nicola framarino dei malatesta - a lógica das provas em matéria criminal - ano 1927

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A Lógica das Provas em Matéria Criminal

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ottimo volume sulle prove penali

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  • A Lgica das Provas em Matria Criminal

  • LIVRARIA CLASSICA EDITORA

  • Nicola Framarino dei MalatestaADVOGADO

    A Lgica das Provas em Matria Criminal

    Com um prefcio do Prof. EMILIO BRUSA

    TRADUO DE J. ALVES DE S

    2.a EDICO

    LISBOALIVRARIA CLSSICA EDITORA

    DE A. M. TEIXEIRA & C.a (FILHOS)PRAA DOS RESTAURADORES, 17

    1927

  • A SANTA MEMRIADE

    MINHA MAE

    Angiola de Nataristefani

    Junto de quem a minha vida lo doce, da uma doura qna nunca mais se encontra e da qual tda a recordao para mim um exemplo a uma inspirao de bem.

  • PREFCIO1

    Desde que as modernas legislaes teem abandonado pouco a pouco as frmulas do processo inquisitoria, a antiga teoria das provas avaliadas priori pela lei, tem cedido sucessivamente o lugar a convico ntima do juiz. J ningum duvida, hoje em dia, que ste facto constitui um grande progresso nos julgamentos penais.

    E fcil, porm, cair no exagro ao determinar-lhe os benefcios.As frmulas da acusao, da discusso oral, ou exame ime

    diato das provas, do julgamento contraditrio entre partes juridicamente iguais, e da publicidade, so as que permitem, no melhor modo e graus possveis, a reproduo viva, directa e sincera do drama criminoso nas salas dos tribunais. O juiz, que no processo inquisitrio, favorecido pela lei com uma confiana ilimitada, reunia em suas mos as duas funes de acusador e defensor, parecia mais oprimido sob o pso enorme das faculdades que tinha, do que verdadeiramente senhor da matria, com que devia construir a sua sentena. Mesmo depois da abolio da tortura, que trouxe atrs de si uma profunda transformao da verdade judiciria em verdade substancial, de formal que era nos indcios necessrios para a aplicao da tortura e na confisso que com ela se obtinha, mesmo depois, dizia, sem o expediente da confisso, raras vezes, e no sem trabalhos, teria o juiz soberano podido desembaraar a sua conscincia, comquanto afeita

    1 So postas aqui, como prefcio desta obra, as palavras que, em 1895,o ilustre Prof. Brusa proferiu perante a Accademia Reale delle Scienze di To- rino, por ocasio da primeira publicao da Logica delle prove in criminale.

  • 8 Prefcio

    ao hbito formalstico, das numerosas contradies em que a todo 0 instante mais se deixava enredar nas frias informaes que colhia nos autos escritos: sobretudo para a prova especfica do autor do facto imputado e da sua criminalidade, mantinha-se em todo o caso, como consequncia necessria daquele sistema, uma luta entre inquirente e inquirido. Se a tudo isto se junta o vnculo imposto a esta mesma conscincia do juiz pela obrigao de se subordinar ao valor genricamente atribudo pelo legislador para todos os casos a cada elemento de prova, quer considerado em si mesmo isoladamente, quer combinado com outros elementos, e isto prescindindo absolutamente da convico dsse juiz, ver-se h fcilmente ste descer no poucos degraus da altssima ctedra em que o colocara, delegado da sua autocracia, o monarca no antigo regime centralisador.

    Pois bem, no obstante as mais vlidas e mais seguras garantias de longa durao, que s. liberdades civis oferecem as frmulas acusatrias em confronto com as inquisitoriais, quem h que suspeitasse, precisamente nas primeiras, aninhada, antes guardada com os mais zelosos cuidados por um direito incomparavelmente precioso, aquela ntima, inverificvel convico, fruto indistinto, quer de um raciocnio srio e prudente, quer de uma irreflexo instintiva e indmita, a que hoje por tda a parte os legisladores submetem o critrio das sentenas criminais, no somente de absolvio, mas tambm de condenao dos homens?

    Talvez que a lei da compensao deva ser to verdadeira na ordem dos factos morais e sociais, como na dos factos fsicos e mecnicos, e que, quando a soberania absoluta do juiz tenha j completado o seu tempo por uma dada forma de manifestao, tenha ela que tornar inevitvelmente em revindita uma outra?

    Estas consideraes e outras semelhantes sugeriram na mente do criminalista e do historiador o espectculo das alternativas, a que de h sculos tem sido sujeito o ordenar dos processos judiciais para a investigao da verdade em trno dos crimes e de seus autores. Sem desenvolver a cadeia destas ideias de ndole geral, convm no entanto notar o facto de que nos processos

  • Prefcio 9

    hodiernos, conduzidos segundo um sistema mixto, ou intarsiati (como lhes chamava Carmignani que no tinha f nles), na Europa continental, juntamente com a ntima convico foi-se difundindo pouco a pouco na doutrina e na prtica a importncia das regras probatrias. No por que no tenham j aparecido obras de grande valor; pois que para demonstrao consoladora do contrrio bastaria, para nos limitarmos s mais afoutadas, recordar as de Glaser, o exmio autor do cdigo do processo penal austraco de 1873: em que decerto se deixou ao juiz togado, no menos que ao jri, a plena liberdade de sentenciar segundo a prpria e ntima convico e sem freios legais de avaliao das provas. Mas mais talvez do que os trabalhos desta natureza, no campo da doutrina, agrada aos estudiosos a investigao dos institutos probatrios sob o aspecto histrico e de erudio; e no da jurisprudncia prtica, j de h tempo introduziu e se vai cada vez mais alargando o hbito, especialmente perante os juzes populares, mas tambm perante os juzes jurisperitos, de excitar os sentimentos de uns e de outros, de comover os nimos, descurando mais ou menos, ou antes pondo em segunda linha, os argumentos severos da razo lgica e da experincia. E que este, e no outro, o facto, pode fcilmente deduzir-se mesmo da freqente ligeireza e por vezes nulidade dos motivos, que na vaga e indeterminada origem da sua convico os juzes permanentes, obrigados como so a enunci-los, costumam tomar como suficientes para justificar as suas declaraes sbre a existncia do corpo de delito da criminalidade do arguido.

    Estamos, em resumo, na poca em que a pacincia do investigador e do crtico parece exaurir-se tda, ou em grande parte, na investigao de competncia scientfica. Quanto aos outros cuidados em prega-se a rapidez adequada s condies e razes prprias das outras coisas de todos os dias. Permanecem bem assim, pelo menos na Itlia, complicados e lentos os processos; mas quanto aos julgamentos finais, o esprito irrequieto teve um tal poder, que a sua instaurao no s tem que ser imediata, mas costuma at ser rapidssima, como uma inspirao espontnea, irresistvel, de uma mente privilegiada.

  • 10 Prefcio

    Em um tal estado de coisas, escrever entre ns um tratado completo das regras da lgica judiciria em matria de provas penais, torna-se j de per si um facto muito notvel. E esta a razo por que eu julguei chamar, com algumas ideias gerais, a ateno dos estudiosos sbre a obra do snr. Framarino. No en tanto, atendendo sua natureza de ndole necessriamente ana ltica, nada direi dela, a no ser que, comquanto restrita no seu conjunto talvez um pouco formal da lgica smente, constitui uma obra rica de grande valor, e, sobretudo, sob o ponto de vista da constituio esquemtica, do rigor e da frca do racio cnio, e mesmo da clareza da exposio (se bem que um pouco carregado por frequentes referncias s demonstraes preceden tes). O autor, com uma agudeza rara sempre que ocorra penetrar em questes da natureza das que se suscitam desde o princpio de qualquer estudo srio sbre a prova, conseguiu entrar, sob mais de um ponto de vista, talvez mais profundamente do que anteriormente se conseguira, nas dificuldades espinhosas e que to freqentemente se mostram rebeldes crtica dos tratadistas e dos prticos. Manifestam-no abertamente as suas demonstraes, aqui felizes e alm muito importantes, ora da insuficincia, umas vezes do testemunho nico, outras da mera confisso, e ora igual mente da necessidade da prova do corpus criminis, sempre que seja o caso, no de absolver ou de livrar da acusao, mas de afirmar a criminalidade e pronunciar a condenao; como tambm as belas declaraes acrca do onus da prova, sbre a verdadeira natureza dos crimes de facto permanente e suas consequncias judicirias, como do que respeita grave questo de muito inte rsse prtico, relativa aos limites das investigaes probatrias no crime, dependentes da existncia de um contracto, que o for malismo prprio da lei civil probe provar mediante simples testemunhos. I

    No que respeita ao plano geral da obra, basta advertir, que o tratado completo se desdobra em cinco partes. Analisados em primeiro lugar os estados de alma relativamente ao conhecimento da realidade, ela ocupa-se por isso da discusso da prova: at aqui genricamente. Passando em seguida ao vivo das dificul

  • dades jurdicas, examina para esse fim a prova nas suas varias espcies, que o autor distingue nitidamente em objectiva, subjectiva e formal; subdistinguindo, como racional, a primeira em directa e indirecta, a segunda em real e pessoal, emquanto que a terceira, concernente as formas da prova, resume-as tdas nas trs categorias de testemunhal, documental e material.

    para augurar qne uma obra to meditada e de um valor no comum, encontre entre ns um digno acolhimento, e tal, qne at o seu jovem aator tenha de ser recompensado, assim como reconfortado nos seus srios e doutos estudos futuros.

    E. Br u s a .

  • INTRODUO

    0 crime, que, individualmente, o facto do homem que com as suas contingncias particulares se concretisou como uma violao particular de um direito particular, pode ser considerado especfica e genricamenie: especificamente, em relao s condies essenciais que constituem, por aquele facto particular humano, uma determinada violao do direito; genricamente, em relao s condies essenciais pelas quais sse facto humano constitui, no esta ou aquela espcie de violao, mas uma violao do direito em geral.

    Considerando o facto humano como uma individualidade que constitui uma dada espcie de violao criminosa, tem-se distinguido o crime em instantneo e continuado, conforme a violao do direito se extingue num s momento, ou prossegue mesmo depois do momento da sua consumao.

    Ora, se o crime, considerado especificamente, se apresenta, como instantneo ou como continuado; considerado ao contrrio sob o aspecto genrico, apresenta-se sempre como continuado.

    No pode conceber-se um direito, sem obrigao correlativa; no pode conceber-se um direito, sem a ideia do respeito que le deve legitimamente inspirar: se o reconhecimento ou a negao de reconhecimento do direito de um, dependesse do capricho dos outros, o direito deixaria de ser direito. Esta crena em que os direitos devem legitimamente inspirar respeito, constitui a tran- quilidade jurdica do individuo e da sociedade. Esta opinio do respeito pelos direitos, sendo essencial ao conceito dos direitos, tambm ela um direito: o direito da tranquilidade jurdica, direito genrico que constitui no s a fra, mas, direi qusi,

  • 14 Introduo

    o ambiente em que respiram, vivem e teem valor prticamente todos os direitos particulares.

    Ora, todo o facto criminoso particular, considerado genri- camente, emquanto constitui um crime em geral, viola o direito da tranqilidade jurdica; e emquanto se resolve numa tal violao, constitui sempre um crime continuado. Todo o crime particular no , com efeito, mais que uma afirmao explcita da falta de respeito ao direito; no seno a exteriorizao, em um facto externo, de uma ameaa contra todos os direitos, iguais ou inferiores ao direito violado: uma afirmao explcita e com factos, de que se est pronto a calcar algum direito, de respeitabilidade igual ou menor do que o direito violado, sempre que entre em luta com as prprias paixes. Esta ameaa no se extingue com o acto consumativo da violao do direito particular, mas continua ainda a sua vida criminosa; at que esta continuao de sua vida seja detida pela pena. A pena no vem j ferir o delinqente pela sua violao consumada de um direito particular: relativamente a esta, factura infectum fieri nequit, e s ficaria como legtima a aco civil. A pena vem ferir o delinqente, para interromper a continuao da sua aco criminosa contra a tranquilidade jurdica do ofendido e da sociedade inteira.

    Sob ste aspecto compreende-se claramente como o direito de punir encontra o seu princpio superior, e a sua legitimidade, na defeza directa do direito, tanto quanto s penas cominadas pelo legislador, como quanto s penas impostas pelos juzes: a pena no se impe legitimamente, s porque foi legitimamente, porque, desde que imposta, se resolve numa defeza actual e prtica do direito, contra a aco criminosa, continuada, do violador.

    Sob ste aspecto, compreende-se facilmente como a pena, negando o crime, afirma o direito. A pena j no nega o crime, porquanto consiste na violao particular de um direito; esta violao particular, por isso que se efectuou concretamente, no pode ser anulada por nenhuma fra humana. A pena impede, ao contrrio, eficazmente, o crime, porquanto ste consiste numa violao, continuada, do direito da tranquilidade jurdica: A pena

  • Introduo 15

    impede e susta esta continuao: e assim, impedindo que a aco criminosa continui a negar o direito da tranquilidade jurdica, torna-o firme.

    Sob ste aspecto, a afirmao e a especificao do direito contra o delinquente, no tanto uma aco, quanto uma reaco penal; e a pena resolve-se prpriamente em uma interrupo do crime 1.

    Sob este aspecto, se a pena atinge o crime por que uma violao, continuada, da tranquilidade jurdica, compreende-se em todo o caso, que ste crime genrico da violao da tranquilidade maior ou menor, segundo a maior ou menor gravidade que apresenta o crime concreto contra o direito particular; e por isso proporcionando a pena ao crime particular cometido, proporciona-se violao da tranquilidade jurdica.

    Resumindo, a pena uma interrupo do crime, porquanto ste viola, com uma aco continuada, a tranquilidade jurdica. Esta interrupo do crime, que constitui a pena, esta interrupo da continuao da ameaa contra os direitos, encontra a sua legitimidade substancial na defeza directa do direito; e encontra a sua legitimidade formal, ou na restrio perptua da liberdade do que ameaa, eliminando-o da sociedade, ou na restrio temporria da sua liberdade; restrio perptua ou temporria de liberdade, que, ao mesmo tempo que susta materialmente a eficcia da ameaa, deve tambm procurar anul-la moralmente, corrigindo o criminoso e desanimando os que teem ms inclinaes. A defeza directa do direito, exercida com frmulas que impedem materialmente a continuao do crime, e que moralmente se dirigem correco do delinquente e intimidao dos maldosos: eis a pena legtima: eis o que pode restabelecer aquela tranquilidade social que o crime, com aco continuada, perturbava.

    Portanto, como o princpio da pena consiste na defeza do

    1 Considerando assim a pena, no h sistema que valha para pr em perigo a sua legitimidade racional; se me no engano, mesmo para a nova escola penal ste o melhor ponto de vista para a legitimidade da pena.

  • 16 Introduo

    direito, assim a sua finalidade consiste no restabelecimento da tranqilidade social.

    Ora, dste modo o princpio como o fim da pena levam a uma e mesma concluso: a pena s deve atingir quem certamente ru.

    Quanto ao princpio da defeza jurdica, le em princpio universal, compreendendo em si a defeza de todos os direitos. Ora, em face do direito, que a sociedade ofendida tem, de punir o ru, existe em todo o juzo penal, o direito do que tem de ser julgado a no ser punido, se no ru. O fim supremo, por isso, de tda a ordem processual, que se inspire na defeza jurdica, deve ser conciliar e defender ao mesmo tempo stes dois direitos; e a conciliao obtem-se punindo smente no caso de certeza sbre a criminalidade. E na verdade, se a sociedade ofendida tem o direito de punir o ru, no tem comtudo o direito de ver sacrificar no seu altar uma vtima, seja ela qual fr, culpada ou inocente; no: o direito da sociedade s se afirma racionalmente como direito de punir o verdadeiro ru; e para o esprito humano s verdadeiro o que certo. Por isso, absolvendo em caso de dvida razovel, presta-se homenagem ao direito do que tem de ser julgado, e no se calca o direito da sociedade.

    Se se atende ao fim da tranquilidade social, a que a pena deve dirigir-se, descobrir-se h que a pena s pode servir para esse fim, quando atinja quem realmente ru.

    A pena que ferir um inocente, perturbar mais profundamente a tranquilidade social, do que a teria perturbado o crime particular que se procura punir; porquanto todos se sentiriam na possibilidade de serem, por sua vez, vtimas de um rro judicirio. Lanai, pequena que seja, na conscincia social uma dvida sbre a aberrao da pena, e esta deixar de ser a segurana dos honestos, mas ser a grande perturbadora daquela mesma tranquilidade para cujo restabelecimento foi chamada; ela no ser mais a defensora do direito, mas a fra imane que pode, por sua vez, esmagar o direito imbele. Se a pena pudesse cair tambm sbre quem no realmente ru, alm da agresso do nosso direito por parte do indivduo, produziria o pavor da agresso

  • Introduo 17

    por parte da lei. s fras do indivduo que comete a agresso podem sempre, por fim, opr-se as fras do agredido: a luta entre homem e homem. Mas aquilo que espantaria os mais corajosos, seria a consumao da agresso da prpria lei sbre o nosso direito: cada um perceberia que tda a sociedade, sob o falso nome e a falsa divisa de Justia social, poderia de um momento para outro cair sbre cada indivduo, esmagando-o, como um gro de trigo sob a m de um moinho.

    Uma matrona, com a fronte olimpicamente serena, e que pesa as aces humanas, j no seria o smbolo da justia; no: a Justia no apareceria aos cidados, bons ou maus, seno qual uma Deusa temvel, monstruosamente sca e surda verdade: na sua figura ver-se-iam as linhas e as sombras, com que a imaginao dos antigos devia ter revestido a terrvel e impenetrvel figura do Fatum! A possibilidade, por isso, de condenar sem a certeza da criminalidade, deslocaria a pena da sua base legtima, da defeza do direito, e torna-la-ia inimiga do prprio fim da tranqilidade social, para que deve tender. Por isso a pena, j pelo princpio em que se inspira, j pelo fim a que tende, s pode impr-se legitimamente, quando se obteve a certeza do facto da criminalidade.

    Estudar as leis racionais que regem a verificao do facto da criminalidade, o objecto da scincia que se denomina lgica judicial; estudar as fras judiciais que melhor concretisam e garantem esta certeza do facto, o objecto da arte judicial. Naquela scincia e nesta arte, assenta o paldio das liberdades dos cidados. *

    Assim como o cdigo das penas deve ser a espada infalvel para ferir os delinquentes, assim tambm o cdigo das frmulas, inspirando pelas teorias da lgica s, ao mesmo tempo que deve ser o brao que guia com segurana aquela espada ao peito dos rus, deve ser tambm o escudo inviolvel da inocncia. E sob ste aspecto que o Cdigo de processo penal, que o corolrio legislativo da scincia e da arte judicial, o ndice seguro do respeito pela personalidade humana, e o termmetro fiel da civi- lisao de um povo.

    2

  • 18 Introduo

    Lgica judicial, Arte judicial, Processo: eis a trilogia racionalmente decrescente, que conduz a um juzo justo.

    Referindo-nos particularmente ao juzo penal, tentamos neste livro um prospecto da Lgica judicial: scincia rdua e importante, sem a qual o direito de punir nas mos da sociedade no seria mais que um aoute nas mos de um louco.

    Se o tempo e os cuidados urgentes da vida nos permitirem, tentaremos, em outro livro, o desenvolvimento da arte judicial; e em um terceiro livro tentaremos talvez mesmo, finalmente, um estudo sbre o Processo penal positivo, coordenando-o sob os princpios j expostos, de Lgica e de Arte judicial.

    Giovinazzo (Prov. di Bari), janeiro, 1894.

  • PRIMEIRA PARTE

    Estados de esprito relativamente ao conhecimento da realidade

    PREMBULOSendo a prova o meio objectivo pelo qual o esprito humano

    se apodera da verdade, a eficcia da prova ser tanto maior, quanto mais clara, ampla e firmemente ela fizer surgir no nosso esprito a crena de estarmos de posse da verdade. Para se conhecer, portanto, a eficcia da prova, necessrio conhecer como a verdade se refletiu no esprito humano, isto , necessrio conhecer qual o estado ideolgico, relativamente coisa a verificar, que ela criou no nosso esprito com a sua aco.

    Conseguintemente, para estudar bem a natureza da prova, 6 necessrio comear por conhecer os efeitos que ela pode produzir na conscincia, e para ste conhecimento necessrio saber antes de mais nada os estados em que pode encontrar-se o esprito, relativamente ao conhecimento da realidade. Conhecendo, portanto, qual dstes estados de conhecimento se induziu na conscincia pela aco da prova, obter-se h a determinao do valor intrnseco desta.

    O estudo dos vrios estados de esprito, relativamente ao conhecimento da realidade, o objecto desta primeira parte do livro.

    Relativamente ao conhecimento de um determinado facto, o esprito humano pode achar-se em estado de ignorncia, de dvida ou de certeza.

  • 20 A Lgica das Provas em Matria Criminal

    A dvida um estado complexo. Existe dvida, em geral, sempre que uma assero se apresenta com motivos afirmativos e motivos negativps: ora, pode dar-se a prevalncia dos motivos negativos sbre os afirmativos, e tem-se o improvvel; pode existir igualdade entre os motivos afirmativos e os negativos, e tera-se o crvel no sentido especfico; pode dar-se, finalmente, a prevalncia dos motivos afirmativos sbre os negativos, e tem-se o provvel. Mas o improvvel no prpriamente seno o contrrio do provvel: o que provvel pelo lado dos motivos menores, e por isso a dvida reduz-se prpriamente s duas nicas sub-esp- cies simples do crvel e do provvel.

    assim que, recapitulando, o esprito humano, relativamente ao conhecimento de um dado facto, pode encontrar-se no estado de ignorncia, ausncia de todo o conhecimento; no estado de credulidade, no sentido especifico, igualdade de motivos para o conhecimento afirmativo; no estado de certeza, conhecimento afirmativo, triunfante.

    Pondo de parte a ignorncia, que um estado absolutamente negativo, que no interessa examinar, a principal matria desta primeira parte do livro, o estudo dos trs estados positivos que consistem na credibilidade, na probabilidade e na certeza.

    Mas se o esprito humano chega ao conhecimento de um objecto dado por um caminho ascendente, comeando pelo estado negativo da ignorncia, e subindo sucessivamente aos estados, gradualmente mais perfeitos, do crvel, do provvel e do certo, o estudo dstes estados, por isso, sob o ponto de vista do mtodo, tornar-se h mais eficaz prosseguindo por ordem inversa: depois de falar da espcie mais perfeita do conhecimento, tornar-se h metdicamente mais claro falar das espcies menos perfeitas.

    Procederemos assim no nosso tratado estudando era primeiro lugar a certeza, que o estado mais perfeito do conhecimento afirmativo, passando sucessivamente a estudar as espcies gradualmente menos perfeitas, da probabilidade e da credibilidade.

  • A Lgica das Provas em Matria Criminal 21

    CAPITULO 1 Certeza, sua

    natureza e espcies

    A verdade, em geral, a conformidade da noo ideolgica com a realidade; a crena na percepo desta conformidade a certeza. A certeza , portanto, um estado subjectivo do espirito, que pode no corresponder verdade objectiva. A certeza e a verdade nem sempre coincidem: por vezes tem-se a certeza do que objectivamente falso; por vezes duvida-se do que objectivamente verdade; e a prpria verdade que parece certa a uns, aparece por vezes como duvidosa a outros, e por vezes at como falsa ainda a outros.

    E no j, por assim dizer, porque se tenha a pretenso de romper todas as relaes existentes eutre a alma humana e a realidade exterior: no porque haja pretenso de destacar por um corte ntido a certeza da verdade, caindo em pleno pirronismo. Ns admitimos que a certeza deriva normalmente do influxo da verdade objectiva; mas dizemos que, comquanto derive normalmente da verdade, ela no a verdade: no mais que um estado da alma, que pode, por vezes, devido nossa imperfeio, no corresponder verdade objectiva. Ns dizemos que a certeza, considerada na sua natureza intrnseca, qual , no qual seria melhor que tosse, consistindo em um estado subjectivo da alma, estudada como tal, e no j confundida com a realidade exterior.

    Os escritores de lgica que admitiram a uatureza subjectiva da certeza, quando quizeram determinar as suas espcies, deixaram-se gniar frequentemente, como todos os outros, pelo critrio da verdade objectiva, sem atenderem a que, por esta forma, acabavam por retratar a premissa de que tinham partido. Quando a certeza classificada em espcies determinadas, no pode admi-tir- se certeza que no entre em uma dessas espcies; e se o critrio que determina as espcies objectivo, no h certeza que no seja determinada por critrio objectivo: a subjectividade da

  • 22 A Lgica das Provas em Matria Criminal

    certeza perde-se por isso durante o caminho. Em seguida veremos os rros a que isto conduz. Por agora, urge afirmar que, admitida a natureza subjectiva da certeza, quando se queira determinar logicamente as suas espcies, no deve recorrer-se se no a critrios subjectivos: se a certeza um estado da alma humana, nesta que devem procurar-se as determinaes especficas daquela: procedendo de modo diverso, desnatura-se a certeza.

    Mas, em particular, quais sero em tal matria os critrios que conduzem determinao das espcies?

    Considerando a certeza em si, como estado da alma, ela simples e indivisvel; e portanto sempre idntica a si mesma. No podem por isso deduzir-se os critrios diferenciais, determinantes das espcies, da natureza intrnseca da certeza: a certeza, como tal, sempre e para todos, a crena na conformidade entre a noo ideolgica e a verdade ontolgica; sempre e para todos, por outros termos, a posse que se cr ter da verdade.

    Mas o esprito humano pode chegar a esta posse que se cr ter da verdade por caminhos diversos. E parece-nos que nestes diversos caminhos pelos quais o esprito humano chega conquista da certeza, devem pdr-se de lado os critrios subjectivos, a que necessrio recorrer para determinar as suas vrias espcies.

    Vejamos como o esprito humano chega crena de possuir a verdade.

    Ns no possumos a verdade emquanto no existe no esprito a sua percepo; e dentre as vrias faculdades do esprito humano uma h cuja funo indispensvel para a percepo da verdade, seja de que natureza fr. Esta faculdade a inteligncia.

    Mas a inteligncia umas vezes chega por si s posse da verdade, outras necessita do auxlio dos sentidos.

    As verdades, consideradas subjectivamente, emquanto ao modo como o esprito se apodera delas, dividem-se por isso, em primeiro lugar, em duas grandes categorias: a verdade cuja posseo esprito adquire pela simples percepo intelectiva, a verdade puramente inteligvel; a verdade cuja posse o esprito no pode

  • A Lgica das Provas em Matria Criminal 23

    adquirir sem o concurso dos sentidos, nos limites desta necessidade a verdade sensvel.

    Mas no basta: continuemos na anlise.A inteligncia, dissemos, faculdade indispensvel para a

    percepo da verdade de qualquer natureza, qner seja puramente inteligvel, quer sensvel. Mas para chegar verdade, a inteligncia tem duas funes diversas: a intuio e a reflexo. por isso bom considerar estas duas funes intelectivas, tanto relativamente s verdades inteligveis, quanto s sensveis, para determinar as vrias espcies de certeza que delas derivam.

    Comecemos por considerar as duas sobreditas funes intelectivas relativamente s verdades inteligveis.

    Como a verdade em geral a conformidade da noo ideolgica com a realidade, dizemos, por isso, que a crena da percepo desta conformidade a certeza. Ora referindo-nos em especial verdade puramente inteligvel, a certeza, esta opinio de ter a verdade, pode, antes de tudo, derivar da sua percepo imediata: o caso da intuio pura, o caso da intuio, primeira funo intelectiva, em relao intelectiva, em relao s verdades puramente inteligveis: tem-se em primeiro lugar a realidade ideolgica que Be afirma; e a certeza que se tem, filha da evidncia ideolgica, e certeza intuitiva puramente lgica.

    Outras vezes a verdade puramente inteligvel no se percebe por via imediata: chega-se a ela por intermdio da outra realidade ideolgica presente na nossa mente. Esta outra verdade percebida directamente, fazendo-nos conhecer a verdade que procuramos e que no percebemos directamente, constitui a sua demonstrao, e d-nos a sua certeza. A funo do intelecto que neste caso nos conduz de uma verdade conhecida a uma ignota, a reflexo; e o meio com que a reflexo conduz o nosso esprito de uma a outra verdade sempre o raciocnio. A verdade que chegamos a conhecer, revela-se-nos sob a luz de uma verdade mais geral: a luz das verdades mais gerais que se expande sbre as particulares, fazendo-as conhecer. Ora, quando se trata do conhecimento de verdades puramente inteligveis, a verdade geral que as demonstra, percebe-se directamente; e desta, por

  • 24 A Lgica das Provas em Matria Criminal

    deduco, extrai-se a verdade particular, demonstrada, que se pretende verificar: o mtodo evolutivo das scincias puramente racionais. A certeza que dle deriva a certeza reflexa puramente lgica.I Das verdades puramente inteligveis, como tais, s pode pois obter-se, quer por intuio quer por reflexo, a certeza puramente lgica.

    Mas esta certeza puramente lgica, quer intuitiva quer reflexa, nunca a de que necessrio tratar-se no crime. Em matria criminal trata-se sempre da verificao de factos humanos; e no decerto a propsito de um facto humano, como o facto criminoso, que pode falar-se da evidncia de uma verdade puramente inteligvel, e assim de uma certeza intuitiva metafi- sicamente axiomtica: no h facto humano sem a materialidade que o exteriorise, e esta s se pode obter por meio dos sentidos. Da mesma forma no pode obter-se no crime a certeza reflexa puramente lgica. Esta baseia-se no mtodo evolutivo, pelo qual de uma verdade puramente inteligvel, percebida directamente, se deduz outra. Ora, quando se trata da verificao de factos materiais e contingentes, no pode haver uma tal certeza; pela prpria materialidade e contingncia de tais factos, no possvel deduzi-los sem a percepo sensria, evolutivamente, de uma verdade puramente inteligvel.

    Conseguintemente, a intuio pura, ou a evidncia ideolgica, como o raciocnio puro, ou a deduo ideolgica, no so fundamentos de certeza aproveitveis no crime.

    Passemos a considerar a intuio e a reflexo relativamente quelas verdades que chamamos sensveis.

    So verdades sensveis tanto as que em si mesmas so constitudas por uma materialidade s perceptvel por meio dos sentidos, e que podem chamar-se em particular verdades sensveis materiais, quanto as que, comquanto sendo em si mesmas factos psquicos, como os factos da nossa conscincia, s podem perceber-se atravs da materialidade em que se exteriorisam, e que podem chamar-se em particular verdades sensveis morais. ste o campo da certeza em matria criminal.

  • A Lgica das Provas em Matria Criminal 25

    As verdades sensveis materiais podem perceber-se tanto pela intuio como pela reflexo. As verdades sensveis morais s se podem perceber por meio da reflexo. Consideremos era primeiro lagar as verdades sensveis materiais em quanto so perceptveis por meio da intuio; coisa que d lugar a uma espcie simples de certeza. Passaremos em seguida a considerar a verdade sensvel tanto material como moral, emquanto perceptvel por meio de reflexo; coisa que d lugar, como veremos, a uma certeza mixta.

    Relativamente, pois, s verdades seusveis da primeira classe, s que consistem em materialidade perceptvel somente pelos sentidos, relativamente a estas, dissemos, a certeza pode antes de tudo derivar da percepo imediata da realidade fsica, de que se tem a noo: tem-se em frente a coisa material que se afirma; a certeza filha da evidncia fsica, e certeza intuitiva Jisica. A intuio sempre uma funo intelectiva, mesmo relativamente s verdades sensveis de que aqui falamos. Mas a propsito do tais verdades sensveis percebidas directamente, necessrio observar que a aco do intelecto simplicssima e, direi, acessria da aco dos sentidos: afirma, apreendendo, o que os sentidos lhe fornecem: a intuio, direi assim, sensitiva, a intuio dos sentidos, a percepo intelectiva do que se sente. isto, sempre que se considere a verdade sensvel, como aqui considerada, em si mesma, e no nas possveis dedues no sujeitas aos sentidos, que podem extrair-se dela. Tratando-se, pois, de verdades materiais percebidas directamente, o trabalho do intelecto simplicssimo, e acessrio da aco dos sentidos: afirma aquilo que os sentidos lhe apresentam. por isso que a esta certeza intuitiva das materialidades fsicas chamamos, sem mais, certeza fsica, desprezando na denominao a indicao do elemento intelectivo que acessrio, e que no consiste numa cooperao propriamente activa do intelecto.

    Eis, segundo nos parece, as duas espcies primitivas da certeza, bem distintas entre si: certeza puramente lgica, relativa s verdades puramente inteligveis, e que a que se obtem pelo trabalho exclusivo do intelecto, mediante a intuio ou a refle

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    xo; certeza principalmente fsica, relativa s verdades sensveis, e que a que se obtem principalmente por obra dos sentidos, a que adere acessriamente o intelecto com a intuio dos sentidos. Chamando simplesmente lgica a primeira certeza, poder-se h chamar simplesmente fisica a segunda, no j, repito, porque no concorra para ela o intelecto, mas porque no intervem nela com um trabalho prpriamente activo e principal.

    So estas, segundo a nossa opinio, as que so consideradas como as duas nicas espcies simples da certeza: certeza simplesmente lgica, que a crena na posse da verdade, qne nos revelada smente pelo intelecto; certeza simplesmente fsica, que a crena na posse da verdade, revelada em ns pelos sentidos, a que se junta acessriamente o intelecto com a intuio dos sentidos.

    Mas estas duas espcies simples nem sempre andam separadas; muitas vezes combinam-se entre si. Neste caso tem-se uma terceira espcie de certeza: a certeza mixta; e esta a certeza mais frequente em matria criminal. percepo da realidade fsica por obra dos sentidos, a que se janta acessriamente a inteligncia intuindo os sentidos, vem juntar-se freqentemente o concurso activo da inteligncia, qne, pela reflexo, conduz da realidade fsica percebida directa e materialmente afirmao de uma realidade fsica ou moral no percebida em si, directa e materialmente. Isto tem sempre lugar no qne respeita ao conhecimento daquelas verdades sensveis que chamamos morais, porque consistem em uns fenmenos do esprito humano que se percebem atravs da materialidade em que se exteriorisam: os sentidos recebem estas materialidades, e a inteligncia, pela reflexo, sobe delas afirmao dos factos morais da conscincia. isto mesmo tambm tem lugar, freqentemente, quando se trata do conhecimento de verdades sensveis materiais: a percepo sensria da materialidade de uma verdade sensvel pode conduzir, por meio da reflexo intelectual, afirmao de uma outra verdade sensvel material, em relao com a primeira, e no percebida directamente.

    Em outros termos, ns consideramos a verdade sensvel em relao intuio, primeira funo da inteligncia, supondo-a

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    percebida por via imediata; e chamamos certeza fsica, a que dai deriva. Agora consideramos a verdade sensvel no que respeita segunda funo intelectual, que a reflexo, e encontramo-nos em face da certeza mixta.

    A verdade sensvel nem sempre percebida, nem sempre se pode perceber, por via imediata; muitas vezes chega-se a ela por via mediata: partindo de uma verdade sensvel percebida directa- mente passa-se afirmao de uma outra verdade no percebida directamente. Um facto fsico conduz-nos ao conhecimento de outro facto fsico ou moral; e o facto que nos conduz ao conhecimento de outro no percebido directamente, constitui a sua prova. sempre a reflexo intelectual que nos conduz do conhecido ao desconhecido; e a nos conduz por meio do raciocnio. O raciocnio, instrumento universal da reflexo, a primeira e mais importante fonte da certeza em matria criminal. to pobre o campo das nossas verificaes pessoais que, limitando-nos a le, seramos envolvidos pelo desconhecido: o raciocnio que, alargando seus augustos limites, alarga a nossa viso intelectual para horisontes indeterminados. Quando, partindo de uma verdade sensvel percebida directamente, a inteligncia, por meio da reflexo, nos conduz afirmao de uma outra verdade, a certeza que deriva em ns de tais percepes, certeza mixta de fsica e de lgica. certeza fsica emquanto verdade sensvel percebida directamente: certeza lgica emquanto verdade no percebida pelos sentidos, e a que nos conduz a inteligncia; e, esta ltima, certeza lgica, comquanto tambm tenha por objecto uma realidade fsica, por isso que esta realidade fsica, na nossa hiptese, percebida pelo esprito materialmente, por um trabalho completamente intelectual.

    Vejamos em que consiste ste trabalho intelectual, que, de uma realidade fsica conhecida, nos conduz a uma realidade fsica ou moral desconhecida, fazendo-a perceber sempre imaterialmente.

    A propsito da reflexo relativamente s verdades puramente inteligveis, dissemos que a luz das verdades mais gerais, que se derrama sbre as particulares, tornando-as conhecidas, e que o instrumento de que a reflexo se serve para recolher, direi

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    assim, os raios das verdades gerais, e concentr-los sbre as verdades particulares, o raciocnio. Dissemos que, tratando-se de verdades paramente inteligveis, a verdade geral, que as demonstra, percebida directamente, e desta por deduo se extrai a verdade particular que se quer verificar; e ste precisamente o mtodo evolutivo das scincias abstractas. Tambm dissemos que quando se trata da verificao de factos particulares, stes, devido a sua materialidade e contingncia, no podem deduzir-se evolutivamente de verdades puramente inteligveis.

    Ora, passando a falar particularmente da reflexo relativamente s verdades sensveis, observaremos que, mesmo tratando-se destas, para concluir, por via do raciocnio, qualquer coisa sbre um facto particular, h sempre necessidade de uma verdade mais geral de que se parta. No emtanto, esta verdade mais geral, para concluir sbre verdades sensveis, no pode ser uma verdade puramente intelectual, pois que, como dissemos, das verdades puras da razo no podem deduzir-se as contingncias fsicas: de que natureza ser pois esta verdade? Qual portanto o mtodo que segue a inteligncia para concluir sbre factos particulares?

    Na grande e indefinida variedade dos factos fsicos e morais, existem analogias no modo de ser e de actuar das coisas e dos homens. Tdas estas analogias, observadas sbre o ponto de vista das causas que as produzem, constituem as que se chamam leis naturais: leis fsicas e leis morais. Se estas conformidades se observam ao contrrio sob o ponto de vista da harmonia da sua existncia, constituem o que se chama ordem, que se concretiza no constante, ou no modo ordinrio, de ser e de actuar da natureza. Ora, quando se trata de chegar por via mediata ao conhecimento de verdades sensveis, a reflexo deriva precisamente desta verdade geral, que, sob um ponto de vista, se chama lei natural, e sob outro, ordem; verdade geral que no uma verdade puramente da razo, mas uma verdade experimental, por isso que o esprito humano sobe para ela por induo da considerao das vrias contingncias particulares no percebidas directamente. Estas leis naturais, a que a reflexo chega por induo, e que resolvem tdas, concretamente, no modo de sr e

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    de actuar constante ou ordinrio da natureza, so a luz perene que ilumina a multido, de outra forma obscura e desordenada, das contingncias fsicas; sob esta luz que uma coisa tem valor para verificar outra; assim que se determina a eficcia probatria em uma coisa ou em uma pessoa, que funcionam como prova. Partindo-se da ideia geral da ordem como modo de ser e de actuar constante da natureza, deduzem-se conseqncias certas; partindo-se da ideia de ordem como modo de ser e de actuar ordinrio da natureza, deduzem-se conseqncias provveis. Gomo a relao especfica constante entre um efeito e uma dada causa conduz a afirmar com certeza esta causa, quando se percebe con- cretamente aquele efeito, assim a relao especfica ordinria entre um efeito e uma dada causa leva, ao contrrio, a afirmar simplesmente com probabilidade esta causa, quando se percebe concretamente aquele efeito. Como a relao especfica constante entre uma substncia e um atributo conduz a afirmar com certeza ste atributo na substncia indivisa que se considera, assim a relao especfica ordinria entre uma substncia e um atributo leva a afirmar simplesmente com probabilidade ste atributo na substncia indivisa.

    Mas esta teoria da lei natural, como ideia geral experimental, a que a mente chega por induo, e de que sobe por deduo, a propsito de uma verdade fsica que se percebeu, afirmao de outra verdade a esta conexa, esta teoria, dizia, ser mais detalhada e claramente desenvolvida, quando falarmos do caminho lgico do esprito humano relativamente s provas indirectas.

    Aqui basta-nos observar que a reflexo, segunda funo da inteligncia, aplicando-se s verdades sensveis, d lugar a uma terceira espcie de certeza, e que esta terceira espcie de certeza a certeza mixta. Principia-se pela percepo sensria de uma dada materialidade: os sentidos colhem directamente e principalmente uma dada materialidade, relativamente qual se tem uma certeza fsica. A reflexo, em seguida, funo intelectual, subordinando esta materialidade particular ideia geral experimental da ordem, faz com que desta materialidade, conhecida por

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    percepo directa, sejamos conduzidos ao conhecimento de um ignoto que, com quanto seja material por sua natureza, no percebido material e sensivelmente, e por isso, para o nosso esprito, como que uma realidade ideolgica. quele ignoto, conhecemo-lo como objecto de uma simples operao intelectual, e no de uma sensao; e por isso a reflexo emquanto nos leva por um trabalho todo le intelectual ao conhecimento dsse ignoto, percebido assim imaterialmente, gera em ns uma certeza lgica. Temos portanto razo de chamar certeza miada a esta espcie de certeza, proveniente da reflexo em relao s verdades sensveis.

    Esta certeza mixta , pois, subdividida em trs subespcies, determinadas pela diversa orientao do trabalho racional: a reflexo pode desenvolver a sua aco aclarando a relao entre a afirmao e a coisa afirmada, estabelecendo a verdade da afirmao, o que sucede nas provas materiais indirectas; pode desenvolver tambm a sua aco aclarando simplesmente a relao entre o afirmante e a afirmao, estabelecendo a veracidade do afirmante, o que sucede nas provas pessoais directas; e pode, finalmente, desenvolver a sua aco para aclarar a dupla relao entre o afirmante e a afirmao e entre a afirmao e a coisa afirmada, o que sucede nas provas pessoais indirectas, isto , no caso de que a afirmao de uma pessoa tenha por objecto uma afirmao indirecta de alguma coisa. Mas veremos tudo isto claramente dentro em pouco.

    Concluindo, temos pois trs espcies de certeza: certeza simplesmente lgica, certeza simplesmente fsica e certeza mixta; e esta ltima subdivide-se em trs subespcies, que dentro em pouco determinaremos claramente.

    A certeza simplesmente lgica, quer intuitiva quer reflexa, no possvel relativamente ao facto do delicto, pelas razes que expozemos anteriormente.

    A certeza simplesmente fsica possvel para o juiz relativamente ao delicto, mas em casos raros. Esta certeza verifica-se no caso do crime cometido em audincia, sob os olhos do juiz que tem de o julgar, e verifica-se limitadamente materialidade percebida do facto criminoso ocorrido. Esta certeza verifica-se

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    tambm no caso de materialidade criminosa, que, comquanto produzida fora do juzo, no emtanto, pela sua permanncia, apresentada em juzo, e submetida percepo directa do juiz. Tda a materialidade por isso que faz f da prpria existncia fonte de certeza fsica. E digo: por isso que faz f da prpria existncia, porque de uma materialidade directamente percebida pode por meio de um trabalho de raciocnio, ser-se conduzido afirmao de uma outra verdade contingente, e emquanto a esta outra verdade j no se obteria certeza fsica, mas lgica. A propsito, digamos, quanto a um escrito falso, se se apresenta em juzo o escrito materialmente alterado, esta alterao percebida directamente, emquanto a si mesma fonte de certeza fsica. Mas poder-se-ia de uma tal alterao material, de cuja existncia se tem a certeza fsica, ser tambm levado a determinar a pessoa que o alterou, o meio empregado para a alterao, e finalmente a inteno que se tinha ao alter-lo. Ora, relativamente a estas afirmaes ulteriores, a certeza j no seria fsica, mas lgica. fonte, repita-mo-lo, de certeza fsica, tda a materialidade percebida directamente, por isso que faz f da sua prpria existncia ; por outros termos, fonte de certeza fsica aquela espcie de prova que ns chamamos prova material directa, por isso que directa.

    Aqui, entre parentesis, uma observao explicativa: colocando-nos sob o ponto de vista da forma probatria, pelas razes que exporemos em seu lugar, ns chamamos prova material, a que se indica geralmente com o nome de prova real. fecho o- parentesis.

    Passemos a falar da terceira espcie de certeza, isto , da certeza mixta. E esta a rica e importante certeza, sbre que assenta principalmente a lgica criminal. Esta espcie de certeza, dissemos, subdivide-se em trs subespcies. Ora, estas trs subespcies da certeza mixta, distinguimo-las com as denominaes de certeza fisico-lgica, certeza fisico-histrica e certeza fisico-lgico-hisirica. Procedamos, pois, ao exame de cada uma destas subespcies, para determinar claramente a sua natureza especial.

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    1. Certezafsico-lgica, ou lgica, por antonomasia.Suprimindo a indicao do elemento sensrio desta certeza,

    por isso que ste elemento comum a tdas e trs subespcies da certeza mixta, podemos por antonomasia chamar-lhe lgica, sem receio de equvocos; porquanto sabemos que relativamente ao facto criminoso no pode haver certeza simplesmente lgica; e por isso sempre que em matria criminal se fala de certeza lgica no pode entender-se prpriamente, seno a certeza fisico-- lgica.

    Esta certeza verifica-se, portanto, d o caso em que da percepo sensria imediata de um facto material, de cuja existncia se tem por isso a certexa fisica, se passa por meio do trabalho do raciocnio a afirmar um outro facto no percebido sensvel e imediatamente, criando, por isso, relativamente a ste, uma certeza lgica. Percebe-se imediatamente uma materialidade diversa do delicto, e subordinando esta materialidade ideia geral experimental do modo de ser e de actuar constante da natureza, passa-se afirmao do delicto em um dos seus elementos. Assim, a propsito de adultrio, a percepo do recente parto de uma mulher casada, separada material e constantemente, suponhamos, h dois anos, do marido, conduz afirmao da reunio venrea dela com um homem que no seu marido, isto , afirmao do seu adultrio: obter-se h por isso dste adultrio uma certeza fsico-lgica.

    Como se v, nesta espcie de certeza, o trabalho do raciocnio dirige-se principalmente a aclarar a relao que existe entre o facto indicativo e o facto indicado, isto , entre afirmao e coisa afirmada. Tendo-se percebido sensvel e directamente um dado facto, a reflexo desenvolve a sua aco para mostrar como que, partindo daqule dado facto, se deve concluir pela verdade de um outro facto no percebido directamente.

    fonte de certeza fsico-lgica a prova material indirecta, o indcio que se funda na percepo directa das coisas materiais.

    Veremos depois, em lugar prprio, como o indicio s se subordina normalmente ideia do modo de ser e de actuar

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    ordinrio da natureza, e s pode por isso conduzir normalmente a conseqncias provveis, e no certas.

    2. Certezafsico-histrica, ou histrica por antonomsia.Esta certeza verifica-se quando, havendo a percepo ime

    diata e sensria da palavra articulada ou escrita de uma pessoa que atesta, e havendo, assim, certeza fisica da existncia de tal palavra, por meio de trabalho de raciocnio se passa a estabelecer rdito na pessoa que faz f, isto , se passa a estabelecer a veracidade na pessoa que atesta, para concluir pela verdade da coisa atestada. Como se v, fonte desta certeza a afirmao directa da pessoa, ou, noutros termos, a prova pessoal directa. A testemunha afirma ter visto Tcio perpetrando o furto. Quando a reflexo chega a estabelecer a veracidade do testemunho, passa-se naturalmente, sem qualquer outro trabalho lgico, afirmao da aco furtiva de Tcio.

    Desta noo deduz-se que a certeza fsico-histrica no propriamente mais do que uma determinao particular da certeza fisico-lgica, determinao particular que se funda no indicio particular da reflexo. Nos outros casos de certeza lgica, compreendidos na classe precedente, o trabalho do raciocnio encaminha-se a esclarecer e estabelecer a relao entre a afirmao e a coisa atestada; encaminha-se a esclarecer como a afirmao de uma coisa deve fazer crer em uma outra coisa, que , assim, a coisa atestada. Nos casos de certeza lgica compreendidos sob a denominao particular de certeza histrica, ao contrrio, o raciocnio dirige-se a esclarecer e estabelecer a relao entre a pessoa que afirma e a afirmao. E o raciocnio que, na afirmao de pessoa, nos esclarece sbre a natureza desta relao, indu-zindo- nos a hav-la como uma relao de veracidade ou de falsidade; isto , fazendo-nos dizer: o testemunho verdico; ou vice- versa: o testemunho falso. E, como em tda a relao, tambm nesta a luz provm da natureza dos termos: a natureza do testemunho (verosmil, no contraditrio, etc), a natureza da testemunha (proba, desinteressada, etc), a natureza dstes termos subordinada ideia do modo de ser e de actuar constante da natureza, que nos leva afirmao de que a relao

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    que existe entre afirmante e afirmao, uma relao de veracidade. Quando pois, na afirmao directa de pessoa, se estabeleceu pelo trabalho do raciocnio a relao de veracidade entre a pessoa que atesta e a afirmao, a relao de conformidade entre a afirmao e a coisa atestada uma consequncia natural, espontnea, que no requer trabalho algum activo da inteligncia.

    sob o ponto de vista da relao entre afirmao e coisa afirmada, relao que na prova material indirecta afirmada por trabalho do raciocnio, e que na prova pessoal directa afirmada naturalmente, sem esfro algum lgico, sob ste aspecto que o indcio foi considerado pelos tratadistas como uma prova artificial, e o testemunho foi considerado como uma prova natural; coisa que, sempre sob ste aspecto, s verdade emquanto se considera o indcio em relao com o testemunho directo, como melhor veremos em lugar prprio.

    Repitamos, concluindo: fonte da certeza histrica a afirmao directa de uma pessoa, e a certeza histrica difere da certeza lgica em que na primeira o raciocnio dirige-se unicamente ao esclarecimento e determinao da relao entre a pessoa que afirma e a afirmao, e na segunda, ao contrrio, dirige-se principalmente ao esclarecimento e estabelecimento da relao entre a afirmao e a coisa afirmada; na primeira a coisa provada est em imediata conexo com a prova, e a mente, de um modo natural, sem esfro, passa dama para a outra; na segunda, ao contrrio, por meio de trabalho do raciocnio que se passa da prova coisa provada.

    3. Certeza fisico-histrico-lgica, ou simplesmente hist- rico-lgica.

    Esta certeza resulta da concomitncia das duas certezas precedentes; verifica-se quando a afirmao de uma pessoa tem por objecto uma afirmao indirecta de uma coisa, isto , quando o facto material que serve para indicar o delito ou o delinquente no imediatamente percebido na sua materialidade pelo juiz, mas , ao contrrio, afirmado pela testemunha. Neste caso, depois de ter percebido imediatamente, por via dos sentidos, a palavra atestado da testemunha, de cuja palavra, articulada ou escrita,

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    se tem por isso certeza fsica, necessrio passar por isso por meio de trabalho do raciocnio determinao da veracidade da testemunha, a qual veracidade acreditada por um trabalho de reflexo constitui em especial a certeza histrica; e passar finalmente, por meio de ontro trabalho do raciocnio, determinao da relao probatria, que o facto afirmado pela testemunha, tem com o delito que por le se quer determinar: e ste outro trabalho do raciocnio constitui em especial a certeza lgica. Eis porque chamamos a esta certeza fsico-lgico-histrica, que tem por fonte a prova pessoal indirecta, isto , a afirmao indirecta, de uma coisa, como contedo da afirmao de uma pessoa.

    Eis, pois, determinadas as espcies e subespcies, em qne classificamos a certeza. No h prova possvel que no encontre o seu lugar em alguma das classes por ns designadas. Com efeito, uma prova s pode ser rial ou pessoal: a prova rial e a prova pessoal s podem pois ser directas ou indirectas. Ora, considerando estas vrias espcies probatrias, vemos que elas se subordinam, todas, nossa classificao da certeza: a prova rial directa fonte de certeza fsica; a prova rial indirecta fonte de certeza lgica (no sentido de fisico-lgica); a prova pessoal directa fonte de certeza histrica; a prova pessoal indirecta fonte, finalmente, de certeza histrico-lgica. Qualquer que seja a prova encontra o seu lugar natural em uma das classes por ns designadas; esta a luminosa contra-prova da exactido da nossa classificao.

    Mas se ns, partindo de uma noo subjectiva da certeza, do conceito da certeza como estado de alma, temos procedido determinao das suas espcies com critrios igualmente subjectivos, no assim, digamo-lo, que se tem feito geralmente. Tem-se procedido, geralmente, determinao das espcies de certeza sob o critrio objectivo das verdades, que podem ser objecto dela. Atendendo a que existem verdades necessrias, como a da inferioridade da parte ao todo, verdades constantes como a da maleabilidade do ouro, e verdades eventuais como a da conquista que Csar fz das Glias, com stes mesmos trs critrios da necessidade, da constncia e da eventualidade, faz-se distino da cer

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    teza em metafsica, fsica e eventual 1. E esta distino objectiva foi adoptada at por aqueles que tinham afirmado a natureza subjectiva da certeza, sem atenderem a que, procedendo assim, caiam em flagrante contradio: admitia-se como subjectivo um gnero, cujas espcies eram consideradas, tdas e sempre, objec- tivas.

    A distino da verdade em necessria, constante e eventual exactssima, emquanto se refere verdade. Mas se se quer aplicar esta mesma distino determinao das espcies de certeza, e da sua natureza, no se faz mais do que desnaturar a certeza. A certeza no mais do que um estado subjectivo do esprito humano: seja de que natureza fr a verdade, ela s certa para o esprito humano emquanto se julga conforme ao conceito que dela se tem. nesta crena da conformidade da noo ideolgica com a verdade ontolgica, que assenta a essncia da certeza ; e por isso quando a verdade ontolgica nos parece conforme com a noo que dela temos, ela sempre, e do mesmo modo, igualmente certa para ns, seja qual fr a sua natureza. Uma, objectivamente, ser verdade necessria, outra constante, outra eventual; mas se tdas as trs nos parecem existentes no mundo da realidade, tal qual nos so presentes ao pensamento, tdas as trs sero do mesmo modo certas para ns.

    Esta classificao da certeza com critrios objectivos, no tem sido, pois, formulada por todos com a exactido ontolgica que reconhecemos, emquanto verdade em si, na distino supracitada de verdade metafsica, fsica e eventual. H tratadistas que, ao contrrio, tem falado de certeza metafsica, fsica e moral, e tem tomado como certeza moral a que deriva da afirmao pessoal, e nste sentido os mais correctos chamaram-lhe histrica. Pode ser que me engane, mas parece-me que, reduzida assim, a classificao s serve para originar cada vez maiores confuses. Em primeiro lugar v-se fcilmente que a certeza moral, neste sentido, no corresponde certeza eventual: dos

    Veja GALLUPPI, Elementi i filosofia, vol. IV.

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    factos eventuais, que so no s os factos livres do homem, mas tambm os factos particulares e extraordinrios da natureza fsica, dos factos eventuais, dizia, pode haver certeza no s por relaes alheias, mas tambm por percepo prpria directa. Disto conclui- se que a certeza moral, ou histrica se assim se quer dizer, como espcie de certeza, no pode incluir-se na classificao objectiva acima exposta: considerada em si, com critrio particular; e ste critrio particular um critrio subjectivo, como vimos na nossa classificao, falando precisamente da certeza histrica, como de uma subespcie da certeza mixta. A distino, pois, da certeza em metafsica, fsica e histrica, uma distino heterognea, que comea com critrios objectivos, e vai terminar num critrio subjectivo, que s serve para criar confuses.

    Tambm tem havido quem, precavendo-se da monstruosidade lgica de uma distino heterognea nas suas partes, tenha dado uma significao homognea e subjectiva supracitada distino de certeza metafsica, fsica e histrica: metafsica, dizem, a certeza proveniente do simples raciocnio; fsica a proveniente dos sentidos corporais; histrica a proveniente das afirmaes alheias. Mas, compreendida assim a classificao da certeza, conquanto tenha o mrito da subjectividade homognea, contudo incompleta e inaceitvel.

    Para nos convencermos da inexactido de tal classificao, basta lanar um golpe de vista sbre as provas, e procurar subordin-las s espcies de certeza. Consideremos em matria particular a prova material indirecta, isto , o indcio puro percebido directamente na sua materialidade pelo juiz, e no j acreditado sob a f da afirmao pessoa]: de que certeza ser fonte a prova material indirecta? De certeza metafsica, no; reconhe-cer-se h facilmente, quando se no trate de verdades puramente racionais. De certeza histrica, tampouco; pois que estamos na hiptese da materialidade do indcio ser percebida directamente pelo juiz. Ser, ento, fonte de certeza fsica? Examinemos.

    Para julgar da natureza de uma dada certeza, necessrio referi-la ao seu objecto, isto , coisa que se verifica. Ora, quando se fala de prova material indirecta, fala-se de um facto material

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    directamente percebido, que serve para nos fazer conhecer um outro facto, no percebido directamente, e que queremos verifir car: a ste outro facto, que no percebemos com os nossos sentidos, somos conduzidos pela reflexo; chegamos a por meio do trabalho do raciocnio; e no entanto dste outro facto, que precisamente o que verificamos com a prova material indirecta, no temos certeza fsica, mas certeza lgica. Talvez se diga que deve falar-se de certeza fsica, s porque se parte da percepo sensria, directa, das materialidades do facto indicador? De modo algum! , esta, uma lei comum a tda a certeza mista: comea-se sempre por perceber directamente com os nossos sentidos as materialidades daquilo que constitui a prova, para passar era seguida a crer, por trabalho lgico, na coisa provada. Isto verifica-se tambm no caso de afirmao pessoal; comea-se pela percepo material e directa da palavra da testemunha, para passar em seguida a crer nas coisas afirmadas. Ser o testemunho tambm fonte de certeza fsica? Concluamos: com a classificao, em sentido subjectivo, da certeza em metafsica, fsica e histrica, a prova material indirecta fica fora do campo, no podendo subordinar-se a qualquer das trs classes.

    Voltemos agora a considerar a classificao objectiva da certeza na frmula, ontolgicamente exacta, precedentemente exposta, da certeza metafsica, fsica e eventual: classificao que se funda na trplice natureza possvel da verdade, necessria, constante ou eventual. J consideramos aquela classificao na sua natureza, e demonstramos ser inaceitvel para a certeza; considere-mo-la agora nas suas conseqncias.

    A primeira consequncia errnea a que levou a errnea classificao objectiva da certeza, foi esta: considerando que a verdade necessria superior a qualquer outra verdade, sendo aquela cujo contrrio impossvel; considerando que a verdade constante superior verdade eventual, emquanto a primeira no admite o contrrio, a no ser no caso de uma lei natural diversa e no conhecida, e a segunda admite normalmente a possibilidade do contrrio; considerando estas coisas, chegou-se assim concluso de uma relao maior ou menor entre as vrias espcies de certeza.

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    Disse-se: se a certeza metafsica consiste na verdade necessria presente ao esprito, esta certeza deve ser maior que qualquer outra; e se a certeza fsica consiste na verdade constante presente ao esprito, esta certeza ser menor que a certeza metafsica, e maior que a certeza eventual. Ora, tal consequncia errnea, como errnea a premissa. A certeza um estado de alma simples e indivisvel, e no entanto sempre igual e idntico a si prprio. A certeza consiste na crena da conformidade entre a prpria noo ideolgica e a verdade ontolgica: e portanto ou se cr nesta conformidade entre a prpria noo ideolgica e a verdade ontolgica, e se tem igualmente a certeza, ainda mesmo que se trate de verdade necessria, constante ou eventual; ou no se cr, e no se tem certeza de modo algum. Fazer comparaes sbre a quantidade das vrias certezas no razovel; a certeza, estado simples e indivisvel da alma, sempre igual, qualquer que seja a verdade objectiva a que se refira. Quem percebeu bem pessoal e directamente o lacto eventual da facada vibrada por Tcio sobre Gaio, quem percebeu pessoal e directamente o facto eventual de uma rocba que destacando-se da montanha se precipita no vale, est to certo desta verdade eventual, quanto o est de que a parte inferior ao todo, verdade necessria e por isso de ordem suprema entre as verdades.

    A natureza diversa das verdades em que se cr, no induz a diferenas de quantidade na certeza, como estudo determinado da alma; um tal estado de alma no tem mais nem menos; sempre idntico e igual a si prprio. necessrio porm observar que, em um momento psicolgico e ideolgico diverso da certeza concreta, pode, considerando em abstracto as vrias espcies dela, afirmar-se, relativamente, uma maior ou menor possibilidade de rro: o que no o mesmo. Eu me explico: quando consideramos separadamente trs pareceres, podemos encontrar, sob o ponto de vista da espcie a que sses pareceres pertencem, que o primeiro mais capaz de rros que o segundo, e o segundo que o terceiro. Mas atendei bem; eu disse: considerando-os em abstracto; e aqui que est o ncleo do problema, pois que, em concreto, quando chegamos certeza de

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    uma determinada proposio, quer dizer que regeitamos tdas as relativas possibilidades de rro, sem o que no teremos certeza.

    Trata-se de momentos ideolgicos e psicolgicos diversos.Quando o esprito humano em um momento psicolgico e

    ideolgico que no o da certeza concreta, considera em abstracto diversas espcies de certeza, se acha que uma espcie oferece menores garantias que outra para corresponder verdade objec- tiva, afirma logicamente que a primeira apresenta maiores possibilidades da rro que a segunda.

    Quando, pois, o esprito humano chega a ter a certeza de uma verdade determinada, quer dizer, repitamos, que ps de parte tda a possibilidade de rro; e no emtanto a certeza sempre igual para o esprito humano, tanto quando se refere a uma verdade necessria, como quando a uma verdade constante ou eventual.

    A rapidez dos movimentos intelectuais chega muitas vezes a no deixar distinguir a sucesso e a diferena dos momentos intelectuais, simulando a sua simultaneidade e por vezes a sua identidade; mas isto no deve enganar o olhar do filsofo. O que h de sucessivo e de diverso no esprito, revelado pela lgica, quando dissimulado pelo tempo.

    Concluindo, no racional andar procura de qual de entre as vrias certezas a maior, porque a certeza no tem graus nem quantidade; tem-se a certeza ou no se tem. S lgico procurar qual das certezas seja mais ou menos sujeita a rros. B isto lgico sob o ponto de vista da certeza especfica, considerada em abstracto, pois que a certeza particular, considerada em concreto na conscincia de um dado homem, julga sempre ter garantias suficientes contra o rro, sem o que no existiria certeza.

    Esta investigao da maior ou menor possibilidade de rro nas vrias espcies de certeza nasce espontnea e natural da considerao de que a certeza nem sempre corresponde verdade.

    No podemos por isso deixar de examinar ste problema relativamente nossa classificao particular da certeza.

  • A Lgica das Provas em Matria Criminal 41

    Mas qual ser o mtodo segundo o qual possamos proceder soluo de um tal problema? Devemos tambm deixar-nos guiar pelo critrio objectivo da necessidade ou da contingncia das verdades?

    Em primeiro lugar, em matria criminal, tratando-se do verificar factos humanos, e portanto verdades sempre contingentes, o critrio da necessidade e da contingncia das verdades no bastaria para nos elucidar sbre a diversa capacidade dos rros, relativamente a verdades igualmente contingentes, das vrias espcies e subespcies da certeza. Em segundo lugar, a maior ou menor capacidade de rros no deriva prpria e directamente da natureza especial da verdade, mas do modo como o espirito dela se apodera. Compreendo que a verdade, tendo uma natureza diversa, entra diversamente na posse do esprito; o que explica porque que mesmo partindo em tal questo de critrios objectivos, se possa chegar- a conseqncias verdadeiras, sempre na esfera da eficcia dstes critrios: mas fica sempre de p que ol rro, consistindo no na realidade objectiva, mas na percepo do esprito, no, em outros termos, na coisa, mas na sua percepo, a possibilidade do rro seja prpria e imediatamente estudada, no na verdade, mas no modo como o esprito se apossa dela.

    Se se quer ser exacto, pois com critrios subjectivos, tomando para guia o diverso modo como o esprito se apossa da verdade, que se deve estudar o problema da maior ou menor possibilidade de rro nas vrias espcies de certeza. Procedamos, com tal mtodo, quele exame, relativamente nossa classificao.

    Ns admitimos como espcies primitivas da certeza, a puramente lgica e a fsica, e dissemos que a certeza puramente lgica a crena da posse da verdade revelada em ns pela simples inteligncia, e a certeza fsica a crena da posse da verdade revelada em ns pelos sentidos, a que se junta acessriamente a inteligncia. Ora considerando que certeza puramente lgica se chega pelo simples trabalho dos sentidos e da inteligncia, v-se que o rro menos fcil na primeira, em que

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    pode insinuar-se por uma nica via, e mais fcil na segunda em que h duas vias para se introduzir. Esta diferena de possibilidade de rro mxima quando se considera a certeza fsica em relao primeira subespcie da certeza puramente lgica, isto , certeza puramente lgica intuitiva, ou evidncia ideolgica, diga-se assim, do que o rro pode considerar-se directamente excluido. Vice-versa, esta diferena mnima quando se considera a certeza fsica em relao segunda subespcie de certeza puramente lgica, isto , a certeza puramente lgica reflexa, era que o rro no difcil. Tdas as scincias puramente racionais desenvolvem-se por uma cadeia de ideias evolutivamente deduzidas umas das outras; e a histria dos rros, em que tais scincias teem cado, resolve-se na histria dos rros em que cau a certeza reflexa puramente lgica.

    Mas deixemos de parte a certeza puramente lgica, que, como dissemos, se no pode nunca ter relativamente ao facto criminoso que se quer verificar em matria criminal; e passemos a considerar a certeza fsica e as vrias subespcies da certeza mixta, emquanto sua capacidade relativa de rro.

    Em tdas estas certezas, existe o concurso da inteligncia e dos sentidos; mas importa considerar que o trabalho dos sen tidos idntico em tdas. Na certeza fsica, como nas trs subes pcies mixtas, na lgica, na histrica e na histrico-lgica, a percepo sensria sempre a mesma; e s tem uma impor tncia diversa, segundo o diverso concurso da inteligncia, con curso diverso pelo qual determinada a espcie particular de certeza que se tem. O trabalho dos sentidos no pode por isso oferecer-nos critrio algum diferencial da facilidade do rro; ste critrio diferenciai assenta todo no trabalho, mais ou menos complicado, pelo qual a inteligncia chega posse consciente da verdade. Examinemos a certeza fsica e as subespcies da certeza mixta luz dste critrio.

    Partindo dste critrio, encontra-se, em primeiro lugar, que a certeza fsica, espcie simples, , menos que qualquer outra, susceptvel de rro; e menos susceptvel de rro, porque na afirmao directa de uma coisa, proveniente da certeza fsica, o

  • A Lgica das Provas em Matria Criminal 43

    trabalho do esprito simplicssimo: resolve-se na percepo pura e simples dos sentidos. O rro no por isso fcil na certeza fsica.

    Vem em seguida a certeza fsico-histrica, subespcie da certeza mixta, em que a possibilidade de rro maior que na certeza fsica. Na certeza fsico-histrica, que deriva da afirmao directa de uma pessoa, no se trata j de uma percepo intelectual simples e directa, como na certeza fsica; o trabalho do esprito mais complicado. necessrio o raciocnio para estabelecer a veracidade do afirmante, veracidade fundada na negao do engano e da vontade de enganar do afirmante; depois de se estar convencido disto pelo trabalho do raciocnio que se conclui natural e simplesmente a verdade do facto afirmado. Quem h que no veja a maior possibilidade de rros, em que se pode car da parte do julgador?

    Depois da certeza fsico-histrica, apresenta-se a certeza fsico-lgica, como mais susceptvel de rro. Esta certeza deriva da afirmao indirecta de uma coisa, da prova material indirecta; e o trabalho do raciocnio mais rduo e mais complicado, que na certeza precedente. No se trata aqui simplesmente de nos convencermos de que orna testemunha se no engana e no mente; trata-se, ao contrrio, de alguma coisa maia difcil: trata-se de procurar as razes por que uma coisa diferente do delito indica o delito. E, uma vez que no campo das contingncias, todo o facto pode derivar de mais de uma coisa, e pode produzir mais de um efeito, a relao do facto que indica com o facto indicado j no absolutamente unvoca; e o raciocnio tem precisamente a difcil tarefa de guiar neste incerto e indefinido labirinto das contingncias possveis, que se ligam, como causa a efeito, com um dado facto. rdua tarefa, na verdade; caminho dedleo, e insidioso, em que o esprito pode fcilmente afastar-se do caminho direito.

    O cmulo, finalmente, da possibilidade de rro encontra-se, como natural, na subespcie mais complicada de certeza mixta, na subespcie que ns chamamos fsico-histrico-lgica. Esta subespcie de certeza, como vimos, deriva da afirmao pessoal indi

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    recta de uma coisa atravs das formas da afirmao pessoal, isto , da prova real indirecta, como contedo da prova pessoal: natural, por isso, que tdas as possibilidades de rro da certeza histrica, e tdas as da certeza lgica, se encontrem acumuladas nesta terceira subespcie de certeza, que resulta do concurso das duas subespcies precedentes.

    At aqui, em seguida a ter mostrado que a diviso objectiva da certeza levou afirmao da existncia de certezas maiores e menores, temos vindo combatendo essas afirmaes irracionais, e demonstrando como a certeza, estado simples e indivisvel da alma, sempre idntica e igual a si mesma, pelo que s pode falar-se lgicamente da sua maior ou menor capacidade de rros emquanto se considera em abstracto; e viemos por isso considerando esta diversa possibilidade de rros, tal qual resulta da considerao abstracta das diversas espcies de certeza.

    Mas alm disso no intil observar, que a diviso objectiva da certeza, e a consequente relao de mais ou de menos entre as suas vrias espcies, levaram tambm a outras conseqncias errneas.

    Em primeiro lugar, admitindo certezas maiores e certezas menores, admitindo uma relao de mais ou de menos entre as vrias espcies de certeza, chegou-se concluso de que, sendo elas mensurveis entre si, fssem mensurveis em si mesmas, e passou-se assim afirmao da existncia, no campo probatrio, de provas plenas, de provas semi-plenas, e de faces de prova, indefinidamente descendentes, da certeza: rro ste, de que nos ocuparemos em particular noutra parte desta obra.

    Em segundo lugar, considerando a certeza sob o ponto de vista objectivo, considerando-a sob o ponto de vista da sua correspondncia com a verdade, concluiu-se que verdadeira certeza a que corresponde absolutamente, sem possibilidade de rro, verdade objectiva; e como esta certeza absoluta- no de esperar em matria criminal, chegou-se por isso tambm concluso de que a certeza criminal s probabilidade, pois que existe sempre possibilidade de rro: outra teoria falsa de que tambm teremos ocasio de nos ocupar particularmente, em seguida.

  • A Lgica das Provas em Matria Criminal 45

    Aqui concluiremos observando que com estas noes inexactas se faz um jgo contnuo de palavras na crtica criminal, insinuando nos nimos aquele pirronismo scientfico que gera, por sua vez, o pirronismo prtico, fundamento fcil das decises arbitrrias e injustas; pois que certas mximas, como a que confunde a certeza com a probabilidade, so feitas propositadamente para servir de cmodo apoio indolncia, instigando a descansar sbre elas com a hipocrisia de uma boa conscincia.

    CAPITULO II

    Certeza emquanto ao sujeito, e convencimento judicial

    As nossas investigaes, at aqui, teem-se encaminhado a determinar e analisar a natureza e as espcies da certeza. Voltemos agora as nossas investigaes para a determinao do sujeito da certeza.

    Esta segunda investigao muito mais fcil que a pri-meira: quando se tenha j determinado a natureza da certeza, a determinao do sujeito no mais do que uma simples deduo lgica.

    Ao darmos a noo de certeza vimos que ela consiste em um estado da alma; e s com isto temos determinado o sujeito. Se a certeza tem uma natureza subjectiva, o sujeito natural da certeza no , nem pode ser, seno o esprito do julgador. Por virtude de uma simples deduo, poder-se-ia obter sem necessidade de qualquer outra investigao, sob o ponto de vista racional.

    Mas o movimento histrico gradualmente ascendente da humanidade conduziu, em matria probatria, preponderncia da substncia das provas, com critrios fixados pela lei, determinando em que condies probatrias se deve estar certo, e em quais no: obtiveram-se assim as provas legais. E falei das pro

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    vas legais como de um progresso histrico, porque elas substituram as ordalias e os duelos judicirios,, sistema probatrio barbaramente taumatrgico, atingido pelos anteu do quarto conclio de Latro. Assim, se bem que o sistema do livre convencimento seja historicamente mais antigo, no entanto as provas legais, para o tempo em que floresceram, foram realmente um progresso; e ste progresso foi tanto mais benfico quanto certo que elas foram substitudas ao processo inquisitorial, tornando-se assim um correctivo ao arbtrio judicial, temvel em tal forma de processo.

    O aparecimento histrico das provas legais levou os crticos a falar de certeza legal, como se existisse na lei um segundo sujeito possvel da certeza. E eis porque no podemos agora dispensar-nos de falar da certeza relativamente a um duplo sujeito.

    Se a certeza em matria criminal se confia conscincia autonmica do juiz, em que ela deve produzir-se como na de qualquer outro homem racional, e com os mesmos critrios livres, apenas subordinados s leis eternas da razo, tem-se a certeza natural, a certeza do homem, que podemos designar com o nome de certeza moral; especificao respeitante, para ns, sem equivoco ao sujeito da certeza, tendo ns, na classificao deduzida da sua natureza, abolido semelhante nomenclatura.

    Se a certeza, pois, se faz apenas consistir em certas condies predeterminadas pela lei, e impostas ao esprito do juiz, tem-se a certeza legal, uma certeza que se busca no no esprito do juiz, mas nos critrios legislativos.

    Esta certeza legal, legislativamente, pode ter uma compreenso maior on menor. Pode em primeiro lugar, no admitir de modo algum os critrios livres do juiz, que, desta forma, julgando, se verifica as condies probatrias para a imputabilidade determinada pela lei, deve condenar, e, se as no encontra, deve absolver; oerteza esta que completamente legal.

    A lei pode, em segundo lugar, deixar ao juiz uma determinada aplicao do seu livre critrio, e tem-se a certeza parcialmente legal.

  • A Lgica das Provas em matria Criminal 47

    O limite, pois, sob um ponto de vista mais geral, pode ser de duas espcies diversas, dando assim lugar a duas subespcies de certeza parcialmente legal. Pode o limite referir-se unicamente condenao, dizendo a lei ao juiz: tu tens sempre plena facul-dade de duvidar da culpabilidade e de acreditar mais ou menos na inocncia, e podes por isso sempre absolver; mas a tua certeza da culpabilidade no ligtima, e no podes por isso condenar, seno nestas determinadas condies. Ter-se-ia uma certeza legal conde- natria, juntamente com a certeza moral absolutria. A limitao pode referir-se unicamente a absolvio, declarando a lei ao juiz: no ponho limites tua convico relativamente condenao; mas no poders legitimamente, duvidando da culpabilidade, crrj mais ou menos na inocncia, e por isso absolver, seno nestas determinadas condies. Ter-se-ia neste outro caso uma certeza legal absolutria e uma certeza moral condenatria. Esta segunda subespcie de certeza parcialmente legal, que chamei certeza legal absolutria, opondo-se a que se faa valer a certeza natural do juiz, eventualmente gerada no seu esprito relativamente inocncia, ope-se com maior fra a fazer valer as convices menores do juiz, que no entanto poderiam lgicamente ser suficientes para absolver, pois que, como sabemos, para legitimar a absolvio no ocorre a certeza da inocncia, bastando que esta se julgue possvel, bastando a incerteza da culpabilidade. Portanto, para sermos mais completos e exactos, poder-se h nesta hiptese falar antes de crena legal absolutria: compreender-se h assim no s o caso em que o juiz tenha na sua conscincia a certeza da inocncia, e no possa absolver, porque a lei no partilha da sua certeza, como tambm o caso em que o juiz, comquanto no esteja certo da inocncia, tambm no tenha certeza da culpabilidade, e comquanto isto bastasse para absolver, le no o pudesse, porque a lei no partilha com le esta crena maior ou menor da inocncia possvel, crena que sempre includa ha incerteza da culpabilidade. Esta segunda subespcie da certeza parcialmente legal seria pois contra o acusado, e teria uma tendncia odiosa e cruel; como a primeira, em favor do acusado, teria uma tendncia benigna e simptica.

  • 48 A Lgica das Provas em Matria Criminal

    Tudo isto, relativamente ao fenmeno histrico da certeza legal, e possibilidade da sua aplicao legislativa, mais ou menos extensa.

    Coloquemo-nos agora sob o nosso ponto de vista, que o ponto de vista racional, a examinar ste assunto. lgico falar de certeza legal? possvel predeterminar, sem rro, as condies particulares e concretas, de que deve provir uma certeza particular e concreta?I Em vista do que temos vindo dizendo a respeito da natureza da certeza, v-se que se a certeza pode reduzir-se categoria das suas espcies, no susceptvel de ser determinada nas suas individualidades particulares e concretas.

    A certeza, dissemos, um estado subjectivo; e acrescentamos que ste estado subjectivo no pode ser considerado como independente da realidade objectiva: um estado psicolgico produzido pela aco das realidades percebidas, e da conscincia daquelas percepes. Ora, como no julgamento criminal se trata sempre de realidades contingentes, e estas podem variar indefinidamente de natureza e de relao, a certeza por isso que a elas se refere concretamente, no pode ser predeterminada por critrios fixos. O delicto, por um lado, tem, por si mesmo, formas indefinidamente multplices de apario; por outro, tem relaes indefinidamente multplices com as cousas e com as possoas, que depois so empregadas para a verificao do mesmo, tornando-se provas dle. Assim como varia a relao entre o delito particular e a coisa ou pessoa que se faz servir de prova, assim tambm varia o valor probatrio, que encontra naquela relao a sua eficcia. Como predeterminar as vrias relaes, e portanto a vria eficcia das provas ?

    Do delito podem prviamente determinar-se as espcies, e na classificao e graduao das espcies delituosas encontra fundamento e justificao o Cdigo penal, mas nunca se podem de antemo determinar tdas as formas de apario particulares e concretas. E a certeza judicial que deve servir de fundamento condenao, no se pode referir ao delito espcie, refere-se ao delito indivduo, e por isso indeterminvel como o seu

  • A Lgica das Provas em Matria Criminal 49

    objecto. 0 objecto, pois, das provas leva a concluir contra a certeza legal.

    Por outro lado, as realidades contingentes que funcionam como prova, so tambm s determinveis emquanto s espcies, e no estudo e na determinao destas espcies que consiste precisamente a crtica criminal. Mas se as realidades contingentes que funcionam como prova se consideram quanto sua individualidade, elas j no so determinveis, pois que a sua individualidade, como a individualidade de qualquer realidade contingente, indefinidamente varivel na sua concretizao. Ora, surgindo a certeza no da prova especfica, mas da prova individual, portanto indeterminvel como a prova de que provm. O sujeito das provas tambm leva por isso a concluir contra a certeza legal.

    Em suma, a prova tem um objecto e um sujeito. O objecto da prova concreta em matria criminal a individualidade criminosa que se quere provar; o sujeito da prova so a coisa e a pessoa que fazem a prova. Sendo o delito concreto, ou individualidade criminosa, se assim se lhe quere chamar, variabils- simo, resulta que a prova tem um objecto variabilissimo em matria criminal. A coisa e a pessoa que constituem a prova so por sua vez tambm realidades contingentes e variveis at ao infinito na sua individualidade; resulta daqui que o sujeito da prova em matria criminal tambm , em concreto, variabilissimo. A certeza, no entanto, s criada no esprito pela percepo da relao intercedente entre o sujeito, que faz a prova, e o objecto provado; e como estes dois termos so individualmente variabilssimos, variabilssima individualmente tambm a sua relao, e por isso variabilssima a certeza que a viso delas. E digo variabilssima a certeza sempre debaixo do ponto de vista das suas origens; porque, emquanto a si mesma, sabemos que, consistindo a certeza em um estado simples da alma, sempre idntica a si mesma.

    Parece-me assim claramente demonstrada a irracionalidade de tda a prvia determinao do valor das provas individuais e concretas, e assim a irracionalidade de tda a certeza legal; com

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    a diferena de que a certeza Malmente legal totalmente irracional, e as certezas parcialmente legais so parcialmente irracionais: relativamente a elas a racionalidade termina onde comea o limite legal.

    A certeza legal um rro lgico que se resolve em um rro juridico, pela condenao que obriga a infligir a quem se tem por inocente, e pela impunidade que obriga a conceder a quem se tem por culpado. E ste rro jurdico, por sua vez, converte-se em um rro poltico, devido perturbao que origina na conscincia social, constituda espectadora da condenao fatal do inocente e da absolvio fatal do delinqente. Basta que se repercuta na conscincia social o eco de uma nica condenao, reconhecida injusta e no obstante infligida ao inocente; basta que se repercuta na conscincia social o eco de uma nica absolvio, reconhecida injusta e no obstante concedida ao delinqente, para que tda a f na justia humana se desvanea e no fique mais nos coraes, ao nome da justia, seno um sentimento de receio e de desnimo.

    Falando das provas em geral, voltaremos ainda a falar das provas legais. Mas sob o aspecto de noo da certeza podemos pr ponto.

    Posta de parte a certeza legal, resta-nos smente dizer alguma coisa em particular a respeito da certeza moral, emquanto se integra prpriamente no que ns chamamos convencimento judicial.

    Dissemos que a certeza a crena na conformidade entre a noo ideolgica e a realidade ontolgica. Agora, necessrio observar que em matria criminal as relaes de conformidade entre uma noo ideal proveniente de provas que, em rigor, so sempre, sejam como forem, imperfeitas, e o facto criminoso que se quere verificar; estas relaes, dizia, j no so absolutas; no se referem a verdades da razo evidentes, mas a verdades de facto sempre contingentes. E no entanto, como vmos, a certeza em matria criminal susceptvel de rro, admitindo, assim, a possibilidade do contrrio. Quem diz: estou certo, no faz maia do que afirmar as grandes, mas no absolutas, relaes de con

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    formidade entre o pensamento prprio e a verdade objectiva; no faz seno afirmar preliminarmente a suficincia dos motivos em favor da verdade. Mas esta afirmao preliminar, em que consiste a certeza, nem sempre arrasta consigo o assentimento seguro e definitivo da vontade; e sucede por vezes estarmos intelectualmente certos, sem que estejamos moral e seguramente convencidos da verdade. Quando isto sucede, para termos ste convencimento seguro, so novamente avaliados e pesados os motivos que determinaram a certeza, para que ela no se desvanea, mas se confirme. Neste assentimento seguro e definitivo da vontade que, esclarecida pela razo, regeita definitivamente as possibilidades contrrias, fao consistir o convencimento racional, que, como necessrio para julgar, chamo tambm convencimento judicial. A certeza diz: vejo relaes de conformidade entre o meu pensamento e a verdade. O convencimento acrescenta: nesta viso intelectual no b rros, estou certo de que o pensamento conforme com a verdade. A certeza a afirmao preliminar da verdade, significando que a noo ideolgica se apresenta como verdadeira;0 convencimento a afirmao necessria da posse da certeza, significando que a certeza legtima, e que o esprito no admite dvidas sbre aquela verdade. O convencimento racional, em suma, no seno ura juzo sucessivo, determinador e aperfeioa- dor do primeiro, que constitui a certeza: a certeza a crena da verdade; o convencimento, por sua vez, a opinio da certeza, como legtima. Por um lado, portanto, a certeza moral encontra a sua perfeio no convencimento racional, por isso que ste se resolve na conscincia da certeza consentida e segura; por outro lado, ste convencimento propriamente, em especial, o acto volitivo e definitivo de assentimento verdade, como integrao da certeza: o assentimento da vontade, o assentar do esprito sbre a certeza l.

    1 A distino que GALLUPPI faz entre sentimento e juzo da certeza, anloga minha distino entre convencimento racional e certeza. Eis as suas palavras: necessrio distinguir o sentimento da certeza do juzo sbre a cer-

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    Em linguagem comum, quem diz, simplesmente: convico, entende dizer menos que certeza; por isso, para evitar equvocos, falei de convencimento racional. Convicto, neste sentido, alm de certo, exprime o mximo ponto da persuaso: a persuaso por uma segura viso intelectual, e no pelo impulso cego do esprito.

    Para determinar melhor a noo do convencimento judicial, mencionemos rpidamente alguns dos seus principais requisitos; os que teem maior importncia relativamente s provas judicirias criminais.

    Em primeiro lugar, em vista do que temos dito, resolvendo-se o convencimento judicial na certeza aceita e segura, e portanto em um acto simples e indivisvel do esprito, resulta da que le no susceptvel de graduao, nem mais nem menos que a prpria certeza. No h mais ou menos convencimento, como no h mais ou menos certeza: est-se convencido, ou no se est convencido.

    Em segundo