no jardim das cerejeiras: metamorfoses do drama … · trabalho apresentado ao professor doutor...

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NO JARDIM DAS CEREJEIRAS: METAMORFOSES DO DRAMA NA VIRADA DO SÉCULO XIX por Mariana da Silva Lima Aluna do Curso de Mestrado em Teoria Literária (Ciência da Literatura) Trabalho apresentado ao Professor Doutor André Luís de Lima Bueno, na disciplina Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras da UFRJ Segundo semestre de 2006 1

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NO JARDIM DAS CEREJEIRAS:

METAMORFOSES DO DRAMA NA VIRADA DO SÉCULO XIX

por

Mariana da Silva LimaAluna do Curso de Mestrado em Teoria Literária

(Ciência da Literatura)

Trabalho apresentado ao Professor DoutorAndré Luís de Lima Bueno, na disciplina Dissertação de Mestrado.

Faculdade de Letras da UFRJSegundo semestre de 2006

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Aos meus pais,

com todo amor.

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AGRADECIMENTO

Ao meu orientador, André Bueno, pela paciência e firmeza com que me guiou,

e pelo debate vivo que sempre propicia.

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Cada escritor deve trazer sua palavra nova,

porque ele é, antes de mais nada, um juiz encanecido,

que acrescenta os seus acórdãos ao código do pensamento

humano.

(Maiakovski)

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ÍNDICE

Ao leitor 6

Começar pelo fim 7

1. Genealogia 9

2. O menino é pai do homem 11

3. Fase brilhante 12

4. Uma carta extraordinária 15

5. O conflito 16

6. O autor hesita 17

7. Epitáfio 27

A queda do jardim: impressões da Rússia no século XIX 32

1. Lopakhin 35

2. Liuba 44

3. Duniacha, Firs, Iacha e Vária 47

4. Trofimov 54

5. O jardim 57

Do falatório ao silêncio: o desenvolvimento da escrita dramatúrgica de Anton Tchekhov 60

Comédia, drama ou tragédia? 87

1. Com o olhar fixo numa estrela 89

2. Com lágrimas nos olhos 100

3. Com nosso suor 110

“Adeus vida velha!” ou “Finita la commedia!” ou “Você perdeu o seu vintém!” 113

Bibliografia 115

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AO LEITOR

Este trabalho tem como objeto O jardim das cerejeiras, a última peça do escritor

russo Anton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904). A abordagem consiste em relacionar a

inovação formal representada por esse texto aos eventos ocorridos na Rússia e no mundo

ocidental no período de vida do autor. Trata-se, portanto, de estabelecer conexões entre a

forma do drama moderno e a modernização da Rússia e do Ocidente.

Para tanto, a introdução consiste em um ensaio no qual a vida e a obra de

Tchekhov são relacionadas a partir da perspectiva do fim – de sua obra, na peça analisada,

e de determinada época da história russa.

No primeiro capítulo, analiso algumas relações estabelecidas entre os personagens

e entre estes e o ambiente em que se passa a ação, o jardim das cerejeiras, observando o

modo como tanto os personagens quanto o espaço são representados a partir de diversos

pontos de vista.

Já no segundo capítulo, para examinar o processo pelo qual O jardim das

cerejeiras se insere na tradição do drama moderno, estabeleço uma comparação com outra

peça de Tchekhov: Platonov, o primeiro texto longo que escreveu para o teatro, aos 18

anos de idade, e que se aproxima mais da forma tradicional do drama. A comparação é

suscitada não só pelo contraponto teórico que permite, mas, principalmente, pela

coincidência do tema do leilão de uma propriedade rural em ambas as peças – ainda que o

tema seja enfatizado de maneira distinta em cada um dos textos.

No terceiro capítulo, debruço-me sobre a questão do gênero da peça, pois embora o

autor afirmasse que se tratava de uma comédia, o primeiro encenador do texto,

Stanislavski, insistia em montá-lo como drama, além de observar na obra traços da

tragédia. Como veremos, suas observações não são gratuitas, mas se baseiam em

argumentos até certo ponto fornecidos pelo texto. Para além de uma mera divergência

quanto ao tom que deveria ser assumido na montagem, a polêmica revela concepções

sobre o teatro profundamente distintas entre os dois artistas.

Por fim, retomo brevemente alguns apontamentos feitos ao longo do trabalho,

fazendo um balanço entre a visão amarga presente na obra de Tchekhov e a esperança para

a qual aponta.

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COMEÇAR PELO FIM

“Ich sterbe” (“Estou morrendo”) – uma das últimas frases pronunciadas por Anton

Pavlovitch Tchekhov pode constituir um bom começo para um ensaio que busque passear

por sua vida e sua obra. O relato dos momentos finais do autor nos vem de Olga Knípper,

sua esposa. Tchekhov já andava sofrendo muito com a tuberculose com a qual convivia há

alguns anos, e foi justamente por causa do tratamento do escritor que o casal havia se

hospedado em um hotel em Badenweiler, na Alemanha. Ele acordou no meio da noite e,

“pela primeira vez na sua vida, pediu para se chamar um médico”. Olga Knípper atendeu

ao pedido do marido. Ao chegar, o médico examinou o paciente e receitou champanhe. A

calma da noite foi interrompida pelo estouro da garrafa. Foi então que Tchekhov sentou-se

com certa solenidade e informou o médico de que estava morrendo. Depois pegou a taça,

virou-se para a esposa e disse, “com o seu maravilhoso sorriso”: “Há muito tempo que não

bebia champanhe...”. Após esvaziar vagarosamente a taça – como que em um brinde à

vida – , deitou-se e calou-se para sempre.

Começar a falar sobre a vida e a obra de um autor por seu fim pode parecer

estranho – algo assim como o que faz Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás

Cubas, obra em que o narrador inicia seu relato autobiográfico pelo óbito do autor. No

entanto, a opção de começar pelo fim também se justifica pelo objeto desta dissertação: a

última peça de Anton Tchekhov, O jardim das cerejeiras, texto que apresenta de maneira

belíssima os momentos finais de uma classe social – a aristocracia russa –, mas também o

fim de uma época – o século dezenove, em especial em um país que gravitava na periferia

do capitalismo.

E já que estamos falando de enterro – de uma classe e de uma época –, o de

Tchekhov também contém elementos curiosos, assim como seus instantes finais. Maxim

Gorki relata que o caixão do escritor “foi colocado num vagão esverdeado, na porta do

qual se podia ler em letras grandes esta inscrição: ‘Transporte de ostras’”. Gorki vê nessa

circunstância do acaso uma espécie de vingança da banalidade contra a qual Tchekhov

sempre lutou tanto:

Ninguém com tanta finura e clareza como Antone Tchekhov compreendeu as

trágicas mesquinharias da existência; ninguém, antes dele, soubera mostrar aos homens, com

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tão impiedosa verdade, a ignomínia e a angústia em que vivem, no descolorido caos do

quotidiano pequeno-burguês.

A trivialidade foi sua inimiga; toda a vida lutou contra ela; escarneceu-a,

descrevendo-a com uma pena acelerada e imparcial; sabia descobrir o mofo da trivialidade

mesmo onde, à primeira vista, tudo parecia muito confortavelmente organizado, e até

brilhante... E a trivialidade vingou-se, fazendo-lhe uma partida ignóbil: os seus despojos – os

despojos de um poeta – foram instalados num vagão destinado ao transporte de ostras...

A mancha verde suja desse vagão afigura-se-me como o monstruoso sorriso da

trivialidade triunfante do seu inimigo vencido, assim como as inúmeras “recordações”

publicadas na imprensa bem-pensante, cheias de uma tristeza hipócrita, por detrás da qual

sinto o hálito frio e fétido dessa mesma trivialidade, interiormente satisfeita da morte dele.

O segundo acaso que Gorki relata em relação ao enterro de Tchekhov está

relacionado ao fato narrado acima. Enganada, talvez, pela banalidade das circunstâncias

envolvendo o transporte do caixão de um escritor tão admirado, uma parte das poucas

pessoas reunidas na estação para prestar homenagem ao artista “seguiu por engano a

carreta funerária do general Kéller, cujo corpo havia vindo da Manchúria”, embora tenham

ficado surpresos ao imaginarem que Tchekhov seria enterrado ao som de uma música

militar. Gorki conta que algumas pessoas, ao darem pelo engano, começaram a rir. Ele

menciona uma conversa que ouviu entre dois advogados: um falava sobre a inteligência

dos cães, e o outro discorria sobre a beleza de sua casa e dos arredores. Lembra-se ainda

de outros comentários ouvidos de passagem no séquito, e lamenta-se porque “tudo isto, e

muito mais, era de uma vulgaridade cruel, inconciliável com a memória do grande e fino

artista que Tchekhov havia sido”.

Não concordo com a interpretação que Gorki faz dos incidentes ocorridos no

enterro do escritor. Penso que esses dois acasos são tão tchekhovianos, e até mesmo

engraçados, em sua fortuidade, que mais parece que foi a vida quem aprendeu a ironia

com Tchekhov.

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1. Genealogia

Sigamos a trilha aberta por Machado de Assis e façamos aqui “um curto esboço

genealógico”. Tchekhov foi um intelectual de primeira geração – isto é, não veio de uma

família de intelectuais. Longe disso. Seu avô havia sido um servo, que foi liberto quando

da Lei da Emancipação, um ano após o nascimento do autor em 29 de janeiro de 1860.

Tchekhov viveu, portanto, as últimas décadas do czarismo na Rússia.

Atuando como força onipresente e decisiva no país desde o século XVI, o czarismo

caracterizava-se pela autoridade divina do czar, pelo serviço obrigatório ao Estado e pelo

uso da força policial. Embora o processo de surgimento do czarismo tenha ocorrido

paralelamente à formação das monarquias centralizadas ocidentais, há grandes diferenças

entre o Estado czarista e as monarquias européias, a começar pelos elementos culturais

tártaros e bizantinos presentes na origem do Estado czarista.

O termo czar, uma corruptela do termo latino caesar, era o título que os russos

atribuíam ao imperador de Bizâncio e depois ao khan (“chefe”) da Horda Dourada. Em

1498, Ivan o Grande intitulou-se “czar autocrata eleito por Deus” – o título bizantino

autokrator constituiu na sua origem o sinônimo do termo grego imperator, “chefe do

exército”, simbolizando o caráter fundamentalmente militarista da nova Roma, Moscou.

Teoricamente uma autocracia, na prática havia na Rússia uma oligarquia

latifundiária que custou a ser incorporada ao novo Estado – ou seja, embora os grandes

proprietários rurais constituíssem o principal alicerce do Império, suas relações com o czar

sempre foram atribuladas. O país era marcado por uma profunda estratificação social. Em

termos gerais, havia quatro classes bem definidas: nobreza, clero, burgueses e

camponeses. Porém, a divisão era mais complexa: havia a nobreza hereditária e aquela a

que se ascendia por virtudes pessoais; os burgueses, por sua vez, estavam subdivididos em

quatro categorias diferenciadas: cidadãos notáveis, mercadores, comerciantes e artesãos. O

clero constituía predominantemente uma categoria ocupacional, pois os que o

abandonavam eram considerados legalmente como burgueses e cidadãos notáveis.

Somente os camponeses formavam uma classe legalmente homogênea, apesar das

diferenças consideráveis entre os camponeses que serviam diretamente ao Estado e

aqueles que trabalhavam para outros proprietários.

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Porém, mais significativa que essa divisão formal era a que prevaleceu

basicamente até a Revolução de 1905: a diferença entre os privilegiados e os não-

privilegiados. Os privilegiados não estavam sujeitos a impostos diretos nem a castigos

corporais e podiam locomover-se livremente pelo país. Apenas os nobres e burgueses

compreendidos no grupo de cidadãos notáveis gozavam desses privilégios, representando

1% da população. Até 1861 a nobreza possuía o direito de ter servos como sua

propriedade. Aos privilegiados cabia a direção do Estado, enquanto os não-privilegiados

sustentavam-no por seu trabalho e pagamento de pesados tributos. Além disso, os

privilegiados dominavam o acesso à educação universitária.

A Rússia imperial distinguia-se tanto pela enorme dimensão quanto pelo elevado

nível de pobreza. As numerosas guerras empreendidas pelo país nos séculos XVII e XVIII

haviam ampliado de tal forma as fronteiras do Império que a Rússia tornou-se o maior país

do mundo em extensão territorial. A população do país passara de 14 a 170 milhões de

pessoas, a ponto de, em 1917, ocupar o terceiro lugar mundial, após a China e a Índia. No

entanto, a Rússia unia imensa extensão territorial a imensa pobreza econômica da maioria

da população. Esse enorme território não garantia à Rússia uma agricultura produtiva, pois

só pequena parte dele era apropriada ao cultivo. E muitas dessas terras possuíam clima

inóspito e terras empobrecidas por técnicas agrícolas antiquadas. Taganrog, a cidade onde

Tchekhov nasceu em 29 de janeiro de 1860, era uma típica cidade de província – na

descrição de Alexander Chudakov1, havia tavernas, pequenas lojas, “nenhuma placa sem

um erro de ortografia”, lampiões a querosene, e terras desperdiçadas e cobertas por mato.

Como o autor observa, as memórias de Tchekhov em relação a sua infância são repletas de

referências a charcos e estradas de terra, formando uma imagem de terra perdida.

A cidade natal do autor era uma cidade portuária no sul da Rússia, onde atracavam

navios vindos da Turquia, Grécia, Itália e Espanha, que traziam vinho, frutas, azeite e

especiarias. A cidade era o ponto de parada para o abastecimento de provisões de toda a

área do mar de Azov. Quando Tchekhov nasceu, o auge do comércio já tinha passado, mas

os negócios continuaram bastante ativos durante seus anos de escola. Um desses

comerciantes era Pavel Yegorovitch Tchekhov, pai de Anton.

Taganrog era uma cidade ao sul da Rússia cercada por todos os lados pela estepe.

Os irmãos passavam o verão nadando no mar, ou então na casa do avô na vila de Knyazhi.

1 IN: “Dr. Chekhov: a biographical essay (29 January 1860 – 15 July 1904)”.

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A vila ficava a quarenta milhas da cidade e a viagem em uma carruagem levava mais de

um dia. À noite, eles acampavam na estepe, sob as estrelas. Essas paisagens são descritas

em diversos contos, destacando-se A estepe.

Neto de um servo emancipado e filho de um comerciante, Tchekhov foi o primeiro

em sua família a ter acesso à educação universitária. Em seu ensaio sobre a vida do

escritor, Alexander Chudakov afirma que, curiosamente, na cultura russa, o nome de

Tchekhov é associado a inteligência, boa educação e refinamento. A aparente discrepância

entre a origem simples do autor e a arte altamente sofisticada que desenvolveria mais tarde

leva o biógrafo a se questionar: “como tais qualidades puderam ser adquiridas por um

rapaz provinciano que passou os anos cruciais de sua formação até os dezenove anos de

idade em uma cidade no interior da Rússia?”.

2. O menino é pai do homem

Aos 8 anos de idade Tchekhov ingressou na escola de Taganrog, onde estudaria

pelos próximos onze anos (ele repetiu a terceira e a quinta séries). Por essa época, tinha

que ajudar seu pai na loja depois da escola, trabalhando até tarde da noite. As lojas nas

províncias eram espécies de clube aonde as pessoas iam não apenas comprar alimentos,

mas também beber um pouco de vodka ou vinho. Chudakov afirma que, se essa

experiência não ajudou na escola, certamente foi um laboratório para o autor, pois podia

observar pessoas das mais diversas nacionalidades e ocupações.

Desde a infância, Tchekhov era responsável por uma série de tarefas domésticas:

fazer compras, limpar a casa (que ficava no segundo andar da loja), buscar água e até lavar

roupa. Para Chudakov, a monotonia desgastante das tarefas domésticas, na repetição sem

significado das mesmas atividades dia após dia, teria sido aproveitada por Tchekhov, que

mais tarde levaria essa experiência para seus escritos, mostrando como alguém que vive

apenas do mundo material a não tem a capacidade de resistir a ele sucumbe ao cotidiano, e

o lado espiritual sucumbe ao material.

Assim, sua infância – dividida entre a loja abafada e o mar aberto, os corredores da

escola e vastidão da estepe, entre o círculo fechado dos clérigos da igreja e a vida aberta e

natural das pessoas do campo – oferecia um vivo contraste entre o mundo material e a

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natureza. Tudo isso prometia formar um artista com uma percepção estética da vida nada

convencional. Thomas Mann, em seu belo Ensaio sobre Tchekhov2, reitera esse ponto de

vista ao comentar esse período da vida do escritor:

Por enquanto, os jovens devem ajudar o pai nas vendas da loja, fazer entregas e,

nos feriados, levantar-se às três horas da madrugada para tomar parte nos ensaios de canto

religioso. Ainda há a escola, o ginásio de Taganrog, um instituto disciplinar, orientado de

cima a manter os professores e os alunos longe de qualquer pensamento liberal. A vida é

trabalho forçado, monótono, sufocante, desolador. Mas há um aluno, aquele Anton, que

possui contrapesos singulares, uma disposição compensadora para a jovialidade e o

divertimento, para a palhaçada e o gracejo com mímica, que se alimenta da observação e a

traduz numa imitação caricaturadora. O jovem sabe copiar de modo tão real e ridículo um

diácono simplório, um funcionário que agita as pernas dançando num baile, o dentista, as

maneiras do chefe de polícia na igreja, que todos se admiram e dizem: “Repita! Que coisa!

Nós também o vimos, mas não era tão cômico como parece com este maroto, e deve ter

sido muito engraçado, se rimos tanto quando ele o imita. É uma total novidade aqui, que

alguém faça algo assim e de modo mais natural do que realmente era. Ha, ha, ha, que

disparate! Basta maroto, desse absurdo impertinente! Mas, como o chefe da polícia vai

para a igreja, repita isso mais uma vez!”

Como Mann observa, “é a origem primitiva e imitadora da arte que se revela aqui;

o talento, o prazer charlatanesco e o dom de divertir”, que um dia irão recorrer a outros

meios, assumindo formas diferentes, mesclando-se ao espiritual, experimentando

refinamento moral e elevando-se do engraçado ao comovente, mas sem nunca esquecer,

“no fundo e na mais amarga seriedade, o sentido do cômico, que sempre será conservado

na talentosa imitação do policial ou do funcionário dançando...”.

3. Fase brilhante

O pai de Tchekhov faliu e corria o risco de ser preso; assim, a família teve que se

mudar para Moscou. Anton passou o período de 1876 a 1879 sozinho em Taganrog,

2 MANN, Thomas. IN: Ensaios. P. 44.

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sustentando-se como professor particular e mandando dinheiro para os pais. Segundo

Chudakov, foi um período solitário no qual seu caráter tomou forma.

Quando terminou o liceu, Tchekhov foi ao encontro da família em Moscou, para

ingressar na universidade. Na cidade grande, os Tchekhov viveram na pobreza (às vezes

todas as crianças e os adultos ocupavam apenas um cômodo). Em 1879, ingressou na

Faculdade de Medicina na Universidade de Moscou e, já no primeiro ano da faculdade,

começou a escrever contos para revistas cômicas para sustentar a família.

Thomas Mann comenta sobre a mudança da província para a cidade grande: “Será

que a vida na cidade grande fará feliz o originário da estreiteza provinciana? Será que o

seu horizonte se alargará?”. Contudo, Mann indica que “a vida russa daquele tempo não

podia alargar o horizonte de ninguém”, pois era sufocante e pesada. Ele remete às difíceis

condições da época, ao autoritarismo do czar Alexandre III, sob cujo governo “ruíram os

espíritos melhor organizados, necessitados do ozônio da liberdade, no círculo de

Tchekhov”. Três de seus amigos tiveram um destino trágico: Uspenski, que era escritor,

tornou-se demente; Garchin, também escritor, cometeu suicídio; e Levitan, um pintor que

Tchekhov apreciava muito, e com quem mantinha uma relação amigável, também tentou o

suicídio. Segundo Thomas Mann, “a vodca ganhou muita força de atração entre os

intelectuais. Bebia-se – por desesperança. Ambos os irmãos de Tchekhov também bebiam

e degeneravam rapidamente”; Tchekhov, porém, não bebia, e com isso escapou à

melancolia e à enfermidade mental. Mann relaciona esse fato a seu trabalho – tanto como

artista quanto como médico.

Em primeiro lugar, dedicava-se com entusiasmo ao estudo da medicina, (...); e quanto à

melancolia geral, ele se mostrava alegre contra ela, do mesmo modo como antes contra a

solidão de Taganrog: fazia brincadeiras, imitava o chefe de polícia, o diácono bobo, o

funcionário no baile e outros, – não mais por mímica, mas por escrito. Na residência dos

pais, onde morava e onde tudo era barulhento e desordenado, ele sentava e escrevia para

qualquer revista humorística que gostasse de publicar um pouco de sátiras cautelosas,

diversas coisinhas cômicas, muito curtas, escritas às pressas: anedotas, diálogos, notícias

hilariantes, esboços, casamentos da pequena burguesia, comerciantes bêbados, esposas

briguentas ou, para variar, aquelas que caricaturavam um sargento demitido que

continuava a reclamar do mundo inteiro – e isso ele fazia de tal maneira que, como em

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Taganrog, as pessoas clamavam: “Mas não, que coisa! Como ele o consegue! Repita outra

vez!”.

Mais tarde, Tchekhov observaria que sua contribuição em revistas populares o

distraía de um trabalho literário mais sério; Chudakov, porém, chama atenção para o fato

de que essas revistas ofereciam uma liberdade formal que Tchekhov talvez não

encontrasse em outras revistas mais sérias. Os dois únicos requerimentos eram humor e

concisão. Nenhuma dessas revistas pertencia a qualquer escola ou estilo literário

estabelecido, de forma que permitiam grande liberdade de criação, e os autores podiam

experimentar novas formas, inventar novas técnicas e modificar as velhas convenções na

imprensa menor.

Conforme Chudakov nota, Tchekhov soube trabalhar as circunstâncias em seu

favor, aproveitando a liberdade oferecida por essas revistas para experimentar novos

estilos, assumir codinomes diversos e explorar áreas diferentes da vida. Observando as

estórias que escreveu nos primeiros cinco anos de sua carreira, é difícil encontrar uma

classe social, profissão ou ocupação que ele não tenha retratado. Em geral, sua obra é

dividida entre essa primeira fase da juventude e outra, posterior e mais madura. Muitos

críticos têm dificuldade em ver semelhanças entre as obras das duas fases, mas na verdade

há uma estreita ligação entre elas. É como se os primeiros trabalhos constituíssem

esboços, e os primeiros personagens, silhuetas de outros que surgiriam depois.

Além disso, muitos dos princípios artísticos explorados por Tchekhov nos

primeiros anos de carreira permaneceram constantes em toda sua carreira. Não havia

exposições preliminares da situação ou introduções à narrativa, ou explicação das causas

da ação. De maneira semelhante, muitos dos aspectos distintivos de sua dramaturgia têm a

mesma genealogia, como observações sem propósito ou sem sentido nas conversas, que

revelam um desentendimento mútuo. Assim, não é a biografia de um personagem ou

algum problema universal que fornece a base de uma história cômica, mas sempre uma

situação concreta do dia-a-dia.

Em sua prosa tardia, Tchekhov abordou problemas sociais e psicológicos mais

complexos, mas novamente eles não eram explícitos ou centrais na trama. O enredo nunca

se baseia nesses problemas, mas em detalhes circunstanciais, que permeiam sua prosa

madura assim como sua obra inicial. Os personagens meditam e filosofam enquanto

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tomam banho, passeiam em uma carruagem ou fazem a ronda em uma clínica para lidar

com algo banal.

Os primeiros textos cômicos de Tchekhov sempre apresentavam um fragmento da

vida, assim como suas obras posteriores, que começam “no meio” dos acontecimentos e

“terminam” sem uma conclusão definida. Embora seu trabalho posterior não forneça

muitas indicações de seus antecedentes humorísticos, a dívida é considerável.

4. Uma carta extraordinária

O ano de 1886 foi fundamental na carreira literária do escritor. Ele recebe uma

carta de Dmítri V. Grigoróvitch, que havia indicado a Alekséi S. Suvórin, diretor do jornal

Nóvoie Vrêmia (Tempos Novos), a leitura dos contos de Antocha Tchekhonté (o

pseudônimo mais usado por Tchekhov). Grigoróvitch aconselha o jovem a dedicar-se a

trabalhos mais elaborados e, principalmente, a deixar de assinar seus contos com

pseudônimos – o que significava que não havia motivos para o autor se esconder atrás de

um nome fictício e que, pelo contrário, deveria ter orgulho em assumir sua verdadeira

identidade. Em sua carta de resposta, Tchekhov declara, com sua graça habitual, que ela

atuou nele “como um decreto governamental: ‘sair da cidade em vinte e quatro horas!’, ou

seja, de repente, senti uma necessidade impreterível de me apressar, de sair mais depressa

de onde estou atolado”.

Depois dessa carta, Tchekhov é convidado a colaborar no Nóvoie Vrêmia, o jornal

mais influente de São Petersburgo. Publica o livro Contos Multicores, que reunia histórias

escritas entre 1883 e 1886 para a revista humorística Estilhaços e para o Jornal de

Petersburgo. A recepção pela crítica não foi unânime. Um mesmo aspecto – o fato de

Tchekhov retratar fatos banais do cotidiano – é percebido de maneira ora positiva, ora

negativa: enquanto um crítico menosprezava sua obra, com o argumento de que ‘os

personagens só tomam champanhe’, outro crítico observa: “onde nós não vemos, não

compreendemos e não sentimos nada; onde, para nós, tudo é simples e corriqueiro, é ali

que ele faz toda uma descoberta” 3. Mais adiante, comentarei as visões em jogo nessa

polêmica envolvendo a obra do autor; por hora, desejo apenas registrar que o autor

começa a chamar a atenção da crítica. O próprio Tchekhov menciona esse aspecto em uma

3 IN: ANGELIDES, Sophia. Cartas para uma poética. P. 23.

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carta à amiga Maria Kisseliova, na qual comenta um artigo elogioso a sua obra, de autoria

do crítico L. E. Obolênski: “É provável que ele esteja mentindo, mas, apesar de tudo, estou

começando a ver em mim um mérito: sou o único que, (...) escrevendo bobagens para os

jornais, atraiu a atenção dos críticos orelhudos” 4.

5. O conflito

A década de 1880 também marca o início de sua dedicação à dramaturgia. Sua

primeira peça, que se tornou conhecida no Ocidente como Platonov, parece ter sido

iniciada quando o autor contava com dezoito anos de idade. Em 1884, publica a paródia

Os Trágicos Impuros e os Dramaturgos Leprosos 5. Além de apontar para a verve

humorística de Tchekhov, a publicação desse texto indica, como observa Sophia

Angelides, que “desde muito cedo ele se revela um observador exigente e implacável de

espetáculos teatrais e do trabalho do ator”.

Em 1887 dá-se a montagem de Ivanov, sua primeira peça a ser encenada. Dois

anos depois, ocorre a estréia de uma “versão totalmente nova” da peça. Tchekhov reclama

de problemas de interpretação e fala sobre “o homem russo de seu tempo”. Como o

dramaturgo revela em suas cartas, a intenção primordial da peça era “representar o

arquétipo do homem deprimido, típico da nobreza russa decadente”.

A próxima peça, O Silvano, foi escrita nos anos de 1888-9 e foi mal recebida. Para

Sophia Angelides, a reação negativa à montagem desse texto já delineia com clareza uma

mudança nos padrões estabelecidos para a escrita dramatúrgica.

Na verdade, começava a se delinear uma nova forma de arte dramática, que iria adquirir

sua feição definitiva na segunda metade dos anos 90, quando também surgiria um veículo

adequado para suas peças, o Teatro de Arte de Moscou, dirigido por Stanislávski e

Nemiróvitch-Dântchenko6.

Paralelamente a essas peças mais longas, Tchekhov escreve, no período de 1887-9,

várias farsas de um ato que obtiveram sucesso junto ao público, como O Canto do Cisne,

4 Idem. P. 23.5 A tradução está incluída no livro Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou, de Jacob Guinsburg. 6 Idem. P. 26.

16

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O Urso, O Pedido de Casamento, Trágico à Força, As Núpcias e Tatiana Répina.

6. O autor hesita

Voltando à narrativa, Tchekhov publica, em 1887, a coletânea No Crepúsculo. A

publicação torna-o forte candidato ao Prêmio Puchkin, que lhe seria conferido em outubro

de 1888. No entanto, ‘apesar de lhe atribuírem o prêmio por unanimidade, os membros da

Academia fizeram a ressalva de que Tchekhov “estava desperdiçando o seu talento em

trabalhinhos insignificantes”. O biênio de 1888-9 é marcado por trabalhos mais longos,

como A estepe, Luzes, O aniversário, Uma crise e Uma história enfadonha.

Outra crítica muito recorrente ao autor no período era quanto à ausência de um

posicionamento em seus textos. Tchekhov defendia-se de tais acusações argumentando

que a literatura deve se basear na observação da realidade: “A literatura artística é

denominada artística porque descreve a vida tal como ela é na realidade. Seu objetivo é a

verdade absoluta e honesta” 7. Tchekhov escreve estas linhas ao se defender de críticas

feitas a seu conto O Limo. Nesta carta, ele justifica a descrição, feita naquele conto, do

“lado sujo da vida”, dizendo que o escritor deve ser como um repórter e que por isso “ele é

obrigado a combater seu asco, sujar a sua imaginação com a imundície da vida”.

Entretanto, sua visão da vida não obedece tão rigorosamente às categorias de bom/ ruim,

como podemos observar neste trecho de uma outra carta, na qual comenta sua peça

Ivanov: “Os dramaturgos atuais recheiam as suas peças exclusivamente de anjos, canalhas

e bufões – que se vá então procurar estes elementos em toda a Rússia! Encontrar a gente

encontra, mas não nos aspectos tão extremos quanto são necessários para os dramaturgos.

(...) Eu queria fazer uma extravagância: não criei nenhum malvado, nem anjo algum (...),

não condenei ninguém, não absolvi ninguém...” 8.

Tchekhov foi muito criticado em sua época por não assumir claramente uma

postura ideológica em suas obras. Ele se refere a isso em uma carta de 10 de maio de

1886, em que fornece ao irmão algumas sugestões sobre como escrever, e entre as quais

inclui a “ausência de palavrório prolongado de natureza político-sócio-econômica” 9. Até

7 In: ANGELIDES, p. 58.8 Idem, p. 71.9 P. 52

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certo ponto, tal atitude se reflete em uma certa indefinição, ou irresolução, presente em sua

obra, e isto tanto no plano ideológico – pela ausência de uma postura política mais

explícita – quanto no da construção da narrativa. Os desfechos em aberto, as personagens

que dificultam uma identificação imediata (entre bons e maus, canalhas e anjos), tudo isso

contribuiu para uma estranheza perante sua obra, tanto do público quanto da crítica.

Thomas Mann salienta que “a pergunta ‘o que fazer’ aparece constantemente nos escritos

de Tchekhov” 10, e que

A verdade da vida, à qual o escritor sempre é obrigado, deprecia as idéias e as opiniões.

Ela é irônica por natureza, e facilmente leva a que o escritor, para quem a verdade é o mais

importante, seja censurado pela sua falta de ponto de vista, pela indiferença ao bem e ao

mal e pela falta de ideais e de idéias.11

Thomas Mann, mesmo considerando que Tchekhov confiava que o leitor

completaria o que faltava na narrativa, constata uma angústia provinda da pergunta “o que

fazer”, à qual o escritor se via obrigado a responder “Palavra de honra, não sei”. Tchekhov

temia estar levando o leitor “para trás da luz”, pois na verdade não sabia “responder às

questões mais importantes” 12. Em sua obra, tal fato se verifica na medida em que as

tensões não são resolvidas, mas, ao contrário, é mantida uma irresolução de posições.

Isto não significa uma ausência de postura crítica – pelo contrário. Esta pode ser

verificada em Tchekhov em sua atitude para consigo mesmo, na dúvida e na insatisfação

com que encarava sua obra, e que se traduziram em um autoceticismo, ou ainda, como

observou Mann, em uma modéstia que “em momento algum tem pretensão de qualquer

autorização de grandeza”.

De todo modo, a censura em relação à ausência de um posicionamento crítico

frente às idéias veiculadas em sua obra foi uma constante, e talvez a discussão a esse

respeito tenha culminado quando da publicação de Uma história enfadonha. Angelides

escreve que este conto “vai consolidar a opinião predominante no final dos anos 80 a

respeito de Tchekhov, ou seja, de que lhe falta uma idéia unificadora, uma posição

10 MANN, p. 49.11 Idem, p. 51.12 Idem ibidem.

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definida, em relação aos problemas propostos em sua obra” 13.

Quase todas as obras de Tchekhov foram criticadas por sua falta de uma estrutura

definida (entenda-se com isso a ausência de início, meio e fim como tradicionalmente

entendidos, isto é, exposição/ antecedentes, desenvolvimento, clímax e conclusão/

desfecho), por seu excesso de detalhes incidentais e irrelevantes que impediam a narrativa

de avançar. Por muitos anos, ele continuaria a ser criticado por apresentar uma seqüência

aleatória de episódios que tornava impossível apreender o “quadro mais geral”. Essas

observações, que se relacionam mais diretamente à parte narrativa de sua obra, justificam-

se aqui por dois motivos: em primeiro lugar, porque Tchekhov realiza um movimento

análogo na narrativa e no drama, ao dar menos ênfase à fábula ou à ação e mais ao

procedimento construtivo (logo, mais à forma e menos ao conteúdo). Em segundo lugar,

porque os recursos mencionados não se diferenciam tanto assim, quer apareçam em

contos, quer em peças: desse modo, a forma de construção de personagens é semelhante

tanto em um gênero quanto em outro, assim como temas recolhidos na observação do

cotidiano; e a ausência de um desenrolar nítido e conseqüente dos eventos na narrativa

encontra correspondente na fragilidade do nexo entre os atos nas peças, para mencionar

alguns exemplos.

Os críticos questionavam o padrão narrativo de seus contos, a ausência de

introduções maiores, de conclusões definidas, dos antecedentes de seus personagens ou de

motivos bem caracterizados para suas ações. Especialmente incômoda era a completa

ausência de uma visão de autor. Contudo, esse tipo de reprimenda não era exclusivo dos

críticos, mas lhe vinha inclusive do círculo mais íntimo de amigos – veio, por exemplo, de

Alexei Suvórin, editor do jornal Nóvoie Vrêmia e amigo de Tchekhov. Em uma carta na

qual nitidamente se configura uma censura feita previamente pelo interlocutor, Tchekhov

responde: “Ao exigir do artista uma atitude consciente em relação ao seu trabalho, você

tem razão, mas confunde dois conceitos: a solução do problema e a colocação correta do

problema. Apenas o segundo é obrigatório para o artista” 14. Essa afirmação demonstra a

consciência de Tchekhov em relação às exigências de seu ofício. O autor demonstra como

o trabalho do escritor é circunscrito à observação e descrição dos fenômenos humanos – e

qualquer semelhança com o procedimento científico não é mera semelhança. Em diversos

13 ANGELIDES. P. 34.14 Idem. P. 104.

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trechos de suas cartas, Tchekhov explicita como a medicina influenciou seu trabalho

literário.

Enfim, esta objetividade decorrente, em parte, de suas atividades com a medicina,

lhe rendeu críticas também em relação à falta de posicionamento sócio-político. A reação

de Tchekhov a esta acusação pode ser vista em diversas passagens de suas cartas, entre as

quais cito a seguinte:

Tenho medo daqueles que procuram nas entrelinhas uma tendência e querem me ver

necessariamente como liberal ou conservador. Não sou nem liberal, nem conservador, nem

reformista, nem monge, nem indiferentista. Eu queria ser um artista livre – apenas isto, e

lamento que Deus não me tenha dado forças para sê-lo15.

É curioso contrastar essa crítica quanto à ausência de posicionamento sócio-

político com alguns dados da vida de Tchekhov. No ano de 1890, portanto no auge do

sucesso como contista e dramaturgo, Tchekhov empreendeu uma viagem a Sakalina, uma

ilha perto do mar do Japão que funcionava como colônia penal. Essa viagem foi cercada

de enormes dificuldades. Era preciso cruzar a Sibéria, percorrendo um trajeto que incluía

4000 quilômetros em carruagens. Após três meses de estadia, trabalhando sozinho,

Tchekhov havia feito um recenseamento completo da população da ilha, preenchendo

8000 fichas. Ele falou literalmente com cada um dos habitantes, em suas casas ou nas

celas da prisão. Em 1893, seu livro A ilha de Sakalina foi publicado e, segundo

informação de Sophia Angelides, contribuiu posteriormente para reformas no sistema

carcerário russo.

Em toda sua vida, Tchekhov engajou-se em atividades sociais, principalmente a

partir de 1892, quando adquiriu uma propriedade em Melikhovo, nos arredores de

Moscou. Vivendo no campo, Tchekhov não apenas dedicava-se à medicina como também

financiou as despesas da construção de três escolas nas cercanias e atuou como membro

do conselho local. Ele também participava das questões locais, sem fazer distinção quanto15 Idem. P. 99. Muito embora Tchekhov demonstre uma concepção segundo a qual a opinião do autor nãoimportava e, por isso, não devia constar da obra, há pelo menos um indício de que o autor, de fato, não tinhaum posicionamento político muito definido, conforme se lê neste trecho: “Ainda não tenho uma concepçãopolítica, religiosa e filosófica do universo; mudo-a todo mês e por isso sou obrigado a me limitar apenas àdescrição de como as minhas personagens amam, casam-se, procriam, morrem e de como elas falam”. Aindicação é sumária; no entanto, é valiosa para que se registre a observação da complexidade da obra e dopensamento de Tchekhov, e ainda para que se indique o cuidado que se deve ter ao abordar seu trabalho.

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à dimensão de sua importância, quer fosse combatendo uma epidemia de cólera, cavando

poços, construindo estradas, ou abrindo um posto de correios na estação de trem.

Observando esses fatos, um leitor desavisado poderia estranhar a razão das críticas

feitas a Tchekhov, que se explicam pelo contexto no qual Tchekhov estava inserido.

Sophia Angelides explicita as razões por que o escritor era acusado de indefinição perante

os problemas colocados por sua obra:

A incompreensão que Tchekhov gera nos seus contemporâneos tem raízes na

tradição crítica russa que, desde a década de 1860, com o advento do populismo, avaliava

a obra literária em função das idéias sociais e políticas que transmitia, relegando para um

segundo plano os aspectos literários propriamente ditos16.

O problema, portanto, residia na concepção de literatura que guiava os críticos em

suas análises. O engajamento social, exercido de forma intensa por Tchekhov, era

reclamado nas obras literárias. Quanto a isso, Tchekhov afirmava: “O artista observa,

escolhe, adivinha, arranja: só essas operações já pressupõem, em sua origem, um

problema”. Mas essa não era – ainda – a visão dominante nos meios literários no período

em que Tchekhov compôs seus textos. A análise da obra literária só iria passar por uma

mudança significativa – na Rússia como em todo o mundo ocidental – por volta de 1917,

quando os assim chamados formalistas reconduziram os estudos literários a seus limites

intrínsecos, “fechando os caminhos da investigação extraliterária, que se perdiam em

última instância nos domínios de outras ciências como a história, a sociologia, a psicologia

ou a filosofia” 17. O formalismo russo foi uma decorrência do Círculo Lingüístico de

Moscou, grupo criado em 1914 que tinha o objetivo de promover estudos de lingüística e

de poética. Embora tenha chegado a participar de reuniões do grupo, o poeta Maiakovski

não costuma ser muito associado ao formalismo russo, sendo seu trabalho criador

considerado “mais amplo e mais rico do que suas concepções estéticas”. No entanto, como

Boris Schnaiderman nos dá a chance de verificar no livro A poética de Maiakovski, as

formulações teóricas do poeta são de enorme valor. Especialmente interessante para este

estudo é o ensaio “Os dois Tchekhov”, incluído no volume.

16 Idem. P. 3617 IN: Teoria da literatura – os formalistas russos.

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Nesse artigo, publicado em junho de 1914, Maiakovski desconstrói algumas

imagens cristalizadas de Tchekhov, como a do “cantor do crepúsculo” e a do “defensor

dos humilhados e ofendidos”, entre outras. O poeta inicia seu texto prevendo que os

leitores naturalmente ficarão ofendidos se ele lhes disser que não conhecem Tchekhov, e

adverte: “Ouçam! Vocês, com certeza, conhecem um outro Tchekhov. Os sinais de

respeito de vocês, os epítetos elogiosos, são bons para algum prefeito municipal, (...), para

um deputado à duma, e eu falo de um outro Tchekhov”. Maiakovski enfatiza o fato de que

o Tchekhov de quem ele fala é um escritor; portanto, ele o interessa como artista da

palavra.

Maiakovski alerta para o desvio muito comum de se analisar escritores segundo os

pensamentos e valores que eles apregoam: “Niekrassov pendurava suas linhas, qual

rosquinhas gostosas, no fio das idéias cívicas, Tolstoi, a partir de ‘Guerra e Paz’, pisoteou

a lavra com seus lápti, Gorki passou de Marko aos programas máximos e mínimos”. E

conclui: “Todos os escritores foram transformados em arautos da verdade, em cartazes da

virtude e da justiça”.

Como se vê, a crítica ainda não havia mudado o suficiente na época em que

Maiakovski escreve o texto Os dois Tchekhov, já que é justamente contra aquele tipo de

análise que ele escreve. O poeta critica a leitura que se faz: “Selecionam-se ditados em

Gógol, estudam-se os costumes da Rússia latifundiária em Tolstói, analisam-se os traços

psicológicos de Lénski e de Oniéguin”. Daí o resultado prático ser sempre o mesmo: “logo

que se desgasta a agudez das opiniões políticas de algum escritor, sua autoridade é

mantida não pelo estudo das obras, mas pela força”.

O objetivo de Maiakovski, portanto, é alertar para a leitura estética da obra de

Tchekhov. Essa meta chega a tomar ares de programa quando ele diz: “os jovens lutam

justamente contra esta burocratização, esta canonização dos escritores-guias, que pisam

com o bronze pesado dos monumentos a garganta da palavra nova, que liberta a arte”.

O poeta russo é bastante minucioso em sua argumentação. Ele questiona em que

consiste, afinal, o valor autêntico de cada escritor, e propõe a reflexão sobre o que

distingue o cidadão do artista. Uma forma de chegar à resposta é imaginar uma situação –

“o zelador de um prédio bate numa prostituta”, é a sua sugestão – e pedir que três artistas

diferentes representem esse fato. Maiakovski observa que haverá uma mesma idéia em

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todas essas obras: o zelador é um canalha; mas essa idéia seria mais rapidamente fixada

por um ativista social. Em que, pergunta ele, vão diferir dele os pensamentos dos artistas?

Sua resposta é: quanto aos meios de expressão – o pintor usará a linha, a cor e a superfície;

o escultor, a forma; e o escritor, a palavra. Maiakovski leva a questão mais além: qual será

a diferença na representação desse fato por dois escritores diferentes? Novamente a

resposta é o meio de expressão; ou seja: as palavras. A diferença estará nas palavras

escolhidas por cada um dos escritores.

Tchekhov freqüentemente manifestou concepção semelhante. Em nota de pé de

página, Boris Schnaiderman reproduz o trecho das reminiscências de L. A. Avílova em

que a escritora conta como foi apresentada ao escritor. A pessoa que os apresentou havia

dito a Tchekhov que a jovem também escrevia e que “em seus contos havia algo, em cada

conto aparecia pelo menos um pouco de pensamento”. Avílova conta que Tchekhov

voltou-se para ela e sorriu:

Nada de pensamento! – disse ele – Eu lhe imploro, nada de pensamento. Para quê?

É preciso escrever aquilo que se vê, aquilo que se sente, com sinceridade e de modo

verdadeiro. Perguntam-me com freqüência o que eu pretendia dizer com este ou aquele

conto. Nunca respondo a essas perguntas. Eu não pretendo dizer nada. Minha tarefa é

escrever, e não ensinar! E eu posso escrever a respeito de tudo o que quiserem –

acrescentou sorrindo. – Mandem-me que escreva sobre esta garrafa, e sairá um conto

intitulado “Uma garrafa”. Nada de pensamento. As imagens vivas e verdadeiras criam

pensamento, e um pensamento jamais criará uma imagem.

Expressando raciocínio semelhante, Maiakovski escreve:

Deste modo, o problema do escritor consiste em encontrar a mais viva expressão

verbal a este ou àquele ciclo de idéias. O conteúdo é indiferente, mas, visto que toda época

traz de maneira peculiar a necessidade de uma expressão nova, também os exemplos que

se denominam assunto da obra, e que ilustram as combinações verbais, devem ser

contemporâneos.

Para comprovar esse argumento, o poeta menciona o exemplo de um problema de

matemática em um livro para crianças: “um menino recebeu cinco pêras, outro duas etc.”.

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E argumenta que não ocorrerá a ninguém pensar que o autor do livro estivesse interessado

na “terrível injustiça cometida contra o segundo menino. Não, ele a tomou apenas como

material para exemplificar a sua idéia aritmética”. Maiakovski defende que, da mesma

forma, não há objetivo para o escritor “fora de determinadas leis da palavra”. Ele faz a

ressalva de que não pretende de modo algum defender uma dialética sem finalidade, mas

apenas explicar o processo da criação literária e analisar as causas da influência do escritor

sobre a vida.

Essa influência, que se dá de maneira diversa daquela exercida por sociólogos e

políticos, “explica-se não pela apresentação de coleções prontas de idéias e sim pelo tecer

de cestos vocabulares, nos quais você pode transmitir a outrem qualquer idéia”. Com isso,

Maiakovski estabelece que “a palavra constitui o objetivo do escritor”.

Estabelecido esse princípio, ele passa a enumerar algumas das leis da palavra com

as quais lida o escritor. São três: a primeira diz respeito à mudança da relação da palavra

com o objeto, no sentido de que a palavra deixa de designar um objeto e passa a ser

valorizada em si; a segunda está relacionada à mudança da relação mútua entre as

palavras, já que “o ritmo cada vez mais veloz da existência traçou o caminho do período

principal à sintaxe desgrenhada”; e a terceira estabelece uma mudança da relação com a

palavra, e diz respeito ao “acréscimo de palavras novas ao dicionário”.

Segundo Maiakovski, essas teses gerais são “as únicas que nos permitem acercar-

nos criticamente de um escritor”. Daí surge sua indagação quanto à qualidade de

Tchekhov como criador da palavra. Trata-se de analisá-lo como esteta. Para tanto, ele

recolhe a esmo alguns trechos de contos de Tchekhov, entre os quais cito o seguinte18:

“Depois das panquecas, comemos sopa de esturjão, e depois da sopa, perdiz com molho.

Creme de leite, ovas de peixe frescas, salmão, queijo ralado. Foi tamanho rega-bofe que

meu pai desabotoou às escondidas os botõezinhos sobre a barriga”. Maiakovski nota então

que, “para um ouvido educado, acostumado a aceitar os nomes aristocráticos dos

Oniéguin, Lénski e Bolkónski, todos estes Galínin, Cabróv e Esmagatóv são como um

prego que machuca a carne”. Ele é categórico em seu julgamento: “A literatura anterior a

Tchekhov é uma estufa junto ao palacete luxuoso de um fidalgo”. “Durante quase cem

anos, os escritores, amarrados entre si pelo mesmo tipo de vida, falavam com as mesmas

palavras” – porém, enquanto isso, a vida mudou, e “na vida tranqüila das residências

18 Do conto O triunfo do vencedor.

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campestres irrompeu a multidão polifônica tchekhoviana dos advogados, fiscais de

imposto, caixeiros e damas do cachorrinho”. Para dar conta dessa nova multidão, foi

preciso abandonar diversas palavras e criar muitas outras:

Foram vendidos em leilão, com os gobelins, sob o golpe dos machados que

derrubavam os cerejais, não só a mobília de acaju no estilo de uma dúzia e meia de Luíses,

mas também o guarda-roupa das palavras desgastadas.

E eram tantas!

(...)

E eis que Tchekhov introduziu na literatura os nomes rudes dos objetos rudes,

dando a possibilidade para a expressão vocabular da vida da “Rússia que vende”.

Tchekhov é o autor dos raznotchíntzi19.

Para Maiakovski, Tchekhov foi o primeiro escritor “a exigir de cada um dos passos

da vida a sua expressão vocabular”. Contudo, Maiakovski observa que ser o esteta dos

raznotchíntzi é vergonhoso – não é como ser o esteta de brancas jovens sonhadoras. Mas

isso não teve importância para Tchekhov, que “foi o primeiro a compreender que o

escritor apenas modela um vaso artístico, e que não importa se ele contém vinho ou

porcarias”. Por isso Maiakovski afirma que, “depois de Tchekhov, um escritor não tem o

direito de dizer: não há temas”, concluindo: “não é a idéia que engendra a palavra, mas a

palavra é que engendra a idéia”. Ele afirma que não há nenhum conto de Tchekhov que se

justifique por uma idéia; ao contrário, “cada uma das obras de Tchekhov é resolução de

problemas exclusivamente vocabulares”; “suas asserções não são verdade arrancada da

vida, mas uma conclusão exigida pela lógica das palavras”.

O exemplo que ele fornece para sustentar esse argumento é bastante curioso:

alertando que não está zombando do leitor, ele apresenta como uma das coisas mais

características de Tchekhov o texto “As lebres, fábula para crianças”.

Caminhavam pela ponte

Chineses, em bando alegre,

E na frente, cauda em ponta,

Passaram correndo lebres,

19 O termo designa os intelectuais de origem humilde.

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Os chineses dão um salto

Para apanhá-las. “Ah, ah!”

As lebres fogem pro mato,

Cauda pra lá e pra cá.

A moral? Veja, lá vai:

Se você gosta de lebre,

Ao acordar você deve

Obedecer o papai.

Para Maiakovski, trata-se de uma caricatura de sua própria arte – que, como em

toda caricatura, capta a semelhança de maneira “mais angulosa, mais colorida e

contundente”. Da perseguição da lebre pelos chineses seria possível concluir tudo, menos

a moral “você deve obedecer o papai”, de modo que o surgimento dessa frase no final da

fábula só pode ser justificado pela “necessidade poética interior”.

Maiakovski ainda relaciona o ritmo dos textos de Tchekhov ao ritmo da vida nas

cidades em crescimento – “e aí estão, em lugar dos períodos com dezenas de orações,

frases com umas poucas palavras”. A simplicidade de sua linguagem e o meio de

expressão – o conto curto, condensado – também trazem em si “o grito apressado do

futuro: ‘Economia!’”. Assim, é devido a essas novas formas de expressão do pensamento

e ao que considera uma “abordagem correta dos verdadeiros problemas da arte” que se

pode falar de Tchekhov como um mestre da palavra.

Como indica Maiakovski em seu texto, a obra de Tchekhov tornou-se muito

conhecida e admirada apesar dos desvios de interpretação que sofreu. Adorado como o

“cantor do crepúsculo”, poucas vezes Tchekhov é estudado a partir da renovação que sua

obra propiciou das formas literárias e dos próprios estudos literários (como atesta o livro

de Sophia Angelides sobre as reflexões teóricas presentes nas cartas do autor). Essa

renovação teve um preço, que foi o reconhecimento relativamente tardio do valor de sua

obra – o que se aplica aos dramas tanto quanto às narrativas.

O reconhecimento do drama de Tchekhov também veio tarde. A estréia de A

gaivota, no dia 17 de outubro de 1896 no Teatro Alexandrinsky em São Petersburgo, foi

um fracasso. O autor ficou profundamente perturbado com isso e naquela noite disse a

Suvórin: “Ainda que eu viva mais 700 anos, jamais tornarei a escrever para o teatro... Sou

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um fracasso nessa área”. Mas a razão para o fracasso parece ter sido a técnica

dramatúrgica inovadora, que permaneceu por muito tempo mal compreendida. Mesmo a

partir de 1898, quando o Teatro de Arte de Moscou levou ao palco com grande sucesso A

gaivota (e depois as outras peças de Tchekhov), não é possível dizer que suas propostas

para a cena tenham sido realizadas, o que os constantes desacordos com Stanislavski

deixam claro. Mas o fato é que, a partir das montagens do TAM, a carreira de Tchekhov

entrou em uma nova fase. Suas peças eram encenadas em todo o Império Russo, e cada

nova obra era um evento literário e teatral. A partir de 1899, artigos e críticas sobre suas

obras apareciam na imprensa quase que diariamente.

No entanto, como o texto de Maiakovski alerta, é preciso suspeitar de todo esse

sucesso pois, na maior parte dos casos, ele se baseia em uma interpretação unívoca da obra

de Tchekhov. O próprio texto de Maiakovski, apesar de ilustrar a posição formalista, deixa

entrever um caminho dialético que o poeta, contudo, não chega a seguir. Essa visão se

justifica na medida em que Tchekhov só pôde inovar na linguagem por estar atento às

transformações sociais. Assim, a leitura produtiva de sua obra será aquela que não se

preocupar apenas com a semântica das formas, mas com o conteúdo precipitado em forma,

como ensina a teoria crítica. Nesse sentido, a palavra nova trazida pelo autor – niedotiôpa,

que designa aquele que não serve para nada, ou seja, o imprestável – ilustra com perfeição

o drama russo da época, como veremos no último capítulo deste trabalho. Assim temos,

paralelamente, três processos: um de renovação lingüística, outro de inovação das formas

– dramática e narrativa – e um terceiro de mudança social. Todos esses caminhos se

cruzam em um período – as últimas décadas do século XIX – e em um país – a Rússia –,

mas também na vida e na obra de um homem – Tchekhov – e, se quisermos restringir um

pouco mais o quadro, em uma peça – O jardim das cerejeiras – e em uma palavra – o

imprestável. Tal será, portanto, o nosso quadro de referência.

7. Epitáfio

A partir de 1897, a saúde de Tchekhov deteriorou-se rapidamente, à medida que a

tuberculose ia avançando. Como médico, sabia que seu novo modo de vida precisava

mudar, mas insistiu em trabalhar até suas últimas forças. Seus médicos recomendaram que

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ele fosse para Ialta, então ele vendeu a propriedade de Melikhovo e foi para a Criméia,

onde passou os últimos cinco anos de sua vida. Foi nesse período que escreveu obras-

primas como A dama do cachorrinho, Na ravina, As três irmãs (1900-1), O bispo (1902) e

O jardim das cerejeiras (1903-4). Mas Tchekhov não gostava de Ialta com suas palmeiras

e turistas à-toa. Ele amava o interior e Moscou. Apesar disso, comprou um terreno onde

construiu uma bela casa. Mas a casa tinha um grande defeito, especialmente para um

homem doente: era fria no inverno.

Havia outro motivo para Tchekhov não gostar de ficar em Ialta, e que fazia a

cidade parecer uma prisão para ele: ele estava envolvido com Olga Knipper, atriz do

TAM, e casou-se com ela em 1901. Ela ficava em Moscou, ensaiando no teatro, e

Tchekhov não podia visitá-la com a freqüência desejada: “Não é culpa minha nem sua

estarmos separados, mas dos demônios que plantaram um bacilo em mim e o amor da arte

em você”. Porém, ele sentia muita falta dela e suas cartas estão cheias de apelos para que

ela vá a seu encontro.

Em Ialta Tchekhov sentia falta também do meio literário e de seus amigos, apesar

de que velhos e novos amigos o ajudavam a amenizar a solidão: escritores como Ivan

Bunin e Maxim Gorky e o compositor Sergei Rachmaninov.

Apesar da piora na saúde, Tchekhov ainda se engajava em atividades públicas e de

caridade em Ialta, doando dinheiro para a construção de escolas e hospitais, e redigindo

um apelo que foi publicado em diversos jornais e revistas da Rússia pedindo ajuda para o

tratamento de pacientes de tuberculose. Em 1902 Tchekhov e Korolenko abriram mão do

título de Acadêmico Honorário em protesto à decisão do Czar de recusar a eleição de

Gorky para a Academia por razões políticas.

Na estréia da última peça de Tchekhov, em janeiro de 1904, Moscou rendeu

homenagens ao escritor, mas naquela ocasião ele já estava tão doente que mal podia

suster-se de pé. A comemoração mais parecia uma despedida. No verão sua saúde piorou e

ele e sua esposa foram para o spa de Badenweiler na Alemanha para o tratamento. Ele

faleceu em 15 de julho.

*

28

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Vimos, no início deste capítulo, a situação da Rússia na época em que Tchekhov

nasceu; vejamos agora as transformações pelas quais o país passou durante sua vida, e que

levaram à Revolução no ano seguinte ao de sua morte. A Europa acompanhava o

desenvolvimento do capitalismo, modernizando-se: eleições ao Parlamento, partidos

políticos, concentrações urbano-industriais e a constituição de um funcionalismo

burocrático relativamente qualificado, somados ao desenvolvimento do ensino laico pela

ação do Estado e ao direito de cidadania de que desfrutava a classe trabalhadora em

formação.

E a Rússia? A classe dominante russa procurou adaptar-se defensivamente a uma

Europa em transformação através das reformas de Pedro o Grande, que racionalizou a

estrutura civil e militar do governo, reforçando o seu controle sobre os nobres e burgueses

e o dos latifundiários sobre o campesinato.

Só após a liberação do campesinato da servidão é que o mercado de trabalho iria

contar com mão-de-obra livre, que despertaria regiões como a Ucrânia para a vida

industrial após 1880. As novas indústrias, fruto do investimento estrangeiro, fabricam

equipamentos para o sistema ferroviário, utilizam combustível mineral e são equipadas

com o material mais moderno.

O desenvolvimento industrial na Rússia enriqueceu uma minoria no meio rural e

abalou a estratificação social tradicional pré-capitalista, fazendo crescer a burguesia

industrial e a classe dos mercadores e fazendo surgir um proletariado. Impulsionou o povo

à ação social e política. O Estado russo autocrático e tradicionalista, às vésperas da

Primeira Guerra Mundial, por pressão popular, enveredará pelo caminho do

constitucionalismo ocidental.

Enquanto isso, aumenta o número de proletários: de 1 189 000 em 1879, passaram

a 2 208 000 em 1903. Esse proletariado é composto em sua maioria por migrantes das

aldeias que já não tinham terras para serem cultivadas.

A aceleração do desenvolvimento econômico irá propiciar o crescimento dos

setores médios e da intelligentzia. Nessa estrutura social complexa, a intelligentzia cumpre

o papel de portadora de uma cultura laica, secular, não-religiosa, que já em 1825

desencadeará a revolta Dezembrista. Sob Nicolau I (1825-55), a Universidade de Moscou

torna-se um centro de debates político-sociais, liderados por intelectuais de origem nobre,

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mas contando com a participação de plebeus, formando uma espécie de proletariado

intelectual. Após 1860, muitos integrarão os movimentos revolucionários.

Como vimos, o próprio Tchekhov foi um desses intelectuais – no entanto, a

revolução a que esteve ligado não foi aquela ocorrida em 1905, que alterou completamente

a estrutura social do país. A revolução empreendida por Tchekhov ocorreu no âmbito na

literatura – nas artes do conto e do teatro. Ainda assim, essa mudança reflete as

transformações que ocorriam no período e que se precipitaram na forma de sua obra.

Neste capítulo, procurei sugerir o modo como a vida e a obra de Tchekhov estão

atravessadas pelas linhas de força do período em que o autor viveu. Esse entroncamento

pode ser percebido tanto nos eventos de sua vida como nos textos que compõem sua obra.

É por isso que, em uma carta na qual sugere a uma amiga o tema de um conto, podemos

ver referências à própria vida do autor – mas também ao contexto social mais amplo.

O que os escritores de origem nobre receberam gratuitamente da natureza, os

raznotchíntsi compram com o preço de sua juventude. Escreva, pois, um conto sobre um

jovem, filho de servo, antigo vendedor de armazém, corista de igreja, ginasiano e depois

universitário, que foi educado para respeitar a hierarquia, para beijar as mãos dos popes e

para acatar as idéias alheias, que agradecia cada pedaço de pão, que foi muitas vezes

açoitado, que ia às aulas sem galochas, que brigava, que torturava os animais, que gostava

de almoçar na casa dos parentes ricos, que era hipócrita diante de Deus e dos homens, sem

nenhuma necessidade, simplesmente por ter consciência de sua própria insignificância;

escreva como esse jovem espreme, gota a gota, o escravo que tem dentro de si, e como ele,

ao acordar numa bela manhã, sente que em suas veias já não corre o sangue do escravo, e

sim o de um verdadeiro homem...

A história desse jovem que “espreme, gota a gota, o escravo que tem dentro de si”,

é, em grande parte, a própria história de Tchekhov, que espremeu o sangue escravo que

trazia no sangue e tornou-se um homem livre. Mas ela também pode ser vista como a

história da geração que aboliu a servidão na Rússia – e, poucas décadas depois, o

czarismo. Descreve, assim, toda uma visão de mundo que desmorona, para dar lugar a

uma vida que deveria ser mais livre e verdadeira. Em certo sentido, esse também é o

percurso percorrido em O jardim das cerejeiras: há um mundo velho que precisa ser

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derrubado para abrir caminho aos novos tempos. Contudo, a questão que resta é saber se

esse novo mundo irá superar positivamente o antigo, dando origem a “um verdadeiro

homem”. Como sabemos, essas ilusões foram negadas pelos eventos históricos que se

desenrolaram a partir da morte do autor; porém, para nos atermos aos limites dessa

análise, o que importa são dois registros pontuais: por um lado, a obra de Tchekhov como

um retrato ao mesmo tempo sombrio, amargo e irônico das condições da vida russa em sua

época; por outro, sua última peça como um sinal de esperança nos ventos da mudança que

sentia chegar. Passemos, então, à sua análise.

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A QUEDA DO JARDIM:

impressões da Rússia no século XIX

Em sua última peça, Anton Tchekhov nos apresenta um quadro da sociedade russa

pré-revolucionária. Ele pinta, em tons por vezes suaves, por outras sombrios, os

personagens que marcaram uma importante mudança social na Rússia de meados do

século XIX: a aristocracia rural em seus últimos dias e a burguesia capitalista em

ascensão. A referência à pintura que o termo quadro implica não é gratuita: a expressão

também integra o vocabulário cênico, designando um tipo especial de representação da

ação diferente do ato e da cena: se estes se aplicam mais ao esquema de entrada e saída

dos personagens, a estruturação em quadros está mais ligada à unidade espacial de

ambiente, caracterizando um meio ou uma época. Assim, o quadro constitui-se como uma

unidade temática e não de ação; relacionado à inserção de elementos épicos no drama,

fornece ao dramaturgo “o âmbito necessário a uma investigação sociológica” 20.

Em ensaio sobre a peça21, Edward Braun indica que o declínio dos proprietários

rurais era um problema crucial na Rússia do século XIX. Segundo o autor, por volta de

1859, um terço das propriedades e dois terços dos servos pertencentes a proprietários

rurais haviam sido hipotecadas ao Estado ou a bancos privados. O Ato de Emancipação de

1861 havia sido concebido justamente para solucionar essa crise através dos pagamentos

de amortização que os servos deviam fazer pelas terras que seus antigos senhores

transfeririam para eles. Em conseqüência, porém, os proprietários rurais não podiam mais

contar com o trabalho, com os instrumentos nem com os animais de seus antigos servos.

Na década de 1870, os proprietários ainda possuíam um terço de toda terra

cultivável, mas em 1905 sua parcela havia sido reduzida a 22 por cento – um terço dos

quais era alugado a camponeses. Poucos proprietários rurais tinham alguma noção de

agricultura ou contabilidade, e muitos passavam longos períodos distantes de suas

propriedades, deixando seus negócios nas mãos de gerentes corruptos ou incompetentes

(como em O jardim das cerejeiras, em que a administração da propriedade é dividida

entre Vária, a filha adotiva de 24 anos, e Epikhodov, o contador da família). Como

resultado dessa negligência, muitas propriedades – inclusive as de famílias tradicionais –

20 PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. P. 313.21 BRAUN, Edward. “The Cherry Orchard” IN: The Cambridge Companion to Chekhov.

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foram hipotecadas para o pagamento de dívidas longamente acumuladas.

Durante o reinado de Alexandre II, medidas fiscais de emergência foram tomadas

para conter a erosão dessa classe, da qual dependia toda a estabilidade econômica e social

do império. Entretanto, elas não foram capazes de impedir que vastas extensões de terra

passassem para as mãos de uma pequena minoria de empresários – muitos deles servos

emancipados e seus filhos, que souberam aproveitar as condições de crédito disponíveis

no recentemente estabelecido Banco dos Camponeses e rapidamente transformaram os

negócios em um modo de vida.

Braun assinala que o tema da falência das propriedades rurais e da ascensão da

nova classe empreendedora era comum na literatura e na dramaturgia pós-emancipação,

apesar de não ter inspirado obras relevantes, e que o tema inclusive aparece em diversas

histórias de Tchekhov. O crítico aponta ainda que Tchekhov esteve em uma posição que

lhe permitiu observar de perto a incapacidade e a incompetência dos proprietários rurais

durante os seis anos em que teve uma propriedade de 500 acres em Melikhovo, ao sul de

Moscou, adquirida em 1892. Nesse período, ele também testemunhou o declínio gradual

da propriedade Babkino, pertencente a seus antigos amigos Alexei e Maria Kiselev. Em

dezembro de 1897, Maria escreveu a Tchekhov: “Em Babkino muitas coisas estão em

estado de colapso, desde os proprietários até as construções... O próprio senhor tornou-se

uma velha criança, amável porém completamente desmoralizada”. Três anos depois, a

propriedade foi finalmente vendida, e valorizou-se muito devido à construção de uma

linha ferroviária que vinha de Moscou e fazia com que as terras fossem uma locação ideal

para a construção de dachas para os habitantes da cidade. Alexei Kiselev tornou-se diretor

de banco em uma cidade vizinha – exatamente como Gaiev, e com o mesmo salário de

seis mil rublos.

Como a leitura da peça revela, Tchekhov se inspirou na situação do casal de

amigos para compor seu texto. No entanto, ainda que apresente semelhanças com essa

condição pontual, acompanhada de perto por Tchekhov, O jardim das cerejeiras acaba

retratando toda a conjuntura social e econômica da Rússia nas últimas décadas do século

XIX. Foi o que levou o diretor russo Nikolai Petrov a afirmar:

Tchekhov considerou O jardim das cerejeiras uma comédia, mas em essência ela é um

romance, um grande romance que abrange todo o período que vai de 1861 a 1905 e

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descreve a vida na Rússia antes do Czarismo entrar em colapso.

Todavia, cabe aqui fazer uma ressalva: mesmo apresentando um painel de época –

ou, como eu havia sugerido anteriormente, mesmo que apresente uma forma própria para a

representação das mudanças sociais ocorridas no período –, não há denúncia social na

peça. Tchekhov não simpatiza com nenhum personagem; não julga, não condena, nem se

apieda. As modificações na sociedade não são apresentadas à maneira das peças de tese,

nas quais se expõe um problema e se debatem possíveis soluções, nem do drama

naturalista, no qual se busca uma reprodução fotográfica da realidade. Se a analogia com a

fotografia cabe aqui, tal se dá não tanto por sua relação com a estética teatral do

naturalismo como por sua proximidade com um movimento da pintura, o impressionismo.

Pois o que o autor nos apresenta não é um estudo sociológico, mas impressões da

aristocracia decadente, da burguesia emergente e dos camponeses que começavam a tomar

consciência de sua situação. Tchekhov aborda a realidade com os meios exclusivos da

literatura. Os conflitos entre essas classes são apresentados principalmente através da

exploração de um recurso próprio do drama: o tempo. Ao confrontar a lentidão da

aristocracia e sua inépcia para a ação com a agilidade da burguesia, Tchekhov materializa

os ritmos diferentes das duas classes e capta a fugacidade desse período de transição, em

um procedimento semelhante àquele dos pintores impressionistas.

Captar o transitório e o fugaz foi o que caracterizou o impressionismo como escola

de pintura. Frente ao surgimento da fotografia como “novo instrumento de apreensão

mecânica da realidade”, a pintura precisou redefinir sua essência. Daí a afirmação de

Giulio Carlo Argan de que o impressionismo significou, para as artes plásticas, “a

superação simultânea do ‘clássico’ e do ‘romântico’ enquanto poéticas destinadas a

mediar, condicionar e orientar a relação do artista com a realidade” 22. Buscando libertar a

percepção de qualquer preconceito ou convencionalismo, o impressionismo pretendia

manifestar a realidade em sua plenitude de ação cognitiva. Na prática, isso significava

registrar as variações produzidas nas formas pela incidência da luz, baseando-se

principalmente no emprego das cores e de suas relações e contrastes.

No caso de Tchekhov, observa-se que representa as relações entre seus

22 ARGAN, Giulio Carlo. “A Realidade e a Consciência”. IN: Arte Moderna. São Paulo: Companhia dasLetras, 1992. P. 75.

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personagens de forma matizada, captando as contradições de um processo modernizador

que se pretendia implantar em um país atrasado, quase feudal, semelhante em muitos

pontos ao Brasil no mesmo período23. Essa fluidez da representação relaciona-se ao que

Argan escreve analisando a técnica de Manet:

Assim como não há distinção de positivo e negativo entre as coisas e o espaço,

também não há distinção de positivo e negativo entre luz e sombra: a sombra é apenas

uma mancha de cor que se justapõe às outras, mais ou menos luminosas. Existem relações

entre todas as manchas de cor, cada uma influencia e é influenciada pelas outras24.

Como examino a seguir, a descrição efetuada por Argan mostra-se bastante

adequada ao modo como Tchekhov leva à cena as relações entre os personagens. Pois

assim como Manet abole oposições muito rígidas entre luz e sombra, ou entre positivo e

negativo, Tchekhov recusava em suas peças retratar personagens de forma maniqueísta,

como bons ou maus. Logo, da mesma maneira como, nos quadros de Manet, há

determinadas relações sutis entre as manchas de cor, em que “cada uma influencia e é

influenciada pelas outras”, nos textos de Tchekhov para teatro, o modo como cada

personagem é retratado é dado a partir de sua relação com os demais. Portanto, são essas

áreas de penumbra que nos cabe analisar.

A peça tem início no dia em que Liubov Andreievna Ranievskaia, proprietária de

terras, está voltando do estrangeiro, após cinco anos de ausência. No início da peça,

Duniacha, sua criada, e Lopakhin, comerciante e amigo da família, estão esperando Liuba

em sua propriedade.

1. LOPAKHIN

“Bem, graças a Deus, o trem finalmente chegou. Que horas são?”. Já na primeira

fala da peça, Lopakhin demonstra sua mentalidade capitalista na preocupação com o

aproveitamento produtivo do tempo. Entre todos os personagens do texto, Lopakhin

23 Roberto Schwarz chamou atenção para esse paralelo em seu ensaio “As idéias fora de lugar”. IN: Aovencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: DuasCidades; Ed. 34, 2000.24 ARGAN, op. cit., p. 97.

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parece ser o único a ter consciência desse dado da realidade. Isso aparece na peça através

da freqüente rubrica “olha para o relógio” e de boa parte de suas falas. Quando Liuba

chega, ele participa da recepção por um curto período. Durante esse intervalo, comenta-se

que em breve a casa deverá ser leiloada para o pagamento de dívidas. Como não há tempo

a perder, ao se despedir, Lopakhin anuncia seu plano para que a família não perca a

propriedade: lotear o jardim das cerejeiras em terrenos para a construção de casas de

campo. No entanto, a idéia é rejeitada tanto por Liuba quanto por seu irmão, Gaiev.

LOPAKHIN – A senhora alugaria os terrenos a veranistas e poderia pedir-lhes, por baixo,

vinte e cinco rublos ao ano por hectare. Se começássemos já, garanto-lhes que quando

chegasse o outono não haveria um único pedaço de chão por alugar, cada pedaço

encontraria o seu dono rapidamente. Pois então, minhas congratulações, os senhores estão

salvos. O lugar é uma beleza, a posição é adequada e o rio é profundo. É claro, primeiro

teria de pôr tudo em ordem, demolir as construções decrépitas, por exemplo esta casa

velha, que já não vale mesmo nada... e também o jardim de cerejeiras deveria ser

derrubado...

LIUBOV ANDREIEVNA – Cortar as minhas cerejeiras? Ai, minha alma, perdoe-me, mas

o senhor não sabe mesmo o que está dizendo. Em toda a região não há outro jardim de

cerejeiras tão grandioso quanto o nosso.

LOPAKHIN – A grandiosidade desse jardim resume-se ao fato de ele ser tão grande. Mas

a produção de cereja é boa só a cada dois anos, quando muito, e mesmo então não se sabe

o que fazer com ela. Ninguém a compra!

GAIEV – Mas esse jardim é mencionado até nas enciclopédias!

LOPAKHIN – (olha o relógio) Por favor, se não encontrarmos uma solução logo, no dia

22 de agosto era uma vez o jardim das cerejeiras e todo o resto... pertencerá a quem der

mais por ele! Pois então, por que não se decidem logo? Acreditem, não há outra solução,

eu lhes asseguro!25

O diálogo é exemplar da freqüência com que Lopakhin faz uso de expressões

temporais. Somente nesse pequeno trecho, ele utiliza as palavras já, rapidamente e logo

(duas vezes), o que mostra que não é difícil encontrar em suas falas ao longo de toda a

peça expressões ou construções semelhantes, como sem demora, sem perda de tempo ou

25 TCHEKHOV, Anton. Teatro II. As Três Irmãs. O Jardim das Cerejeiras. São Paulo: Veredas, 1998. P.77.

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Assim que se decidirem de vez (...) o dinheiro começará a jorrar sem parar. Em todos

esses exemplos, fica claro que o tempo todo Lopakhin faz projeções, perscrutando e

planejando o futuro26.

Outra questão digna de nota nessa passagem é que o apego de Liuba a sua

propriedade não se dá pelo valor monetário das terras, nem apenas pelo sentimental, mas

também por seu valor estético. Algo semelhante ocorreu na Inglaterra do século XVIII,

como identifica Raymond Williams, em O Campo e a Cidade27. O crítico observa que

começa a haver nesse período uma separação nos modos de se conceber a idéia de

Natureza, que passa a ser encarada ou como posse de uma terra ou como paisagem. Esse

último aspecto é enfatizado por Liuba e seu irmão, ao passo que Lopakhin apresenta a

visão do capitalista que vê a terra como recurso a ser explorado, ou ainda como produto a

ser trabalhado e vendido com vistas ao lucro. Nessa mudança de mentalidade identificada

por Williams, Lopakhin representa

a nova consciência, ainda que apenas de uma minoria, surgida justamente na época em que

a transformação intencional da natureza, não apenas da água e da terra mas também das

matérias-primas e dos elementos essenciais, iria entrar numa nova fase, nos processos que

hoje denominamos industriais.28

Lopakhin percebe os ventos da mudança que se aproxima – uma mudança

econômica mas com amplas ressonâncias sociais, e que, como todo processo

modernizador, talvez tenha se refletido com maior evidência na paisagem do país (daí

também a escolha muito apropriada de Tchekhov do jardim como cenário e título da

peça). A fala a seguir ilustra bem a percepção de Lopakhin das mudanças em curso:

LOPAKHIN – Até agora havia só senhores e camponeses na zona rural, mas agora estão

chegando aos montes os veranistas. Hoje até a menor das cidades está cercada de casas de

campo, e não dou vinte anos para que haja tanta casa de veraneio por aqui que não irá

sobrar lugar para nós. Por enquanto a gente da cidade se contenta em vir aqui para beber

26 De modo bem parecido à descrição que Marshall Berman faz de Fausto como empreendedor em Tudoque é sólido desmancha no ar.

27 WILLIAMS, Raymond. “A linguagem verde”. IN: O campo e a cidade: na história e na literatura. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1989. P. 177.28 Idem, p. 178.

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chá... passar uns dias sentado na varanda de sua casa de campo... mas pode muito bem

acontecer de eles começarem a se ocupar da agricultura no seu hectare... e então que

paraíso não será o seu jardim das cerejeiras!

GAIEV – (indignado) Que idéia sem pé nem cabeça!

A modernização do país, ao substituir os métodos artesanais de produção pelos

industriais, significou o fim de um período marcado por uma relação intrínseca do homem

com a terra. Na peça, essa época de ouro, localizada no passado, é trazida à lembrança por

Firs, um velho criado da casa:

FIRS – Em outros tempos, uns quarenta ou cinqüenta anos atrás, a cereja, uma vez

colhida, era seca, faziam-se conservas, licores e geléias, e sempre (...) havia tanta cereja

seca que nós mandávamos carroças e mais carroças cheinhas para Moscou e Kharkov. E o

dinheiro não parava de chegar! E como era gostosa aquela cereja seca, tão macia, saborosa

e doce... E cheirosa... Havia um segredo para prepará-la.

LIUBOV ANDREIEVNA – E onde parou esse tal segredo?

FIRS – Foi esquecido, hoje ninguém mais recorda... 29

Esse segredo nos remete à fábula narrada por Walter Benjamin em “Experiência e

Pobreza”, segundo a qual um velho, “em seu leito de morte, revela a seus filhos a

existência de um tesouro escondido em sua vinha”. Os filhos só precisariam cavar, e o

fazem, sem encontrar nada. Porém, chega o outono e a vinha produz mais do que todas as

outras da região. “Só então eles percebem que o pai lhes havia legado uma experiência: a

bênção não se esconde no ouro, mas no trabalho”. A fábula com que Benjamin abre seu

ensaio ilustra uma época em que a experiência era passada dos mais velhos aos mais

jovens. É esse o sentido da lembrança de Firs. À pergunta de Liuba, “E onde parou tal

segredo?”, faz eco a de Benjamin no ensaio: “Mas para onde foi tudo isso?”. Ele continua:

Quem ainda encontra pessoas que saibam contar histórias como devem ser contadas? Por

acaso os moribundos de hoje ainda dizem palavras tão duráveis que possam ser

transmitidas de geração em geração como se fossem um anel?

29 TCHEKHOV, op. cit., p. 78.

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Também para os personagens de Tchekhov “a cotação da experiência baixou”

frente ao “desenvolvimento monstruoso da técnica”. Benjamin denuncia as conseqüências

desse desenvolvimento: a pobreza de experiência e a gradual perda do patrimônio da

humanidade, o qual muitas vezes empenhamos “por um centésimo de seu valor, para

receber em troca a moeda miúda do ‘atual’”. E se o patrimônio desses personagens

constitui-se de “construções decrépitas”, de uma casa velha e de um jardim de cerejeiras

que não serve mais para nada, a não ser para a apreciação estética de seus proprietários,

ele também é formado por bens espirituais como um segredo que se passava de geração

em geração.

Esse é o patrimônio que está em jogo, cuja perda inevitável os personagens se

recusam a admitir. Por se recusarem a enfrentar as questões de seu tempo, esses

personagens dão continuidade à lentidão do tempo rural. Nesse sentido, a fala de Firs

sobre as cerejas é importante porque mostra o quanto esses personagens estão presos a um

passado do qual eles próprios e a ‘construção decrépita’ onde moram constituem os

últimos vestígios.

Entretanto, Lopakhin tenta chamar os amigos à realidade e à urgência dos tempos

modernos: “Está mais que na hora de tomar uma decisão. O tempo não espera. Querem o

loteamento ou não querem? Preciso de uma resposta o mais breve possível: sim ou não?

Apenas uma palavra!”. Ao que Liuba responde: “Tem tempo...” 30. O comerciante vai

ficando mais e mais angustiado frente à indecisão dos colegas:

LOPAKHIN – Perdoem-me, mas gente tão leviana como os senhores, tão estranha e pouco

prática, eu nunca vi. Expliquei-lhes com bastante clareza, sem deixar dúvidas, que a sua

propriedade será leiloada... e parece que isso não entrou na cabeça dos senhores...

LIUBOV ANDREIEVNA – Mas o que podemos fazer? Aconselhe-nos!

LOPAKHIN – Dia após dia não faço outra coisa senão dar-lhes conselhos. Dia após dia

falo e falo, cem vezes a mesma coisa. O jardim das cerejeiras e a gleba à beira do rio

devem ser loteados e alugados aos veranistas, e agora mesmo, sem perda de tempo. O

leilão está muito próximo! Compreendem?! Assim que se decidirem de vez pelo

loteamento o dinheiro começará a jorrar sem parar, e os senhores estarão salvos!

LIUBOV ANDREIEVNA – Casas de veraneio, veranistas – perdoe-me, mas isso é algo

tão vulgar!...30 Idem, p. 88.

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GAIEV – Estou totalmente de acordo com você, mana!

LOPAKHIN – Ouvindo isso tenho vontade de chorar ou de quebrar tudo, ou de ter um

ataque! Não posso mais! Vocês me atormentam.

Ele faz menção de ir embora, mas Liuba lhe pede que fique, alegando que sua

presença a tranqüiliza: “Estou sempre temendo algo... algo terrível... como se a casa

estivesse preste a desabar sobre as nossas cabeças” 31. Mas ela está, de fato. Chama

atenção nessa passagem a diferença de atitudes de Lopakhin, por um lado, e por outro, de

Liuba e seu irmão. Aquele, acostumado ao trabalho, tem um senso de oportunidade

ignorado pelos proprietários, desacostumados à atividade. O ritmo febril da ação de

Lopakhin é enfatizado na peça quando o personagem pergunta que opinião tem a seu

respeito Trofimov, um estudante também amigo da família. Este lhe diz: “O senhor é um

homem rico, logo mais será milionário. E assim como no metabolismo da natureza é

necessário uma fera para devorar tudo o que atravessa o seu caminho, assim também o

senhor é necessário. (Todos riem.)” 32.

Com o juízo emitido por Trofimov, poderíamos dizer que Tchekhov usa pinceladas

duras e bem definidas na caracterização de Lopakhin. Porém, sua figura é matizada por

um dado biográfico significativo. Em sua conversa inicial com Duniacha, a criada,

Lopakhin relata um episódio ocorrido em sua juventude no qual Liuba o teria chamado de

camponesinho. O personagem reflete então sobre o termo que o define:

Camponesinho... Meu pai era camponês, é verdade, mas eu uso colete branco e sapato

amarelo. Como um porco assando numa confeitaria... Tenho dinheiro de sobra, mas,

verdade seja dita, mesmo assim continuo um camponês. (Folheia o livro.) Este livro, por

exemplo: me ponho a lê-lo e não entendo patavina... Adormeci enquanto lia. 33

A fala suscita um tópico interessante para análise, pois demonstra que, em certo

sentido, também para ele é como se o tempo não passasse. Embora as reflexões de

Lopakhin não contrariem a impressão inicial segundo a qual ele é o personagem que

apresenta uma consciência mais aguda do passar do tempo, elas colocam em questão a

31 Idem, pp. 89-90.32 Idem, p. 93.33 Idem, pp. 69-70.

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idéia de que ele seja aquele que reage mais prontamente às mudanças em curso. Edward

Braun, no ensaio já citado, fornece informações que podem ser úteis para a exploração

desse ponto. O crítico informa que o desenvolvimento do personagem Lopakhin foi mais

custoso para Tchekhov do que qualquer outro na peça. Originalmente, o dramaturgo

atribuira o personagem a Stanislavski, na esperança de que sua postura e presença de palco

ajudassem a desfazer a imagem de Lopakhin como o estereótipo do self-made man. No

entanto, temendo que o papel estivesse além de suas capacidades, Stanislavski preferiu

interpretar o “aristocrata” Gaiev e deixou Lopakhin a cargo de Leonidov, que ele

considerava “delicado por natureza” 34.

Além desse dado, que revela o quanto Tchekhov cercava a composição desse

personagem de cuidados, Braun indica que, ao longo dos ensaios, o autor realizou uma

série de mudanças no texto para trazer à tona o aspecto sensível da personalidade de

Lopakhin. Em especial, ele deu maior ênfase à sua preocupação em ajudar Liuba e Gaiev a

salvar a propriedade, e eliminou um segundo empréstimo de 40 000 rublos feito por

Lopakhin a Liuba. Ele também deixou clara a dimensão dos verdadeiros sentimentos de

Lopakhin por Liuba ao adicionar no primeiro ato esta fala:

Eu devo tomar o trem das cinco para Kharkhov... é uma pena... Gostaria tanto de ter

podido conversar mais com a senhora... de contemplá-la. (...) Seu irmão, Leonid

Andrêievitch, diz que eu sou um camponês, um sujeito bronco... Para mim tanto faz. Ele

pode falar... O que importa é que eu continuo merecendo a confiança da senhora, como

antigamente... e que se digne olhar para mim com esses olhos assombrosos... como

antigamente! Oh, Deus! Meu paizinho foi outrora servo de seu digno paizinho e de seu

avô. Mas a senhora me fez um bem tão grande que eu esqueci tudo e gosto da senhora do

fundo da alma, como a uma irmã... Mais que a uma irmã.

Braun observa que o próprio fato de que Lopakhin pode ousar se aproximar dessa

maneira da filha do patrão de seu pai é um indicativo do colapso das velhas barreiras

sociais – assim como a incapacidade de Liuba de perceber essa aproximação mostra quão

apegada ela ainda está a sua própria classe. Embora Lopakhin seja tratado com respeito

34 A troca de papéis não agradou Tchekhov, como ele deixa claro em uma carta de 24 de março de 1904 aOlga Knipper: “Fico feliz em saber que Khalyutina está grávida. É uma pena que o mesmo não possaacontecer com alguns dos homens do elenco, como Alexandrov e Leonidov”.

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por Epikhodov e Duniacha, e xingue Gaiev e trate Vária de igual para igual, ele mantém

uma consciência aguda de suas origens camponesas: ele permanece lúcido em seu terno

branco e seus sapatos amarelos, e profundamente envergonhado de sua falta de instrução.

Como Braun indica, Lopakhin celebra seu triunfo no leilão com as maneiras brutas de seu

pai, mas quando percebe a tristeza de Liuba, consola-a com delicadeza, censurando-a com

cuidado por não ter dado ouvido a seus conselhos e desejando de modo sentido que

possam mudar “suas vidas miseráveis”. O crítico registra as anotações de Stanislavski em

seu diário de ensaio referentes a essa passagem:

Ele chora. Quanto mais sincero e terno ele for, melhor. Então por que Lopakhin, que tem

uma alma sensível, não salva Liuba? Porque ele é um escravo do dogma comercial, porque

seria ridicularizado por seus amigos empresários. Les affaires sont les affaires.

Braun ainda aponta um outro sinal da preocupação de Tchekhov em transmitir esse

dualismo da personalidade de Lopakhin. Trata-se do acréscimo, no Quarto Ato, na

seguinte fala de Trofimov: “Apesar de tudo, gosto de você. Você tem dedos finos e

sensíveis, como os dedos de um artista. Você também tem uma alma sensível”. Lopakhin

responde a essas palavras reassumindo um comportamento brutalizado, pois ofende a

dignidade de Trofimov ao lhe oferecer um empréstimo.

De acordo com a análise de Braun, essas mudanças abruptas no comportamento de

Lopakhin – que passa do atencioso e sensível ao desajeitado e ofensivo, do compassivo ao

triunfal – refletem uma persona lutando para se adaptar a um papel radicalmente

transformado. Em contraste, Liuba e Gaiev simplesmente não aceitam as mudanças,

mantendo os hábitos e atitudes de uma época que está no fim.

De fato, advindo das classes camponesas, Lopakhin reconhece que o fato de ter

enriquecido não lhe garantiu acesso imediato às classes superiores. A burguesia tinha

adquirido dinheiro, mas não a educação, a cultura ou o status social da aristocracia. Daí

sua reação apoteótica quando, no fim da peça, arremata o jardim das cerejeiras no leilão.

Sua euforia não deve ser lida como uma vingança, já que todo o tempo ele tentou ajudar

sua amiga, mas como um desrecalque de classe, pelas humilhações que ele e seus

ascendentes haviam sofrido ao longo da vida. Liuba está oferecendo uma festa em sua

casa quando Lopakhin chega do leilão e conta a todos que arrematou a propriedade.

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LOPAKHIN – Eu o comprei. (Pausa. Liubov Andreievna está desconsolada; segura-se à

mesa para não cair. Vária desata da cintura o molho de chaves, atira-o ao chão no meio

da sala e sai.) Fui eu quem o comprou... sim... Perdoem-me os senhores e as senhoras...

mas está sendo um pouco difícil falar, tenho a cabeça zonza... (Ri.) [Ele conta como foi o

leilão e completa:] O jardim das cerejeiras agora é meu! É meu! (Ri às gargalhadas.) Meu

Deus, o jardim das cerejeiras agora é meu! Por que não dizem que estou bêbado, que

enlouqueci, que tudo não passa de um sonho? (Bate com o pé no chão.) Não riam de

mim!... Se agora meu pai e meu avô pudessem sair do túmulo e ver até onde o seu

Iermolai chegou! Iermolai, que tanto apanhou, que mal aprendeu a ler e a escrever, que

corria descalço na neve em pleno inverno! Iermolai comprou a propriedade mais bonita, à

qual nada se iguala neste mundo! Comprei as terras onde outrora meu pai e meu avô eram

servos... escravos que nem ao menos na cozinha podiam entrar... é possível isso?...

Decerto estou dormindo e tudo não passa de um sonho... é apenas fruto da imaginação. Da

imaginação, que é coberta pelas trevas do desconhecido. (Pega no assoalho as chaves e

sorri comovido.) Vária atirou as chaves, quis mostrar que já não é mais a dona da casa.

(Faz as chaves tilintarem.) Está bem! (Ouvem-se os músicos afinando os instrumentos.)

Ei, vocês aí, toquem! Quero ouvi-los! Venham todos aqui!... Vejam como as machadadas

de Iermolai Lopakhin derrubam as árvores do jardim das cerejeiras, como as cerejeiras

caem aos montes!... Construiremos casas de veraneio aqui... os nossos netos e os netos

deles conhecerão uma nova vida aqui... Músicos, toquem! (A música começa, Liubov

Andreievna desaba numa cadeira e chora amargamente.)

LOPAKHIN – (num tom de censura) Mas por que não quis me ouvir? Pobrezinha,

querida, agora já não dá mais para voltar atrás. (Entre lágrimas.) Oh, que tudo passe o

mais rápido possível; que essa nossa pobre e infeliz vida mude de alguma forma, e o mais

rápido possível...

Entretanto, ainda aqui Tchekhov deixa uma indicação da complexidade dessas

relações. Do mesmo modo que a burguesia havia traído os ideais que a levaram a

empreender a Revolução Francesa, e que os líderes partidários mais tarde fizeram o

mesmo na Revolução Russa, no momento em que arremata o jardim, Lopakhin dá sinais

de que trairá sua classe de origem, mantendo o mesmo tratamento dispensado aos

camponeses pelos antigos senhores:

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Ei! O que é isso? Músicos, toquem mais alto! Daqui para frente todos dançarão conforme

a minha música. (Irônico.) Chegou o novo proprietário, o novo dono do jardim das

cerejeiras! (Tropeça numa cadeira e quase derruba um candelabro.) Pago tudo!

Desse modo, Lopakhin traz à cena as complexidades da “modernização que

acompanha o Capital”, como indica Roberto Schwarz, referindo-se ao Brasil captado por

Machado de Assis em seus romances. É o próprio ensaísta quem indica as relações entre o

Brasil e a Rússia e suas respectivas literaturas nesse período:

O sistema de ambigüidades assim ligadas ao uso local do ideário burguês – uma das

chaves do romance russo – pode ser comparado àquele que descrevemos para o Brasil. São

evidentes as razões sociais da semelhança. Também na Rússia a modernização se perdia

na imensidão do território e da inércia social, entrava em choque com a instituição servil e

com seus restos (...). Na exacerbação deste confronto, em que o progresso é uma desgraça

e o atraso uma vergonha, está uma das raízes profundas da literatura russa. 35

O seguimento da análise deverá reforçar esse paralelo rapidamente mencionado

entre traços de duas culturas tão distantes no espaço, porém tão próximas na dinâmica.

Mas fica desde já evidente que o aspecto que permite aproximar o Brasil e a Rússia nesse

período é o fato de ambos constituírem países na periferia do capitalismo36.

2. LIUBA

Como vimos, os diferentes ritmos de ação das classes burguesa e aristocrática são

bastante enfatizados no texto da peça. Todo o grupo de personagens caracterizados como

proprietários rurais revela uma inaptidão para a atividade prática, precisamente no

momento em que vêem suas propriedades em risco de hipoteca. Pichtchik, outro

proprietário de terras, como Liuba, em vias de falir, várias vezes pede dinheiro emprestado

para pagar juros sobre a hipoteca de sua propriedade. Como a amiga não tem, ele replica:

35 SCHWARZ, op. cit., pp. 27-8.36 Se ainda fosse preciso apresentar mais evidências das aproximações existentes entre os dois países no

período que compreende o final do século XIX e o início do século XX, bastaria mencionar a peça Amoratória, de Jorge Andrade.

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De um jeito ou de outro, sempre acaba aparecendo algo. (Ri.) Eu nunca perco a esperança.

Pois já houve ocasião em que cheguei a pensar que estava tudo perdido... e o que

aconteceu?... resolveram passar o leito da ferrovia pelas minhas terras e me coube uma boa

soma. Por que não pode acontecer algo semelhante de novo... se não hoje, então

amanhã?... Dachenka pode ganhar duzentos mil rublos, ela comprou um bilhete de loteria.37

Nessa fala, o personagem mostra que conta com a sorte para solucionar seus

problemas, em vez de tentar fazer algo. Se as possibilidades de enriquecimento de

Lopakhin baseiam-se na observação dos fatos, as de Pichtchik dependem totalmente do

acaso, revelando sua inaptidão para a ação. Também Gaiev conta com o acaso:

Pois é, pois é... (Pausa.) Quando, para tratar uma doença, sugerem centenas de

medicamentos, com certeza nenhum vai adiantar, pois se trata de uma doença incurável.

Passo o dia inteiro quebrando a cabeça, invento mil soluções, mas na realidade nenhuma

delas vale porcaria alguma... Se recebêssemos uma boa herança ou algo parecido... se, por

exemplo, arrumássemos para Ánia um marido rico... Ou deveríamos visitar em Iaroslavl a

tia condessa que é tão rica; ela nem sabe o que fazer com a quantidade de dinheiro que

tem!38

No final do primeiro ato, ele sugere que ataquem nas três frentes: pedir um

empréstimo ao banco, procurar a tia condessa e falar com Lopakhin. Nas soluções

propostas, percebemos que o trabalho não é reconhecido como um valor por esses

personagens, que identificam o empréstimo ou mesmo o acaso como possibilidades muito

mais reais para a resolução de seus problemas. Quando Gaiev diz que lhe ofereceram um

emprego no banco, com salário de seis mil rublos ao ano, Liuba lhe diz: “Ora, você! Você

vai ficar onde está!”. Por isso, o ‘chamado silencioso para o trabalho frutífero’ louvado

por Gaiev acaba tornando-se meramente uma figura retórica e consumindo-se em seu

discurso vazio, já que a esse discurso não corresponde nenhuma prática efetiva.

Entretanto, quando parece estar realizando uma caracterização muito rígida de

algum personagem, Tchekhov suaviza sua pintura, seguindo o propósito tantas vezes

37 TCHEKHOV, op. cit., p. 80.38 Idem, p. 82.

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expresso em suas cartas: “Eu queria fazer uma extravagância: não criei nenhum malvado,

nem anjo algum (...), não condenei ninguém, não absolvi ninguém...” 39. Assim como a

origem humilde de Lopakhin de certo modo relativiza sua ambição, há um dado biográfico

sobre Liuba que, até determinado ponto, justifica seu apego à propriedade e,

conseqüentemente, sua apatia. Seis anos do momento em que Liuba volta para casa, seu

marido havia falecido, e cerca de um mês depois, Gricha, seu filho de sete anos, se afogou

no rio. Não podendo suportar a dor, Liuba fugiu para bem longe. As mortes do marido e

do filho acrescentam um novo dado ao apego de Liuba à sua propriedade, e são alegadas

por ela como “atenuantes” de sua culpa quando discute com Trofimov, o estudante, sobre

a perda da propriedade:

TROFIMOV – Que diferença faz se a propriedade for leiloada hoje ou amanhã? Pois há

muito tempo esse assunto está encerrado. Não é mais possível voltar atrás; o caminho se

fechou. Acalme-se, querida senhora... Não devemos nos iludir... Ao menos uma vez na

vida encare a verdade de frente!

LIUBOV ANDREIEVNA – Que verdade? Talvez o senhor possa ver o que é verdade e o

que não é, mas quanto a mim é como se eu simplesmente tivesse perdido a visão; não vejo

nada. O senhor enfrenta com coragem todos os assuntos importantes e rapidamente toma

decisões, mas diga-me, querido, isso não será tão fácil apenas porque o senhor ainda é

jovem e nunca teve tempo de sofrer com quaisquer desses problemas? O senhor encara o

futuro com coragem, mas talvez isso se deva apenas ao fato de ser incapaz de ver nele algo

de ruim, de esperar dele algo de ruim, pois a verdadeira vida está oculta aos seus olhos

jovens. O senhor é mais corajoso, mais honrado, mais limpo que nós, mas reflita, seja

generoso e tenha um pouco de compaixão por mim, só um pouco... Veja, eu nasci aqui,

meus pais e também meus avós, todos viveram aqui... Amo esta casa; sem o jardim das

cerejeiras a vida não tem sentido para mim, e se for necessário vendê-lo, que me vendam

junto com ele. (Abraça Trofimov e beija-o na testa.) Foi aqui que meu filhinho se afogou...

(Chora.) Tenha um pouco de compaixão por mim, você que é bom e generoso.40

Nesta passagem, desenha-se uma sutileza na inação de Liuba: ela defende-se da

39 ANGELIDES, Sophia. A. P. Tchekhov: Cartas para uma Poética. São Paulo: EDUSP, 1995. P. 71.Embora a observação refira-se à peça Ivanov, o princípio de não oferecer julgamentos acerca de seuspersonagens é observado em todas as peças do autor.

40 TCHEKHOV, op. cit., p. 102.

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acusação feita por Trofimov de não querer encarar os problemas de frente mencionando

sua ligação com a paisagem natal. Para ela, a terra adquire um sentido especial, já que foi

aí que nasceu e cresceu, além de ser o lugar onde faleceram seu filho e marido. Daí que

sua melancolia não parece estar ligada simplesmente à perda da riqueza da família, nem

tampouco à perda da “Natureza”, como explicita Raymond Williams:

Não se trata apenas da perda do que pode ser chamado – às vezes com razão, às vezes só

por afetação – de ‘natureza intata’. Para qualquer homem em particular, há também a

perda de uma paisagem especificamente humana e histórica, que gera sentimentos não por

ser ‘natural’, e sim por ser ‘natal’ (...) Assim, a perda mais lamentada – a das ‘coisas mais

queridas’ – é a perda da infância causada pela destruição da paisagem imediata. (...) Uma

maneira de ver foi associada a uma fase perdida da vida, e a associação entre felicidade e

infância deu origem a toda uma convenção, na qual não apenas inocência e segurança, mas

também paz e abundância, e depois, numa extrapolação poderosa, a um período específico

do passado do campo, agora ligado a uma identidade perdida, a relações e certezas

perdidas, na lembrança do que é denominado, em contraposição a uma consciência

presente, Natureza. 41

Já a primeira rubrica da peça – “O ‘quarto das crianças’, como ainda é chamado” –

indica o apego dos personagens ao passado. Desse modo, o jardim não assume um

significado único, mas catalisa uma série de sentidos: se para Lopakhin corresponde a uma

empresa comercial, e para Liuba evoca lembranças do passado, associadas à memória de

tempos mais estáveis e felizes, assumirá outros sentidos para outros grupos de

personagens, como o dos criados.

3. DUNIACHA, FIRS, IACHA E VÁRIA

As figuras dos criados refletem suas complexas relações com Liuba, sua patroa.

Tanto Duniacha como Firs trabalham há muito tempo como criados da propriedade rural e,

por isso, têm bastante intimidade com a família. Conhecem as histórias dos sofrimentos

por que passaram, conheceram os personagens que já morreram, e têm – assim como os

parentes antigos – memórias dos tempos idos. Desenvolvem, portanto, um apego à família,

41 WILLIAMS, op. cit., pp. 193-4.

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e daí a emoção dos dois quando a patroa chega de Paris.

Quando Liuba chega, Duniacha sente-se quase desmaiar: “Ai... o mundo está todo

girando... e fiquei gelada...”. Contudo, os sentimentos nutridos pelos criados em relação a

seus patrões não são exatamente recíprocos. Se Duniacha se exalta com a presença da

patroa, o que emociona de fato Liuba é a vista do antigo quarto das crianças, encontrado

exatamente como o deixou: “O quarto das crianças! O meu querido, o meu maravilhoso

quarto das crianças!... Eu dormia aqui quando era menina. (Chora.) E ainda sou como uma

criança”. Embora a patroa beije a criada, afirma: “Também a Duniacha reconheci

imediatamente...”, evidenciando, com isso, justamente a possibilidade oposta, de ter se

esquecido da empregada.

Duniacha também se alegra com a vinda de Ánia, a filha mais nova de Liuba, em

um êxtase quase de adoração: “Ai querida senhorinha! (Rindo e beijando Ánia pelo rosto

todo.) Ai, não pode imaginar com que entusiasmo esperava a sua chegada, minha

queridinha, minha luz, minha flor...”. E enquanto começa a contar a proposta de

casamento que recebeu, Ánia mal a ouve, e balbucia para si própria: “O meu quartinho, a

minha janelinha. Como se nem os tivesse deixado... finalmente estou aqui de novo... em

casa!”.

O mesmo ocorre com Firs, que se emociona com a chegada da patroa, enquanto

esta se alegra sobretudo com o reencontro com a casa e os objetos, ignorando os criados.

“(Alegremente.) Chegou a patroa! Que bom ter vivido para poder ver isso! Agora já posso

morrer em paz. (Chora de contentamento.)”. Pouco tempo depois, Firs serve café a Liuba,

e esta diz: “Muito obrigada, querido Firs, muito... Se soubesse, velho, como me alegro por

você ainda estar vivo!”.

Assim, os personagens do grupo dos proprietários – Liuba, Ánia, Gaiev –

demonstram reações contidas em relação às pessoas, mas exacerbadas em relação aos

objetos. A passagem seguinte evidencia seu apego aos objetos em contraposição à

indiferença pelas pessoas de convívio íntimo não integrantes da família:

LIUBOV ANDREIEVNA – Não sei o que está acontecendo comigo, mas não consigo

ficar sentada. (Levanta-se de um salto e anda de um lado para o outro, muito excitada.)

Não poderei sobreviver a esta sensação de felicidade... Está bem, está bem, vocês podem

rir dessa bobagem... meu velho armário querido! (Beija o armário.) Minha velha mesinha

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querida!

GAIEV – Enquanto você esteve fora a babá morreu.

LIUBOV ANDREIEVNA – (senta-se, toma o café) Eu sei, contaram-me nas cartas, que

descanse em paz. 42

Se os empregados são assim desprovidos de sua humanidade através do olhar

indiferente dos patrões, os objetos, por um procedimento oposto, adquirem “vida”, sendo

tratados como humanos:

GAIEV – Sabe, Liuba, quantos anos tem este armário? Uma semana atrás, por acaso,

puxei para fora a gaveta de baixo e descobri que o ano está gravado nele a fogo... Este

armário tem cem anos de idade! Cem anos redondos! Que tal, hem? Poderíamos até

celebrar-lhe o centenário! Um objeto inanimado, mas de qualquer maneira é até hoje um

armário de livros!

PICHTCHIK (surpreso) Cem anos!... É inacreditável!

GAIEV – (apalpando o armário) Querido velho e estimado armário! Estou diante de você,

profundamente comovido. Você, que há um século está a serviço dos ideais

resplandescentes do bem e da verdade! O seu chamado silencioso para o trabalho frutífero

não perdeu a força ao longo de cem anos, e (com voz emocionada) durante gerações

manteve viva nossa crença num futuro melhor e na vitória dos nobres ideais humanos. 43

Essas inversões podem ser mais bem compreendidas se nos lembrarmos do modo

como se deu a escravidão entre nós, no Brasil. Ao lado de toda a crueldade ministrada aos

escravos na senzala, alguns eram liberados dos trabalhos mais pesados para servir nas

tarefas domésticas e, com isso, gozavam de um tratamento privilegiado e do convívio

diário na casa-grande. Gilberto Freyre escreve sobre a situação desses escravos em Casa-

Grande e Senzala:

A casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos

senhores uma série de indivíduos – amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos

meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não de escravos mas o de

pessoas da casa. Espécie de parentes pobres nas famílias européias. À mesa patriarcal das

42 TCHEKHOV, op. cit., p. 76.43 Idem, pp. 78-9.

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casas-grandes sentavam-se como se fossem da família numerosos mulatinhos. Crias.

Malungos. Moleques de estimação. Alguns saíam de carro com os senhores,

acompanhando-os aos passeios como se fossem filhos.

Quanto às mães-pretas, referem as tradições o lugar verdadeiramente de honra que

ficavam ocupando no seio das famílias patriarcais.44

Contudo, cabe lembrar que essa visão idílica de um convívio harmônico entre

patrões e escravos aproxima-se mais (sem defini-lo totalmente) do ponto de vista dos

escravos do que daquele dos senhores na peça. Como vimos, são os criados que caem mais

facilmente vítimas dessa ilusão de fazer parte da família dos senhores. Lopakhin, que

guarda mais vivas as lembranças das humilhações por que passou sua família, alerta

Duniacha para a ambigüidade de sua posição. No primeiro diálogo da peça, ao reparar na

excitação de Duniacha, ele lhe pergunta o que tem. Ela responde: “Não sei... Minhas mãos

tremem... Como se eu fosse desmaiar...”. Ele então comenta a toilette de Duniacha: “Você

parece uma dondoca, Duniacha; está tão enfeitada quanto uma dama... e esse penteado!

Está vendo, isso não se deve fazer. Não se deve nunca esquecer o que se é”. Como a seu

pai e a seu avô não era permitido nem entrar na cozinha, ele tem mais consciência do que

ela das contradições e dos limites das relações entre senhores e servos. Mas é

compreensível que Duniacha, envolvida no mesmo ambiente de seus patrões, tenda a

considerá-los como parentes – muito embora eles estejam mais aptos a considerar um

armário do que um servo como parte integrante da família.

A cena final da peça é eloqüente a esse respeito: Firs, o velho criado, é esquecido

na casa como uma peça de mobília. Lá fora, ouvem-se os sons das machadadas que

começam a derrubar o jardim. As cortinas se fecham e, com elas, o destino do

personagem, que provavelmente fará parte das ruínas da casa quando esta começar a ser

demolida.

O contraponto cômico à tragédia de Firs é oferecido pela figura de Iacha, um

criado que também encena a identificação do empregado com o patrão; porém, desta vez

isso é feito de forma tão absurda que se torna engraçado. Iacha viajou com Liuba para

Paris, cidade que lhe propiciou um termo de comparação com a terra natal. Durante o

período de permanência no exterior, Iacha aprendeu – assim como os ricos que podiam

44 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963. Pp. 393-4.

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viajar para a França – a apreciar a cultura francesa; por isso, volta “ocidentalizado”. Seu

deslumbre com o exterior fica evidente desde a primeira aparição, quando entra no “quarto

das crianças”, carregando, como é sua função, um cobertor e uma valise de viagem:

IACHA (atravessa a cena; com afetação) Permita-me atravessar por aqui?

DUNIACHA Iacha! O senhor está irreconhecível! Como mudou lá no estrangeiro!

IACHA Hum... Posso saber quem é a senhora?

Iacha trata os outros criados com a superioridade que se permitem aqueles que

conheceram a parte do mundo considerada, à época, como exemplo de cultura e

civilização. Daí que o retorno à Rússia, vista como sinônimo de atraso, só pode ser

encarado por Iacha com sentimentos de vergonha e desprezo. Sua altivez volta-se contra a

própria mãe:

VÁRIA (a Iacha) Ah, é verdade, Iacha, sua mãe veio da aldeia, quer vê-lo... Desde ontem

está esperando por você na casa dos colonos.

IACHA Por mim pode esperar até cansar.

VÁRIA Seu desavergonhado!

IACHA Ela não me serve para nada! Podia ter vindo só amanhã!

O deslumbre com o estrangeiro, que está sendo criticado na figura desse

personagem, torna-se ainda mais engraçado por se tratar de um criado. Com isso,

Tchekhov enfatiza o descompasso – ou o fora de lugar – da situação: o entusiasmo de

Iacha com a cultura francesa, que se converte em vergonha de sua aldeia ou de seu país

natal. Por isso, no final da peça, quando a família se separa e cada um enfrenta um destino

diferente, ele se desespera perante a possibilidade de ter que ficar naquele lugar, que

considera atrasado e inculto:

IACHA (a Liubov Andreievna) Liubov Andreievna, permita-me. Caso vá de novo a

Paris... leve-me com a senhora outra vez... faça isso por mim, porque não posso de modo

algum ficar aqui. (Olha ao redor e completa a meia voz.) Pois a senhora decerto

reconhece... este país ignorante e este povo ignóbil, e o tédio, e a comida horrível que nos

dão na cozinha, e Firs, vagando por aí e resmungando coisas absurdas... A senhora me

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leva, não é?

A proposta é aceita pela patroa – afinal, tudo na peça indica que, mesmo com

pouco dinheiro para viver em Paris, Liuba não saberá fazê-lo sem uma criadagem por

perto. No último ato, Iacha revela atitude triunfante ao despedir-se de Duniacha:

IACHA Para que essa choradeira? (Bebe champanhe.) Mais seis dias e estarei em Paris!

Amanhã tomaremos o trem expresso e num instante já estaremos longe! Nem posso

acreditar! Vive la France! Não me agrada isto aqui, não posso viver assim, cercado por

essa ignorância. Para mim chega. (Bebe.)

O personagem Iacha, portanto, assim como Firs e Duniacha, mostra o quanto as

relações entre patrões e criados podiam misturar-se, pelo menos nesse período, em que as

barreiras sociais iam-se tornando mais frágeis – e pelo menos a partir do ponto de vista

dos empregados, já que os patrões não demonstram perceber a aproximação que está em

curso.

Só há um caso, porém, em que essas relações mesclam-se a um nível um pouco

mais indistinto. Vária, filha adotiva de Liuba, é tratada com certo carinho, embora não

tanto quanto aquele demonstrado por Liuba em relação a Ánia, sua filha de sangue. Apesar

disso, Vária também é considerada uma criada, o que já se evidencia em seus trajes: a

jovem carrega todas as chaves da casa em um molho amarrado à cintura, trabalhando

como uma espécie de governanta. Ela se esforça por servir bem a família, dá ordens aos

demais criados, e manifesta a mesma alegria que estes com a chegada da família: “Graças

a Deus vocês chegaram... Estão de novo em casa. Em casa, minha alminha. Em casa, meu

encanto”. Outro sinal da dubiedade de sua situação é o fato de que Liuba está preste a dar

a mão de sua filha adotiva a Lopakhin – o que pode ser devido tanto à origem simples de

Vária como à possibilidade de salvação financeira da família que o casamento poderia

significar. Com a frustração de seus planos de casamento com Lopakhin, Vária passa a

desejar que sua irmã arrume um marido rico, para que ela possa entrar para um convento,

assumindo assim seu destino como criada. No final, com a venda da propriedade, Ánia

viaja para a cidade onde pretende terminar seus estudos, ao passo que Vária emprega-se

como governanta na casa de uma família da região.

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Portanto, por mais sutis que sejam as relações de cada um dos criados com os

donos da casa, elas não escondem o fato de que eles continuam sendo escravos – aliás,

esse dado se confirma com a informação de que o termo russo que designa o servo é o

mesmo que designa o escravo, entendido como uma classe que está submetida à vontade

de seu dono.

Porém, para completar o retrato da situação dos servos, não se pode deixar de

mencionar o que é exposto sobre as condições de trabalho daqueles que lidavam

diariamente com o campo – pois, como vimos, apesar de ser representado de modo

bastante realista, o convívio dos criados mencionados até aqui reflete apenas a situação

daqueles que viviam junto à casa. Resta, portanto, observar o que é dito sobre os

trabalhadores do campo.

O modo como Tchekhov o faz é também significativo do ponto de vista dos

proprietários. Vária comenta apenas en passant com Ánia – como um assunto de menor

importância:

Durante a sua ausência tivemos uma pequena contrariedade aqui... Sabe, lá embaixo, na

casa menor, vivem os colonos mais velhos, Iefmuchka, Polia, Ievstigniei, e também

Karp... Um dia desses veio ao meu conhecimento que eles deixavam entrar todo tipo de

vagabundos para passar ali a noite. Fiz que não sabia, o que mais podia fazer? Porém um

dia ouço dizer que eles estão falando que eu sou pão-dura, que só lhes mando servir

ervilha seca para o almoço, etc. Fiquei sabendo que quem os instigava era o inútil do

Ievstigniei... (Boceja.) Ele entra... e eu começo: ouça, Ievstigniei, que sujeito tolo você é...

Nesse ponto, Tchekhov indica que “Vária interrompe a narração ao perceber que

Ánia adormeceu”. Edward Braun situa essa referência no contexto do governo de Nicolau

II, o último czar. Segundo o crítico, Nicolau II, que tinha apenas 26 anos de idade quando

assumiu o trono, não tinha nem a vontade nem a inteligência necessárias para controlar

seus ministros altamente reacionários. Enquanto o vasto império semifeudal lutava para se

igualar à Europa através de uma industrialização impetuosa, investimentos externos

pesados e exportação maciça, a economia rural estava paralisada devido a pesados

tributos, colheitas mal-sucedidas, epidemias de cólera, preços exorbitantes das terras e um

aumento massivo da população. Como o crítico indica, em 1901, as más colheitas

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resultaram nas piores eclosões de violência desde a década de 1860, e nos dois anos

seguintes milhares de camponeses famintos invadiram propriedades nas províncias de

Poltava, Kharkhov e Saratov, no sul da Rússia. Braun aponta que a referência aos intrusos

abrigados nos alojamentos dos camponeses é típica da maneira oblíqua como o significado

mais abrangente da ação é transmitido.

Algo semelhante ocorre no final do Segundo Ato, quando os personagens

conversam no jardim e surge um “jovem andarilho” que pede licença para atravessar a

propriedade rumo à estação. Ao passar por Vária, ele diz: “Madimazel, um pobre russo

faminto lhe implora trinta copeques...”. Vária recua assustada; porém, como era de se

esperar, Liuba mais uma vez demonstra sua generosidade – como não tem em sua bolsa

nenhuma moeda de prata, dá ao rapaz uma de ouro. Esse ato revolta Vária, que exclama:

“Não agüento mais isso... Vou embora agora mesmo, mãezinha... Em casa os criados não

têm o que comer e a senhora dá uma moeda de ouro a esse vagabundo!”. Como Braun

indica, essa breve aparição de um passante no segundo ato é mais do que um pretexto para

demonstrar o comportamento irrefletido de Liuba, pois, na virada do século na Rússia, a

palavra que significa passante (‘prokhozhy’) implicava alguém perambulando pelo interior

para escapar da prisão ou do exílio na Sibéria. Com essas referências, feitas de passagem,

completa-se o retrato não só da situação dos servos, mas o dos bastidores da ação

principal.

4. TROFIMOV

Trofimov funciona como a consciência crítica dos demais personagens, na medida

em que vê e aponta os limites de seus papéis sociais: para ele, Lopakhin é a fera que

devora tudo o que atravessa o seu caminho; Liuba, a sonhadora que se recusa a encarar as

dificuldades que se lhe apresentam. Ao mesmo tempo, o estudante defende a necessidade

de manter um distanciamento crítico para que não se imiscua nas relações com essas

pessoas cujas ações condena, podendo assim sustentar suas posições e conservar sua

dignidade. Por isso não aceita o dinheiro a ele oferecido por Lopakhin ao se despedirem,

no final da peça:

TROFIMOV – Seu pai era camponês, o meu, boticário... mas... nada disso faz diferença.

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(Lopakhin tira a carteira.) Deixe, deixe. Se quisesse me dar duzentos mil, mesmo assim

não os aceitaria. Sou um homem livre e não me importo nem um pouco com aquilo a que

vocês, pobres e ricos, dão tanto valor. Para mim isso não representa nada, é como a pluma

que o vento carrega. Não preciso de vocês, eu me sustento sem a sua ajuda, pois sou forte

e orgulhoso. A humanidade caminha em direção à grande verdade, à suprema felicidade

que pode existir na terra... e eu quero estar nas primeiras fileiras...45

Segundo se entrevê de suas posições, Trofimov põe-se à margem da sociedade, à

parte tanto dos ricos como dos pobres. Sua tarefa é a de conduzir a sociedade para esse

estado de felicidade suprema. Ao ser perguntado se chegará lá, responde: “Sim. (Pausa.)

Vou chegar... ou pelo menos mostrarei o caminho aos outros...”. Trofimov revela uma

consciência aguda dos problemas de sua época e do que é preciso fazer para superá-los:

TROFIMOV – A humanidade progride e aperfeiçoa cada vez mais suas potencialidades. O

que hoje ainda lhe é inalcançável, algum dia dominará, mas até lá é necessário trabalhar,

pois só assim é possível atingir a meta proposta. E temos de ajudar com todas as forças

aqueles que procuram a verdade... Na nossa Rússia só poucos trabalham. A grande maioria

da inteligentzia que eu conheço não está à procura de nenhuma verdade, não faz nada, e

por enquanto está incapacitada para o trabalho. Chamam a si mesmos de inteligentzia mas

tuteiam os criados e tratam os camponeses como animais. Sua cultura é superficial, não

lêem nada a sério, sobre a ciência só sabem falar, e não têm nenhum sentimento para com

as artes... Aqui todos têm ares de importância, fazem cara séria, filosofam e discursam

sobre temas elevados, enquanto os trabalhadores se alimentam como animais, dormem

sem travesseiro, trinta ou quarenta num quarto, em meio à sujeira e ao mau cheiro, e por

toda parte há vermes, imundice, putrefação moral! Os belos discursos e as palavras bonitas

só servem para enganarmos os outros e a nós mesmos... Mostrem-me as creches, as

bibliotecas populares de que tanto se fala! Só existem nos romances, na realidade onde

estão? O que há é somente sujeira, vileza, herança asiática... Eu temo as caras

excessivamente graves e os discursos sobre assuntos demasiado profundos, não gosto

deles... Melhor seria permanecermos calados!46

Devido às duras críticas presentes nas falas desse personagem, Edward Braun

45 TCHEKHOV, op. cit., p. 112.46 Idem, pp. 93-4.

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indica que, depois de Lopakhin, o personagem que apresentou maiores dificuldades para

Tchekhov foi Trofimov. O crítico nota que as universidades haviam sido o centro da

organização da oposição ao regime czarista desde a década de 1860 e que, por isso, no

vocabulário russo, as palavras ‘estudante’ e ‘revolucionário’ eram quase sinônimas. Ele

ainda informa que, em janeiro de 1901, após uma onda de protestos, o ministro da

Educação, Bogolepov, ordenou o recrutamento ao exército de mais de 200 líderes

estudantis, e um mês depois foi assassinado por um estudante socialista revolucionário.

Apesar da violência da repressão policial, os protestos continuaram em grande escala e,

em abril de 1902, um estudante de 22 anos, Balmashov, conseguiu entrar no Palácio

Mariinski em São Petersburgo e atirou à queima-roupa no ministro do Interior. Depois

desses eventos, não surpreende que Tchekhov tivesse escrito a Olga Knipper, em outubro

de 1903: “A questão é que Trofimov está sempre sendo expulso da universidade, mas

como se pode mostrar uma coisa dessas?”.

No entanto, a facilidade com que Trofimov enxerga os limites das posições das

outras classes não é observada em relação à própria posição que decidiu abraçar. Ele quase

nem se reconhece como parte integrante da intelectualidade, e acredita-se numa esfera

externa ao mundo e às relações entre os homens que consegue perceber. Trofimov

manifesta postura semelhante até em relação a seu envolvimento amoroso com Ánia. Ele

diz à moça:

TROFIMOV Vária teme que nos apaixonemos, por isso não nos larga. A sua estreiteza de

visão não lhe permite compreender que nós estamos acima do amor. Afastar de nós todas

as coisas menores e enganosas, tudo o que nos impede de sermos verdadeiramente felizes

– essa é a razão e o sentido da nossa vida. Caminhar rumo à estrela cintilante que brilha ao

longe... é para lá que nós vamos. Adiante! Não desistam, amigos!

Cabe a Liuba apontar a fragilidade de sua posição. Quando Trofimov roga que ela

encare seus problemas de frente, Liuba critica sua visão inflexível da vida:

Não me julgue, Pétia, gosto do senhor tanto quanto do meu próprio filho. De bom grado

casaria Ánia com o senhor, juro, mas precisa estudar e concluir o curso... Acontece que o

senhor nada faz; deixa que o destino o arraste de um lado para o outro, e no entanto sabe

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que isso não está certo, não é?

Logo, as críticas que ele faz aos outros também poderiam aplicar-se a ele mesmo,

já que também ele não faz nada, restringindo-se a discursos inflamados. “O senhor, com

vinte e seis ou vinte e sete anos, ainda fala como um ginasiano. (...) Na sua idade já é

preciso ser homem... devia compreender as pessoas que amam... (...) Falta-lhe pureza...

não passa de uma velha ressequida... uma figura caricata...” 47. Desse modo, sua posição

também é problematizada e, no fim, sua figura surge, como as outras, a partir das

variações produzidas nas formas pela incidência de distintos pontos de vista.

5. O JARDIM

Após analisarmos os personagens e suas relações, resta fazer algumas observações

sobre o cenário e as diversas conotações que assume para os diferentes personagens. Antes

disso, porém, cabe uma nota sobre o título. Na tradução de Millôr Fernandes, o escritor faz

uma observação fundamental referente ao título da peça. Lembrando que, em português, o

título é às vezes traduzido como O jardim das cerejeiras e outras como O cerejal

(diferença inexistente no termo original russo), ele explica os motivos de sua preferência

pela primeira opção. Em português, o termo cerejal remete de imediato à plantação de

cerejas; logo, ao aspecto produtivo da propriedade, quando é justamente o aspecto estético

ressaltado pela aristocracia que sobressai ao chamarmos a propriedade de jardim. Deste

modo, já a partir do título o ponto de vista da aristocracia é evocado.

GAIEV – Todo o jardim é uma brancura só. Liuba, lembra? A longa alameda, como é reta,

até não poder mais... e tem um brilho prateado nas noites enluaradas. Você se lembra? Não

se esqueceu?

Se o jardim, como vimos, constitui objeto de fruição estética e fonte de

recordações do passado para Liuba e Gaiev, ele assume outra conotação para Trofimov (e,

depois, para Ánia, que passa a concordar com seus pontos de vista):

47 Idem, p. 103.

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ÁNIA – O que o senhor fez comigo, Pétia? Como é que eu já não gosto tanto do jardim

das cerejeiras como antigamente? Pois eu o amava com tal carinho... acreditava que em

toda a terra não havia lugar mais bonito que o nosso jardim...

TROFIMOV – A Rússia inteira é o nosso jardim! É uma terra bela e grande, e existem

nela inúmeros lugares maravilhosos. (Pausa.) Imagine só, Ánia. O seu avô e o seu bisavô,

e todos os seus antepassados, eram senhores de servos, proprietários de almas vivas... de

cada fruto deste jardim, de cada folha de árvore, de cada tronco, seres humanos que

sofriam na servidão a estão observando. Não ouve as suas vozes? Ser dono de almas vivas

fez de vocês gente diferente de todos os que viveram aqui outrora ou vivem agora, de

modo que sua mãe e seu tio já nem percebem mais que vivem às custas de dívidas, por

conta dos outros, de gente a quem vocês não permitem ultrapassar a porta de entrada.

Vivemos num atraso de pelo menos duzentos anos. Pouco mais que nada aconteceu em

nossa terra, não temos nenhuma atitude definida em relação ao passado... apenas

filosofamos, queixamo-nos das nossas tristezas e bebemos vodca... No entanto é tudo tão

claro!... Se quisermos de fato viver verdadeiramente o presente, então primeiro temos de

expiar o passado, temos de liquidá-lo; e só podemos expiá-lo com sofrimentos e um

trabalho infatigável e intenso. Ánia, guarde bem isso na cabeça!

O jardim aparece aqui como símbolo da exploração dos pequenos trabalhadores

rurais pelos grandes proprietários, mas também como “a Rússia inteira”, em tudo o que

essa associação tem de ruim e no que pode ter de maravilhoso. Retornamos assim à

afirmação, feita no início deste capítulo, de que a peça pode ser lida como um quadro da

Rússia em fins do século XIX. Ao retomar o argumento sobre os diferentes modos de se

estruturar a ação de uma peça (em cena, ato ou quadro), encontramos a definição de que,

em comparação com o ato, “o quadro é uma superfície muito mais vasta e de contornos

imprecisos que recobre um universo épico de personagens cujas relações bastante estáveis

dão a ilusão de formar um afresco, um corpo de baile ou um quadro vivo” 48. Imaginando a

peça deste modo, teríamos, em primeiro plano, um mundo que cai – o velho mundo da

aristocracia rural; em segundo plano, o surgimento de uma nova classe, a burguesia; e, em

plano de fundo, o que estava por vir, apenas entrevisto por Tchekhov – a revolução. Esta

aparece não só no discurso de Trofimov, na esperança de um mundo diferente, ou no

relato de Vária sobre conflitos com os camponeses, mas literalmente passa nos fundos do

48 PAVIS, op. cit.

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quintal – o andarilho que pede dinheiro a Vária. Forma-se assim um quadro com as

principais tensões da Rússia no século XIX. Em primeiro plano, a mansão sendo

derrubada e as machadadas no jardim das cerejeiras; ao fundo, os camponeses que, dentro

em breve, irão se unir aos proletários para fazer a revolução. Mas também cabe aqui uma

observação que Argan faz ao analisar a famosa tela “O Absinto”, do impressionista Degas:

É uma humanidade macilenta e desperdiçada, parada no tempo vazio e no espaço

estagnante: fria como o mármore das mesinhas mal lavadas, surrada e desbotada como o

veludo dos sofás, opaca como os espelhos embaçados. Apesar do gelo da análise, a

sensação visual está lá, intacta: não foi aprofundada, interpretada, elaborada, o significado

humano está implícito no dado visual. A impressão visual, portanto, não é um limitar-se a

ver, renunciando a compreender; é um novo modo de compreender e permitir

compreender muitas coisas antes incompreendidas. 49

Assim também é a aristocracia representada por Tchekhov nessa peça: uma

geração parada no tempo, estagnada, que será varrida da história em pouco tempo – assim

como a família de Liuba é varrida da propriedade. E, da mesma maneira, essa ‘sensação

visual’ não é interpretada, mas dada pela forma dramática – por um tempo estagnado, em

oposição à sucessão de presentes própria do drama, como veremos no próximo capítulo.

Por fim, a analogia com a pintura impressionista evidencia-se em um detalhe que

talvez passe despercebido na peça. Acompanhando a rubrica dos diferentes atos, temos as

seguintes indicações: no primeiro ato, “Logo o sol irá surgir”; no segundo, “Logo o sol irá

se pôr”; no terceiro: “É noite”. O quarto ato funciona como uma espécie de coda ou

epílogo, isto é, como um desfecho das ações anteriores. A sala está vazia, os móveis, os

quadros e cortinas já foram retirados e “uma sensação de vazio emana de tudo”. Assim, se

o nome do movimento impressionista deve-se ao quadro de Monet “Impressão, sol

nascente”, podemos ler O jardim das cerejeiras como impressões do sol poente da

aristocracia russa.

49 ARGAN, op. cit., p. 109.

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DO FALATÓRIO AO SILÊNCIO:

o desenvolvimento da escrita dramatúrgica de Anton Tchekhov

1.

Em geral, a produção dramatúrgica de Anton Tchekhov é conhecida por um grupo

de quatro peças que ficaram bastante famosas: A gaivota, escrita em 1896 (e que marcou

ainda o sucesso do Teatro de Arte de Moscou), O tio Vânia, escrita no ano seguinte, As

três irmãs, composta no biênio 1900-1901 e, por fim, O jardim das cerejeiras, iniciada em

1903 e concluída no ano seguinte – que foi também o último ano de vida do escritor. Esse

conjunto pertence ao que poderia ser considerado como a maturidade de Tchekhov. Há, no

entanto, um grupo menos conhecido de três peças escritas em sua juventude.

A primeira tentativa de Tchekhov de escrever uma peça longa data de 1878,

quando o dramaturgo contava com 18 anos de idade. Contudo, esta primeira investida

sequer foi incluída em sua obra pelo autor, de modo que seu título – Platonov – foi dado

pelos editores em analogia a sua segunda peça, Ivanov, escrita nove anos mais tarde.

Segue-se nova tentativa dois anos depois: O Silvano (que mais tarde seria transformada

em O tio Vânia). A próxima peça – A Gaivota – só seria escrita decorridos sete anos –

logo, quando o autor já contava com trinta e sete anos.

Vinte e cinco anos, portanto, separam a escrita de sua primeira e de sua última peça

longa. De Platonov, a primeira peça de Tchekhov, mal conhecida, a O jardim das

cerejeiras, considerada por muitos como sua obra-prima, o autor percorreu um trajeto, e as

mudanças ocorridas no caminho nos dizem muito sobre o aprendizado de Tchekhov da

arte dramatúrgica – em outras palavras, nos dizem sobre o modo como Tchekhov tornou-

se Tchekhov.

Não é por mera convenção cronológica, porém, que a comparação entre a primeira

e a última peças de Anton Tchekhov apresentam interesse para quem estuda sua obra.

Além de propiciar a observação das mudanças empreendidas na forma dramática, o

confronto dessas duas obras chama atenção porque, em alguma medida, O jardim das

cerejeiras parece retomar alguns personagens e situações já presentes em Platonov.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que O jardim das cerejeiras não constitui uma

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continuação propriamente dita de Platonov – pelo menos Tchekhov nunca forneceu

nenhuma indicação nesse sentido em seus escritos. Apesar disso, creio que as peças

contêm elementos que nos autorizam a pensar em uma ligação intrínseca. O primeiro

motivo seria a coincidência de um tema presente nas duas peças: o leilão de uma

propriedade rural. No entanto, em Platonov, este tema aparece em segundo plano. O

destaque é dado a uma série de casos amorosos – que permanecerão em posição

secundária nas demais peças de Tchekhov.

A ação de Platonov passa-se na propriedade dos Voïnitzev, no sul da Rússia. A

dona da propriedade é Ana Petrovna, jovem viúva do general Voïnitzev. Sua propriedade,

imersa em dívidas, está prestes a ir a leilão. Uma possível solução é o casamento com

Glagoliev, um proprietário de terras amigo, porém mais velho. No entanto, Ana confia que

o amigo comprará a propriedade mesmo sem que os dois se casem; com isso, ela passaria

a pagar suas dívidas a ele e não ao banco. Confiante nessa solução, ela envolve-se com

Platonov, o professor da escola da região, um homem inteligente e diferente dos demais.

Decepcionado com o comportamento da amiga, Glagoliev parte com seu filho para

desfrutar os prazeres da vida em Paris. A propriedade é arrematada pelo judeu

Vengerovitch, que aceita a permanência da família na casa até o Natal, quando então Ana

Petrovna deverá deixar a propriedade na companhia de seu enteado e da esposa deste,

Sofia.

Esta é, por assim dizer, a intriga financeira da peça. No entanto, ela não ocupa o

foco da ação, que se volta para uma série de intrigas amorosas. No início da peça,

Platonov corresponde às investidas de Ana Petrovna; depois, porém, ele se envolve com

Sofia, a esposa de Voïnitzev que também havia sido seu amor de juventude. Os dois

planejam abandonar os respectivos cônjuges. Ao saber da traição do marido, Sacha, a

esposa de Platonov, tenta o suicídio duas vezes sem sucesso. Platonov também tenta se

matar, mas não tem coragem. Ele então tenta seduzir Maria Grekova, uma jovem

estudante que havia humilhado em público em determinada ocasião. Nesse ponto, entra

Sofia e atira no amante, matando-o.

Como visto no capítulo anterior, a ação de O jardim das cerejeiras passa-se na

propriedade de Liubov Andreievna Ranievskaia. O primeiro ato é construído em torno de

sua chegada do exterior na companhia de sua filha Ánia, da preceptora Charlotta e do

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criado Iacha. Os personagens que estavam em Paris e os da fazenda contam uns aos outros

o que ocorreu no período de ausência. A volta à casa também ocasiona lembranças de

eventos mais antigos, o que dá ao dramaturgo a oportunidade de inteirar os espectadores/

leitores sobre os precedentes da ação. Comenta-se sobre o iminente leilão da propriedade e

Lopakhin, um comerciante amigo da família, apresenta uma sugestão para salvar a

propriedade. Liuba, porém, rejeita sua idéia, e como não consegue encontrar outra

solução, a propriedade é arrematada por Lopakhin.

2.

Afirmei anteriormente que a peça Platonov dá destaque às intrigas amorosas do

protagonista. É pertinente, portanto, iniciar a análise dessa peça estabelecendo algumas

comparações entre os personagens e situações das duas peças. O fato de Tchekhov

privilegiar, em sua primeira peça longa, os encontros e desencontros amorosos dos

personagens acaba por impingir ao texto certo tom melodramático, que surge

principalmente nas falas do personagem Glagoliev. Contudo, esse tom é ironizado e

negado na própria peça, seja nos comentários sarcásticos de Triletzki, seja nas atitudes de

Platonov ou de Anna Petrovna. No primeiro ato, Glagoliev fala de sua admiração sem

limites pelas mulheres, dizendo que dedica a elas um verdadeiro culto – ao que Anna

Petrovna replica: “E elas merecem esse culto?”. Ele responde afirmativamente, e ela

insiste: “Você está convencido disso? Profundamente convencido, ou apenas quer que seja

assim?”. Ao responder, Glagoliev revela seu interesse por Anna Petrovna: “Estou

profundamente convencido. E me basta conhecê-la, para estar convencido...”.

Entretanto, como o personagem terá oportunidade de comprovar posteriormente, a

resposta mais correta à primeira pergunta de Anna Petrovna será: não, elas não o merecem

– ou, ao menos, ela não o merece. E, a bem da verdade, ela não o quer: Anna Petrovna não

quer ser cultuada como uma deusa, mas amada como uma mulher. Sua paixão por

Platonov é puramente carnal, como revela sua fala quando ela insiste para que os dois

fiquem juntos.

Portanto, o julgamento errôneo de Glagoliev quanto ao caráter ou ao

comportamento de Anna Petrovna deve-se ao fato de que ele olha para o presente com os

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mesmos olhos com que via o passado – assim como Liuba e Gaiev em O jardim das

cerejeiras. Em Platonov, Glagoliev é o personagem que traz com maior freqüência

referências ao passado, estabelecendo diversas comparações com o presente –

comparações nas quais o presente sempre sai perdendo. Em uma conversa em que

contrapõe o tipo de relacionamento entre homens e mulheres na época de sua juventude e

no momento de sua velhice, ele diz: “nós, os astros em declínio, somos melhores e mais

felizes do que vocês, as estrelas em ascensão. O homem (...) não perdia nada, e a mulher

saía ganhando”. E continua louvando a fidelidade e o culto à mulher: “Nós amávamos as

mulheres como os mais fiéis cavaleiros, nós tínhamos fé nelas, nós as adorávamos, porque

víamos nelas o melhor do ser humano... A mulher é um ser humano melhor, Serguei

Pavlovitch!”. Triletzki ironiza a fala de Glagoliev: “Esse distribuidor de água de rosa irá

morrer de melancolia! Como eu detesto isso! Me faz mal aos ouvidos!”. Mas Glagoliev

mantém sua fé no passado: “Ah! meus amigos, meus amigos! Vocês não conheceram o

passado! Vocês falariam de outra maneira... Vocês entenderiam... (Suspira.) Vocês não

podem compreender!”.

Em relação a essa personagem, é possível afirmar que, em nenhuma outra peça de

Tchekhov, a mulher é representada com a autonomia e a decisão reveladas por Anna

Petrovna. No entanto, como a personagem observa em diálogo com Platonov, nas

condições em que vive, não lhe resta muito que fazer com toda a emancipação

conquistada: “Não há nada pior do que ser uma mulher evoluída... Uma mulher evoluída

que não tem nada para fazer... Me diga o que eu significo, por que eu vivo?”. Só lhe resta

especular sobre o que poderia ter sido:

Eu poderia ter sido uma professora, uma diretora... Se eu fosse diplomata, viraria o mundo

pelo avesso... Uma mulher evoluída... que não tem nada para fazer. Ninguém precisa de

mim? Cavalos, vacas e cães, disso as pessoas precisam, e de mim – ninguém precisa de

mim, sou supérflua...

Na situação retratada na peça, mesmo uma mulher esclarecida e emancipada como

Anna Petrovna não tem utilidade – ou seja, também ela é uma imprestável, para usar uma

palavra que, como veremos, é muito cara a Tchekhov.

Assim como Trofimov, o eterno estudante de O jardim das cerejeiras, Platonov

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funciona como a consciência crítica das contradições reveladas no comportamento dos

demais personagens. Durante a festa, ele conversa com Triletzki, que comenta o

comportamento efusivo de Anna Petrovna e suspeita que ela esteja apaixonada. Platonov

afirma:

Por quem você acha que ela pode estar apaixonada aqui? À exceção dela mesma?

Não confie em seu riso. Não se deve acreditar no riso de uma mulher inteligente que nunca

chora: ela ri às gargalhadas, mas tem vontade de chorar. E nossa generala, não é de chorar

que ela tem vontade, mas de meter uma bala na cabeça... Isso se vê em seus olhos...

Contudo, de maneira diversa do que se vê em O jardim das cerejeiras, Platonov

suscita reações inflamadas nos demais personagens, que ao mesmo tempo admiram a

argúcia de sua capacidade de observação e se ressentem da agressividade com que

Platonov emite seus juízos a respeito dos outros. Isso pode ser visto na acusação feita por

Venguerovitch a Platonov, de resto muito semelhante à reprimenda de Liuba a Trofimov

na última peça de Tchekhov:

Outros podem se permitir me dar lições de moral, meu jovem... Sou um cidadão,

um cidadão útil... Sou pai, e você, quem é você? Quem é você, meu jovem? Um homem

inconstante, um proprietário de terras arruinado, que tomou em suas mãos um trabalho

sagrado, ao qual você não tem o menor direito, porque é um homem depravado.

Platonov devolve as acusações dizendo que, se Venguerovitch é um cidadão, essa

palavra é uma injúria. Não poupa nem os mortos – conversando com Glagoliev, o

personagem que enaltece as virtudes dos tempos idos, Platonov não hesita em manchar a

memória do próprio pai, um símbolo forte de seu impulso destrutivo em relação ao próprio

passado. Glagoliev enaltece as virtudes do pai de Platonov, que teria sido um homem de

caráter e de grande coração. Platonov diz que não tinha nenhuma estima pelo pai, o qual

considerava o filho um homem inconstante (“e ambos tínhamos razão”, arremata

Platonov). Quando Glagoliev o censura por maldizer os mortos, ele se defende

argumentando que os mortos não têm necessidade de concessões.

Mas ele também não faz concessões em relação a si próprio. Conversando com

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Voïnitzev sobre Sacha, sua esposa, Platonov diz: “Somos um casal perfeito... Ela é tola, e

eu, eu não valho nada”. E se Trofimov se ofende quando o chamam de eterno estudante,

Platonov é o primeiro a falar sobre o descaminho que sua vida sofreu. Este último dado

está presente em ambas as peças: tanto Platonov quanto Trofimov não são imediatamente

reconhecidos por outros personagens quando se encontram. Com isso, Tchekhov pretende

mostrar a decadência que as condições da Rússia no período impunham às pessoas.

Quando Trofimov aparece para cumprimentar Liuba, no Primeiro Ato da peça, ela o olha

com surpresa, e é Vária quem esclarece de quem se trata: “É Pétia Trofimov...”. Ele ainda

acrescenta: “Pétia Trofimov, que era preceptor de Gricha... Será que mudei tanto?”. Liuba

lhe diz: “Diga-me, Pétia, o que foi que lhe aconteceu para ficar tão feio assim? Como

envelheceu!”, ao que ele responde: “Pois é... No trem uma camponesa me chamou de

‘senhor desbotado’”. Liuba não consegue disfarçar seu espanto perante a brusca mudança

sofrida pelo rapaz: “E era um mocinho tão bonitinho então, um estudantinho tão alegre e

cheio de vida... E agora, como rareia o seu cabelo... e usa óculos também...”.

Na outra peça, Sophia – que havia sido namorada de Platonov na juventude –

também não o reconhece. Ele então lhe pergunta:

Você não me reconhece, Sophia Egorovna? Não me espanta! Quatro anos e meio,

quase cinco anos se passaram, e nem os ratos não seriam capazes de roer uma figura

humana de maneira mais meticulosa do que o fizeram os últimos cinco anos da minha

vida.

Ao espanto de Sophia (“Como você mudou!”), Platonov responde:

O destino me pregou uma peça pela qual eu certamente não esperava na época em

que você via em mim um outro Byron, e eu um futuro ministro de assuntos extraordinários

e um Cristóvão Colombo. Sou professor de escola, Sophia Egorovna, e nada mais.

Nesta última frase, Platonov deixa transparecer a humilhação e a própria decepção

com o que se tornou, tal o contraste com as expectativas dos dois. Ela se espanta:

“Você?”. No seguimento do diálogo, Platonov mais uma vez volta contra si próprio todo o

seu sarcasmo:

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PLATONOV – Sim, eu... (Pausa.) Talvez seja mesmo um pouco estranho...

SOPHIA EGOROVNA – Inacreditável! Mas por que... Por que não outra coisa?

PLATONOV – Para responder a sua questão, Sophia Egorovna, não serão suficientes

algumas poucas palavras... (Pausa.)

SOPHIA EGOROVNA – Ao menos terminou seus estudos?

PLATONOV – Não. Abandonei a faculdade.

SOPHIA EGOROVNA – Hum... Nada disso o impede de ser um homem.

PLATONOV – Perdão? Não entendi sua colocação.

SOPHIA EGOROVNA – Me exprimi mal. Isso não o impede de ser um homem... um

militante... quero dizer, em alguma área... por exemplo, no ramo da liberdade, da

emancipação das mulheres... Isso não o impede de servir a uma causa.

PLATONOV – Ah, bem! Hum... O que dizer? É possível que isso não impeça, mas... o

que isso impediria? (Ele ri.) Não há impedimentos para mim... Sou como uma pedra sobre

a terra. As pedras é que são postas no mundo para criar impedimentos...

O modo como esses diálogos são exemplares da visão de Tchekhov sobre o

intelectual russo de seu tempo fica evidente em uma carta de 30 de dezembro de 1888 a

Alekséi Suvórin, na qual escreve sobre a composição do personagem Ivanov (que dá título

à sua segunda peça):

Ivanov é nobre, de formação universitária, sem nada de notável; um temperamento que se

inflama com facilidade, ardente, propenso às paixões, franco e honesto, como a maioria

dos nobres instruídos. (...) O passado dele é maravilhoso, como o da maioria dos

intelectuais russos. Não há, ou quase não há, nenhum russo da nobreza ou de formação

universitária que não se vanglorie do seu passado. O presente é sempre pior do que o

passado. Por quê? Porque a excitabilidade russa possui um caráter específico: é logo

substituída pelo cansaço.

Como exemplo, ele indica que, mal saído dos bancos escolares, o homem dedica-se

a milhares de atividades que estão acima de suas forças; “incumbe-se logo da escola, do

mujique, da economia racional (...), faz discursos, escreve ao ministro, combate o mal,

aplaude o bem”; além disso, “ele não ama de um modo simples e comum, ama,

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infalivelmente, ou uma sabichona, ou uma psicopata, ou uma judia, ou mesmo uma

prostituta, que pretende salvar, etc. etc.”. Em conseqüência disso, “mal atinge os trinta os

trinta e cinco anos, já começa a sentir cansaço e tédio. Seu bigode ainda não cresceu o

suficiente, e ele já diz com autoridade: ‘Não se case, meu caro... Acredite na minha

experiência’”. É exatamente essa a disposição de espírito que anima Trofimov na seguinte

passagem – apesar da ressalva contida no final de sua fala:

Acredite-me, Ánia, acredite-me! Ainda nem completei trinta anos, sou jovem ainda, sou

estudante, mas como já sofri! Fome e miséria, doença e vadiagem... experimentei tudo,

como os mendigos. O destino me atirava de um canto para o outro... Não obstante, em

todo momento, dia e noite, minha alma estava cheia de um pressentimento secreto:

pressinto a felicidade, Ánia, sei que ela virá... Já a vejo chegando...

Porém, em Platonov, é a desilusão quanto ao futuro que toma conta dos

personagens. Em uma conversa com Platonov, Triletzki diz:

Não cabe a nós transformar nossa natureza! Não seremos nós que a liquidaremos... Eu sei

disso desde o tempo em que nós dois colecionávamos zeros em latim, no colégio... Então,

chega de tagarelice... Que nossas línguas permaneçam bem guardadas em nossas bocas!

Um dia desses, meu amigo, vi na casa de uma rapariga as fotos dos “Homens de ação

contemporâneos”, e li suas biografias. E, imagine, meu caro, nós não estamos entre eles,

nem eu nem você! Procurei, procurei, e não achei nenhum de nós! Lasciate, Mikhail

Vassilitch, ogni speranza! dizem os italianos... Não encontrei nem você nem eu entre os

homens de ação contemporâneos e, imagine! isso não me incomodou!

Contrasta com essa atitude manifesta por Triletski a esperança com que Sophia

finalmente decide se entregar a Platonov, após sofrer com o dilema de trair seu marido ou

não50:

50 Também Platonov encara o dilema da traição, embora não com a angústia demonstrada por Sophia.Após ser abordado por Anna Petrovna para ir a seu encontro, ele ressignifica o dilema hamletiano: “Ir?...Ou não ir? (Suspira.) Ir... Irei lá e entoarei uma longa canção escandalosa, mas que não é engraçada...Eu, que me acreditava invulnerável! E então?... Bastou que uma mulher dissesse algumas palavras, paradeslanchar uma tempestade em mim... Os homens se ocupam de problemas universais, e eu, demulheres... (...) Sou fraco, infinitamente fraco!”. Assim, o dilema de Hamlet é rebaixado aqui para adúvida de trair ou não trair, o que caracteriza Platonov como o anti-herói de uma drama sentimental.

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Não posso mais! É demais para mim, está além das minhas forças. (Com as mãos

crispadas sobre o peito.) Minha perda, ou... minha felicidade! Nós nos sentimos sufocados

aqui... Ele será minha perdição... ou quem sabe ele não será o mensageiro de uma nova

vida! Eu te saúdo e te abençôo... a ti, vida nova! Está decidido!

Essa passagem ocorre bem no meio de uma festa, e é lindamente pontuada com a

explosão de fogos de artifício logo após a declaração da decisão de Sophia. No entanto,

como os acontecimentos irão revelar, trata-se de uma pista falsa, pois a esperança de

Sophia em relação a uma vida diferente não irá durar mais do que duas semanas – após

esse período, Platonov arrepende-se do que fez e abandona Sophia. Desse modo, a

impressão mais forte é mesmo a suscitada pela fala de Triletzki, que alude à divisa sobre o

pórtico de entrada do Inferno de Dante (“Abandonai toda esperança, vós que entrais!”).

Após o fim precoce do caso entre Platonov e Sophia, a saúde dele piora

rapidamente, devido ao remorso que sente por tudo o que fez – algo assim como uma

versão masculina de Madame Bovary. E, como versão masculina, a decadência de

Platonov é feita por meio de uma bebedeira constante. Paralelamente à decadência do

protagonista, Anna Petrovna perde o status de generala ao perder sua propriedade. Em

nome de Abram Abramitch, Bougrov avisa Anna Petrovna que poderá permanecer na

propriedade até o Natal, mas que “haverá pequenos trabalhos, pequenas transformações a

serem feitas, mas isso não os incomodará...” – mudanças pontuais que prenunciam a

derrubada da casa em O jardim das cerejeiras...

Platonov, passando muito mal, é levado para a propriedade de Anna Petrovna. Ele

começa a delirar, e vê pequenos soldados dançando – e fica-se tentado, nessa passagem, a

estabelecer um paralelo entre a imagem do delírio de Platonov e os acontecimentos

ulteriores na Rússia, em 1905 e 1917.

Assim, a peça aproxima-se do desfecho: nos últimos instantes de Platonov, em que

ainda não se sabe se ele está moribundo, se pretende se matar ou partir da cidade (logo

depois se verá que será morto por Sophia), ele declara: “Tudo acabou! Sua mulher partiu,

e não lhe resta mais nada! (...) A vida abandonou o campo, o vapor se volatilizou! Tudo

acabou! A honra, a dignidade humana, o aristocratismo, tudo! É o fim de tudo!”.

Mais uma vez antecipando uma situação que estará presente (de maneira

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intensificada) em O jardim das cerejeiras, Platonov não permite que o levem da

propriedade de Anna Petrovna (para onde foi levado até que melhorasse seu estado), e diz:

Não sairei daqui, mesmo que vocês ponham fogo na casa! Quem não tolera minha

presença que saia desta sala... (Querendo se cobrir.) Dêem-me alguma coisa quente... Nada

para comer, para me cobrir... Não voltarei para minha casa... Está chovendo lá fora... Vou

me deitar aqui.

A situação de abandono de Platonov assemelha-se à de Firs nos momentos finais

de O jardim das cerejeiras, com a diferença de que Platonov, de certo modo, é mais

diretamente responsável por sua situação. De qualquer forma, Platonov – assim como Firs

– a essa altura representa algo que deve ser enterrado:

Livre-se de mim, Sophia Egorovna! Não sou homem para você! Apodreci por

tanto tempo, depois de tanto tempo minha alma se tornou esquelética, de modo que não há

meios de me ressuscitar! É preciso me enterrar, me colocar em uma cova profunda, para

que eu não infecte o ar!

Ao entrar, Triletzki diz, percebendo o estado de Platonov: “A tragédia chega a seu

fim! A seu fim!”. De fato, o fim se aproxima: deixado sozinho na sala de armas, Platonov

remói seus erros, e diz:

Preciso me matar... Um verdadeiro arsenal, só é preciso escolher... (Pega um revólver.)

Hamlet temia seus sonhos... Eu, tenho medo... da vida! O que acontecerá se eu continuar a

viver? A vergonha me levará à morte... (Apóia o revólver na cabeça.) Finita la commedia!

Contudo, Platonov não tem coragem de se matar, e Sophia acaba terminando o que

Platonov deixou por fazer. Após a morte de Platonov, Triletzki profere as seguintes

palavras de despedida, que são também uma engraçada reflexão sobre a morte: “A vida

não vale um vintém. Adeus Michka! Você perdeu seu vintém!”.

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3.

Se as peças têm em comum o tema da perda de uma propriedade rural ou, se

preferirmos, do fim do aristocratismo – ainda que este tema esteja em segundo plano em

uma e ganhe destaque na outra –, a principal diferença entre as duas obras se dá no plano

da forma. Para começar, Platonov é uma peça longa demais – teria cinco horas de duração.

A excessiva extensão da peça não parece estar relacionada à falta de prática de Tchekhov

em relação à escrita dramatúrgica – o que seria uma hipótese plausível –, mas, pelo

contrário, revela justamente o conhecimento das regras que então regiam a composição

dramática. Isso se comprova na análise dos elementos responsáveis pela longa extensão do

texto: há muitas intrigas na peça, os personagens são verborrágicos e em número

excessivo (existem vinte personagens com fala contra doze em O jardim das cerejeiras).

O último desses elementos não apresenta relação direta com a forma do drama; no entanto,

entre os demais aspectos – o fato de esses personagens serem verborrágicos e de haver

muitas intrigas na peça –, veremos que um aponta para a estrutura clássica do drama, ao

passo que o outro parece constituir justamente o ponto em que Tchekhov rompe com a

forma estabelecida do drama, levando-o a empreender uma mudança na dramaturgia.

Vejamos, portanto, como a presença de intrigas e a natureza das falas dos

personagens determinam a estrutura de Platonov, começando pelo primeiro aspecto. Já

pela definição do conceito de intriga percebe-se que esse recurso dramático está

relacionado a um tipo de composição no qual a sucessão dos eventos encaminha a ação

para o futuro (de maneira diversa às peças posteriores de Tchekhov): “entende-se por

intriga uma combinação de circunstâncias e incidentes, interesses e caracteres donde

resultam, na expectativa do acontecimento, a incerteza, a curiosidade, a impaciência, a

inquietação etc.” 51. Outra definição estabelece que a intriga consiste no entrelaçamento e

na série de conflitos e obstáculos e de recursos usados pelos personagens para superá-los;

por isso “a intriga de um poema deve portanto ser uma cadeia da qual cada incidente seja

um elo”. Em todas essas concepções, a intriga surge como um encadeamento de ações

interrelacionadas. No teatro, a agilidade dessa sucessão de eventos liga facilmente o termo

ao gênero cômico, sendo a comédia de intriga “uma peça com múltiplos saltos qualitativos

cujo cômico consiste na repetição e na variedade dos esforços e dos golpes de teatro”. Não

51 IN: PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Verbete INTRIGA.

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é à toa que, entre os curiosos títulos que a peça Platonov assumiu em traduções para o

inglês, um dos mais curiosos é Don Juan (in the Russian Manner) – que poderíamos

traduzir por Don Juan à moda russa –, refletindo as peripécias amorosas do protagonista.

De fato, essa peça é recheada de peripécias e golpes de teatro: em Platonov, há

duas tentativas de assassinato (a segunda bem sucedida), três tentativas de suicídio e um

linchamento fora de cena. Só em O jardim das cerejeiras Tchekhov consegue eliminar o

tiro de suas peças, embora haja uma paródia a este ato com a ameaça de suicídio de

Epikhodov, o contador da família, no segundo ato:

Eu, vejam bem, tenho alguma cultura... Leio todo tipo de obras importantes e mesmo assim

não tenho clareza quanto à minha tendência intelectual. Pois o que quero na realidade?

Quero viver ou dar um tiro na cabeça? Não sei – de qualquer modo carrego o revólver

sempre comigo, como podem ver. (Mostra o revólver.)

Platonov ainda nos traz acordos feitos atrás de árvores, encontros amorosos na

madrugada, interlúdios cômicos com personagens bêbados e a célebre carta de amor

entregue pela criada da mocinha apaixonada.

A profusão de intrigas também se reflete na própria estrutura da peça: a subdivisão

dos atos em cenas, marcando as entradas e saídas dos personagens, é uma prática comum

no século XIX que Tchekhov utiliza nas três primeiras peças. Como indica Edward Braun,

não se trata aqui apenas de uma questão de convenção teatral: o fato de a peça conter 83

cenas aponta para o ritmo frenético da ação, algo muito diferente do efeito do fluxo da

vida cotidiana que Tchekhov iria atingir nas peças da maturidade.

Os vários golpes de teatro situam Platonov na estrutura da dramaturgia

neoclássica: as ações são bem ligadas, uma fala leva à outra; cada personagem que entra

provoca uma mudança na situação e cada novo incidente aumenta a tensão até o

assassinato de Platonov na última cena. Assim, a ação é essencialmente dramática. Até

aqui, portanto, vimos que a forma da peça corrobora a estrutura dos dramas da época. Para

podermos prosseguir, cabe observar o conceito de drama absoluto formulado por Peter

Szondi para definir a estrutura da forma dramática até o final do século XIX.

No livro Teoria do drama moderno, para empreender a análise do objeto que dá

título ao livro, Peter Szondi parte do conceito de drama. Rastreando o surgimento

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histórico do conceito, o autor conclui que o drama da época moderna52 surgiu no

Renascimento – quando, após a supressão do prólogo, do coro e do epílogo, o diálogo

tornou-se, talvez pela primeira vez na história do teatro, o único componente da

composição dramática. Assim, o diálogo tornou-se o único meio lingüístico utilizado na

representação das relações intersubjetivas.

Szondi então passa a analisar os traços essenciais do drama. O primeiro aspecto

fundamental indicado pelo autor, e do qual todos os outros constituem conseqüências

necessárias, é 1) o caráter absoluto do drama53. Essa propriedade implica em que 2) o

dramaturgo esteja ausente do drama54. Também 3) o espectador está ausente do drama55.

Disso se segue que 4) o palco italiano é o único adequado ao caráter absoluto próprio ao

drama56.

O caráter absoluto do drama também determina conseqüências importantes

relativamente à arte do ator e à do dramaturgo. No primeiro caso, vê-se que 5) a relação

ator-papel deve ser invisível57. No segundo, percebe-se que 6) o drama é primário58. Sendo

52 É preciso evitar nessa passagem a confusão entre os conceitos de drama (ou drama absoluto) e dramamoderno: pelas razões mencionadas no parágrafo em que esta nota se insere, Szondi localiza naRenascença o surgimento da forma literária drama (que equivaleria a uma espécie de drama ‘puro’, ouseja, enquanto tal); daí ele afirmar ser este o drama da “época moderna” (em oposição ao que segeneralizou chamar de drama clássico ou medieval, por exemplo – nesta acepção, como sinônimo detexto teatral). Já o que o autor chama de drama moderno corresponde à crise e às tentativas de solução daforma do drama absoluto. Em outras palavras, o drama moderno não equivale ao drama da épocamoderna, sendo antes uma transformação deste último.

53 “Para ser relação pura, isto é, dramática, ele deve ser desligado de tudo o que lhe é externo. Ele nãoconhece nada além de si.”

54 “Ele não fala; ele institui a conversação. O drama não é escrito, mas posto. (...) O drama pertence aoautor só como um todo, e essa relação não é parte essencial de seu caráter de obra.”

55 “Assim como a fala dramática não é expressão do autor, ela também não é uma alocução dirigida aopúblico. Ao contrário, este assiste à conversão dramática calado e paralisado pela impressão de umsegundo mundo. Sua passividade total tem de converter-se em uma atividade irracional (e nisso se baseiaa experiência dramática). O espectador é arrancado para o jogo dramático e torna-se o próprio falantepela boca de todas as personagens. A relação espectador-drama conhece somente a separação e aidentidade perfeitas. Não admite a invasão do drama pelo espectador ou a interpelação do espectadorpelo drama.”

56 O palco italiano “não conhece uma passagem para a platéia (escadas, por exemplo), assim como o dramanão se separa do espectador por graus. Ele só se lhe torna visível (e, portanto, existente) no início doespetáculo, e com freqüência só mesmo depois das primeiras palavras. Desse modo, ele parece criadopelo próprio espetáculo. No final do ato, quando cai a cortina, ele volta a se subtrair ao olhar doespectador (como que retomado pela peça e confirmado como algo que pertence a ela.”

57 “O ator e a personagem têm de unir-se, constituindo o homem dramático”.58 No sentido de que “não é a representação (secundária) de algo (primário), mas se representa a si mesmo:

é ele mesmo. Sua ação – bem como suas falas – é originária: ela se dá no presente. O drama não conhecea citação nem a variação”.

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o drama primário, 7) sua época é sempre o presente59, 8) o tempo é unitário60, 9) o espaço

é unitário61, 10) os acontecimentos devem ser motivados62 e, por fim, 11) a totalidade do

drama é de origem dialógica – ou dialética63.

Das onze características apontadas por Szondi, a que mais nos interessa aqui é a

última; por isso, passo imediatamente a sua análise.

4.

Em Platonov, as ações estruturam-se em torno do personagem principal que, assim

como a maioria dos personagens, fala muito. Em suas declarações impetuosas, os

personagens buscam respostas para suas crises, mas essas crises vêm precisamente do fato

de eles falarem muito e fazerem pouco, o que já indica um problema para a forma

tradicional do drama, pois o diálogo dramático consiste fundamentalmente em uma troca

verbal entre os personagens. Segundo Pavis, “o diálogo entre personagens é amiúde

considerado como a forma fundamental e exemplar do drama”. Sendo o teatro concebido

como “apresentação de personagens atuantes, o diálogo passa a ser ‘naturalmente’ a forma

de expressão privilegiada”. No teatro naturalista, em especial, o diálogo tenta simular o

discurso cotidiano dos homens, “com tudo o que ele tem de violento, elíptico ou

inexprimível”. Por isso mesmo, acrescenta Pavis, “ele dará uma impressão de

espontaneidade e de desorganização, reduzindo-se a uma troca de gritos ou de silêncios”.

Ele menciona como exemplo as falas desencontradas das peças de Tchekhov, já que esse

desencontro é comum na fala cotidiana, e não a organização lógica que por vezes se

encontra na tragédia clássica. Comentando o volume dos diálogos, Pavis observa que o

tamanho das falas é determinado em função da dramaturgia empregada na peça:

59 “O decurso temporal do drama é uma seqüência de presentes absolutos”.60 “Se há descontinuidade temporal no drama, toda cena possui uma pré-história e uma continuação

(passado e futuro) fora da representação. Ou seja, cada cena é relativizada. Essa estrutura vai contra oprincípio da seqüência de presentes absolutos. Além disso, somente quando, na seqüência, cada cenaproduz a próxima, é que se torna implícita a presença do montador”.

61 Já que “a descontinuidade espacial – assim como a temporal – pressupõe o eu-épico”.62 “A exigência de excluir o acaso também se baseia no caráter absoluto do drama. No drama, o

contingente incide de fora. Mas, ao ser motivado, ele é fundamentado – isto é, enraizado no solo dopróprio drama”.

63 “Ela não se desenvolve graças à intervenção do eu-épico na obra. O drama se dá mediante a superaçãoda dialética intersubjetiva que se torna linguagem no diálogo. O diálogo é o suporte do drama. Dapossibilidade de diálogo depende a possibilidade do drama.”

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Na tragédia clássica, que não busca que os discursos das personagens sejam dados de

forma naturalista, as diferentes falas serão construídas de acordo com uma retórica muito

sólida: a personagem expõe aí, amiúde muito logicamente, sua argumentação, à qual seu

interlocutor poderá responder ponto por ponto64.

Entretanto, para que o efeito de realidade seja obtido, é preciso que as falas das

personagens se sucedam num ritmo suficientemente elevado; caso contrário, “o texto

dramático assemelha-se a uma sucessão de monólogos que só mantêm relações distantes

entre si”. Em contraste com o diálogo, “o monólogo parece um ornamento arbitrário e

aborrecido que não é visto como adequado à exigência de verossimilhança nas relações

inter-humanas”. É com o diálogo que o efeito de realidade é mais forte, “porquanto o

espectador tem a sensação de assistir a uma forma familiar de comunicação entre

pessoas”.

Com esses conceitos, já podemos entrever o tipo de diálogo apresentado por

Tchekhov em suas peças. Desde Platonov, o autor recorre a breves solilóquios. O

solilóquio (do latim solus, sozinho, e loqui, falar), “mais ainda que o monólogo, refere-se

a uma situação na qual a personagem medita sobre sua situação psicológica e moral,

desvendando assim, graças a uma convenção teatral, o que continuaria a ser simples

monólogo interior”. Como “a técnica do solilóquio revela ao espectador a alma ou o

inconsciente da personagem”, Pavis identifica nisso “sua dimensão épica e lírica”.

Dramaturgicamente, uma das situações em que o solilóquio pode ser pronunciado de

maneira verossímil é o momento de dilema do personagem, na medida em que há então

um “diálogo entre duas exigências morais ou psicológicas que o sujeito é obrigado a

formular em voz alta” 65.

O solilóquio foi um recurso que Tchekhov continuou a empregar em suas peças,

em geral em maior extensão, até eliminá-lo em As três irmãs, peça em que o antigo

funcionário Ferapont é usado como a audiência surda e incapaz de compreender o amargo

desabafo de Andrei66. Assim, vemos que, em maior ou menor medida, Tchekhov rompe

64 PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Verbete DIÁLOGO.65 Idem. Verbete SOLILÓQUIO. 66 Mais adiante, acompanharemos a análise de Peter Szondi faz desse ‘diálogo de surdos’ na peça As trêsirmãs, aproveitando-a como ponto de referência para uma comparação com o diálogo em O jardim dascerejeiras.

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com o critério essencial do diálogo, que é o da “troca e da reversibilidade da

comunicação”.

Portanto, os solilóquios presentes na dramaturgia tchekhoviana desde Platonov

podem ser vistos como as primeiras rachaduras na estrutura do drama, que irão quase se

materializar com a cena final da derrubada da propriedade em O jardim das cerejeiras.

Porém, assim como a demolição da casa é feita nos bastidores – os espectadores e leitores

da peça apenas recebem os sons dos machados abatendo as árvores –, o rompimento da

estrutura do drama em Tchekhov é constatado apenas como tendência, conforme indica

Szondi. É o que espero analisar na próxima seção. Antes, porém, será útil retornar ao livro

Teoria do drama moderno, para observar agora como Szondi parte do conceito de drama

para o de drama moderno.

5.

Esse livro constitui uma tentativa de exposição do desenvolvimento da dramaturgia

moderna. Analisando desde autores que começam a escrever no século XIX, como Ibsen,

Tchekhov e Strindberg, até dramaturgos que trabalham na primeira metade do século XX,

como Sartre, Brecht e Beckett, o autor observa que a principal característica do drama

moderno é a lenta e progressiva eclosão de traços épicos na forma dramática. Szondi parte

da Poética de Aristóteles e acompanha o desenvolvimento do que considera como uma

tradição de poéticas a-históricas – com o termo ele designa as teorias que definiam as

formas literárias como formas fixas e independentes do conteúdo. O que permitia que as

primeiras teorias sobre a literatura exigissem o cumprimento de leis que regeriam a forma

literária era “sua concepção particular de forma, que não conhecia nem a história nem a

dialética entre forma e conteúdo”.

No entanto, a tradição a que o autor se filia e da qual ele parte para elaborar sua

teoria do drama moderno encontra-se em uma posição oposta a essa concepção, na medida

em que parte de uma compreensão histórica e dialética dos gêneros poéticos. Segundo

Szondi, é com o romantismo alemão que a história começa a influenciar o pensamento dos

sistemas formais, tornando-os dinâmicos, mas é na obra de Hegel que essa dinâmica irá se

confundir com o próprio processo histórico. No pólo oposto à poética clássica, essa

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compreensão considera os gêneros como historicamente determinados. Segundo ela, as

formas literárias não são algo que se encontre em qualquer tempo ou em qualquer lugar.

Szondi indica que o que teria levado a essa compreensão histórica da poética dos

gêneros foi a identidade determinada por Hegel entre forma e conteúdo. Ele cita a Ciência

da lógica, onde Hegel diz: “As verdadeiras obras de arte são somente aquelas cujo

conteúdo e forma se revelam completamente idênticos”. Para Hegel, a dialética consiste na

“relação absoluta do conteúdo e da forma, (...) a conversão de uma na outra, de sorte que o

conteúdo não é nada mais que a conversão da forma em conteúdo, e a forma não é nada

mais que a conversão do conteúdo em forma”. Como o crítico aponta, essa identificação

de forma e conteúdo abole a oposição de atemporal e histórico contida na antiga relação,

segundo a qual as formas seriam atemporais e apenas os conteúdos seriam históricos. Ela

tem por conseqüência a historicização não só do conceito de forma mas também a da

própria poética dos gêneros. Assim, a lírica, a épica e a dramática se transformam de

categorias sistemáticas em categorias históricas.

Para o teórico, o passo seguinte foi dado por três autores em especial: Georg

Lukács (em A teoria do romance), Walter Benjamin (na Origem do drama barroco

alemão) e Theodor Adorno (na Filosofia da nova música). Nessas obras, os autores

compreendem a forma como conteúdo “precipitado”. No entanto, esses autores parecem

dar um passo além de Hegel, pois a dialética de forma e conteúdo aparece agora como

dialética entre o enunciado da forma e o enunciado do conteúdo, de modo que é colocada

a possibilidade de que o enunciado do conteúdo entre em contradição com o da forma.

Szondi observa que, quando há correspondência entre forma e conteúdo, a temática

vinculada ao conteúdo opera no quadro do enunciado formal como uma problemática no

interior de algo não problemático. A contradição surge “quando o enunciado formal,

estabelecido e não questionado, é posto em questão pelo conteúdo”. As diversas formas da

dramática moderna surgem a partir da resolução dessas contradições.

Portanto, a relação com a forma clássica do drama é diferente em cada um dos

dramaturgos analisados por Szondi. Em seu estudo da obra dramatúrgica de Tchekhov,

Szondi afirma que, em seus dramas, “os homens vivem sob o signo da renúncia”. Essa

renúncia, que se desdobra em duas frentes – a renúncia ao presente e à comunicação –

acaba convertendo-se na renúncia à felicidade em um encontro real. Para evitar atitudes

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extremadas, a nostalgia e a ironia se vinculam em uma resignação que, segundo o autor,

determina a forma e o lugar de Tchekhov na história do desenvolvimento da dramaturgia

moderna.

Se a renúncia ao presente converte-se em uma vida na lembrança e na utopia, a

renúncia ao encontro materializa-se na solidão. Partindo dessa visão, Szondi identifica As

três irmãs como o mais perfeito dos dramas de Tchekhov, pois “representa

exclusivamente seres solitários, ébrios de lembranças, sonhadores do futuro”. Pressionado

pelo passado e pelo futuro, seu presente é um entretempo, no qual o retorno à pátria

perdida é a única meta. Szondi observa que, “mais ainda do que essa orientação utópica, é

o peso do passado e a insatisfação com o presente que isolam os homens”. Todos os

personagens da peça “refletem sobre sua própria vida, perdem-se em suas lembranças e se

torturam analisando o tédio”. Para Szondi, essa situação coloca

a questão de saber como o tema da recusa à vida presente em favor da lembrança e da

nostalgia, como essa análise perene do próprio destino permite ainda aquela forma

dramática em que se cristalizou outrora a adesão renascentista ao aqui e agora, à relação

intersubjetiva.

Assim, o crítico demonstra que a dupla renúncia que caracteriza as personagens de

Tchekhov corresponde necessariamente à recusa à ação e ao diálogo – as duas mais

importantes categorias formais do drama –, à recusa, portanto, à própria forma dramática.

Porém, o autor faz a ressalva de que “essa recusa é constatada apenas como uma

tendência” pois, apesar da ausência psíquica dos personagens dos dramas tchekhovianos,

eles “continuam a viver em sociedade e não tiram da solidão e da nostalgia as últimas

conseqüências”. Szondi conclui que, assim como eles persistem em um ponto flutuante

entre o mundo e o eu, o agora e o outrora, a forma dos dramas também não renuncia de

todo às categorias de que carece enquanto forma dramática, mas “as conserva como

acessórios desprovidos de ênfase”, permitindo que a temática verdadeira tome forma em

algo negativo, como se desviando dela.

Mais do que qualquer outra peça de Tchekhov, As três irmãs apresenta apenas

rudimentos da ação tradicional. Os eventos apresentados em cada um dos atos têm pouca

relação entre si; por isso, para Szondi, esses momentos, sem significado real, são inseridos

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apenas para “conferir à temática um pouco de movimento que possibilite o diálogo”.

No entanto, até mesmo o diálogo é desprovido de peso; ele é, nas palavras de

Szondi “a cor pálida de fundo do qual se destacam os monólogos debruados de réplicas,

como manchas coloridas em que se condensa o sentido do todo”. Assim, o crítico constata

que a obra vive dessas auto-análises resignadas, que quase todas as personagens

expressam.

Szondi chama atenção para o fato de que os monólogos não o são no sentido

tradicional do termo, já que “em sua origem não se encontra a situação, mas a temática”.

Segundo ele, o monólogo dramático “não formula nada que se subtraia em princípio à

comunicação”, e remete a uma observação de Lukács, em Sociologia do drama moderno,

sobre o célebre exemplo de Hamlet, que “oculta por razões práticas seu estado de espírito

perante as pessoas da corte; talvez justamente porque estas compreendem muito bem que

ele deseja vingar seu pai, que ele tem de vingá-lo”. Porém, Szondi observa que isso não é

o que ocorre em Tchekhov, pois em seus dramas, as palavras não são pronunciadas no

isolamento, mas em sociedade. No entanto, “elas mesmas isolam o que expressam”. Daí

Szondi afirmar que “quase imperceptivelmente, o diálogo inessencial transita para os

solilóquios essenciais”, que “não constituem monólogos isolados, embutidos em uma obra

dialógica; antes, a obra como um todo abandona neles o elemento dramático e se torna

lírica”. Com isso, a linguagem ganha uma evidência maior que no drama, pois “a fala no

drama expressa sempre, além do conteúdo das palavras, o fato de que é fala”; porém,

“quando não há mais nada a dizer, quando algo não pode ser dito, o drama emudece. Mas

na lírica mesmo o silêncio se torna linguagem” – “nela as palavras já não ‘caem’, mas são

expressas com uma evidência que constitui a essência do lírico”. Para Szondi, é

justamente “a essa passagem constante da conversação à lírica da solidão” que a

linguagem tchekhoviana deve seu encanto.

Encontrando assim sua justificativa interna, o monólogo dos dramas tchekhovianos

pode ser inerente ao próprio diálogo. E por isso o diálogo quase nunca se torna um

problema, uma vez que sua contradição interna – a contradição entre a temática

monológica e a expressão dialógica – não basta para levar à explosão da forma dramática.

Contudo, essa possibilidade de expressão está fechada para um personagem –

Andrei, o irmão de Olga, Macha e Irina. Sua solidão força-o ao silêncio, levando-o a evitar

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a sociedade. Por isso ele só fala quando sabe que não será compreendido. Szondi comenta:

Tchekhov dá forma a isso introduzindo Ferapont, um funcionário meio surdo da

administração provincial. (...) O que aparece então como diálogo, com o apoio do motivo

da surdez, é no fundo um monólogo desesperado de Andrei, que tem como contraponto o

discurso igualmente monológico de Ferapont. Enquanto na fala sobre o mesmo objeto se

mostra comumente a possibilidade de um entendimento genuíno, aqui se expressa sua

impossibilidade. A impressão de divergência é tanto mais forte quando ela simula uma

convergência como pano de fundo. O monólogo de Andrei não resulta do diálogo, antes se

desenvolve por meio de sua negação. A expressividade desse “diálogo de surdos” se

baseia no contraste doloroso e paródico com o verdadeiro diálogo, que ele relega assim

para a utopia. Mas isso coloca em questão a própria forma dramática.

Szondi considera que um retorno ao dialogismo ainda é possível em As três irmãs,

uma vez que a supressão do entendimento é tematicamente motivada pela surdez de

Ferapont e as aparições desse personagem permanecem episódicas. Porém, ele observa

que “todo tema cujo conteúdo é mais geral e mais importante que o motivo que o

representa aspira a precipitar em forma”. Por isso a retirada formal do diálogo conduz

necessariamente ao épico, e o surdo de Tchekhov aponta para o futuro.

Tchekhov chegou a usar o recurso da surdez em O jardim das cerejeiras: Firs, o

criado mais antigo da casa, também não ouve bem os comentários dos demais

personagens. Esse dado já é evidenciado em sua primeira aparição, quando se encontra

com a patroa e ela lhe diz que se alegra por encontrá-lo com saúde, ao que ele responde:

“Anteontem”. Gaiev então esclarece que “o velho ouve mal”. Também são freqüentes por

parte de Firs comentários fora de propósito nas conversas de que participa. Em

determinado momento, ele fica resmungando algo sozinho, o que leva Vária a explicar a

Liuba: “Há três anos ele anda dizendo coisas sem sentido, nós já nos acostumamos”. Mas

os maiores absurdos são proferidos por Firs quando fala de sua situação de servo, como no

exemplo a seguir:

FIRS Pois então, eu vivo há já um bocado de tempo. Quando o pai da senhora ainda não

havia nascido já queriam me casar... (Ri.) E quando houve aquela grande libertação dos

servos eu já era criado interno. Não precisava daquela, como se chama... daquela alforria,

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permaneci direitinho junto ao patrão... (Pausa.) E olhe, me lembro bem de que todos

estavam contentes, mas nem eles mesmos sabiam por quê.

LOPAKHIN Antigamente é que era bom! Pelo menos se açoitava!

FIRS (não ouviu bem) Digo o mesmo, a gente sabia quem era o camponês e quem era o

senhor. Agora está tudo misturado, não se entende nada.

Nesse trecho, podemos levar em conta a indicação explícita na rubrica de que Firs

não compreendeu direito o comentário de Lopakhin, que assume por um momento o ponto

de vista do patrão, segundo o qual seria lícito infligir castigos corporais aos servos, e

parecendo esquecer-se de suas origens camponesas. Porém, no segundo ato, no momento

em que se ouve um som vindo do céu, Firs comenta: “Antes da grande desgraça acontecia

o mesmo: a coruja gritava e o samovar zumbia, ambos sem parar...”. Gaiev pergunta:

“Antes de qual desgraça?”, e ele responde: “Antes de nos alforriarem”.

Por enigmática que seja a postura de Firs quanto a sua situação, é preciso observar

que o recurso à surdez do personagem nessa peça é feito de modo bastante diverso daquele

empregado em As três irmãs. Portanto, em uma breve comparação entre as duas peças, o

que se pode dizer é que, se As três irmãs de fato apresenta o nexo entre as ações mais

precário entre todas as peças de Tchekhov, e se o texto ainda inova na maneira de explorar

a surdez de Ferapont, O jardim das cerejeiras, por sua vez, alcança um equilíbrio maior

entre a inovação formal e a representação do drama social da época. No início de seu

ensaio sobre a peça, Edward Braun menciona um artigo de Georg Lukács, escrito em

1963, em que o crítico e filósofo marxista resumia sua crítica do teatro épico de Brecht

questionando seu modo de retratar as mudanças sociais. Lukács aludia a outros escritores

que conseguiam dramatizar as contradições de uma dada ordem social, não só

surpreendendo as platéias mas também as comovendo profundamente, mesmo sem utilizar

o que chamava de ‘efeitos de alienação’, e citava como exemplo os dramas tchekhovianos.

As peças de Tchekhov são construídas a partir do conflito entre as intenções subjetivas dos

personagens e seu significado objetivo. Isso cria constantemente uma impressão dividida

na mente da platéia. Por um lado, eles entendem os sentimentos dos personagens e podem

até simpatizar com eles. Ao mesmo tempo, são forçados a uma intensa experiência do

conflito trágico, tragicômico ou cômico entre esses sentimentos subjetivos e a realidade

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social objetiva.

A observação leva Edward Braun a se questionar se a realidade social objetiva é de

fato um fator aparente e determinante em todas as peças de Tchekhov. Ele vê essas

características bem definidas em seus dois primeiros dramas. Em Platonov, a ação caótica

serve para oferecer um retrato da classe de proprietários rurais em estágio terminal. De

modo semelhante, na sua peça seguinte o personagem Ivanov corporifica o sentido de

inutilidade e desilusão que paralisou as classes instruídas quando as grandes esperanças da

reforma liberal e da modernização geradas pela emancipação dos servos foram extintas

após a ascensão do czar Alexandre III, em 1881. Porém, Braun nota que, em comparação

com essas obras inicias, há poucas referências ao contexto social mais amplo nas três

peças seguintes (A gaivota, Tio Vânia e As três irmãs). É apenas em O jardim das

cerejeiras que o processo de mudança social torna-se a questão central, o que resultou em

uma peça na qual a originalidade da forma e a complexidade do tema superaram

largamente as peças precedentes. Nas considerações a seguir, tentarei comprovar esse

ponto de vista analisando o modo como Tchekhov conjuga a observação social à estrutura

do drama – ou, em outras palavras, o modo como relaciona o enunciado do conteúdo ao

enunciado da forma.

6.

Comparando Platonov e O jardim das cerejeiras, uma generalização possível de se

fazer é em relação ao método usado por Tchekhov. O desenvolvimento de sua dramaturgia

se dá muito mais no plano do apagar do que do criar. Esse processo pode ser visto na

condensação dos cenários dos dois quadros do segundo ato de Platonov. O cenário do

primeiro quadro é descrito da seguinte maneira:

Um jardim. Em primeiro plano, um canteiro de flores e uma pequena alameda circular. No

meio do canteiro, uma estátua com um lampião sobre a cabeça. Bancos, cadeiras, pequenas

mesas. À direita, a fachada da casa. Uma escada. Pelas janelas abertas ouvem-se risos e

vozes, além dos sons de um piano e de um violão (quadrilhas, valsas etc.). Ao fundo do

jardim, um quiosque chinês, (...). Atrás do quiosque, um jogo de boliche; (...). O jardim e a

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casa estão iluminados. Convidados e empregados circulam pelo jardim. (...)

E o do segundo quadro:

A floresta na entrada de uma clareira entre as árvores; à esquerda, a escola. Ao longo da

clareira que se perde no horizonte, uma linha de caminho de ferro que vira à direita perto

da escola. Uma fileira de postes telegráficos. É noite.

Os dois cenários parecem condensar-se no cenário do 2º. ato de O jardim das

cerejeiras:

O campo. Uma velha capelinha abandonada, ameaçando ruir. Junto a ela um poço com

grandes pedras de granito, que algum dia certamente foram lápides; um velho banco. Vê-se

o caminho que conduz à propriedade de Gaiev. De um lado se elevam álamos que projetam

a sua sombra; ali começa o jardim das cerejeiras. Mais distante uma fileira de postes

telegráficos e bem longe, no horizonte, vêem-se os contornos vagos de uma cidade grande,

nítidos apenas nos dias claros. Logo o sol irá se pôr.

Sentados no banco estão Charlotta, Iacha e Duniacha; Epikhodov, de pé ao seu lado, toca

violão. Todos o ouvem, em devaneios. (...)

A um primeiro olhar, a descrição dos cenários parece casual, juntando apenas um

mínimo de elementos necessários para estabelecer a verossimilhança da ação e para

fornecer um lugar onde os personagens possam conversar. Contudo, a um segundo olhar

mais atento, percebemos que nada é gratuito nas escolhas realizadas por Tchekhov: ao

fundo do jardim em que esses personagens se reúnem para uma festa ou para um chá, o

dramaturgo dissimuladamente coloca uma linha de caminho de ferro e uma fileira de

postes telegráficos, caracterizando com isso a tensão entre o atraso do campo e o

progresso representado pela cidade, que permanece, em todas as suas peças, apenas

referida na fala dos personagens ou figurada à distância. Ao concentrar, em O jardim das

cerejeiras, certos elementos presentes em Platonov, Tchekhov intensifica sua significação.

Esse procedimento também pode ser observado a partir de uma breve comparação

entre os grupos de personagens das duas peças. Em Platonov, há um numeroso grupo de

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proprietários rurais – o qual, tirando-se Ana Petrovna e seu enteado Serguei Voïnitzev, é

composto por sete personagens, alguns dos quais têm pouca participação na peça. Todo

esse grupo de proprietários de terras é reduzido, em O jardim das cerejeiras, a um só

personagem, Boris Simeonov-Pichtchik, suficiente para fornecer um interessante

contraponto ao desfecho de Liuba: assim como sua amiga, Pichtchik está com a

propriedade em vias de ir a leilão. No entanto, embora se assemelhe a Liuba na

incapacidade de buscar soluções eficazes para seu problema, Pichtchik é brindado pela

sorte, e no fim da peça um grupo de ingleses descobre argila branca em suas terras, que

passam a alugar, livrando-o do endividamento.

Outra mudança interessante – que já não atesta o recurso da condensação, mas uma

transformação na estrutura social – é a maior importância que os criados assumem em O

jardim das cerejeiras. Em Platonov, sua ação restringe-se, assim como na comédia

clássica, na commedia dell’arte, no drama neoclássico e no melodrama, a ajudar os patrões

em suas intrigas amorosas, principalmente entregando bilhetes e cartas de amor (como faz

Kátia, a empregada de Sofia em Platonov). Em O jardim das cerejeiras, porém, o grupo

dos criados é um dos mais interessantes e Tchekhov se esmera na composição de cada um.

Assim, Duniacha mostra a situação dos empregados que, trabalhando na casa

principal e crescendo com a família, esquecem-se das diferenças entre as classes sociais.

Iacha, tendo servido Liuba em Paris, volta deslumbrado e não consegue mais

agüentar a ignorância de seu país natal; por isso, implora que a patroa o leve consigo

quando a propriedade é vendida. A evidência concedida a esse grupo de personagens

parece ser um indício da mistura social que começa a ocorrer no período, e que é

caracterizada na fala de Firs, já citada, em que ele diz que antigamente se sabia quem era

o senhor e quem era o camponês, mas “agora está tudo misturado, não se entende nada”.

O baile, que ocorre no terceiro ato, paralelamente ao leilão da propriedade, é

eloqüente neste sentido. Duniacha justifica sua participação na festa: “A senhorinha disse

que eu também devo dançar, pois são muitos os dançarinos e poucas as damas...”. Firs

reclama da classe dos convidados:

FIRS – Não me sinto nada bem. Antes só generais, barões e almirantes vinham dançar em

nossas festas... Agora foram convidados o chefe dos correios e o chefe da estação, e eles não

se sentem nem um pouco honrados com esse convite.

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Além disso, Vária, a filha adotiva de Liuba, reclama da presença de Epikhodov, o

contador da família, no baile:

IACHA (mal contendo o riso) Epikhodov quebrou um taco! (Sai.)

VÁRIA – O que faz aqui Epikhodov? E quem lhe permitiu jogar bilhar? Não entendo essa

gente.

(...)

VÁRIA – Semion, ainda aqui? Você não tem mesmo a menor decência! (...) Vai jogar

bilhar e quebra o taco! E depois fica andando por aqui, de um lado para outro, como se

fosse um convidado!

O sentido humilhante do declínio social parece ter sido bem representado na

montagem original do Teatro de Arte de Moscou, como indica o diário de ensaio de

Stanislavski:

Um baile completamente malogrado. Pouquíssimos convidados. Metade daqueles que

dançam não sabem os passos das danças e menos ainda da grande ronde... O silêncio

impera durante toda a noite, de modo que eles parecem ter ido a um velório. Assim que a

dança acaba todos fazem uma pausa e então voltam para seus lugares ao longo da parede.

Eles se sentam e se abanam. Quando alguém rompe o silêncio passando pelo salão ou

começando a falar algo, todos demonstram embaraço e o infrator imediatamente sente-se

culpado por causar o distúrbio, e o salão fica ainda mais silencioso e embaraçoso.

Mudança qualitativa na representação dos criados, concentração do grupo de

proprietários de terras na figura de um só personagem: estes não são os únicos recursos de

que Tchekhov lança mão na composição dos personagens. Como observei anteriormente,

é inegável que Platonov encontra correspondência no Trofimov de O jardim das

cerejeiras (ambos são caracterizados como livre-pensadores e acreditam se diferenciar dos

demais personagens). No entanto, parece haver uma diluição da principal característica de

Platonov nos diversos personagens de O jardim das cerejeiras:

Acho que Platonov é um ótimo exemplo da indefinição moderna. Ele é o herói de nosso

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melhor romance, um romance que ainda não foi escrito, lamento dizer. (Ri.) A indefinição

me parece típica da sociedade moderna, e o seu romancista russo o sente. Ele está em um

impasse, perdeu o rumo, ele não tem nada a que se agarrar, ele não compreende... É difícil

compreender todos esses homens! (Aponta Voïnitzev.) Os romances são ruins, artificiais,

mesquinhos... é natural! Tudo é tão vago e indefinido – é uma grande confusão caótica. E é

essa indefinição que o sagaz Platonov tipifica, eu acho.

A indeterminação, tão concentrada em Platonov, é diluída em vários personagens

em O jardim das cerejeiras. (A característica se aplica apenas parcialmente a Lopakhin, já

que ele demonstra determinação na forma como busca alcançar seus objetivos nos

negócios, mas não no amor, revelando uma atitude indefinida em relação a Vária, com

quem iria se casar.) Edward Braun afirma que, em peças anteriores de Tchekhov, é

possível identificar um personagem como agente da desintegração, mas em O jardim das

cerejeiras torna-se claro que todos estão à mercê de um processo de mudança que está

além de seu controle e compreensão.

Centrada no personagem principal, a ação de Platonov exemplifica uma prática

seguida por Tchekhov nas primeiras peças, nas quais opõe o protagonista à sociedade. Aos

poucos, porém, há uma mudança de perspectiva, perceptível nos títulos de suas peças:

começando por adotar uma perspectiva centrada em um personagem (Platonov, Ivanov, O

Silvano, A gaivota, O tio Vânia), essa perspectiva torna-se coletiva (As três irmãs e O

jardim das cerejeiras). Embora seja possível dizer que a partir de O tio Vânia o sentido do

fracasso é estendido a todo o grupo social, é curioso notar que ele só se reflete no título

das duas últimas peças.

O título da última peça se destaca em relação aos demais por apontar uma mudança

de perspectiva para o ambiente, embora isso não seja feito de maneira determinista: em O

jardim das cerejeiras, observa-se a construção de um discurso polifônico criado a partir do

modo como o jardim é visto pelos diferentes personagens. Assim, como procurei

demonstrar no capítulo anterior, o jardim torna-se um signo polissêmico: é visto como

lugar de nascimento e de deleite estético por Liuba e seu irmão Gaiev, como possibilidade

de exploração com vistas ao lucro por Lopakhin, e como símbolo da exploração dos

proprietários rurais por Trofimov.

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7.

Um mesmo tema liga a primeira à última peça de Tchekhov; no entanto, em

Platonov, a perda da propriedade está em segundo plano. O simples fato de que a peça

enfatiza os envolvimentos amorosos aponta para sua ligação com uma dramaturgia de tipo

antigo, da qual Tchekhov pouco a pouco se afasta. Assim, o período que separa a escrita

de Platonov e a de O jardim das cerejeiras marca uma mudança não só na dramaturgia

mas também na história, e ao alterar o foco na última peça, Tchekhov demonstra uma

intensificação da consciência do processo social. A mudança de gênero – de drama, na

primeira peça, para comédia, na última – parece indicar ainda uma visão mais irônica e

amarga por parte de Tchekhov.

Entre as duas peças parece haver também um processo de concentração: em O

jardim das cerejeiras, os personagens falam menos, mas a peça diz mais. Assim, há um

processo paralelo na forma (do falatório ao silêncio) e no conteúdo (do individual ao

social). Nessa condensação, ele capta melhor o processo social do período.

Em ambas as peças, uma propriedade rural vai a leilão. No entanto, na última, o

símbolo é intensificado na imagem bíblica do jardim – parecendo nos dizer que, na era do

capital, o valor do paraíso já não é o de uso mas o de troca, e só nos resta colocá-lo à

venda. A última cena da obra dramatúrgica de Tchekhov nos mostra assim o fim de um

mundo: o som das machadadas derrubando o jardim sela o declínio de uma época na qual

a economia baseava-se nas atividades ligadas ao campo, e o desfecho de alguns

personagens, que partem para a cidade em busca de trabalho, aponta para o novo eixo

econômico que marcará o século XX. Deste modo, no percurso que vai de Platonov a O

jardim das cerejeiras, Tchekhov imprime uma revolução na dramaturgia e, ao captar as

transformações históricas do período na própria forma de sua obra, escreve o que talvez

seja o mais belo epitáfio para o século XIX.

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COMÉDIA, DRAMA OU TRAGÉDIA?

Nas cartas reproduzidas ao fim de uma das edições brasileiras de O jardim das

cerejeiras67, Tchekhov chama atenção para uma leitura deturpada da peça, que era

anunciada como um drama, e não como uma comédia, segundo a indicação sob o título:

“comédia em quatro atos”.

Por que teimam em anunciar nos cartazes a minha peça como drama? Decididamente,

Nemirovitch e Alekseiev não vêem nela aquilo que escrevi, e posso garantir que eles não a

leram com atenção uma vez sequer. Perdoa-me, mas tenho certeza disso.

Comentando a escolha dos atores, Tchekhov temia que a atriz que representaria

Ánia transformasse a personagem “numa choradeira sem fim”. De acordo com a

concepção do dramaturgo, essa personagem, “antes de mais nada, é uma criança, alegre do

início ao fim”, e “não chora uma vez sequer, a não ser no segundo ato, quando lágrimas

lhe vêm aos olhos”. Sua preocupação com o peso dramático assumido na encenação

estende-se a outros personagens, conforme a impressão transmitida por Nemirovitch-

Dantchenko em uma correspondência, que suscita o seguinte comentário de Tchekhov:

Por que você escreve no telegrama que muita gente chora na peça? Onde? Apenas Vária

chora, e se o faz é porque é chorona por natureza; suas lágrimas não devem despertar no

público uma sensação de desânimo. A indicação freqüente “com lágrimas nos olhos”

sugere apenas o estado de espírito do personagem e não choro.

Em outra carta, o autor enfatiza o caráter cômico da peça: “Acabou não sendo

drama, mas uma comédia, em alguns momentos até farsa”. Além das indicações explícitas

nas cartas mencionadas (que não deixariam margem a dúvidas, portanto), Tchekhov tinha

por hábito indicar o gênero de suas peças logo abaixo do título. Se observarmos o gênero

atribuído pelo dramaturgo a cada uma de suas peças longas, notaremos que sua obra

apresenta uma oscilação entre comédias e dramas, como indica a lista a seguir:

67 TCHEKHOV, Anton. Teatro II. As três irmãs. O jardim das cerejeiras. São Paulo: Editora Veredas,1998.

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Platonov (1878-1881) – drama em quatro atos

Ivanov (1887) – drama em quatro atos

O Silvano (1889) – comédia em quatro atos

A Gaivota (1896) – comédia em quatro atos

O Tio Vania (1897) – cenas da vida rural, em quatro atos

As Três Irmãs (1900-1901) – drama em quatro atos

O Jardim das Cerejeiras (1903-1904) – comédia em quatro atos

Ora, acabamos de observar que o próprio autor não se furta a definir com bastante

precisão o gênero de cada uma de suas peças. De onde, então, provém tanta confusão

quanto ao tom que deveria ser seguido por atores e diretores nas encenações de seus

textos?

Primeiro é preciso destacar que o próprio Tchekhov diversas vezes manifestou

certo estranhamento em relação a suas criações: “Minhas peças não me proporcionam

nunca os sentimentos habitualmente experimentados pelo autor, mas sim sentimentos

muito estranhos”. Até que ponto esse estranhamento provocado no escritor por suas obras

não estaria relacionado a uma feição de fato estranha desses textos? E o estranho, como já

tivemos a oportunidade de perceber até aqui, provém nestes casos de certa indefinição

relativa ao gênero das peças.

Segundo, cabe lembrar que a confusão não se refere apenas a O jardim das

cerejeiras, nem apenas às peças de Tchekhov, já que até mesmo os contos do escritor

provocaram estranhamento a princípio. A forma de seus textos narrativos era a tal ponto

inusitada que Tchekhov ficou conhecido como um dos grandes criadores do conto

moderno (que se diferenciou do conto tradicional principalmente devido aos finais em

aberto e à ausência de clímax).

No entanto, o objeto deste trabalho é uma peça específica dentro da enorme obra

de Tchekhov; por isso, devemos nos ater aos limites impostos por sua análise, buscando

perceber quais elementos poderiam ser responsáveis por dar origem a tantas interpretações

divergentes quanto ao gênero a que pertence O jardim das cerejeiras. Se quisermos

inverter os termos da análise, o procedimento poderia ser o de tentar identificar traços dos

diferentes gêneros na obra, para tentar estabelecer se o texto, afinal de contas, constitui

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uma comédia, um drama, ou ainda – como propõe o crítico inglês Raymond Williams –

uma tragédia. Comecemos o estudo da peça pelo caráter atribuído pelo autor a seu texto.

1. COM O OLHAR FIXO NUMA ESTRELA

É possível iniciar a análise dos aspectos cômicos da peça por um dos

procedimentos mais comuns da comédia clássica: a repetição. Esta primeira pista nos leva

a rastrear atitudes e gestos repetitivos dos diversos personagens. Curiosamente, dois dos

personagens que mais apresentam traços cômicos estão envolvidos em um drama pessoal:

trata-se de Gaiev e Liuba. Ambos apresentam certos tipos de comportamento recorrente

que, como veremos, prestam-se bem ao riso. Fixemo-nos primeiramente em Liuba. As

atitudes involuntárias da personagem são relatadas por sua filha Ánia logo no primeiro ato.

A moça diz que, quando ela chegou a Paris, sua mãe

já tinha vendido há muito tempo a casa de campo em Menton e não lhe restava nada, mas

nada mesmo. A mim tampouco sobrara um único copeque, e foi um milagre divino termos

conseguido de algum modo voltar para casa. E além disso mãezinha não faz a mínima idéia

sobre nada... Lá estamos nós sentados no carro-restaurante para comer alguma coisa, e é

claro que ela pede logo o prato mais caro e dá um rublo de gorjeta a cada um dos garçons.

Charlotta e o infame do Iacha tampouco se incomodam com os gastos. É terrível!

Não se trata aqui, como talvez possa parecer, de um comportamento esnobe ou de

uma tentativa de aparentar uma situação estável. Tanto que, quando Pichtchik pede

dinheiro, Liuba diz que não tem; logo depois, ele pede de novo, e ela empresta:

PICHTCHIK (...) Liubov Andreievna, minha querida amiga, eu necessitaria muito

daqueles... hum... duzentos e quarenta rublos.

GAIEV E esse, sempre com a mesma cantilena!

PICHTCHIK Duzentos e quarenta rublos... para pagar os juros!

LIUBOV ANDREIEVNA Mas se eu mesma não os tenho, amiguinho...

PICHTCHIK Eu devolveria, meu anjinho... é uma soma tão insignificante!

LIUBOV ANDREIEVNA Está bem, está bem, Leonid lhe dará... Dê-lhe, Leonid...

GAIEV Eu lhe dou, mas é melhor ele esperar sentado...

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LIUBOV ANDREIEVNA Mas o que podemos fazer? Vá, dê-lhe o dinheiro, já que ele

precisa. Com certeza devolverá.

(...)

GAIEV Liuba é sempre a mesma! Joga o dinheiro pela janela.

Tal atitude é freqüente na personagem, como fica evidente na seguinte fala de

Ánia: “A mãezinha não tem jeito mesmo; ela entregaria o seu último copeque, se nós

deixássemos!”. O involuntário de seu gesto não passa despercebido à própria Liuba:

LIUBOV ANDREIEVNA (olhando dentro da bolsa) Ontem a minha bolsa ainda estava

cheia de dinheiro e hoje de novo se esvaziou... A pobre Vária economiza, só nos serve sopa

de leite, a criadagem come dia após dia ervilha seca... E eu esbanjo o dinheiro, como uma

tonta.

No Terceiro Ato, durante o baile, Vária “medita com amargor”: “Veja... Chamaram

até músicos... depois, quem os pagará?”. Mesmo após perder a propriedade, Liuba

distribui dinheiro para os camponeses quando estes vêm se despedir da família. Gaiev

repreende a irmã (“De novo você lhes deu a sua bolsa, Liuba! Não precisava ter feito

isso!”), ao que ela responde demonstrando como essa atitude lhe é inerente: “Não pude

agir de outra maneira! Não pude...”.

A repetição parece estar tão intimamente ligada ao cômico que já chegou a constar

como uma definição da comicidade. No entanto, a repetição não é cômica por si mesma.

Henri Bergson, em O Riso – Ensaio sobre a Significação da Comicidade, lança luzes

sobre os mecanismos de produção do cômico. Neste livro, o filósofo critica “o método

geralmente seguido, que visa a encerrar os efeitos cômicos numa fórmula muito ampla e

simples”, e propõe um encaminhamento diferente para sua análise, qual seja, o de

determinar os procedimentos de fabricação da comicidade. Segundo o autor, o seu é o

único método “que comporta precisão e rigor científicos”. Em vez de tentar “encerrar a

invenção cômica numa definição”, Bergson diz ver nela, “acima de tudo, algo vivo”; por

isso, pretende tratá-la “com o respeito que se deve à vida”.

A primeira observação importante feita por Bergson é a de que a comicidade deve

ser procurada no humano. “Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime,

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insignificante ou feia; nunca será risível. Rimos de um animal, mas por ter surpreendido

nele uma atitude humana ou uma expressão humana.” Tchekhov parece ter seguido

princípio semelhante, já que em suas cartas sugeria que a natureza fosse comparada às

ações humanas. Bergson acrescenta:

Como um fato tão importante, em sua simplicidade, não chamou mais a atenção dos

filósofos? Vários definiram o homem como ‘um animal que sabe rir’. Poderiam também

tê-lo definido como um animal que faz rir, pois, se algum outro animal ou um objeto

inanimado consegue fazer rir, é devido a uma semelhança com o homem, à marca que o

homem lhe imprime ou ao uso que o homem lhe dá.

A segunda condição estabelecida pelo autor é a de que a insensibilidade

ordinariamente acompanha o riso:

Parece que a comicidade só poderá produzir comoção se cair sobre uma superfície d’alma

serena e tranqüila. A indiferença é seu meio natural. O riso não tem maior inimigo que a

emoção. Não quero com isso dizer que não podemos rir de uma pessoa que nos inspire

piedade, por exemplo, ou mesmo afeição: é que então, por alguns instantes, será preciso

esquecer essa afeição, calar essa piedade.

O autor conclui afirmando que “a comicidade exige enfim algo como uma anestesia

momentânea do coração. Ela se dirige à inteligência pura.” Nas cartas em que aconselhava

seus interlocutores sobre a criação de contos, são constantes as indicações de Tchekhov

para que aqueles se guiassem pela objetividade. Sabendo que o dramaturgo observava os

mesmos princípios que indicava aos amigos, é como se Tchekhov criasse constantemente

o clima propício para a eclosão da comicidade.

A terceira observação importante feita por Bergson diz respeito à função social do

riso. O ensaísta fornece o seguinte exemplo:

Um homem, correndo pela rua, tropeça e cai: os transeuntes riem. Não ririam dele, acredito,

se fosse possível supor que de repente lhe deu na veneta de sentar-se no chão. Riem porque

ele se sentou no chão involuntariamente. Portanto, não é sua mudança brusca de atitude que

provoca o riso, é o que há de involuntário na mudança, é o mau jeito. Talvez houvesse uma

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pedra no caminho. Teria sido preciso mudar o passo ou contornar o obstáculo. Mas, por falta

de flexibilidade, por distração ou obstinação do corpo, por um efeito de rigidez ou de

velocidade adquirida, os músculos continuaram realizando o mesmo movimento quando as

circunstâncias exigiam outra coisa. Por isso o homem caiu, e disso riem os transeuntes.

Tentemos agora aplicar esse raciocínio a O jardim das cerejeiras: uma mulher,

outrora rica mas agora empobrecida, distribui gorjetas; os espectadores riem. Não ririam

dela se fosse possível supor que de repente lhe deu na veneta de dar dinheiro a quem

precisa. Riem porque ela fez isso sem pensar em sua situação atual.

De certo modo, as atitudes de Liuba também obedecem a um movimento

involuntário, a uma velocidade adquirida: acostumada à opulência e ao dolce far niente,

não consegue mudar seu ritmo quando a situação assim o exige; por isso, Liuba continua

distribuindo dinheiro como se ainda o tivesse em abundância. Ela obedece ao ritmo de sua

classe quando esta está desaparecendo, e por isso provoca o riso na platéia. Assim,

podemos concluir com Bergson: o que há de risível neste caso é “certa rigidez mecânica

quando seria de se esperar a maleabilidade atenta e a flexibilidade vívida de uma pessoa”.

Há, no entanto, uma diferença importante entre os dois casos em análise. No

exemplo fornecido por Bergson, a comicidade provém de uma circunstância exterior; ela

é, portanto, acidental (nas palavras do filósofo, “está na superfície da pessoa”). Bergson se

pergunta:

Como penetrará no interior? Será necessário que, para revelar-se, a rigidez mecânica já

não precise de um obstáculo colocado diante dela pelo acaso das circunstâncias ou pela

malícia do homem. Será preciso que ela extraia de seu próprio fundo, por uma operação

natural, a ocasião incessantemente renovada de manifestar-se exteriormente. Imaginemos,

pois, um espírito sempre voltado para o que acaba de fazer, jamais para o que faz, como

uma melodia atrasada em relação ao acompanhamento. Imaginemos certa falta de

elasticidade inata dos sentidos e da inteligência, em virtude da qual se continua a ver o que

já não existe, a ouvir o que já não ressoa, a dizer o que já não convém, enfim a adaptar-se

a uma situação passada e imaginária quando seria preciso moldar-se pela realidade

presente. A comicidade se situará, dessa vez, na própria pessoa: é a pessoa que lhe

fornecerá tudo, matéria e forma, causa e ocasião. Será de surpreender que o distraído (pois

essa é a personagem que acabamos de descrever) tenha tentado com freqüência a verve

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dos autores cômicos?

É assim que Bergson descreve a comicidade que provém de uma circunstância

interna, o que nos traz de volta a nosso exemplo. Do mesmo modo que Liuba revela-se

profundamente ligada a seu passado (e aos valores que a guiavam então), Gaiev também

demonstra não ter percebido a passagem do tempo. Logo no primeiro ato, durante a

recepção a Liuba, que acaba de chegar de viagem, o irmão lhe diz, em relação ao quarto

das crianças: “Lembra-se, querida irmãzinha... Outrora nós dois dormíamos neste quarto...

e... e agora eu sou um pobre e velho bebê de cinqüenta e um anos. Que estranho, não é?”.

É curioso observar o espanto com que Gaiev se depara com o passar do tempo, algo

perfeitamente aceito por Lopakhin, conforme atesta no comentário que segue a fala de

Gaiev: “Pois é, o tempo passa.” Contudo, não é apenas neste breve comentário que o

futuro proprietário do jardim das cerejeiras (que, não nos esqueçamos, muito em breve se

transformará num loteamento para veranistas) demonstra sua consciência do tempo, mas

em sua constante preocupação com prazos e horas, conforme demonstrado anteriormente.

Se a passagem do tempo é vista como algo natural para Lopakhin, que rege suas

ações de acordo com prazos e cálculos minuciosos, ela é percebida como um fato

inverossímil para o casal de irmãos. Assim como é inverossímil para Liuba a perda da

propriedade: “Essa desgraça me parece tão inverossímil que não sei o que pensar, estou

desorientada”. Na mesma passagem do primeiro ato em que Liuba é recepcionada pela

família e mata as saudades do jardim, Gaiev comenta: “E agora, por estranho que pareça,

esse jardim será leiloado...”. É com estranhamento, portanto, que os dois irmãos se

deparam com o tempo presente.

Bergson menciona o protótipo do distraído. Assim são Liuba e Gaiev: duas almas

voltadas para o passado, quando seria preciso reagir ao presente, à circunstância que se

coloca diante deles e cuja urgência vem expressa nas palavras com que Lopakhin implora

por uma resposta por parte dos amigos: “Está mais que na hora de tomar uma decisão. O

tempo não espera. Querem o loteamento ou não querem? Preciso de uma resposta o mais

breve possível: sim ou não? Apenas uma palavra!”. Apesar de constantes apelos

semelhantes a esse, os dois irmãos permanecem inertes em relação ao próprio futuro.

A esse respeito, é importante ainda notar a constituição dos dois atos

intermediários da peça: em contraste com estes, o primeiro e o quarto atos agrupam-se por

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serem formados pela chegada e partida da família da propriedade; já o segundo e o

terceiro são constituídos, respectivamente, por conversas no jardim e por um baile que

ocorre paralelamente ao leilão no qual a propriedade é arrematada por Lopakhin. Acentua-

se, deste modo, a inércia de Gaiev e Liuba diante de seus destinos e a impressão da

incapacidade dos dois de lidarem com os dados da realidade. É lícito concluir então que os

dois irmãos vivem no presente, mas seguem os valores, normas e condutas de um passado

que já não existe mais e cujo fim iminente os dois não conseguem perceber.

Na história da literatura, há um personagem que conjuga à perfeição um tal estado

de coisas: trata-se de Dom Quixote. É a ele que Bergson recorre para demonstrar como

age um personagem no cúmulo da distração:

“(...) quando certo efeito cômico deriva de certa causa, o efeito nos parece tanto mais

cômico quanto mais natural consideramos a causa. Rimos já da distração que nos é

apresentada como simples fato. Mais risível será a distração que tivermos visto nascer e

crescer diante de nossos olhos, cuja origem conheceremos e cuja história poderemos

reconstituir. Suponhamos, pois, para tomar um exemplo preciso, que um indivíduo tenha

feito dos romances de amor ou de cavalaria sua leitura habitual. Atraído, fascinado por

seus heróis, vai aos poucos destinando apenas a eles pensamento e vontade. Ei-lo a

circular entre nós como um sonâmbulo. Suas ações são distrações. Só que todas essas

distrações se vinculam a uma causa conhecida e positiva. Já não são, pura e simplesmente,

ausências; são explicadas pela presença do indivíduo num meio bem definido, embora

imaginário. Sem dúvida uma queda é sempre uma queda, mas uma coisa é deixar-se cair

num poço por estar olhando sabe-se lá para onde, outra coisa é cair por estar com o olhar

fixo numa estrela. Era exatamente uma estrela que Dom Quixote contemplava. Que

profunda comicidade a do romanesco e do espírito quimérico! E no entanto, se

restabelecermos a idéia de distração que deve servir de intermediária, veremos essa

profundíssima comicidade vincular-se à comicidade mais superficial. Sim, esses espíritos

quiméricos, esses exaltados, esses loucos tão estranhamente razoáveis fazem-nos rir

tocando as mesmas cordas em nós, acionando o mesmo mecanismo interior que era

acionado pela vítima de uma farsa de gabinete ou pelo transeunte a escorregar na rua. São

eles também corredores que caem e ingênuos que são mistificados, corredores do ideal que

tropeçam nas realidades, sonhadores cândidos que a vida espreita maliciosamente. Mas

são sobretudo grandes distraídos, superiores aos outros porque sua distração é sistemática,

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organizada em torno de uma idéia central, porque suas desditas também são bem conexas,

conexas pela inexorável lógica que a realidade aplica para corrigir o sonho, e porque assim

provocam em torno de si, por meio de efeitos capazes de sempre somar-se uns aos outros,

um riso indefinidamente crescente”.

As observações presentes na passagem apontam para algumas questões relativas à

peça que vimos observando até aqui: qual a idéia central em torno da qual a distração de

Gaiev e Liuba é organizada? Quais as confusões que enfrentam no choque entre sonho e

realidade? Qual o efeito cômico obtido com esses constantes choques?

Até aqui, observamos a repetição se desdobrar em uma série de efeitos cômicos,

atingindo o auge na distração. Uma outra fonte produtiva para a comédia, ainda um

desdobramento daquela idéia inicial, é o vício. Bergson pergunta: “Aquilo que a rigidez da

idéia fixa é para o espírito, não serão certos vícios para o caráter?”. No entanto, o filósofo

alerta para a existência de vícios trágicos. “Mas o vício que nos tornará cômicos é, ao

contrário, aquele que nos é trazido de fora como uma moldura pronta na qual nos

inseriremos. Ele nos impõe sua rigidez, em vez de tomar-nos a maleabilidade. Não o

complicamos: é ele, ao contrário, que nos simplifica”. Podemos pensar aqui no jogo para

Gaiev.

Se a irmã continua com ares de grande proprietária mesmo após perder tudo,

Gaiev, por seu lado, também revela a permanência anacrônica de certos hábitos

aristocráticos. Seu ócio é canalizado para o jogo e comicamente fixado por Tchekhov no

gesto imaginário de acertar a bola “direto na caçapa do canto...”, uma fala constante de

Gaiev. As expressões do jogo de bilhar permeiam o discurso deste personagem e, assim

como em Liuba, parecem constituir uma segunda natureza, de tal maneira manifestam-se

involuntariamente: “Os meus braços já estão começando a tremer, tal é a vontade que

tenho de jogar uma partida de bilhar”.

Os gestos involuntários dos irmãos são apresentados de tal forma que suas figuras

tornam-se ridículas. No caso de Gaiev, a paixão pelo jogo é tão forte que a mera percepção

de uma partida de bilhar nas proximidades chega a confortá-lo pelo fracasso no leilão. Em

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sua breve aparição no terceiro ato, o personagem mostra-se arrasado com a perda da

propriedade; no entanto, basta a ele ouvir o som de estalos das bolas e a voz de Iacha

falando “Sete e dezoito!”, que “o rosto de Gaiev toma uma nova expressão. Já não chora

mais”. Vale observar ainda nesta passagem o modo como Tchekhov transpõe para as

rubricas o tom irônico do narrador de boa parte de seus contos.

Aí precisamente parece estar (...) a diferença essencial entre a comédia e o drama. Um

drama, mesmo quando retrata paixões ou vícios que têm nome, incorpora-os tão bem na

personagem que esses nomes são esquecidos, que suas características gerais se apagam, e

que já não pensamos neles, mas sim na pessoa que os absorve; por isso é que o título de

um drama quase não pode deixar de ser um nome próprio. Ao contrário, muitas comédias

têm como nome um substantivo comum: O avarento, O jogador etc.

E é o jogo precisamente o vício de Gaiev. Seus gestos estão entranhados no corpo

do personagem de tal modo que lhe basta ouvir o som das bolas de bilhar na sala ao lado

para já sentir os braços tremer. Essa indicação, contida no terceiro ato (no qual ocorre o

baile), é interessante por indicar o que há de involuntário nos gestos de Gaiev. Ilustra,

assim, a distinção feita por Bergson entre o vício cômico e o dramático, segundo a qual,

no drama, o vício é incorporado na personagem, ao passo que na comédia ele tem

existência independente. Por isso, diz ele, se “pedir ao leitor que imagine uma peça

chamada O ciumento, por exemplo, ao seu espírito acudirá Sganarelle, ou George Dandin,

mas não Otelo; O ciumento só pode ser título de comédia”. E continua:

É que o vício cômico pode unir-se às pessoas tão intimamente quanto se queira, mas nunca

deixará de conservar existência independente e simples; continua sendo personagem

central, invisível e presente, do qual as personagens de carne e osso ficam suspensas em

cena. Às vezes ele se diverte a arrojá-las com seu peso e fazê-las rolar consigo ladeira

abaixo. Mas na maioria das vezes as irá tangendo como se tange um instrumento, ou as irá

manobrando como títeres.

Esse último termo resume bem a condição a que são reduzidos os personagens em

situações como essas, que Bergson agrupa sob a expressão automatismo. Além do gestual

do bilhar, Gaiev apresenta outros traços que o tornam uma figura caricatural. Seu hábito

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de chupar balas o faz parecer uma criança grande, e ele mesmo reconhece sua

infantilidade nos discursos vazios que profere a respeito de qualquer ocasião: “Que Deus

tenha misericórdia de mim. E o discurso bobo que fiz há pouco diante do armário de

livros! Só ao terminá-lo me dei conta de quanta besteira havia dito...”. Na réplica, sua

própria sobrinha Vária demonstra ter mais juízo do que o tio: “Na verdade, titio, seria bom

se o senhor falasse menos. E ainda melhor se ficasse calado...”. No entanto, o momento de

lucidez de Gaiev dura pouco, logo cedendo lugar àquele traço involuntário de sua

personalidade. Instantes depois, recomeça:

GAIEV (...) Eu pertenço à geração dos anos 80. É um período que não recebe muitos

elogios, mas posso dizer que não foram poucas as ocasiões em que tive de me sacrificar

devido às minhas convicções. Não é à-toa que os meus camponeses gostam de mim. Pois é

preciso conhecer os camponeses, queridinha! É preciso saber...

ÁNIA Titio, já está começando de novo!

Podemos então concluir com o ensaísta:

Portanto, também nesse caso, é uma espécie de automatismo que nos faz rir. E é ainda um

automatismo muito próximo da simples distração. Para convencer-se, basta notar que uma

personagem cômica geralmente é cômica na exata medida em que ela se ignora. O cômico

é inconsciente. Como se usasse ao contrário o anel de Giges, torna-se invisível para si

mesmo ao tornar-se visível para todos.

Segundo o autor, uma personagem de tragédia não muda em nada a sua conduta ao

saber que a julgamos; já “um defeito ridículo, ao sentir-se ridículo, procura modificar-se,

pelo menos exteriormente”. Por isso, conclui: “é nesse sentido, sobretudo, que o riso

‘castiga os costumes’. Ele nos faz tentar imediatamente parecer o que deveríamos ser, o

que sem dúvida acabaremos um dia por ser de verdade”.

Nesse ponto, Bergson começa a tirar conclusões mais abrangentes de sua teoria do

riso. Segundo ele, o castigo que o riso imprime provém do fato de que a vida e a sociedade

exigem de cada um de nós “uma atenção constantemente vigilante, a discernir os

contornos da situação presente”, e também “certa elasticidade do corpo e do espírito, que

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nos dê condições de adaptar-nos a ela”. Ou seja, a sociedade exige que seus membros

empreendam um constante esforço de adaptação recíproca, visando a um equilíbrio das

vontades individuais. Quando isso não ocorre, e o equilíbrio social é ameaçado, a

sociedade não pode reagir a isso por meio de alguma repressão material, já que não está

sendo materialmente afetada. Assim, “ela está em presença de algo que a preocupa, mas

somente como sintoma – apenas uma ameaça, no máximo um gesto. Será, portanto, com

um simples gesto que ela responderá”. Daí que “o riso deve ser alguma coisa desse tipo,

uma espécie de gesto social”. Bergson segue:

Pelo medo que inspira, o riso reprime as excentricidades, mantém constantemente

vigilantes e em contato recíproco certas atividades de ordem acessória que correriam o

risco de isolar-se e adormecer; flexibiliza enfim tudo o que pode restar de rigidez

mecânica na superfície do corpo social. O riso, portanto, não é da alçada da estética pura,

pois persegue (de modo inconsciente e até imoral em muitos casos particulares) um

objetivo útil de aperfeiçoamento geral. Tem algo de estético, todavia, visto que a

comicidade nasce no momento preciso em que a sociedade e a pessoa, libertas do zelo da

conservação, começam a tratar-se como obras de arte. Em suma, se traçarmos um círculo

em torno das ações e disposições que comprometem a vida individual ou social e que

punem a si mesmas através de suas conseqüências naturais, fica fora desse terreno de

emoção e de luta, numa zona neutra em que o homem serve simplesmente de espetáculo

ao homem, uma certa rigidez do corpo, do espírito e do caráter, que a sociedade gostaria

ainda de eliminar para poder obter de seus membros a maior elasticidade e a mais elevada

sociabilidade possíveis. Essa rigidez é a comicidade, e o riso é seu castigo.

Pensando outra vez em O jardim das cerejeiras, é possível afirmar que Gaiev e

Liuba são castigados com o riso por se recusarem a abandonar a lentidão do ritmo de seu

antigo modo de vida e assumir a agilidade exigida pelos tempos modernos.

Tendo passado do cômico das formas ao dos gestos e movimentos, Bergson

enuncia a lei que parece governar os fatos desse gênero: “As atitudes, os gestos e os

movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz

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pensar numa simples mecânica.” O exemplo a que o autor recorre é o do desenho, que

geralmente é cômico na medida da nitidez e também da discrição com que nos leva a ver

no homem um fantoche articulado. É preciso que essa sugestão seja nítida, e que

percebamos claramente, como por transparência, um mecanismo desmontável dentro da

pessoa. Mas também é preciso que a sugestão seja discreta, e que o conjunto da pessoa, na

qual cada membro foi enrijecido em peça mecânica, continue a nos dar a impressão de um

ser que está vivo. O efeito cômico será mais marcante, a arte do desenhista será mais

consumada quanto mais inseridas estas duas imagens estiverem uma na outra: a imagem

de pessoa e a de mecanismo.

Talvez isso explique a razão pela qual Liuba parece ser mais dramática que Gaiev:

ele é, em mais aspectos, caracterizado como títere – o gesto do jogo, os discursos, as

balinhas, comportamento infantil com Firs.

Insisto na imagem fornecida pelos gestos de Gaiev: eles nos dão a medida do modo

como o personagem é caracterizado mais como um boneco do que como uma pessoa.

Bergson analisa a forma como o gesto deve se manifestar naturalmente, ou seja, animando

o discurso. Segundo o autor, o gesto deveria restringir-se a

seguir o pensamento nas minúcias de suas evoluções. Idéia é coisa que cresce, brota,

floresce, amadurece, do começo ao fim do discurso. Nunca pára, nunca se repete. Precisa

mudar a todo instante, pois parar de mudar seria parar de viver. Que o gesto, pois, se

anime como ela! Que aceite a lei fundamental da vida, que é jamais se repetir! Mas eis que

certo movimento do braço ou da cabeça, sempre o mesmo, parece-me voltar

periodicamente. Se observar se ele basta para me distrair, se o espero e se ele chega

quando o espero, rio involuntariamente. Por quê? Porque tenho agora diante de mim um

mecanismo que funciona automaticamente. Já não é vida, é automatismo instalado na vida,

imitando a vida. É comicidade.

Finalizando, então, a análise dos aspectos cômicos presentes em O jardim das

cerejeiras – ainda que essa análise não tenha pretendido ser exaustiva –, procurei mostrar

o modo como a repetição mecânica de determinados gestos aponta para certa rigidez em

alguns personagens da peça, especialmente Gaiev e Liuba (esta, no gesto de dar esmolas e

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gorjetas sem que sua situação o permitisse; aquele, no gesto imaginário de acertar as bolas

do bilhar com um taco). Vimos também que é essa inflexibilidade que os torna cômicos

devido à semelhança que os faz ter com a imagem de um boneco articulado – algo assim

como a imagem fornecida por Charles Chaplin em Tempos modernos. No filme, vemos

um operário que, após trabalhar horas seguidas na linha de montagem de uma fábrica,

repetindo incessantemente o mesmo gesto, não consegue mais realizar outro movimento

com os braços, e sai do local de trabalho tentando ajustar botões em tudo o que vê à sua

frente que se assemelhe aos botões que devia ajustar na fábrica. No entanto, se a

comparação ilumina uma semelhança entre o tipo de personagem que se obtém com o uso

da repetição como procedimento, ela pode ser ainda mais eloqüente quanto à diferença que

indica entre os personagens mencionados – pois se Chaplin retratou a rigidez provocada

pelo trabalho no auge do capitalismo, Gaiev e Liuba nos apontam principalmente a rigidez

provocada pela inércia no apagar das luzes da aristocracia.

2. COM LÁGRIMAS NOS OLHOS

Creio haver apresentado indícios suficientes do caráter cômico de O jardim das

cerejeiras. No entanto, devem ter existido bons motivos para que a peça fosse considerada

um drama, e não uma comédia, como pretendia o autor. É a isso que voltaremos nossa

atenção agora.

Em primeiro lugar, cabe destacar o interlocutor direto de Tchekhov quando se

queixava do tom atribuído a sua peça: principal responsável pela montagem dos textos de

Tchekhov desde A gaivota, em 1898, Stanislavski desenvolveu, a partir dessas

encenações, não só um método de interpretação mas também uma forma própria de levar

esse dramaturgo ao palco. Seu trabalho, desenvolvido ao longo de anos à frente do Teatro

de Arte de Moscou (daqui em diante referido como TAM), apresentou uma forte marca

pessoal, o que fica evidente no nome pelo qual esse conjunto de técnicas interpretativas

tornou-se conhecido – método Stanislavski. De maneira semelhante, os princípios que o

orientavam na montagem das peças de Tchekhov apresentavam tamanha particularidade

que receberam um termo próprio para designá-los: tchekhovismo.

Mais adiante, discutirei as implicações dos métodos de trabalho de Stanislavski na

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recepção das peças de Tchekhov; por hora, começarei essa análise pela consideração dos

elementos presentes no texto que podem ter levado Stanislavski a montá-lo como um

drama. Em uma das citações reproduzidas no início deste capítulo, Tchekhov menciona as

alusões ao choro de Vária. Observamos haver um desacordo entre a leitura do encenador e

a do dramaturgo, o qual argumentava que apenas Vária chora na peça e que, ainda assim, a

indicação “com lágrimas nos olhos” deveria sugerir apenas o estado de espírito da

personagem, e não choro. Entretanto, não é isso o que revela um levantamento das

rubricas referentes a lágrimas no texto: há nada menos do que vinte e sete ocorrências

distribuídas ao longo dos quatro atos, e nem todas estão relacionadas a Vária. Embora ela

seja a recordista nesse quesito (dez das referências são relativas a ela), há também

menções a Liuba (oito vezes) e Gaiev (três). As demais relacionam-se a Ánia, Duniacha,

Trofimov, Pichtik e Firs (cada um desses chora apenas uma vez na peça). Além disso, nem

todas essas indicações são, como Tchekhov afirma, apenas referentes a “lágrimas nos

olhos” – muitas vezes a rubrica registra que o personagem chora mesmo, e algumas vezes

com o acréscimo: chora amargamente.

Caso o leitor tenha tido o trabalho de conferir as contas das indicações de lágrimas

na peça, terá verificado que faltou mencionar uma delas, e a falta foi intencional, pois se

trata da seguinte ocorrência: no Quarto Ato, quando todos estão se arrumando para partir,

Carlota, a preceptora de Ánia – que já havia mostrado, durante o baile no Terceiro Ato,

seu dom de ventríloqua –, abraça uma trouxa de roupa como se fosse um bebê e lhe diz

que durma. De repente, “ouve-se um choro de criança: Uaa! Uaa! Uaa!”. Carlota o acalma

(“Quietinho, meu nenezinho”) e lhe diz: “Tenho tanta pena dele!”, após o que atira a

trouxa no meio das outras coisas. Imediatamente, dirige-se a Lopakhin, a quem pergunta:

“Os senhores me ajudarão a encontrar um emprego qualquer, não é? Afinal, não posso

ficar vadiando por aí!”. Mesmo com a resposta afirmativa do novo dono da propriedade,

ela conclui: “Mas o que eu faria na cidade com os senhores? Bem, pego a minha trouxa e

sumo. Tanto faz...”.

Carlota, que é órfã, não tem nem sequer registro de nascimento e, quando pequena,

percorria com os pais as feiras do país, fazendo apresentações, materializa no Quarto Ato

todo o seu abandono no gesto (ou seria melhor dizer gestus, no sentido que Brecht atribui

ao termo68) de se desvencilhar do bebê que embalava com delicadeza, largando-o à própria68 O gestus se diferencia do gesto individual pela conotação social que apresenta. Outro exemplo de gestus

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sorte – assim como ela está sendo deixada para trás pela família, que em momento algum

se preocupa com seu destino. Daí a importância dessa passagem e o registro do choro

imaginário do neném como uma indicação do estado de espírito da personagem nesse

momento.

Retornando à questão do tom predominante na peça, é preciso então dar razão a

Stanislavski quando ele percebe na peça uma tendência ao drama. Ainda que levemos em

conta o fato de que algumas das lágrimas indicadas no texto sejam de contentamento

(como a de Liuba ao entrar no quarto das crianças e a de Firs ao reencontrar a patroa), o

fato é que Tchekhov estava enganado ao dizer que apenas Vária chorava na peça, e que,

mesmo assim, as indicações pretendiam apenas indicar sua disposição tristonha. A

conclusão a que se pode chegar é a de que o autor, na verdade, não contradizia na carta o

que havia indicado nas rubricas do texto, mas que tentava mostrar a Nemirovitch-

Dantchenko (idealizador das montagens junto a Stanislavski e destinatário da carta) que o

tom da encenação fugira por completo ao que ele havia imaginado.

São célebres os desacordos de Tchekhov e Stanislavski na montagem das peças

que tornaram conhecidos não só o dramaturgo mas também o TAM. No entanto, vale

observar mais de perto a natureza de tais desacordos, pois eles parecem indicar justamente

a dificuldade dos encenadores do TAM em compreender a nova forma dramática

apresentada por Tchekhov em suas peças.

No livro A linguagem da encenação teatral, em que Jean-Jacques Roubine

apresenta um panorama do surgimento do teatro moderno, o autor esmiúça as formas pelas

quais o espetáculo ganhou autonomia frente ao texto. No quarto capítulo, dedicado aos

instrumentos do espetáculo, Roubine detém-se na análise das mudanças no uso da

sonoplastia e da música. Destaca a importância que os sons adquiriram na criação da

atmosfera da peça: “Um espaço, com efeito, não se define apenas pelos elementos visuais

que o constituem, mas também por um conjunto de sonoridades, características ou

na peça é o momento em que Vária atira as chaves no chão, ao receber a notícia de que Lopakhin arrematou

o jardim no leilão. Edward Braun comenta, a respeito dessa passagem, que ao pegar as chaves, Lopakhin

“observa, de maneira até certo ponto redundante: ‘Ela jogou as chaves para mostrar que não manda mais

aqui’. Mas na verdade esse é um gesto (ou antes um ‘Gestus’) tão profundo em seu significado social e

econômico que nem Brecht poderia conceber”.

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sugestivas, que tecem para o ouvido uma imagem cuja eficiência sobre o espectador foi

mil vezes comprovada”. E conclui: “a audição é um veículo de ilusão mais sensível ainda

que a visão” 69.

Roubine destaca o uso freqüente da sonoplastia por parte dos encenadores

naturalistas, e indica que o teatro de Tchekhov deve ter contribuído definitivamente para a

percepção de Stanislavski “do poder sugestivo daquilo que ele chama de paisagem

auditiva”, devido ao jogo sutil entre silêncios e ruídos presente nas peças de Tchekhov. De

fato, a interferência de vozes tagarelando, sons da natureza ou de instrumentos musicais

muitas vezes é indicada por Tchekhov na rubrica dos textos; no entanto, não há dúvida de

que Stanislavski partiu dessas sugestões presentes nos textos e as exagerou, a ponto de

Roubine afirmar que “Stanislavski elaborava verdadeiras partituras sonoras, de uma

precisão extraordinária e de uma espantosa riqueza”. Ele menciona os “barulhos de vozes,

de louça, de música de piano e de violino” para o primeiro ato de As três irmãs, entre

diversos outros sons que pontuam a peça. No caso de O jardim das cerejeiras, Stanislavski

propôs “fazer passar um trem durante uma das pausas”, e “bem no fim, um concerto de

sapos e o grito da galinhola”. Roubine afirma que Tchekhov “ficou ligeiramente irritado

com a mania sonorizadora do seu encenador”, e ironizou a minúcia do encenador com a

objeção de que “na estação do ano em que a ação se desenrola, época da colheita, ‘a

galinhola não grita mais, e os sapos ficam calados’”, acrescentando, ainda: “Se o trem

puder passar sem fazer o menor barulho, tudo bem...” 70.

Roubine apresenta rapidamente esse ponto de divergência entre o dramaturgo e o

encenador e logo conclui: “Não pode haver dúvida de que, apesar das reservas de

Tchekhov, existia um acordo profundo entre o universo do dramaturgo e as concepções do

encenador”. No entanto, creio que devemos nos deter um pouco mais na polêmica, pois

ela parece nos permitir chegar a constatações mais produtivas.

No livro Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou, Jacob Guinsburg dá mais

ênfase aos desacordos entre os dois, tirando daí uma importante conclusão que veremos a

seguir. Citando notas registradas em 1898 no diário de Meierhold, que então atuava no

TAM, Guinsburg apresenta a reação de Tchekhov a propósito de desacordo semelhante ao

do barulho dos sapos e da galinha em O jardim das cerejeiras, porém em ocasião anterior

69 ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. P. 154.70 Todas as citações desse parágrafo são da página 155 de A linguagem da encenação teatral.

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(a montagem de A gaivota):

Anton Pavlovitch Tchekhov, que veio pela segunda vez a um ensaio de A Gaivota

(11 de setembro de 1898) no Teatro de Arte de Moscou, ouve de um dos atores que no fundo

da cena de A Gaivota rãs vão coaxar, grilos cricrilar e cães latir. – E por que isso, posso

perguntar? indagou Anton Pavlovitch com uma voz de desagrado. – Será real – respondeu o

ator. – Real – repetiu Tchekhov, começando a rir e, após uma ligeira pausa, acrescentou: – O

palco é arte. Kramskoi pintou um quadro de genre no qual captou esplendidamente os

semblantes. Suponha que tivesse cortado fora o nariz de um dos rostos e inserido outro real.

O nariz seria “real” mas o quadro ficaria estragado. O palco – continuou Anton Pavlovitch –

pressupõe uma convenção aceita. Não há aí quarta parede. Além do mais, o palco é arte, o

palco reflete a quintessência da vida. Não se deve introduzir no palco nada que não seja

essencial.71

As passagens citadas revelam que todos os esforços de Stanislavski

encaminhavam-se no sentido de criar verossimilhança, ao passo que os de Tchekhov

procuravam criar distanciamento – um elemento fundamental no processo de epicização

do drama. A concepção do encenador vinha sendo desenvolvida desde os primórdios do

TAM, em que a preferência por peças históricas se traduzia em montagens fortemente

apoiadas na pesquisa histórica em museus, arquivos e até mesmo expedições de campo, e

em cenários detalhados que transmitissem com exatidão o ambiente ou a atmosfera da

peça (“ou seja, do condicionante essencial das ações humanas”, como observa Guinsburg,

a respeito da “ótica sociologizante do naturalismo”). Logo, enquanto um privilegiava a

realidade e o efeito de real, o outro se baseava na teatralidade e no efeito teatral. Por isso

Guinsburg observa que “a adesão de Tchékhov à linha da mise en scène e da interpretação

não foi irrestrita” (as observações referem-se à montagem de A gaivota pelo TAM). E

continua: “Desagradava-lhe a excessiva objetivação ou invenção cênica dos elementos que

não constavam ou estavam aludidos no texto, o que redundava num detalhamento

naturalista por demais acentuado para o seu gosto e para o seu estilo”.

Assim, verifica-se que a questão subjacente à discordância entre Tchekhov e

Stanislavski não é tão simples quanto Roubine pretendia, mas, pelo contrário, apresenta

concepções bastante díspares quanto à arte teatral. Para o encenador, o modelo real e a

71 GUINSBURG, Jacob. Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou. P. 102.

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projeção verossímil constituem os critérios essenciais da representação teatral; já para o

dramaturgo, esta é entendida como artifício, convenção, jogo. As conseqüências de cada

uma dessas visões para a recepção são importantíssimas, e diametralmente opostas: para

Tchekhov, o teatro, entendido como um plano lúdico-ficcional, funciona como estímulo

para a produção do imaginário; para Stanislavski, que vê o palco como gerador de ilusões

absolutamente fidedignas, a representação deve fornecer todos os elementos – visuais e

sonoros – necessários para a compreensão do espectador. Essas concepções amparavam-se

em convicções dos dois artistas quanto ao papel do teatro. No discurso que proferiu por

ocasião da inauguração dos ensaios do TAM, Stanislavski assim se declarou a respeito da

função que lhes cabia: “procuramos levar luz às classes pobres, dispensar-lhes instantes de

felicidade estética nas trevas em que languescem. Aspiramos a criar o primeiro teatro

acessível, razoável e moral. Tal é a tarefa à qual nos devotamos”. Em perfeita oposição a

essa atitude didática e populista, de quem se acredita iluminado porém generoso o

suficiente para levar luz àqueles que vivem nas sombras, está a postura de Tchekhov, que

sempre manifestou angústia porque pressentia que ‘estava levando o leitor para trás da luz

por não saber responder às perguntas mais importantes’. Em uma carta ao amigo Suvórin,

ele escreve:

Já está na hora de as pessoas que escrevem, sobretudo os artistas, perceberem que neste

mundo não se compreende nada, como reconheceu outrora Sócrates e como Voltaire

reconhecia. A multidão pensa que sabe tudo e entende tudo; e quanto mais estúpida ela é,

mais amplo parece-lhe o seu horizonte. Mas se um artista, em quem a multidão acredita,

decide declarar que não compreende nada do que vê, só isso já constituirá um grande saber

no domínio do pensamento e um grande passo avante.72

Com isso, percebe-se que as divergências entre os dois não eram incidentais, mas

essenciais, e pode-se compreender melhor as constantes reclamações de Tchekhov em

relação às montagens de suas peças pelo TAM. Guinsburg observa que, apesar do

grande sucesso junto ao público da peça As três irmãs, mais uma vez a montagem foi

marcada pelo profundo desacordo entre o encenador e o dramaturgo. Stanislavski relata

que foi organizada uma leitura de mesa com a presença do autor.

72 ANGELIDES, Sophia. Cartas para uma poética. P. 94.

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Estávamos todos muito animados. O autor sentia-se, ao que parece, excitado, e não estava

à vontade na cabeceira da mesa. De vez em quando saltava de seu lugar e punha-se a andar

de um lado para o outro, especialmente nos momentos em que os diálogos, na sua opinião,

tomavam um rumo falso ou desagradável. Discutindo a peça, alguns de nós chamavam-na

de drama e outros até de tragédia, sem perceber que tal definição deixava Tchékhov

assombrado.73

Segundo o relato de Stanislavski, toda a situação já estava deixando Tchekhov

profundamente incomodado, mas a gota d’água teria sido o comentário de um dos atores,

que começou a expor suas impressões da seguinte maneira: “Embora eu não concorde com

o autor em princípio, ainda assim...”. Esse “a princípio” teria bastado para que Tchekhov

se levantasse e partisse, sem que os atores percebessem o motivo. Stanislavski, que após a

reunião foi ao encontro de Tchekhov, diz tê-lo encontrado “não só fora de si e magoado,

como irado”, e acrescenta nunca outra vez ter visto Tchekhov tão furioso. Sua irritação

parecia direcionar-se ao comentário do ator (“É impossível. Escute só... ‘Em princípio’... –

exclamou, imitando o ator”); porém, o comentário seguinte de Stanislavski não deixa

dúvidas quanto ao verdadeiro motivo do aborrecimento do dramaturgo:

O lugar comum fez decerto com que Anton Pavlovitch perdesse a paciência. Mas a

efetiva razão era que ele pensava haver escrito uma alegre comédia, e todos nós a tomamos

por uma tragédia e derramamos lágrimas sobre ela. Tchekhov evidentemente julgou que a

peça fora mal entendida e que já era um fracasso.

O mesmo desacordo quanto ao tom da peça se deu na montagem seguinte, de O

jardim das cerejeiras. Até mesmo na belíssima carta em que declara a Tchekhov sua

adoração irrestrita por essa peça, Stanislavski insiste em considerá-la como tragédia74:

A meu ver O jardim das cerejeiras é a sua melhor peça. Eu me apaixonei por ela

73 GUINSBURG. Op. cit. P. 118.74 Embora Stanislavski acentue o aspecto trágico da peça, na primeira carta citada no início deste capítulo

Tchekhov indica que ela foi anunciada nos cartazes como drama. O gênero atribuído ao texto aqui nãoimporta tanto quanto a percepção de que ele foi montado com um tom triste e pesado, diversamente aoque Tchekhov pretendia.

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ainda mais do que por nossa querida A gaivota. Não é uma comédia, nem uma farsa, como

escreve – é uma tragédia, ainda que indique uma saída para um mundo melhor, no último

ato. Causa enorme impressão, e isso por intermédio de meios-tons, de ternas cores de

aquarela. Há nessa peça uma qualidade poética e lírica; é muito teatral; (...)75.

Apesar da confusão quanto ao gênero da peça – ou ao tom mais adequado a sua

montagem –, Stanislavski revela perceber as sutilezas exigidas na interpretação do texto.

Aliás, o único defeito que ele encontra na obra é o fato de exigir “atores demasiado

grandes, demasiado sutis, para expor todos os seus encantos”, e ele teme que não sejam

capazes de fazê-lo. No entanto, sua própria insistência quanto ao tom predominante na

encenação revela certa incompreensão das sutilezas presentes no texto, o que ele manifesta

ter percebido. Mais adiante na carta, ele escreve: “Posso ouvi-lo dizendo: ‘Mas, perdão,

trata-se de uma farsa...’. Mas para a pessoa comum é uma tragédia”. A peça estréia em 17

de janeiro de 1904. Tchekhov (que havia assistido à estréia mas voltara para a Criméia

devido à sua tuberculose, a essa altura já bastante avançada) escreve a Olga Knipper em

29 de março:

Lulu e K. L. viram O jardim das cerejeiras durante este mês de março; ambos dizem que

Stanislavski interpreta odiosamente mal, que ele retarda o ritmo! Como isso é medonho!

Esse ato não deve durar mais de doze minutos no máximo, dura na interpretação de vocês

quarenta minutos. Só posso dizer uma coisa: Stanislavski massacrou minha peça. Mas que

Deus o acompanhe! Eu não quero mal a ele por isso (...).76

Guinsburg contesta a censura realizada por Tchekhov, questionando como “seria

possível dar conta do Quarto Ato em doze minutos, quando o texto apresenta dez pausas

explícitas e pelo menos cinco outros momentos que as implicam igualmente?”.

Obviamente, esse argumento é relativo, pois depende da duração atribuída pelo encenador

a cada uma dessas pausas; ainda assim, o debate travado entre os dois artistas a propósito

das montagens das peças de Tchekhov pelo TAM é valiosíssimo por revelar concepções

bastantes divergentes sobre a arte teatral. O desacordo fica evidente no seguinte

comentário de Tchekhov, a respeito da maneira como os atores do TAM interpretavam

75 GUINSBURG. Op. cit. P. 126.76 Idem. P. 135.

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seus textos: “Eu não escrevi minhas peças para fazer chorar, foi Stanislavski que as tornou

choronas” 77. Por isso, Guinsburg conclui que esse conflito revela

algo que vai além do mero entrechoque de opiniões e sentimentos produzidos por um

mesmo objeto em personalidades diferentemente relacionadas com ele no plano criativo,

mas que, em última análise, poderiam chegar a um acordo entre si sobre os pontos

essenciais da obra em cuja realização estavam empenhadas, um como autor e outro como

encenador de um e mesmo texto teatral a ser convertido em espetáculo cênico78.

O autor nota que, embora haja muitas ambigüidades nesse confronto, “transparece

uma nítida diferença de leitura”:

Stanislavski sentiu e decodificou como um fluxo de ações dramáticas que se encadeavam

(...) numa construção predominantemente trágica das emoções suscitadas, o que era para

Tchekhov (...) um conjunto teatral de quadros de figuras e situações, esboçados não como

cópia mas como síntese do natural.

Portanto, vê-se que, enquanto um visava ao esboço o mais simples possível das

situações, o outro almejava a profusão de detalhes; ou seja, Tchekhov compunha suas

obras com base no subentendido, nas pausas, no espaço vazio (confiando que o leitor ou o

espectador completasse o sentido), ao passo que Stanislavski pretendia fornecer todos os

elementos de que o espectador precisaria para a recepção. Como já foi dito, essas duas

visões opostas implicavam em um tipo de recepção completamente diferente. Esse ponto,

fundamental, é o que está por trás da noção de tchekhovismo. Conforme mencionado no

início desta parte da análise, o termo designa o conjunto de princípios observados pelos

integrantes do TAM na montagem das peças do dramaturgo – o que, podemos constatar

agora, estava em pleno desacordo com as concepções do próprio autor. Com isso, é

possível dizer que Tchekhov tornou-se Tchekhov à sua própria revelia – em outras

palavras, significa que o modo como o dramaturgo ficou conhecido no Ocidente

(principalmente através do sucesso das montagens de suas peças pelo TAM) não

correspondeu a suas expectativas, na medida em que distanciou-se por demais do que

77 Idem. P. 136.78 Idem ibidem.

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Tchekhov pretendia haver escrito. Para além de uma discussão quanto a quem seria o

verdadeiro autor do texto – debate que aliás marcou o nascimento do teatro moderno –, a

distância existente entre Tchekhov e o tchekhovismo interessa por apontar para outras

possibilidades de leitura de seu texto, diversas da forma como a concepção stanislavskiana

da obra de Tchekhov acabou restringindo as interpretações de seus textos.

A partir dessa possibilidade, seria o caso de pensar em outras contribuições que o

texto teatral de Tchekhov pode trazer para a cena e para a interpretação – contribuições

que fossem além do método desenvolvido por Stanislavski, baseado no verismo

psicológico. Nesse sentido – e pelo simples prazer de especular –, delicio-me em imaginar

o tipo de montagem que encenadores como Meierhold ou Craig, por exemplo, fariam de

O jardim das cerejeiras. Meierhold, embora tenha iniciado a carreira de ator no próprio

TAM, sob a direção de Stanislavski, acabou destacando-se como encenador por romper

com os preceitos do naturalismo apregoados por seu antigo mestre. Os princípios que

desenvolveu na Sociedade do Drama Novo, que fundou em 1902 – como a exploração da

teatralidade e da gestualidade –, parecem aproximar-se bastante daqueles preconizados por

Tchekhov, e poderiam resultar em uma montagem que evidenciasse certos aspectos mal-

resolvidos nas encenações do TAM. Já Craig – cujas críticas a uma arte interpretativa

baseada na emoção e na identificação entre ator e personagem levaram-no ao ponto de

defender um teatro sem atores – talvez levasse ao palco intérpretes que conseguiriam obter

o distanciamento necessário à representação das súbitas mudanças de estado de espírito

apresentadas pelos personagens de Tchekhov. Enfim, a questão é que as pesquisas desses

dois encenadores tomaram o rumo que desembocaria no teatro épico de Brecht e, como

vimos que a obra teatral de Tchekhov insere-se no processo de modernização da forma

dramática, seria bastante produtivo saber o que poderia resultar da associação de um autor

em cuja obra os traços épicos já começam a despontar com um encenador cujas pesquisas

também se encaminham nesse sentido. Porém, creio já estar indo longe demais – puxei o

fio de um novelo cuja análise já seria assunto para um outro texto e uma outra ocasião.

Voltemos a O jardim das cerejeiras e às múltiplas interpretações que o texto de fato

sofreu na época em que foi montado.

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3. COM NOSSO SUOR

Aproveito o gancho deixado por Stanislavski ao afirmar que O jardim das

cerejeiras é uma tragédia para passar à última parte deste capítulo. Contudo, não analisarei

mais o tom da peça – argumento no qual o encenador se baseava em sua interpretação do

texto. No lugar disso, acompanharei o exame que Raymond Williams faz do elemento

trágico na obra de Tchekhov.

De um modo geral, nas peças de Tchekhov a ausência de sentido do presente

converte-se em uma fragmentada esperança com relação ao futuro. O contraponto a essa

estagnação, como Williams observa, encontra-se no chamado ao trabalho. Há bons

exemplos disso nas duas peças que analisamos mais de perto. Em Platonov, Sofia fala ao

amante:

SOFIA – Michel! É uma vida nova que vai começar... Tenta compreender... Me escuta,

Michel! Deixa eu resolver as coisas! Eu tenho a mente mais lúcida do que você! Confia em

mim, meu querido! Eu vou te ajudar a se reerguer! Eu vou te conduzir à luz, para onde não

haja essa lama, essa sujeira, essa preguiça, essa camisa imunda... Eu vou fazer de você um

homem... Eu vou te fazer feliz! Tente compreender... (Um tempo.) Vou fazer de você um

homem ativo! Nós vamos ser verdadeiros seres humanos, Michel! Vamos ganhar o pão com

nosso suor, vamos ter calos nas mãos... (Ela pousa o rosto em seu peito.) Eu vou trabalhar...

PLATONOV – Onde você vai trabalhar? A ociosidade engoliu mulheres mais fortes do que

você. Você não sabe trabalhar; aliás, o que você pretende fazer? Na situação em que

estamos, Sofia, é preciso pensar bem, em vez de se alimentar de ilusões...

Em O Jardim das Cerejeiras, é Trofimov quem faz esse apelo:

TROFIMOV – A humanidade progride e aperfeiçoa cada vez mais suas potencialidades. O

que hoje ainda lhe é inalcançável, algum dia dominará, mas até lá é necessário trabalhar,

pois só assim é possível atingir a meta proposta. E temos de ajudar com todas as forças

aqueles que procuram a verdade... Na nossa Rússia só poucos trabalham. A grande maioria

da inteligentzia que eu conheço não está à procura de nenhuma verdade, não faz nada, e por

enquanto está incapacitada para o trabalho.

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Embora o chamado ao trabalho seja uma constante nas peças de Tchekhov, há um

interessante paradoxo no fato de que ele é feito justamente por aqueles personagens que

não trabalham. Segundo Raymond Williams, essa é uma forma usual de tragédia em uma

sociedade estagnada: neste contexto, a energia para o trabalho é consumida pelo próprio

esforço de concebê-lo. Tal situação caracteriza o que Williams chama de aporia trágica,

que se diferencia do mero impasse. Para o autor, em um impasse, ainda há empenho e luta,

embora não haja nenhuma possibilidade de vitória, mas em uma aporia, não há sequer a

possibilidade de movimento ou mesmo a tentativa de movimento; toda ação voluntária é

autocancelada. O crítico observa que, mesmo quando se pode ver além de uma situação

em que há pressão, ainda assim a pressão vigente é desintegradora, e uma sociedade em

desagregação estende o seu processo para as vidas individuais. Deste modo, numa

sociedade em desagregação, os indivíduos carregam em si mesmos o processo

desagregador, e mesmo a aspiração é uma forma de derrota.

Williams observa que esta é a dura realidade no universo de suas peças. Quando a

putrefação se faz sentir, produz os niedotiôpa – o termo, criado por Tchekhov e depois

incorporado à língua russa, indica aquilo que não presta para nada, é inútil. Em algumas

traduções, a palavra aparece traduzida como imprestável e, segundo o comentarista

Bátiuchkof, é a chave para a compreensão das peças de Tchekhov, “pois define a tragédia

da vida russa naquele tempo”. Para Williams, o termo indica assim aqueles que, sem

finalização e sem uso, são ainda seres humanos e sofrem. O que teria o poder de redimir,

então, não seria a aspiração voltada ao futuro, mas o futuro propriamente dito – e desse

futuro eles foram violentamente excluídos.

Muito eloqüente, neste sentido, é a primeira cena de Platonov. A peça começa com

Ana Petrovna sentada ao piano, com a cabeça inclinada sobre o teclado. Entra o médico

Nicolas Triletzki e lhe pergunta: “E então?”. Ao que ela responde: “Estou me entediando

docemente”. Um pouco mais tarde, ela diz: “Que tédio, Nicolas! Nada para fazer, esse

aborrecimento, idéias negras... Não sei o que fazer...”. Ele propõe uma partida de xadrez,

mas o próprio jogo acaba entediando Ana Petrovna. O jogo parece aqui fornecer uma

indicação precisa da situação dos personagens, não apenas desta, mas do conjunto de

peças de Tchekhov: são os próprios personagens que estão em xeque.

“Já é tempo de sairmos desta estúpida situação de espera”: esta fala de Ana

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Petrovna também resume bem a situação dos personagens das peças de Tchekhov, e nos

remete a uma fala da cena final de Esperando Godot, de Samuel Beckett, quando um

rapazinho aparece e diz: “O Sr. Godot mandou avisar que não vem”. É como se Tchekhov

dissesse em suas peças: ‘O Futuro mandou avisar que não vem’. A própria ausência de

crianças em todas as peças de Tchekhov parece indicar que aqueles personagens estão

fadados a não se perpetuarem, que aquelas gerações encontram seu fim nelas mesmas.

Após todas essas especulações, pergunta-se, então: qual é, afinal de contas, o

gênero ao qual pertence O jardim das cerejeiras? Contudo, o confronto dos elementos

pertencentes aos diversos gêneros de composição dramática não nos interessa na medida

em que possa fornecer uma resposta direta e objetiva, mas um conjunto de reflexões

suscitadas pela peça. Na verdade, a maior lição que se pode tirar da constatação no texto

de traços provenientes tanto da comédia quanto do drama e da tragédia é a justificativa

para as dificuldades que envolveram a primeira montagem da peça, e que sempre se

apresentam para aqueles que pretendem encená-la outra vez. Não há dúvida de que a

rapidez com que se passa, nas peças de Tchekhov, de um estado de espírito para outro

absolutamente diverso representa um grande desafio para o ator, assim como, para o

encenador, a escolha relativa aos elementos necessários para dar verossimilhança à ação.

Foi, em grande parte, para enfrentar essas questões que Stanislavski desenvolveu um

método de interpretação que enfatizava o verismo psicológico e um modo de encenação

que tendeu, na maior parte das vezes, ao naturalismo. Contudo, a polêmica envolvendo

dramaturgo e encenador revela até que ponto essas conquistas foram eficazes e até onde

deixaram de contribuir para o texto, limitando-o a uma visão que se distanciava bastante

daquela apregoada pelo autor. Reitero que não se pretende, com isso, defender que

Tchekhov domine os sentidos que se pode atribuir a sua obra, mas apenas indicar o modo

como as encenações de Stanislavski podem ter sido, de certo modo, limitadoras da

interpretação dos textos do dramaturgo, restringindo, assim, outras possibilidades de

leitura.

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“Adeus vida velha!”

ou

“Finita la commedia!”

ou

“Você perdeu o seu vintém!”

No livro Tragédia Moderna, Raymond Williams põe em xeque o conceito de

tragédia, submetendo-o à luz da história das idéias e representações associadas a ele. O

crítico faz ver que o conceito de desordem está na raiz da experiência trágica, e o estende à

idéia de revolução. Portanto, de acordo com a argumentação do crítico inglês, a verdadeira

tragédia subjacente ao processo revolucionário é que ele pode parir um monstro – mas

ainda assim, a revolução precisa ser feita.

No que diz respeito a Tchekhov, a observação do período em que o autor viveu

mostra uma profunda transformação nas estruturas sociais, econômicas e políticas da

Rússia. Um ano após sua morte, eclode a revolução de 1905, aquela que foi chamada de

“ensaio geral da revolução”. A partir de 1917, muito do que se passou na Rússia negou as

esperanças de mudança e transformação social alimentadas até então, confirmando assim a

ligação estabelecida por Williams entre os conceitos de tragédia e revolução.

Toda a obra de Tchekhov revela as mudanças em curso no período, e essas

mudanças se precipitam na forma de seus textos. Por isso, uma das maiores contribuições

da obra Tchekhov consiste na verdadeira revolução empreendida nos padrões do conto e

do teatro. Em sua última peça, em particular, consolida-se esse processo – do qual

Platonov, sua primeira peça, já revela sinais. Nela, também, está mais nítido do que em

qualquer outro texto dramático de Tchekhov o processo de mudança social da época. As

contradições inerentes ao processo modernizador não deixam de ser percebidas pelo

dramaturgo, que, apesar de tudo, ainda vê com esperança a possibilidade de construção de

um novo mundo, mais justo e igualitário. Esse sentido fica evidente na alegria com que

Ánia e Trofimov se despedem da casa (a essa altura percebida como sinal de um mundo

velho que deve ser deixado para trás) e saúdam a chegada na nova vida na diáspora final:

TROFIMOV (calça as galochas) Senhoras e senhores, é hora de partir!

GAIEV (muito emocionado, a custo contém as lágrimas) Ao trem... À estação... direto na

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caçapa do canto...

LIUBOV ANDREIEVNA Vamos!

LOPAKHIN Estão todos aqui? Não ficou ninguém na casa? (Fecha à chave a porta da

esquerda.) Os móveis estão aqui. É preciso fechar. Podemos ir.

ÁNIA Adeus, casa querida! Adeus vida velha!

TROFIMOV Viva a vida nova!

Mencionando os dois últimos trabalhos de Tchekhov – A noiva (último conto,

escrito em 1903) e O jardim das cerejeiras (última peça), Thomas Mann descreve-os

como “poemas nos quais um espírito que aguarda com resignação o seu desenlace não faz

alarido por causa da doença, da sua morte e, ao lado do túmulo, ainda planta a esperança”.

Assim, somos remetidos de volta às primeiras linhas deste texto, em que acompanhávamos

o autor em seus últimos instantes de vida e o víamos beber sua última taça de champanhe,

como que brindando à vida – podemos acrescentar agora que, talvez, aquele também fosse

um brinde à esperança. Brindemos a ela.

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