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1 NESH VERSUS ANVISA Prevalência na Classificação Fiscal de Mercadorias na NCM/SH A polêmica quanto à prevalência da NESH ou da ANVISA na veiculação de conceitos divergentes relativos a mercadorias com implicação na definição da NCM/SH foi objeto de posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua Primeira Turma, que decidiu, por unanimidade, em um caso específico, pela predominância do conceito formulado pela Anvisa (Recurso Especial n° 1.555.004 – SC). O Tribunal Regional Federal da 4ª Região havia decidido pela prevalência da NESH, no entendimento de que não cabe aplicar normas veiculadas pela ANVISA para definição de classificação fiscal, especialmente quando a NESH elucida dúvidas. No recurso ao STJ o autor alega que a “classificação” atribuída pela ANVISA deve prevalecer para fins fiscais pelas seguintes razões, entre outras: a NESH foi revogada pelo Tratado do Mercosul, em que constam normas que “determinam expressamente como o Brasil deve classificar tais sabonetes (para fins de união aduaneira), bem como que cabe à ANVISA introduzir essas regras no Brasil”; que, de acordo com o artigo 110 do CTN, o direito tributário é de sobreposição, não podendo contrariar definições de outros ramos do direito. A Primeira Turma do STJ fundamentou sua decisão favorável ao contribuinte nos argumentos de que “Incumbe à ANVISA regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos que envolvam a saúde pública”; os agentes fiscais e aduaneiros não dispõem de atribuições e não têm o conhecimento técnico-científico necessário para “alterar a classificação de um produto”; a classificação de um produto como cosmético é atribuição privativa da Autoridade Sanitária, fugindo à competência da Autoridade Aduaneira.

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NESH VERSUS ANVISA

Prevalência na Classificação Fiscal de Mercadorias na NCM/SH

Milton Assis | Grupo Assist

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NESH VERSUS ANVISA

Prevalência na Classificação Fiscal de Mercadorias na NCM/SH

A polêmica quanto à prevalência da NESH ou da ANVISA na veiculação de

conceitos divergentes relativos a mercadorias com implicação na definição da NCM/SH

foi objeto de posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua Primeira

Turma, que decidiu, por unanimidade, em um caso específico, pela predominância do

conceito formulado pela Anvisa (Recurso Especial n° 1.555.004 – SC).

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região havia decidido pela prevalência da

NESH, no entendimento de que não cabe aplicar normas veiculadas pela ANVISA para

definição de classificação fiscal, especialmente quando a NESH elucida dúvidas.

No recurso ao STJ o autor alega que a “classificação” atribuída pela ANVISA deve

prevalecer para fins fiscais pelas seguintes razões, entre outras: a NESH foi revogada

pelo Tratado do Mercosul, em que constam normas que “determinam expressamente

como o Brasil deve classificar tais sabonetes (para fins de união aduaneira), bem como

que cabe à ANVISA introduzir essas regras no Brasil”; que, de acordo com o artigo 110

do CTN, o direito tributário é de sobreposição, não podendo contrariar definições de

outros ramos do direito.

A Primeira Turma do STJ fundamentou sua decisão favorável ao contribuinte nos

argumentos de que “Incumbe à ANVISA regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos

que envolvam a saúde pública”; os agentes fiscais e aduaneiros não dispõem de

atribuições e não têm o conhecimento técnico-científico necessário para “alterar a

classificação de um produto”; a classificação de um produto como cosmético é

atribuição privativa da Autoridade Sanitária, fugindo à competência da Autoridade

Aduaneira.

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Conclui-se, pelo pronunciamento daquela Corte, que a ANVISA é a única

instituição competente e tecnicamente preparada para definir classificação fiscal de

mercadorias na NCM/SH para certos produtos que envolvam a saúde pública, não

tendo os agentes da Receita Federal do Brasil conhecimento suficiente para essa

atividade, de natureza técnico-científica. Uma consequência lógica dessa premissa é

que os agentes fiscais não conseguem compreender nem os esclarecimentos da NESH.

Como resultante dessa incapacidade, ficaria sem efeito, para definição da NCM/SH de

produtos conceituados pela ANVISA, a legislação que atribui à RFB competência para

fiscalização, solução de consulta e julgamento em processos pertinentes!

Esse ponto, por óbvio, data venia do Egrégio STJ, dispensa outros comentários!

O produto objeto da controvérsia é um tipo de sabonete, de marca ASEPXIA,

fabricado pelo laboratório Genomma Laboratories do Brasil Ltda, autor da ação. Este foi

autuado pela RFB por aplicar ao produto o conceito de cosmético, no código NCM

3401.11.90, enquanto o Fisco entendeu, escorado em orientações da NESH, tratar-se

de artigo da categoria de sabão medicinal, do código NCM 3401.11.10, o qual, no

entender do demandante, não se caracteriza como cosmético, mas como

medicamento. Diz o litigante ter fundamentado sua operação em conceituação

veiculada pela ANVISA, detentora de competência atribuída pelo Tratado do Mercosul,

que ele acredita ter revogado a Convenção do Sistema Harmonizado.

Segundo a NESH, são “sabões medicinais” os “que contêm substâncias

medicamentosas, tais como ácido bórico, ácido salicílico, enxofre e sulfamidas.” O

sabonete em questão tinha em sua composição uma substância chamada Antiacnil-3,

resultante da combinação de ácido salicílico e ácido glicólico. A presença do ácido

salicílico levou o Fisco ao entendimento de tratar-se de sabão medicinal.

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ANVISA E MERCOSUL

Opondo-se à ação do Fisco, o litigante sustenta que a ANVISA inclui na relação

de cosméticos produto similar àquele de sua fabricação, pela Resolução n° 7, de

10/02/2015, que “Dispõe sobre os requisitos técnicos para a regularização de produtos

de higiene pessoal, cosméticos e perfumes (...)” e aprova “Regulamento Técnico que

estabelece a definição, a classificação, os requisitos técnicos, de rotulagem e

procedimento eletrônico para regularização de produtos de higiene pessoal, cosméticos

e perfumes (...)”

Esse Regulamento Técnico da ANVISA vincula-se a normas do Mercosul, pois, de

acordo com o artigo 2° da citada Resolução, incorpora ao ordenamento jurídico

nacional as Resoluções GMC Mercosul nº 110/94, 26/2004 e 07/2005, que tratam,

respectivamente, de “Definição de Produtos Cosméticos", "Requisitos técnicos

Específicos para Produtos de Higiene Pessoal, Cosméticos e Perfumes" e "Classificação

de Produtos de Higiene Pessoal, Cosméticos e Perfumes".

GMC é o Grupo Mercosul, que tem função executiva no organismo

intergovernamental. Atua através de resoluções de aplicação obrigatória para os

Estados-Membros, conforme o artigo 15 do Decreto Legislativo 188/2005.

No seu Anexo I – “Definições”, o mencionado Regulamento Técnico veicula a

seguinte conceituação, em conformidade com a Resolução GMC Mercosul nº 110/94:

“Produtos de Higiene Pessoal, Cosméticos e Perfumes: são preparações

constituídas por substâncias naturais ou sintéticas, de uso externo nas

diversas partes do corpo humano, pele, sistema capilar, unhas, lábios,

órgãos genitais externos, dentes e membranas mucosas da cavidade oral,

com o objetivo exclusivo ou principal de limpá-los, perfumá-los, alterar

sua aparência e ou corrigir odores corporais e ou protegê-los ou mantê-

los em bom estado.”

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No Anexo II – “Classificação de produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes”, o

Regulamento Técnico divide esses produtos em dois grupos, e os define, conforme

segue, adotando aqui também a Resolução GMC Mercosul nº 110/95.

“Definição de Produtos Grau 1: são produtos de higiene pessoal

cosméticos e perfumes cuja formulação cumpre com a definição adotada

na Res. GMC Nº 110/94, que se caracterizam por possuírem propriedades

básicas ou elementares, cuja comprovação não seja inicialmente

necessária e não requeiram informações detalhadas quanto ao seu modo

de usar e suas restrições de uso, devido às características intrínsecas do

produto, conforme mencionado na lista indicativa constante do Anexo II.”

“Definição de Produtos Grau 2: são produtos de higiene pessoal

cosméticos e perfumes cuja formulação cumpre com a definição adotada

na Res. GMC Nº 110/94, que possuem indicações específicas cujas

características exigem comprovação de segurança e/ou eficácia, bem

como informações e cuidados, modo e restrições de uso, conforme

mencionado na lista indicativa constante do Anexo III.” (Na realidade, no

Anexo II).”

Observe-se que os produtos de Grau 1, por terem propriedades básicas, não são

objeto de controle rigoroso quanto às condições de segurança e/ou eficácia e quanto

aos cuidados e restrições de uso, o que ocorre em relação aos produtos de Grau 2.

Produto com propriedade de defender a pele contra problemas com acne está

expressamente citado no Anexo II do Regulamento Técnico — “II) LISTA DE TIPOS DE

PRODUTOS DE GRAU 2”, no item 43, nesses termos:

“43. Produto para pele acneica.”

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ESPECIFICIDADE DE FUNÇÕES DA ANVISA E DA NCM/SH

Ressalte-se que o papel cumprido pela ANVISA, ao incorporar ao ordenamento

jurídico nacional Resoluções do Mercosul, é o de regular produtos cuja aplicação pode

afetar a saúde, estabelecendo critérios mais rigorosos ou menos rigorosos “quanto ao

seu modo de usar e suas restrições de uso”, nos quesitos de “segurança e/ou eficácia,

bem como informações e cuidados, modo e restrições de uso”. Tem, pois, função

específica de proteção à saúde.

Essa atribuição, exercida em conformidade com a Resolução GMC Mercosul nº

110/95, é corroborada pela legislação nacional.

Assim, a Lei n° 9.782/1999, que define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária

e cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), estabeleceu que compete à

União, no âmbito do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, “normatizar, controlar e

fiscalizar produtos, substância e serviços de interesse para a saúde”, incumbindo à

Agência, “respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os

produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública”.

A regulamentação de produtos pela ANVISA tem, pois, a função específica de

defesa da saúde pública. Sua competência legal está restrita a essa atribuição. Daí ser

designada como Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Tem função diversa da

atribuída à Nomenclatura do Sistema Harmonizado, assim como da Nomenclatura do

Mercosul (NCM/SH), que foram criadas para estabelecimento de uma linguagem

comum e uniforme para facilitação das relações entre os países no âmbito comercial e

estatístico, sendo utilizada também para fins de regulação de procedimentos

aduaneiros e de tributação. Quando aquele órgão de vigilância sanitária define um

conceito e “classifica” um produto não pode estar produzindo o efeito próprio da

designação e codificação operadas pela NCM/SH. Diversamente do papel protetor da

ANVISA, a NCM/SH, quando aplicada para efeito tributário, afeta a estrutura de certos

tributos, conforme comenta Milton Carmo de Assis Júnior, na obra Classificação Fiscal

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de Mercadorias — NCM/SH: Seus Reflexos no Direito Tributário (Editora Quartier Latin

do Brasil, 2015), nesses termos:

“A classificação de mercadorias no NCM/SH é inerente à composição da

regra-matriz de incidência de alguns tributos, como o Imposto sobre

Produtos Industrializados —IPI e o Imposto de Importação —II.” No caso

do IPI, a definição do complemento “produtos” do verbo “industrializar”

“exige a indicação da designação e da codificação do respectivo produto

na Tabela de incidência do imposto —TIPI, que foi criada com base na

Nomenclatura Comum do Mercosul, instituída com base na Sistema

Harmonizado”.

A classificação e designação efetuada pela NCM/SH introduz o produto no cerne

da norma de incidência do IPI e do II, atribuição que não cabe à ANVISA. Esta, ao incluir

sabonete acneico entre os Produtos Grau 2 de seu Regulamento Técnico, o faz para

estipular que tal produto, por conter adição de componente de natureza

medicamentosa, exige dos fabricantes, “comprovação de segurança e/ou eficácia, bem

como informações e cuidados, modo e restrições de uso”, conforme texto já transcrito

retro.

A diversidade de classificação entre a NCM/SH e a ANVISA não tem o efeito de

alterar a especificidade das atribuições. Se aquele órgão de vigilância sanitária classifica

o sabonete acneico como cosmético com adição de componente medicamentoso e a

NCM/SH o classifica como medicamento, aquela classificação introduz o produto no

campo daqueles para os quais se exigem cuidados especiais em relação à saúde dos

usuários, sem qualquer consequência na seara tributária, enquanto a segunda referida

classificação gera para o mesmo produto efeito tributário e outros efeitos relacionados

ao comércio exterior.

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A especificidade de atribuições afasta, portanto, a possibilidade de aplicação no

caso em comento do conceito de sobreposição do direito tributário, com base no artigo

110 do CTN, como quer o litigante.

O TRATADO DO MERCOSUL E A NCM/SH

Foi veiculada no âmbito do Mercosul regulamentação específica a respeito de

classificação fiscal de mercadorias, diversa da regulamentação visando a proteção da

saúde pública. Por tal regulamentação fica patente a inadmissibilidade da afirmação do

autor da ação julgada pelo STJ de que o Tratado do Mercosul revogou a Convenção

Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de

Mercadorias do Sistema Harmonizado (SH). Não há conflito entre os dois institutos. Pelo

contrário, há convergência, como se pode verificar por ato da Comissão do Mercosul,

órgão competente para velar pela aplicação dos instrumentos de política comercial

comum entre os Estados Partes, que disciplinou a aplicação de procedimentos de

tramitação de informações relativas à classificação fiscal de mercadorias.

Trata-se da decisão MERCOSUL/CMC/DEC N° 03/03, que instituiu a "Norma de

tramitação de decisões, critérios e opiniões de caráter geral sobre Classificação Tarifária

de Mercadorias na Nomenclatura Comum do MERCOSUL". Essa Norma passou a vigorar

oficialmente no Brasil por determinação expressa do Decreto n° 1765, de 28/12/1995,

da Presidência da República.

Segundo a mencionada Norma, as decisões, critérios e opiniões de caráter geral

sobre classificação de mercadorias na NCM serão emitidos pelos Estados Partes de

acordo com sua legislação própria, e comunicados, em um prazo de quinze dias, às

administrações dos demais membros, para seu conhecimento e análise, por intermédio

de um órgão centralizador denominado Comitê Técnico de Nomenclatura e

Classificação de Mercadorias da Comissão de Comércio do Mercosul (CCM, ou Comitê).

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Em caso de discrepância de posicionamento, esse órgão atuará para obtenção

de consenso, adotando os seguintes critérios:

a) Se a discrepância for sobre posição e/ou subposição do Sistema Harmonizado,

o Comitê realizará consulta, por intermédio de um dos Estados Partes, à Direção de

Nomenclatura e Classificação do Conselho de Cooperação Aduaneira (CCA). Em caso de

desconformidade com o posicionamento do CCA, será solicitado à Direção de

Nomenclatura e Classificação do CCA que submeta o caso ao Comitê do Sistema

Harmonizado. A decisão final será obrigatória para todos os signatários do Tratado.

b) Se discrepância for sobre a aplicação dos dígitos 7º e 8º correspondentes à

Nomenclatura Comum, o Comitê levará o caso à decisão do Grupo Mercosul (GMC), por

intermédio da Comissão do Mercosul (CCM), para sua resolução conforme o Sistema de

Solução de Controvérsias vigente no Mercosul, cuja decisão será de aplicação

obrigatória.

Assim, divergências entre os Estados Partes são dirimidas pelo Conselho de

Cooperação Aduaneira, através do Comitê do Sistema Harmonizado, quando versarem

sobre a parte universal da Nomenclatura, representada pelos seis primeiros dígitos do

código, e são dirimidas no âmbito do Mercosul quando se referirem à parte regional da

Nomenclatura.

PAPEL INTERPRETATIVO FUNDAMENTAL DA NESH

A reconhecer a palavra final ao Conselho de Cooperação Aduaneira para solução

de discrepâncias de entendimento entre os Estados Partes, no que tange aos produtos

abrangidos pelas posições e subposições da NCM/SH, a Comissão do Mercosul

reconheceu também a importância das Notas Explicativas como subsídio fundamental

para solução das controvérsias, uma vez que essas foram redigidas pelo Comitê do

Sistema Harmonizado, por atribuição daquele Conselho, ao qual está subordinado.

Dessa forma, a NESH é inseparável do Sistema Harmonizado.

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A força interpretativa da NESH foi expressamente legalizada no Brasil, onde, em

conformidade com a adesão à Convenção sobre o Sistema Harmoniza, o Decreto-Lei n°

1.154, de 01/03/1971, estabeleceu, por seu artigo 3°, que “A interpretação do conteúdo

das posições e desdobramentos da Nomenclatura Brasileira de Mercadorias (NBM) far-

se-á pelas suas Regras Gerais e Regras Gerais Complementares e, subsidiàriamente,

pelas Notas Explicativas da Nomenclatura Aduaneira de Bruxelas (NENAB).”

Já utilizando a nomenclatura ora vigente, o Decreto n° 535, de 27/01/1992,

corrobora a adoção da NESH, nesses termos:

“Art. 1° São aprovadas as Notas Explicativas do Sistema Harmonizado de

Designação e de Codificação de Mercadorias, do Conselho de Cooperação

Aduaneira, com sede em Bruxelas, Bélgica, na versão luso-brasileira,

efetuada pelo Grupo Binacional Brasil/Portugal, anexas a este Decreto.

Parágrafo único. As Notas Explicativas do Sistema Harmonizado

constituem elemento subsidiário de caráter fundamental para a correta

interpretação do conteúdo das posições e subposições, bem como das

Notas de Seção, Capítulo, posições e subposições da Nomenclatura do

Sistema Harmonizado, anexas à Convenção Internacional de mesmo

nome.”

O caráter subsidiário da NESH não significa que tenha importância secundária.

Daí a acertada conexão efetuada pelo Decreto n° 535/1992, entre os termos “elemento

subsidiário” e “caráter fundamental”. A NESH é subsidiária ao SH porque não é parte

integrante dele, mas é fundamental para sua compreensão, tanto que foi redigida por

órgão com função da administração do SH, o Comitê do Sistema Harmonizado,

subordinado ao Conselho de Cooperação Aduaneira (CCA).

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COMPATIBILIDADE ENTRE A NESH E O MERCOSUL

Embora a Comissão do Mercosul tenha reconhecido ao CCA o poder de dirimir

controvérsias especificamente em relação às posições e às subposições, esse

reconhecimento tem também aplicação, por inferência lógica, para interpretação

relativa a item e subitem quando esses especificam produtos abrangidos pelos

conceitos e/ou critérios adotados pelo SH, inclusive se esses conceitos e/ou critérios

são veiculados pela NESH.

É o caso do produto em análise. Os sabões medicinais estão classificados no

item 3401.11.10. É um desdobramento da subposição de segundo nível 3401.11, que

inclui: (sabões, etc) “De toucador (incluindo os de uso medicinal)”. E a NESH esclarece o

conceito de sabões medicinais: “Os sabões medicinais, que contêm substâncias

medicamentosas, tais como ácido bórico, ácido salicílico, enxofre e sulfamidas.”

Conforme já comentado, o sabonete em questão tinha em sua composição uma

substância chamada Antiacnil-3, resultante da combinação de ácido salicílico e ácido

glicólico. Assim, o item NCM/SH 3401.11.10 discrimina um produto citado

expressamente na subposição de segundo nível que tem sua conceituação definida pelo

SH com subsídio da NESH. Confira-se a seguir:

“3401 SABÕES; PRODUTOS E PREPARAÇÕES ORGÂNICOS TENSOATIVOS

UTILIZADOS COMO SABÃO, EM BARRAS, PÃES, PEDAÇOS OU FIGURAS

MOLDADAS, MESMO QUE CONTENHAM SABÃO; PRODUTOS E

PREPARAÇÕES ORGÂNICOS TENSOATIVOS PARA LAVAGEM DA PELE, EM

FORMA DE LÍQUIDO OU DE CREME, ACONDICIONADOS PARA VENDA A

RETALHO, MESMO QUE CONTENHAM SABÃO; PAPEL, PASTAS (OUATES),

FELTROS E FALSOS TECIDOS, IMPREGNADOS, REVESTIDOS OU

RECOBERTOS DE SABÃO OU DE DETERGENTES.

3401.1 Sabões, produtos e preparações orgânicos tensoativos, em barras,

pães, pedaços ou figuras moldadas, e papel, pastas (ouates), feltros e

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falsos tecidos, impregnados, revestidos ou recobertos de sabão ou de

detergentes:

3401.11 De toucador (incluindo os de uso medicinal) (Grifamos)

3401.11.10 Sabões medicinais”

Sabões, entre outros produtos, “de uso medicinal” estão citados na subposição

de segundo nível 3401.11, aplicando-se à sua conceituação o reconhecimento do

Mercosul ao papel do SH para dirimir controvérsia. “Sabões medicinais”, expressamente

citados no item 3401.11.10, e constituindo-se em especificação de um dos produtos

abrangidos pela subposição de segundo nível 3401.11, tem sua identificação esclarecida

pela NESH, que, como ferramenta interpretativa inseparável da SH, tem também seu

papel fundamental subsidiário reconhecido pelo Mercosul. Por consequência lógica,

têm aplicação ao referido item da NCM/SH os critérios que o Mercosul estabelece para

solução de discrepâncias, e, logo, para interpretação da NCM/SH.

Podemos, pois, concluir que a classificação de sabão medicinal no item

3401.11.10 está de acordo com a Norma baixada pela Comissão do Mercosul.

SABONETE MEDICAMENTOSO COMO COSMÉTICO

O cerne da inconformidade levada ao arbítrio do STJ consiste na concepção de

que o produto em questão se caracteriza como um cosmético, enquanto o Fisco teria

entendido tratar-se de um tipo de medicamento. Mas a realidade não é essa. Não é

correto intender que o item 3401.11.10 da NCM/SH designe um medicamento. Na

verdade, designa um cosmético com adição de componente medicamentoso, que

acresce ao cosmético uma função secundária.

A regra fundamental para interpretação do Sistema Harmonizado (RGI 1) é que

ela se faz pelo texto da posição e pelas Notas de Seção, de Capítulo e de Subposição. As

Notas têm valor legal e fazem parte integrante do SH. A Nota 2 do Capítulo 34 veicula

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norma — e não apenas esclarecimento — que corrobora a afirmação acima, ao

estabelecer o alcance da posição 3401, nesses termos: “(...) os sabões e outros produtos

daquela posição podem ter sido adicionados de outras substâncias (por exemplo,

desinfetantes, pós abrasivos, cargas, produtos medicamentosos).” (Grifo nosso). Assim,

produtos abrangidos por aquela posição como o sabonete não deixam de ser um

cosmético para se transformarem em medicamento por receberem a adição de

componentes medicamentosos.

A própria ANVISA indica que, para um produto ser considerado cosmético, não é

necessário que tenha objetivo exclusivo de prover utilidades próprias de cosmético,

bastando que seja este o objetivo principal. É o que consta do seu Regulamento

Técnico, em trecho já transcrito do “Anexo I – Definições”, conforme segue:

“Produtos de Higiene Pessoal, Cosméticos e Perfumes: são preparações

constituídas por substâncias naturais ou sintéticas, de uso externo nas

diversas partes do corpo humano, pele, sistema capilar, unhas, lábios,

órgãos genitais externos, dentes e membranas mucosas da cavidade oral,

com o objetivo exclusivo ou principal de limpá-los, perfumá-los, alterar

sua aparência e ou corrigir odores corporais e ou protegê-los ou mantê-

los em bom estado.” (Grifamos)

Observe-se, ainda, que o SH, ao contrário de excluir os sabões medicinais do

conceito de cosmético, na realidade os inclui ao considerá-los entre os produtos “de

toucador” na subposição de primeiro nível 3401.11: “De toucador (incluindo os de uso

medicinal)”.

O consagrado filólogo Caldas Aulete (in Dicionário Contemporâneo da Língua

Portuguesa, Volume 5, Editora Delta S.A, Edição de 1958) ensina que Toucador significa

“móvel à semelhança de mesa ou de cômoda com espelho e utensílios próprios para

alguém se pentear ou toucar”. Local onde se pratica a “Ação de toucar-se, arranjar-se”.

Como extensão do sentido originário de touca, como adorno de cabeça, toucador

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ganhou ampliação semântica para significar local para adornar-se, arranjar-se, lavar-se,

compor-se, que são funções dos cosméticos. Dessa forma, o conceito de produtos de

toucador corresponde ao conceito de cosméticos.

Assim, na realidade, quando a ANVISA classifica o sabonete acneico na categoria

de cosmético, não está aplicando um conceito diferente do aplicado pela NCM/SH.

Em conclusão a todo o exposto, é correto afirmar que há mais de uma razão

para se considerar como equivocada a decisão da Primeira Turma do STJ ora

comentada. Tem, contudo, forte efeito de insegurança jurídica, especialmente pelo fato

de ter sido proferida por unanimidade.

Milton Carmo de Assis 22 de junho de 2016