negros contra a ordem_20_05 (definitivo)[1]

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NEGROS CONTRA A ORDEM Astúcias, resistências e liberdades possíveis (Salvador, 1850 - 1888)

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Livro do professor Wilson ROberto de Matos, sobre questões etnico-raciais

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  • NEGROS CONTRA A ORDEMAstcias, resistncias e liberdades possveis

    (Salvador, 1850 - 1888)

  • Universidade do Estado da Bahia - UNEB

    Lourisvaldo Valentim da SilvaReitor

    Amlia Tereza Santa Rosa Maraux Vice-Reitora

    Maria Nadja Nunes BittencourtDiretora da Editora

    Conselho Editorial

    Delcele Mascarenhas QueirozJos Cludio Rocha

    Josemar Rodrigues de SouzaMrcia Rios da SilvaMaria Edesina Aguiar

    Mnica Moreira de Oliveira TorresWilson Roberto de Mattos

    Yara Dulce Bandeira Atade

    Suplentes

    Kiyoko Abe SandesLiana Gonalves Pontes Sodr

    Lynn Rosalina Gama AlvesRonalda Barreto Silva

    Universidade Federal da Bahia - UFBA

    Naomar Monteiro de Almeida FilhoReitor

    Francisco Jos Gomes MesquitaVice-Reitor

    Flvia Goullart Mota Garcia RosaDiretora da Editora

    Conselho Editorial

    ngelo Szaniecki Perret SerpaCauby Alves da CostaCharbel Nin El-Hani

    Dante Eustachio Lucchesi RamacciottiJos Teixeira Cavalcante FilhoMaria do Carmo Soares Freitas

    Suplentes

    Alberto Brum NovaesAntnio Fernando Guerreiro de Freitas

    Armindo Jorge de Carvalho BioEvelina de Carvalho S Hoisel

    Cleise Furtado MendesMaria Vidal de Negreiros Camargo

  • Wilson Roberto de Mattos

    NEGROS CONTRA A ORDEMAstcias, resistncias e liberdades possveis

    (Salvador, 1850 - 1888)

    EDUNEB

  • 2008 By Wilson Roberto de Mattos Direitos de edio cedidos Editora da Universidade do Estado da Bahia - EDUNEBProibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio de impresso, em forma idntica,

    resumida ou modificada, em Lngua Portuguesa ou qualquer outro idioma.Depsito Legal na Biblioteca Nacional

    Ficha Tcnica

    Coordenao EditorialMaria Nadja Nunes Bittencourt

    Reviso Suely Santos Santana

    Editorao EletrnicaSidney Silva

    Capa Tainan Mattos

    Ilustrao da CapaO negro na fotografia brasileira do sculo XIX. George Ermakoff

    Biblioteca Central Reitor Macdo Costa

    Av. Jorge Amado, s/n - Boca do Rio Salvador Bahia Brasil

    CEP: 41.710-050 (71) 3371-0107 / 0148 R. [email protected]

    www.uneb.br

    Rua Baro de Jeremoabo, s/n - Campus de Ondina, 40170-290 - Salvador - BA

    Tel/fax: (71) 3283-6164www.edufba.ufba.br

    [email protected]

    EDUNEB

  • Este livro dedicado memria de Alcides de Mattos, O paizinho.

  • Prefcio

    NEGROS CONTRA A ORDEM: astcias, resistncias e liberdades

    possveis (Salvador-BA 1850-1888) constitui-se como um trabalho de maturidade intelectual, resultado de uma trajetria de pesquisa que teve incio na graduao, passou pelo mestrado e completou-se no doutorado, tendo por tema as experincias das populaes de origem africana e sua importncia nos processos de territorializao dos espaos sociais urbanos ao longo do sculo XIX. Temas como esse e outros

    assemelhados tm sido recorrentes na trajetria de reflexo e pesquisa de um nmero

    considervel de intelectuais negros que, como Wilson Mattos, passaram pelos Programas de Ps-Graduao em Histria ou em Cincias Sociais, da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    Essa opo, ao mesmo tempo poltica e acadmica, est comprometida com um tipo de abordagem fortemente influenciada pela vertente inglesa da Histria

    Social, de um modo geral, e pelos chamados Estudos Culturais, de um modo especfico. notria esta influncia no presente livro quando se observa que

    as referncias que lhe do sustentao terico-metodolgica concentram-se, de modo focado, na historicidade dos conceitos, no quotidiano enquanto campo de investigao e, do ponto de vista poltico, digamos assim, no compromisso de inscrever na Histria-conhecimento e na memria dos herdeiros contemporneos da luta pela liberdade a dignidade daqueles que no se deixaram derrotar pelo terror indizvel da escravido.

    No se trata aqui de uma histria em fragmentos presa a detalhismos do particular. Ao contrrio, a pesquisa, a partir do desdobramento de um objetivo

    mais geral, voltado para a anlise da dinmica das relaes scio-raciais no processo de substituio da mo-de-obra escrava pela mo-de-obra livre, tem como objeto privilegiado as resistncias negras pr-abolio, na capital da Provncia da Bahia, analisada ao nvel das transformaes nas relaes entre o poder pblico local e as populaes negras escravas e libertas, com destaque para a intermediao representada pelas leis e pelas normas, no mbito das suas formas prprias de expresso.

    O duro processo da passagem do mundo do trabalho cativo para o mundo do trabalho livre, com suas tenses e repercusses diversas em todas as dimenses da vida social, tendo como fontes documentos policiais, legislao e outros instrumentos normativos que tenderiam a enfatizar uma imagem do povo preto como uma bigorna nas mos do poder branco senhorial, sem escolhas, se transforma nas mos

  • de Wilson Mattos em um manancial de evidncias apropriado analise da dinmica das relaes entre poder pblico e populaes negras que, no limite das opes interpretativas adotadas, tanto no que diz respeito escolha das problemticas de reflexo, quanto na definio dos fundamentos terico-metodolgicos que do

    sustentao pesquisa desenvolvida, ampliam o conhecimento sobre aspectos pouco explorados do processo mais amplo de passagem, no s de um mundo de trabalho escravo para um mundo de trabalho livre, como tambm dos processos de construo de um complexo desigual e hierarquizado de relaes sociais e raciais que, solidamente ancorada na desigualdade fundamental de um escravismo de mais de trs sculos, viu ruir, aos poucos, esse seu principal pilar de sustentao e legitimidade.

    Destaco no livro o lugar da experincia das classes populares, notadamente das populaes negras, nos processos que, nas dcadas finais do sculo XIX,

    resultaram em mudanas sociais estruturais no somente na Bahia, mas em todo o Brasil. Nas palavras de Wilson Mattos, o presente trabalho - considerando que as

    populaes negras, escravas e no-escravas, influram decisivamente para o desfecho

    desse processo-, procurou identificar as formas como essa influncia se processou e,

    sobretudo, interpretar os seus significados. Continua o autor: [...] embora se saiba

    que, no limite, o que chamamos escravido forjou-se historicamente no mbito das relaes entre senhores e escravos, o seu desenvolvimento, do ponto de vista de uma relao de dominao hierarquizada, desigual, e com evidentes conotaes racistas, teve como garantia de sua longevidade e efetividade um conjunto mais ou menos articulado de dispositivos institucionais, legais, normativos e culturais sem os quais uma dominao desse tipo no teria sido possvel.

    De fato , como bem indicou Claude Meillassoux, o direito, juntamente com a etimologia, contribuiu de forma significativa para se perceber o fenmeno escravido,

    mas foi incapaz de caracterizar as instituies que constituram objetivamente escravos e senhores.

    Ao que parece, o direito permite delimitar com clareza o domnio, o controle direto, o poder de coao e a despersonalizao do africano e sua transformao em cativo, instrumentum vocale, extenso da vontade senhorial. Ora, como bem nos lembra Perdigo Malheiro, a reduo do escravo condio de coisa uma mera fico jurdica. Se no tivermos cuidado, podemos nos tornar prisioneiros de uma

    explicao da escravido vista como fruto exclusivo de relaes individualizadas entre os senhores e seus escravos. Com bastante felicidade, o livro de Wilson Mattos

    avana para alm desta reduo.

  • Dentre outros aspectos de igual importncia, destaco no livro uma questo vital: a temtica da cultura, ou seja, dos significados atribudos pelos sujeitos sua

    prpria experincia. Diz o autor: [...] importou-me, pois, desvendar o sentido dessa

    desigualdade fundamental, na perspectiva dos valores e interesses que informaram, do lado do poder, aes voltadas manuteno da ordem da dominao e, do lado das populaes negras, prticas que ansiavam a liberdade, sem desconsiderar os seus mltiplos significados.

    Apesar do tempo decorrido entre a realizao da pesquisa e a sua publicao, percebe-se, pela originalidade da forma de tratamento das evidncias, pela contemporaneidade da temtica e, sobretudo, pela notria indicao de que as questes tratadas l caracterizam fortemente o atual e acalorado debate em torno da emergncia dos subalternos -tanto no cenrio da histria propriamente dita, quanto nas possibilidades inovadoras de produzir conhecimento sobre ela-, que o livro reveste-se de uma atualidade indiscutvel.

    Leitura obrigatria para todos aqueles comprometidos com o conhecimento relativo aos processos histricos de construo da liberdade em nosso pas, o livro uma expresso acadmica representativa de uma nova gerao de pesquisadores, sobretudo negros, que, forjada no contexto da militncia e das lutas anti-racistas, compem com seus objetos e sujeitos de investigao uma comunidade de destino.

    Algum pensador j disse de alguma maneira que os nossos destinos esto associados aos dos nossos mortos e que eles no descansaro em paz enquanto ns, ao nosso modo e interesse, no nos apropriarmos das suas memrias, arrancando-as das mos dos dominadores de ontem e de hoje.

    Este trabalho tem um qu de um grito de liberdade, na medida em que representa nossos esforos para livrar das garras da supremacia branca acadmica o controle do discurso sobre ns mesmos.

    Ao seguir os rastros dos oprimidos e subalternizados, explorando os significados de suas lutas, Wilson Mattos, irmo e amigo de longas jornadas, recupera

    para todos a incrvel e multifacetada fora da audcia da esperana.

    Paulino de Jesus Francisco Cardoso

    Doutor em Histria Social pela PUC-SPProfessor Adjunto da Universidade do Estado de Santa Catarina

  • Sumrio

    Apresentao 15

    Captulo 1

    Instituies, populaes e culturas em conflito: escolhas

    e opes interpretativas 21

    Captulo 2

    Trabalhadores urbanos:

    um retrato da cidade negra 43

    A fonte: caractersticas gerais e limites 47Aspectos da cidade no final da escravido 48As freguesias urbanas e a presena negra 53Os ganhadores outras caractersticas 60

    Os ganhadores pelas ruas da cidade 74Os cantos de ganhadores: entre a autonomia e o controle 80

    Captulo 3

    O Mundo Negro do Trabalho: controle social e excluso social 91

    Africanos e escravos: a excluso dos indesejveis 106A cobrana de impostos: um complemento eficaz na excluso racial 117Bebedeiras e desordens: as novas prioridades da polcia 124

    Captulo 4

    Resistncias astuciosas: estratgias negras de liberdade 139

    A liberdade no fio da navalha da legalidade 148Captulo 5

    Nos interstcios da ordem: formas de luta, sobrevivncias

    e culturas 163

    O significado do suicdio escravo e a morte: Uma breve sugesto de interpretao 180Insubordinaes e desobedincias: A enunciao do descontentamento 185

    Referncias 201

  • 15

    Apresentao

    O presente livro, com pequenas adaptaes editoriais, , opcionalmente, a verso original da tese de doutoramento por mim defendida no Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria Social da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, em junho de 2000. As reflexes nele contidas nasceram de preocupaes

    intelectuais e polticas ligadas avidez com que venho, desde um bom tempo, tentando compreender os sentidos mais profundos da presena negra na Histria do Brasil. De incio, uma tentativa informada pela necessidade pessoal de avaliar as

    demandas imediatas postas a um militante da luta anti-racista e, posteriormente, essa mesma tentativa, vinculada a um trabalho mais sistemtico de compreenso daqueles sentidos, s que desta vez circunscritos s imposies da formao intelectual e construo da carreira acadmica.

    Em sentido amplo, as populaes negras brasileiras, em especial a dinmica das suas relaes e hierarquias com outros grupos populacionais, tm sido o campo no interior do qual eu seleciono meus objetos e temas de pesquisa e reflexo.

    O primeiro trabalho mais sistemtico e que resultou na minha dissertao de mestrado, defendida na mesma instituio universitria, em 1994, tem como objeto

    as manifestaes religiosas negras na cidade de So Paulo. Concentrando-me nas

    dcadas finais do sculo XIX e no sculo XX, em meio a complexos processos de

    negociaes e conflitos sociais e raciais, analisei aspectos da instituio e construo

    da legitimidade de denominaes religiosas como a umbanda, o candombl , outras prticas religiosas anteriores a estas, inadequadamente nomeadas como macumba paulista, bem como as dimenses do catolicismo negro, expressos na Irmandade de

    Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos.

    Mudando o local, mas, de certo modo, seguindo a mesma trajetria, o estudo que resultou na tese de doutorado e que agora apresentado neste livro teve como objetivo analisar as diversas formas de resistncia negra em Salvador-BA, nas dcadas finais da escravido, adotando a hiptese de que tais formas foram responsveis por

    singularizaes culturais prprias, nos processos de configurao do espao urbano

    da cidade.

    Para a realizao deste objetivo, um dos caminhos metodolgicos adotados foi o de privilegiar o desvendamento de determinados aspectos das relaes entre as populaes negras (escravas, livres e libertas) e o poder pblico local, me debruando

  • 16

    sobre os mecanismos legais e normativos emanados das suas principais instituies, dentre elas, especialmente, as instituies policiais.

    Embora ao longo das primeiras pginas, e mesmo em momentos posteriores, eu tenha me ocupado em especificar a natureza e os limites das fontes com as quais

    trabalhei, adianto que a opo pela sua escolha baseou-se no critrio de preferncia por aquele conjunto de fontes que, ao meu juzo, representava a maior possibilidade de identificao de aspectos capazes de facilitar a apreenso e interpretao

    das formas como as relaes acima mencionadas se instituram e influram nos

    comportamentos urbanos do dia-a-dia. Longe de ser apriorstico, tal critrio nasceu

    da conjugao entre os objetivos iniciais projetados e os primeiros contatos com o universo quase inesgotvel de fontes relacionadas ao perodo, ao local e temtica geral especificada.

    De qualquer modo, dedicar-se a analisar a dinmica das relaes entre o poder pblico e as populaes negras, dependendo das opes que se faa, tanto no que diz respeito s problemticas de reflexo, quanto na definio dos fundamentos

    terico-metodolgicos que as sustentam, pode abrir promissoras possibilidades de interpretao, no s do processo mais amplo de substituio do mundo do trabalho escravo pelo mundo do trabalho livre, como tambm de aspectos importantes do processo de mudanas no carter das relaes e hierarquias sociais e raciais, durante o perodo de crise do escravismo. Considerando que as populaes negras influram

    decisivamente no desfecho desse processo, procuro tambm identificar como essa

    influncia se configurou historicamente e, especialmente, buscar os seus possveis

    significados.

    Embora se saiba que, no limite, a escravido como realidade social construiu-se historicamente no mbito das relaes cotidianas entre senhores e escravos, a sua durao como sistema, durante um perodo de mais de trs sculos, do ponto de vista de uma relao social de dominao racialmente hierarquizada, desigual, opressiva e discriminadora, no pde se fazer sem ter por garantia um conjunto de dispositivos institucionais e culturais, sem os quais um regime de dominao com tais caractersticas seguramente no teria tanta longevidade.

    Importou-me, ainda, desvendar os sentidos dessa desigualdade fundamental,

    na perspectiva dos valores e interesses que informaram, do lado do poder pblico, as aes voltadas manuteno da ordem de dominao diante da escravido em crise e, do lado das populaes negras, aspectos indicativos dos anseios e das lutas pela liberdade possvel, bem como das estratgias de sobrevivncia, considerando-os todos, nas suas mltiplas formas de expresso.

  • 17

    Acrescente-se a isso o fato de que tais valores e interesses instituram marcadas diferenas culturais que ora negociaram solues possveis, ora se radicalizaram como diferenas entre perspectivas e formatos distintos e antagnicos.

    Se do ponto de vista econmico e social, ao longo do processo, o lado do poder se fez hegemnico, aprofundando as hierarquias e desigualdades sob a nova roupagem do autoritarismo e do racismo, de um ponto de vista cultural e poltico essa pesquisa mostrou que, em especial ao longo da segunda metade do sculo XIX,

    tal no se deu sem reiteradas resistncias e contestaes por parte das populaes negras.

    Para contar parte desse intrincado processo, tentando identificar e interpretar

    os sentidos da participao dos seus principais protagonistas, optei em dividir este livro em quatro captulos.

    Na introduo, detalho as dimenses do tema e das problemticas de reflexo,

    bem como especifico as caractersticas e limites das fontes. Finalizo essa parte com

    focadas consideraes pessoais sobre as referncias bibliogrficas que serviram

    como sustentao terico-metodolgica s minhas interpretaes.

    No primeiro captulo, procuro caracterizar a cidade do Salvador-BA, na segunda metade do sculo XIX, do ponto de vista do adensamento da presena negra

    no seu espao fsico, social e econmico.

    A partir de um documento bastante interessante, encontrado no Arquivo Pblico do Estado da Bahia, local onde realizei grande parte das minhas atividades de pesquisa, destaco essa presena negra, concentrando-me na identificao e

    anlise dos detalhes da sua composio, na definio das suas caractersticas no

    que diz respeito organizao das atividades de trabalho e no detalhamento da sua distribuio fsica pelo espao da cidade.

    No segundo captulo, por necessidade de referenciar a anlise em um intervalo de tempo mais adequado aos objetivos do prprio captulo, a pesquisa retrocede um pouco em relao aos limites cronolgicos definidos para a reflexo

    geral. Volto s dcadas iniciais do sculo XIX, objetivando analisar as mudanas

    no mundo do trabalho e suas repercusses na composio e controle da mo-de-obra negra, sobretudo na fase imediatamente posterior ao grande ciclo de revoltas que caracterizou o perodo. Destaco as aes policiais reprimindo e disciplinando as

    condutas cotidianas, bem como as recorrentes intervenes legais excludentes, por parte do poder pblico, que incidiam diretamente sobre a mo-de-obra negra.

    No terceiro captulo, a anlise se concentra na interpretao das variadas prticas de resistncia escravido, empreendidas pelos escravos no interior do quadro das mudanas marcadas pela edio da Lei do Ventre Livre, em 1871. Procuro

  • 18

    interpretar algumas mudanas na dinmica das relaes entre senhores e escravos, do ponto de vista de uma ambientao legal que funcionou como fator ampliador das possibilidades de resistncia e de construo das liberdades possveis.

    No quarto e ltimo captulo, privilegio de forma indistinta variadas prticas cotidianas das populaes negras, contrrias aos ditames da ordem instituda.

    Procuro analisar as estratgias de sobrevivncia e os significados das resistncias

    individualizadas, tais como os suicdios, as fugas, as insubordinaes e as desobedincias. Dei destaque s vrias formaes culturais negras e importncia

    delas na singularizao cultural e poltica do espao urbano da cidade.

    Embora estes sejam aspectos gerais que caracterizam cada captulo, informo que a diviso no foi muito rgida. Houve questes e processos que, de alguma

    maneira, foram discutidos em todos os captulos.

    Muitos foram os que contriburam para a elaborao desse estudo. Alguns

    diretamente, lendo, discutindo partes e opinando sobre a arrumao dos captulos e outros cuja participao indireta criou condies institucionais, estruturais e afetivas para que o mesmo pudesse ser desenvolvido em condies razoavelmente satisfatrias.

    Sou grato ao Paulino de Jesus Francisco Cardoso, amigo e irmo que mesmo fisicamente distante foi um leitor assduo da primeira verso do texto e um interlocutor

    dedicado e crtico nos momentos de impasse.

    professora Estefnia Fraga, minha orientadora e aos demais professores do Programa de Histria da PUC/SP, agradeo por me ajudarem a transformar

    inquietaes pessoais em temas de pesquisa e de reflexo sistemticas.

    O Departamento de Cincias Humanas - Campus V da Universidade do Estado da Bahia, o Arquivo Pblico do Estado da Bahia e a CAPES-MEC, dentro das suas especialidades, deram sustentao institucional ao desenvolvimento do trabalho.

    O apoio dos alunos, amigos e professores de Santo Antonio de Jesus enriqueceu minha experincia profissional e contribuiu para o meu aperfeioamento

    como ser humano, tornando menos rida essa caminhada, em grande parte, solitria.

    Agradeo o carinho e a generosidade de Suely, Ana Rita, Silvia, Denlson, Hamilton, Gil, Silvane, Joilton, Hebert, Selma, Snia, Miguel, Conceio, Augusto, Daniel, Letcia, Verinha, Jaiminho, Brbara, Renata e Valeska.

    Ao Jorge e ao Jnior sou grato por me ajudarem na insalubre, mas fascinante tarefa de decodificar e transcrever manuscritos do sculo XIX.

    Sou imensamente grato e devedor Dona Dirce, minha me, pelo simples fato de nunca terminar de me criar e, igualmente, aos meus irmos Ricardo, Marco,

  • 19

    Cristiane e Viviane, pela amizade, cumplicidade, afeto, carinho, preocupao e um monte de outras coisas que os nossos pais nos ensinaram e que fazem com que nos amemos infinitamente.

    Ao longo do desenvolvimento do trabalho de pesquisa e da redao, naturalmente, contra muitas dvidas de gratido. Espero que este livro compense

    parte daqueles abusos e privaes aos quais eu submeti muita gente da minha estima. Mas, para que eu minimize a culpa de deixar de citar algum importante,

    como sempre acontece, agradeo a todos que contriburam para a realizao deste trabalho em nome daqueles a quem, alm do amor, eu sinto admirao, reverncia, compromisso, um profundo orgulho e uma felicidade imensa por t-los perto de mim sempre: minha mulher Ivy e meus filhos Tainan e Knia.

    Por fim, sou grato aos meus protetores do Orun. Me faltou muita coisa durante

    essa trajetria, menos AX. Amm, Laroi, Ogunh, Odof Iaba!

  • 20

  • 21

    Captulo 1

    Instituies, populaes e culturas

    em conflito: escolhas e opes

    interpretativas

    05 de julho de 1879, So Sebastio das Cabeceiras do Pass, freguesia

    suburbana pertencente ao municpio da capital baiana. Em correspondncia enviada

    ao chefe de polcia, o subdelegado do local, Jos Torquato de Barros, relata os detalhes de uma operao policial.

    Chegou-me s mos o offcio de V.Sa. datado de 6 de junho p.p., hoje 5 de julho, no qual me ordena V.Sa. que lhe informe com urgncia, sobre o cerco que dei casa do africano liberto, de nome Paulo, morador em terras do Engenho Restaurao, do Capm Francisco Agostinho Guedes Chagas; assim como diz V.Sa. ter me officiado no mesmo sentido no dia 16 de abril do corrente anno, officio este q. no recebi. Cumprindo as ordens de V.Sa. passo a dar as informaes que V.Sa. de mim exige. Vindo ao meu conhecimento, por diversas pessoas, que o africano Paulo ttulo de curador e advinhador recebia em sua casa muita gente e neste meio muitos escravos da visinhana que alli se acoitavo, com grande prejuzo de seos senhores e da moral pblica; para alli me dirigi, acompanhado do Alferes Jos Ventura Esteves, e do cidado Pedro Joaquim de Menezes, que a isto espontaneamente se prestaro, do Inspetor de Quarteiro Emigdio Moreira de Queiroz, do official de justia e da fora policial aqui destacada; e chegando, s trez horas da tarde no tal cazebre, mandei pelo cabo commandante do destacamento, pr a casa em cerco, visto que tinha para mais de 60 pessoas, entre forros e escravos, mandando nesta occasio ao dicto Inspector participar ao Capm Chagas, o fim que tinha em mira esta subdelegacia, isto acabar por uma vez com aquelle covil de immoralidades; no se achando, porm o referido Capm em casa, esta participao foi entregue ao seo filho Antonio de Tal, que se apresentando acompanhado de algumas pessoas, quis levantar o cerco, ao que me oppuz e corri a casa, achando dentro, caboreis, cumbucas, diversas qualidades de ps, poro de ossinhos, contas e muitas razes de hervas, o que tudo mandei jogar fora, entregando ao africano Paulo, vista das pessoas que me accompanharo, algum dinheiro de cobre que se achava em um quarto espalhado no cho, como signal, sem dvida, de grandeza, prevenindo ao mesmo Paulo que se continuasse com suas feitiarias o mandaria prender. Dando por finda a diligncia, retirei-me tendo recebido, por este motivo, muitos louvores

  • 22

    das pessoas mais sensatas desta localidade. Convm orientar a V.Sa. que j tenho tido diversas denunciais, que o dito africano, apatrocinado pelo Capm Chagas, continua, em outra casa, a proceder pela mesma forma, e que algum o auctoriza a levar a pau a fora policial quando alli se apresentar. Por agora o que me cabe levar ao conhecimento de V.Sa., no me esquivando a apresentar um abaixo assignado, se assim for preciso, confirmando o mau procedimento do tal Paulo, para que no estejo a levantar castellos areos, em falta de outros afazeres1.

    Episdios parecidos com este multiplicam-se na farta documentao policial

    relativa ao perodo no qual o presente estudo se circunscreve, como de resto, ao longo da maior parte do sculo XIX baiano.

    A bibliografia disponvel sobre temas relacionados a manifestaes da cultura

    negra, seja na Bahia ou em qualquer outro lugar do Brasil, cuja presena negra era significativa, indica no ter sido rara a interveno policial, na maioria das vezes

    violenta, em locais ou templos de prticas religiosas de origem africana.

    No entanto, o relato deste episdio, analisado luz de procedimentos terico-metodolgicos que tm caracterizado a historiografia contempornea, sobretudo a

    historiografia sobre a escravido, potencializa as suas possibilidades interpretativas,

    no obstante o reconhecimento da sua relativa pobreza de detalhes.

    So esses procedimentos, com os quais me ocuparei mais adiante, os informadores das questes que procurei formular sobre esse e outros episdios de natureza semelhante, menos com o intuito de faz-los falar de si, e mais procurando interpretar processos e significados recnditos na trama das relaes sociais e raciais,

    cujo pano de fundo comum era um complexo sistema escravista que, ancorado na experincia cumulativa de trs sculos, comeava a anunciar os seus estertores.

    Mesmo feita a chamada crtica documental, atenta quanto possibilidade de um subdelegado de uma freguesia suburbana incorrer em exageros, superdimensionando a extenso do episdio, com vistas a valorizar o seu feito perante principal autoridade policial da Provncia -observar que a informao oficiada no foi espontnea e sim

    requisitada pelo Chefe de Polcia-, seria um erro primrio no perguntar, por exemplo, o que possibilitou a um africano liberto, ao que tudo indica, um lder religioso, reunir nas possesses de um proprietrio de engenho, provavelmente um oficial da Guarda

    Nacional, com a permisso deste e em plena luz do dia, um nmero to significativo

    de negros libertos e escravos, inclusive acoitando possveis fugitivos.

    1 Arquivo Pblico do Estado da Bahia (Doravante APEB) Colonial/Provincial 1878-1879. Mao 6246.

  • 23

    O que episdios dessa natureza podem significar em termos de uma

    interpretao que adote o binmio resistncia-acomodao, como eixo de compreenso das relaes escravistas nas suas mltiplas variveis, sobretudo nos seus aspectos cotidianos?

    Ou, numa tentativa j necessria de alargar ainda mais as fronteiras interpretativas dos estudos contemporneos sobre as relaes escravistas, caberia perguntar: O que prticas desse tipo externavam como valores culturais prprios que tanto incomodavam, no s s autoridades policiais, mas tambm s chamadas pessoas sensatas das quais o subdelegado regozija-se de ter recebido louvores por sua atuao exemplar?

    Em torno de questes como essas o presente estudo procura problematizar alguns processos histricos especficos relativos aos ltimos anos da escravido

    soteropolitana, sobretudo aqueles que dizem respeito s resistncias cotidianas empreendidas pelas populaes negras.

    Antes, porm, de me apressar em tamanha empreitada, cabe dizer que no clculo dos riscos, a definio do ponto, ou pontos de partida, mesmo no eliminando

    os erros, respondeu pelos possveis acertos, muito embora a insegurana natural de no saber ao certo onde eu iria chegar tenha sido uma constante.

    O tema central deste estudo diz respeito s prticas cotidianas de resistncia empreendidas pelas populaes negras de Salvador-BA, no mbito do processo marcado pela substituio do mundo do trabalho escravo pelo mundo do trabalho livre.

    Procurei equacionar essas prticas de resistncia a partir das relaes hierrquicas estabelecidas entre o poder pblico local, especialmente suas instituies policiais, e as populaes negras, com suas formas relativamente autnomas de organizao do trabalho e ocupao do espao da cidade.

    Embora a natureza das fontes com as quais trabalho -basicamente relatrios de presidentes da provncia e de chefes de polcia, correspondncias oficiais e

    documentos policiais diversos-, possibilite muito mais uma anlise institucional, dada a sua oficialidade, a perspectiva de abordagem objetivou caracterizar a

    dinmica das relaes na cotidianidade da sua construo. Nesse sentido, procurei

    extrair dos documentos oficiais aspectos capazes de me fazer identificar prticas

    sociais e culturais que possibilitassem pensar historicamente as populaes negras, especialmente os escravos, para alm dos enquadramentos terico-metodolgicos que se limitam em abord-las apenas do ponto de vista do seu estatuto jurdico-social ou lugar na estrutura produtiva. Importou-me perscrutar nas tramas da luta

    pela sobrevivncia traos de identidades e culturas, referenciais para os anseios de

  • 24

    liberdade possvel, em meio a um ambiente conjuntural marcado pela crescente interveno disciplinadora e de controle social empreendidas pelo poder pblico.

    As recentes produes historiogrficas acerca da escravido, sobretudo as que vieram a pblico na contra-face crtica das comemoraes do centenrio da abolio, no obstante a postura revisionista em relao s produes anteriores sobre o mesmo tema, reiteram, como estas, a importncia que tiveram os processos implicados na passagem do mundo do trabalho escravo para o mundo do trabalho livre, no que diz respeito s transformaes profundas acarretadas na dinmica histrico-social do Brasil.

    O nmero considervel de estudos, ainda muito concentrados em anlises sobre esse processo de substituio da mo-de-obra ocorrida em So Paulo e no Rio de Janeiro, tem como destaque e ineditismo, pelo menos em termos nacionais, a concepo mais ou menos consensual do papel que os prprios escravos e populaes negras, em geral, desempenharam, no s no processo que culminou na abolio, como tambm no forjar formas possveis de resistncia e sobrevivncia no interior da prpria escravido. Algranti (1988), Azevedo (1987), Chalhoub (1990), Dias (1999), Machado, (1987 e 1994), Mattos (1993) e Wissenbach (1989).

    Tarefa nada fcil, pois as possibilidades interpretativas dessa nova angulao do processo, suas variveis e desdobramentos provocaram esforos no sentido de uma ampla reviso crtica das bases terico-metodolgicas anteriores, assim como a edificao ou adoo de postulados que, ancorados em pesquisas cuidadosas quanto definio precisa das temticas, periodizaes e objetos, pavimentassem o caminho garantindo, dessa forma, o seu rigor historiogrfico.

    No conjunto desses estudos, quase todos voltados para o sculo XIX, o binmio escravido-liberdade, alicerado em um conceito ampliado de resistncia, possibilitou o rompimento justificado com a idia de escravido concebida estruturalmente e, luz de novos significados atribudos a termos conceituais mediadores, como por exemplo: paternalismo, hegemonia, cultura e experincia facilitou o desvendamento das mltiplas variveis implicadas na relao fundamental entre senhores e escravos2.

    Dessa forma, temas como tica prpria de trabalho, direitos costumeiros, autonomia relativa, peclio, negociaes, resistncias cotidianas, acomodaes etc., ganharam relevncia como possibilitadores de interpretaes mais amplas e pormenorizadas, voltadas ao entendimento da complexidade das relaes escravistas no seu devir instituinte. Nesta perspectiva, se priorizou mais os sujeitos do que as

    estruturas.

    2 Mesmo integrado a esta perspectiva, o trabalho de Lara (1988), diferentemente dos outros, concentra-se no sculo XVIII.

  • 25

    Percorrendo uma bibliografia temtica mnima, com o objetivo inicial

    de identificar aspectos referenciais capazes de substantivar a documentao

    preliminarmente levantada e auxiliar na melhor definio das problemticas de

    pesquisa, fiquei convencido de que as mediaes que davam concretude relao

    fundamental entre senhores e escravos e que tambm estabeleciam padres sociais e culturais desejveis no interior dos quais as outras relaes verticais deveriam conformar-se passaram, no ps-independncia, a ganhar como substrato geral um conjunto de dispositivos legais numa crescente tentativa de institucionalizao das relaes sociais com base no direito positivo de estrato liberal. Evidentemente,

    ancorado em uma concepo de liberalismo ajustado aos interesses dos grupos dominantes.

    Alm da constituio de 1824 onde j se observava um contorno da viso de mundo escravista codificada, o Cdigo Criminal de 1830 um marco na substituio do Livro V das Ordenaes Filipinas, um amontoado secular de disposies draconianas e inoperantes que erigia o crime em pecado e os vcios em delito. (MALERBA, 1994, p.10)

    Embora no seja desnecessrio discutir com mais detalhes as caractersticas

    e limites do liberalismo brasileiro e, de modo particular, do liberalismo baiano do sculo XIX, em razo da sua vinculao s formas como as elites polticas pensaram

    e agiram no sentido da superao da escravido, convm, nos limites do presente estudo, destacar apenas o seu carter no democrtico, tomando emprestado, por concordncia, a hiptese sustentada por Adorno (1988)

    [...] a ciso entre princpios liberais e princpios democrticos, sistematicamente reatualizada pelo jogo entre duas opes polticas antagnicas - o radicalismo e o conservadorismo-, se manifestou desde as lutas pela independncia, ganhou corpo nos movimentos verificados do nordeste ao sul, ao longo de quase sete dcadas de vida monrquica, e encontrou seu ponto de convergncia e apoio na ao do Estado. Progressivamente as foras populares foram expulsas do mbito institucional e silenciadas as reivindicaes verdadeiramente democrticas. Em contrapartida, a luta pelas liberdades se sobreps e mesmo obscureceu a luta pela igualdade. Desse modo, pouco a pouco, o liberalismo moderado e conservador, distante das preocupaes em democratizar a sociedade brasileira, passou a informar a ao poltico-partidria de homens que acabaram se configurando verdadeiros artfices do Estado Nacional. (ADORNO, 1988, p.25)

  • 26

    Em Salvador, assim como em outras cidades escravistas do Brasil, o poder pblico local, no perodo ps-independncia, alm de ser responsvel por um ordenamento pblico geral, foi assumindo a funo de disciplinar os comportamentos pblicos da populao escrava e negra, de uma maneira geral, diminuindo aos poucos as prerrogativas senhoriais de domnio.

    Parece ter havido, pelo menos do ponto de vista legal, uma certa diferena entre os interesses pessoais e imediato dos proprietrios de escravos, e um interesse mais geral e extensivo por parte do poder constitudo que, de certa forma, respondia s demandas de construo de uma nao afinada, seno com princpios gerais e

    extensivos de liberdade e igualdade, pelo menos com expedientes tpicos adequados ao que era considerado moderno, nos termos de um liberalismo nacionalmente possvel. Este processo assume uma forma mais definitiva a partir da lei do Ventre

    Livre, editada em 1871.

    Koerner (1988), referindo-se ao perodo posterior a essa lei, informa ter

    havido uma tendncia do judicirio em dar ganho de causa aos escravos nas aes judiciais de liberdade. Afirma o autor que,

    [...] para os senhores, os magistrados tornavam-se parciais, porque, ao conceder a liberdade a escravos, as suas decises contrariavam os seus interesses imediatos e ajudavam a precipitar a extino da escravido. Nos processos em que era julgado o direito de escravos liberdade torna-se manifesta a oposio entre parte dos membros do Poder Judicial e os interesses de parte das classes dominantes brasileiras. (KOERNER, 1988, p.14)

    Em um captulo sugestivamente intitulado: A Poltica da Abolio: O

    Rei contra os Bares, Carvalho (1996), baseando-se nos debates parlamentares

    em torno das leis emancipacionistas, como a prpria Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenrios, editada em 1885, assim como observando por regio a proporcionalidade dos votos dos parlamentares sobre as respectivas leis, assegura a existncia de um relativo descolamento do Estado Imperial frente ao poder dos

    proprietrios de escravos, sobretudo os grandes proprietrios, e a implementao paulatina de medidas liberalizantes, ainda que sob ingerncia do poder moderador.

    No nvel mais amplo, o poder imperial, sustentado no relativo controle dos gabinetes, se encarregava de tal tarefa, cabendo aos poderes locais intervenes e mudanas nos nveis menores. A bem da verdade, bom que se diga, mudanas que no

    representassem riscos sustentao da estrutura de dominao das elites.

    No obstante a pertinncia de tal hiptese, a anlise das peculiaridades da escravido urbana, associada opo por um enquadramento metodolgico que

  • 27

    elegeu como prioridade o desvendamento dos aspectos relacionais desse tipo de escravido atravs das suas formas cotidianas de expresso, obrigou-me a desdobrar a hiptese em problemticas de reflexo que referenciassem a opo nos limites

    das especificidades de uma cidade como Salvador, cuja caracterstica fundamental,

    no perodo que compreende s ltimas dcadas da escravido, era abrigar uma populao negra, estimada pelo censo de 1872 em mais de 70% da populao total.

    Se esse dado em si j digno de nota, no menos importante observar que, a exemplo de outras regies escravistas brasileiras no mesmo perodo, em Salvador houve um declnio expressivo do nmero e, como conseqncia, da proporcionalidade da populao escrava em relao populao livre e liberta.

    Os dados disponveis informam que entre os finais do sculo XVIII e primeira

    metade do sculo XIX, embora tenha havido uma certa estabilidade no percentual

    de escravos existentes em Salvador, oscilando em torno de 40% da populao total,

    ao longo da segunda metade do sculo XIX, com a proibio do trfico internacional,

    com as perdas atravs do trfico interprovincial e com a ampliao das possibilidades

    de emancipao escrava, essa proporo vai diminuindo. Cai, j em 1855, para

    27,46% e, em 1872, para 11,6%. (ANDRADE, 1988, p.29)

    Convm observar, entretanto, que na Bahia, embora a escravido decrescesse em ritmo acelerado, a sua importncia ainda era significativa se comparada s demais

    provncias da Regio Nordeste. Mesmo que se compare a Bahia com as provncias

    do Sudeste que experimentaram, via trfico interprovincial, um crescimento da

    populao escrava no perodo, demandadas, sobretudo pelas atividades cafeeiras, a importncia da escravido continua considervel. No Nordeste, a Bahia foi a

    provncia com maior nmero de escravos at s portas da abolio. No Imprio como

    um todo, era a terceira em 1873, perdendo apenas para o Rio de Janeiro e Minas

    Gerais, e a quarta em 1887, incluindo So Paulo entre as trs primeiras provncias

    com maior nmero de escravos.

  • 28

    Tabela 1PROPORO DO NMERO DE ESCRAVOS POR

    PROVNCIA (%)

    NORDESTE

    PROVNCIA 1873 1887

    Bahia 11,2 10,6Pernambuco 6,0 5,7Maranho 4,8 4,6Cear 2,2 0,0Alagoas 2,1 2,1Sergipe 2,1 2,3Paraba 1,7 1,3Piau 1,6 1,2R.G. do Norte 0,9 0,4

    SUDESTE

    PROVNCIA 1873 1887

    Minas Gerais 21,5 26,5Rio de Janeiro 19,7 22,5So Paulo 11,0 14,8Esprito Santo 1,4 1,8

    Fonte: SLENES, Robert W. The Demography and economics of brazilian slavery. 1850-1888. Stanford University, 1976. p.691, e Relatrio do Ministro da Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas de 1888.

    Apud. CARVALHO. Jos Murilo. Teatro de Sombras. Op. cit. p. 292.

    Os historiadores baianos que analisaram esses dados3 nos alertam que deve-se levar em considerao as possveis imprecises acarretadas pela insuficincia

    dos instrumentos censitrios da poca. No entanto, mais do que os nmeros, o que

    importa atentar para uma tendncia notria de queda da escravido na Bahia.

    Seguramente, essa queda deve ter infludo no comportamento social das populaes

    da cidade de Salvador, especialmente na dinmica das suas relaes.

    3 Reis (1986), Andrade (1988), Oliveira (1988) e Mattoso (1992).

  • 29

    Tanto o declnio do nmero de escravos quanto a presena majoritria das populaes negras, de um modo geral, na cidade, obrigam-me a um dimensionamento analtico que considere a importncia que o poder pblico local assume como instncia de controle social diante de uma escravido em franco declnio, mas ainda alicerce institucional da ordem e sustentculo de um ethos de dominao socialmente traduzido em imposies de subordinao e obedincia.

    O que aqui nomeado como alicerce institucional da ordem d mostras de sua efetividade prtica em um fato acontecido em Salvador no ano de 1857: a

    paralisao grevista dos ganhadores4 negros durante o tempo de uma semana.

    Com base no estudo feito por Reis (1993) sobre essa greve, sabemos que ela foi

    empreendida por negros ganhadores (escravos, livres e libertos), que se posicionaram contrrios s imposies da Cmara Municipal de Salvador. Uma Postura

    aprovada por esta Cmara sujeitava os ganhadores -mo-de-obra quase exclusiva na dinamizao das atividades comerciais e servios urbanos-, a algumas medidas de controle. Obrigava cada ganhador a se matricular e pagar por essa matrcula,

    impunha o uso individual de uma chapa de metal como instrumento de identificao

    e requisitava dos ganhadores libertos a apresentao de um fiador.

    A vitria parcial conseguida, a princpio, com a anulao da taxa de matrcula, talvez se estendesse revogao das outras disposies obrigatrias, se a partir do terceiro dia de greve os ganhadores escravos, pressionados pelos seus senhores, no fossem obrigados a retornarem ao trabalho, contribuindo, involuntariamente, para o fim do movimento.

    Uma eventual desobedincia por parte dos ganhadores escravos poderia redundar em castigo, reduo e at suspenso de sua parcela do ganho, podia, inclusive, comprometer a alforria, que dependia, alm do dinheiro, da boa vontade dos senhores. (REIS, 1993, p.24) Sendo assim, procedente sugerir que um dos

    limites da greve, talvez o mais definitivo, foi a institucionalidade da ordem escravista,

    influindo no s na mediao das relaes de trabalho urbano, como tambm, e

    sobretudo, nas relaes sociais mais amplas envolvendo poder pblico, populaes negras, comerciantes e proprietrios de escravos.

    Se por um lado, a vitria, mesmo que parcial, dos ganhadores negros tem significados claros nos termos da concepo de que as populaes negras influram

    decisivamente no processo gradual de derrocada do sistema escravista, por outro lado, seria metodologicamente incorreto no considerar que a prpria dinmica

    4 A qualificao ganhador referia-se aos escravos que trabalhavam nas ruas exercendo atividades mecnicas, artesanais, ou prestando algum servio, como por exemplo, carregar volumes ou cadeiras de arruar. No entanto, a designao se estendia tambm aos trabalhadores no-escravos que exerciam as mesmas atividades.

  • 30

    escravista urbana era o pano de fundo comum sobre o qual se inscreveram as aes negras de resistncia que tentaram se projetar para alm das suas determinaes.

    Dentre outras, a prpria greve um exemplo.

    As histricas prerrogativas senhoriais, reconhea-se, j fludas em uma

    escravido de dinmica urbana e declinante, pelo menos da segunda metade do sculo XIX em diante, cedem espao para a emergncia de dispositivos voltados para

    o controle e disciplinarizao de uma populao pobre, negra e, majoritariamente, livre, cujo passado de rebeldia e caractersticas culturais prprias, apesar da heterogeneidade da sua composio, representava srias ameaas ordem.

    No que diz respeito s aes normalizadoras e disciplinares que mediavam as relaes entre o poder pblico e as populaes negras, a minha opo metodolgica foi por apreend-las usando privilegiadamente os documentos policiais, evidentemente sem desconsiderar as outras fontes mencionadas. Tal opo mostrou-se produtiva

    na medida em que o contato inicial com documentos ordinrios produzidos pela polcia, tais como os pedidos de castigo e soltura de escravos, os mapas de presos nas cadeias pblicas e as vrias correspondncias trocadas entre as autoridades policiais possibilitaram um dimensionamento da normatividade oficialmente imposta. Em

    contrapartida, uma leitura a contrapelo desses documentos me colocou diante de uma srie de prticas cotidianas que caracterizaram os processos de ocupao e singularizao da cidade, para alm do que impunha as autoridades constitudas.

    O trabalho com documentos policiais, quanto s expectativas deste estudo, assemelha-se aos vrios outros que convergem na consolidao de caminhos fecundos de interpretao das relaes escravistas resumidos em torno do que se convencionou nomear Histria Social da Escravido.

    Embora na maioria desses trabalhos os seus autores elejam como principal referncia documental fontes seriais de mais longo alcance e regularidade, como por exemplo os processos-crime, o uso de fontes policiais rotineiras diversas e irregulares me possibilitou algo talvez mais inusitado na interpretao social da escravido, ou seja, analisar a dimenso da chamada criminalidade escrava ao nvel das suas manifestaes cotidianas que na grande maioria das vezes no chegava a ocasionar a formulao de processos judicirios. No s a criminalidade em si, mas, sobretudo

    a intrincada rede de relaes, as concepes, as prticas culturais e os valores passveis de serem apreendidos nas entrelinhas dessa documentao. Concretizados

    no dia-a-dia das ruas, esses aspectos, ora antagonizavam, ora associavam os atores sociais nas suas individualidades, quer fossem eles senhores, escravos, negros libertos, pequenos e grandes comerciantes ou policiais.

  • 31

    Ganhadores, mendigos, capoeiristas, vendeiros, aguadeiros, candomblezeiros, carregadores de cadeiras de arruar, carroceiros, quitandeiras e outros citadinos, na grande maioria, pobres e negros, alguns escravos, outros no, tiveram, algumas vezes, seus nomes, cores e condio social revelados nos relatos policiais sobre uma briga, sobre a freqncia a algum candombl, sobre uma fuga, uma bebederia, um assassinato ou sobre um furto.

    Esses relatos policiais ordinrios so tipos de fontes que, como compensao a um certo desconforto causado pela sua diversidade e ausncia de uma regularidade serial, uma vez tratadas com abordagens e mtodos adequados, nas palavras de Dias (1995)

    [...] libertam aos poucos os historiadores de preconceitos atvicos e abrem espao para uma histria micro social do cotidiano: a percepo de processos histricos diferentes, simultneos, a relatividade das dimenses da histria, do tempo linear, de noes como progresso e evoluo, dos limites do conhecimento possvel, diversificam os focos de ateno dos historiadores antes restritos aos processos de acumulao de riqueza, do poder e a histria poltica institucional. (DIAS, 1995, p.14).

    O uso concomitante de fontes oficiais mais regulares, tais como os relatrios

    dos presidentes de Provncia, os relatrios dos chefes de polcia, a legislao etc., me

    permitiram a apreenso das idias e concepes oficiais, relativas manuteno da

    legalidade e da ordem pblica.

    Costa (1989), valendo-se das contribuies de Michel Foucault acerca das

    diferenas entre os dispositivos legais e os dispositivos normalizadores que, ao lado da lei, respondiam pela eficcia do poder, enxerga nos processo de modernizao das

    grandes cidades, ao longo do sculo XIX, uma combinao eficiente entre elementos

    terico-racionais criados a partir de saberes, como enunciados cientficos,

    concepes filosficas, figuras literrias, princpios religiosos etc. e de regras de

    ao prtica materializadas em tcnicas fsicas de controle corporal, regulamentos administrativos de controle do tempo dos indivduos ou instituies, tcnicas de organizao arquitetnica do espao, tcnicas de criao de necessidades fsicas e emocionais etc. (COSTA, 1989, p. 50 ),

    Em uma perspectiva aproximada, confrontar as prticas negras de resistncia cotidiana com as idias e aes do poder pblico voltadas edificao de padres

    normalizadores e disciplinares pode possibilitar uma leitura diferencial da dinmica

  • 32

    das relaes sociais e raciais, elucidando aspectos precisos da complexa rede de dominaes e resistncias que permeou o sistema escravista em toda sua extenso.

    Azevedo (1987), observando a distncia social que separava material e

    moralmente as elites das populaes negras, comenta que escapava a estas elites

    [...] a percepo do cotidiano dos negros, das suas relaes sociais e culturais; e o que hoje se reconhece como formas de resistncia, naquela poca, mesmo entre as mentes mais humanitrias, passava por desordem, desenfreamento, paixes soltas e criminosas. (AZEVEDO, 1987, p.176)

    Por uma questo de adequao metodolgica, essas formas de resistncia,

    consideradas pelas elites como criminosas, foram por mim nomeadas aqui como prticas de transgresso da ordem instituda. Das hipteses com as quais trabalho,

    destaca-se aquela que considera essas prticas de resistncia como indicativas de diferenas entre perspectivas culturais distintas: De um lado, o poder pblico, representante institucional da ordem, ocupado em forjar novos padres de convivncia e relaes sociais urbanas diante do declnio da escravido e, do outro, as populaes negras que marcaram presena na cidade, no s por sua maioridade numrica, mas, sobretudo, pelas formas prprias de ocuparem e singularizarem o seu espao fsico e social. Formas essas cujos tons, extenses e caractersticas me autorizam consider-

    las como formas culturais.

    Evidentemente, tais formas construram-se ao longo de mais de trs sculos de escravido e, certamente, durante todo esse perodo nunca deixaram de se constituir como motivo de incmodo e apreenso por parte das autoridades pblicas e dos proprietrios. No entanto, o objetivo do presente estudo no foi o desvendamento

    meramente informativo dessas formas em si mesmas, mas a interpretao dos seus significados circunscritos a uma conjuntura histrica indita, qual seja, a crise

    definitiva do sistema escravista, em especial, naquele seu aspecto capital: a runa das

    bases social, jurdica e moral do domnio senhorial.

    A lei do Ventre Livre de 1871, reconhecendo alguns direitos, deu ao escravo

    uma certa personalidade legal instituindo uma intermediao institucional entre o escravo e o seu proprietrio. Mas antes de comentar sobre os aspectos e a importncia

    desta Lei, vejamos como o seu significado transcende o seu aspecto meramente

    jurdico.

    Chalhoub (1990), ao especificar o significado poltico da lei do Ventre

    Livre, cita um discurso em que o eminente jurista e historiador Perdigo Malheiro,

  • 33

    se mostrando contrrio aprovao da Lei, anuncia as caractersticas da crise do domnio senhorial.

    [...] entendo que no podemos impunemente afrouxar as relaes do escravo para com seu senhor, que hoje prendem to fortemente um ao outro, e que so o nico elemento moral para conter os escravos nessa triste condio em que atualmente se acham, quais so as que resultam daquele poder. Se ns rompermos violentamente esses laos, de modo a no se afrouxarem somente, mas a cort-los, como a proposta o faz [...] a conseqncia ser a desobedincia, a falta de respeito e de sujeio. Eis um dos mais graves perigos. Essa proposta, em todo o seu contexto, no tende a nada menos do que romper violentamente esses laos morais que prendem o escravo ao senhor. (MALHEIRO, 1899, Apud. CHALHOUB, 1990, p.142)

    A lei do Ventre Livre, apesar dos alertas de Perdigo Malheiro, indica o esgotamento da possibilidade de convivncia mais ou menos equilibrada, ainda que contraditria, entre uma ordenao jurdico-poltica formalmente liberal e uma realidade de relaes sociais e raciais fundamentadas no estatuto da escravido.

    Demandas internas e externas pela implementao de um mundo de trabalho afinado com os princpios de liberdade chocavam-se, agora de forma mais intensa,

    com os direitos de propriedade escrava em meio emergncia de um iderio de desenvolvimento econmico social e civilizatrio que traduzia-se, sobretudo, na condenao da prpria escravido.

    Marco jurdico do processo de uma transio segura rumo ao mundo de trabalho livre que representasse o menor risco possvel de desestabilizao das estruturas de dominao e poder, a lei do Ventre Livre pode ser interpretada tanto como um expediente legal de interveno do Estado no mbito da relao fundamental entre senhores e escravos, portanto representando uma transferncia, ainda que parcial, das prerrogativas senhoriais de domnio, quanto como reconhecimento legal de algumas demandas escravas por direitos j legitimados costumeiramente.

    De um certo ponto de vista, tomo aqui a lei de Ventre Livre e seus significados

    como um dos caminhos apropriados interpretao de processos sociais de amplo alcance, resultantes de modificaes nas relaes entre senhores e escravos, em

    concomitncia com a emergncia de uma espcie de consenso civilizatrio que construiu sua hegemonia tendo por base a defesa do trabalho livre, e tendo no Estado o seu representante institucional mais forte.

  • 34

    Sendo assim, a legalizao do peclio escravo e da compra da alforria por indenizao de valor acordado, ou em caso de litgio, arbitrado; a proibio de separao de famlias, filhos menores de 12 anos e cnjuges; a anulao da revogao

    das alforrias por motivos subjetivos, como a ingratido; assim como outros expedientes de igual natureza corporificados na Lei no devem ser interpretados como obra

    da repentina iluminao liberal de parlamentares e escravocratas arrependidos, e sim como indicao da existncia de um campo de presses e lutas polticas e sociais, cujos contornos merecem investigao. Campo este no qual as populaes

    negras, ao experimentarem o cotidiano da escravido forjando estratgias prprias de sobrevivncia e resistncia individual ou coletiva foram, em todos os nveis, partcipes ativos da sua definio.

    Se institucionalmente tal definio condensa-se na Lei, esta, embora indique

    um horizonte possvel rumo liberdade iminente, ao contrrio de esgotar em si o seu significado, denota formas de lutas sociais que transcendem seu carter

    institucional.

    Os aspectos, digamos, humanitaristas da Lei, codificados juridicamente como

    direitos, representaram um golpe irreversvel nas principais bases de sustentao do escravismo. De um lado, a possibilidade de deslizamento dos expedientes

    paternalistas que sustentavam o sistema na base da relao pessoal, sem ou com um mnimo de intermedirios legais ou institucionais e, de outro, a interveno limitativa na principal prerrogativa de dominao senhorial, qual seja, o direito quase que irrestrito dos senhores de dispor da sua propriedade escrava como bem lhes aprouvesse.

    Levando at o limite a concepo historiogrfica que enxerga os escravos como

    sujeitos dos processos histricos nos quais eles se viam envolvidos, procede aventar a hiptese de que os cativos souberam tirar partido dessa nova situao, transformando o horizonte legal da liberdade em um caminho, no o nico, evidentemente, de lutas, reivindicaes e afirmao de direitos.

    No que diz respeito escravido urbana, com suas caractersticas prprias, acrescenta-se a possibilidade de ampliao da j efetiva autonomia relativa, traduzida em hbitos e prticas cotidianas que, cada vez mais distantes do controle senhorial, imprimiam um ritmo prprio dinmica social das cidades, exigindo por parte dos poderes pblicos afinao e aperfeioamento dos mecanismos de disciplina e

    controle.

    Posso afirmar que esse o quadro referencial mais amplo no interior do

    qual me ocupo em interpretar as especificidades da relao entre poder pblico e

    populaes negras na cidade de Salvador, durante a segunda metade do sculo XIX.

  • 35

    A formulao de problemticas de reflexo e escolhas temticas semelhantes

    a essas que venho discutindo inscrevem-se no mbito de um universo de debates e de produo de conhecimento histrico sobre a escravido cuja caracterstica principal foi o rompimento com esquemas interpretativos estruturais, substituindo a chamada teoria do escravo-coisa pela teoria do escravo-sujeito. Se no convm

    mais especificar os termos desse debate, j por demais conhecido, talvez no seja

    desnecessrio algumas palavras, ainda que breves, sobre o que dele resultou como saldo positivo, do ponto de vista terico-metodolgico. O estudo aqui apresentado,

    embora tenha a pretenso justificada de ir um pouco alm, toma como base os seus

    pressupostos. Para tanto, oportuno me valer de uma citao lapidar que sintetiza em

    poucas palavras o que chamo acima de teoria do escravo-sujeito.

    As relaes entre senhores e escravos so fruto das aes de senhores e escravos enquanto sujeitos histricos, tecidas nas experincias desses homens e mulheres diversos, imersos em uma vasta rede de relaes pessoais de dominao e explorao. Uma relao de dominao e explorao que, de modo contraditrio, unia horizontalmente e separava verticalmente homens e mulheres como senhores e escravos e que, atravs de suas prticas cotidianas, costumes, lutas, resistncias, acomodaes e solidariedades, de seus modos de ver, viver, pensar, agir, construram isso que, no final das contas chamamos de escravido, de escravismo [...] homens e mulheres que, como escravos, impunham limites vontade senhorial, possuam projetos e idias prprias pelos quais lutavam e conquistavam pequenas e grandes vitrias. (LARA, 1995, p.46-47)

    Adequando o rigor da afirmao s especificidades do meu objeto de reflexo,

    apenas acrescentaria que a malha dessa vasta rede de relaes pessoais de dominao, explorao e resistncias estendia-se tambm aos segmentos populacionais livres, especialmente negros que, mesmo fora da rbita binria senhor-escravo, eram parte constitutiva e ativa do que, ao final das contas, a historiografia nomeia como

    escravido.

    clara a influncia decisiva que historiadores como Thompson (1981)

    e Genovese (1988) exercem na definio de tal perspectiva. Thompson (1981),

    sobretudo, a partir da crtica ortodoxia e reorientao terico-metodolgica em torno de termos conceituais, at ento modelares, como classe social e luta de classes, assim como com a especificao da riqueza e possibilidades interpretativas de termos

    mediadores, como cultura e experincia; e Genovese (1988), com a fora da idia de

    que, na dinmica das relaes entre senhores e escravos, no interior de uma espcie de economia de conduta paternalista que os aproximava, no sem conflitos, em meio

  • 36

    a resistncias e acomodaes cotidianas forjou-se espaos no interior do qual os escravos edificaram um mundo prprio, alis, idia esta que compe a traduo do

    sub-ttulo de um dos seus livros mais citados entre ns: O mundo que os escravos criaram.

    Reconhecidas as influncias gerais mais notrias, penso que o novo significado

    atribudo ao termo paternalismo, uma espcie de mediador moral das relaes escravistas, ao lado da concepo de experincia como lastro histrico concreto no fazer-se das coletividades mais amplas, com implicaes formativas ao nvel da sua conscincia e cultura, libertou a historiografia sobre a escravido dos esquemas

    interpretativos tradicionais pouco ou nada flexveis, possibilitando a emergncia de

    temas que, at ento, permaneciam latentes ou silenciados.

    Ricos e variados so os estudos disponveis circunscritos, uns mais outros menos, ao universo dessas referncias gerais. Entretanto, me parece da maior urgncia,

    do ponto de vista historiogrfico, contribuir para que, a partir dessa referncia j

    consolidada, se ampliem ainda mais as possibilidades de reflexo sobre a escravido,

    seja do ponto de vista das abordagens, ou do ponto de vista dos temas.

    Creio que no transcorrer desses ltimos vinte anos, pelo menos, salvo excees pontuais que acabam por confirmar a regra, o carter de novidade apresentado pela

    postura acima apontada, ao exigir esforos concentrados, no sentido de consolidar uma posio historiogrfica do ponto de vista da construo do seu rigor terico-

    metodolgico, pouco espao deixou para inovaes temticas mais ousadas.

    S mais recentemente, consolidada uma posio no campo da historiografia,

    puderam surgir trabalhos sobre escravido e experincias de populaes negras, no mais presos aos circuitos daquele debate, e sim voltados para a pesquisa de temas inditos.

    Um exemplo original na historiografia brasileira sobre experincias negras

    a tentativa de inovao temtica e metodolgica empreendida por Sidney Chalhoub (1996). Em um sub-captulo intitulado: Razes culturais negras da tradio

    vacinophobica, atravs de um mtodo, originalmente, por ele batizado de saltos e saltinhos, emprestado personagem machadiana Capit, o autor busca na tradio africana dos mitos das divindades da terra, como Omol/Obaluaie (nag) ou Xapan

    (Jeje), valores culturais-religiosos que, transplantados ao Brasil no processo do trfico, seriam orientadores culturais na reao popular vacinao obrigatria

    contra a febre amarela, no conflito conhecido como Revolta da Vacina, ocorrido no

    comeo do sculo XX, na cidade do Rio de Janeiro.

    Citando outro historiador original na adoo de um mtodo semelhante, continua o autor:

  • 37

    Robert Slenes5 vem demonstrando que as culturas religiosas da frica Central informavam muito do que os escravos do sudeste pensavam de sua condio, sendo mesmo decisivas na articulao de formas de resistncia ao cativeiro. Sendo assim o que necessrio fazer para reforar a hiptese da importncia de Omol na resistncia vacinao, mostrar a possibilidade real de reinterpretao desse orix em termos dos pressupostos cosmolgicos bsicos de povos da frica Central. (CHALHOUB, 1996, p.144).

    exatamente esse o procedimento do autor ao longo do sub-captulo referido.

    Atravs de saltos longos (frica-Brasil) e saltinhos menores (Bahia - Rio de Janeiro), na busca dos referenciais culturais-religiosos que sustentam os cultos s divindades como Omol, na frica e no Brasil, o autor confere plausibilidade sua hiptese, confirmando sua procedncia.

    Em relao Bahia, h trabalhos como o de Reis (1991), e o de Oliveira

    (1988) que, embora adotem outros pressupostos metodolgicos e caminhem por

    outras searas, cada um a seu modo, transitam ambos em torno de um tema caro s sociedades africanas de uma maneira geral, qual seja, a concepo de morte e, nessas sociedades, a sua decorrncia necessria, a concepo de ancestralidade.

    Resta-me observar, ainda, que as reflexes em torno do termo, territorialidade

    e de sua decorrncia prtica, territorializao, tal qual definido por Sodr (1988)

    em uma publicao sugestivamente intitulada: O Terreiro e a Cidade, teve peso substancial no presente estudo, na medida em que indicou um caminho possvel de interpretao das formas como as populaes negras da capital baiana ocuparam e singularizaram culturalmente o espao fsico e social da cidade.

    Concebendo o espao fsico ocupado como um lugar de cultura, o autor observa que:

    [...] a territorializao no se define como um mero decalque da territorialidade animal, mas como fora de apropriao exclusiva do espao (resultado de um ordenamento simblico) capaz de engendrar regimes de relacionamentos, relaes de proximidade e distancia (...) o territrio aparece assim como um dado necessrio formao de identidade grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros. (SODR, 1988, p.14-15)

    5 De uma outra forma Roger Bastide, Pierre Verger e outros estudiosos das religies negras no Brasil j trabalharam nesta perspectiva. No entanto, salvo engano, no campo da historiografia, o trabalho de Slenes (1991/1992) inaugural.

  • 38

    Podemos dizer que a idia de territorializao, entendida como processo relacional que define espaos e identidades, permite transcender os limites do

    dado fsico apenas, passando a referenciar-se, sobretudo, nas formas como grupos humanos especficos singularizam prtica e simbolicamente, portanto culturalmente,

    a ocupao de um espao fsico, ao mesmo tempo em que constroem o seu significado

    histrico-social. Dessa forma, definir o valor interpretativo do termo, territrios

    negros, implica considerar prticas e valores culturais que se tornam prprios s populaes negras, na medida das relaes de proximidade e distncia com prticas e valores que se lhes mostram contrrios. No caso especfico deste estudo, idias

    e aes dominantes, cuja materialidade expressava-se em medidas claramente institudas para o controle, subordinao e disciplinamento das populaes negras no espao da cidade.

    Nesse sentido, a prpria existncia de espaos fsicos e sociais conquistados pela populao negra em meio dinmica da escravido urbana, tais como a relativa autonomia dos cantos de ganhadores escravos e libertos, a apropriao das ruas atravs das atividades de trabalho urbano com tempos e ritmos prprios, os terreiros de candombl e irmandades catlicas negras, os quilombos suburbanos, as juntas de alforria e outros espaos similares configuraram-se no somente como vislumbres

    ou pequenas parcelas de uma liberdade possvel nas fmbrias do sistema escravista, mas tambm como espaos-territrios instituintes de um universo cultural prprio, resistente s adversidades de uma conjuntura social e racialmente desfavorvel.

    Se para o autor parece

    [...] adequado adotar essa tica -territrios negros- nas relaes funcionais de coexistncia, quando se trata de examinar as formas assumidas pela vida -formas sociais- de certos grupos de descendentes de escravos no Brasil, em face das diferenas com os grupos de dominao -o universo do senhor, (SODR, 1988, p.14-15)

    a esse estudo, particularmente, interessou desvendar essas formas no que elas tm de significativas para a interpretao de aspectos peculiares do escravismo

    soteropolitano no perodo de crise terminal do sistema.

    Sodr (1988) afirma existir uma dimenso territorial no mbito de uma

    dada cultura.

  • 39

    Nela, o territrio e suas articulaes scio-culturais aparecem como uma categoria com dinmica prpria e irredutvel s representaes que a convertem em puro receptculo de formas e significaes. Essa dimenso incita produo de um pensamento que busque discernir os movimentos de circulao e contato entre os grupos e em que o espao surja no como um dado autnomo, estritamente determinante, mas como um vetor com efeitos prprios, capaz de afetar as condies para a eficcia de algumas aes humanas.(SODR, 1988, p.15)

    A partir disso, considero territrio negro, em Salvador, no propriamente o espao-lugar, mas o espao social engendrado pelas prticas negras de luta e sobrevivncia que singularizaram a cidade do ponto de vista cultural e, sobretudo, do ponto de vista poltico.

    A possibilidade muito concreta da influncia cultural dos africanos nas

    geraes posteriores de negros brasileiros torna a presena fsica desses africanos no espao da cidade uma condio bsica para o dimensionamento dos seus aspectos culturais. No entanto, localizar a cidade negra, em termos interpretativos, implica

    enxerg-la no apenas nos espaos definidos de ocupao negra evidente, mas no

    entre-lugar marcado pelo imbricamento crtico das diferenas e semelhanas entre o passado africano (e a memria desse passado), com seus valores e hbitos prprios, e o presente histrico da opresso escravista e racial brasileira, com seu universo de valores e hbitos tambm prprios.

    Foi esse entre-lugar, o nem um, nem outro absolutos, das diferenas culturais, que gerou uma territorialidade de novo tipo, agonstica, relacional, tensa.

    Um espao- tempo (porque histrico) que no era topogrfico simplesmente, mas

    social, poltico e cultural e que se distribuiu pela cidade sem uma localizao especfica determinada. Muito embora no prescindisse dela.

    A representao da diferena, no deve ser lida apressadamente como reflexo de traos culturais, ou tnicos preestabelecidos, inscritos na lpide fixa da tradio. A articulao social da diferena, da perspectiva da minoria, uma negociao complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformao histrica. O direito de se expressar a partir da periferia do poder [...] no depende da persistncia da tradio; ele alimentado pelo poder da tradio de se reinscrever atravs das condies de contingncia e contrariedade que presidem sobre as vidas dos que esto na minoria. (BHABHA, 1998, p.20-21)

  • 40

    Podemos ler essa capacidade de reinscrio da tradio num sentido poltico e interpretar, por exemplo, a sagacidade que alguns escravos tiveram de -em um momento de transformao como foi a segunda metade do sculo XIX, especialmente,

    aps 1871, se valerem de alguns expedientes legais como forma de conquista da

    liberdade, ainda que o mundo das leis codificadas no fosse necessariamente o seu

    mundo. Em captulo especfico, veremos alguns casos dessa natureza.

    Num sentido poltico-cultural, podemos ler, da mesma forma, as negociaes e conflitos que certamente envolveram as populaes negras soteropolitanas, por

    exemplo, nos processos de conquista de espaos para expresso da sua religiosidade e das formas, relativamente autnomas de organizao do trabalho, como os prprios cantos6 de ganhadores anteriormente referidos.

    Do ponto de vista de uma interpretao cultural, tanto os cantos como os espaos de expresso da religiosidade configuram-se como representao prtica do

    que podemos nomear, inspirado no pensamento de Bhabha (1998), de entre-lugar.

    Essas formas culturais continuaram existindo ou resistindo, mas no da maneira como era l no passado africano ainda guardado na memria, nem como queriam -ou no queriam- as autoridades, representantes do que chamamos opresso escravista e racial.

    Essa concepo de territrio social e cultural, localizado no entre-lugar do imbricamento das diferenas, percorrer o trabalho como um todo. disso que

    estarei falando quando abordar as especificidades do mundo do trabalho negro diante

    das reiteradas tentativas de excluso ou integrao subordinada, quando destacar as estratgias cotidianas de sobrevivncia e resistncia contra as opresses escravistas ou mesmo quando procurar localizar fisicamente as populaes negras na cidade.

    Veremos, portanto, cada episdio relacionado a essas questes como momentos singulares de enunciao daquilo que agora podemos chamar de uma cultura negra.

    Cultura essa, histrica, heterognea, muito distante de qualquer acepo de pureza original ou de configurao essencial mas, sobretudo, uma cultura que mantm

    fundadas marcas de luta e resistncia.

    A segunda metade do sculo XIX me parece particularmente interessante

    para esse exerccio de reflexo, no s porque a escravido deu incio ao seu perodo

    de crise definitiva, mas porque a emergncia de uma nova concepo de urbanidade

    civilizada fez com que as populaes negras aparecessem aos olhos das elites como uma diferena cultural, que daquele momento em diante no mais poderia ser

    6 Cantos era a designao genrica dada a determinados locais distribudos ao longo da cidade, em que se reuniam grupos de trabalhadores negros, escravos e libertos oferecendo seus servios. Os cantos se organizavam, especialmente, por especialidades de servios ou ainda por alguma forma de afinidade entre seus membros. Maiores detalhes sobre os cantos podero ser vistos no captulo 1.

  • 41

    contida dentro dos limites hierarquizados institucionais do sistema de dominao escravista.

    Talvez o mais interessante seja perceber o paulatino e, de certa forma, planejado processo de passagem do mundo do trabalho escravo para o mundo do trabalho livre, na duplicidade de sentido de seu movimento. Ou seja, ao mesmo

    tempo em que o nmero de escravos e a prpria escravido como sistema declinam, a cultura negra, sempre existente e at tolerada ao nvel das suas manifestaes mais evidentes, se desvinculando das amarras do escravismo, vai emergindo como alternativa instituinte. Alternativa essa com fortes contedos de ameaa ao projeto

    de civilizao preconizado pelas elites dominantes. No presente estudo, procuro

    interpretar essa duplicidade de sentido privilegiando os seus aspectos conflitivos.

    Dessa forma, o contnuo processo de territorializao negra da cidade de Salvador aparece aqui como corolrio das lutas das populaes negras na busca pelas liberdades possveis.

  • 42

  • 43

    Captulo 2

    Trabalhadores urbanos:

    um retrato da cidade negra

    A produo historiogrfica brasileira sobre a escravido no meio urbano, ainda

    que menos numerosa que a historiografia sobre o mesmo tema no meio rural, tem se

    dedicado em dcadas recentes necessria tarefa de desvendar os seus contornos, suas implicaes na dinmica escravista geral e, sobretudo, suas especificidades

    locais.

    O sculo XIX, at ento, tem sido o intervalo temporal privilegiado no qual

    essa historiografia se circunscreve. Nesse perodo, os processos de configurao

    histrica de centros urbanos mais ou menos distintos das regies rurais, pelo menos sob os pontos de vista social e cultural, tm oferecido aos historiadores sociais da escravido um rico e diversificado conjunto de materiais histricos afeitos, tanto

    a um tratamento adequado s novas perspectivas terico-metodolgicas, quanto possibilidade de escolhas temticas inovadoras.

    De um modo geral, o que tais estudos nos tm informado que a composio dos grupos e setores sociais das principais cidades escravistas estudadas, formada principalmente por escravos, negros livres e libertos, proprietrios em geral e pelo poder pblico com o conjunto das suas instituies, conforma um quadro de relaes atravs do qual possvel apreender os seus ritmos de pulso e interpretar alguns aspectos da sua dinmica. Alm da identificao de traos comuns, tais como as

    modalidades prprias de trabalho escravo urbano, principalmente ganho e aluguel; as polticas de controle social da mo-de-obra e disciplinamento policial de condutas; a autonomia relativa dos escravos na organizao das atividades de trabalho etc., tm

    merecido destaque as caractersticas especficas de cada ncleo escravista urbano,

    na medida em que os estudos mais recentes, ao circunscreverem suas pesquisas nos limites de um ncleo determinado, priorizam temas e objetos de reflexo bem

    delimitados. Atualmente, parece no haver mais espao -pelo menos ele foi bastante

    diminudo-, para as pretensiosas reflexes gerais e generalizantes.

    Os processos histricos mais estruturais que repercutem na dinmica da escravido, de forma mais ou menos indistinta, so equacionados no mbito das especificidades locais, ou seja, nos espaos prprios da sua efetivao concreta. So

    essas especificidades que condicionam a sua extenso e forma.

  • 44

    No que diz respeito escravido urbana, para efeito de comparao ou de destaque das especificidades de cada ncleo escravista determinado, um dos

    recursos metodolgicos mais adotados pela historiografia tem sido o de precisar,

    o tanto quanto as fontes permitem, sua estrutura de composio populacional a partir de dados quantitativos. Esse exerccio tem possibilitado identificar aspectos

    detalhados que do densidade s anlises. Ao lado das variveis gerais de carter

    mais informativo, a exemplo do nmero e proporo em que se divide a populao de determinada cidade no que diz respeito ao estatuto jurdico-social, o destaque para as variveis especficas, adequadas ao tratamento de temas ligados ao cotidiano das

    cidades: formas de morar, de trabalhar, de se divertir, de cultuar deuses e divindades, bem como outras formas de ocupar o seu espao fsico.

    Minha proposta neste captulo inicial , seguindo os passos dessa sugesto metodolgica, traar um quadro de alguns aspectos da cidade de Salvador na segunda metade do sculo XIX, informando algo sobre os sujeitos protagonistas

    desta pesquisa e sobre o contexto social no qual se localiza minha reflexo. Diga-se,

    porm, ainda que adequado aos meus objetivos, o quadro desenhado frente est longe de esgotar as amplas dimenses do contexto. Para isso, lancei mo de uma

    fonte, poca da pesquisa, indita na historiografia baiana, a qual, conjugada com

    outras de carter semelhante, possibilitou alcanar tal objetivo.

    Atendendo ao que impunha o Regulamento Policial para o Servio dos Trabalhadores do Bairro Commercial, editado em 18807, o Chefe de Policia da Provncia da Bahia institui, em 1887, um Registro de Matrcula8 no qual todos os ganhadores9 da cidade de Salvador deveriam se inscrever. A riqueza deste documento est na

    profuso de detalhes que ele nos fornece sobre todos os trabalhadores registrados.

    Informa nome; cor; condio; idade; estado civil; nacionalidade; caractersticas

    fsicas, bem como o local de trabalho, denominado canto, e o local de residncia de cada um dos ganhadores. Mas, antes de adentrarmos nesse universo de nmeros,

    nomes, locais e caractersticas, convm algumas consideraes sobre aspectos gerais que se apresentaram como referenciais orientadores da minha interpretao da dinmica escravista urbana.

    Processos ou fatos historicamente significativos, ocorridos no meio urbano

    escravista, ocuparam as reflexes de no poucos historiadores, muito antes do

    7 APEB - Colonial Provincial. Srie: Polcia. Mao 7116.

    8 Registro de matrcula dos cantos de ganhadores livres. APEB - Idem.

    9A qualificao, ganhador, referia-se aos escravos que trabalhavam nas ruas exercendo atividades mecnicas, artesanais, ou prestando algum servio como por exemplo, carregar volumes ou cadeiras de arruar. No entanto pelo ttulo completo do registro de 1887, Registro de Matrcula dos Ganhadores Livres, a qualificao, ganhador, se estendia tambm aos trabalhadores no-escravos que exerciam as mesmas atividades.

  • 45

    advento do que se convencionou chamar histria social da escravido. Entretanto,

    eleger a escravido urbana, ela mesma, como objeto de reflexo, procurando analisar

    suas formas prprias de funcionamento e suas caractersticas especficas, ao menos

    aqui no Brasil, algo no muito antigo.

    Dentre os vrios trabalhos dedicados ao estudo da escravido urbana, destaco, inicialmente, aqueles que concentram suas reflexes sobre a cidade do Rio

    de Janeiro. So eles: Algranti (1988), Silva (1988) e Chalhoub (1990). Embora esses

    autores se referenciem em uma cidade distinta da que aqui foi escolhida como objeto de pesquisa, o destaque no aleatrio. Todos os trs reconhecem, incisivamente,

    a influncia seminal que os trabalhos dos historiadores norte-americanos Waden

    (1964) e Goldin (1976) exerceram na definio de uma historiografia voltada para as

    especificidades da escravido urbana, no mbito geral do escravismo nas Amricas.

    A cidade do Rio de Janeiro, pela sua condio de centro administrativo e poltico do Imprio Brasileiro, mas principalmente pelo fato de concentrar na

    primeira metade do sculo XIX uma populao cativa espetacularmente numerosa e,

    proporcionalmente, em equilbrio com a populao livre, talvez tenha se transformado, para os autores dos trabalhos h pouco citados, em um locus privilegiado para o desenvolvimento de anlises sobre a dinmica de funcionamento da escravido urbana.

    Afirma Chalhoub que

    [...] em 1821, o Rio -excludas as parquias rurais-, tinha uma populao de 86.323 habitantes, dos quais 40.376 eram cativos (46,7% da populao total). Segundo as estimativas de Mary Karasch, os escravos chegaram a constituir mais de 50% da populao da cidade durante a dcada de 1830. O censo de 1849 registrou a presena de 78.855 cativos entre os 205.906 habitantes das parquias urbanas do municpio da Corte (38,2%). Se computados tambm as parquias rurais, teremos 110.602 escravos numa populao total de 266.466 indivduos (41,5%). (CHALHOUB, 1990, p.186-187)

    Em termos proporcionais, no mesmo perodo, a cidade de Salvador rivalizava com o Rio de Janeiro. Reis (1987) calcula que em 1835, de uma populao de 65.500

    habitantes, a cidade contava com 27.500 cativos (42%), entre africanos e crioulos.

    Quanto presena de Wade (1964) e Goldin (1976) nos trabalhos citados, os

    nossos autores brasileiros localizam suas discusses especficas referenciando-se,

    cada um a seu modo, na controvrsia que diferencia os autores norte-americanos acerca do carter da relao entre escravido e cidade. Wade conclui pela incompatibilidade

  • 46

    entre uma e outra, e Goldin, discordando dos argumentos do colega que a antecedeu, afirma o contrrio.

    Ao invs de especificar os termos dessa controvrsia, ou mesmo acompanhar

    as posies dos nossos autores brasileiros sobre um e outro trabalho, considero ser mais importante destacar o que h de sugestivo nessas posies, no sentido de apontar caminhos para o desvendamento de aspectos da escravido urbana aqui no Brasil.

    A leitura crtica de Chalhoub (1990) acerca das idias de um daqueles autores

    o remeteu definio de um mtodo, encaminhando a escolha de uma problemtica

    de pesquisa e reflexo rica em possibilidades.

    [...]no basta postular, como faz Wade, a suposta incompatibilidade entre escravido e cidade, como se estas fossem duas entidades abstratas e naturalmente excludentes. Na verdade, preciso entender o que muda na Corte entre as dcadas de 1830 e 1870, e isto nos remete ao bojo do processo de formao da cidade negra. A cidade negra o engendramento de um tecido de significados e de prticas sociais que politiza o cotidiano dos sujeitos histricos num sentido especfico -isto , no sentido de transformao de eventos aparentemente corriqueiros no cotidiano das relaes sociais na escravido em acontecimentos polticos que fazem desmoronar os pilares da instituio do trabalho forado. (CHALHOUB, 1990, p.186)

    No meu entendimento, o que h de fecundo, condensado nesta citao e no livro como um todo, a proposta de analisar a dinmica escravista urbana elevando o cotidiano das prticas dos sujeitos sociais (notadamente, da populao cativa) ao status de espao do exerccio da poltica.

    nesse sentido que as aes empreendidas pelos prprios cativos, no sentido

    da construo da liberdade, engendraram a instituio daquilo que o autor chama de cidade negra.

    Procedeu-se citao pela clareza e acerto da sugesto metodolgica nela contida, no entanto h que se reconhecer que alguns trabalhos anteriores j se ocuparam da escravido urbana, lanando bases bastante originais e fecundas para a interpretao da sua especificidade. Dias (1995), Mattoso (1978) e Reis (1987),

    cada um ao seu modo, ofereceram, com seus trabalhos, temas, pressupostos, estilos narrativos, e perspectivas de abordagem responsveis por inegveis inovaes no universo da historiografia sobre a escravido, em especial, sobre a escravido

    urbana.

  • 47

    Minha inteno, no entanto, seguindo a sugesto metodolgica de Chalhoub (1990) e as fontes de que dispunha, foi adotar sua concepo de cidade negra como

    uma das problemticas de reflexo que encaminhasse a interpretao dos significados

    das prticas de resistncia dos negros soteropolitanos, de modo a entend-las como prticas que singularizam poltica, social e culturalmente a cidade onde esses negros viveram, trabalharam e lutaram. Se Sodr (1988), com a idia de territorialidade,

    forneceu uma concepo conceitual bastante profcua e pertinente ao meu objeto de reflexo, Chalhoub (1990), ocupando-se com os processos de instituio da cidade

    negra, me indicou uma metodologia promissora na definio dos caminhos da

    pesquisa.

    Evidentemente, o processo de formao da cidade negra de Salvador no se faria possvel sem uma presena numrica e proporcionalmente marcante das populaes negras no seu espao fsico. Dessa forma, inclu no desenvolvimento da

    argumentao a especificao dessa forte presena atravs da representatividade dos

    1.764 trabalhadores (1.761, entre pretos e mestios), matriculados como ganhadores

    no citado Registro de Matrcula de 1887. Procurei articular a essa especificao um

    exame concomitante dos dados populacionais presentes na bibliografia disponvel

    sobre a escravido baiana do sculo XIX, objetivando referenciar a anlise.

    A fonte: caractersticas gerais e limites

    Apesar da riqueza de dados que o Registro de Matrcula de 1887 nos oferece,

    so necessrias algumas consideraes sobre os seus limites como fonte para o presente captulo.

    Um desses limites, talvez o mais importante, est no fato de o registro ser datado de 1887, praticamente s portas da abolio, o que dificulta uma anlise

    retrospectiva e processual da dinmica de funcionamento das ltimas duas dcadas do escravismo soteropolitano, a partir dos dados nele contidos. H, inclusive, alguns

    ganhadores matriculados depois da abolio. Nessas matrculas, na parte reservada

    s observaes gerais, aparece o seguinte escrito: Liberto em 13 de maio de 1888.

    De um modo geral, considerei correto tomar esse Registro de Matrcula como evidncia de um processo de controle social, disciplinamento e reorganizao da mo-de-obra na cidade, no iniciado, mas pelo menos mais substantivamente presente a partir do fim do trfico internacional de escravos, em 1850. ndice final do

    perodo escravista, mas no conclusivo. Seguramente, este processo de reorganizao

    da mo-de-obra se estendeu nos anos subsequentes.

  • 48

    Foi possvel a anlise processual de algumas variveis comparando-as com alguns dados presentes na historiografia baiana, em especial aqueles extrados de

    um censo sobre a cidade de Salvador, produzido em 185510, e do Censo Imperial de 1872.11

    Cabe observar, ainda, que o Registro ocupa-se dos trabalhadores homens.

    No h matrcula de mulheres trabalhadoras. Dos relatos dos vrios viajantes que

    estiveram na Bahia, ao longo do sculo XIX, at a bibliografia contempornea sobre

    a escravido baiana, no h quem deixe de observar a importncia que tiveram as mulheres ganhadeiras e quitandeiras -na grande maioria, negras-, sob qualquer ponto de vista em que se analise a dinmica de funcionamento da escravido soteropolitana.

    (SOARES, 1996)

    Embora essa lacuna possa ser parcialmente superada com o suporte da bibliografia, isso no nos desobriga de observar a relativa incompletude da reflexo

    quando o objetivo, como apontado anteriormente, dimensionar a cidade de Salvador considerando a forte presena de sua populao negra de um modo geral.

    Por fim, resta observar que entre os ganhadores apenas 11 ainda permaneciam

    na condio de escravos. Evidentemente, esse fato nos obriga a considerar o mundo

    do trabalho representado por este Registro de Matrcula, praticamente como um mundo do trabalho livre. No se deve esquecer, no entanto, que a escravido ainda

    no havia acabado.

    Aspectos da cidade no final da escravido

    usual a regra de se interpretar os aspectos do perodo final da escravido nas grandes cidades escravistas brasileiras confrontando-os com os processos de modernizao que se reproduzem em nvel nacional. Evidentemente, a idia de modernizao pode ser referenciada nos proc