidores de Judas, o Galileu, que apenas o uso de armas poderia libertar os judeus do jugoromano,nãoéoqueestáem jogonessapassagem.Tudooqueestá em jogoaqui é aquestãodeonde a opinião de Jesus se situa sobre o assunto mais decisivo daquele momento, que tambémpassouaserotestefundamentaldozelotismo:deveriamosjudeuspagartributoaRoma?AquelesestudiososquepintamarespostadeJesusparaasautoridadesreligiosascomoapolíticasão,ameuver,totalmentecegosaocontextopolíticoereligiosodotempodeJesuse,maisimportanteainda,aofatodequeaquestãodotributoéclaramentedestinadaaserconectadaàentradaprovocantedeJesusemJerusalém,daqualnãopodehaverinterpretaçãoapolítica.

Por alguma razão, otitulus acima da cabeça de Jesus foi visto pelos estudiosos e cristãos comoumaespéciedepiada,umpoucodehumorsarcásticoporpartedeRoma.Os romanospodemserconhecidospormuitascoisas,mashumornãoéumadelas.Comodecostume,essainterpretaçãosebaseia em uma leitura à primeira vista de Jesus como um homem absolutamente sem ambiçõespolíticas.Issoéumabsurdo.Todososcriminososcondenadosàexecuçãorecebiamum titulusparaqueaspessoaspudessemconhecerocrimepeloqualestavamsendopunidos,e,portanto, fossemdesencorajadas a tomar parte em atividade similar. Que as palavras no titulus de Jesus eramprovavelmente genuínas é demonstrado por Joseph A. Fitzmeyer, que observa que “se [o titulus]tivesse sido inventado pelos cristãos, eles teriam usadoChristos, pois os primeiros cristãosdi icilmenteteriamchamadoseuSenhorde‘ReidosJudeus’”;vejaTheGospelAccordingtoLukeI-IX,p.773.Voufalarmaissobreo“julgamento”deJesusnoscapítulosseguintes,masbastadizerqueanoçãode que um camponês judeu anônimo teria recebidouma audiência pessoal como prefeitoromano,PôncioPilatos,queprovavelmenteassinaraumadúziadeordensdeexecuçãosónaqueledia,étãoestranhaquenãopodeserlevadaasério.

Curiosamente,Lucas se refereaosdois cruci icadosao ladode Jesusnão como lestaimas comokakourgoi,ou“malfeitores”(Lucas23:32).

7.Avozclamandonodeserto

Todososquatroevangelhosoferecemdiferenteshistóriasde JoãoBatista (Mateus3:1-17;Marcos1:2-15;Lucas3:1-22;João1:19-42).Égeralmenteaceitoquemuitodessematerialdosevangelhos,incluindo a narrativa da infância de João em Lucas, foi derivado de “tradições batistas”independentes, preservadas pelos seguidores de João. Sobre isso, veja C. Scobie,John the Baptist,p.50-1, e W. Wink, John the Baptist in the Gospel Tradition, p.59-60. No entanto, Wink pensa queapenaspartedessematerialveiodasfontesprópriasdeJoão.EleargumentaqueasnarrativasdainfânciadeJoãoeJesusprovavelmenteforamdesenvolvidasdeformasimultânea.VejatambémC.Murphy,JohntheBaptist:ProphetofPurityforaNewAge.

Embora, de acordo com Mateus, João advirta os judeus da vinda do “reino dos céus”, isso éapenascircunlóquiodeMateusparaoReinodeDeus.Naverdade,Mateususaaexpressão“Reino

dos Céus” em todo o seu evangelho, mesmo nos trechos que tomou emprestado de Marcos. Emoutras palavras, podemos estar certos de que “oReino deDeus” e “Reino dos Céus” signi icam amesmacoisaequeambosderivamempartedosensinamentosdeJoãoBatista.

HámuitasimprecisõesnorelatoevangélicodaexecuçãodeJoão(Marcos6:17-29;Mateus14:1-12; Lucas 9:7-9). Em uma delas, os evangelistas referem-se a Herodias como a esposa de Filipe,quandoelaera,naverdade,esposadeHerodes.AesposadeFilipeeraSalomé.Qualquertentativaporpartedecomentaristasconservadorescristãosdecompensaresseerro lagrante,comoreferir-seaomeio-irmãoAntipascomo“HerodesFilipe”(umnomequenãoapareceemnenhumregistro),caiporterra.OsevangelhostambémparecemconfundirolocaldaexecuçãodeJoão(afortalezadeMaqueronte)comacortedeAntipas,quenaépocateriasidoemTiberíades.Finalmente,devesermencionado que é inconcebível que uma princesa real dançasse para convidados de Antipas,considerando-se as restrições da época para as mulheres judias de qualquer status. Existem, éclaro, muitas tentativas apologéticas de resgatar a história do evangelho sobre a decapitação deJoãoedefendersuahistoricidade(porexemplo,G.Vermes,Who’sWhointheAgeofJesus,p.49),maseuconcordocomR.Bultmann,HistoryoftheSynopticTradition,p.301-2,eL.L.Grabbe,Judaism fromCyrus to Hadrian, vol.2, p.427-8, ambos os quais argumentam que a história do evangelho é pordemaisfantasiosaecrivadadeerrosparasertomadacomohistórica.

ParaparalelosentreorelatodeMarcosdaexecuçãodeJoãoeolivrodeEster,vejaR.Aus,WaterintoWineandtheBeheadingofJohntheBaptist.Ahistóriatambémtemecosdocon litodeEliascomJezebel,aesposadoreiAcabe(1Reis19-22).

O relatode Josefo sobreavidaeamortede JoãoBatistapodeserencontradoemAntiguidades18.116-19. O rei Aretas IV era pai da primeira esposa de Antipas, Fasaeles,de quem Antipas sedivorcioupara se casar comHerodias.Nãoestá claro seAntipas foi exiladoparaaEspanha, comoJosefoafirmaemAGuerraJudaica2.183,ouparaaGália,comoelealegaemAntiguidades18.252.

Umcatálogodeabluçõesrituaiscomáguanasescriturasepráticasjudaicaspodeserencontradoem R.L. Webb, John the Baptizer and Prophet: A Socio-Historical Study, p.95-132. Para maisinformações sobre o uso da água em rituais de conversão judaicos, consulte S.J.D. Cohen, “Therabbinic conversion ceremony”. Havia alguns poucos indivíduos notáveis na Palestina do século Iquepraticavamatos rituais de imersão, omais famoso sendoo asceta conhecido comoBano, queviviacomoumeremitanodesertoequesebanhavapelamanhãeànoiteemáguafria,comomeiodepurificaçãoritual;vejaJosefo,Vida2.11-12.

Josefo escreve longamente sobre os essênios tanto emAntiguidades como emA Guerra Judaica,mas as mais antigas evidências sobre eles vêm por meio daHypothetica, de Filo de Alexandria,escritaentre35e45d.C.Plínio,oVelho, tambémfaladosessêniosemsuaHistórianatural, escritapor volta de 77 d.C. É Plínio quem a irma que os essênios viviam perto de Engeddi, na costaocidentaldomarMorto,emboraamaioriadosestudiososacreditequeelesestivessem localizadosemQumran.OerrodePlíniopodeserdevidoaofatodequeeleescreveuapósaguerracomRomae a destruição de Jerusalém, quando Qumran foi abandonado. No entanto, um grande debateirrompeuentreosestudiosossobreseacomunidadedeQumranera,naverdade,essênia.NormanGolbétalvezomaisconhecidoestudiosoquerejeitaahipótese.GolbvêosítiodeQumrannãocomouma comunidade de essênios, mas sim como uma fortaleza dos macabeus. Ele acredita que osdocumentosencontradosnascavernaspertodolocal,oschamadosManuscritosdomarMorto,nãoforam escritos pelos essênios, mas sim trazidos de Jerusalém para serem ali custodiados. Veja N.Golb,WhoWrote theDead Sea Scrolls? The Search for the SecretQumran , e “The problem of originand identi ication of the Dead Sea Scrolls”. Golb e seus contemporâneos levantam alguns pontosválidos, e deve-se admitir que algunsdosdocumentos encontradosnas cavernasdeQumrannãoforamescritospelosessêniosenãore letemasuateologia.Ofatoéquenãopodemostercertezaseos essênios viviam em Qumran. Dito isso, concordo com o grande Frank Moore Cross, queargumentouqueoônusdaprovanãorecaisobreaquelesqueligamosessêniosaQumran,massimaosquenãoo fazem. “O estudiosoque ‘tem cautela’ na identi icaçãoda seita deQumran comosessênios se coloca em uma posição surpreendente”, escreve Moore, pois “ele deve sugerirseriamente que dois grandes grupos formaram comunidades religiosas comunistas no mesmo

distrito do deserto domarMorto e viveram juntas na realidade durante dois séculos,mantendoopiniões excêntricas semelhantes, realizando puri icações, refeições rituais e cerimôniassemelhantes, ou melhor, idênticas. Ele deve supor que uma delas, cuidadosamente descrita porautores clássicos, desapareceu sem deixar restos de construção ou mesmo cacos de cerâmica; aoutra, sistematicamente ignorada pelos autores clássicos, deixou extensas ruínas e, de fato, umagrandebiblioteca.Eupre iroser imprudentee semrodeiosem identi icaroshomensdeQumrancomoseuhóspedeperene,osessênios”.VejaF.M.Cross, CanaaniteMythandHebrewEpic:EssaysintheHistory of theReligionof Israel, p.331-2. Tudoo que você poderia querer saber, e aindamais,sobreosrituaisdepurezaessêniospodeserencontradoemI.C.Werrett,RitualPurityandtheDeadSeaScrolls.

Entreosqueacreditamque JoãoBatista foiummembroda comunidadeessêniaestãoO.Betz,“WasJohntheBaptistanEssene?”,inH.Shanks(org.), UnderstandingtheDeadSeaScrolls,p.205-14;W.H.Brownlee,“JohntheBaptistinthenewlightofancientscrolls”,inK.Stendahl(org.),TheScrollsand the New Testament , p.71-90; e J.A.T. Robinson, “The baptism of John and the Qumrancommunity: Testing a hypothesis”, in Twelve New Testament Studies , p.11-27. Entre aqueles quediscordamestãoH.H.Rowley, “Thebaptismof John and theQumran sect”, inA.J.B.Higgins (org.),New Testament Essays: Studies in Memory of Thomas Walter Manson, 1893-1958 , p.218-29; B.D.Chilton,JudaicApproachestotheGospels,p.17-22;eJ.E.Taylor, TheImmerser:JohntheBaptistWithinSecondTempleJudaism.

Deve notar-se que, enquanto Isaías 40:3 foi aplicado a ambos, João e os essênios, houvediferençasimportantesnomodocomoapassagemparecetersidointerpretadaporeles.ParasabermaissobreapossívelinfânciadeJoão“nodeserto”,vejaJ.Steinmann, SaintJohntheBaptistandtheDesertTradition. Independentemente de João ter sido ummembro dos essênios, é evidente umasériedeparalelosentreosdois, incluindoolocal,oascetismo,a linhagemsacerdotal,a imersãoemáguaeapartilhadebens.Individualmente,nenhumdessesparalelosdemonstraumaconexãoemde initivo,masjuntoselesconstroemumforteargumentoparacertasa inidadesentreosdoisquenãodeve ser facilmente descartado.De qualquermodo, Joãonãoprecisaria ter sido ummembroefetivo da comunidade dos essênios para ser in luenciado por seus ensinamentos e ideias, queestavammuitobemintegradosnaespiritualidadejudaicadaépoca.

Embora nunca se tenha dito explicitamente que o batismo de João não era para ser repetido,pode-seinferirquesejaesseocaso,porduasrazões:primeiro,porqueobatismopareceexigirumadministrador, como João, em oposição à maioria dos outros rituais de água, que sãoautoadministrados; segundo, porque o batismo de João assume o iminente im domundo, o quetornariasuarepetiçãoumpoucodifícil,paradizeromínimo.VejaJ.Meier,MarginalJew,vol.2,p.51.

John Meier elabora um argumento convincente para aceitar a historicidade da expressão“batismopara a remissãodospecados”; vejaMarginal Jew, vol.2,p.53-4.Aa irmaçãoemcontráriode Josefo pode ser encontrada emAntiguidades 18.116. Robert L.Webb a irma que o batismodeJoão era um “batismo de arrependimento, que funcionava para iniciar [os judeus] no grupo depessoas preparadas, o verdadeiro Israel”, querendo dizer que João tinha de fato formado suaprópria e distinta seita; vejaJohn the Baptizer and Prophet, p.197 e 364. Bruce Chilton desmontacompletamenteoargumentodeWebbem“JohnthePuri ier”,inB.ChiltoneC.Evans(orgs.), JesusinContext,p.203-20.

A a irmação celestial “Este é omeu Filho, oBem-Amado” está em Salmos 2:7, no qualDeus sedirigeaDavi,porocasiãodasuaentronizaçãocomoreiemJerusalém(Bem-AmadoeraoapelidodeDavi). Como John Meier observa, com razão, esse momento “não espelha nenhuma experiênciainteriorqueJesustenhatidonaépoca;eleespelhaodesejodaIgrejacristãdaprimeirageraçãodede inir Jesus assim que a história do evangelho primitivo começa – tanto mais porque essade iniçãoeranecessáriaparacontrariara impressãodesubordinaçãodeJesusaJoão, implícitanatradiçãodeoprimeirotersidobatizadopeloúltimo”;vejaMarginalJew,vol.2,p.107.

Entre os estudiosos que tornam convincente sua opinião sobre Jesus ter começado o seuministériocomoumdiscípulode JoãoestãoP.W.Hollenbach, “Socialaspectsof John theBaptizer’spreachingmissioninthecontextofPalestinianJudaism”e“TheconversionofJesus:FromJesusthe

Baptizer to Jesus the Healer”, assim como R.L. Webb, “Jesus’ baptism: Its historicity andimplications”. Webb assim resume a relação entre João e Jesus: “Jesus foi batizado por João e,provavelmente, permaneceu com ele por algum tempo no papel de discípulo. Mais tarde, emalinhamento e participando com João de seu movimento, Jesus também se envolveu em umministériobatizandopertodeJoão.Emboraaindafosseumdiscípulo,Jesus,talvez,devesseservistonessemomentocomoobraçodireitoouoprotegidodeJoão.EnquantotensõespossamtersurgidoentreosdiscípulosdeJoãoeaquelesemtornodeJesus,osdoishomensseviamcomotrabalhandojuntos.Sómaistarde,depoisdaprisãode João, teve lugarumamudança,naqual Jesus,emcertosaspectos, foi além do quadro conceitual domovimento de João. No entanto, Jesus sempre pareceapreciarabasequeoquadrodeJoãolhegarantiunoinício.”

Quanto à estada de Jesus no deserto, é preciso lembrar que “o deserto” é mais do que umalocalização geográ ica. É onde a aliança comAbraão foi feita, ondeMoisés recebeu a Lei deDeus,onde os israelitas vagaram por uma geração, o lugar onde Deus habitava, onde ele poderia serencontrado e onde se poderia conversar com ele. O uso do evangelho de “quarenta dias” – onúmerodediasquesedizqueJesuspassounodeserto–nãoéfeitoparaserlidocomoumnúmeroliteral. Na Bíblia, “quarenta” é sinônimo de “muitos”, como em “choveu durante quarenta dias enoites”.AleituradeveserqueJesusficounodesertoporumlongotempo.

EudiscordodeRudolfOtto,quea irmaque“Joãonãopregouavindadoreinodoscéus,masdojuízovindourodaira”,emTheKingdomofGodandtheSonofMan,p.69.AopiniãodeOttoéqueJoãoestavapreocupadoprincipalmentecomavindadojulgamentodeDeus,oqueelechamade“odiade Yahweh”, enquanto o foco de Jesus era a natureza redentora do Reino de Deus na terra. Noentanto,mesmoJesusassinalaasatividadesdeJoãocomopartedainauguraçãodoReinodeDeusnaterra:“ALeieosProfetasestavam[emvigor]até João;depois,oReinodeDeuséproclamado.”(Lucas16:16)

8.Segui-me

Adescriçãoque Josefo fazdosgalileuspode ser encontradaem AGuerra Judaica3.41-42.RichardHorsley habilmente detalha a história da resistência da Galileia, mesmoquando esta chegou à“subordinaçãopolítico-econômico-religiosaaosumosacerdóciomacabeuemJerusalém”,em Galilee:History, Politics, People . Horsley escreve que “o próprio Templo, suas regras e taxas e ogerenciamento do sumo sacerdócio, tudo isso seria estranho para os galileus, cujos ancestraishaviam se rebelado séculos antes contra amonarquia salomônica e o Templo. Assim, os galileus,como os edomitas, teriam experimentado as leis dos judeus sobrepostas aos seus próprioscostumes, comomeio de de inir e legitimar a sua subordinação ao governode Jerusalém” (p.51).Portanto,aa irmaçãodeLucasdequeospaisdeJesusiamaoTemploparaoPêssachtodososanosre lete claramente uma posição do próprio Lucas,mais do que práticas galileias (Lucas 2:41-51).VejatambémS.Freyne,Galilee,Jesus,andtheGospels,p.187-9.

Sobreosotaquecaracterísticodosgalileus,consulteO.M.Hendricks,ThePoliticsof Jesus ,p.70-3.Paraasimplicaçõesdotermo“povodaterra”,vejaoestudocompletofeitoporA.Oppenheimer, The‘AmHa-Aretz:AStudyintheSocialHistoryoftheJewishPeopleintheHellenistic-RomanPeriod.

ParasabermaissobreafamíliadeJesuscomoseguidores,vejaJ.Painter, JustJames:TheBrotherofJesusinHistoryandTradition,p.14-31.

A palavra grega para “discípulos”, “ hoi mathetai”, pode signi icar tanto discípulos masculinosquanto femininos. Obviamente, a visão de mulheres desacompanhadas seguindo um pregadoritineranteeseuscompanheiros–emsuamaioriahomens–decidadeemcidadeteriacausadoumescândalo naGalileia e, na verdade, existem inúmeras passagens nos evangelhos emque Jesus éacusado de consorciar-se com “mulheres libertinas”. Algumas variantes do evangelho de Lucasdizem que Jesus tinha setenta, não 72 discípulos. A discrepância é irrelevante, pois números naBíblia,especialmentenúmerosevocativos,comotrês,doze,quarentae72,sãodestinadosaserlidos

deformasimbólica,enãodeformaliteral–comexceçãodosdozediscípulos,quedeveserlidodasduasmaneiras.

Nãopodehaverdúvidadeque Jesusdesignouespeci icamentedozepessoaspararepresentaras doze tribos de Israel. No entanto, hámuita confusão sobre os nomes reais e as biogra ias dosDoze. Agradeçamos aDeus por JohnMeier, que apresenta tudo o que há para se saber sobre osDoze emMarginal Jew, vol.3, p.198-285. Que os Doze eram especiais e separados do resto dosdiscípulosé claro: “E,quando já eradia, chamouos seusdiscípulos edentre eles escolheudozeaquemdeuonomedeapóstolos.”(Lucas6:13)Algunsestudiosos insistemqueosDozeforamumacriaçãodaIgrejaprimitiva,masissoéimprovável.Casocontrário,porquefazerJudasumdosDoze?VejaC.Evans,“TheTwelveThronesofIsrael:ScriptureandpoliticsinLuke22:24-30”,inC.EvanseJ.A. Sanders (orgs.),Luke and Scripture: The Function of Sacred Tradition in Luke-Acts, p.154-70; J.Jervell,“TheTwelveonIsrael’sThrones:Luke’sUnderstandingoftheApostolate”,inJ.Jervell(org.),LukeandthePeopleofGod:ANewLookatLuke-Acts,p.75-112;eR.P.Meyer,JesusandtheTwelve.

ParamaisinformaçõessobreamensagemanticlericaldeJesus,vejaJ.Meier,Marginal Jew, vol.1,p.346-7. Meier observa que, no momento em que os evangelhos foram escritos, não havia maissacerdotes no judaísmo. Após a destruição doTemplo, os herdeiros espirituais dos fariseus – orabinato – tornaram-se os principais oponentes judeus do novo movimento cristão, e por isso énaturalqueosevangelhosos tivessem feitoaparecercomoosprincipais inimigosde Jesus.Essaémaisumarazãoparaqueospoucosencontroshostisapresentadosentre JesuseossacerdotesdoTemplodevamservistoscomogenuínos.HelmutMerkelampliaadivisãoentreJesuseosacerdóciodoTemplo em “The opposition between Jesus and Judaism”, in E. Bammel e C.F.D.Moule (orgs.),JesusandthePoliticsofHisDay,p.129-44.Curiosamente,Jesusévistoemconversacomossaduceusapenasumavez,duranteumdebateemtornodaressurreiçãonoúltimodia(Marcos12:18-27).

9.PelodedodeDeus

Umtratamentoabrangentedosmilagres individuaisde JesuspodeserencontradoemH.vanderLoos,TheMiraclesofJesus.

Para saber mais sobre Honi e Hanina ben Dosa, consulte G. Vermes, “Hanina ben Dosa: AcontroversialGalileansaintfromtheFirstCenturyoftheChristianEra”eJesustheJew,p.72-8.Paraum estudomais geral sobre osmilagreiros no tempo de Jesus, vejaW.S. Green, “Palestinian holymen: Charismatic leadership and rabbinic tradition”. Uma boa crítica de trabalhos acadêmicossobreHanina pode ser encontrada emB.M. Bokser, “Wonder-working and the rabbinic tradition:ThecaseofHaninabenDosa”.

OtrabalhomaisantigosobreApolônioéotextodoséculoIIIporFilóstratodeAtenasintituladoAvidadeApolôniodeTiana.Paraumatraduçãoeminglês,consulteF.C.Conybeare(org.), Philostratus:TheLifeofApolloniusofTyana .O livrodeConybeare também incluia traduçãodeumaobramaistardia sobre Apolônio, por Hierocles, intituladaLover of Truth, que compara expressamenteApolôniocomJesusdeNazaré.VejatambémR.J.Penella,TheLettersofApolloniusofTyana.ParaumaanálisedosparalelosentreApolônioeJesus,vejaC.A.Evans,“JesusandApolloniusofTyana”, inC.Evans,JesusandHisContemporaries,p.245-50.

Pesquisa feita por Harold Remus indica que não há diferença na forma como os pagãos e oscristãos primitivos descreviam ou milagres ou os milagreiros; veja “Does terminology distinguishearlyChristianfrompaganmiracles?”.VejatambémJ.Meier, MarginalJew, vol.2,p.536.Mais sobreEleazar,oExorcista,podeserencontradoemJosefo,Antiguidades8.46-48.

UmapesquisasobreamagiaeasleiscontraelanoperíododosegundoTemploéfornecidaporG. Bohak,Ancient Jewish Magic: A History. Como na fábula de Rumpelstiltskin, havia uma crençageraldequeo conhecimentodonomedeoutrapessoaestabelece certopoder sobreela.Oraçõesmágicas, muitas vezes, derivavam seu poder do nome de quem estava sendo amaldiçoado ouabençoado.SegundoBultmann:“Aideia…dequesaberonomedodemôniodápodersobreeleé

ummotivobemconhecidoedifundido.”VejaHistoryoftheSynopticTradition,p.232.UlrichLuzcitacomo exemplo helenístico a história de Chonsu, “o Deus que expulsademônios”, como umainstânciadereconhecimentododemônio;veja“ThesecrecymotifandtheMarcanChristology”, inC.Tuckett(org.),TheMessianicSecret,p.75-96.

Joseph Baumgarten discute a relação entre a doença e a possessão demoníaca e fornece umasériedereferênciasaoutrosartigossobreotemaem“The4QZadokiteFragmentsonSkinDisease”.

Estudos adicionais úteis sobre a magia do mundo antigo são os de M.W. Dickie,Magic andMagicians intheGreco-RomanWorld;N. Janowitz,Magic in theRomanWorld; e A. Jeffers,MagicandDivination inAncientPalestine and Syria. A palavra “mágico” vem do termo gregomageia, que temsuasraízesnotermopersaparasacerdotes,magos.Comoem“ReisMagos”.

Contrariamente à percepção popular, os milagres de Jesus não pretendiam con irmar suaidentidade messiânica. Em todas as profecias bíblicas já escritas sobre o messias, não há suacaracterizaçãocomomilagreirooucomoexorcista–omessiaséumrei,suatarefaérestaurarIsraelàglóriaedestruirseusinimigos,nãocurarodoenteeexpulsardemônios(naverdade,nãoexistemtaiscoisascomodemôniosnaBíbliaHebraica).

JustinoMártir,Orígenes e Irineu sãomencionados emA. Fridrichsen,TheProblemofMiracle inPrimitiveChristianity , p.87-95. Talvez o mais famoso argumento levantado sobre Jesus como ummágicosejaacontroversatesedeM.Smith,JesustheMagician.OargumentodeSmithérealmentemuito simples: as açõesmilagrosas de Jesus nos evangelhos têm uma notável semelhança com oque vemos em “textos mágicos” da época, o que indica que Jesus possa ter sido visto por seuscompanheirosjudeusepelosromanoscomoapenasmaisummágico.Outrosestudiosos,sobretudoJohnDominicCrossan,concordamcomaanálisedeMorton.VejaJ.D.Crossan,HistoricalJesus,p.137-67. O argumento de Smith é sólido e não merece o opróbrio que recebeu em alguns círculosacadêmicos,apesardeminhasobjeçõesaeleseremclarasnotexto.Paraparalelosentreashistóriasde milagres nos evangelhos e aquelas em escritos rabínicos, veja C.A. Evans, “Jesus and JewishMiracleStories”,inJesusandHisContemporaries,p.213-43.

Emrelaçãoà leiparaapuri icaçãodos leprosos,deve-senotarqueaTorápermiteaosquesãopobressubstituíremdoisdoscordeirosporduasrolasoudoispombos(Levítico14:21-22).

10.QuevenhaanósoteuReino

Para um tratamento claro e conciso da noção do Reino de Deus no Novo Testamento, veja J.Jeremias,NewTestamentTheology:TheProclamationof Jesus . Jeremias chamaoReinodeDeus de“temacentraldaproclamaçãopúblicadeJesus”.VejatambémN.Perrin, TheKingdomofGod intheTeaching of Jesus eRediscovering the Teachings of Jesus . Perrin se refere ao Reino de Deus comosendo o cerne damensagemde Jesus: “Tudo em seus ensinamentos tem como ponto de partidaessaconvicçãocentral–inspiradoraouridícula,deacordocomaperspectivaquesetenha.”

DeacordocomJohnMeier, “foraosevangelhossinópticoseabocade Jesus, [o termoReinodeDeus]nãoparece ter sidoamplamenteutilizadopor judeusou cristãosno iníciodo século Id.C.”;MarginalJew,vol.2,p.239.ABíbliaHebraicanuncausaaexpressão“ReinodeDeus”,masusa“Reinode Yahweh” em 1 Crônicas 28:5, quando Davi fala de Salomão sentado no trono do Reino deYahweh. Eu acho que é seguro dizer que essa expressão signi ica amesma coisa que o Reino deDeus.Ditoisso,aexpressãoexata“ReinodeDeus”éencontradaapenasnotextoapócrifoSabedoriadeSalomão(10:10).ExemplosdereinadodeDeuseseudireitodegovernarestão,éclaro,emtodosos lugares na Bíblia Hebraica. Por exemplo, “Deus reinará como rei para todo o sempre” (Êxodo15:18).Perrinacreditaqueoimpulsoparaousodapalavra“reino”naoraçãodoPai-nossovenhadeumaoraçãoaramaicakaddishencontradaemumaantigasinagogaemIsrael,queelea irmaqueestavaemusoduranteavidadeJesus.Aoraçãodiz:“Exaltadoesanti icadosejaseugrandenomenomundoqueelecrioudeacordocomsuavontade.QueelepossaestabeleceroseureinonocursodesuavidaeemvossosdiasenavidadetodaacasadeIsrael,mesmodeformarápidaeemum

futuropróximo”;vejaKingdomofGodintheTeachingofJesus,p.19.Assimcomomuitosoutrosestudiosos,PerrinestáconvencidodequeJesususaotermo“Reinode

Deus”emumsentidoescatológico.MasRichardHorsleyobservaque,emboraasaçõesdeDeusnoquedizrespeitoaoreinopossamserpensadascomo“ inais”,issonãoimplicanecessariamenteumevento escatológico. “Os símbolos que cercam o Reino de Deus não se referem ao ‘último’, ‘ inal’,‘escatológico’e ‘totalmente transformador’ ‘ato’deDeus”,escreveHorsley. “Seocerneoriginaldequalquer dos ditos sobre ‘o ilho do homem vindo sobre as nuvens do céu’ … decorre de Jesus,então, como a imagem em Daniel 7:13 a que se referem, eles são símbolos da defesa dos justosperseguidos e sofridos.” A opinião de Horsley é que o Reino de Deus pode ser corretamenteentendido em termos escatológicos, mas apenas na medida em que implica a atividade inal ede initivadeDeusnaterra.EleobservacorretamentequeumavezqueabandonemosanoçãodequeapregaçãodeJesussobreoReinodeDeusrefere-seaumFimdosTempos,tambémpodemosabandonarodebatehistóricosobrese JesuspensavanoReinocomoalgopresenteoualgo futuro.Veja Jesus and the Spiral of Violence: Popular Jewish Resistance in Roman Palestine , p.168-9. Noentanto,paraaquelesinteressadosnodebate“presenteoufuturo”,JohnMeier,queacreditaqueoReinodeDeustenhasidoconcebidocomoumeventoescatológico,discorresobreosargumentosdeambos os lados emMarginal Jew, vol.2, p.289-351. Entre os que discordam de Meier estão J.D.Crossan,Jesus:ARevolutionaryBiography , p.54-74;M.J. Borg,Jesus:ANewVision,p.1-21;e, é claro,eumesmo.NaspalavrasdeWernerKelber,“oReinosignificaofimdeumavelhaordemdascoisas”;vejaTheKingdominMark,p.23.

Parasabermaissobreo“judaísmo”deJesusdeNazaré,vejaA.-J.Levine,TheMisunderstood Jew.Declarações de Jesus contra os gentios podem ser aceitas como históricas com muita segurança,considerando-sequeosprimeiroscristãostentavamativamenteatrairgentiosàconversãoeessesversículosnosevangelhosnãoosteriamajudadoemnada.ÉverdadequeJesusacreditavaqueosgentios acabariam por ser autorizados a entrar no Reino de Deus, uma vez que este fosseestabelecido.Mas,comoobservaJohnMeier,Jesuspareciaconsiderarqueesseseriaocasoapenasno inaldahistóriadeIsrael,quandoosgentiospoderiamentrarnoreinocomosubservientesaosjudeus;vejaMarginalJew,vol.3,p.251.

ConcordocomRichardHorsleyqueosmandamentospara “amarseus inimigos”e “daraoutraface” no evangelho de Lucas provavelmente estão mais perto da Fonte Q original do que asdeclaraçõesparalelasemMateus,quecontrapõemosmandamentosdeJesuscomoscomandosdaBíbliaHebraicade“olhoporolho”(leidetalião).VejaJesusandtheSpiralofViolence,p.255-65.

QuantoaMateus11:12,euincluíaquiaversãovariantedoverso–“oReinodosCéustemvindoviolentamente” – porque estou convencido de que é a forma original do verso e porque é a quemelhorseencaixanocontextodapassagem.Aversãopadrãodapassagemdiz: “DesdeosdiasdeJoão Batista até agora, o Reino dos Céusopera pela força, e os violentos o arrebatam.” Essa é atradução feitaporRudolfOtto emTheKingdomofGodand the SonofMan, p.78.Note-se que essaversãodoversoémais frequentemente traduzida,demaneira imprecisa, como“DesdeosdiasdeJoãoBatistaatéagora,oReinodosCéussofreviolência,eosviolentosoarrebatam”,emboramesmotaistraduçõesincluamumavariantedeleituraparaindicaravozativaqueusonaminhatradução.Oproblemaresidenoverbobiazomai,quesigni ica“usardeviolênciaouforça”.Notempopresenteperfeito,biazomai pode signi icar “ter violência feita a alguém”,mas não é o tempo perfeito queocorre nesse trecho. Damesma forma, na voz passiva,biazomai pode signi icar “sofrer violência”,mas,novamente,nãoéavozpassivaqueéusadaemMateus11:12.DeacordocomoLéxicodaUBS(United Bible Societies), a palavrabiazomai nessa passagem é realmente na voz média grega e,portanto,signi ica“exerceraviolência”.UmapistadecomotraduzirapassagemdeMateus11:12pode ser encontrada na passagem paralela de Lucas 16:16. Lucas, talvez querendo evitar acontrovérsia,omitepor completoaprimeirametadedoversículo, “oReinodeDeusoperaatravésda força/violência”. No entanto, na segunda metade do versículo, ele usa exatamente a mesmapalavra,biazetai,notrecho“todomundousaviolênciaaoentrarnele”.Finalmente,atraduçãousual,“oreinodoscéussofreviolência”,nãoestádeacordonemcomomomentoemque Jesusdisseaspalavras nem com o contexto em que ele viveu. E o contexto é tudo. Veja oAnalytic Greek New

Testament,etambémanotareferenteaMateus11:12doThayer’sGreek-EnglishLexiconoftheNewTestament.VejaaindaJ.P.LouweE.A.Nida(orgs.), Greek-EnglishLexiconoftheNewTestament; essesautores notam corretamente que “emmuitas línguas pode ser di ícil, se não impossível, falar doreinodos céus ‘sofrendoataquesviolentos’”, embora admitamque “alguma formaativapode serempregada,porexemplo,‘eviolentamenteatacaoreinodoscéus’ou‘…ogovernodeDeus’”.

11.Quemvósdizeisquesou?

SobreaexpectativaquantoaoretornodeEliaseainauguraçãodaeramessiânicaentreosjudeusnaPalestina do século I, veja J.J. Collins,Apocalypticism in the DeadSeaScrolls. Sobre a deliberadaimitaçãodeEliasporJesus,vejaJ.Meier,MarginalJew,vol.3,p.622-6.

AocontráriodeMateuseLucas,querelatamumamudançanaaparência ísicadeJesusdurantea trans iguração (Mateus 17:2, Lucas 9:29), Marcos a irma que Jesus foi trans igurado de umaformaque só afetou suas roupas (9:3).Os paralelos comoÊxodonanarrativa da trans iguraçãosão claros: Moisés leva Aarão, Nadabe e Abiú aomonte Sinai, onde é tragado por uma nuvem erecebe a Lei e o projeto para a construção do tabernáculo de Deus. Assim como Jesus, Moisés étransformado estando em uma montanha, na presença de Deus. Mas há uma grande diferençaentreasduashistórias:Moisés recebeuaLeidopróprioDeus, aopassoque Jesus sóvêMoisés eElias,nadarecebendo isicamente.AdiferençaserveparadestacarasuperioridadedeJesussobreMoisés. Moisés é transformado por causa de seu confronto com a glória de Deus, mas Jesus étransformadoporsuaprópriaglória.SegundoMortonSmith,chega-seàconclusãodequeMoiséseElias,aLeieosProfetas,aparecemcomoossubordinadosdeJesus;veja“Theoriginandhistoryoftrans igurationstory”,p.42.EliastambémsubiuumamontanhaeexperimentouoespíritodeDeuspassando sobre ele. “O Senhor disse: ‘Saia e apresente-se namontanha, na presença do Senhor,pois o Senhor está prestes a passar.’ Então, um vento forte e poderoso fendeu os montes edespedaçouasrochasdiantedoSenhor,masoSenhornãoestavanovento.Depoisdoventohouveumterremoto,masoSenhornãoestavanoterremoto.Depoisdoterremotoveioumincêndio,masoSenhornãoestavanofogo.Edepoisdofogoumavozsuave.”(1Reis19:11-12)Deve-senotarqueSmithachaqueahistóriadatrans iguraçãopertence“aomundodamagia”.Suatesetratadeseuconceito de Jesus como um mágico “como outros mágicos”. Smith, portanto, acredita que atrans iguração tenha sido algum evento místico, hipnoticamente induzido, que exigia silêncio;consequentemente, o feitiço foi quebrado quando Pedro falou. A tentativa de Marcos de utilizaressahistóriacomoumacon irmaçãodamessianidadedeJesusé,paraSmith,umerroporpartedoevangelista.Tudo issodemonstra a ideiadeMarcosdeque Jesus superaosdoispersonagensemglória.Essa,naturalmente,nãoéumanoçãonovanacristologiadoNovoTestamento.Pauloa irmaexplicitamente a superioridade de Jesus sobre Moisés (Romanos 5:14; 1 Coríntios 10:2), assimcomooescritordeHebreus(3:1-6).Emoutraspalavras,Marcosestásimplesmentedeclarandoumacrença familiar da Igreja primitiva de que Jesus é o novo Moisés, prometido no Deuteronômio18:15.VejatambémM.D.Hooker,“‘Whatdoestthouhere,Elijah?’AlookatSt.Mark’saccountofthetrans iguration”,inL.D.Hurstetal.(orgs.), TheGloryofChristintheNewTestament ,p.59-70.HookervêgrandeimportâncianofatodequeoevangelhodeMarcosapresentaEliasprimeiro,a irmandoqueMoisésestavacomele.

Aexpressão“segredomessiânico”éumatraduçãodoalemãoMessiasgeheimnis,eéderivadadoestudoclássicodeWilliamWrede,TheMessianicSecret.Teorias sobreosegredomessiânicopodemser divididas em duas escolas de pensamento: aquela que acredita que o segredo pode serdepreendido do Jesus histórico e aquela que oconsidera uma criação de Marcos ou de suacomunidadeprimitiva.WrededefendequeosegredomessiânicoéumprodutodacomunidadeemtornodeMarcos,eumelementoliteráriodopróprioevangelho.EleargumentaqueosegredosurgedeumatentativadeMarcosdeconciliarumacrençacristãprimitivadaJerusalémdoséculoI,queviaJesuscomotendosetransformadoemmessiassomenteapósaressurreição,comavisãodequeJesus já era o messias durante toda a sua vida e o seu ministério. O problema com a teoria de

WredeéquenãohánadaemMarcos16:1-8(o inaloriginaldoevangelhodeMarcos)quesugiraumatransformaçãodaidentidadedeJesusalémdeseuinexplicáveldesaparecimentodatumba.Dequalquer forma, é di ícil explicar como a ressurreição, uma ideia que não era familiar àsexpectativasmessiânicasdaPalestinadoséculoI,poderiaterreforçadoacrençadequeJesuseraomessias.OobjetivodoestudodeWredeerausarosegredomessiânicoparamostrarque,emsuaspalavras,“Jesusnaverdadenãoseapresentoucomomessias”duranteavida,umahipótesecuriosae,provavelmente,correta.DentreosquediscordamdeWredeea irmamqueosegredomessiânicopode ser traçadodevoltaatéo JesushistóricoestãoO.Cullman,Christologyof theNewTestament ,p.111-36, e J.D.G. Dunn, “The messiah secret in Mark”, in Tuckett, C. (org.), The Messiah Secret,p.116-36.Para informaçõesmaisgeraissobreosegredomessiânico,veja J.L.Blevins,TheMessianicSecret in Markan Research, 1901-1976, e H. Raisanen,The “Messianic Secret” in Mark. Raisanenargumenta corretamente que muitas das teorias sobre o segredo messiânico presumem que “opontodevistateológicodoevangelhodeMarcosébaseadoemumaúnicateologiadosegredo”.Eleacredita, e amaioriadosestudiosos contemporâneos concorda,queo segredomessiânico sópodeserentendidoquandooconceitodesegredoé“desmembrado…empartesconectadasapenasdeformasoltaumascomasoutras”;vejaRaisanen,The“MessianicSecret”inMark,p.242-3.

Para um resumo preciso dos diversos paradigmas messiânicos que existiam na Palestina doséculo I, veja C. Evans, “From anointed prophet to anointed king: Probing aspects of Jesus’ self-understanding”,inJesusandHisContemporaries,p.437-56.

Embora muitos estudiosos contemporâneos concordem comigo que o uso do título Filho doHomempodeseratribuídoaoJesushistórico,continuaahavermuitodebatesobrequantasequaisdasmenções da expressão são autênticas.Marcos indica três funções principais na interpretaçãoporJesusdessetítuloobscuro.Emprimeirolugar,eleéusadonasdescriçõesdeuma igurafuturaque vem para julgar (Marcos 8:38, 13:26, 14:62). Em segundo, ele é usado quando se fala dosesperadossofrimentoemortedeJesus(Marcos8:31,9:12,10:33).E, inalmente,háumnúmerodepassagens em que o Filho do Homem é apresentado como um governante terrestre com aautoridade para perdoar pecados (Marcos 2:10, 2:28). Desses três casos, talvez o segundo seja omais in luente em Marcos. Alguns estudiosos, incluindo H.S. Reimarus,The Goal of Jesus and HisDisciples, aceitamahistoricidadeapenasdoquenãoéescatológico,oschamadosditos “humildes”.Outros, incluindo B. Lindars,JesusSonofMan, aceitam como autênticos somente aqueles entre os“ditos tradicionais” (Fonte Q e Marcos) que reproduzem a subjacente expressãobar enasha (hánove delas) como ummodo deautorreferência. Outros, ainda, acreditam que apenas as palavrasapocalípticas são autênticas: “As passagens autênticas são aquelas em que a expressão é usadanessesentidoapocalípticoqueremontaaDaniel”,escreveA.Schweitzer, TheQuestof theHistoricalJesus,p.283.E,claro,háosestudiososquerejeitamcomoinautênticasquasetodasasreferênciasaFilho do Homem. Na verdade, essa foi mais ou menos a conclusão do famoso “Jesus Seminar”,organizado por R.W. Funk e R.W. Hoover, The Five Gospels: The Search for the Authentic Words ofJesus.UmaanáliseabrangentedoseculardebatesobreoFilhodoHomemé fornecidaporDelbertBurkettemsuamonogra iaindispensávelTheSonofManDebate.UmcomentáriointeressantefeitoporBurkett équeosgnósticosaparentementeentenderam“ ilho” literalmente, crendoque Jesusestavaafirmandosuarelaçãofilialcomo“aeon”oudeusgnósticoAnthropos,ou“Homem”.

Geza Vermes demonstra que obar enasha nunca é um título em nenhuma das fontes emaramaico; veja “The SonofMandebate”.Deve sermencionadoqueVermes está entreumgrupopequenodeestudiososqueacreditamque“FilhodoHomem”,naexpressãoaramaica,éapenasumcircunlóquio para “eu”, uma forma indireta e respeitosa de se referir a si mesmo, como quandoJesusdiz:“Asraposastêmsuastocaseasavesdocéutêmninhos,masoFilhodoHomemnãotem[ouseja,eunãotenho]nenhumlugarparareclinara[minha]cabeça.”(Mateus8:20|Lucas9:58)VejatambémP.M.Casey, SonofMan:TheInterpretationandIn luenceofDaniel7.Mas,comoobservaBurkett, o problema básico com a teoria do circunlóquio é que “o idoma requer um pronomedemonstrativo(‘estehomem’)queaexpressãonoevangelhonãotem”;vejaTheSonofManDebate,p.96. Outros tomam o rumo oposto, a irmando que “Filho do Homem” não se refere demaneiraalgumaaJesus,masaoutra igura,alguémqueJesusesperavaqueoseguisse.“QuandooFilhodo

Homem vier na sua glória, e os santos anjos com ele, ele se assentará no trono da sua glória.”(Mateus25:31)ProeminentesdefensoresdateoriadequeJesusestavasereferindoaalguémmaiscomooFilhodoHomemincluemJuliusWellhauseneRudolfBultmann.Noentanto, issotambéméimprovável;nocontextodamaioriadasmençõesdeJesusaFilhodoHomem, icaclaroqueeleestáfalando de si mesmo, como quando compara-se a João Batista: “Veio João, não comendo nembebendo, e eles dizem: ‘Ele tem um demônio.’ O Filho do Homem [isto é, eu] veio comendo ebebendo,edizem:‘Olhem!Umglutãobêbado.’”(Mateus11:18-19|Lucas7:33-34)Entreaquelesqueacreditamque“oFilhodoHomem”éumaexpressãoidiomáticaaramaicasigni icandoou“umhomem”, em geral, ou,mais especi icamente, “um homem como eu” estão B. Lindars, Jesus Son ofMan, e R. Fuller, “The Son of Man: A reconsideration”, in D.E. Groh e R. Jewett (orgs.), The LivingTexts:Essays inHonorofErnestW.Saunders ,p.207-17.EssesestudiososnotamqueDeussedirigeaoprofetaEzequielcomobenadam,oquesigni icaumserhumano,mas,talvez,implicandoumserhumano ideal. Para a falta de concepção uni icada entre os judeus sobre a expressão Filho doHomem,vejaN.Perrin, “SonofMan”, in Interpreter’sDictionaryof theBible, p.833-6, eA.Y. Collins,“TheinfluenceofDanielontheNewTestament”,inJ.J.Collins(org.),Daniel,p.90-123.

Emboraaexpressão“umcomo ilhodohomem”nuncasejaidenti icadacomoomessias,parecequeosestudiososjudeuserabinosdoséculoIaentendiamcomotal.NãoéclaroseJesustambémentendiaousoqueDaniel faziade “umcomoum ilhodohomem”comosendo referênciaaumaigura messiânica. Nem todos os estudiosos acreditam que Daniel está se referindo a umapersonalidadedistintaouum indivíduoespecí icoquandousa a expressão “ ilhodohomem”.ElepodeestarusandootermocomoumsímboloparaIsraelvitoriososobreseusinimigos.Omesmoéverdadeiro de Ezequiel, onde o “ ilho do homem” pode não ser um indivíduo distinto chamadoEzequiel,masumrepresentantesimbólicodohomem ideal.Naverdade,MauriceCaseypensaatémesmoqueaexpressãoemEnoquenãoserefereaumindivíduodistinto,massimplesmenteaum“homem”genérico;veja“Theuseoftheterm‘SonofMan’intheSimilitudesofEnoch”.Eunãoestouemdesacordocomessaposição,maspensoqueháumadiferençasigni icativaentreaformacomootermogenéricoéusadoem,porexemplo, Jeremias51:43–“Suascidadestornaram-seobjetodehorror, euma terrade seca eumdeserto, uma terra emquenenhumhomemvive, nem ilhodehomem[benadam]passa”– e amaneira comoele éusadoemDaniel7:13para se referir aumafigurasingular.

TantoEnoquequanto4Esdras identi icamexplicitamentea igurado“ ilhodohomem”comomessias,masem4Esdraseletambéméchamadode“meu ilho”porDeus:“Porqueomeu ilho,omessias,seráreveladocomaquelesqueestãocomele,eaquelesquepermanecemsealegrarãoporquatrocentos anos. E depois desses anos omeu ilho, omessias,morrerá, e todos os que tiveremrespiração humana.” (4 Esdras 7:28-29) Não há dúvida de que 4 Esdras foi escrito no inal doséculoI,outalveznoiníciodoséculoIId.C.Noentanto,hámuitoexisteumdebatesobreadatadeSimilitudes. Comonãohavia cópiasdesse textoentreasmuitas cópiasdeEnoqueencontradasemQumran,amaioriadosestudiososestáconvencidadequeelanãofoiescritasenãobemdepoisdadestruiçãodoTemploem70d.C.VejaM.Black, TheBookofEnochor1Enoch:ANewEnglishEditionwithCommentaryandTextualNotes.VejatambémD.Suter,“Weighedinthebalance:TheSimilitudesof Enoch in recent discussion”, e J.C. Hindly, “Towards a date for the Similitudes of Enoch: Ahistorical approach”.Hindlyofereceumadataentre115e135d.C.paraaobra Similitudes,queéumpouco tarde, naminhaopinião.Bemoumal, amelhordata quepodemosdar é algum tempodepoisdadestruiçãode Jerusalémem70d.C.,masantesdacomposiçãodoevangelhodeMateus,emtornode90d.C.

Sobre os paralelos entre o Filho do Homem de Enoque e o Filho do Homem do evangelho nomaterial que é exclusivo deMateus, consulte Burkett,The Son ofMan Debate, p.78, e também J.J.Collins,“Theheavenlyrepresentative:The‘SonofMan’intheSimilitudesofEnoch”,inJ.J.CollinseG. Nickelsburg (orgs.),Ideal Figures in Ancient Judaism: Pro iles and Paradigms , p.111-33. Sobre oFilhodoHomemcomoumser celestialpreexistentenoquartoevangelho, consulteD.Burkett,TheSonoftheManintheGospelofJohn,eR.G.Hamerton-Kelly,Pre-Existence,Wisdom,andtheSonofMan.Deve-se notar que nem no textoSimilitudes nem em 4 Esdras a expressão “Filho do Homem” é

usada.JesusdiantedeCaifás citanão sóDaniel7:13,mas tambémSalmos110:1 (“OSenhordisseao

meusenhor:‘Senta-teàminhadireitaatéqueeufaçadeteusinimigosoteuescabelo.’”).AconexãoentreDaniel7:13eSalmos110:1narespostadeJesusaosumosacerdotepodeparecer,àprimeiravistaumpoucodesconexa.Mas,deacordocomT.F.Glasson, Jesusestáestabelecendoumarelaçãonatural. Glasson observa que, em Daniel, a vinda do Filho do Homem “com as nuvens do céu”simbolizaoestabelecimentodoReinodeDeusnaterra.Assim,umavezqueJesuséexaltadoàmãodireita de Deus, o reino que ele pregava em 1:15 irá emergir como a “nova comunidade dossantos”. De acordo com Glasson, a referência aos Salmos demonstra exaltação pessoal de Jesus,enquantoqueareferênciaaDaniel indicaa inauguraçãodoreinonaterra–umeventoquedevecomeçar com a sua morte e ressurreição. Essa ideia é bastante conectada com a trípliceinterpretação de Jesus do Filho do Homem. Em outras palavras, Glasson acredita que esse é omomentoemqueosdoistítulos,messiaseFilhodoHomem,sereúnemparaJesus.VejaT.F.Glasson,“ReplytoCaiaphas(Mark14:62)”.MaryAnnL.BeavisobservaosparalelosentreahistóriadeJesusdiantedeCaifáseacon issãoanteriorfeitaporPedro.Ambasascenascomeçamcomaquestãodaidentidade de Jesus (8:27, 14:60) e ambas terminam comumdiscurso sobre o Filho doHomem.Alémdisso,emambososcasos,areinterpretaçãodeJesusdotítulomessiânicoérecebidacomumacondenação contundente (8:32-33, 14:63-65); vejaM.A.L.Beavis, “The trial before the Sanhedrin(Mark14:53-65):ReaderresponseandGreco-Romanreaders”.

12.NenhumreisenãoCésar

Por mais tentador que seja descartar a traição de Judas Iscariotes como um simples recursonarrativo,o fatoéqueesseéumdetalheatestadopor todososquatroevangelistas,emboracadaumapresenteumaexplicaçãodiferenteparaatraição.

MarcoseMateusdeixamclaroque“amultidão”tinhasidoexpressamenteenviadapeloSinédrio,eLucasacrescentaapresençadoscapitãesdoTemplonogrupodeaprisionamento,paradeixarseupontobemclaro.Somenteoevangelhode João indicaapresençade tropas romanasnogrupodeaprisionamento. Isso é altamente improvável, já que nenhum soldado romano iria deter umcriminosoeentregá-loaoSinédrio,amenosquefosseobrigadoafazê-lopelogovernador,enãohánenhumarazãoparapensarquePilatosestivesseenvolvidonasituaçãodeJesusatéqueestefosselevado diante dele. Embora Marcos pareça sugerir que quem empunhou a espada não era umdiscípulo, mas “alguém entre os que estavam por perto” (Marcos 14:47), os outros evangelhosdeixamclaroquefoidefatoumdiscípuloquecortouaorelhadofuncionáriodoTemplo.Joãochegamesmo a identi icar o discípulo espadachim como Simão Pedro (João 18:8-11). O desconforto deLucas com um Jesus que parece resistir à prisão é amenizado por sua insistência em que Jesusparou o tumulto e curou a orelha do pobre funcionário antes de permitir-se ser levado (Lucas22:49-53).Dito isto,éLucasquea irmaespeci icamentequeosdiscípulos foramcomandadosporJesusatrazerduasespadasaoGetsêmani(Lucas22:35-38).

Sobre Eusébio, consultePamphili Eusebius, Ecclesiastical History III.3, citado em G.R. Edwards,Jesus and the Politics of Violence, p.31. A narrativa de Eusébio tem sido contestada por algunsestudiososcontemporâneos,incluindoL.M.White,FromJesustoChristianity,p.230.

RaymondBrowndescreveoargumentousandoumconjuntodenarrativasdapaixãoanterioresaos evangelhos em sua enciclopédica obra de dois volumesThe Death of the Messiah, p.53-93.ContraBrownexisteachamadaEscolaPerrin,querejeitaanoçãodeumanarrativadapaixãopré-Marcosea irmaqueanarrativado julgamentoecruci icação foimoldadaporMarcoseadaptadapor todos os evangelhos canônicos, incluindo João; veja W.H. Kelber (org.), The Passion in Mark:StudiesonMark14-16.

Para o uso da cruci icação entre os judeus, veja E. Bammel, “Cruci ixion as a punishment inPalestine”, inE.Bammel(org.), TheTrialofJesus,p.162-5. JosefBlinzlerobservaquenotempodos

romanoshaviaalgumsensodeuniformidadenoprocessodecruci icação,especialmentequandosetratavadepregarasmãoseospésemumaviga.Haviageralmenteumaçoitamentoprévioe,pelomenos entre os romanos, era esperado que o criminoso carregasse a própria cruz até o local dacrucificação.VejaJ.Blinzler,TheTrialofJesus.

Josefo observa que os judeus que tentaram escapar de Jerusalém quando a cidade foi sitiadaporTito foramexecutadosprimeiro,depoiscruci icados:AGuerraJudaica5.449-51.MartinHengelescrevequeemboraacruci icaçãofosseumapuniçãoreservadaparacidadãosnãoromanos,houveexceções,masdeliberadamentecomorespostaacrimesconsideradostraições.Emoutraspalavras,dando ao cidadão um “castigo de escravo” a mensagem era que o crime fora tão grave quecancelavaacidadaniaromanadocriminoso.VejaM.Hengel,Cruci ixion intheAncientWorldandtheFollyof theMessageof theCross, p.39-45.A citaçãodeCícero édeHengel, p.37.Veja também J.W.Hewitt,“Theuseofnailsinthecrucifixion”.

QuantoaojulgamentodeJesusdiantedeCaifásnosevangelhos,MateuseMarcosa irmamqueJesus foi levadoparaopátio (aule)dosumosacerdote,enãoaoSinédrio.AocontráriodeMarcos,Mateus cita especi icamente o sumo sacerdote Caifás. João diz que Jesus foi levado primeiro aosumosacerdoteanterior,Ananus, antesde ser transferidoparao seugenroe sumosacerdotenaocasião, Caifás. É interessante notar que Marcos trata como falsa a a irmação de que Jesus vaiderrubaroTemploeconstruiroutrosemmãoshumanas.ComoMateus,Lucas-Atose Joãodeixamclaro, aquilo foi precisamente o que Jesus ameaçou fazer (Mateus 26:59-61; Atos 6:13-14; João2:19). Na verdade, uma versão dessa mesma declaração pode ser encontrada no evangelho deTomé: “Eu vou destruir esta casa e ninguém será capaz de reconstruí-la.” MesmoMarcos colocaessa exata frase nas bocas dos transeuntes que zombam de Jesus na cruz. Se a declaração fossefalsa, como Marcos alega, onde os transeuntes a teriam ouvido? Na sessão noturna fechada doSinédrio? Improvável. De fato, tal a irmação parece ter sido parte dos acréscimos da fundaçãocristológicada Igrejapós-70d.C.,queconsiderouacomunidadecristãcomosendoo“Templo feitosemmãoshumanas”.Nãopodehaverdúvidadeque, sejaquais tiveremsidoaspalavrasreaisdeJesus, na verdade ele tinha ameaçado o Templo de alguma forma. O próprioMarcos atesta isso:“Vedes essas construções? Nenhuma pedra será deixada sobre outra, tudo vai ser derrubado.”(Marcos13:2)Paramais informações sobreasameaçasde JesusaoTemplo, vejaR.Horsley, JesusandtheSpiralofViolence,p.292-6.Comtudoissoemmente,asobreposiçãodedesculpasdeMarcosnojulgamentoperanteoSinédriosurgecomoumatentativaridiculamentearti icialparamostrarainjustiça de quem fez acusações contra Jesus, não importando se essas acusações fossemverdadeiras–oque,nestecaso,elasmuitoprovavelmenteeram.

RaymondBrownapresenta27discrepânciasentreo julgamentode JesusperanteoSinédrioeprocedimentos rabínicos posteriores; vejaDeathof theMessiah, p.358-9. D.R. Catchpole examina oargumento contra a historicidade do julgamento em “The historicity of the Sanhedrin trial”, in E.Bammel(org.),TheTrialofJesus,p.47-65.Queosjulgamentosnoturnoseram,nomínimo,incomunsé demonstrado por Atos 4:3-5, em que Pedro e João são presos durante a noite, mas têm queesperar até o amanhecer para serem julgados perante o Sinédrio. Lucas, que escreveu aquelapassagem do Livro de Atos, tenta corrigir o erro de seus colegas evangelistas, defendendo duasreuniõesdo Sinédrio: umananoite emque Jesus foi preso e outra “quandoveio o dia”. EmAtos12:1-4, Pedro é preso durante o Pêssach,mas não é levado perante o povo para julgamento atédepoisdeafestaacabar,emboraSolomonZeitlinapresenteexceçãoà ideiadequeoSinédrionãopodia reunir-se na véspera do sabá; S. Zeitlin,Who Cruci ied Jesus?. Poder-se-ia defender aqui asequência de acontecimentos de João, em que o Sinédrio se reuniu dias antes de prender Jesus,masconsiderandoquenesseevangelhoaentradatriunfaldeJesusemJerusalémesuapuri icaçãodoTemplo–quetodososestudiososconcordamtersidooimpulsoparasuaprisão–estavamentreosprimeirosatosdeseuministério,alógicadeJoãodesmorona.

Arespeitodadiscussãosobreseosjudeustinhamodireito,sobaocupaçãoromana,decondenarcriminosos àmorte, vejaR.Brown,Deathof theMessiah, vol.1, p.331-48. A conclusão de Catchpolesobreessaquestãoé,naminhaopinião,acorreta:“Osjudeuspoderiamjulgar[umcasodepenademorte], mas não poderiam executar”; veja “The historicity of the Sanhedrin trial”, p.63. G.W.H.

Lampesugerequeumregistroo icialdo “julgamento”de JesusdiantedePilatospoderia ter sidopreservado, considerando-se a preservação de atas semelhantes dos mártires cristãos.Aparentemente,váriosescritorescristãosmencionamumaActaPilati existentenosséculos IIe III.Masmesmo que isso fosse verdade (emuito provavelmente não é), não há razão para acreditarquetaldocumentorepresentarianadaalémdeumapolêmicacristológica.VejaG.W.H.Lampe,“ThetrialofJesusintheActaPilati”, inE.BammeleC.F.D.Moule(orgs.), JesusandthePoliticsofHisDay ,p.173-82.

Plutarcoescreveuque“todomalfeitorquevaiparaaexecuçãocarregaasuaprópriacruz”.

ParteIII

Prólogo:Deusfeitocarne

AevidênciadequeEstevãoeraumjudeudaDiásporavemdofatodequeeleédesignadocomoolíderdosSete,os“Helenistas”queentraramemcon litocomos“Hebreus”,comonarradoemAtos6(veja adiantemais informações sobre os Helenistas). Os apedrejadores de Estevão eram libertos,elespróprioshelenistas,masrecentementeimigradosaJerusalémeteologicamentealinhadoscomaliderançajudaicalocal;vejaM.-E.Rosenblatt,PaultheAccused,p.24.

Asprimeirasfontesquetemosparaacrençanaressurreiçãodosmortospodemserencontradasnastradiçõesugaríticaeiraniana.AsescriturasdeZoroastro,principalmenteGathas,apresentamomais antigo e talvez omais bem-desenvolvido conceito de ressurreição do indivíduo quando faladosmortos“levantando-seemseuscorpos”no inaldotempo(Yasna54).Osegípciosacreditavamqueofaraóseriaressuscitado,masnãoaceitavamaressurreiçãodasmassas.

Stanley Porter encontra exemplos de ressurreição corporal nas religiões grega e romana,masa irmaquehápoucaevidênciada ideiade ressurreição ísicadosmortosnopensamento judaico;veja S.E. Porter, M.A. Hayes e D. Tombs, Resurrection. Jon Douglas Levenson discorda de Porter,argumentando que a crença na ressurreição do corpo está enraizada na BíbliaHebraica e não é,como alguns argumentaram, apenas parte do período do segundo Templo ou da literaturaapocalípticaescritadepoisde70d.C.;vejaResurrectionandtheRestorationofIsrael.Levensonafirmaque, após a destruição de Jerusalém, havia uma crença crescente entre o rabinato de que aredençãodeIsraelexigiaaressurreiçãoemcarneeossodosmortos.Masmesmoeleadmitequeagrande maioria das tradições da ressurreição encontradas no judaísmo não é sobre a exaltaçãoindividual, mas sobre restauração nacional. Em outras palavras, trata-se de uma ressurreiçãometafórica do povo judeu como um todo, e não da ressurreição literal dos mortais que tinhammorrido e voltam em carne e osso. Na verdade, Charlesworth observa que, se por “ressurreição”queremos dizer “o conceito de Deus de levantar o corpo e a alma após a morte (literalmenteentendido)paraumavidanovaeeterna(enãoumretornoàexistênciamortal)”,entãosóháumapassagememtodaaBíbliaHebraicaqueseadaptaaessecritério–Daniel12:2-3:“Muitosdosquedormemnopóda terra ressuscitarão,unsparaa vidaeternaeoutrosparavergonhaedesprezoeternos.”Asmuitasoutraspassagensqueforaminterpretadascomoreferênciaàressurreiçãodosmortos simplesmentenão resistemaoescrutínio.Por exemplo,Ezequiel37– “Assimdizo SenhorDeusaessesossos:eufareicomquearespiraçãoentreemvósevósvivereisnovamente”–refere-sede formaexplícitaaessesossoscomo“acasade Israel”.OSalmo30,noqualDaviescreve “Eugritei por ti e tume curaste. Ó Senhor, tume trouxeste do Sheol, impediu-me de descer à cova”(30:2-4), trata,obviamente,dacuradeumadoença,nãosendo literalmenteumaressurreiçãodosmortos.OmesmovaleparaahistóriadeEliasressuscitandoosmortos(1Reis17:17-24),ou,aliás,para Jesus ressuscitando Lázaro (João 11:1-46), narrativas que se enquadram na categoria dehistórias de cura e não de ressurreição, já que a pessoa que “ressuscitou” presumivelmentemorrerádenovo.Charlesworth,noentanto,vêprovasdacrençanaressurreiçãodosmortosparaaimortalidadenosManuscritosdomarMorto,emespecialemumlivrochamadoSobrea ressurreição

(4Q521),quea irmaqueDeus,atravésdomessias,vaitrazerosmortosàvida.Curiosamente, issopareceseencaixarcomacrençadePaulodequeoscrentesemCristoressuscitadotambémserãoressuscitados: “E os mortos em Cristo ressuscitarão” (1 Tessalônicos 4:15-17); veja J.H.Charlesworthetal.,Resurrection:TheOriginandFutureofaBiblicalDoctrine.Essespergaminhosqueparecem implicar que o Pregador Justo de Qumran vai ressuscitar dentre os mortos falam nãosobre a ressurreição literal do corpo,mas sobreum ressuscitarmetafóricode libertaçãoparaumpovo que tinha se divorciado do Templo. Há algo parecido com uma ideia de ressurreição naspseudoepígrafes, por exemplo em1Enoque22-27ou em2Macabeus14, emqueRazis dilacerasuasentranhaseDeusascolocadevolta.Alémdisso,OTestamentodeJudáimplicaqueAbraão,Isaace Jacó vão se alçar para viver de novo (25:1). No que diz respeito às ideias da ressurreição naMishná,Charlesworthobservacorretamentequetaispassagenssãodemasiadotardias(pós-séculoIId.C.)paraseremcitadascomoexemplosdecrençasjudaicasantesde70d.C.,emboraeleadmitaser possível que “a tradição no Sinédrio daMishná tenha de inido as crenças de alguns fariseuspré-anos70d.C.”.

Rudolf Bultmann encontra evidências para o conceito de morte e ressurreição do ilho dadivindadenas chamadas “religiõesdemistério”deRoma.Elea irmaque “ognosticismoacimadetudoestácientedanoçãodoFilhodeDeusquese fezhomem–eumhomemcelestial redentor”;vejaEssays:PhilosophicalandTheological,p.279.MaseuachoqueMartinHengelestácertoaonotarque a grande onda de interesse em “religiões de mistério” que surgiu no Império Romano e asíntesecomojudaísmoeoprotocristianismodaíresultantenãoaconteceuatéoséculoII.Emoutraspalavras, pode ter sido o cristianismo que in luenciou o conceito de morte e ressurreição dadivindadenognosticismoenas religiõesdemistério, enãoo contrário; vejaM.Hengel,TheSonofGod,p.25-41.

Outros textos importantes para o estudo histórico e cultural da ressurreição nomundo antigoincluemG.Vermes,TheResurrection:HistoryandMyth, eN.T.Wright,TheResurrectionof theSonofGod.

NãopodehaverdúvidaalgumadequeoSalmo16éautorreferencial, jáqueaprimeirapessoado singular é usada desde o início: “Guarda-me, ó Deus, porque em ti me refugio.” A palavrahebraica traduzida aqui como “devoto” échasid. Parece-me óbvio que a referência de Davi a simesmo como “um devoto” tem mais a ver com sua piedade e devoção a Deus do que com adei icação, seja do próprio Davi (que teria sido inimaginável), seja de qualquer igura davídicafutura.Claro,LucasteriausadoaSeptuagintadoSalmo16:8-11,quetraduzohebraicochasid comoogregohosion,quesigni ica“santo”eque,dadoocontextoeosigni icadodosalmo,deveservistocomo sinônimo de “devoto”. Pode ser um enorme esforço de imaginação considerar esse salmocomo sendo sobre o messias, mas é ridículo interpretar isso como prevendo a morte e aressurreiçãodeJesus.

AlongadefesadeEstevãonoLivrodeAtosé,obviamente,composiçãodeLucas–ela foiescritaseisdécadasapósamortedeEstevão.Masotrechoresisteaoescrutínio,poisLucasfoielepróprioumjudeudaDiáspora,umconvertidosíriodelínguagregadacidadedeAntioquia,esuapercepçãodequemeraJesusteriasealinhadocomapercepçãodeEstevão.

Entre os errosmais lagrantes na negligente narrativa de Estevão da história bíblica: EstevãofaladeAbraãocompraro túmuloemSiquémparaseuneto Jacóserenterrado,enquantoaBíbliadiz que foi Jacó quem comprou o túmulo em Siquém (Gênesis 33:19), embora elemesmo tenhasido enterrado com Abraão em Hebron (Gênesis 50:13). Estevão a irma que Moisés viu a sarçaardente no monte Sinai, quando na verdade foi no monte Horebe, que, apesar de algunsargumentosemcontrário,nãoeraomesmoqueoSinai(Êxodo3:1).Ele,então,passaaa irmarqueumanjodeualeiaMoisés,quandofoiopróprioDeusquemofez.Épossível,claro,queLucastenhasido in luenciado pela tradição do Jubileu, que a irma que a lei foi dada aMoisés pelo “Anjo daPresença”.Jubileu45.15-16diz:“EIsraelabençoouseus ilhosantesdemorreredisse-lhestudooque iria acontecer a eles na terra do Egito; e tornou conhecido a eles o que lhes ocorreria nosúltimosdias,eosabençoou,edeua Joséduasporçõesde terra.Eeledormiucomseuspais, e foisepultadonadupla cavernana terradeCanaã, pertodeAbraão seupai, na sepulturaque cavou

parasimesmonaduplacavernana terradeHebron.Eeledeu todososseus livroseos livrosdeseuspaisparaLeviseu ilhoparaqueelepudessepreservá-loserenová-losparaosseus ilhosatéo dia de hoje.” Curiosamente, Jubileu também sugere que a Torá foi escrita porMoisés, sendo omaisantigotestemunhodatradiçãodaautoriamosaicaparaaTorá.

Para saber mais sobre o signi icado da frase “à direita de Deus”, veja o verbete em D.N.Freedmanetal.,EerdmansDictionaryoftheBible.ParaFreedman,oaneldesineteerausadonamãodireitareal (Jeremias22:24);o ilhomaisvelhorecebiaabênçãomaiorpelamãodireita(Gênesis48:14,17); a posição de honra era à direita de alguém (Salmos 110:1); e amão direita de Deusrealizaatosde libertação(Êxodo15:6),vitória(Salmos20:6)e força(Isaías62:8).AsobservaçõesdeTomásdeAquinosãodaSummaTheologica,questão58.

13.SeCristonãofoiressuscitado

Houve, na realidade, dois (embora alguns digam três) véus que dividiam o Santo dos Santos dorestodoTemplo:umvéuexteriorqueestavapenduradonaentradaparaosantuáriointerioreumvéu interior dentro do santuário propriamente dito,que separava ohekal, ou portal, a partir dacâmara menor na qual o Espírito de Deus habitava. Que véu é o indicado nos evangelhos éirrelevante,jáqueahistóriaélenda,masdeve-senotarqueapenasovéuexteriorteriasidovisívelparaqualquerpessoaalémdo sumosacerdote; vejaD.Gurtner,TornVeil:Matthew’s Exposition oftheDeathofJesus.

Embora tantoaevidênciahistóricaquantooNovoTestamentodemonstremclaramentequeosseguidoresdeJesuspermaneceramemJerusalémapósasuacruci icação,éinteressantenotarqueoevangelhodeMateustemJesusressuscitadodizendoaosdiscípulosparaencontrá-lodevoltanaGalileia(Mateus28:7).

O. Cullman,The State in the New Testament; The Christology of the New Testament; J. Gager,KingdomandCommunity:TheSocialWorldoftheEarlyChristians ;eM.Dibelius,StudiesintheActsofthe Apostles, demonstraram que os primeiros seguidores de Jesus não tiveram sucesso empersuadirosoutroshabitantesde Jerusalémaaderir aomovimento.Gagerobserva corretamenteque, em geral, “os mais antigos convertidos não representavam os setores estabelecidos dasociedadejudaica”(p.26).DibeliussugerequeacomunidadedeJerusalémnãoestavanemmesmointeressada em pregar fora da cidade, mas que levava uma vida tranquila de devoção econtemplaçãoenquantoaguardavaasegundavindadeJesus.

Gager explica o sucesso do movimento inicial de Jesus, apesar de suas muitas contradiçõesdoutrinárias,con iandoemumestudosociológicofascinantefeitoporL.Festinger,H.W.RieckeneS.Schachter intituladoWhenProphecyFails:A Social andPsychological Studyof aModernGroupThatPredicted the Destruction of the World, que, nas palavras de Gager, demonstra que “sob certascondições, uma comunidade religiosa cujas crenças fundamentais são contraditadas pelosacontecimentosdomundonãonecessariamenteentraemcolapsoesedissolve.Emvezdisso,poderealizaraatividademissionáriazelosacomoumarespostaaoseusentidodedissonânciacognitiva,ou seja, uma condição de angústia e dúvida decorrente da não con irmação de uma crençaimportante” (p.39). Como o próprio Festinger coloca em seu estudo subsequente,A Theory ofCognitiveDissonance: “Apresençadedissonânciadáorigemapressõesparareduziroueliminaradissonância.A intensidadedapressãopara reduzir adissonância éuma funçãodamagnitudedadissonância.”(p.18)

Há um grande debate sobre o que signi icava exatamente “Helenista”. O termo poderia tersigni icado que eram gentios convertidos ao cristianismo, como W. Bauer argumenta na obraOrthodoxy and Heresy in Earliest Christianity. H.J. Cadbury concorda com Bauer. Ele acha que osHelenistaseramcristãosgentiosquepodemtervindodaGalileiaoudeoutrasregiõesdegentioseque não eram favoravelmente inclinados à lei de Moisés; veja “The Hellenists”, in K. Lake e H.J.Cadbury (orgs.),The Beginnings of Christianity, vol.1, p.59-74. No entanto, o termo Helenista

provavelmente se refereaos judeusde línguagregadaDiáspora, comoMartinHengeldemonstrade maneira convincente emBetween Jesus and Paul . Marcel Simon concorda com Hengel, emboratambém acredite (contra Hengel) que o termo tinha conotações pejorativas entre os judeus daJudeia por seu conteúdo grego (isto é, pagão). Simon observa queHelenismo consta da lista dasheresias de Justino Mártir emTrypho (80.4); vejaSt. Stephen and the Hellenists in the PrimitiveChurch.

QueosSeteeram líderesdeumacomunidade independentena Igrejaprimitivaécomprovadopelo fatodequeeles sãoapresentados comopregandoativamente, curandoe realizando sinais emaravilhas. Eles não são garçons cuja principal responsabilidade é a distribuição de alimentos,comosugereLucasemAtos6:1-6.

Hengel escreve que “a parte da comunidade de língua aramaica quase não foi afetada” pelaperseguiçãodosHelenistas, e observaque, considerandoo fatodequeosHebreus tinham icadoemJerusalém,pelomenosatéo iníciodaguerra,em66d.C.,elesdevemterchegadoaalgumtipodeacomodaçãocomasautoridadessacerdotais.“NaPalestinajudaica,apenasumacomunidadequesemantivesse rigorosamente iel à lei poderia sobreviver ao longo do tempo”, Between Jesus andPaul,p.55-6.

OutrarazãoparaconsideraromovimentodeJesusnosprimeirosanosapósacruci icaçãocomoumamissãoexclusivamente judaica éque, entreosprimeiros atosdos apóstolos após amortedeJesus, substituiu-se Judas Iscariotes porMatias (Atos 1:21-26). Isso pode indicar que a noção dereconstituição das tribos de Israel ainda estava viva imediatamente após a cruci icação. De fato,entre asprimeirasperguntasqueosdiscípulos izerama Jesus ressuscitadoera saber, agoraqueele estava de volta, se pretendia “restaurar o reino de Israel”. Ou seja, você irá executar agora afunçãomessiânicaquenão conseguiu realizardurante a sua vida? Jesus se esquivadapergunta:“NãocabeavóssaberostemposouasestaçõesqueoPaiestabeleceucomoseupoder[derealizartaiscoisas].”(Atos1:7)

14.Nãosoueuumapóstolo?

DascartasdoNovoTestamentoatribuídasaPaulo,apenassetepodemserseguramente ligadasaele:1Tessalônicos,Gálatas,1e2Coríntios,Romanos,FilipenseseFilemon.CartasatribuídasaPaulo,masprovavelmentenãoescritasporeleincluemColossenses,Efésios,2Tessalônicos,1e2TimóteoeTito.

HáalgumdebatesobreadatadaconversãodePaulo.AconfusãodecorredadeclaraçãodePauloemGálatas2:1deque ele foi paraoConselhoApostólico em Jerusalém “depoisde catorze anos”.Supondoqueoconselhofoirealizadoporvoltadoano50d.C., issocolocariaaconversãodePauloemtornode36ou37d.C.Estaéadatapreferidapor J.Tabor, Pauland Jesus .Noentanto,algunsestudiososacreditamquePauloquerdizercatorzeanosdepoisdesuaprimeiraapariçãodiantedosapóstolos,queelea irmaterocorridotrêsanosapóssuaconversão.Issocolocariaaconversãopertode33d.C., datapreferidaporM.Hengel,Between JesusandPaul , p.31.A.Harnack, emThe Missionand Expansion of Christianity in the First Three Centuries, calcula que Paulo se converteu dezoitomeses após a morte de Jesus, mas acho que é muito cedo. Concordo com Tabor e outros que aconversãodePaulodeu-semaisprovavelmenteporvoltade36ou37d.C., catorzeanosantesdoConselhoApostólico.

QueareferênciadePaulonacartaaosGálatasaos“chamadospilaresdaIgreja”eradirigidadeformaespecí icaaosapóstolosbaseadosemJerusalémenãoaalgunsjudeuscristãosanônimosdequemdiscordavaestáde initivamentecomprovadoporGerdLudemannemsuaobraindispensávelPaul:TheFounderofChristianity , especialmentep.69e120, eporM.E.Boring,Opposition toPaul inJewish Christianity; veja também Tabor, Paul and Jesus , p.19, e J.D.G. Dunn, “Echoes of the intra-JewishpolemicinPaul’slettertotheGalatians”.

Houve um debate feroz, recentemente, sobre o papel de Paulo na criação do que hoje

consideramoso cristianismo, comumnúmerode estudiosos contemporâneos vindoemdefesadePaulo e pintando-o como judeu devoto, que se manteve iel à herança judaica e às leis e aoscostumesdeMoisés,masquepor acasovia suamissão comoadeadaptaro judaísmomessiânicopara um público gentio. A visão tradicional de Paulo entre os estudiosos do cristianismo poderiatalvezsermaisbemresumidaporR.Bultmann,FaithandUnderstanding,quesabiamentedescreveua doutrina de Paulo sobre Cristo como “basicamente uma nova religião, em contraste com ocristianismopalestinooriginal”.EstudiososquemaisoumenosconcordamcomBultmann incluemA.Harnak,WhatIsChristianity?;H.J. Schoeps,Paul:TheTheologyof theApostle in theLightof JewishHistory; e G. Ludemann,Paul: The Founder of Christianity . Entre os recentes estudiosos que veemPaulocomoumjudeu ielqueapenastentoutraduzirojudaísmoparaumpúblicogentioestãoL.M.White,FromJesustoChristianity,eminhaantigaprofessoraM.-É.Rosenblatt,PaultheAccused.

Emúltimaanálise,háalgumaverdadeemambasasperspectivas.OsqueacreditamquePaulofoiocriadordocristianismocomooconhecemos,ouquefoielequemtotalmentedivorciouanovafé do judaísmo, muitas vezes não levam em devida consideração o ecletismo do judaísmo daDiásporaoua in luênciadosHelenistasde línguagrega(entreosquaisopróprioPaulose inclui),dequemeleprovavelmenteouviupelaprimeiravezsobreJesusdeNazaré.Mas,paraserclaro,osHelenistaspodemnão terdadoênfaseà leideMoisésemsuapregação,masnãoademonizaram;podemterabandonadoacircuncisãocomorequisitoparaaconversão,masnãoarelegaramacãese malfeitores ou sugeriram que aqueles que discordassem fossem castrados, como Paulo fez(Gálatas5:12).Não importa sePaulo adotou sua incomumdoutrinadosHelenistasou inventou-aele próprio; o quemesmo seusmais ferrenhos defensores não podem negar é o quão desviantesuasopiniõeseramatédosmovimentosjudaicosmaisexperimentaisdoseutempo.

QuePauloestá falandodesimesmoquandocita Isaías49:1-6sobre“araizde Jessé”servindocomo “uma luz para os gentios”, é óbvio, já que atémesmo Paulo admite que Jesus não pregavaparaosgentios(Romanos15:12).

Uma pesquisa feita por N.A. Dahl demonstra o quão incomum era o uso que Paulo fazia deXristos(Cristo).Dahlobservaque,paraPaulo,Xristosnuncaéumpredicado,nuncaregidoporumgenitivo,nuncaumtítulo,massempreumadesignação,enuncausadonaformaaposicional,comoemYesus ha Xristos , ou Jesus, o Cristo. Veja N.A. Dahl, Jesus the Christ: The Historical Origins ofChristologicalDoctrine.

Não era incomumser chamadodeFilhodeDeusno judaísmoantigo.Deus chamaDavide seuilho:“Hojegereiati.”(Salmos2:7)EleaindachamaIsraeldeseu“ ilhoprimogênito”(Êxodo4:22).Mas, em todosos casos, FilhodeDeusé entendido comoum título,nãoumadescrição.AvisãodePaulodeJesuscomoofilholiteraldeDeusésemprecedentesnojudaísmodosegundoTemplo.

Lucasa irmaquePauloeBarnabésesepararamporcausadeuma“contendaa iada”,queLucasa irmatersidosobreapossibilidadedelevarMarcoscomelesemsuapróximaviagemmissionária,mas que é obviamente ligada ao que aconteceu em Antioquia logo após o Conselho Apostólico.Enquanto Pedro e Paulo estavam em Antioquia, eles se engajaram em uma briga pública ferozporque, de acordo comPaulo, Pedro parou de compartilhar umamesa comos gentios assimqueuma delegação enviada por Tiago chegou à cidade, “por medo da facção da circuncisão” emJerusalém (Gálatas2:12).Claro,Pauloé anossaúnica fonteparaesseevento, ehámuitas razõesparaduvidardesuaversão,sobretudopelofatodequeapartilhadeumamesacomosgentiosnãoéproibidapelaleijudaica.Émaisprovávelqueadiscussãotenhasidosobreamanutençãodasleisda dieta judaica – isto é, não comer alimentos gentios –, e Barnabé teria se colocado ao lado dePedronaquestão.

LucasdizquePaulofoienviadoaRomaparaescapardeumaconspiraçãojudaicaparamatá-lo.Ele também a irma que o tribuno romano ordenou que quase quinhentos de seus soldadosacompanhassempessoalmentePauloaCesareia.Istoésimplesmenteabsurdoepodeserignoradodemaneiracategórica.Lucastambémpodeestarerradoaoa irmarquePauloeracidadãoromano.PaulochamaasimesmodecidadãodeTarso,nãodeRoma.

Cláudioexpulsouos judeusdeRoma,deacordocomohistoriadorSuetônio, “porqueos judeusdeRomaestavamenvolvendo-seemtumultosconstantesporinstigaçãodeCresto”.Acredita-seque,

por Cresto, Suetônio queria dizer Cristo, e que essa briga entre os judeus era entre os judeuscristãos e não cristãos da cidade. Como F.F. Bruce observa, “devemos nos lembrar que, enquantonós com a nossa retrospectiva podemos distinguir entre judeus e cristãos desde o reinado deCláudio, as autoridades romanas da época não sabiam fazer tal distinção”; veja F.F. Bruce,“ChristianityunderClaudius”.

15.OJusto

As descrições de Tiago e das súplicas dos judeus são ambas tomadas da narrativa do palestinohebreu cristão Hegésipo (100-180 d.C.). Temos acesso aos cinco livros da história da Igrejaprimitiva de Hegésipo apenas por meio de passagens citadas no texto daHistória eclesiástica doséculo III de Eusébio de Cesareia (c.260-c.339 d.C.), um arcebispo da Igreja sob o imperadorConstantino.

Quãocon iávelHegésipoécomofontepodeserumassuntodegrandedebate.Porumlado,háumasériededeclarações suas cujahistoricidadeamaioriadosestudiosos aceita sem contestação,incluindo a a irmação de que “o controle da Igreja passou, juntamente com os apóstolos, para oirmãodoSenhor,Tiago,aquemtodos,desdeotempodoSenhor,atéonossopróprio,chamamdeoJusto, pois havia muitos Tiagos, mas esse era santo desde o seu nascimento” (Eusébio,Históriaeclesiástica 2.23). Essa a irmação é apoiada com várias comprovações (veja a seguir) e pode serrastreada até as cartas de Paulo e o Livro de Atos. No entanto, existem algumas tradições emHegésipo que são confusas e absolutamente incorretas, incluindo sua a irmação de que Tiago foiautorizadoa “entrarnoSantuário sozinho”. Sepor “Santuário”HegésipoqueriadizeroSantodosSantos (e há algumadúvida em saber se é realmente o que ele quer dizer), então a a irmação éclaramente falsa,pois sóo sumosacerdotepodiaentrarali.Há tambémuma tradiçãovariantedamorte de Tiago em Hegésipo que contradiz o que os estudiosos aceitam como o relato maiscon iável,odeJosefoemAntiguidades.ConformeregistradonaHistóriaeclesiástica,foiarespostadeTiagoaopedidodosjudeusparaajudaradissuadiraspessoasdeseguirJesuscomoomessiasqueinalmente levaàsuamorte: “E[Tiago]respondeucomgrandevoz: ‘PorquevósmeperguntaisarespeitodeJesus,oFilhodoHomem?Elesesentanocéuàdireitadograndepoder,eestáprestesavir sobre as nuvens do céu!’ Então eles agrediram o homem justo e disseram-se uns aos outros:‘Vamos apedrejar Tiago, o Justo.’ E eles começaram a apedrejá-lo, porque ele não foimorto pelaqueda;elevirou-se,ajoelhou-seedisse:‘Rogo-vos,SenhorDeus,nossoPai,perdoai-lhes,porquenãosabemoquefazem.’”

OqueéfascinantesobreessahistóriaéqueelapareceserumavariantedahistóriadomartíriodeEstevãonoLivrodeAtos, elaprópriaumempréstimoda respostade Jesusao sumosacerdoteCaifásnoevangelhodeMarcos.NotetambémoparaleloentreodiscursodemortedeTiagoeodeJesusnacruzemLucas23:24.

HegésipoterminaahistóriadomartíriodeTiagoassim:“Eumdeles,umdostintureiros,tomouoporrete comoqualbatia roupas [napro issãode tintureiro] e golpeouohomem justoapenasnacabeça.E,assim,elesofreuomartírio.Eosepultaramnolocal,pertodoTemplo,eseumonumentopermaneceali.Elesetornouumverdadeirotestemunho,tantoajudeuscomoagregos,queJesuséoCristo.E logoVespasianoossitiou.”(Eusébio,Históriaeclesiástica2.23.1-18).Novamente,emboraosestudiosossejamquaseunânimesempreferiranarrativadeJosefoparaamortedeTiagoàdeHegésipo, vale mencionar que essa última tradição encontra eco na obra de Clemente deAlexandria,queescreve:“HaviadoisTiagos,um,oJusto,quefoijogadodoparapeito[doTemplo]eespancado até amorte com o porrete do pisoteador, e o outro Tiago [ ilho de Zebedeu], que foidecapitado.”(Clemente,Disposições,Livro7)

Josefo escreve sobre a rica aristocracia sacerdotal apoderando-se dos dízimos dos sacerdotesinferiores emAntiguidades 20.180-1: “Mas o sumo sacerdote, Ananus, ele aumentou em glória acadadia,eissoemgrandemedida,eobteveofavoreaestimadoscidadãosdeformabemmarcada,poiseleeraumgrandecolecionadordedinheiro:ele,portanto, cultivouaamizadedeAlbinoedo

sumo sacerdote [Jesus, ilhode Damneus], dando-lhes presentes; ele também tinha servos queerammuitomaus,quesejuntaramaosmaisousadostiposdopovoeforamdevastando,eretirarampela violência os dízimos que pertenciam aos sacerdotes, e não deixaram de espancar quem serecusasse a entregar-lhes esses dízimos. Então os outros altos sacerdotes agiram de maneirasemelhante, comoo izeramos seus servos, semquequalquerum fosse capazde coibi-los.Assim,[algunsdos]sacerdotes,quedehámuitoestavamacostumadosaseremmantidoscomosdízimos,morreramporfaltadealimentos.”EsseAnanusfoi,provavelmente,Ananus,oVelho,paidoAnanusquematouTiago.

A narrativa domartírio de Tiago por Josefo pode ser encontrada emAntiguidades 20.9.1. Nemtodomundo está convencido de queTiago foi executado por ser um cristão.Maurice Goguel, porexemplo,argumentaqueseoshomensexecutadosjuntamentecomTiagotambémfossemcristãos,entãoseusnomesteriamsidopreservadosnatradiçãocristã;M.Goguel,BirthofChristianity.Algunsestudiososacreditamqueelefoiexecutadoporcondenaraapreensão,porAnanus,dosdízimosquedeveriamirparaossacerdotesdeclasseinferior;vejaS.G.F.Brandon,“ThedeathofJamestheJust:Anewinterpretation”,inE.E.Urbachetal.,StudiesinMysticismandReligion,p.57-69.

Seosjudeusestavamindignadoscomoprocedimentoilegaldojulgamentoouovereditoinjustoédi ícildedecifrarapartirdorelatode Josefo.O fatodequeeles sequeixaramaAlbinosobreailegalidadedeAnanuschamaroSinédriosemumprocuradoremJerusalémparecesugerirqueeraaoprocedimentodo julgamentoqueeles seopunham,nãoaoveredito.Noentanto, concordocomJohnPainter,queobservaque“asugestãodequeogrupoopôs-sefoiaofatodeAnanustomaraleinasprópriasmãos,jáqueaautoridaderomanaeranecessáriaparaaimposiçãodapenademorte(veja João18:31),nãoseencaixacomumaobjeção levantadapelos ‘mais imparciais…erigorososno cumprimento da lei’. … Pelo contrário, sugere que os que eram justos e rigorosos em suaobservânciadaleiconsideravaminjustaacondenaçãodeTiagoeosoutrosporteremtransgredidoalei”;vejaJ.Painter:“WhowasJames?”,inB.ChiltoneJ.Neusner(orgs.), TheBrotherofJesus,p.10-65e49.

Pierre-Antoine Bernheim concorda: “Josefo, ao indicar a divergência dos ‘observadores maisprecisosdalei’provavelmentequeriaenfatizarnãoairregularidadedaconvocaçãodoSinédrionostermosdasregras impostaspelosromanos,masa injustiçadovereditoemrelaçãoà leideMoiséscomo ela foi interpretada pelos especialistasmais reconhecidos”; veja James, The Brother of Jesus,p.249.

Enquanto alguns estudiosos – por exemplo, C.C. Hill,Hellenists and Hebrews – discordam dePainter eBernheim, argumentandoqueaqueixados judeusnão tinhanadaaver comopróprioTiago,amaioria(eeumeincluo)estáconvencidadequeaqueixadosjudeusfoisobrea injustiçada sentença,não sobreoprocessode julgamento; veja tambémF.F.Bruce,NewTestamentHistory ,especialmentep.372-3.

A citação de Hegésipo sobre a autoridade de Tiago pode ser encontrada em Eusébio,Históriaeclesiástica2.23.4-18.NãoestáclaroseHegésipoqueriadizerqueocontroleda Igrejapassouaosapóstolos e a Tiago, ou que o controle sobre os apóstolostambém passou a Tiago. De qualquerforma,a liderançadeTiagoéa irmada.GerdLudemannrealmenteachaqueaexpressão“comosapóstolos”nãoéoriginal,masfoiadicionadaporEusébioemconformidadecomavisãotradicionaldeautoridadeapostólica;vejaoseuOppositiontoPaulinJewishChristianity.

OmaterialdeClementedeRomaé tomadodo texto chamadoPseudo-Clementinas,que,emboracompiladoporvoltade300d.C., re lete tradições judaico-cristãsmuitoanteriores,quepodemserrastreadas através dos dois documentos principais do texto:Homilias eReconhecimentos.Homiliascontém duas epístolas: a epístola de Pedro, a partir da qual é citada a referência a Tiago como“Senhor e Bispo da Santa Igreja”, e a epístola de Clemente, que é dirigida a Tiago, “o Bispo dosBispos, que governa Jerusalém, a Santa Assembleia dosHebreus e todas as Assembleias em todaparte”. O texto Reconhecimentos é em si provavelmente baseado em um documento mais antigo,intituladoAscensãodeTiago, que amaioria dos estudiosos traça emmeados dos anos 100. GeorgStrecker acha queAscensão foi escrito em Pella, onde os cristãos baseados em Jerusalémsupostamente se reuniram após a destruição da Cidade Santa; veja seu verbete “Pseudo-

Clementinas”,inW.Schneemelker(org.),NewTestamentApocrypha,vol.2,p.483-541.ApassagemdoevangelhodeTomépodeserencontradanoCapítulo12.Aliás,oapelido“Tiago,o

Justo” também aparece no evangelho dos Hebreus; vejaThe Nag Hammadi Library para o textocompleto de ambos. Clemente de Alexandria é citado em Eusébio,História eclesiástica 2.1.2-5.Obviamente,otítulodebisponadescriçãodeTiagoéanacrônico,masaimplicaçãodotermoéclara.A obra de Jerônimo,Sobre homens ilustres, pode ser encontrada em uma edição em inglêsorganizadaporE.C.Richardson,ASelectLibraryoftheNiceneandPost-NiceneFathersoftheChristianChurch, vol.3. A passagem já não existente em Josefo relacionando a destruição de Jerusalém àmorte injustadeTiagoécitadaporOrígenesemContraCelso 1.47, por Jerônimo emSobrehomensilustreseemseuComentáriosobreosGálatas,eporEusébioemHistóriaeclesiástica2.23.

QueTiagoestavaemposiçãodecomandonoConselhoApostólicoécomprovadopelofatodequeele éoúltimoa falar edeque começa seu julgamento comapalavrakrino, ou “Eudecreto”. VejaBernheim,James, Brother of Jesus, p.193. Como Bernheim observa corretamente, o fato de quePaulo,aofazerreferênciaaostrêspilaresdaIgreja,sempremencionaTiagoprimeiroédevidoàsuaproeminência. Isso é a irmado por redações posteriores do texto em que copistas inverteram aordemparacolocarPedroantesdeTiago,a imdecolocá-locomochefedaIgreja.QualquerdúvidaquantoàproeminênciadeTiago sobrePedro sedesfaznapassagemdeGálatas2:11-14, emqueemissários enviados por Tiago para Antioquia obrigam Pedro a parar de comer com os gentios,enquantoalutaqueseseguiuentrePedroePaulolevaBarnabéadeixarPauloevoltarparaTiago.

Bernheim descreve o papel da sucessão dinástica e seu uso entre a Igreja cristã primitiva emJames,Brotherof Jesus, p.216-7. É Eusébio quemmenciona que Simeão, ilho de Cléofas, sucedeuTiago: “Após o martírio de Tiago e a tomada de Jerusalém que se seguiu imediatamente, estáregistradoqueosapóstolosediscípulosdoSenhorqueainda sobreviviamse reuniramvindosdetodos os lados e,juntamente com osparentes de sangue deNosso Senhor (pois amaior parte delesaindaestavaviva),decidiram, todosemcomum,quemseriadignodeserosucessordeTiago,e,oque émais, todos eles emuníssono aprovaramSimeão, ilhodeCléofas, dequem tambémo livrodosEvangelhosfazmenção,comodignodotronodacomunidadenaquelelugar.Eleeraumprimo–pelomenos assim o dizem – do Salvador; na verdade, Hegésipo relata que Cléofas era irmão deJosé.” (História eclesiástica 3.11; grifo meu) Quanto aos netos de outro irmão de Jesus, Judas,Hegésipoescreveque“governaramasigrejas,namedidaemqueamboserammártiresedafamíliadoSenhor”(Históriaeclesiástica3.20).

Deve-se notar que a famosa declaração de Jesus chamando Pedro de pedra sobre a qual vaifundar sua Igrejaé rejeitadacomonãohistóricapelamaioriadosestudiosos.Ver,porexemplo,P.Perkins,Peter,ApostlefortheWholeChurch ;B.P.Robinson,“Peterandhissuccessors:Traditionandredaction in Matthew 16:17-19”; e A.J. Nau,Peter in Matthew . John Painter demonstra que nãoexistetradiçãosobrealiderançadePedrodaIgrejadeJerusalém.TaistradiçõesexistemapenasemrelaçãoaRoma;vejaJ.Painter,“WhowasJames?”,p.31.

AlgunsestudiosospensamquePedrofoiochefedaIgrejaatéserforçadoafugirdeJerusalém.Veja, por exemplo, O. Cullman,Peter: Disciple. Apostle. Martyr . Mas essa opinião é baseadaprincipalmentenumaleituraerrôneadeAtos12:17,emquePedro,antesdeserforçadoafugirdeJerusalém, diz a João Marcos para informar Tiago de sua partida para Roma. Cullman e outrosargumentam que esse é omomento em que a liderança da Igreja de Jerusalém se transfere dePedroparaTiago.Noentanto,comoPainterdemonstra,aleituracorretadeAtos12:17équePedroestá simplesmente informando Tiago (seu “chefe”, por assim dizer) de suas atividades antes defugir de Jerusalém.Não há nada nessa passagem, ou emqualquer passagemdeAtos, que sugiraquePedroalgumavezliderouaIgrejadeJerusalém;vejaJ.Painter,“WhowasJames?”,p.31-6.

Cullmantambéma irmaqueaIgrejasobPedroerabemmaisfrouxaemsuaobservânciadaleiantesqueTiagoassumisseetornasseaobediênciamaisrígida.AúnicaevidênciaparaessaopiniãovemdaconversãodoromanoCornélioporPedro.Essaéumahistóriadehistoricidadeduvidosa,enãoprovaafrouxidãodaleiporpartedePedro–muitomenosindicaliderançadePedrosobreaassembleia de Jerusalém.O Livro deAtos deixa bem claro que havia uma grande divergência deopiniõesentreosprimeirosseguidoresde Jesussobrearigidezda lei.Pedropode tersidomenos

rígidoqueTiago,masedaí?ComoBernheimobserva:“NãohánenhumarazãoparasustentarqueaIgrejadeJerusalémfoimenosliberalnosanos48/49doquenoiníciodosanos30.”( James,BrotherofJesus,p.209)

WiardPopkesdetalhaasevidênciasparaumadataçãodaepístoladeTiagonoséculoIem“Themission of James in his time”, in TheBrother of Jesus, p.88-99.Martin Dibelius não concorda comessadatação.Eleacreditaqueaepístolaérealmenteumamisturadeensinamentosjudaico-cristãosquedeveriaserdatadadoséculoII;vejaM.Dibelius,James.É interessantenotarqueaepístoladeTiago é dirigida às “Doze Tribos de Israel espalhadas na Diáspora”. Tiago parece continuar apressuporarestauraçãodastribosdeIsraelaoseunúmerototaleàlibertaçãodeIsrael.Estudiososacreditam que a razão pela qual grande parte da epístola de Tiago tem ecos no evangelho deMateuséporquenesteestá integradauma tradição,muitasvezes referida comoM,quepode seratribuídaaTiago.

BruceChiltonescrevesobreovotonazireuaquePauloé forçadoa se submeterem“James inrelation to Peter, Paul, and Jesus”, in The Brother of Jesus, p.138-59. Chilton acredita que não sóTiago era um nazireumas que Jesus também o era. Na verdade, ele acredita que a referência aJesus como o Nazareno é uma corruptela do termo nazireu. Note-se que em Atos 18:18 Paulo éretratadocomotomandoparteemalgosemelhanteaumvotonazireu.DepoisdesairdebarcoparaaSíria,PaulodesembarcaemCencreia,noportoorientaldeCorinto.Lá,Lucasescreveque“eleteveocabelocortadopoisestavasobumjuramento”.EmboraLucasestejaclaramentesereferindoaumvotonazireuaqui,elepareceestarconfusosobreanaturezaeapráticadomesmo.Aespeci icidadedoritualeracortarocabelono inaldovoto.LucasnãodánenhumapistasobreoquepoderiatersidoovotodePaulo,massefosseparaumaviagemseguraàSíria,eleaindanãotinhachegadoaoseu destino e, portanto, não teria cumprido a promessa. Além disso, o voto nazireu de Paulo nãohaviasidofeitonoTemploenãoenvolveraumpadre.

JohnPainterdescrevetodoomaterialantipaulinonaobraPseudo-Clementinas, incluindoabriganoTemploentrePauloeTiago,em“WhowasJames?”,p.38-9.PaintertambémabordaaexpansãodeJesusdaleideMoisés,p.55-7.

AcomunidadequecontinuouaseguirosensinamentosdeTiagonosséculosqueseseguiramàdestruiçãodeJerusalémreferia-seasiprópriacomoosebionitas,ou“ospobres”,emhonraaofocodeTiagosobreestes.AcomunidadepodetersidochamadadeebionitasmesmoduranteavidadeTiago, jáqueo termoéencontradonosegundocapítulodesuaepístola.Osebionitas insistiamnacircuncisãoenocumprimentorigorosodalei.EmplenoséculoIV,elesviamJesuscomoapenasumhomem. Eles foram uma das muitas comunidades heterodoxas marginalizadas e perseguidasdepoisqueoConcíliodeNiceia, em325d.C., tornouo cristianismopaulino a religiãoortodoxadoImpérioRomano.

gApalavragregaγαρ–“gár”–éumaconjunçãoparaexpressar inferência,causaoucontinuação.Podesertraduzidapor:assimsendo,embora,defato,desdeque,então,narealidade.(N.T.)