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Nem preto nem branco muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. Lilia Mortiz Schwarcz HISTÓRIAS DE MISCIGENAÇÃO E OUTROS CONTOS DE FADAS. A autora começa fazendo um paralelo com a literatura infantil cujo tema era o branqueamento, entre os quais Contos para crianças (publicado no Brasil em 1912 e na Inglaterra em 1937), cujo tema central é como uma pessoa negra pode tornar- se branca, tema quepe também o núcleo narrativo do conto "A princesa negrina". De modo que nestes a insistência na ideia de branqueamento, o suposto quanto mais branco melhor, fala não apenas de um acaso ou de uma ingênua coincidência, presente nesse tipo de narrativa infantil, MAS DE UMA SÉRIE DE VALORES DISPERSOS NA SOCIEDADE E PRESENTES NOS ESPAÇOS PRETENSAMENTE MAIS IMPRÓPRIOS. A cor branca é explicitada, é quase uma benção. Quanto a essa temática outros autores estavam prontos para defendê-la, por exemplo, João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional doRio de janeiro que apesar de estar distante dessa literatura de ficção, suas conclusões não eram muito distintas da mesma. Ao participar do I Congresso Internacional de Raças, em julho de 1911, expôs uma mensagem clara: "é lógico supor que na entrada do novo século, os mestiços terão desaparecido no Brasil, fato que coincidirá

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Nem preto nem branco muito pelo contrário: cor e raça na intimidade.

Lilia Mortiz Schwarcz

HISTÓRIAS DE MISCIGENAÇÃO E OUTROS CONTOS DE FADAS.

A autora começa fazendo um paralelo com a literatura infantil cujo tema era o

branqueamento, entre os quais Contos para crianças (publicado no Brasil em 1912 e na

Inglaterra em 1937), cujo tema central é como uma pessoa negra pode tornar-se branca,

tema quepe também o núcleo narrativo do conto "A princesa negrina".

De modo que nestes a insistência na ideia de branqueamento, o suposto quanto mais

branco melhor, fala não apenas de um acaso ou de uma ingênua coincidência, presente

nesse tipo de narrativa infantil, MAS DE UMA SÉRIE DE VALORES DISPERSOS NA

SOCIEDADE E PRESENTES NOS ESPAÇOS PRETENSAMENTE MAIS IMPRÓPRIOS. A cor

branca é explicitada, é quase uma benção.

Quanto a essa temática outros autores estavam prontos para defendê-la, por exemplo,

João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional doRio de janeiro que apesar de estar

distante dessa literatura de ficção, suas conclusões não eram muito distintas da mesma.

Ao participar do I Congresso Internacional de Raças, em julho de 1911, expôs uma

mensagem clara: "é lógico supor que na entrada do novo século, os mestiços terão

desaparecido no Brasil, fato que coincidirá com a extinção da raça entre nós". Um artigo

sem dúvidas em defesa do branqueamento.

Também o antropólogo Roquete Pinto, comopresidente do I Congresso Brasileiro de

Eugenia, de 1929, previa, anos depois e despeito de sua crítica às posições racistas, um

país cada vez mais branco: em 2012 teríamos uma população composto de 80% de

brancos, 20% de mestiços; nenhum negro e nenhum índio. A cor negra no contexto do

momento era feia na mesma medida que no contexto dos contos.

Raça no Brasil jamais foi um termo neutro, ao contrário associou-se com frequência a uma

imagem particular do país. Muitas vezes, na vertente mais negativa do séc. XIX, a

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mestiçagem existente no país parecia atestar a falência da nação. Nina Rodrigues

médicoda escola baiana, adepto do darwinismo social e do poligenismo, acreditava que a

miscigenação era ao mesmo tempo sinal e condição de degeneração. Como ele Euclides

da Cunha, em sua famosa obra Os sertões oscilava entre considerar o mestiço como forte

ou desiquilibrado, mas acabava por julgar “mestiçagem extremada um retrocesso", em

razão da mistura de raças muito diversas,

Já a versão romântica do grupo que se reunia em torno do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, elegeu os bons nativos como modelos nacionais e basicamente se esqueceu da

população negra. Mestiçagem que era comparada a um grande rio no qual se misturavam

as três raças formadoras.

Já na representação vitoriosa dos anos 30 o mestiço transformou-se em ícone nacional,

em umsímbolo de nossa identidade cruzada no sangue, sincrética na cultura, isto é, no

samba, na capoeira, no candomblé e no futebol. Valorização que, no entanto, não ocorre

no cotidiano, cuja valorização do nacional é apenas uma retórica que não tem

contrapartida na valorização das populações mestiças discriminadas. De modo que se

comparado ao período anterior quando a miscigenação significava no máximo uma aposto

no branqueamento, esse contexto destaca-se na valorização diversa dada à mistura,

sobretudo, cultural que repercute em momentos futuros.

Nas tantas expressões que insistem em usar a noção, nas piadas que fazem rir da cor, dos

ditos que caçoam na quantidade de termos, são revelados indícios de como a questão

racial se vincula de forma imediata ao tema identidade, de uma identidade que desde a

época da colonização foi marcada pela falta. Nem bem colonos, nem bem colonizados,

nem portugueses, nem escravos. Desde os primeiros momentos uma questão pareceu

acompanhar os debates locais: O QUE FAZ DO BRAZIL, BRASIL? A partir de então muitos

dos quais que se propuseram a definir uma especificidade nacional selecionaram "A

CONFORMAÇÃO RACIAL" ENCONTRADA NO PAÍS, DESTACANDO A PARTICULARIDADE DA

MISCIGENAÇÃO.

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Apesar de parecer como um tema debatido dentro do país, na verdade o tema raça no

Brasil é quase um tabu. Apenas de maneira jocosa ou mais descomprometida, pouco se

fala sobre a questão- livros não despertam interesse, filmes ou exposições passam

despercebidos.

A situação parece de forma estabilizada e naturalizada, sugerindo que as posições sociais

desiguais fossem praticamente um desígnio da natureza sem nenhuma conexão com o

decorrer histórico, bem como se as atitudes racistas fossem algo minoritário e excepcional

dentro da sociedade brasileira (descaso para com o preconceito racial naturalização do

mesmo). Na ausência de uma política discriminatória oficial estamos envoltos num país

de “boa consciência “que nega o preconceito ou o reconhece menos pesado”“. De modo

genérico e sem questionamento é afirmado UMA HARMONIA RACIAL E JOGA-SE PARA O

PLANO PESSOAL, OU PRIVADO, OS POSSÍVEIS CONFLITOS.

Há uma problemática de se lidar com o tema: ora ele desaparece, ora aparece disfarçado

na figura de outro. O que é atestado pelos resultados das pesquisas realizadas em São

Paulo, em 1988, e 1995 na Folha de São Paulo, as quais atestam que os todos os

brasileiros parecem se sentir, portanto como uma ilha de democracia racial cercados de

racistas por todos os lados, ou ainda que apesar de grande porcentual da população

admitir existir preconceito de cor no país apenas uma minoria ínfima admite tê-lo. Sem

contar que as investigações de preconceito de cor em diferentes núcleos brasileiros têm

apresentado resultados divergentes; nas pequenas cidades costuma-se apontar a

ocorrência de racismo apenas nos grandes conglomerados, de forma contrária, nas

grandes cidades a visão é de que é nas pequenas vilas que se concentram os mais radicais.

Isso sem contar o uso do passado de modo que existe a situação de que quando

entrevistados alguns brasileiros jogam para o período escravocrata os últimos momentos

de racismo.

Contudo, ainda que distintas na aparência as conclusões se fazem paralelas:NINGUÉM

NEGA QUE EXISTA RACISMO NO BRASIL, NO ENTANTO, SUA PRÁTICA É SEMPRE

ATRIBUÍDA AO OUTRO. SEJA DA PARTE DE QUEM AGE DE FORMA PRECONCEITUOSA, SEJA

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DAQUELA DE QUEM SOFRE PRECONCEITO, O DÍFICIL É ADMITIR A DISCRIMINAÇÃO E NÃO

O ATO DE DISCRIMINAR. (A DISCRIMINAÇÃO É TOMADA COMO INEXISTENTE PELO FATO

DAQUELE QUE A FAZ NÃO QUESTIONAR SUA EXISTÊNCIA E AQUELE QUE SOFRE COM ELA

TER RECEIO DE ADMITIR QUE É ATINGIDO PELA MESMA).

O problema está em afirmar oficialmente o preconceito que é reconhecido na intimidade.

O que indica que estamos diante de um tipo particular de racismo, o racismo silencioso e

sem cara que se esconde por trás de uma suposta garantia de universalidade e da

igualdade de leis, e que lança para o terreno do privado a discriminação. Com efeito, em

uma sociedade marcada historicamente pela desigualdade, pelo paternalismo das

relações e pelo clientelismo, o racismo só se afirma na intimidade, sendo da ordem do

privado não se gula pela lei, não se afirma explicitamente. Contudo, depende da esfera

pública para a sua explicitação, numa complicada demonstração de etiqueta que mistura

raça com educação e posição social e econômica. Tema que é ainda mais complexo na

medida em que no país inexistem regras fixas ou modelos de descendência biológica

aceitos de maneira consensual pelo fato de que a linha de cor pode variar de acordo com

a condição social do indivíduo, o local e mesmo a situação.

Essa própria discussão é de certo modo recente: o conceito "raça" data do séc. XVI, e as

teorias são mais jovens ainda tendo surgido em meados do século XVIII. Antes de se ligar a

biologia tal noção compreendia "grupos ou categorias de pessoas conectadas por uma

origem comum". É só no século XIX que os teóricos do darwinismo racial, fizeram dos

atributos externos e fenotípicos, elementos essenciais definidores de moralidade e devir

dos povos. Sob a capa da raça introduziram-se considerações de ordem cultural, na

medida em que a noção se associavam crenças e valores. Fazendo com que o conceito

deixasse de ser natural, uma vez que denotava uma classificação social baseada em uma

atitude negativa para com determinados grupos.

O fato é que no Brasil a mestiçagem e a aposta no branqueamento da população geraram

um racismo à La brasileira que percebe antes colorações do que raças, que admite a

discriminação apenas na esfera privada e difunde a universalidade das leis. Onde a

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cidadania é defendida com base na garantia de direitos formais, sendo ignoradas as

limitações impostas pela pobreza, pela violência cotidiana e pelas distinções sociais e

econômicas.

De modo que é preciso pensar nas especificidades da história brasileira que fez da

desigualdade uma etiqueta internalizada e da discriminação um espaço não formalizado.

PELA HISTÓRIA: UM PAÍS DE FUTURO BRANCO OU BRANQUEADO.

As teorias raciais chegam aqui em meados do século XIX no momento em que a abolição

da escravidão se torna irreversível. Num país de larga convivência com a escravidão, um

contingente do vulto de africanos trazidos pra cá acabou alterando as cores e os costumes

e a própria sociedade local. Em primeiro lugar a escravidão legitimou a inferioridade e

enquanto durou inibiu qualquer discussão sobre a cidadania. O trabalho limitou-se

exclusivamente aos escravos e a violência se disseminou nessa sociedade de

desigualdades e de posses de um homem sobre o outro.

Em distância com a metrópole e mesmo a partir de 1822 com a montagem de um Estado

mais centralizado, criou-se progressivamente uma sociedade dicotômica no qual o

clientelismo se colocava acima do poder público enfraquecido. Um uso relaxado das leis e

instituições públicas se manifestou na medida em que as leis formais beneficiava a

poucos, em especial aqueles mais desfavorecidos, raciocino que vale apenas para os

homens livres, contudo uma quantidade significativa da população esteve excluída da lei-

os escravos, impedidos de desfrutar dos benefícios do Estado, tendo em seu senhor o

arbítrio absoluto de seu destino.

Foi só com a proximidade do fim da escravidão e da própria monarquia que a questão

passou para a agenda do dia, até então o escravo como propriedade não era cidadão. No

Brasil é com a entrada das teorias raciais que as desigualdades sociais se transformam em

matéria de natureza.

A raça era introduzida assim com base nos dados da biologia da época e privilegiava a

definição de grupos segundo seu fenótipo o que eliminava a possibilidade de se pensar o

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indivíduo e no próprio exercício da cidadania. Diante da promessa de uma igualdade

jurídica a resposta foi comprovada cientificamente de uma desigualdade biológica entre

os homens. A ciência positiva e determinista enquanto seu fundamento pretendeu

explicar com objetividade uma suposta diferença entre os grupos.

Essas teorias, no entanto, não foram apenas introduzidas e traduzidas o Brasil, que

ocorreu uma releitura particular: ao mesmo tempo em que se absorveu a ideia de que

raças significavam realidades essenciais, negou-se a noção de que a mestiçagem levava

sempre a degeneração. Casando os modelos evolucionistas com as teorias darwinistas, no

Brasil as teorias ajudaram a explicar a desigualdade como inferioridade, mas também

apostaram em uma miscigenação positiva, contanto que o resultado fosse cada vez mais

branco. De forma que paralelamente com o fim da escravidão iniciou-se uma política de

imigração ainda nos últimos anos de império marcada pela intenção do branqueamento

do país.

De modo que o processo de abolição brasileiro carregava consigo algumas

particularidades:

-A crença enraizada de que o futuro levaria a uma nação branca;

- O alívio decorrente de uma libertação que se fez sem lutas nem conflitos e, sobretudo

evitou distinções legais com base na raça (diferente do que ocorreu em outros países

onde o final de escravidão desencadeou um processo acirrado de lutas internas, a

abolição comparada com uma dádiva gerou resignação);

-Ao contrário de estabelecer ideologias raciais oficiais e criação de categoriais de

segregação, como nos EUA, no Brasil projetou-se a imagem de uma democracia racial que

legitimava a imagem de uma escravidão benigna.

Após 1888, a inexistência de categorias explícitas de dominação racial incentivava a

imagem de um paraíso racial, recriando uma história em que a miscigenação aparecia

associada a uma herança portuguesa particular e a sua suposta tolerância racial, revelada

em um modelo escravocrata mais brando e ao mesmo tempo mais promíscuo. No Brasil

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sua história escravocrata tentou ser reconstruída de uma maneira positiva, muito

diferente da realidade ocorrida, mesmo encontrando pouco respaldo nos dados e nos

documentos. O certo é que se tentava apagar um determinado passado e que o presente

significava um começo a partir do zero. O que estabeleceu uma narrativa romântica sobre

senhores severa mais paternal e escravos submissos e prestativos, a qual encontrou

terreno fértil ao lado de um novo argumento que afirmava à miscigenação ser um fator

impeditivo as classificações muito rígidas.

Ali quanto mais branco melhor, quanto mais claro mais superior, onde o branco não é

visto só como uma cor, mas como uma qualidade social: o que sabe ler, que é mais

educado e que ocupa uma posição social mais elevada.

Neste contexto em que o tema para nunca ser dito é complicado identificar o problema,

de modo que ele se modifica nos anos 30 em matéria de exaltação.

NOS ANOS 30 A ESTATIZAÇÃO DA DEMOCRACIA RACIAL: SOMOS TODOS MULATOS.

A literatura brasileira já carregava a estabilidade da democracia racial e a visão da mistura

das três raças. Macunaíma de Mário de Andrade, por exemplo, parecia resultar de um

período fecundo de estudos e de dúvidas sobre a cultura brasileira, assim como trazia uma

série de intenções, referências figuradas e símbolos que no conjunto definiam os

elementos de uma psicologia própria de uma cultura nacional e de uma filosofia que

oscilava entre otimismo em excesso e o pessimismo em excesso.

Incorporando em sua obra toda uma cultura não letrada, onde a expressão herói de nossa

gente veio substituir o termo herói de nossa raça, numa demonstração de como o

romance dialogava com o pensamento social da época.

Estava em curso um movimento que negava o argumento racial e o pessimismo advindo

das teorias darwinistas sociais que falavam mal da miscigenação aqui existente. Autores

como Nina Rodrigues, Silvio Romero, João Batista Lacerda, Oliveira Vianna e mesmo Paulo

Prado interpretaram com ênfases e modelos diferentes, os impasses e problemas

advindos do cruzamento experimentado no Brasil.

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Contudo, o contexto dos anos 30 parecia propício para arriscar explicações de ordem

cultural sobre este país que ainda interrogava se a mestiçagem estava condenada ao

sucesso ou ao fracasso?

A cultura mestiça nos anos 30 despontava como representação oficial da nação. No Brasil

a criação de símbolos nacionais nasce num domínio em que os interesses privados

assumem sentidos públicos. O próprio discurso da identidade é fruto dessa ambiguidade

que envolve concepções privadas e cenas públicas, no sentido de que a narrativa oficial se

serve de elementos disponíveis como a história, a tradição, rituais formalistas e

aparatosos, e por fim seleciona e idealiza um “povo” que se constitui a partir da supressão

das pluralidades.

No Brasil dos anos 30, dois grandes núcleos aglutinam conteúdos particulares de

nacionalidade: O nacional popular e, sobretudo a mestiçagem, não tanto biológica como

cada vez mais cultural. É nesse contexto que uma série de intelectuais ligados ao poder

público passa a pensar em políticas culturais que viriam ao encontro de uma “autêntica

identidade brasileira”. Com esse objetivo é que são criadas ou reformadas diversas

instituições culturais visando resgatar ou selecionar costumes e festas assim como um tipo

de história. De modo que é só no Estado Novo que projetos oficiais são implementados no

sentido de reconhecer na mestiçagem a verdadeira nacionalidade.

A obra Casa-grande e Senzala de Gilberto Freyre, cuja primeira edição data de 1933,

sinaliza esse movimento de conformação de ícones da identidade, Retomando a temática

a experiência de convivência entre as três raças, Freyre trazia para seu livro a experiência

privada das elites nordestinas e fazia desta um exemplo de identidade. A obra oferecia um

modelo para a sociedade multirracial brasileira, invertendo o antigo pessimismoe

introduzindo os estudos culturalistas como alternativas de análise. A mestiçagem era

tomada como uma questão de ordem geral que atingia a todos. Era que o cruzamento de

raças passava a singularizar a nação nesse processo que leva a miscigenação a parecer

sinônimo de tolerância e hábitos sexuais da intimidade a se transformarem em modelos

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de sociabilidade. Sua obra era assim uma história da sexualidade brasileira, cujo resultado

era uma cultura homogênea apesar de resultante de raças tão diversas.

Mantinha intocados na sua obra os conceitos de superioridade e inferioridade, assim

como não deixava de descrever a violência e o sadismo presente durante o período

escravagista. Senhores severos mais paternais ao lado de escravos fiéis pareciam

simbolizar uma “boa escravidão”. A novidade era a intimidade do lar virar matéria de

ciência enquanto certa convivência cultural parecia se sobrepor à desigualdade social,

quem o acompanhava eram os estudos de Pierson sobre as relações raciais em Salvador.

Pra além do debate intelectual, nos anos 30 no discurso oficial o mestiço vira nacional, ao

lado de um processo de desafricanização de vários elementos culturais simbolicamente

clareados. É o caso da feijoada que se torna “prato típico da culinária brasileira”,

conhecida a princípio como comida de escravos se torna prato nacional, carregando

consigo a representação simbólica da mestiçagem. A capoeira é também oficializada como

modalidade esportiva nacional em 1937. O sambo também passou da repressão à

exaltação da dança do preto, nos anos 30 saindo da marginalidade e ganhando as ruas. O

novo regime também introduz, nesse período, novas datas cívicas: o dia do trabalho, a

aniversário de Getúlio Vargas, do Estado Novo, é o dia da raça criado para exaltar a

tolerância de nossa sociedade. O momento coincide ainda com a escolha de Nossa

Senhora da Conceição Aparecida para a padroeira do Brasil.

NAS FALÁCIAS DO MITO: FALANDO DE DESIGUALDADE SOCIAL

O impacto e a penetração desse tipo de interpretação que destaca a situação racial não

verdadeira vivenciada no país levaram em 1951 à aprovação de um projeto de pesquisa

influenciado pela UNESCO, que impactado pelas análises de Pierson e de Freyre,

tomoucomo propósito de usar “o caso brasileiro” como material de propaganda e com tal

objetivo inaugurou o Programa de Pesquisas sobre Relações sociais no Brasil. Sustentava

como hipótese que o país representavaum EXEMPLO NEUTRO NA MANIFESTAÇÃO DE

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PRECONCEITO RACIAL E QUE SEU MODELO PODERIA SERVIR DE EXEMPLO PARA AS

NAÇÕES CUJAS RELAÇÕES RACIAIS ERAM MENOS “DEMOCRÁTICAS”. Para isso foram

contratados vários especialistas reconhecidos que deveriam pesquisar “a realidade racial

brasileira”.

Da parte da UNESCO a expectativa era de que tais estudos realizariam um elogio da

mestiçassem e enfatizassem a possibilidade de convívio harmonioso entre etnias nas

sociedades modernas. Entretanto, se algumas obras confirmaram tais expectativas como é

o caso da obra, As elites de cor (1955) da autoria de Thales de Azevedo, outras que

passaram a realizar uma revisão dos modelos assentados, como é o caso das análises de

Costa Pinto para o Rio de Janeiro e de Roger Bastide e Florestan Fernandes para São

Paulo, estas nomearam falácias no mito: em vez de democracia surgiram indícios de

discriminação, não se tinha harmonia, mas preconceito para com a questão racial.

São reveladoras as análises de Florestan Fernandes, que abordam a temática racial tendo

como fundamento o ângulo da desigualdade.

Para o autor a ausência de tensões abertas e de conflitos permanentes não é por si só um

indicador de boa organização das relações sociais, em outras palavras indicadores de um

país neutro com relação à questão racial. No enfrentamento dos impasses gestados por

essa sociedade recém-egressa da escravidão, Florestan problematiza a noção de

“tolerância racial” vigente no país. Em lugar de análises culturalistas, a inovação de sua

escola estava nas visadas sociológicas, centradas no tema da modernização do país e

fazendo uma investigação da passagem do mundo tradicional ao mundo moderno, o que

abria espaço para uma ampla discussão sobre a situação das classes sociais no Brasil.

O autor notava a existência de UMA FORMA PARTICULAR DE RACISMO NO PAÍS: “UM

PRECONCEITO DE NÃO TER PRECONCEITO”. A tendência do brasileiro era de continuar

discriminando ainda que considerasse tal atitude ofensiva para quem sofre e degradante

para quem a pratica. Sendo resultado da derrubada da ordem tradicional, vinculada à

escravidão e a dominação senhorial essa divisão de atitudes era consequência da

permanência de um etos católico. De modo que seriam os mores cristãos os responsáveis

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por uma visão de mundo dividida que levava a seguir uma orientação prática diversa das

obrigações ideais. Por isso o preconceito de cor era idealmente condenado, mas na

prática continuava intocável.

O racismo aparece como uma expressão íntima reservada ao recesso do lar, a vida privada

a um estilo de vida. Como se os brasileiros repetissem o presente traduzindo o racismo

em sua esfera privada. Extinguir a escravidão, dar universalidade as leis e ao trabalho não

afetou o padrão de acomodação racial, apenas resultaram em camuflá-lo. Por meio de

análises diversas a especificidade do preconceito no Brasil se mantinha evidenciada no seu

CARÁTER PRIVADO E POUCO FORMALIZADO. Confundia-se miscigenação com ausência de

estratificação, e a construção de uma idealização voltada para o branqueamento. A qual

não era só o mais branco o melhor, mas o melhor seria também o negro de alma branca,

que, sobretudo, nos anos 70 representou a figura do negro leal, devotado ao senhor e a

sua família, assim como à própria ordem social. Havia um paradoxo da situação racial no

Brasil: se uma persistente mobilidade social eliminou algumas barreiras existentes no

período escravocrata, a mesma criou outras de ordem econômica e moral, seja para

aqueles que não se adequavam ou que se opunham a certos códigos morais vividos

internamente. Um racismo dissimulado e assistemático era diagnosticado por Florestan. O

preconceito de raça era substituído pelo preconceito de cor, gerando um processo de

exclusão social.

A chegada dos anos 70 traz um movimento de contestação aos modelos vigentes que

eram questionados na política oficial ou alternativa, na literatura, na música. Data dessa

época o surgimento do movimento Negro Unificado (MN) que ao lado de outras

organizações paralelas passava a discutir as formas tradicionais de poder, apoiado nas

conclusões de Florestan Fernandes o MN DEMONSTROU A EXALTAÇÃO DAQUELES QUE

DENUNCIAVAM A FORMA MÍTICA DA DEMOCRACIA RACIAL DO PAÍS QUE NÃO EXISTIA NA

REALIDADE DO MESMO MODO QUE EXISTIA NO DISCURSO.

Nas diferenças ao acesso à educação, ao lazer, na distribuição desigual das rendas

estavam as marcas da discriminação racial ocorrida na realidade. Os primeiros estudos dos

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anos 50 foram importantes para a desmontagem do mito, mas uma série de estudos nos

anos 80 quantitativos investiram na investigação das profundas desigualdades que

separam negros dos demais grupos e brancos de não brancos.

QUANDO A DESIGUALDADE É DA ORDEM DA INTIMIDADE E ESCAPA À LEI.

O caráter não oficial do preconceito no Brasil é sua maior marca. Se em outros países foi

adotado regras jurídicas que garantiam a descriminação dentro da legalidade, no Brasil

desde a proclamação da República, a universalidade da lei foi afirmada de maneira

taxativa: nenhuma cláusula nenhum referência a qualquer tipo de diferenciação pautada

na raça.

Contudo, o racismo foi resposto tanto de maneira científica, com base no consentimento

da biologia, e depois pela própria ordem do costume. Para constatar esse último, temos

que em 1951 é sentenciada a lei Afonso Arinos, que tinha como objetivo punir o

preconceito, o que acaba por formalizar a sua existência. Contudo, por falta de cláusulas

impositivas e de punições mais severas a lei não surtiu efeito mesmo ao combate de casos

de discriminação bem divulgados. Caso ainda mais significativo é o da Constituição de

1988, que afirma ser o racismo crime inafiançável. Com a ressalta de que só são

consideradas discriminatórias atitudes preconceituosas ocorridas em público. Atos

privados ou ofensas de caráter pessoal não são julgadas, mesmo porque precisariam de

testemunha para a sua confirmação. (Ora, mas se o racismo era de ordem privada,

camuflado como essa lei poderia puni-lo?) O primeiro artigo da lei já indica a confusa

definição da questão no país: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes de

preconceito contra a raça e cor”, isto é, raça aparece como sinônimo de cor, de modo que

os termos aqui se revelam análogos.

A lei em primeiro lugar épródiga em três verbos; impedir, recusar e negar. O racismo

nesse sentido é o ato de proibir alguém de fazer alguma coisa por conta de sua cor de

pele. Contudo, esse caráter descritivo e direto da lei pouco ajuda quando é preciso punir.

A letra da leifica claro que o racismo no Brasil só é passível de punição quando

reconhecido publicamente. Não há referências quanto à punição do racismo no interior

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do lar ou em locais de maior intimidade. Além disso, ainda que a lei mantenha descrição

detalhada dos locais ou veículos que o racismo pode ser punido, é pouca específica no que

se refere a delimitar a ação da justiça. Só é possível ocorrer prisão quando há flagrante ou

testemunhas e a confirmação do próprio acusado. Apesar de bem intencionada a lei não

dá conta do lado intimista do racismo, do seu lado particular, do seu caráter de ser um

racismo não admitido.

De modo que a lei poucos são os casos de racismo que chegam apesar de inúmeros serem

efetuados diariamente. Neste sentido, se diante da lei tudo parece comprovar um paísde

convivência racial democrática, a luz dos dados recentes essa afirmação soa estranha uma

vez que os números demonstram que não há, na sociedade brasileira, sobretudo, no que

se refere à população negra uma distribuição equitativa dos direitos. Nos espaços públicos

no circuito geográfico, do trabalho, e da renda dos grupos a desigualdade se manifesta na

superioridade dos brancos em relação aos negros. No angulo das praticas penais

brasileiras também é possível ver uma desigualdade racial. Partindo do pressuposto de

que a igualdade jurídica é uma das bases da sociedade moderna, a qual supõe que todo

indivíduo independentemente de sua classe, gênero, geração ou etnia deve gozar de

direitos civis, políticos e sociais, Sérgio Adorno constatou em sua pesquisa uma pratica

penal que varia pautando-se na cor (se é negro é mais perigoso, se é branco não é tanto) o

que demonstrou também que o preenchimento dos formulários criminais resultavam em

um embranquecimento (exemplo de que as pessoas sentem o quanto a cor tornou-se um

caráter moral, uma qualidade social dos indivíduos). O mesmo vale para o acesso à justiça

criminal e ao direito penal.

No quesito intimidade a desigualdade racial atua no âmbito da mortalidade, dos

casamentos, da fecundidade. O que demonstra que a lei não dá conta do lado dissimulado

da discriminação brasileira. No entanto se a questão fosse qualificar o racismo silencioso

esta já estaria completa, a questão mais importante para além do lado político tem como

um obstáculo formal: como identificar quem é negro e quem é branco no país? Como

determinar isto se a questão da cor está ligada a questão moral, para além da questão

fenotípica?

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PARA TERMINAR: “A DESCENDÊNCIA DA FALTA OU LEVANDO A SÉRIO O MITO”.

No Brasil existe uma tentativa contínua de descrever e entender a cor, que na

impossibilidade de explicar a especificidade da convivência racial segue produzindo

versões. O branqueamento enquanto modelo, foi uma descoberta local da mesma forma

que no Brasil raça se apresenta como uma situação passageira e volúvel, em que se pode

empretecer ou embranquecer dependente do contexto, situação econômica, local.