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NICOLAS E A ESCOLA Elvira Souza Lima é ex-pesquisadora do Centre de Recherche d'Education Specialisée et d'Adaptation Scolaire - CRESAS, do Institut National de Recherche Pédagogique - Paris. 34 E/vira Souza Lima * Auxiliar de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas I Um corredor longo, com vidraças baixas dando para um muro de tijolos à vista. Na extremidade, uma sala ampla e gelada: azulejos brancos nas paredes sem janelas, granito no chão, três grandes mesas bai- xas, rodeadas de cadeirinhas, baixinhas todas elas. A luz entrando pelas duas grandes portas de vidro que estão à minha direita. Fui até uma delas e dei uma es- piada: um espaço cimentado, com bancos, duas árvo- res, uns dez pneus de automóvel a um canto. Mães e pais apressados vestem os agasalhos nas crianças e vão embora, rapidamente, pelo corre- dor, levando seus filhos. Meio perdida, não sei como fazer para encontrar o filho da minha vizinha. Pergunto a alguém, que me indica uma classe no 3? andar. Subo, lance por lance, a escada. As paredes nuas, o teto alto. Cruzo com crianças que vêm descendo com as mães, retardatá- rias como eu, e que foram às classes buscar os filhos. Às vezes, quando o tempo e$tá bom e o pessoal mais disponível, informaram-me, as crianças esperam lá embaixo. Mas, geralmente, fazem muita algazarra e os adultos já estão cansados para tolerar a confusão. Entro na classe indicada e encontro a professo- ra, jovem de vinte e poucos anos. Num varal estão penduradas folhas com pintura a dedo que as crian- ças fizeram naquele dia. Assusto-me com as cores escuras, os desenhos acanhados nos cantos das fo- lhas. Cinco crianças em volta de uma mesa montam quebra-cabeças, outra "lê" uma revistinha; todas de- vem ter entre 4 e 5 anos. Silêncio total. Nas paredes, algumas coisas coladas. Entretanto, muito pouco co- lorido.

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NICOLAS E A ESCOLA

Elvira Souza Lima é ex-pesquisadora do Centre de Recherched'Education Specialisée et d'Adaptation Scolaire - CRESAS,doInstitut National de Recherche Pédagogique - Paris.

34

E/vira Souza Lima *

Auxiliar de Pesquisa

da Fundação Carlos Chagas

I

Um corredor longo, com vidraças baixas dandopara um muro de tijolos à vista. Na extremidade, umasala ampla e gelada: azulejos brancos nas paredessem janelas, granito no chão, três grandes mesas bai-xas, rodeadas de cadeirinhas, baixinhas todas elas. Aluz entrando pelas duas grandes portas de vidro queestão à minha direita. Fui até uma delas e dei uma es-piada: um espaço cimentado, com bancos, duas árvo-res, uns dez pneus de automóvel a um canto.

Mães e pais apressados vestem os agasalhosnas crianças e vão embora, rapidamente, pelo corre-dor, levando seus filhos.

Meio perdida, não sei como fazer para encontraro filho da minha vizinha. Pergunto a alguém, que meindica uma classe no 3? andar. Subo, lance por lance,a escada. As paredes nuas, o teto alto. Cruzo comcrianças que vêm descendo com as mães, retardatá-rias como eu, e que foram às classes buscar os filhos.Às vezes, quando o tempo e$tá bom e o pessoal maisdisponível, informaram-me, as crianças esperam láembaixo. Mas, geralmente, fazem muita algazarra eos adultos já estão cansados para tolerar a confusão.

Entro na classe indicada e encontro a professo-ra, jovem de vinte e poucos anos. Num varal estãopenduradas folhas com pintura a dedo que as crian-ças fizeram naquele dia. Assusto-me com as coresescuras, os desenhos acanhados nos cantos das fo-lhas. Cinco crianças em volta de uma mesa montamquebra-cabeças, outra "lê" uma revistinha; todas de-vem ter entre 4 e 5 anos. Silêncio total. Nas paredes,algumas coisas coladas. Entretanto, muito pouco co-lorido.

Chamo Nicolas, o filho da minha vizinha. Apáti-co, vem até mim, veste o casaco sem dizer palavra,me dá a mão e diz "vamos embora". Descendo a es-cada, pergunto-lhe como foi o dia na escola. "Nãogosto da escola" responde seco, encerrando a con-versa.

Andando pela rua, chutando as pedrinhas, eleme pergunta se pode tocar piano e cantar quandochegarmos em casa. Digo que sim e pergunto se, naescola, ele não canta. "Canto. Só que só pode cantaruma vez e às vezes a música eu nem gosto".

Foi este meu primeiro contato com uma escolamaternal em Paris. Fiquei chocada com o que vi: nãoera a escola francesa tal qual a imaginamos ou quenos é apresentada nos livros.

Com o tempo fui aprendendo que a maioria dasescolas maternais, em Paris, fica em ambientes pe-quenos, com pouquíssima área livre, que as criançasficam a maior parte do tempo dentro das salas de au-la, sentadas em suas mesinhas, fazendo "trabalhi-nhos", jogando com jogos e quebra-cabeças ou brin-cando com massinhas. Há poucos momentos de mú-sica, dificilmente há dança ou atividades que impli-quem no uso do corpo, sendo que desenho e pinturasão as situações mais livres de que as crianças dis-põem.

As crianças entram às 8 horas e' saem às 16,quando há alguém que pode vir buscá-Ias. Caso con-trário esperam até as 18 horas. Nesse período deduas horas, juntam-se as crianças de todas as idadesnum pátio ou numa sala e, aí, elas ficam brincandosob a guarda de um ou dois adultos.

Às quartas-feiras, as escolas francesas não fun-cionam. Para as mães que trabalham fora, a escolamaternal mantém um serviço de guarda das crianças- a "garderie". Nesse dia faz-se basicamente re-creação.

Para Nicolas, a quarta-feira era o verdadeiro diade escola: com a jovem çolombiana Maria (que eraencarregada de cuidar das crianças nesse dia) ele ia,junto com outras crianças de outras classes e idadesdiferentes, ao Jardim do Luxemburgo onde brincavamde pega-pega, bola e outras brincadeiras de crianças.Algumas vezes, Maria levava o grupinho ao "Jardimdes Plantes" e lá passavam a tarde, vendo os animaisdo pequeno zoológico, os peixes, os pássaros ou asdiversas plantas que aí são cultivadas.

Nicolas insistiu muito para que eu fosse com eleaté esse jardim. Finalmente,num feriado, fomos até lá.Senhor do lugar, levou-me à estufa de plantas tropi-cais e explicou:me o que era bananeira, o que era co-queiro, mostrou as flores e disse em que condições asplantas cresciam "é só em lugar que tem solo tempotodo. Chove, só que não faz mal, porque fica quente Io-ga depois. E tem também que chover bastante porquedá muita sede nas plantas". Explicou também porqueas plantas estavam dentro da "casa de vidro" e achouque era ruim ser assim, porque as outras plantasdo par-

que ficavam com inveja daquelas que estavam sempreno quentinho, cheias de folhas "verdinhas, verdinhas"(estávamos em pleno inverno, com a temperatura porvolta de 0°).

Das plantas tropicais, fomos ver os bichos e a"casinha das sementes e das plantinhas-crianças".Entramos, ele cumprimentou o velhinho jardineiroque lá trabalhava e foi mostrar alguns vasos de plan-tas que havia visto serem semeadas e que, ao que pa-recia, vinha acompanhando periodicamente.

Passando pelo play-ground, propus pararmos umpouco ali. Ele não quis; queria que eu visse os peixes.Eu nunca o vira tão animado! Às seis horas, quando oguarda veio nos avisar que ia fechar o aquário e o par-qué também, Nicolas ficou realmente desapontado.

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No caminho de volta para casa, fiquei pensandonas diferenças desta escola, nos dias de trabalho sé-rio e nos dias de recreação. Evidentemente, para opequeno Nicolas, o interesse estava nas quartas-fei-ras, cujas atividades estavam mais de acordo com acuriosidade de seus quatro anos e pouco.

Nos meses seguintes, entrei em contato, por rarzões de trabalho, com outras escolas maternais. Emalgumas, via-se o interesse da diretora em melhorar oambiente. Numa, as paredes eram pintadas, da meta-de para baixo, com tinta de quadro negro, de formaque as crianças pudessem desenhar à vontade. Nou-tra, papéis forravam a parte inferior da parede comesta mesma finalidade.

Em uma, que ficava muito próxima à de Nicolas,havia classes onde as mesinhas tinham sido agrupa-das num canto da sala. Noutro canto havia almofadase uma estantezinha com livros de formatos diferentese de pano também. DO lado oposto, uma caixa debrinquedos, tocos de madeira, retalhos. Embora ascrianças passassem a maior parte do tempo na sala,

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podiam optar pelos diversos "cantinhos" ali disponí-veis. .

Em todas as escolas, todavia, o aspecto mais en-fatizado é o da expressão verbal. As crianças têm mo-mentos de conversa, de relato de experiências para aprofessora e a classe, de "hora do conto". As ativida-des consideradas preparatórias para a aprendizagemda leitura e da escrita começam muito cedo (a partirdos três anos) e ocupam uma parcela importante dohorário. Existem até algumas escolas que, a titulo deexperiência, estào alfabetizando as crianças de quatroanos de idade.

Na verdade, com uma cultura que valoriza extre-mamente a expressão verbal, cuja tônica está na lin-guagem e no discurso, não é de se estranhar que aeducação pré-primária francesa tenha ido por estecaminho.

Mas não era só o pequeno Nicolas que não gos-tava de sua escola. Muitos teóricos e educadoresfranceses também acham que a escola, tal como es-tá estruturada, deixa muito a desejar, não atendendoa diversas necessidades da criança, igualmente -ou mais - importantes que o desenvolvimento ver-bal.

Experiências que já chegaram até nós, co-mo as de Decroly e Freinet continuam a existir. Ou-tras, não ligadas teoricamente a estas linhas, sãoexecutadas e constantemente reavaliadas. Em todaselas, alguns pontos em comum: o máximo possível deatividades externas; atividades em pequenos grupos,misturando, às vezes, crianças de várias faixas etá-rias; utilização mais freqüente de música e dramatiza-ção; maior liberdade nos trabalhos de artes plásticas,com escolha livre entre vários tipos de papel e outrosrecursos (lápis de cera, de cor, tinta, carvão, guache,cola, revistas, retalhos, areia, grãos, pedaços de ma-deira, pedrinhas, etc.).

São escolas que promovem mais que as outras,saídas no bairro e na própria cidade e diversificammuito mais os locais a serem visitados. Muito fre-qüentemente, as pessoas deparam com grupinhos decrianças andando duas a duas, de mãos dadas, pelasruas de Paris.

Uma vez, logo que cheguei, vi, dentro do Louvre,um grupo de vinte crianças (tinham cinco anos, expli-cou-me depois a professora), sentadas diante de umquadro imenso que mostrava Napoleão com sua tro-pa numa conquista qualquer. A professora narrava ofato histórico. Parei e fiquei olhando, admirada de vê-los tão imóveis e, aparentemente, atentos. Imagineique estivessem com o pensamento longe. Depois elafalou sobre o artista que fez o quadro, sua época esua técnica. Qual não foi minha surpresa, quando elaterminou o relato, ao ver cinco comportadas mãozi-nhas se erguerem para fazerem perguntas sobre aexposição! Terminadaa "aula", as crianças se levanta-ram, procuraram os parceiros, deram-se as mãos ecolocaram-seem fila.

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Atônita, fui informada de que era uma classe domaternal que, no próximo ano, ia para o "préparatoi-re" (de alfabetização) e que era uma classe já "pron-ta" para enfrentar a disciplina da escola primária.

Que diferença das classes do mesmo nível queconheci mais tarde, que saíam com bloquinho namão, desenhando tudo o que viam e queriam regis-trar. Que, no mesmo museu, percorriam curiosas osvários quadros, sentando-se, às vezes, no chão paraadmirar, absortos, este ou aquele detalhe do trabalhoartístico ou para "copiar" no bloquinho.

Duas correntes antagônicas dentro de um mes- ,mo país.Pena que, realmente, a primeira seja respon-sável pela educação da quase totalidade das crian-ças francesas, Digo totalidade porque todas as crian-ças francesas de 5 anos, 90% das de 4 anos e maisde 70% das de 3 anos, freqüentam a escola mater-nal. Além disso, há uma tendência, acentuada nos úl-timos anos, de se enviar também, a criança de doisanos.

Por lei, a escola maternal pode atender às crian-ças de dois a seis anos. incompletos sendo que seucontingente vem aumentando ano a ano.

O problema maior surge quando, independente-mente da idade e das características do desenvolvi-mento, a criança é considerada como um aluno empotencial da escola primária e procura-se primordial-mente prepará-Ia para ser esse aluno. Deixa-se, en-tão, de lado a criança que aprende pela exploraçãodo ambiente, pela troca com os companheiros, peloexercício da curiosidade e da criatividade.

Toda essa preocupação da educação pré-esco-lar francesa em preparar a criança para a aprendiza-gem da leitura e da escrita não contribuiu para ~imi-nuir os altos índices de reprovação na escola primária(6 a 10 anos), que se mantêm estáveis há vários anos.50% das crianças terminam o primário com, pelo me-nos, uma reprovação, sendo que, desta parcela, aquase totalidade é constituída por crianças oriundasdos meios populares. Isto sugere que a questão este-ja mais ligada à seleção social efetuada pela Escolado que ao ensino pré-primário em si.

O que quer dizer que a pré-escola não é a solu-ção para os problemas da escola primária. Ela é, an-tes de tudo, uma etapa do processo educativo dacriança, que atende a uma clientela com característi-cas particulares que devem ser observadas com mui-ta seriedade, para que o desenvolvimento da criançase processe de maneira adequada e saudável.

Nicolas, um dia, me disse, quando conversáva-mos sobre bebês, que sua professora já tinha nascidogrande, que não havia nunca sido criança, porque, setivesse sido, saberia como era chato fazér as coisastodas que ensinava para eles.

Foi o único comentário espontâneo que fez so-bre a escola, nos dois anos em que fomos vizinhos,de convivência quase diária!