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VI. O TRABALHO DO "ZARATUSTRA" I A CONCEPÇÃO DO ETERNO RETORNO Frederico Nietzsche considerava Aurora como o exercício de uma convalescente que se diverte com os desejos e as idéias e encontra em cada um sua diversão de amor ou malícia. Fora um jogo e devia terminar. Agora, devo escolher entre as idéias entrevistas — pensava; devo pegar uma e exprimi-la em toda sua força — dando por encerrados os meus anos de solidão e de espera. "Em tempo de paz — escreveu — o homem de instintos belicosos se volta contra si mesmo". Apenas saído de seus combates, Nietzsche procura novas ocasiões de luta. Até meados de julho, permanecera em Veneto, nos primeiros contrafortes dos Alpes italianos; mas não teve remédio senão procurar um abrigo menos ardente. Não esquecera aqueles altos vales alpinos que, dois anos antes, lhe proporcionaram alívio nos males e felicidade instantânea. Subiu até eles e se instalou de maneira rústica na Engadina, em Sils–Maria. Mediante um franco diário conseguiu um quarto na casa de uns camponeses, e uma pensão vizinha fornecia-lhe alimentação. Os viajantes eram raros e Nietzsche, quando se achava de humor comunicativo, ia visitar o professor ou o cura, gente simples que nunca mais esqueceu aquele professor alemão, tão singular, tão instruído, modesto e bondoso. Ele refletia, então, sobre os problemas da filosofia naturalista. O sistema de Spencer era a novidade da moda. Frederico Nietzsche desprezava aquela cosmogonia que, pretendendo suplantar o cristianismo, continuava submetida a ele. Spencer ignora a providência, mas acredita no progresso. Ensina a realidade de um acordo entre os movimentos das coisas e aspirações da humanidade; em um universo sem Deus conserva as harmonias cristãs. Frederico Nietzsche seguira escolas mais viris: ouve Empédocles, Heráclito, Spinoza, Goethe, pensadores de olhar sereno, que sabem estudar a natureza sem procurar nela nenhum assentimento de seus desejos. Continua obediente a estes mestres e sente crescer e amadurecer dentro de si uma idéia grande e nova. Pelas cartas que escreve, adivinhamos a emoção de que está possuído. Sente a necessidade de estar só, e define a sua solidão. Paulo Rée quer ir contar-lhe a admiração que lhe causou Aurora. Quando sabe disso, Nietzsche se desespera. Minha boa Lisbeth escreve ele a sua irmã: não posso me resolver a telegrafar a Paulo Rée, dizendo-lhe que não venha. No entanto, tenho que considerar como inimigo a qualquer pessoa que venha interromper o meu trabalho do verão, meu trabalho de Engadina; quer dizer meu próprio dever, minha "única necessidade". Um homem aqui, em meio aos pensamentos que brotam de todas as partes em torno de mim, seria uma coisa terrível; e se não puder defender melhor a minha solidão, juro que abandonarei a Europa por muitos anos. Já não tenho mais tempo para perder. A senhorita Nietzsche

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VI. O TRABALHO DO"ZARATUSTRA"

I A CONCEPÇÃO DOETERNO RETORNO

Frederico Nietzscheconsiderava Aurora como o exercício de uma convalescente que se divertecom os desejos e as idéias e encontra em cada um sua diversão de amor ou malícia.Fora um jogo e devia terminar. Agora, devo escolher entre as idéiasentrevistas — pensava; devo pegar uma e exprimi-la em toda sua força — dandopor encerrados os meus anos de solidão e de espera. "Em tempo de paz — escreveu— o homem de instintos belicosos se volta contra si mesmo". Apenas saídode seus combates, Nietzsche procura novas ocasiões de luta.

Até meados de julho,permanecera em Veneto, nos primeiros contrafortes dos Alpes italianos; mas nãoteve remédio senão procurar um abrigo menos ardente. Não esquecera aquelesaltos vales alpinos que, dois anos antes, lhe proporcionaram alívio nos malese felicidade instantânea. Subiu até eles e se instalou de maneira rústica naEngadina, em Sils–Maria. Mediante um franco diário conseguiu um quarto na casade uns camponeses, e uma pensão vizinha fornecia-lhe alimentação. Os viajanteseram raros e Nietzsche, quando se achava de humor comunicativo, ia visitar oprofessor ou o cura, gente simples que nunca mais esqueceu aquele professoralemão, tão singular, tão instruído, modesto e bondoso.

Ele refletia, então,sobre os problemas da filosofia naturalista. O sistema de Spencer era anovidade da moda. Frederico Nietzsche desprezava aquela cosmogonia que, pretendendosuplantar o cristianismo, continuava submetida a ele. Spencer ignora aprovidência, mas acredita no progresso. Ensina a realidade de um acordo entreos movimentos das coisas e aspirações da humanidade; em um universo sem Deusconserva as harmonias cristãs. Frederico Nietzsche seguira escolas mais viris:ouve Empédocles, Heráclito, Spinoza, Goethe, pensadores de olhar sereno, quesabem estudar a natureza sem procurar nela nenhum assentimento de seusdesejos. Continua obediente a estes mestres e sente crescer e amadurecerdentro de si uma idéia grande e nova.Pelas cartas queescreve, adivinhamos a emoção de que está possuído. Sente a necessidade deestar só, e define a sua solidão. Paulo Rée quer ir contar-lhe a admiração quelhe causou Aurora. Quando sabe disso, Nietzsche se desespera.Minha boa Lisbeth — escreve ele a sua irmã: — não posso meresolver a telegrafar a Paulo Rée, dizendo-lhe que não venha. No entanto, tenhoque considerar como inimigo a qualquer pessoa que venha interromper omeu trabalho do verão, meu trabalho de Engadina; quer dizer meu próprio dever,minha "única necessidade". Um homem aqui, em meio aos pensamentos quebrotam de todas as partes em torno de mim, seria uma coisa terrível; e se nãopuder defender melhor a minha solidão, juro que abandonarei a Europa por muitosanos. Já não tenho mais tempo para perder.A senhorita Nietzsche

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preveniu Paulo Rée, que renunciou ao seu projeto.Por fim, Nietzscheencontra aquela idéia cujo pressentimento o agitava com tanta violência. Umdia, caminhando através dos bosques de Sils-Maria, em direção a Silvaplana,sentou-se, não longe de Surlee, ao pé de uma rocha piramidal; e naquelemomento, e naquele lugar, concebeu o Retorno Eterno. Pensou: o tempo,cuja duração é infinita, deve repetir, de período em período, uma disposiçãoidêntica das coisas. Isto é fatal. Portanto, é fatal que todas as coisas voltema ser. Dentro de tal número de dias, número incalculável, imenso, mas limitado— um homem em tudo semelhante a mim, sentado à sombra de uma rocha, encontraráde novo esta mesma idéia. E esta mesma idéia será novamente encontrada por estehomem, não só uma vez, mas em número infinito de vezes, pois o movimento querepete as coisas é infinito. Devemos, portanto, abandonar toda a esperança epensar com firmeza: nenhum céu receberá os homens, e nenhum futuro melhor osconsolará. Somos a sombra de uma natureza cega e monótona, os prisioneiros detodos os momentos. Não esqueçamos, porém, que esta tremenda idéia que nos proíbequalquer esperança, enobrece e exalta cada minuto de missa vida. Se o instantese repete eternamente e deixa de se uma coisa passageira — o mínimo solconverte em monumento eterno, dotado de valor infinito e (se a palavra divino tem algum sentido) divino. Que tudo se repita incessantemente— escreve—–é aextrema aproximação de um mundo do futuro com um mundo do ser: pontoculminante da meditação (*)

A emoção dodescobrimento foi tão viva, que ele chorou, permanecendo por longo tempomergulhado em lágrimas. Afinal, seu esforço não fora vão. Sem fraquejar dianteda realidade, sem se separar do pessimismo, mas ao contrário, levando àsúltimas conseqüências a idéia pessimista da realidade, Nietzsche descobriraesta doutrina do Retorno, que, conferindo eternidade às coisas mais fugitivas,restaura em cada uma delas o poderio lírico e o valor religioso necessário à alma.Em algumas linhas formula a idéia, e data-a: "Começos de agosto de 1881,em Sils-Maria, a 6.500 pés sobre o nível do mar e muitos mais sobre o nível detodas as coisas humanas."

Durante algumassemanas viveu em um estado de arroubamento e de angústia. Os místicos conhecem,sem dúvida, emoções semelhantes e seu vocabulário se adapta ao caso. Experimentavaum orgulho divino, mas ao mesmo tempo, temia e espantava-se, como essesprofetas de Israel que tremem diante de Deus ao receber de seus lábios a ordemde sua missão.

O homem desgraçado,tão ferido pela vida, contemplava com indizível terror a perpetuidade dosRetornos. Isto era para ele uma espera insuportável e um suplício. Amava, porém,esse suplício e se impunha a idéia do Retorno Eterno, como um asceta se impõe omartírio. Lux, mea crux — escreveu em suas notas — Crux, mea lux. Suaagitação, que o tempo não apaziguava, fez-se extrema, chegando a atemorizá-lo,pois não ignorava a ameaça que pairava sobre sua vida.Algumas idéias selevantam em meu horizonte, e que idéias! — escreve a Peter Gast em 14 de agosto. — Eu próprionão suspeitava de nada semelhante. Não digo mais, pois quero manter uma calmainalterável. Ah, meu amigo! às vezes, certos pressentimentosatravessam meu : espírito. Parece-me que levo uma vida muito perigosa,

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pois minha máquina é daquelas que podem explodir. A intensidade dos meussentimentos me fazer rir e tremer; por duas vezes já, me vi obrigado apermanecer no meu quarto por um motivo ridículo: tinha os olhosirritados. Por quê? Porque passeando, chorara demais, não lágrimassentimentais, mas lágrimas de alegria; e cantava, e dizia disparates, possuídopor uma nova idéia que devo propor aos homens…A partir desse momentoconcebe uma nova missão. Tudo o que fez até então não passa de um desajeitadoensaio, ou uma

(*) Esta fórmulaencontra-se no Der Wille zur Macht, parágrafo 286. (N. do A.).

tentativa. Agora,porém, chegou o momento ide edificar a obra. Que obra? Nietzsche vacila: seusdons de artista, de crítico e de filósofo, seduzem-no em diversos sentidos. Colocaráa sua doutrina em forma de sistema? Não, pois que é um símbolo que deve serrodeado de lirismo e ritmo. Não poderia renovar aquela forma esquecida criadapelos pensadores da mais antiga Grécia e de que Lucrécio nos transmitiu ummodelo? Frederico Nietzsche acolhe essa idéia. Agradar-lhe-ia traduzir a suaconcepção da natureza em uma linguagem poética, uma prosa musical e poemática.Continua procurando, e seu desejo de uma linguagem rítmica, de uma forma vivae como que palpável, sugere-lhe uma nova idéia: não poderia introduzir nocentro de sua obra uma figura humana e profética, um herói? Um nome lhe vem aoespírito: Zaratustra, o apóstolo persa, mistagogo do fogo. Um título, umsubtítulo e quatro linhas rapidamente escritas, anunciam o poema:

MELODIA EETERNIDADE

SINAL DE UMA VIDANOVAZaratustra, nascidonas margens do lago Urmi abandona sua pátria aos trinta anos, dirige-se para aprovíncia Ária e, em dez anos de solidão, compõe o Zend Avesta.Desde esse momento,seus passeios deixaram de ser solitários; Frederico Nietzsche escuta e recolheincessantemente as palavras de Zaratustra. Em três dísticos de doce tom, quaseterno, diz como este companheiro chegou até sua vida:

SILS-MARIA36.0pt;'>Em setembro, a estaçãose tornou repentinamente fria e nevosa. Nietzsche teve que abandonarEngadina.

Alquebrado pela intempérie,sua exaltação decaiu, e começou um longo período de depressão. Pensavaconstantemente no Retorno Eterno, mas, desanimado e abatido, sentiasomente o horror de sua idéia. "Revivi os dias de Basiléia .— escreve aPeter Gast. — A morte me contempla por cima do ombro…" É breve em suas

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queixas: uma palavra deve bastar para adivinhar seus abismos. Durante aquelassemanas de setembro e de outubro foi tentado três vezes pelo suicídio. Deonde lhe vinha essa tentação? Desejaria evitar o sofrimento? Não. Ele eravalente. Desejaria prevenir a destruição do seu espírito? Talvez esta segundaseja- a hipótese verdadeira.Desceu até Gênova, econtinuou sofrendo os ventos úmidos e os céus nublados de um caprichosooutono. Suportava impacientemente a falta de luz. Uma nova tristeza completavasua infelicidade: Aurora não tivera o menor êxito; os críticos haviam-naignorado e os amigos apenas a haviam lido. Jacob Burckhardt externara umaopinião cortês e prudente: "Leio algumas partes de seu livro como se fosseum homem velho e outras com uma sensação de vertigem." Erwin Rohde, o maisquerido, o mais estimado, não respondera à remessa do livro. Nietzscheescreveu-lhe de Gênova, em 21 de outubro:

Meu velho e queridoamigo:Com certeza você édetido por algum escrúpulo. Suplico-lhe sinceramente: não me escreva. Istonada mu- daria entre nós, mas em troca, é-me insuportável pensar que, enviandoum livro a um amigo, exerço sobre ele uma espécie de pressão. Que importa um livro! O que tenhoa fazerimporta muito mais — ou então, não saberia para que vivo. — O momento éduro para mim. Sofro muito.Amistosamente seuF. N.Erwin Rohde nem sequerresponde a esta carta. Como explicar o fracasso de Aurora? Trata-se, semdúvida, da velha história constante e universal; a irremediável desventura dogênio desconhecido — porque é gênio, novidade, surpresa, escândalo. No entanto,talvez consigamos descobrir algumas razões particulares. Desde que Nietzsche seseparou dos círculos wagnerianos, não tem amigos; e um grupo de amigos é ointermediário mais indispensável entre um grande espírito que se exercita e amassa do público. Nietzsche encontra-se só diante dos leitores desconhecidos,aos quais suas constantes variações desconcertam; conta com a forma viva de suaobra para os atrair e conquistar, mas até essa forma lhe é desfavorável. Nenhumlivro é de mais difícil acesso do que um conjunto de aforismos e pensamentosbreves. O leitor tem que concentrar toda a atenção em cada página e decifrar umpequeno enigma e o cansaço não tarda em se apoderar dele. É possível,ademais, que o povo alemão, pouco sensível à arte da prosa; poucocapaz de surpreender suas belezas, acostumado aos esforços lentos.e demorados,se achasse mal preparado para compreender uma obra tão imprevista.Um formoso mês denovembro logra reanimar Frederico Nietzsche. "Ressurjo de entre os meusdesastres" — escreve ele. Percorre a montanha, a costa genovesa, volta asubir às rochas onde imaginara as páginas de Aurora, e, aproveitando adoçura do tempo, banha-se no mar. "Sinto-me tão bem, tão orgulhoso, tãocompletamente príncipe Dorial — escreve a Peter Gast. — Só me faltavocê, querido amigo. Você e sua música."

Desde as

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representações dos Niebelungen em Bayreuth, ou seja, 5 anos — Nietzschese havia privado de música. Cítve musiciam!, escrevia. Receava, se seabandonasse ao prazer dos sons, ser novamente dominado pela magia da arte wagneriana.Conseguiu, afinal, livrar-se de seus temores. Seu amigo Peter Gast havia-lhetocado, em junho, em Rocoaro, cânticos e coros que se entretivera compondosobre os epigramas de Goethe. Paulo Rée dissera-lhe um dia: "Nenhum músicomoderno seria capaz de pôr em música versos tão ágeis." Peter Gastaceitara o repto e ganhara, segundo Nietzsche, encantado com a vivacidade dosseus ritmos. "Você deve perseverar w aconselhou-o; — trabalhe contraWagner músico, como eu trabalho contra Wagner filósofo. Esforcemo-nos, Rée,você e eu, em libertar a Alemanha. Se você conseguir encontrar uma músicaadequada ao universo de Goethe (música que não existe), terá feito uma grandecoisa… Esta idéia reaparece erri todas as suas cartas. Seu amigo se acha emVeneza, ele em Gênova. Nietzsche espera que naquele mesmo inverno a Itália osinspirará a ambos, alemães desarraigados, uma metafísica e uma música novas.Aproveita a melhoriade seu estado de saúde para ir ao t.entro. Ouve a Semíramis de Rossini equatro vezes a Julieta, de Bellini, Uma noite sentiu curiosidade deouvir uma ópera francesa cujo autor lhe era desconhecido.Hurra, meu amigo! — escreve a Peter Gast — fiz uma. nova efeliz descoberta: uma ópera de Georges Bizet (quem é esse homem?): Carmen. Ouve-secomo uma novela curta de Merimée, espiritual, forte, emocionante em vários momentos.Um verdadeiro talento francês que Wagner não desorientou, um franco discípulode Berlioz . Não estou longe de pensar que Carmen é a melhor ópera queexiste. Tanto tempo quanto vivermos, ela fará parte de todos os repertórios daEuropa.A descoberta de Carmen é o acontecimento do seu inverno. Falava delas muitas vezes, e muitasvoltava a ouvi-la. Tendo escutado aquela música franca o apaixonada, sente-semelhor armado contra as seduções românticas, sempre poderosas sobre a sua alma.“Carmen liberta-me" - escreverá.

Frederico Nietzschevolta a encontrar a felicidade que gozara no ano anterior; semelhante, masbaseada numa emoção mais grave: o pleno meio-dia chega após a aurora. Pelosfins de dezembro atravessa e vence uma crise, comemorada numa espécie de poemaem prosa que traduzimos aqui. É a continuação daquelas meditações e daquelesexames de consciência que escrevia, quando jovem, nos dias de São Silvestre:

Para o Ano Novo — aindavivo, penso ainda. É preciso que viva ainda, pois ainda é preciso pensar. Sum,ergo cogito; cogito, ergo sum. Hoje é o dia em que cada um encontraliberdade para exprimir seus desejos e seu mais caro pensamento: Expressarei,pois, o desejo que se forma hoje em mim mesmo, e direi qual o pensamento quetrago no coração este ano, por cima de todos; que pensamento escolhi comorazão, garantia e regozijo de minha vida futura. Quero exercitar-me todos osdias em ver em cada coisa, o necessário como se fora uma beleza, e destamaneira serei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati — sejaeste, daqui por diante, meu amorl Não quero acusar, não quero, nem mesmo acusaros acusadores. Afastar meu olhar — seja esta a minha única negativa. Emoutras palavras, quero, em qualquer circunstância, ser sempre um afirmador.Os trinta dias dejaneiro se passam sem que uma nuvem escureça o seu céu. Em sinal de gratidão,

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Nietzsche dedicará a este esplêndido mês o quarto livro de La Gaya Scienza, que intitula Sanctus Januarius, livro admirável, rico empensamento crítico, em íntimas sutilezas e dominado, da primeira à últimapágina, por uma emoção sagrada: Amor fati.Em fevereiro, PauloRée, de passagem por Gênova, permanece uns dias com seu amigo, que lhe mostrouseus passeios. preferidos e o conduziu até às enseadas rochosas "onde,dentro de seiscentos ou de mil anos — escreve, caçoando, a Peter Gast — selevantará uma estátua ao autor de Aurora." Depois, Paulo Rée desceupara Roma, onde o esperava a senhorita de Meysenbug. Rée sentia certacuriosidade em penetrar o mundo wagneriano, fortemente agitado pela espera de Parsifal,o mistério cristão que se devia dar em Bayreuth, no mês de julho. Nietzschenão quis acompanhar Paulo Rée. Cuidava zelosamente de sua solidão, e aiminente representação de Parsifal fazia mais vivo o seu ardor pelotrabalho. Não tinha ele, também, uma grande obra para amadurecer? Não tinhaque escrever o seu mistério anticristão, o seu poema do Retorno Eterno? Esteera seu pensamento constante, pensamento que lhe proporcionava uma felicidadegraças à qual podia recordar com saudade menos dolorosa o seu mestre dos diaspassados. Richard Wagner parecia-lhe, a um tempo, muito afastado e muito próximodele. Muito afastado, pelas idéias; mas que valem, para um poeta, as idéias?Muito próximo pelos sentimentos, os desejos, a emoção lírica; e não é isto oessencial? Todo o desacordo entre os líricos baseia-se apenas em matizes, poispor alguma razão habitam um mesmo universo e trabalham com a mesma coragem paradar uma significação e um valor supremos aos movimentos da alma humana.Leiamos esta página que Nietzsche escrevera naquela ocasião, e compreenderemosmelhor o estado de sua alma:

Amizade Estrelar — Éramosamigos e chegamos a ser estranhos um para o outro. Mas assim está bem, e nãoqueremos ocultar nada e nada dissimulamos; nada temos de que nos envergonhar.Somos dois navios, cada um com. seu porto e sua rota. Cruzamo-nos por acaso ecelebramos juntos uma grande festa — e nossos dois animosos naviosrepousaram tão tranqüilamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, que ambospareciam ter alcançado a meta que lhes era comum. Mas a força todo poderosa donosso dever nos lançou de novo para mares e sóis diversos, e talvez nunca maisnos tornemos a ver, ou talvez nos encontremos de novo sem que nos reconheçamos:os mares e os sóis diversos nos terão transformado. Estava escrito em nossosdestinos: tínhamos que nos tornar estranhos um ao outro. Razão de mais para nosrespeitarmos mutuamente! Razão de mais para santificar a idéia de nossa amizadeencerrada! Existe, sem dúvida, um astro afastado invisível e prodigioso, quedita uma lei comum ás nossas pequenas evoluções. Elevemo-nos até estepensamento! Nossa vida, porém, é demasiado curta e nossa vista demasiadofraca: não poderemos ser realmente amigos; teremos que nos contentar com essapossibilidade sublime… E se for necessário ser inimigos sobre-a terra,acreditamos, apesar de tudo, em nossa amizade de estrelas.Que forma tomava,então, em seu espírito, a exposição lírica do Retorno Eterno? Ignoramo-lo.Nietzsche não gostava de falar do seu trabalho; queria acabar antes de anunciar".Não obstante, gostava que seus amigos conhecessem o novo movimento em queempenhava seu pensamento. Com este fim dirigiu uma carta à senhorita deMeysenbug, na qual trotava Wagner sem deferência, acrescentando uma promessa umtanto misteriosa: "Se não estou demasiado iludido com respeito ao meu

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futuro, será graças à minha obra que continuará o que de melhor há na obra deWagner — e daí, talvez, o cômico da aventura…

No começo daprimavera, Nietzsche, seduzido por um capricho, embarcou com o capitão de umveleiro italiano que zarpava para Messina e fez o cruzeiro do Mediterrâneo. Atravessia foi terrível e Nietzsche esteve gravemente doente. Mas suapermanência em Messina foi, em compensação, grata. Escreveu versos, prazer que,desde muitos anos não experimentava. Eram impromptus e epigramas,inspirados, talvez naquelas felizes glosas goetheanas que Peter Gast pusera em música. Nietzsche procurava, então, um canto da natureza e da humanidade favorável à produçãode sua grande obra. Sicília — bocal do mundo, onde mora a felicidade — segundoensina o velho Homero, pareceu-lhe um refúgio ideal, e, esquecendo depressasua incapacidade para suportar o calor, decidiu instalar-se em Messina por todoo verão. Alguns dias de siroco, pelos fins de abril, abateram-no, e viu-seobrigado a preparar as malas.Recebeu, entretanto,algumas linhas da senhorita Meysenbug, que lhe pedia encarecidamerite que sedetivesse em Roma. Sendo Roma uma de suas etapas normais, aceitou. Sabemosquais as razões da insistência da senhorita de Meysenbug. Esta mulher admirávelnão se resignara nunca à desventura de seu amigo, cujo destino em vão procuravatornar mais doce. Conhecia a delicadeza e a ternura do coração de Nietzsche, ecom freqüência quisera encontrar-lhe uma companheira. Não tinha, acaso, elemesmo lhe escrito: "Digo-lhe, confidencial-mente, que o que me faz falta éuma boa esposa"? Na primavera daquele ano de 1882, a senhorita de Meysenbug acreditou haver encontrado o que precisava (*), e era este o objeto desua carta. A senhorita de Meysenbug possuía o gosto e o costume da bondade,mas talvez não tivesse suficientemente em conta que a bondade é uma artedifícil e na qual as derrotas são muito cruéis.

(*) Esta históriaíntima foi conhecida por poucas pessoas, na maioria desaparecidas’ hoje. Duasmulheres sobrevivem: uma, a senhora Förster-Nietzsche, publicou trechos quedesejaríamos fossem mais serenos e mais claros. A outra, senhorita Salomé,escreveu um livro sobre Nietzsche no qual são indicados alguns fatos e citadasalgumas cartas. A senhorita Salomé se negou a qualquer discussão sobre oassunto, que considera pertencer só a ela. As tradições orais são contraditóriase numerosas. Umas, espalhadas na sociedade romana onde se desenrolou aaventura, são menos favoráveis à senhorita Salomé, que nelas aparece como umaespécie de Maria Baschkirscheff, uma aventureira intelectual demasiadoempreendedora. As outras, espalhadas na Alemanha, entre os amigos da senhoritaSalomé, são muito diferentes. Tivemos em conta todas estas tradições: Asprimeiras influenciaram o trabalho que publicamos nos Cahiers de IaQuinzalne, caderno doze da décima série, págs. 24 e segs. As segundas, queconhecemos mais tarde, nos parecem preferíveis. Convém, porém, afastarqualquer esperança de certeza. (N. do A.)

A moça que a senhoritade Meysenbug encontrara chamava-se Lou Salomé. Tinha apenas vinte anos; era

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russa, de admirável inteligência e de ardor intelectual; de uma beleza nãoperfeita, mas esquisita e extremamente sedutora. E, freqüente verem-se surgirde repente em Paris, Florença ou Roma, moças exaltadas, originárias deBucarest, Filadélfia ou Kief, animadas de bárbara impaciência por se iniciaremna cultura e conquistar um lar em nossas velhas capitais. Lou Salomé, com todaa certeza, tinha qualidades muitíssimo raras. Por outro lado, sua mãe a seguiaatravés da Europa levando seus abrigos e chalés. A senhorita de Meysenbugtomou-se de afeto por ela, deu-lhe para ler as obras de Nietzsche, que LouSalomé pareceu entender, falou-lhe muito daquele homem extraordinário quesacrificara a amizade de Wagner para manter a sua liberdade, e disse-lhe:"É um filósofo muito rude, mas o mais sensível e afetuoso dos amigos epara quantos o conhecem, a lembrança da sua vida solitária é um motivo de tristeza…"A senhorita Salomé mostrou grande entusiasmo e interesse em conhecê-lo, edeclarou que se sentia destinada a compartilhar espiritualmente uma existênciacomo a de Nietzsche. De acordo com Paulo Rée, que, segundo parece, conhecia-ade mais longo tempo e a estimava igualmente, a senhorita de Meysenbugescreveu a Frederico Nietzsche.Este chegou, e ouviu oelogio da senhorita Salomé: fina, inspirada, corajosa; intransigente na investigaçãoe na afirmação; uma heroína, por todos os acontecimentos de sua infância; emsuma, a promessa de uma grande vida. Nietzsche concordou em vê-la. Ela lhe foi apresentada e conquistou-o imediatamente, certa manhã, na igreja de SãoPedro. Durante seus longos meses de meditação, esquecera o prazer de conversare ser ouvido. A jovem russa, como lhe chama era suas cartas, ouviadeliciosamente. Falava pouco, mas o seu olhar tranqüilo, seus movimentosseguros e doces, suas menores palavras, não deixavam dúvida acerca daagilidade do seu espírito e da presença de,sua alma. Nietzsche depressa aamou; talvez desde o primeiro instante. Disse à senhorita de Meysenbug:"Da ist eine seele welche sich mit einem hauch ein Kõrperchen geschaffenhat" (Aqui está uma alma que com um sopro se transformou num corpozinho).Já a senhorita Salomé não se deixou seduzir do mesmo modo. Sentiu, não obstante,a singular qualidade do homem que lhe falava. Teve com ele longas palestras, ea violência do seu pensamento encheu de perturbação até seus sonhos. A aventuraque terminou em drama — começou imediatamente.

Poucos dias depoisdesta primeira entrevista, a senhora o a senhorita Salomé partiamde Roma. Os dois, filosofou, Nietzsche e Paulo Rée, partiram com elas,ambos entusiasmados com a pequena. Nietzsche dizia a Rée: "É uma mulheradmirável; case-se com ela…" — "Não — respondia Rée. — Soupessimista, e a idéia de propagar a espécie humana me é odiosa. Você é quem sedeve casar com ela; é a companheira que lhe falta…" Nietzsche afastavaesta idéia. Provavelmente dizia a seu amigo o mesmo que a sua irmã:"Casar! Nunca! Teria que me acostumar a mentir." A senhora Saloméobservava aqueles dois homens rondando em torno de sua filha; Frederico Nietzscheinquietava-a; preferia Paulo Rée.As duas mulheres e osdois filósofos se detiveram em Lucerna. Frederico Nietzsche quis mostrar à sua nova amiga aquela casa de Triebschen ondeconhecera Richard Wagner. Quem não pensava no mestre, então? Levou-a até aosalamos cujas altas folhagens rodeavam os jardins; descreveu-lhe os diasinesquecíveis, as alegrias e as cóleras magníficas do grande homem. Estavam

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sentados à beira do lago e ele falava em voz baixa, contida, mostrando umafisionomia transformada pela lembrança das alegrias a que renunciara. De súbito,calou-se, e a moça, olhando-o, viu que chorava.Nietzsche contou-lhetoda a sua vida: a infância, a casa pastoral, a misteriosa grandeza do pai, tãorapidamente arrebatado; os anos piedosos, as primeiras dúvidas e o horror deum mundo sem Deus no qual é preciso resolver-se a viver; a descoberta deSchopenhauer e de Wagner, o culto que lhes dedicara e que o consolara da perdade sua fé.— Sim — disse (e asenhorita Salomé confirma estas palavras) — assim começaram minhas aventuras,que não terminaram ainda. Onde me conduzirão? No que me aventurarei ainda?Acabarei por voltar à fé, ou chegarei a uma nova crença? — E, gravemente,terminou: — Em todo o caso, é mais verossímil uma volta ao passado do que aimobilidade.Frederico Nietzschenão confessara ainda o seu amor. Sentia-lhe a força, no entanto, e não podiaresistir mais. Mas faltou-lhe a coragem de se declarar. Por fim, pediu a PauloRée que falasse em seu nome, e afastou-se.Em 8 de maio, havendo-seinstalado por alguns dias em Basiléia, viu os Overbeck e se confiou a eles comestranha exaltação. Uma mulher entrara em sua vida, o que era para ele umafelicidade e para seu pensamento um bem; de agora em diante, este seria maisvivo, mais matizado, mais rico, mais rico, mais emocionante. Preferiria,seguramente, não se casar com a senhorita Salomé, desdenhando, como desdenha,todo laço carnal. Mas terá, sem dúvida, que lhe dar seu nome para deixá-la asalvo de murmúrios, e de sua união espiritual nascerá um filho espiritual: oprofeta Zaratustra. É pobre, o que é desagradável e um obstáculo. Mas nãopoderá vender em bloco a algum editor, por uma soma considerável, toda suaobra Futura? É preciso pensar nesta possibilidade.

Estas efusões nãodeixaram de inquietar os Overbeck, que auguraram mal de uma união tão estranhae de Um entusiasmo tão súbito.Frederico Nietzscheteve, afinal, a resposta de Lou Salomé: ela não queria casar-se. Um desenganosentimental que acabava de atravessar — dizia ela — deixava-a sem forças paraconceber e alimentar um novo amor. Negava-se, pois aos desejos de Nietzsche.Mas a negativa vinha amenizada: a única coisa-que ela lhe podia oferecer, aamizade, o afeto espiritual — estava à disposição de Nietzsche.Este regressouimediatamente a Lucerna. Viu Lou Salomé, instou para que lhe desse uma respostamais favorável: mas a moça repetiu sua negativa e seu oferecimento. Tendo queassistir em julho às festas de Bayreuth, de que Nietzsche se empenhava em afastar-se,prometeu reunir-se a ele em seguida, e permanecer algumas semanas a seu lado.Escutaria, então, suas lições e confrontaria o último pensamento do mestre como do discípulo emancipado. Nietzsche teve que acabar aceitando as condições eos limites que a moça impunha à sua amizade, e aconselhou-lhe a leitura de umde seus livros: Schopenhauer como educador, obra da juventude, hino à valentiade um pensador e à solidão voluntária que Nietzsche continuava aprovando.

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— Leia-o — disse-lhe ele — e estará emcondições de me ouvir.

Frederico Nietzschepartiu de Basiléia, regressando à Alemanha. Desejava, então, aproximar-se doseu país. Tais desejos, absorventes e súbitos eram, como sabemos, familiaresnele. Um suíço que encontrara em Messina, elogiara-lhe a beleza de Grunewald,perto de Berlim. Desejando estabelecer-se ali, escreveu a respeito a PeterGast, ao qual, seis semanas antes anunciara Messina como sua residência estival.

Visitou Grunewald, quelhe agradou bastante. Mas, na mesma ocasião, viu Berlim e alguns berlinenses,que lhe desagradaram em extremo. Percebeu que seus últimos livros não haviamsido lidos ali e que suas idéias eram totalmente ignoradas; sabia-se somenteque era o amigo de Paulo Rée e, decerto, seu discípulo. Tudo isto lhe desagradou;partiu sem demora e passou umas semanas em Naumburg, onde ditou o manuscritodo seu próximo livro, La Gaya Scienztí (*). Ao que parece falou discretamente de sua nova amiga asua mãe e a sua irmã e aos seus.. Suaalegria maravilhava-os. Não souberam a causa e ignoraram que o seu estranhoFrederico guardava no coração um sentimento e uma esperança de felicidade queLou Salomé não conseguira desalentar completamente.A representação de Parsifal estava marcada para 27 de julho. Frederico Nietzsche foi passaruns dias num povoado dos bosques turingíos, Tautenburg, pouco distante deBayreuth, onde se iam encontrar todos os seus amigos: os Overbeck, os Seydlitz,Gersdorff, a senhorita de Meysenbug, Lou Salomé e Lisbeth Nietzsche. Era ele oúnico que faltava ao encontro. É provável que, naquele instante, uma única palavrado mestre bastasse para o atrair. Talvez Nietzsche tenha esperado essapalavra.. A senhorita de Meysenbug pensou em fazer uma tentativa dereconciliação, e, na verdade, chegou a nomear Nietzsche diante de Wagner; maseste impôs-lhe silêncio e saiu, batendo a porta.

(*) O y napalavra Gaya, não parece italiano. Seguimos a ortografia deNietzsche. (N. do A.)

Frederico Nietzsche,que sem dúvida ignorou sempre este incidente, permaneceu nos bosques em que jápassara àqueles penosos dias de 1876. Que desgraçado era então! E que felizera agora, em troca! Reprimira suas dúvidas; um grande pensamento animava-lheo espírito e um grande amor o coração. Lou Salomé acabava de lhe dedicar, emsinal de simpatia espiritual, um belo poema:

AN DENSGHMERZ

36.0pt;'>À DOR

36.0pt;'>Tendo lido estesversos, Peter Gast acreditou que fossem de Nietzsche, que se regozijou comeste erro.

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Não — escreveu-lhe. — Essa poesia não é minha. Éuma das coisas que exercem sobre mim poder tirânico e que jamais pude ler semchorar: tem o acento de uma voz que eu esperava, esperava desde aminha infância. Quem a escreveu foi minha amiga Lou, dequem decerto vocênão ouviu falar ainda. Lou é filha de um general russo; tem vinte anos; seuespírito é penetrante como o Olhar de uma águia; tem a coragem de um leão, e,no entanto, é uma menina, muito feminina e que talvez não viva muito…

Releu pela última vezo seu manuscrito de La Gaya Scienza, e mandou-o ao editor.Vacilava um pouco, na ocasião de publicar esta nova coleção de aforismos. Sabiaque seus amigos criticavam o número de seus volumes, demasiado grande, seusensaios demasiado curtos e seus esboços apenas formados. Ouvia estas criticase respondia a elas com aparente boa vontade de ser modesto. Esta boa vontadeera, sem dúvida, dissimulada, pois que não podia se resolver a acreditar que,por curtos que fossem seus ensaios, e por pouco completos que fossem seusesboços, não valesse a pena serem lidos.

Pensava muito nosfestivais de Bayreuth, mas dissimulava ou não confessava senão em parte o seupesar. "Estou muito contente por estar impedido de ir — escreve a LouSalomé. — E no entanto, se pudesse estar ao seu lado, em conversa, se pudessedizer-lhe isto e outra coisa ao ouvido, ser-me-ia possível, até, suportar amúsica de Parsifal (de outro modo seria impossível)."

Parsifal triunfou. Nietzsche acolheu a notícia em tom detroça. "Viva Cagliostro! — escreve a Peter Gast. — O velho feiticeiroconseguiu novamente um êxito prodigioso; os senhores velhossoluçavam…"

Assim que terminaramas festas, a jovem russa veio reunir–se a ele, acompanhada de Lisbeth.As duas moças se instalaram no hotel onde Nietzsche as esperava, e ele começouimediatamente a iniciação de sua amiga.

Lou Salomé ouvira emBayreuth o mistério cristão, a história da dor humana, sofrida como uma provae finalmente consolada com a bem-aventurança. Nietzsche ensinou-lhe um mistérioainda mais trágico: a dor em nossa vida e em nosso próprio destino; nãoesperemos passar através dele; aceitemo-lo mais plenamente do que os cristãos. Detenhamos-nosnele. desposemo-lo, amemo-lo com um amor ativo; sejamos ardentes e implacáveiscomo ele, rudes com os demais como para com nós próprios; aceitemo-lo com sua crueldadee brutalidade; atenuá-lo é ser covarde; e para temperar o nosso valor,meditemos no símbolo do Retorno Eterno."São inolvidáveispara mim aquelas horas em que revelou seus pensamentos — escreve a senhoritaLou Salomé. — Confiávamos como se fossem um mistério indizivelmente penoso dedizer; só em voz baixa e com toda a aparência do mais profundo horror falavadele. E, realmente, a vida era para ele um sofrimento tão vivo, que sofria doRetorno Eterno como de uma atroz certeza." A senhorita Lou Salomé ouviaestas confissões com uma inteligência e uma emoção daquelas ropa aria à sua vida, e o diz..mque não permitem

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duvidar das páginas que escreveu em seguida.Nesses dias concebeuum breve hino, que dedicou a Frederico Nietzsche:

36.0pt;'>Encantado com aoferta, Nietzsche quis responder com outra. Fazia oito anos que se proibira decompor música, criação que o enervava e esgotava; não obstante, se impôs a tarefade compor um ditirambo doloroso sobre os versos da senhorita Salomé. Estetrabalho, demasiado emocionante, causou-lhe grandes transtornos: nevralgias,crises de dúvida, de aridez e de saciedade. Viu-se obrigado a iv para a cama.De seu próprio quarto, dirigiu a Lou Salomé curtos bilhetes: "De cama. Terrívelacesso. Desprezo a vida."

Mas, estas semanas deTautenburg têm a sua história secreta, que conhecemos mal. Lou Salomé —escreve a senhorita Nietzsche — não foi, jamais, amiga sincera de,seu irmão:tinha curiosidade em ouvi-lo, mas sua paixão e seu entusiasmo eram fingidos, efreqüentemente se sentia cansada com a terrível agitação de Nietzsche. LouSalomé escreveu isso a Paulo Rée, de quem a senhorita Nietzsche recebeu,surpreendida, umas linhas muito singulares: "Seu irmão fatiga nossaamiga. Abrevie o encontro, se for possível."Sentimo-nos inclinadosa crer que a senhorita Nietzsche sentia ciúmes daquela iniciação que ela nãorecebera, ciosa, também, da jovem eslava, de suas seduções um tanto misteriosase da atenção com que era preciso ouvi-la se se queria dar prazer a Nietzsche.Sem dúvida, esteatemorizou Lou Salomé com a violência de suas paixões e a magnitude de suasexigências; ao oferecer-se como amiga, ela não previra as crises de uma amizademais arrebatada que um amor tempestuoso. Nietzsche reclamava absoluta submissãoa todas as suas idéias e a moça se recusava a isso. Pode se dar ainteligência, como o coração? Além disso, Nietzsche não admitia a sua orgulhosareserva e reprovava como uma falta essa independência que ela queria conservar.Uma carta enviada a Peter Gast deixa adivinhar estas dissensões:Lou ficará ainda uma semana comigo — escreveem 20 de agosto de Tautenburg; — é a mais inteligente de todasas mulheres. Cada cinco dias temos uma pequena cena trágica. Tudo o quesobre ela lhe escrevi é absurdo, não menos absurdo, sem dúvida do que isto queescrevo agora.Esta frase um poucodesconfiada e reticente, não indica um coração menos entusiasta. Lou Saloméparte de Tautenburg;. Frederico Nietzsche continua a escrever-lhe cartas, muitasdas quais conhecemos; confia-lhe seus trabalhos e seus projetos: quer ir aParis ou Viena, com intenção de estudar ciências físicas para aprofundar ateoria do Retorno Eterno, pois não é bastante que seja surpreendente e bela, épreciso que seja também verdadeira. Tal como o vemos, vê-lo-emos sempre: tentadopelo seu espírito critico quando segue uma inspiração lírica; tentado (pelogênio lírico quando realiza suas análises críticas. Conta-lhe o êxito feliz do Hinoà vida, inspirado pelos seus versos e que ele submeteu ao julgamento deamigos músicos. Um diretor de orquestra quase lhe prometeu uma audição;inclinado à esperança, ele comunica a notícia. "Por este estreito caminho— escreve-lhe — poderemos chegar juntos à posteridade, ficando, ainda,

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aberto qualquer outro caminho." Em 16 de setembro escreve, de Leipzig, aPeter Gast: "últimas notícias: no dia 2 de outubro, Lou vem aqui; doismeses depois partiremos para Paris, e lá permaneceremos, talvez, durante anos.Tais são os meus projetos."

Sua mãe e sua irmãcriticam-no. Ele sabe, e essa hostilidade não o desgosta. "Todas asvirtudes de Naumburg estão contra mim — escreve — e convém que assimseja."

Dois meses depois, aamizade rompeu-se. Que aconteceu? Quem sabe se não é difícil imaginá-lo: LouSalomé foi reunir-se a Nietzsche em Leipzig, como prometera, mas Paulo Réeacompanhava-a. Sem dúvida, Lou desejava que Nietzsche compreendesse que aamizade sempre oferecida tinha que ser livre e sem submissões; uma simpatia enão uma consagração intelectual. Haveria Lou Salomé pensado bem nasdificuldades de semelhante empresa e nos perigos de tal ensaio? Aqueles doishomens se haviam enamorado dela. Qual foi a sua atitude entre os dois? Pode seassegurar que, ao tentar reter a ambos junto de si, não cedia a um instintotalvez inconsciente, de curiosidade intelectual e de domínio feminino? Quem opoderia dizer? Quem, jamais, o saberá?Frederico Nietzsche setornou triste e desconfiado. Certo dia acreditou que seus companheiros, quefalavam em voz baixa, caçoavam dele. De outra vez, chega até ele uma históriapueril que, no entanto, precisamos transcrever, e que o agitou profundamente:Rée, Lou Salomé e Nietzsche haviam tirado juntos uma fotografia. LouSalomé e Rée haviam-lhe dito: "Suba nesta "charrete" decriança; nós seguraremos os varais; será o símbolo de nossa união…"Nietzsche respondera: "Não. A senhorita Lou deve sentar-se na"charrete" e Paulo Rée e eu seguraremos os varais…" Assim sefez e a senhorita Lou mandou a fotografia a muitos amigos seus, (pelo menos é oque se contava) como um símbolo de sua supremacia.

Uma idéia mais cruelnão demorou a torturar Frederico Nietzsche: Lou e Rée estão de acordo contramim — pensava; sua amizade atraiçoa-os: eles se amam e enganam-me… Assim,tudo se tornava vil e mesquinho em torno de si. A aventura espiritual que haviasonhado terminava em lamentável disputa. Perdia sua estranha e sedutoradiscípula e perdia o melhor e mais inteligente de seus amigos daqueles últimosoito anos. Finalmente, ferido e abatido por estes acontecimentos degradantes,e faltando, ele próprio, aos deveres da amizade, denuncia Rée e Lou Salomé:"É um espírito maravilhoso, mas débil e sem finalidade alguma. Isto, porcausa de sua educação: todo. o homem deve ser educado para se tornar, de ummodo ou de outro, um soldado; e a mulher, de uma forma ou de outra, a esposa deum soldado."

Nietzsche não tinhanem experiência nem resolução suficientes para cortar pela raiz essa situaçãoinfinitamente penosa. Sua irmã, que detestava a senhorita Salomé, alimentavasuas suspeitas e rancores, e acabou intervindo de maneira brutal. Sem estarautorizada, segando parece, escreveu à moça uma carta que determinou a ruptura.A senhorita Salomé ofendeu-se. Conhecemos o rascunho da última carta queFrederico Nietzsche lhe dirigiu, rascunho que esclarece um pouco do acontecido:

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Mas que cartas sãoessas, Lou? Meninas de escola irritadas é que escrevem assim. Que tenho eu quever com essas misérias? Compreenda-me: desejo que você se eleve diante de mim;não quero que diminua mais ainda.Só reprovo o terdemorado tanto em perceber o que eu desejava de você. Em Lucerna dei-lhe o meuensaio sobre Schopenhauer dizendo-lhe que os meus pontos de vista essenciaisestavam ali, e acreditando que eles seriam também os seus. Você deveria, então,ter lido e dito: Não. (Nestes assuntos odeio toda a superficialidade). Teria, assim, me poupado muitascoisas! A poesia À Dor, que você escreveu, é uma profunda negação daverdade.Creio que ninguémpensa de você tanto mal e tanto bem como eu. Não se defenda. Eu já a defendi,diante de mim e diante dos outros melhor do que você o poderia fazer. Ascriaturas de sua espécie não são suportáveis pelos demais senão quando têm um fim elevado.

Que pobre é você emveneração, em reconhecimento, em piedade, em cortesia, em admiração e emdelicadeza! (Para não falar de coisas mais elevadas.) Que responderia, se eulhe dissesse: É corajosa? É incapaz de uma traição?Então? Nãocompreende que quando um homem como eu se aproxima de você precisa fazer sobresi próprio uma grande violência?… Você conheceu um dos homens maisgenerosos, mais benéficos que existem; mas, contra os pequenos egoísmos e aspequenas fraquezas, meu argumento, saiba-o bem, é a repugnância. Ninguém é tão rapidamente vencidopela repugnância como eu.No entanto, não meiludi sobre coisa alguma; vi em você esse sagrado egoísmo que nos obriga aceder o que há de mais elevado em nós. Ajudada não sei por que malefício, vocêo trocou pelo seu oposto, o egoísmo do gato que só quer a vida…Adeus, querida Lou.Não a verei mais. Defenda sua alma de semelhantes ações e consiga com outros oque comigo já é irreparável.Não li sua cartaaté ao fim, mas, de qualquer modo, li demasiado. SeuF. N.

Frederico Nietzsche abandonou Leipzig.

ASSIM FALAVA ZARATUSTRA

Sua partida foi rápidacomo uma fuga. Passa por Basiléia e se detém em casa de seus amigos Overbeck,que ouvem as suas queixas. Foi desenganado de seu último sonho. Todos o traíram:Lou, Rée, fracos e pérfidos; Lisbeth, sua irmã, inconsciente e grosseira. De

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que traição se queixa, é de que acontecimento? Não o diz, mas prossegue na suaamarga queixa. Os Overbeck desejam retê-lo ao seu lado durante alguns dias,mas ele foge. Quer trabalhar, e vencer sozinho a tristeza de ter sido enganadoe a humilhação de haver-se enganado. Talvez queira, também, tirar proveito doestado de paroxismo e do sursum lírico a que o levara o seu desespero.Parte e diz a seus amigos: "Hoje entro em absoluta solidão."

Parte e para,primeiro, em Gênova. "Frio; doente. Sofro", escreve laconicamente aPeter Gast. Abandona essa cidade em que talvez o importunem as recordações deum tempo melhor, e afasta-se, seguindo a costa. Na época de que falamos,Nervi, Santa Margarida, Rapallo, Zoagli, eram lugares desconhecidos dosturistas, simples aldeias habitadas por pescadores que ao anoitecer recolhiamseus barcos ao fundo das enseadas, e cantando remendavam suas redes. FredericoNietzsche descobriu estes magníficos lugares e escolheu o mais magnífico,Rapallo, para nele humilhar a sua miséria. Em uma página muito simples,descreve as circunstâncias de sua permanência ali:

Passei o meuinverno de 1882-83 na graciosabaia de Rapallo que chanfra a Riviera, não longe de Gênova, entre o cabo dePortofino e Chiavari. Minha saúde não era dás melhores; o inverno, frio echuvoso; uma pequena hospedaria (*), situada bem à beira do mar, meoferecia um abrigo bem pouco satisfatório, sob todos os pontos de vista.Apesar disso — veja-se aqui um exemplo da minha máxima que afirma quetudo o que é decisivo acontece apesar de— foi neste inverno e em meio aeste desconforto que nasceu o meu Zaratustra. Todas as manhãs me dirigia para osul pelo magnífico caminho que sobe até Zoagli entre pinheiros e dominando oimenso mar, e (à medida que a saúde mo permite) chegava até Portofino,bordeando a baía de Santa Margherita. Andando por esses caminhos é que me veiotoda a primeira parte do Zaratustra (fiel mir em); mais ainda, opróprio Zaratustra como tipo; ou, mais exatamente, Zaratustra caiu sobre mim (überfielmich…).Em dez semanas eleconcebe e termina seu poema. É uma obra nova e, se se pretender seguir a gênesede- suas idéias, surpreendente. Ele meditava, sem dúvida, uma onra lírica, umlivro sagrado, mas a doutrina essencial desta obra devia ser dada pela idéia doRetorno Eterno. Pois bem, na primeira parte do Zaratustra, a idéia do RetornoEterno não aparece. Nietzsche segue uma outra, diferente e contrária — a idéiado Super-homem, símbolo de um progresso real que modifica as coisas, promessade uma evasão possível para além do acaso e da fatalidade.Zaratustra anuncia oSuper-homem — é o profeta de uma boa nova. Em sua solitude descobriu umapromessa de felicidade, e traz esta promessa; sua força é doce e benfazeja eprediz um grande futuro em recompensa de um grande trabalho. Em outrasocasiões, Frederico Nietzsche o fará empregar uma linguagem mais áspera.Leia-se, porém, esta primeira parte, procurando não confundi-la com as que vêmem seguida, e sentir-se-á o tom cheio de santidade e a doçura.

Qual seria a causa doabandono da idéia do Retorno Eterno? Nietzsche não nos diz uma única palavracapaz de esclarecer este mistério. A senhorita Lou Saloménos assegura

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(*) Albergo IaPosta (dado fornecido por M. Lanzky). (N. do A.).

que em Leipzig,durante seus curtos estudos Nietzsche havia compreendido a impossibilidade defundamentar em razões as suas hipóteses. Isso, porém, não diminuía o seuvalor lírico — do qual, um ano mais tarde ele saberá tirar partido — e, dequalquer modo, não explica a aparição de uma idéia contrária. Que pensar,então? Talvez o seu estoicismo se tenha sentido vencido pela traiçãodos amigos. "Apesar de tudo — escreve a Peter Gast em 3 dedezembro — não desejaria reviver estes últimos meses." Sabemos que ele nãocessava de experimentar em si próprio a eficácia de seus pensamentos. Incapazde suportar o símbolo cruel, julgou impossível propô-lo aos homens sem mentir,e inventou um símbolo novo, o Ubermensch, "oSuper-homem". "Não quero recomeçar.— Escreve em suas notas— (ichwill das Leben nicht ivieder). Como pude suportar? Criando, fitando oSuper-homem que diz sim à vida. Ah! Eu também procurei dizer sim!"Frederico Nietzschequer responder ao grito da sua juventude: Ist Veredlung moglich? "Épossível o enobrecimento?" E quer responder: sim. Deseja e consegue crerno Super-homem. Consegue apoderar-se dessa esperança que convém aos desígniosda sua obra. Que é que se propõe? Entre tantas veleidades que o tentam, esta éa mais forte": deseja responder ao Parsifal, obra contra obra.Richard Wagner desejou mostrar a humanidade salva de sua fraqueza pelomistério eucarístico, o sangue impuro dos homens renovado pelo sangue eternamentevertido de Cristo. Frederico Nietzsche quer mostrar a humanidade salva de suafraqueza pela glorificação de sua própria essência, pelas virtudes de um grupoescolhido que purifica e renova seu sangue voluntariamente. Será esse todo oseu desejo? Certamente que não. Assim falava Zaratustra é algo mais queuma resposta ao Parsifal. As idéias de Nietzsche têm origens sempregraves e longínquas. Qual será sua vontade final? Quer orientar e dirigir aatividade dos homens; quer criar costumes, indicar aos humildes sua tarefa, aosfortes, seu dever e seus mandamentos — e elevá-los a todos para um sublimedestino. Desde menino, de adolescente e de moço, teve essa aspiração. Aostrinta e oito anos, neste momento de crise e decisão, torna a encontrá-la, équer agir. O Retorno Eterno já não o satisfaz, pois não tolera o viverprisioneiro dentro da natureza cega. A idéia do Super-homem, que é um princípiode ação e uma esperança de salvação, ao contrário — seduz-o.Qual é o sentido destaidéia? É uma realidade, ou um símbolo? Uma ilusão, ou uma esperança? Impossíveldizê-lo. O espírito de Nietzsche é rápido e sempre oscilante. A veemência dainspiração que o arrasta não lhe deixa nem tempo, nem força para definir; antesde compreender perfeitamente as idéias que o agitam — ele mesmo as interpretaem diversos sentidos. Às vezes, ó Super-homem lhe parece uma realidade muitoséria; com maior freqüência, porém, parece descuidar ou desdenhar toda a crençaliteral, e sua idéia não é senão uma fantasia lírica que ele usa para animar abaixa humanidade. É uma ilusão, Uma ilusão útil e benfazeja, diria, se aindafosse wagneriano e se atrevesse a empregar de novo o vocabulário dos seustrinta anos. Nesses momentos gostava de repetir a máxima de Schiller:

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"Atreve-te a sonhar e a mentir…" Acreditamos que o Super-homem é,sobretudo, o sonho é a mentira de um poeta lírico. Cada espécie tem seuslimites, é não os pode franquear. Nietzsche sabe-o e o escreve. Foi umtrabalho penoso. Um tanto refratário a conceber esperanças, Nietzscherebelava-se freqüentemente contra a tarefa que se impusera. Todas as manhãs,ao sair de um sono que o cloral fazia doce, voltava à vida com uma horrívelamargura; vencido pela tristeza e o rancor, escrevia páginas que em seguida seobrigava a ler atentamente, corrigindo ou suprimindo. Temia aquelas horasmalignas em que a cólera o possuía como uma vertigem e lhe escurecia asmelhores idéias. Evocava então seu herói, Zaratustra, sempre nobre, sereno eprocurava junto dele alivio e conforto. Numerosas passagens do seu poema são aexpressão desta angústia. Zaratustrafala-lhe: Sim, conheço o teu perigo, Mas, por meu amor e minha esperança,te rogo: não arrojes de ti teu amor e tua esperançaiO homem nobre estásempre em perigo de se converter num insolente, num caçoísta e num destruidor.Ah! Conheci homens nobres queperderam suas mais altas esperanças, e, desde então, caluniaram todas as maisaltas esperanças.… Por meu amor e minha esperança te rogo: não arrojes o herói que há em tua alma; crê nasantidade de tua mais alta esperança!O combate sente-secontinuamente. Não obstante, Nietzsche avança em seu trabalho. Tem queaprender diariamente e de novo a sabedoria e moderar, destruir ou enganar seusdesejos. Mas ele já está acostumado a este rude combate, c consegue trazer suaalma novamente a um estado de serenidade e fecundidade. Termina um poema quenão é senão o começo de um poema mais vasto. Zaratustra, voltando às suas montanhas,abandona os homens. Ainda duas vezes terá que descer até eles, antes de lhesditar as tábuas de sua Lei. O que ele diz, porém, é suficiente para deixarentrever as formas essenciais de uma humanidade obediente às minoriasescolhidas. Ela se divide em três castas: a mais baixa, a casta popular,abandonada às suas crenças humildes; acima desta, a casta dos chefes,organizadores e guerreiros; e acima destes, a casta sagrada, os poetas quecriam as ilusões e indicam os valores. Recordemos o ensaio deRichard Wagner sobre a

arte, a religião e apolítica, tão admirado, havia tempo, por Nietzsche. Nele se propõe umahierarquia semelhante.Em seu conjunto, aobra é serena; é a mais formosa vitória de Frederico Nietzsche. Ele reprime suastristezas; exalta a força, não a brutalidade; a expansão, não a agressão. Nosúltimos dias de fevereiro de 1882, escreve essas páginas finais que são,talvez, as mais belas e mais religiosas que o pensamento naturalista tenha jáinspirado:Meus irmãos!Permanecei fiéis à terra, com toda a força do nosso amor! Que o vosso pródigo amor e o vosso conhecimentoconcordem com ò sentido da terra. Eu vos suplico e vos rogo.

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Não deixeis nossa virtude voar longe das coisas terrestres edebater-se contra muros eternos! Ah! Houve sempre tanta virtudeextraviada!Como eu, trazei denovo á terra a virtude extraviada; sim, trazei-a à carne e à vida, a fim de que dê á terra seusentido — um sentido humano!Enquanto Nietzsche, nacosta genovesa acabava de compor esse hino, Richard Wagner morria em Veneza. Nietzsche recebeu a notícia com grave emoção, e reconheceu uma espécie deprovidencial acordo na coincidência dos acontecimentos. O poeta de Siegfried morrera! Pois bem, a humanidade não ficaria um momento sem lirismo, poisque Zaratustra já havia falado!

Fazia seis anos quenão dava sinal de vida a Cosima Wagner; mas, naquele momento quis lhe dizerque não esquecera nada dos dias passados e que compartilhava de sua dor."Estou seguro de que você me aprovará" — escreveu à senhorita deMeysenbug (*).Em 14 de fevereiro,escreveu ao editor Schmeitzner:Hoje tenho algopara lhe dizer: acabo de dar um passo decisivo, quero dizer, proveitoso pára o senhor mesmo.Trata-se de um opúsculo de cem páginas apenas intitulado: Assim falava Zaratustra.Um livro para todos e para ninguém. É um poema, ou um quinto evangelho, ouqualquer outra coisa que não tem nome; além disso, a mais séria, a mais feliz,também, de minhas produções— e acessível a todos…

(*) Carta inéditafornecida por M. Romain Rolland (N. do A.).

Escreve a Pe r Gast eà senhorita de Meysenbug, dizendo-lhes que nesse ano renunciaria a toda asociedade e que irá diretamente de Gênova a Sils.

O mesmo fizera Zaratustra,que deixara a grande cidade regressando às montanhas. Mas, Frederico Nietzsche nãoé Zaratustra. É fraco, e a solidão exalta-o e espanta-o. Passam-se váriassemanas. O editor Schmeitzner é lento. Nietzsche se impacienta e modifica seusprojetos para o verão; deseja ouvir uma voz humana. Sua irmã, que se encontraem Roma, ao lado da senhorita de Meysenbug, adivinhando que ele está cansado eacessível, aproveita o momento para tentar uma aproximação. Nietzsche hão sedefende, e promete ir a Roma.

Ei-lo em Roma. A sua velha amiga entrá-lo, imediatamente, numa brilhante sociedade, a que pertencemLembach e – também aquela brilhante Donhoff, hoje princesa von Bulow, mulheramável e grande compositora. Frederico Nietzsche sente com desagrado quãodiferente é daqueles alegres conversadores; percebe o quanto é desconhecidodeles, e compreende a diferença que existe entre o seu mundo e este. "Éum homem estranho, curioso e profundamente excêntrico" — pensam todos deNietzsche. Um grande espírito? — Ninguém se atreve a lançar este julgamento

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audaz. E Frederico Nietzsche, tão orgulhoso quando se encontra sozinho, se admira,se perturba e se humilha. Dir-se-ia que carece da força necessária paradesprezar esta gente que não o entende. Inquieta-se e começa a temer por Zaratustra,seu bem-amado filho.

"Desgosta-mepensar— escreve a Gast — quelerão o meu livro e até que, possivelmente, falem dele. Quem, porém, é bastantegrave para me compreender? Se eu tivesse a autoridade do velho Wagner, meusassuntos estariam em melhor situação; tal como estão as coisas, ninguém mepoderá salvar dos homens de letras. Para o diabo!Outros dissabores vêmatormentá-lo. Durante o inverno acostumara-se ao uso do cloral para combater ainsônia, e privando-se dele agora, não conseguia recuperar um sono normal. Oeditor Schmeitzner imprime lentamente Assim falava Zaratustra. Por queesta demora? Nietzsche se informa e respondem-lhe que é preciso, primeiro,tirar quinhentos mil exemplares de um hino para as escolas dominicais. Esperaainda uma semana, sem receber nada. Pergunta de novo e dão-lhe outra desculpa:a coleção de hinos está pronta, mas ó preciso tirar e lançar um grande lote defolhetos anti-semitas. Chega junho, e o Zaratustra não apareceu ainda.Nietzsche se irrita e sofre pelo seu herói cujos passos são impedidos peladupla necessidade da beatice e do anti-semitismo.Desanima de escrever edeixa depositadas na estação suas malas com os livros e manuscritos quetrouxera: cento e quatro quilos de papel. Tudo em Roma o enfadava: a mesquinhaplebe de bastardos filhos de padres e os padres mais feios ainda que seusbastardos; as igrejas, "cavernas de cheiro insípido". Seu ódio aocatolicismo é instintivo e vem de longe; cada vez que se aproxima dele,estremece. Não é o filósofo que julga e reprova: é o filho do pastor luterano,que não suporta a outra igreja cheia de incenso e de ídolos.Ouve elogiar a belezade Aquila e sente o desejo de abandonar Roma. Frederico de Hohenstaufen,imperador dos árabes e dos judeus, o inimigo dos papas, residiu ali, e Nietzschetambém gostaria de fazer o mesmo. No entanto, o quarto que ocupa em Roma éformoso e bem situado — piazza Rarberini — na parte mais alta de uma casa. Alipode esquecer a cidade; o murmúrio da água que um tritão deixa escorrer do seubúzio, disfarça o rumor humano e encobre sua tristeza. Nesse quarto, é que eleimprovisou, uma noite, a mais comovedora expressão de desespero e solidão:

white'>Assim falava Zaratustra — Um livro para todos e para ninguém, apareceu enfim,nos primeiros dias de junho.

"Movimento-memuito — escreve Nietzsche. — Vivo numa agradável sociedade, mas assimque me sinto só, sinto-me mais emocionado que nunca." Em breve conhece asorte de seu livro. Seus amigos apenas lhe falam dele; ninguém se interessa poresse Zaratustra, estranho profeta que ensina a incredulidade em tom bíblico."Como é amargo!" dizem a senhorita Nietzsche e a senhorita Meysenbug,cristãs de coração, que se sentem feridas pelo livro. "É eu — escreveNietzsche a Peter Gast — eu, que sinto o meu livro tão doce!"O calor dispersouaquela sociedade romana. Nietzsche não sabia para onde ir. Esperara dias tão

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diferentes! Realmente, abrigara a convicção de que comoveria a Europa letradae de que enfim, conquistaria um público, ou (talvez mais exatamente) que nãoele tão fraco, mas sim Zaratustra, tão forte, conquistaria um grupo dediscípulos e talvez de fiéis. "Para este verão — escrevia em maio a PeterGast — tenho um projeto: escolher, no meio de qualquer bosque, um castelopreparado antigamente pelos beneditinos para as suas meditações, e enchê-lo decompanheiros e de homens escolhidos… Não tenho outro remédio senão começar aprocurar novos amigos”.

Mas em 23 de junho,aterrado pela perda de suas esperanças, subiu para o seu retiro predileto daEngadina.Lisbeth Nietzsche, queregressava à Alemanha, acompanhou-o. Jamais sua irmã o viu tão brilhante ealegre como naquelas poucas horas de viagem. Improvisava epigramas,"bouts-rimés" cujos temas eram propostos por sua irmã; ria como ummenino e, temendo os intrusos que teriam perturbado sua alegria, em cadaestação chamava o chefe de trem e subornava-o para que os deixassem a sós.Frederico Nietzschenão vira Engadina desde o verão de 1881, quando concebida a idéia do RetornoEterno e as palavras de Zaratustra. Dominado pelas recordações epela repentina solidão, arrastado por um prodigioso movimento de inspiração,escreveu em dez dias a segunda parte de sua obra.

Esta segunda parte éamarga. Frederico Nietzsche não pode reprimir por mais tempo os rancores que jáno inverno anterior o haviam ameaçado; já não sabe unir a força à doçura.Antes, Zaratustra dizia: "não sou caçador de moscas", e desdenhava deseus adversários. Falou, então, como um benfeitor, e não o ouviram. Nietzscheempresta-lhe, agora, outra linguagem: "Zaratustra justiceiro — escreve emsuas curtas notas — uma manifestação da justiça em sua forma mais grandiosa; da justiça que forma, que edifica, e que, portanto, tem quedestruir."Zaratustra justiceirosó tem insultos e lamentações em seus lábios. Canta aquele canto noturno queNietzsche improvisara uma noite em Roma para si só.

Sou luz. Ah, sefosse noite! Estar rodeado de luz é a minha solidão…

Já não é aquele heróique Frederico Nietzsche criara tão superior a toda a humanidade. É um homemdesesperado — é Nietzsche, em suma, demasiado fraco para exprimir outra coisasenão sua irritação e suas queixas:

Em verdade, meusamigos, caminho entre os homens como entre fragmentos e membros de homens!Nada tão espantosopara os meus olhos como ver os homens despedaçados e dispersos como seestivessem estendidos num campo de matança.E quando meus olhosdo presente fogem para o passado, encontram sempre o mesmo: fragmentos,membros e espantosos acasos — nada

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de homens,Ah, meus amigos: opresente e o passado sobre a terra são, para mim, as coisas mais insuportáveis; e não me seria possível viver senão tivesse a visão do que fatalmente há de vir.Um visionário, umcriador, futuro ele próprio, e ponte para o futuro, ah! e de certo modo, umdoente também, em pé sobre essa ponte: Isto é que é Zaratustra.

Caminho entre oshomens, fragmentos do futuro, desse futuro que contemplo nas minhas visões.Nietzsche difama osmandamentos morais que ampararam a velha humanidade e deseja aboli-los paraimplantar os seus. Conheceremos, afinal, esta nova Lei? Nietzsche demora emdivulgá-la. "As qualidades do Super-homem se fazem cada vez maisvisíveis" — escreve em suas notas. Desejaria que assim fosse, mas poderáele acaso, invadido pelo descontentamento e pela amargura, enunciar e definiruma forma de virtude, um novo bem e um novo mal, como prometera? Pelo menos,tenta fazê-lo. Um humor áspero e violento arrasta-o, e a virtude que exalta éa força crua, não disfarçada pelos homens; é o ardor selvagem que as prescriçõesmorais quiseram constantemente atenuar, matizar ou vencer* Atraído por estaforça, cede ao seu influxo:Contemplo comarroubo os milagres que o ardente sol faz florescer — diz Zaratustra. — Tigres, palmeiras,serpentes cascavéis… Em verdade, há um futuro até para o mal e o homemnão descobriu ainda o mais ardente meio-dia... Um dia, virão ao mundodragões maiores…. Vossa alma está tão longe do que é grande, que oSuper-homem lhes padeceria espantoso fim sua bondade!Com esta enfáticafrase, cujas palavras são mais sonoras que fortes, parece Nietzsche quererdissimular algo que não consegue satisfazê-lo em seu pensamento: não volta ainsistir sobre esse evangelho do mal, e, prefere marcar o difícil momento emque o profeta anunciará sua lei. Zaratustra deve, primeiro, terminar suatarefa de justiceiro e de destruidor dos fracos. Tem que golpear, mas com quearma? Nesta segunda parte, Nietzsche emprega a idéia do Retorno Eterno, quedesprezara na primeira, modificando, porém, o sentido e a aplicação. Já não éum exercício de vida espiritual, nem um processo de edificação interior — masum martelo, segundo ele próprio declara, um instrumento de terror moral, um símboloque dispersa o sono.

Zaratustra reúne seusdiscípulos e quer lhes comunicar a doutrina, mas sua voz desfalece e morre.Repentinamente sacudido pela piedade o próprio profeta sofre ao evocar a espantosaidéia; vacila no instante de destruir as ilusões de um futuro melhor, asesperanças de vida futura e de beatitudes espirituais que com suas nuvens escondemaos homens a miséria do seu estado. Perturba-se. Um corcunda, queadivinha o que se passa no seu interior, interpela-o, rindo divertida-mente:"Por que Zaratustra fala a seus discípulos de modo diferente daquele comque fala consigo próprio?" Zaratustra compreende seu erro, e procuranovamente a solidão. E assim termina a segunda parte.

Em 24 de junho daquele

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ano de 1882, Nietzsche se havia instalado em Sils; antes de 1 de julho, escrevea sua irmã:

Suplico-lhe,suplico-lhe urgentemente, que procure Schmeitzner e obtenha dele, verbalmenteou por escrito, como achar melhor, a promessa de que, assim que receba omanuscrito, mande imprimir a segunda parte do Zaratustra— Esta segunda parte ê hoje uma realidade. Pormaiores esforços que você faça para a imaginar, não fará uma imagem exageradada veemência de sua criação. Em nome do céu, peço-lhe que arrume bem as coisascom Schmeitzner; eu sou demasiado irritadiço para o fazer.Schmeitznercompromete-se e cumpre a palavra. Em agosto, as provas chegam às mãos deNietzsche, que, sem forças para este trabalho, deixa a Peter Gast e a sua irmão cuidado de as corrigir. As coisas terríveis que disse e as mais terríveisainda, que estão por dizer, aniquilam-no.Outras preocupações sejuntam à tristeza do seu pensamento. Certa conduta indiscreta de sua irmãreanimara os dissentimentos. do verão anterior; na primavera, aoreunir-se–lhe, e sabendo que ela tem certo costume de enredar as coisas,dissera-lhe: "Prometa-me não tocar de novo naquela história de Lou Salomée de Paulo Rée." Durante três meses ela se contivera, mas, em seguida,faltou à sua promessa e falou. Ignoramos o que disse, e, de novo a obscuridadedesta história nos envolve. "Lisbeth, — escreve Nietzsche à senhoraOverbeck — quer se vingar a todo o custo da jovem russa. ." Sem dúvida,Lisbeth lhe relatara algum fato, ou alguma conversa que ele ignorava. Umairritação doentia apoderou-se dele, e, sob seu influxo, escreveu a Paulo Rée aseguinte carta, da qual se achou um rascunho (embora não seja seguro que tenhasido enviada tal como aqui a lemos):

Com grande atraso,quase com um ano de atraso, vim a saber o papel que o senhor desempenhou nos acontecimentosdo último verão, e jamais tive a alma tão cheia de asco como a tenho agora, aopensar que um indivíduo da sua espécie, insidioso, embusteiro e falso, pôde, duranteanos, chamar-se de meu amigo. A meu ver, isto / um crime, e não somente contramim, mas antes e, sobretudo, contra a amizade, contra essa vazia palavraamizade.… Teria um grandeprazer em lhe dar uma lição de moral prática, com um par de pistolas; talvezconseguisse, na melhor das hipóteses, interromper definitivamente seustrabalhos sobre a moral. Nestes trabalhos, é preciso ter as mãos limpas e nãoos dedos sujos, senhor doutor Paulo Rée!Esta carta não ésuficiente para condenar Paulo Rée. Nietzsche escreveu-a arrebatado pela cólerae atendendo a informações de sua irmã, quase sempre mais arrebatada do queverídica. A carta tem valor como testemunho precioso da impressão causada emNietzsche pelo caso; mas é um fraco testemunho dos antecedentes mal conhecidosda questão.

Qual foi a conduta dePaulo Rée, quais as suas culpas e quais os seus direitos? Em abril de 1883,seis meses depois das dificuldades de Leipzig, Rée propusera a Nietzsche dedicar-lhe

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uma obra sobre as origens da consciência moral — Obra totalmente inspirada nasidéias nietzschianas. Nietzsche recusara esta homenagem pública, escrevendo aPeter Gast: "Não quero que se me confunda com ninguém". Uma cartaescrita por Jorge Brandes, em 1888, mostra-nos Paulo Rée vivendo em Berlim coma senhorita Salomé "fraternalmente", segundo ambos dizem. Não é deduvidar que Rée ajudasse a senhorita Salomé, em 1893, a escrever o seu livro sobre Frederico Nietzsche, livro muito inteligente e muito nobre. Inclinamos-nosa crer que entre aqueles dois homens só houve um contratempo: o amor comumque a mesma mulher lhes inspirou. ,Frederico Nietzscheescreve longas cartas febris. Lamenta ver-se, depois dos quarenta anos, traídopor seus amigos. Franz Overbeck, inquieto, sobe a Sils para o distrair dasolidão em que ele se debate e se consome. Sua irmã, pessoa prudente, de gostosburgueses, dá-lhe conselhos em resposta às suas lamentações. "Estásozinho, é certo, mas você não procurou a solidão? Entre a serviço de algumaUniversidade; quando tiver um título e alunos, será conhecido e seus livros jánão cairão no vácuo…" Nietzsche ouve de mau humor estes conselhos, masacaba aceitando-os e se dirige ao reitor da Universidade de Leipzig, o qual,sem demora, aconselha-o a que não tente, pois que nenhuma Universidade alemãpoderia aceitar entre os seus professores um ateu, um anticristão declarado."Esta resposta me devolveu a coragem" — escreve ele a Peter Gast, emanda a sua irmã uma carta em termos rudes, que ferem Lisbeth:

Sem dúvida convémque eu seja ignorado; mais ainda: convém que eu próprio vá ao encontro dacalúnia e do desprezo. Meus "próximos" são os primeiros a se poremcontra mim: assim o compreendi no último verão, e, magnificamente, tiveconsciência de que me achava no meu caminho.Quando me ocorre pensar "não posso suportar mais a solidão" — sinto-meem rebelião contra o que há de mais elevado em mim.Em setembro dirigiu-sea Naumburg, onde tinha o propósito de se demorar algumas semanas. Sua mãe esua irmã inspiravam-lhe sentimentos complexos que escapam à análise. Amava-ospor serem seus e porque ele era terno e fiel, e infinitamente sensível àsrecordações. Mas cada uma de suas idéias, cada um de seus desejos afastavam-nodeles e seu espírito desprezava-os. Não obstante, a velha casa de Naumburg erao único lugar do mundo onde ainda encontrava — com a condição de não se demorarnela muito tempo — certa doçura da vida.Encontrou a mãe e afilha em plena discórdia. Lisbeth havia-se enamorado de um tal Förster,agitador, ideólogo germanista, anti-semita e que organizava uma empresa decolonização no Paraguai. Lisbeth queria casar-se com ele e segui-lo e sua mãe,desesperada, tentava retê-la. A senhora Nietzsche recebeu seu filho como umsalvador e narrou-lhe os insensatos projetos de Lisbeth. Nietzsche ficouconsternado. Conhecia aquele homem e suas idéias e desprezava as paixõesbaixas e torpes que sua propaganda suscitava; desconfiava, até, que esse tal Försterfalara mal de sua obra. Que Lisbeth, sua companheira de infância seguisseaquele homem, era mais do que podia suportar. Chamou-a e falou-lhe comviolência. Ela, porém, replicou com energia. A moça, embora franzina

Em meados de novembro,abandona Gênova, e, seguindo a costa ocidental, põe-se em busca de um retiro

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para o inverno. Deixa para trás San Remo, Menton, Mônaco e detém-se em Nice,que o encanta. Encontra ali esse ar vivo, essa plenitude de luz e esses diastransparentes que tão necessários lhe são. "Luz, luz, luz! — escreve. —Eis-me aqui de novo em equilíbrio." Desagrada-lhe a cidade cosmopolita, ede início, aluga um quarto numa casa da velha cidade italiana, não Nice, masNizza, como ele escreve sempre. Tem por vizinhos gente do povo, trabalhadores,pedreiros, empregados e todos, falam italiano. Foi em condições semelhantesque em Gênova, em 1881, encontrara certa felicidade.

Afugenta ospensamentos vãos e faz um enérgico esforço para terminar o Zaratustra. Mas eisaqui o maior de seus infortúnios: a dificuldade do seu trabalho é extrema,talvez insuperável. Terminar o Zaratustra? A obra é imensa. Trata-se de umpoema invocado para fazer esquecer os poemas de Wagner; de um evangelho quedeverá fazer esquecer os Evangelhos. Durante seis anos, de 1875 a 1881, Frederico Nietzsche havia examinado todas as morais e mostrado a ilusão que lhes servede base; definiu sua idéia do universo, apresentando-o como um mecanismo cego,como uma roda que gira eternamente sem objeto. Não obstante, ele quer ser umprofeta anunciador de virtudes e de fins: "Eu sou aquele que dita osvalores para mil anos", diz ele nessas notas em que seu orgulho relampeja."Imprimir sua mão nos séculos, como sobre cera; escrever sobre a vontadedos milênios como sobre o bronze, mais duro que o bronze, mais nobre que obronze – eis aqui (dirá Zaratustra) a beatitude do criador."

Que leis, que tábuasquererá Nietzsche ditar, que valores escolherá para honrá-los ou desprezá-los,e qual é o seu direito de escolher e construir uma ordem de beleza e de virtude,dentro da natureza, regida por uma ordem mecânica? Sem dúvida, FredericoNietzsche nos responderia que o seu direito é o. direito do poeta cujo gênio,criador de ilusões, impõe à imaginação dos homens tal amor ou tal ódio, tal Bemou tal Mal; mas não por isso deixa de reconhecer a dificuldade de sua empresa,como confessa na segunda parte, últimas páginas de seu poema: "O perigoestá — diz Zaratustra — em que o meu olhar se dirige para cima ao mesmo tempoem que minha mão desejaria se agarrar e suster… nó vazio!"

Nietzsche queralcançar a meta que se propôs. Neste mesmo verão sentiu a trágica ameaça quepesa sobre sua vida, e sente impaciência por terminar uma obra que deverá ser,afinal, a expressão de seus últimos desejos, de seu último pensamento. Tiveraa intenção de acabar o seu poema em três partes; mas duas já estão escritas eele não disse ainda quase nada. O drama não está sequer esboçado. É precisomostrar Zaratustra em contacto com os homens, anunciando o Retorno Eterno,humilhando os fracos, fortificando os fortes, destruindo a velha humanidade; épreciso mostrar o Zaratustra legislador, ditando suas Tábuas, morrendo, afinal,de piedade e de alegria, na contemplação de sua obra. Sigamos as notas deNietzsche:Zaratustra alcança,ao mesmo tempo, o extremo desespero e a maior felicidade. No mais terrívelinstante do contraste, sucumbe.A história maistrágica, com um desenlace divino.Zaratustra se fazgradualmente, maior. Sua doutrina se desenvolve à medida que ele cresce.

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O Retorno Eterno brilha como um sol poente sobre aúltima catástrofe.Na última parte,grande síntese de quem cria, ama e destrói.No mês de agosto,Nietzsche, imaginara um desenlace. Suas disposições intimas eram, então,adversas, e o trabalho ressentira-se disso. Volta, pois ao esquema, e procuratirar partido dele. O que deseja escrever é um drama. Situa a ação num lugarantigo, numa cidade devastada pela peste. Os habitantes desejam iniciar umanova era; procuram um legislador, e chamam Zaratustra, que desce até elesseguido de seus discípulos.— Vão — diz-lhes — eanunciem o Retorno Eterno… Os discípulos têm medo, e confessam-no:— Nós podemossuportar a tua doutrina — dizem — mas podê-lo-á também esta multidão?— Devemos fazer umensaio com a verdade! — responde Zaratustra. — Essa verdade deve destruira humanidade, pois bem, que assim seja!

Os discípuloscontinuam vacilando. E então, Zaratustra ordena:

— Eu pus em vossasmãos o martelo que há de forjar a humanidade — utilizai-o!

Mas os discípulostemem o povo, e abandonam seu mestre. Zaratustra, então fica só. A multidão seespanta, se irrita e enlouquece ouvindo-o:Um homem suicida-se,outro enlouquece. Um divino orgulho de poeta anima Zaratustra: Tudo deveser trazido à luz. Mas, no momento em que, simultaneamente, anuncia o RetornoEterno e o Super-homem, cede à piedade.Todos o renegam. É preciso — dizem — sepultar esta doutrina e matar Zaratustra.

Já não há nomundo alma alguma que me ame — murmura este — como poderia euamar a vida?E morre detristeza, ao descobrir o sofrimentode que é causa.— Por amor, causei amais violenta dor; agora, sucumbo à dor que causei.Partem todos, e Zaratustra,que permaneceu só, toca com a mão sua serpente: Que me aconselha a minha sabedoria? A serpente morde-o;a águia destrói a serpente, o leão se precipita sobre a águia, e Zaratustramorre presenciando a luta entre seus animais.Quinto ato: oslouvores.

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A liga de fiéis quese sacrificam sobre a tumba de Zaratustra. Os fiéis haviam fugido, c agora,vendo-o morto, tornam-se herdeiros de sua alma e elevam-no à sua altura.

36.0pt;'>Não obstante as grandesbelezas que este plano deixa entrever, Frederico Nietzsche abandona-o.Desagrada-lhe mostrar a humilhação de seu herói? É provável, e, assim, vemo-loprocurando um desenlace (triunfal. Mas esbarra, principalmente, com umadificuldade de fundo, que talvez não conceba claramente: os dois símbolos sobreos quais repousa o seu poema, o Retorno Eterno e o Super-homem, constituem, em conjunto,um desacordo que torna impossível o acabamento daobra. O Retorno Eterno é uma áspera verdade, que suprime toda esperança; oSuper-homem é uma esperança e uma ilusão. Não há ponte alguma de um a outro, ea contradição é completa. Sé Zaratustra ensina o Retorno Eterno, não poderádespertar nas almas uma crença apaixonada na super-humanidade; e se ensina oSuper-homem não poderá propagar o terrorismo moral do Retorno Eterno. Nãoobstante, obrigado a. refugiar-se neste absurdo pela desordem e premência deseus pensamentos, Nietzsche impõe a Zaratustra essa dupla tarefa.

Compreenderáclaramente o problema? Ignoramo-lo. Jamais confessa estas reais dificuldadesem que tropeça. Se não as vê claramente, porém, sente certo temor e procura umasaída.Escreve um segundoplano, que não deixa de ser habilidoso : a mesma decoração, a mesma cidadeaçoitada pela peste, consumida pelas chamas; a mesma súplica a Zaratustra, quevai até àquele povo dizimado. Vai, porém, como benfeitor, e evita anunciar aterrível doutrina. Desde inicio, dita as suas leis e fará-las aceitar. Maistarde, só mais tarde anunciará o Retorno Eterno. Quais são as leis que eleditou? Frederico Nietzsche indica-as. Aqui está uma das páginas, bem raras,pela qual discernimos a ordem que ele sonhou:

36.0pt;'>A solidãonecessária de quando em quando, para que o ser penetre em si mesmo e seconcentre..

A Ordenação dasFestas, fundada sobre um sistema de universo: festas das relações cósmicas,festa da terra, festa da amizade, do grande meio-dia.Zaratustra explicaas suas leis e as faz amar por todos; repete nove vezes as suas predicações, eanuncia, por fim, o Retorno Eterno. Fala ao povo, e suas palavras têm umacento de prece.O grande problema. Noprincípio foram dadas todas as leis. Tudo está preparado para o anúncio doSuper-homem — grandioso e terrível instante! — Zaratustra revelaa doutrina do Retorno Eterno — que agora pode ser suportada; ele próprioa suporta pela primeira vez.Momento decisivo: Zaratustrainterroga toda aquela multidão reunida para a festa:

36.0pt;'>Ao morrer, está abraçado á terra. E embora ninguém tivesse ditocoisa alguma, todos souberam que Zaratustra estava morto.

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É um belo desenlace,mas Nietzsche não demora em achá-lo demasiado fácil e demasiado bonito. Aquelaaristocracia platônica, instituída um pouco às pressas, deixa-o em dúvidas.Corresponde exatamente aos seus desejos. Mas, corresponderá aos seuspensamentos? Hábil em destruir todas as morais anteriores, Nietzsche nãoacredita ter o direito de propor tão depressa uma moral nova. Inquieta-o,também, a aclamação final. Todos respondem: Sim! Será isto concebível?As sociedades humanas arrastarão sempre após si uma turba imperfeita, à qual sóse fará obedecer pela força, ou pelas leis. Frederico Nietzsche não o ignora:"Sou um visionário — escreve em suas notas; — mas minha consciênciailumina inexoravelmente minha Visão e sou eu próprio quem duvida dela."Termina renunciando a este último plano. Jamais contará a vida ativa, nem amorte de Zaratustra.Nenhum documento nospermite penetrar o segredo de sua tristeza: nenhuma carta, palavra alguma aexpressam. Consideremos este silêncio como uma confissão de sua angústia c desua humilhação. Não são, por acaso, certas? Frederico Nietzsche desejava sempreescrever uma obra clássica, — um livro de história, um sistema, um poema —digna dos antigos gregos que escolhera por mestres, mas jamais pudera darforma a esta ambição. Ao finalizar aquele ano de 1883, acabava de fazer umatentativa quase desesperada; a abundância e a importância de suas notaspermitem-nos medir a grandeza que foi absolutamente estéril. Ele nem conseguefundar sim meia moral nem compor o seu poema trágico. Frustra, ao mesmotempo, suas duas obras e vê desvanecer-se seu sonho. Que é ele, afinal decontas? Um infeliz, capaz, unicamente, de esforços breves, de cantos líricos ede lamentações.

O ano de 1884 começavatristemente. Alguns dias formosos que por acaso fez em janeiro, reanimaram-no.Subitamente, ele improvisa: nada de cidades, nem de povos, nem de leis; umadesordem de queixas, apelos e de fragmentos morais que se diria escombrossubsistentes da maior obra em ruínas. Tal é a terceira parte do Zaratustra. Como Nietzsche, o profeta vive só, retirado na montanha. Fala para si próprio,ilude-se, esquece que está só. Ameaça e exorta uma humanidade que nem o teme,nem o escuta. Preconiza o desprezo das virtudes habituais, o culto do valor, oamor da força e das gerações que nascem. Não desce, porém, até ela, e ninguémouve a sua predica. O profeta sente-se triste e deseja morrer. E então, aVida, que surpreende o seu desejo, chega até ele e reanima-o:— Oh, Zaratustra! —diz a deusa — não estales o teu chicote, porque esse som é insuportável! Tu bemsabes que o ruído assassina os pensamentos… E se soubesses que pensamentostão ternos me ocorrem! Ouve: não me és bastante fiel, não me amas tanto comodizes; sei que pensas me abandonar.

Zaratustra ouve areprimenda, sorri, e demora em responder.

— Confesso — dizafinal. — Mas tu sabes tão bem como eu que.

E inclinando-se para adeusa diz-lhe algo ao ouvido. Adivinhamos á palavra segredada: Que importa queeu morra! Nada se separa e nada se aproxima, pois cada instante tem o seuretorno — cada instante é eterno.

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— Como! — responde adeusa — tu sabes disso, Zaratustra? Mas… se ninguém o sabe!…

Seus olhares secruzam. Olham-se. Olham juntos para o prado que ondula sob o frescor da tarde;choram, e, depois, silenciosos, ouvem e compreendem as onze sentenças do velhosino que bate meia-noite na montanha.

Uma! Oh, homem, alerta!Duas! Que diz a profunda meia-noite?Três! Tenho dormido… tenho dormido!…Quatro! De um pesado sono despertei!…Cinco! O mundo é profundo.Seis! Mais profundo do que o dia imaginava.Sete! Profunda é sua dor…Oito! Mais profunda, porém, do que a aflição, é a alegria.Nove! A dor diz: Passa e termina!Dez! Mas toda a alegria deseja a eternidade…Onze! Deseja a profunda eternidade!Doze!

Então, Zaratustra sepõe em pé. Recobrou a segurança, a doçura e a força. Toma novamente seu cajadoe desce, cantando, para os homens, Um mesmo versículo termina as sete estrofesdo seu hino:

"Nunca encontreia mulher com a qual desejaria ter filhos, afora esta mulher que amo — pois eute amo, oh, Eternidade!Eu te amo, oh,Eternidade!"No começo do poema, Zaratustraentrava na grande cidade, "a vaca multicolor" (assim a chama ele) einiciava seu apostolado. Ao fim da terceira parte, Zaratustra, desce para agrande cidade, para recomeçar, nela, seu apostolado. Frederico Nietzsche,lutador vencido, em dois anos de esforço e de canseiras — retrocedeu… Era1872 enviava à senhorita de Meysenbug a série interrompida de suas conferênciassobre o futuro das Universidades: "Isto dá uma sede terrível! — dizia —e, depois, nada para beber!" Estas mesmas palavras se podem aplicar aoseu poema.

A VISITA DEHEINRICH VON STEINNo mês de abril de1884 Frederico Nietzsche publica simultaneamente as segunda e terceira partedo Zaratustra. Nesse momento parece feliz.

"Tudo chega a seutempo — escreve a Peter Gast em 5 de março — tenho quarenta anos e me encontroexatamente no ponto que me propunha aos vinte. Foi uma grande, formosa eformidável viagem!"

"Com você —escreve a Rohde — que é um homo literatus não quero reter esta

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confissão: parece-me que com esse Zaratustra levei ao seu ponto de perfeição alíngua alemã. Depois de Lutero e de Goethe, havia um terceiro passo a dar.Diga-me, velho e querido camarada, se a força, a flexibilidade e a beleza dosom já estiveram alguma vez tão bem combinadas em nossa língua… Meu estilo éum bailado: jogo com simetria de toda espécie e até a própria escolha dasvogais é um jogo."

Esta alegria durapouco. Nietzsche não sabe que novo trabalho iniciar, e seu ardor, semocupação, converte-se em cansaço. Escreverá o seu sistema, ou alguma “filosofiado futuro”? Pensa nisso um instante: Mas não. Cansado de pensar e deescrever, gostaria de descansar ao som de uma bela música. Que música escolher,porém? Ah! Aquela que ele poderia amar, não existe. A italiana é suave; a alemã,pedante — nenhuma para o seu gosto. Nenhuma bastante lírica e viva, grave edelicada, rítmica, irônica e apaixonada. Carmen agrada-lhe bastante; noentanto, à Carmen prefere as composições de seu discípulo Peter Gast."Sua música! — escreve-lhe — tenho necessidade de suamúsica…"Peter Gast achava-seinstalado em Veneza; Nietzsche deseja reunir-se-lhe, mas Veneza é úmida, e elenão se atreve a abandonar Nice até meados de abril. A luz chegou a ser para eleuma exigência de enfermo, cada ano mais imperiosa; um dia sem luz entristece-o;oito dias sem luz destroem-no.

Em 21 de abril chega aVeneza. Peter Gast instala-o não longe de Rialto. A janela do seu quartoabre-se sobre o Grande Canal e dali ele pode gozar o espetáculo da admirávelcidade, depois de uma ausência de quatro anos. Sua alegria é realmente a deuma criança. Vaga por aquele dédalo veneziano, animado pelas surpresas do sol eda água, pela graça de um povo discreto e alegre, os jardins imprevistos, osmusgos e as flores crescidos entre as pedras. "Cem profundas solidões —anota — juntas compõem Veneza — e dai, sua magia. Um símbolo para os homens dofuturo." Caminha pelas vielas estreitas, como se andasse pelas montanhas,durante quatro ou cinco horas diárias. Tão depressa se mistura com a multidãoitaliana, como se isola, e sem cessar reflete nas dificuldades do seutrabalho.

Pergunta a si mesmo oque escreverá. Pensara comentar, numa série de folhetos, alguns versículos doseu poema. Mas ninguém se dignou ler as palavras de Zaratustra. Seus amigos jáo leram. Ele espera suas cartas, mas não recebe nenhuma — triste silêncio queo surpreende continuamente. Um jovem escritor, Heinrich. von Stein é quase o único que lhe dirigepalavras calorosas. Nietzsche renuncia ao seu propósito,sentindo o ridículo que seria comentar uma Bíblia ignorada pelo público. Pelos meados de junhosai de Veneza. Ocupam-no diferentes projetos: pensa muito seriamente na sua"filosofia do futuro" e decide abandonar, ou pelo menos adiar opoema, para poder se dedicar a longos estudos — "cinco ou seis anos, talvez,de meditação e de silêncio" — e chegar a formular seu sistema de maneiraprecisa e definitiva. Dirige-se à Suíça, a fim de ler livros de ciênciahistórica e natural na biblioteca de Basiléia; mas a sua permanência ali écurta. O calor sufocante deprime-o; os amigos de Basiléia não o satisfazem: ounão leram o Assim falava Zaratustra, ou leram-no muito mal.

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"Encontrava-me entre eles como entre vacas", escreve a Peter Gast — edirige-se para Engadina.

Em 20 de agostorecebeu umas linhas de Heinrich von Stein anunciando-lhe sua chegada.

Quem era estevisitante? Um homem muito jovem; pois que tinha apenas vinte e seis anos, masnão havia na Alemanha um escritor no qual se tivessem depositado maiores esperanças.Em 1878 publicara um pequeno volume intitulado Die Ideale des Materialismus,Lyrisçhe Philosophie. Frederico Nietzsche, reconhecendo neste ensaio umatentativa análoga à sua, entabular relações com o autor, acreditando haver encontradoum espírito semelhante ao seu, e um companheiro de trabalho; uma vez mais,porém, sua esperança frustrou-se. A senhorita de Meysenbug, mais benévola doque perspicaz (era este, talvez, seu único defeito), acreditou não poder fazernada melhor do que conduzir Heinrich von Stein para o circulo de Wagner, e lheabriu as portas do mestre, sendo ele admitido como o fora Nietzsche dez anosantes. Von Stein viveu naquele ambiente, e em vão Nietzsche o preveniu várias vezes. "Você admira Wagner. Muito bem. Mas cuidado paraque isso não dure demasiado tempo." Heinrich von Stein não soube resistirnem emancipar-se. Wagner fala e ele ouve devotadamente. Sua busca intelectual,até então inquieta e fecunda, se detém; Stein fecha seus cadernos de notas: foiconquistado por um homem demasiado grande; foi, por assim dizer, aspirado,esgotado. As obras que publicou (Stein morreu aos trinta anos) são penetrantese sóbrias; falta-lhes, porém, uma qualidade — a mesma qualidade que deu tantovalor aos Seus primeiros ensaios: a audácia e a temeridade, o encanto dasidéias nascentes, inseguras e apressadas.Frederico Nietzschecontinuara interessando-se por Stein, é vigiava seus trabalhos e amizades."Heinrich von Stein — escrevia em julho de 1883 à senhora Overbeck, — éagora o adorador da senhorita Salomé. Meu sucessor neste emprego como emtantas outras coisas." O perigo em que se achava o moço fazia-lhe pena.Heinrich, no entanto, lia e apreciava os livros de Nietzsche, coisa que estesabia com natural complacência. Quando recebeu a carta de Stein, sentiu-se estranhamenteemocionado. Qual a razão dessavisita? Stein parecia haver compreendido Assim falava Zaratustra; haveriaesse livro lhe inspirado um desejo de liberdade? Iria Nietzsche conquistar paraa sua causa, em compensação de tantos amigos perdidos, a este que por si sóvalia mais que todos os outros juntos? Iria conquistar o discípulo de Wagner, ofilósofo de Bayreuth? Podia, realmente, esperar esta desforra? Respondeu sem demoraa Stein, dando-lhe as boas vindas, e assinou: "O solitário deSils-Maria".Talvez possamosatribuir a esta visita uma razão secreta que Nietzsche não suspeitara. SeHeinrich von Stein, íntimo e fiel amigo de Cosima Wagner foi procurarNietzsche, seguramente não o fez sem a aprovação e os conselhos desta mulhertão prudente. Até aquele momento de sua vida, Nietzsche não atacara Wagner,limitando-se apenas a separar-se dele. Por outra parte, em julho de 1882parecia consentir numa reconciliação. A tentativa da senhorita de Meysenbug,autorizada ou não por ele, fazia-o pensar. Mais tarde, em fevereiro de 1883,por motivo da morte de Wagner, Nietzsche escrevera a Cosima. Realmente, até

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então, soubera evitar as palavras irreparáveis, e sua última obra, o final dopróprio Zaratustra, de um lirismo impreciso, permitia a esperança de um acordo.Esta era, pelo menos, a esperança de Stein, que, em maio de 1884, escrevia aNietzsche:

Como desejo que osenhor venha a Bayreuth neste verão para ouvir Parsifal!… Quando pensonesta obra, imagino uma forma de beleza pura, uma aventura espiritualpuramente humana, o desenvolvimento de um adolescente que se converte emhomem. Para mim não há no Parsifal o menor pseudo-cristianismo, e meparece a menos tendenciosa das obras de Wagner. Expresso-lhe o meu desejo — com audácia e timidez ao mesmo tempo — não porque seja wagneriano,mas porque desejo para o Parsifal um ouvinte como o senhor, e a umespectador como o senhor, desejo o Parsifal.Cosima Wagner nãoerrava em seu juízo. Conhecia o valor de Nietzsche. Carregando, como carregavasobre si próprio o peso de uma herança esmagadora, obrigada a manter umaglória e a continuar uma tradição, é lógico que lhe ocorresse que, atraindo denovo aquele homem raro e singular, extenuado em solitários esforços, podiaajudá-lo ao mesmo tempo em que se ajudava a si mesma. Teria sido ela quemescolhera Heinrich von Stein como emissário e conciliador? Pelo menos, é de sesupor que conheceu de antemão e não desaprovou a tentativa do moço.Se existia algumwagneriano capaz de tal empresa, era seguramente este. Stein era o mais livredos discípulos. Não aceitava como religião definitiva o misticismo duvidoso queo Parsifal propagara, e encerrava numa mesma tradição Schiller, Goethee Wagner, criadores de mitos, educadores de seu século e de sua raça. Oteatro de Bayreuth era para ele não a apoteose de uma obra, mas apromessa e o instrumento de obras novas — o signo de uma tradição lírica.

Que se passou naentrevista? Não é difícil imaginá-lo. Stein procurou cumprir sua delicadamissão, mas pouco falou. Nietzsche é que tomou a palavra e se fez ouvir. Quedisse ele? Talvez isto: ;

— Você admira Wagner?Mas quem não o admira? Eu o conheci, venerei e escutei tanto como você, mais doque você. Aprendi com ele não o estilo de sua arte, mas o estilo de sua vida: ovalor da iniciativa. Sei que me acusam de ingrato. Mas esta é uma palavra quenão entendo. Prossegui no meu trabalho. Sou, no melhor sentido da palavra, umdiscípulo. Você freqüenta Bayreuth, e sabe quanto aquilo é agradável;realmente, agradável demais. Wagner nos oferece o gozo de todas as lendas, detodas as crenças do passado, germânicas, celtas, pagas e cristãs. Mas estegozo é nefasto para um espírito que investiga. Aqui está a razão do meu afastamento.E esta é a razão pela qual você deve se afastar. Entenda-me bem. Eu nãomaldigo a arte nem a religião. Creio que voltará o tempo de uma e de outra.Nenhum dos antigos valores será abandonado; todos reaparecerão, transfigurados,sem dúvida mais poderosos, mais intensos, num mundo iluminado até ao fundopela ciência. Tudo o que, em meninos e adolescentes amamos; tudo o quesustentou e exaltou a nossos pais — tudo tornaremos a encontrar.Voltaremos a encontrar um lirismo e uma bondade, as virtudes mais sublimes etambém as mais humildes — cada uma em sua glória e em sua dignidade. Antes,porém, é preciso concordar com a noite, é preciso renunciar e procurar… As

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promessas são inauditas, mas eu me sinto fraco, à força de solidão. Ajude-me.Fique, ou, pelo menos, volte aqui a seis mil pés acima de Bayreuth! (*).

Stein ouvia Nietzsche.Seu diário deixa ver a crescente vivacidade de suas impressões: "24, VIII,84, Sils-Maria. Passo a noite com Nietzsche. Espetáculo desolador. — 27. Sualiberdade de espírito, sua palavra cheia de imagens; grande impressão. Neve evento de inverno. Dores de cabeça. À noite vejo-o sofrer. — 28. Ele não dormiu,mas sente-se cheio de ardor, como um mocinho. Dia de sol, magnífico."

O jovem emissáriopartiu após três dias, muito emocionado pelas horas que acabava de passar.Prometeu a Nietzsche encontrar-se com ele em Nice; pelo menos, assim o entendeuNietzsche, e teve a sensação de haver conseguido uma grande vitória. "Umencontro como o nosso não pode deixar de ter grandes conseqüências — escreve aStein alguns dias após sua partida. —Pelo menos, podemos ficar seguros de uniucoisa: que desde este momento, você pertence ao pequeno número daqueles cujodestino, para o bem e para o mal, se encontra ligado ao meu destino."Stein respondeu: "Os dias de Sils-Maria são para mim uma granderecordação, um grave e solene instante da vida…" Mas não escreve:"Sim, sou seu…" Fala, com prudência, de seus trabalhos e de suaprofissão, que o retém.

(*) Esta últimafrase foi tirada de uma passagem de Ecce Homo. (N. do A.).

Achava-se o espíritode Nietzsche bastante claro para perceber esta reserva? Não parece. Faziaprojetos maravilhosos e sonhava, de novo, com o claustro ideal. Escreveà senhorita de Meysenbug propondo-lhe, com simplicidade, que fosse passar oinverno em Nice, ao seu lado.

Em setembro desce paraBasiléia, e um acaso nos permite sondar os abismos de sua alma.

Overbeck vai visitá-loao hotel. Nietzsche se encontra de cama, com enxaqueca e muito deprimido. Noentanto, fala, e a confusão de suas palavras inquieta o amigo. Nietzsche queriniciá-lo no mistério do Retorno Eterno: "Um dia voltaremos a nosencontrar novamente: eu, outra vez doente como agora; você, como agorasurpreendido com as minhas palavras. .."

Seu rosto está mudado.Fala em voz baixa e trêmula, como nos descrevera Lou Salomé. Overbeck ouve comdoçura, evita toda a discussão e se retira com mau pressentimento. Já nãovoltaria a ver seu amigo até ao trágico encontro de Turim, no mês dejaneiro de 1889.Frederico Nietzscheapenas atravessou Basiléia. Sua irmã, que não o via desde os distúrbios dooutono passado, combinara com ele encontro em Zurich. Queria lhe anunciar oseu casamento, realizado em segredo fazia já alguns meses.

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E realmente, diz-lho.Já não é a senhorita Nietzsche, mas sim a senhora Förster, que se prepara parapartir para o Paraguai com os colonos que seu marido dirige. Frederico Nietzschenão discute nem a recrimina por um fato consumado; ao contrário, esforça-se porser amável pela última vez com sua irmã, já definitivamente perdida para ele."Encontrei meuirmão em estado muito favorável — escreve Lisbeth — encantador e alegre.Vivemos juntos oito dias, falando e rindo de tudo."

E descreve esses diasque ela crê — ou finge crer — ditosos. Frederico Nietzsche vê na vitrina de umalivraria as obras de um poeta popular e medíocre, Freiligrath, e na capa dovolume, estas palavras: 38a. Edição. "Este — exclama Nietzsche comsolenidade cômica — este é um verdadeiro poeta alemão: os alemães compram seusversos!" E, sentindo-se também um bom alemão naquele dia, compra umvolume, lê-o e diverte-se muito com ele, Declama os pomposos hemistíquios:

36.0pt;'>Diverte-seimprovisando, sobre todos os gêneros de temas, versos à Freiligrath, e o hotelde Zurich ressoa com suas risadas infantis.

— Que é que os faz rirtanto? — pergunta um velho general aos dois irmãos. — Só de os ouvir, a gentefica com vontade de rir também.A verdade, porém, éque Frederico Nietzsche não tinha grandes motivos para riso. Poderia, acaso,pensar sem amargura nas trinta e oito edições de Freiligrath? Naqueles diasmesmo ia à biblioteca de Zurich e percorria as coleções de revistas e jornais,procurando nelas seu nome. Que não haveria dado para ver sua obra julgada porum bom juiz, para ver seu pensamento refletido por um outro espírito! Desejovão:

"O céu aqui estáformoso, digno de Nice, e isto já dura há vários dias — escreve ele a PeterGast em setembro. — Minha irmã está comigo; é muito agradável fazer-se bem mutuamente,quando faz tempo que não nos fazíamos senão dano… Tenho a cabeça repleta dosmais extravagantes poemas que hajam em qualquer tempo freqüentado o cérebro deum lírico. Recebi uma carta de Stein. Este ano me trouxe muitas coisas boas, eStein é um dos seus dons mais preciosos: um novo e sincero amigo.Enfim, vivamos cheiosde esperança, ou, para nos expressarmos melhor, digamos, com o velho Keller:Trinkt, o Augen, "was die Wimper hält Von dem goldnen Ueberfluss derWelt! (Bebei, ó meus olhos, o que vossas pestanas encerram Do dourado excessodo mundo!) Os dois irmãos partem de Zurich dirigindo-se, uma para Naumburg e ooutro para Nice. De passagem, Nietzsche faz alto em Mento. "O lugar émagnífico — escreve, apenas instalado. — Já descobri oito passeios. Queninguém me venha visitar. Necessito desta absoluta tranqüilidade."Que faz ele? Recordaráo projeto que fizera nos começos do verão: "seis anos de meditação e desilêncio"? Não! A meditação longa e silenciosa supõe uma forçade vontade que ele não tem. Emocionado pela esperança de ter um amigo e pelaperda de uma irmã, não pode conter sua paciência lírica e, cedendo ao instinto,improvisa cantos lieder, estâncias breves, epigramas. Quase todos os

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poemas se encontram em suas últimas obras — versos ligeiros, dísticos mordazes,insertos na segunda edição de La Gayá Scienza, grandiosos CantosDionisíacos — foram terminados ou concebidos durante aquelassemanas. E de novo pensa na obra ainda sem concluir, no Assim falava Zaratustra. "São inevitáveisuma quarta, uma quinta e uma sexta partes — escreve.—De qualquer modo, é forçoso que conduza meu filho Zaratustra até sua morte bem-aventurada.Realmente, ele não me dá sossego."Outubro passou.Nietzsche deixa Menton, onde se aflige com o grande número .de doentes, edirige-se para Nice.

Um imprevistocompanheiro logo se reúne a ele: Paulo Lanzky, um intelectual que fazia vida devagabundo, alemão por nascimento e florentino por gosto. Um acaso pusera emsuas mãos as obras de Nietzsche e ele as compreendera. Com o intuito deconhecer o endereço do autor, escrevera ao editor Schmeitzner. "O senhorFrederico Nietzsche vive solitário na Itália. Escreva-lhe para Gênova, PostaRestante" — haviam-lhe respondido. Assim fizera, e o filósofo, sem dúvidamenos selvagem e solitário do que se dizia, respondera pronta e afàvelmente:"Venha a Nice neste inverno, e falaremos…" Esta troca de cartasdera-se durante o outono de 1883. Lanzky, que nó momento não se encontravalivre, desculpou-se, mas em outubro de 1884, correu ao encontro marcado. Entrementes, tiveraocasião de conhecer as duas últimas partes do Zaratustra, e publicado,em um magazine de Leipzig e na Revista Européia de Florença, resenhasmuito inteligentes das ditas obras.

Na mesma manhã de suachegada, Lanzky foi bater à porta de Nietzsche, que lhe foi aberta por umhomem doce e sorridente.— Also Sie sindgekommenl — exclamou Nietzsche — (Ei-lo aqui, afinal!).E agarrou-o por umbraço, desejoso de examinar detidamente aquele leitor dos seus livros.— Bem, vamos ver quetal é o senhor.E fitou-o com aquelesolhos antigamente tão formosos e que o eram ainda, uma ou outra vez, emboraempanados pelos prolongados sofrimentos.

Lanzky, que foraapresentar suas homenagens a um temível profeta, assombrou-se de encontrar omais afável, mais simples e, em aparência, mais modesto dos professores alemães.Os dois homens saíramjuntos. Lanzky confessou sua surpresa.— Mestre. .. —disse.— É o senhor oprimeiro que me chama assim! — exclamou Nietzsche sorrindo. Mas, como sabiaque era mestre, deixou-o continuar,

— Mestre, como se

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adivinha pouco do senhor através dos seus livros! Explique-me…— Não. Hoje, não. Osenhor não conhece Nice. Vou fazer-lhe as honras do seu mar, de suas montanhase dos seus passeios… Outro dia, se quiser, falaremos.

Só voltaram para casaàs seis da tarde, e Lanzky soube, pelo menos, que infatigável andarilho era oseu profeta.Organizaram sua vidacomum: Frederico Nietzsche tomava só, ai pelas seis e meia da manhã, umaxícara de café que ele mesmo preparava; às oito, Lanzky batia-lhe à porta,perguntava-lhe como passara a noite (freqüentemente dormia mal) e no queempregara a manhã. Nietzsche começava quase todos os dias folheando os jornaisnum salão público de leitura; em seguida, dirigia-se à praia, Lanzky reunia-se,então, a ele, ou então respeitava o seu passeio solitário. Ambos tomavam aprimeira refeição na sua pensão. À tarde, passeavam juntos e à noite, Nietzscheescrevia ou Lanzky lia para ele em voz alta, em geral um livro francês: ascartas do abade Galiani, o Vermelho e Negro, A Cartuxa de Parmá ou Armancia, de Stendhal.Mais de uma vez Lanzkyteve que se surpreender com a maneira de ser de Frederico Nietzsche. Aquelesolitário de mesa redonda construíra para si mesmo uma atitude fictícia, equase disfarçada, uma verdadeira arte de viver cortesmente sem revelar osegredo de sua vida. Certo domingo, uma moça perguntou-lhe se estivera notemplo.— Não. Hoje nãoestive — respondeu amavelmente.Lanzky admirou estaresposta prudente. Frederico Nietzsche explicou-lhe: "Nem todas asverdades são boas para todos. Eu ficaria desolado se tivesse perturbado ospensamentos dessa moça. . ."Às vezes,divertia-se anunciando sua glória futura:— Dentro de quarentaanos serei ilustre na Europa — afirmava aos seus vizinhos de mesa.— Empreste-nos seuslivros — pediam. E Nietzsche negava-se terminantemente.— Meus livros nãodevem ser lidos pelos primeiros que aparecem — explicava a Lanzky.— Por que os mandaimprimir, então, Mestre?E parece que a estarazoável pergunta não se deu resposta alguma satisfatória.Nietzsche, porém,dissimulava até com o próprio Lanzky. Gostava de repetir e desenvolver diantedele o seu velho sonho de uma sociedade de amigos, espécie de falanstério idealista,semelhante àquele em que vivera Emerson. Levava-o freqüentemente até àpeninsulazinha de São João:

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— Aqui — dizia eleparafraseando uma frase pública — "aqui levantaremos nossascabanas"

Havia, até, escolhidoum grupo de pequenas "vilas" que lhe pareciam adequadas ao seudesígnio. Que hóspedes aceitaria?Esta questãopermanecia um tanto vaga, e o nome de Heinrich von Stein, o único amigo, oúnico discípulo que ele ardentemente desejara, nunca foi pronunciado diante deLanzky.Stein não anunciava asua chegada, nem dava sinal de vida. Qual seria, no momento, o seu estado deânimo? Ele fora a Sils-Maria para tentar a reconciliação dos dois mestres. Masum deles lhe dissera: é necessário escolher entre os dois. Talvez Stein tivessevacilado por um instante, mas regressara à sua Alemanha, tornara a ver CosimaWagner, e, pois que Nietzsche exigira que escolhesse, permanecia fiel a Wagner.Nietzsche pressentiu anova deserção. Teve medo, e cedendo a um humilde e triste impulso, escreveu emforma de poema um doloroso apelo que dirigiu ao moço:

36.0pt;'>36.0pt;'>

Heinrich von Steinviu-se obrigado a responder, e escreveu :

Querido senhor:A um apelo como oseu só convém uma resposta: Ir entregar-me inteiramente, dedicar, como à maisnobre das tarefas, todo o meu tempo à inteligência das coisas novas que osenhor tem para dizer. Isto me é vedado. Ocorreu-me, porém, uma idéia: Todos osmeses reúno em torno de mim dois amigos e leio com eles um artigo doWagner-Lexicon, tomando-o como texto e conversando com eles sobre o mesmo.Estas conversações são cada vez mais elevadas e livres. Ultimamente,encontramos esta definição da emoção estética: uma passagem para. o impessoal,através da própria plenitude da personalidade. Creio que o senhor gostariadestas conversações, e ocorreu-me a seguinte idéia: Não seria excelente queNietzsche nos enviasse de vez em quando um texto para as nossas palestras? Quererá o senhor comunicar-seassim conosco? Não quereria ver em uma conversação assim a introdução, o iníciode seu claustro ideal?

É á carta de um bomaluno. Stein cita Wagner não sem certa intenção, naturalmente, e indica o textode suas meditações, essa enciclopédia wagneriana, súmula de uma teologiaridícula e pueril. Nietzsche sentiu-se exasperado; de novo encontrava diantedele, contra ele, esse adversário simulador de idéias e sedutor da juventude. Förster,que lhe arrebatava a irmã, era um wagneriano, e eis que Heinrich von Stein lherecusa sua devoção por causa de Wagner. Somente à custa de um combate do qual

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saíra ferido, ele pudera conquistar uma cruel liberdade. Escreveu a sua irmã:"Que estúpidacarta me escreveu Stein e em resposta a que poesia! Sinto-me penosamenteafetado. Encontro-me novamente doente e novamente recorro ao antigo remédio (*)Odeio a todos os homens que conheci, inclusive a mim mesmo. Durmo bem, mas aodespertar tenho acessos de misantropia e rancor. E, no entanto, poucos homensexistem mais bem dispostos e mais benévolos do que eu."Lanzky notou, semadivinhar a causa, a perturbação de Nietzsche. A crise foi muito forte, masapesar de tudo, ele não se deixou esmagar e trabalhou energicamente. Nestesdias passeava a sós com mais freqüência do que à chegada de Lanzky, e estevia-o caminhar com passo incerto pelo Passeio dos Ingleses, ou pelos caminhosda montanha, saltando, fazendo, às vezes, uma ou outra cabriola, e detendo-sede repente para anotar a lápis algumas palavras. Que trabalho empreendia?Lanzky ignorava-o.Certa manhã de março,em que Lanzky, como de costume, entrou no quartinho do filósofo, encontrou-odeitado ainda, apesar do avançado da hora.

— Estou doente —disse-lhe Nietzsche — acabo de dar é luz.

— Que está dizendo? —murmurou Lanzky, muito inquieto.

— A quarta parte do Zaratustra está escrita.Que nos diz estaquarta parte? Surpreenderemos, afinal, algum progresso na obra, alguma precisãode pensamento? Não. Lemos, apenas, um singular fragmento, um intermédio, como ochama Nietzsche — um episódio na vida do seu herói; estranho episódio quedesconcertou a mais de um leitor. Talvez nos seja mais facilmente compreensívelse pensarmos na decepção que acabava de atingir a vida de Nietzsche.Os "homenssuperiores" sobem até Zaratustra e surpreendem-no na solidão de suamontanha: um velho papa, um velho historiador, um velho rei, seresdesventurados, que sofrem

(*) O cloral. (N.do A.)

por seu envilecimentoe que vão pedir socorro ao sábio cuja força pressentem. — Pensemos em Stein,naquele distinto jovem extenuado pela atmosfera de Bayreuth: não foi assim queele subiu até Nietzsche?Zaratustra admite em voltade si aqueles "homens superiores"; por amor deles reprime o seuhumor selvagem, fá-los sentar em sua gruta, compadece-se de suas inquietações,ouve–os e fala-lhes. — Pensemos em Nietzsche: não foi assim que ele recebeuHeinrich von Stein?

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Zaratustra, cuja almaé, no fundo, menos rude do que devia ser, deixa-se seduzir pelo mórbidoencanto, pela delicadeza dos "homens superiores"; sente compaixão,esquece que sua miséria é irremediável e cede ao prazer de esperar. Serão,afinal, estes "homens superiores" os amigos que ele espera? —Pensemos em Nietzsche: não esperou certa ajuda de Stein?

Zaratustra deixa seushospedes a sós por alguns momentos e se interna sozinho na montanha. Logoregressa à gruta e que vê? Todos os "homens superiores" de joelhosdiante de um asno ao qual adoram. Ê o velho papa diz missa diante do novoídolo. — Pensemos em Stein: Não foi em semelhante posição que o surpreendeuNietzsche, interpretando com seus dois amigos uma bíblia wagneriana?

Zaratustra expulsaseus hóspedes: ele deseja obreiros novos para um mundo novo. Encontrá-los-á? Aomenos, chama-os:Filhos meus, raçade meu sangue puro, minha formosa raça nova; que é o que retém meus filhos emsuas ilhas?Não será já tempo,tempo demais — ao teu ouvido eu omurmuro, bom espírito das tempestades — para que voltem, por fim parajunto de seu pai? Não saberão, acaso, que meus cabelos embranquecem enquantoespero?Vai, vai, espíritodas tempestades, indomável e bondoso! Abandona as gargantas da tua montanha,precipita-te sobre os mares, e antes que chegue a noite, bendiz aos meusfilhos.Leva-lhes a bênçãode minha alegria, a bênção desta coroa de rosas bem-aventuradas! Deixa cairestas rosas sobre as suas ilhas e que ali fiquem como um signo queinterroga: De onde pode vir tal felicidade?Finalmente,perguntarão: "Vive ainda nosso pai Zaratustra? Como? É verdade que aindavive nosso pai Zaratustra? Nosso velho pai Zaratustra ama ainda a seusfilhos?"O vento sopra, ovento sopra, a lua resplandece.Oh! meus filhoslongínquos, longínquos! Por que não estais aqui junto de vosso pai? O ventosopra; nenhuma nuvem cruza o céu; o mundo dorme… Oh felicidade! Ohfelicidade!Frederico Nietzschenão conservou esta página na sua obra; talvez tenha sentido vergonha de umaconfissão tão triste e tão clara.

A quarta partede Zaratustra não encontrou editor. Schmeitzner, que poucos meses anteshavia dito a Nietzsche que o público não quer ler os seus aforismos",escreveu-lhe, sem mais rodeios, que o público queria ignorar seu Zaratustra.

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Nietzsche fez, deinício, algumas tentativas, que o humilharam sem o menor resultado, mas logoadotou um partido mais altivo: pagou com seu dinheiro a impressão do manuscrito,cuja tiragem limitou a quarenta exemplares. Para dizer a verdade, seus amigos não eramtantos. Procurando muito, encontrou sete destinatários, dos quais nenhum erarealmente digno. Quem foram esses sete? Vamos presumir, se é possível:

Sua irmã, (da qual nãocessava de se queixar); a senhorita de Meysenbug, (que não entendia coisaalguma de seus livros); Overbeck, (amigo certo, leitor inteligente, mas reservado);Burckhardt, o historiador de Basiléia, (este respondia sempre aos obséquios deNietzsche, mas era tão polido que não se descobria o que ele pensava); PeterGast, (o discípulo fiel, a quem, talvez Nietzsche considerasse demasiadoobediente e fiel); Lanzky, (bom camarada daquele inverno); Rohde, (que apenasconseguia dissimular o tédio que lhe causava estas leituras forçadas).

Tais foram,presumimos, os que receberam — embora nem todos se dessem ao trabalho de a ler— esta quarta e última parte, este intermédio que termina mas não acabao Assim falava Zaratustra