negri, antonio - a anomalia selvagem_poder e potenência em spinoza

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Page 1: Negri, Antonio - A anomalia selvagem_poder e potenência em Spinoza
Page 2: Negri, Antonio - A anomalia selvagem_poder e potenência em Spinoza

r' cole~ao TRANS

Antonio Negri

A ANOMALIA SELVAGEM Pader e Paten cia em Spinaza

Prefacios de Gilles Deleuze, Pierre Macherey, Alexandre Matheron Edi~ao acrescida de Posfacio inedito do autor

TradUt;C1O Raquel Rama/hete

editora.34

INSTITUTD DE PSICOU1GIA - UFRGS Mini 1_ ..... -_

Page 3: Negri, Antonio - A anomalia selvagem_poder e potenência em Spinoza

r EDITORA 34 - ASSOCIADA A EDITORA NOVA FRONTEIRA

Distribuic;ao pela Editora Nova Fronteira S.A. R. Bambina, 25 CEP 22215-050 Tel. (021) 286-7822 Rio de Janeiro - RJ

Copyright © 1993 34 Literatura SIC Ltda. (edi<;ao brasileira) © 1981 Giangiacomo Feltrinelli Editore, Milano Posfdcio: Dernocracia e Eternidade © 1993 Antonio Negri

A FOToc6PIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LlVRO E lLEGAL, E CONFIGURA UMA

APROPRIA(AO INDEYIDA DOS D1REITOS iNTELECTUAIS E PATRIMONlAIS DO AUTOR.

Titulo original: L'anomalia selvaggia. Saggio su potere e potenza in Baruch Spinoza

Capa, projeto grafico e editorac;ao eletronica: Bracher & Malta Produ(iio Grtifica

Revisao tecnica: Marcos Andre Glaizer

Revisao com parada: Wendell Setubal

Revis3.o: Leny Cordeiro

l' Edi<;iio - 1993

34 Literatura SIC Ltcla. R. Jardim Boranico, 635 s. 603 CEP 22470-050 Rio de Janeiro - RJ Tel. (021) 239-5346 Fax (021) 294-7707

CIP - Brasil. Cataloga'f3.o-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Negri, Antonio, 1933-N321a A anomalia selvagem: poder e potencia em SpinoZ<!. f Antonio

Negri; tradu~ao de Raquel Ramalhete. - Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993 304 p. (Cole .. iio TRANS)

Tradu .. ao de: L'anomalia selvaggia Bibliografia

ISBN 85-85490-22-5

1. Spinoza, Benedict de, 1623-1677. 2. Ideologia. 3.Infinito. l. TItulo. II. Serie

93-0890

,,\'1,,\0 ", \)' . ,<. .

COO -195 COU·l(45)

A ANOMALIA SELVAGEM Poder e Potencia em Spinoza

PREFACIO, de Gilles Deleuze 7

PREFACIO, de Pierre Macherey 10

PREFACIO, de Alexandre Matheron 15

PREFACIO 23

Capitulo I. A ANOMALIA HOLANDESA 30

Capitulo II. A UTOPIA DO CfRCULO SPINOZISTA 55

Capitulo III. PRIMEIRA FUNDA<;:AO 84

Capitulo IV. A IDEOLOGIA E SUA CRISE 110

Capitulo V. CESURA DO SISTEMA 132

Capitulo VI. A ANOMALIA SELVAGEM 172

Capitulo VII. SEGUNDA FUNDA<;:AO 198

Capitulo VIII. A CONSTITUI<;:AO DO REAL 241

Capitulo IX. DIFEREN<;:A E PORVIR 271

POSFAcIO PARA A EDI<;:AO BRASILEIRA 292

liIISTillJTO T,E PSICnL"Gi.o - UFRGS

BIBLiOTECA

Page 4: Negri, Antonio - A anomalia selvagem_poder e potenência em Spinoza

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6 Antonio Negri

PREFAcIO, de Gilles Deleuze

o livro de Negri sabre Spinoza, escrito na prisao, e urn grande livra, que renova em muitos aspectos a compreensao do spinozismo. Gostaria de insistir mais a respeito de duas das teses principais que ele desenvolve.

1. 0 ANTIJURIDISMO DE SPINOZA

A ideia fundamental de Spinoza e a de urn desenvolvimento espon­taneo das fon;as, pelD menDS virtualmente. 0 que quer dizer que nao hi necessidade, em principia, de uma mediac;ao para constituir as relac;6es que correspondem as forc;as.

Ao contra.rio, a ideia de uma mediac;ao necessaria pertence essencial­mente a concep~ao juridica do mundo, tal como e elaborada por Hobbes, Rousseau, Hegel. Essa concepc;ao implica: 1) que as forc;as tern origem in­dividual ou privada; 2) que elas tern de sec socializadas para gerarem as relac;6es adequadas que lhes correspondem; 3) que hci portanto mediac;ao de urn Poder ("Potestas"); 4) que 0 horizonte e inseparcivel de uma crise, de uma guerra ou de urn antagonismo, de que 0 Poder se apresenta como a soluc;ao, mas a "soluc;ao antagonista".

Spinoza tern sido frequentemente apresentado como pertencente a essa linhagem juridica, entre Hobbes e Rousseau. Nao e nada disso, segundo Negri. Em Spinoza, as forc;as sao insepaniveis de uma espontaneidade e uma produtividade que tornam possivel seu desenvolvimento sem media­c;ao, ou seja, sua composi(do. Elas sao em si mesmas elementos de socia­lizaC;ao. Spinoza pensa imediatamente em termos de multitudo e nao de individuo. Toda a sua filosofia e uma filosofia da "potentia" contra a "potestas". Insere-se numa tradic;ao antijuridica, que passaria por Maquia­vel e terminaria em Marx. E toda uma concepC;ao da "constituic;ao" on­tologica, ou da "composic;ao" flsica e dinamica, que se op6e ao contrato juridicol, Em Spinoza, 0 ponto de vista ontologico de uma produc;ao ime­diata se op6e a qualquer apelo a urn Dever-Ser, a uma mediac;ao e a uma finalidade ("com Hobbes a crise conota 0 horizonte ontologico e 0 subsume, com Spinoza a crise e subsumida sob 0 horizonte ontologico").

Embora se pressinta a importancia e a novidade dessa tese de Negri, o leitor pode temer a atmosfera de utopia que dela se desprende. Negri entao marca 0 carater excepcional da situac;ao holandesa, e aquilo que torna

A Anoma1i"a Selvagem .~~~"" :. . {".:.)~ 7

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passivel a posi~ao spinozista: contra a famflia de Orange, que representa uma "potestas" em conformidade com a Europa monarquica, a Holanda dos irmaos De Witt pode tentar promover urn mercado como espontanei­dade das fon;as produtivas ou urn capitalismo como forma imediata da socializa~ao das forc;as. Anomalia spinozista e anomalia holandesa ... Mas, num caso como no Dutro, nao e a mesma utopia? E aqui que intervem 0 segundo ponto forte da analise de Negri.

2. A EVOLU<;AO DE SPINOZA

o primeiro Spinoza, tal como surge no Curto tratado e ainda no inf­cio da Etica, permanece efetivamente dentro das perspectivas da utopia. Ele as renova, entretanto, porque assegura uma expansao maxima das for­~as, elevando-se a uma constitui(ao onto16gica da substancia, e dos mo­dos pel a substancia (panteismo). Mas precisamente em virtude da espon­taneidade da operac;ao, ou da ausencia de mediac;ao, a composi~ao mate­riaL do real concreto nao se manifestara como potencia propria, e 0 co­nhecimento e 0 pensamento terao ainda de dobrar-se sobre si mesmos, su­bordinados a uma mesma produtividade apenas ideal do Ser, em vez de se abrirem para 0 mundo.

Por isso e que 0 segundo Spinoza, tal como aparece no Tratado teo­L6gico-politico e tal como se afirma no decurso da Etica, vai ser reconheci­do por dois temas fundamentais: por urn lado, a potencia da substancia se volta para os modos, aos quais serve de horizonte; par outro lado, 0 pen­samento se abre para 0 mundo e se coloca como imagina~ao material. Entao cessa a utopia em proveito de urn materialismo revolucionario. Nao que 0

antagonismo e a mediac;ao sejam restabelecidos. 0 horizonte do Ser sub­siste imediatamente, mas como Lugar da constitui~ao politica, e ja nao mais como utopia da constituic;ao ideal e substancial.

Os corpos (e as almas) sao for~as. Enquanto tais, nao se definem apenas por seus encontros e choques ao acaso (estado de crise). Definem­se por relac;oes entre uma infinidade de partes que compoem cada corpo, e que ja 0 caracterizam como uma multitudo. Hi enta~ processos de com­posi~ao e de decomposic;ao dos corpos, segundo suas rela~oes caracteris­ticas convenham ou desconvenham. Dois ou varios corpos formarao urn todo, isto e, urn terceiro corpo, se compuserem suas rela~oes respectivas em circunstancias concretas. E isto e 0 rna is alto exercfcio da imagina~ao, o ponto em que eia inspira 0 entendimento, fazer com que os corpos (e as almas) se encontrem segundo relac;oes componiveis. Dai a importancia da teoria spinozista das no(oes comuns, que e urn elemento fundamental da Etica, do livro II ao livro V. A imagina~ao material consolida sua alianc;a

8 Antonio Negri

com 0 entendimento, assegurando ao mesma tempo, sob 0 horizonte do Ser, a composic;ao fisica dos carpas e a constituic;ao poHtica dos homens.

Aquilo que Negri fizera profundamente em Marx, a respeito dos Grundrisse, ele faz agora· em Spinoza: toda uma reavaliac;ao do lugar res­pectivo do Curto tratado, por urn lado, na obra de Spinoza. Nesse senti­do e que Negri prop6e uma evolm;ao de Spinoza: de uma utopia progres­sista a urn materialismo revolucionario. Negri e com certeza 0 primeiro a dar seu pleno sentido filosofico a anedota segundo a qual 0 proprio Spi· noza se havia tra~ado, em Masaniello, 0 revolucionario napolitano (d. 0

que diz Nietzsche sobre a importancia das "anedotas" peculiares ao "pen­samento, na vida de urn pensador").

Dei das duas teses de Negri uma apresenta~ao extremamente rudi­mentar. Nao me parece que convenha discutir essas teses e apressadamente lhes trazer obje~6es ou ate confirma~6es. Essas teses tern 0 merito eviden­te de dar conta da situa,ao excepcional de Spinoza na historia do pensa­mento. Essas teses sao profundamente novas, mas 0 que elas nos mostram e em primeiro lugar a novidade do proprio Spinoza, no sentido de uma "filosofia do porvir". Mostram-nos 0 papel fundador da politica na filo­sofia de Spinoza. Nossa primeira tarefa deveria ser a de avaliar 0 alcance dessas teses, e entender 0 que Negri assim encontrou em Spinoza, no que ele e autentica e profundamente spinozista.

NOTA

1 E. ALLIEZ, "Spinoza au-dela de Marx", in Critique, 411-412 (agosto-setem­bro 1981), 812-821, analisa primorosamente essa antitese.

A Anomalia Selvagem 9

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r ' PREF A CI 0, de Pierre Macherey

SPINOZA PRESENTE

"Alguma coisa de desproporcionado e sobre-humano"l: e assim que A. Negri caracteriza a aventura teorica na qual Spinoza se meteu; e resti­tui em toda a sua for~a sua virulencia excepcional de acontecimento que, fazendo irrup~ao no tempo, quebra a aparente continuidade dele e, por essa provoca~ao desmedida, apela para que nos mesmos voltemos ao mo­vimento de que ela surge. Poderfamos retomar os mesmos termos para apresentar a interpreta~ao que ele nos da dessa experiencia, pois sua po­tencia selvagem sacode os quadros comuns atraves dos quais se compreende uma filosofia, e nao apenas a de Spinoza: ela nos for~a a rele-Ia segundo uma perspectiva desconcertante, enos faz descobrir, no lugar daquela doutrina que pensavamos conhecer bern, arrumada dentro do repertorio irnutavel dos sistemas, "urn pensamento vivo,,2, que pertence efetivamen­te a historia, a nossa historia.

o que significa conceber Spinoza como urn pensador historico? Isto quer dizer primeiro, evidentemente, expo-Io em sua epoca, naquela Holanda da segunda metade do seculo XVII, eia propria em ruptura com a ordem economica, politica e ideologica do mundo feudal, antes da qual ela in­venta as formas de uma sociedade nova, com os modos de produ~ao, tro­ca e consciencia que the correspondem: e nesse "extraordinario campo de produ~ao metafisica d que Spinoza intervem, fabricando ele mesmo con­ceitos e maneiras de raciocinar" que the permitem contribuir para esse pro­cesso de transforma~ao. Mas, desse tempo em revolta contra seu tempo, e contra 0 tempo, ele mesmo tern de se afastar, para se projetar em dire~ao a outro tempo, que nao e mais apenas 0 seu, mas tambem 0 nosso. Negri, falando da constitui~ao poHtica do real por Spinoza, que e 0 coroamento de todo 0 seu pensamento, diz de sua "extraordinaria modernidade"4: se essa filosofia e uma "filosofia do porvir"s, e porque esta "em uma deter­mina~ao que ultrapassa os limites do tempo historico,,6. Spinoza representa seu tempo na medida em que excede os timites de uma simples atualida­de: e 0 que permite que ele exista, para n6s tambem, nao apenas no pas­sado, mas no presente.

E preciso entao ler Spinoza no presente. Significa isto que deve-se atualiza-Io, ou seja, transpo-Io para outra atualidade, que seria a nossa, recupera-lo para nossa epoca atraves de uma interpreta~ao recorrente,

10 Antonio Negri

necessariamente redutora? Absolutamente, pais essa atualidade nao e 0

presente de Spinoza, que faz com que, em sua epoca como na nossa, ele seja sempre presente: ora, essa presen\=3 naa e a de uma permanencia in­temporal, mas a de uma hist6ria que, na medida em que conserva urn sen­tida, prossegue irresistivelmente em sua marcha para a frente nele e em nos. a que e sempre presente, au, poderiamos dizer, "eterno", no pensamento de Spinoza? E sua historicidade, isto e., essa potencia imanente que 0 leva mais aiI'm do quadro fixo de uma dada atualidade, e de onde iambem ele rira sua produtividade tearica. Spinoza nao esta na hist6ria, como urn ponto imovel numa trajetoria que se desenrolasse fora dele, mas I' a historia que continua nde seu movimento, projetando-o para esse porvir que e tam­bern seu presente.

Negri nos faz descobrir Spinoza depois de Spinoza, passando de uma "primeira funda~ao" a uma "segunda funda\=ao,,7. Spinoza depois de Spi­noza, flaD e Spinoza segundo Spinoza, remetido a si mesma e de certa modo fechado sabre si mesmo, em sua jubila\3.o especulativa, e especuiar, de sua identidade imagimiria a si: identidade na qual os comentadores encontram sua satisfa\=ao e sua tranquilidade, pelo estabelecimento definitivo de uma estrutura acabada a que chamam "sistema". Essa estrutura, Negri a faz implodir afirmando 0 "desmedido" da obra de Spinoza, que transborda do quadro estrito no qual se procura cond'-la. Pois uma filosofia I' toda uma hist6ria, com a qual nao acabamos de canrar, e que naD nos cansa­mas de cantar, se for 0 casO de urn pensamento vivo, cuja processo nao para de se realizar atraves dos limites que 0 constituem, pais sua propria existencia os poe em questao.

A interpreta,ao que Negri nos prop6e da filosofia spinozista I' per­turbadora porque revela a processividade dela, que em sua ordem propria a poe em movimento e a desloca. Ora, essa processividade e imanente, eia corresponde a "matura~ao interna do pensamento de Spinoza,,8: nao re­sulta da pressao das circunstancias exteriores, de uma historia objetiva e independente que infletisse sua orienta~ao, mas e a conseqiiencia de uma "crise,,9 que a filosofia partilha com seu tempo, diante da qual ela desen­volve seu proprio projeto e constitui, ela mesma, seu objeto. Assim "0 des­rnedido nao deriva tanto da rela~ao - relativamente - desproporcionada com 0 tempo de crise quanta da organiza~ao absoluta que a consciencia da crise imprime ao projeto de supeni-Ia"lO: a metaffsica spinozista nao rece­be sua dimensao politica de urn golpe arbitrario de for~a, mas dessa violen­cia que ela faz a si mesma, que a obriga a reconstituir todo 0 seu edifkio. Em urn dos capitulos rna is extraordinarios de seu livro 11, Negri Ie 0 Trata­do teoI6gico-po[{tico, nao depois da Etica ou ao lado desta, mas na Etica, isto e, no intervalo cavado nela pela "despropor~ao" de seu raciocfnio e de seus conceitos: ele mostra assim como a teoria polftica tern urn papel de ope-

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r rador metafisico, pais e ao mesma tempo 0 sinroma e 0 agente de sua trans­forma~ao. "Medida e desmedida da exigencia spinozista: a teoria polftica absorve e projeta essa anomalia no pensamento metafisico. A metaffsica, levada as primeiras linhas da luta politica, engloba a propor,ao despropor­cionacia, a medida desmedida propria ao conjunto cia obra de Spinoza.,,12 Se a filosofia de Spinoza flaO e apenas da ardem cia teoria, mas tambem cia pratica, isso se da na medida em que, desvinculando-se de si mesma, ela descobre em seu sistema a urgente necessidade de transgredi-Io.

Essa matura~ao interna flaO e urn desenvolvimento continuo: como ja dissemos, ela procede de uma "crise", crise de urn tempo que e tambem crise do pensamento, e provoca nela esse desencontro interno que e ao mesma tempo corte tearico e fratura pratica. "0 tempo historico se corta do tempo real da filosofia. 0 desmedido, que se tornou consciente de si mesma atraves da crise, reorganiza os termos de seu projeto. E se define como tal, justamente, por diferenc;a, por corte. "13 Ao tomar distancia em relac;ao a sua epoca e a si mesmo, ao proceder a "uma refundac;ao metaff­sica de seu sistema,,14, que 0 leva a "por em crise 0 processo de producrao das coisas a partir das essencias"15, e assim da lugar a seu novo projeto constitutivo, Spinoza opera "urn saito logico de alcance incalcuIavel"16. Se seu pensamento e eficaz e verdadeiro, portanto sempre presente, e por­que 0 anima tamanha vontade de romper.

Desdobrando-se nessa cisao, a filosofia faz uma volta sobre si mes­rna, nao para se fechar sobre a certeza reconciliada de seu sistema, mas para se abrir a tensao e ao risco de seu projeto. Quando, ao nivel da "segunda funda,ao", nos trechos do livro V da Etica dedicados ao conhecimento do terceiro genero, Negri volta a encontrar os elementos da "primeira funda­C;ao", em que se apoiavam os livros I e II, ele interpreta essa repetic;ao, num sentido muito proximo do que lhe seria dado pela tecnica analitica, como "urn incidente de func;ao catartica,,17. "Assistimos a reprodu~ao da cesura teorica do pensamento de Spinoza, simulada para ser sublimada"18, "como que para inscrever definitivamente uma diferenc;a no cerne da continuida­de de uma experiencia" 19, numa especie de "drama didatico ,,20. Ao enfrentar tamanha prova, a filosofia atinge 0 real, conquista uma realidade: ela se efetua atraves desse movimento que a exterioriza nela mesma, nao numa perspec­tiva hegeliana de resolu~ao, mas ate a manifestac;ao desse desvio insupera­vel que dol lugar a historia para que ela nele se mostre.

E para a produ,ao de uma tal verdade que tende todo 0 pensamento de Spinoza, que nao e para Negri apenas pensamento tearico do conatus, cuja noc;ao e formulada no momento mesmo em que a doutrina entra em crise, no livro III da Etica, mas tambem prcitica vivida do conatus, enquan­to este exprime 0 desequilibrio dinamico de urn estado momentaneo que se projeta para urn porvir necessario. "Nada a ver com uma essencia finaliza-

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da: 0 conatus, ao contrario, e ele mesmo ato, dado, emergencia consciente do existente nao finalizado. "21 "A existencia coloca a essencia, de maneira dinamica e constitutiva; a presen~a coloca portanto a tendencia: a filoso­fia, desequilibrada, inclina-se para 0 porvir. ,,22 No momento mesmo em que forja a ideia de desequilibrio, a filosofia de Spinoza se lan,a na brecha que foi assim aberta, e passa para esse presente que ultrapassa sua simples atua­lidade. Essa coincidencia, note-se, causa problema: soldando estreitamen­te a doutrina a si mesma, na fusao de uma teoria e uma pratica, com a qual so nos resta indentificarmo-nos, sera que ela nao lembra a ilusao de uma teologia imanente do verdadeiro, fiadora de seu sentido e de sua unidade? Esta e a pergunta que nos mesmos poderiamos fazer a Negri.

Mas, antes de procurar uma resposta para essa pergunta, deixemo­nos primeiro invadir pela tensao irresistlvel de uma leitura devastadora, que leva a discurso de Spinoza ate 0 extremo limite de que ele e capaz, "como se, depois de urn longo acumulo de for~as, urn terrivel temporal estivesse a ponto de estourar,,23. Escutemos 0 temporal.

NOTAS

1 "Un qualcosa di sproporzionato e sovrumano", p. 154 (cap. IV). 2 "Un pensiero vivente", p. 267 (cap. VII). 3 "Straordinaria matriceecaratterizzazione di produzione metafisica ", p.42 (cap. I). 4 "La straordinaria modernid. della spinoziana costituzione politica del reale",

p. 308 (cap. VIII). 5 "Una filosofia dell'avvenire", p. 45 (cap. I). 6 "In una determinazione che supera i limiti del tempo storico", ibid. 7 "Prima fondazione": titulo do cap. III. "Seconda fondazione": titulo do cap. VIII. S "La maturazione interna del pensiero spinoziano", p. 208, cap. VI. 9 "L'ideologia e la sua crisi": titulo do cap. IV. 10 "La dismisura non deriva tanto dal rapporto - relativamente - sproporzio~

nato con it tempo di crisi, quanto dall'organizzazione assoluta che la conscienza della crisi imprime al progetto di superarla", p. 212-213 (cap. VI).

11 "Cesura sistematica": titulo do cap. V. 12 "Misura e dismisura dell'istanza spinoziana: la teoria politica risucchia e proietta

questa anomalia nel pensiero metafisico. La metafisica, portata sulla prima linea della lotta politica, contiene in se la proporzione sproporzionata, la misura smisurata, che e propria di tutto Spinoza", p. 203 (cap. VI).

13 "11 tempo storico si stacca dal tempo reale della filosofia spinoziana. La dismi­sura resasi consapevole nella crisi, riorganizza i suoi termini progettuali. E si definisce come tale, appunto, por differenza, per stacco", p. 208 (cap. VI).

14 "Una rifondazione metafisica del sistema", p. 152 (cap. IV). 15 "Mettere in crisi il processo di produzione delle cose dalle essenze", ibid. 17 "L'incidente sistematico che porta all'interno della parte V iI mito della prima

redazione, ha una funzione catartica", p. 275 (cap. VII).

A Anomalia Selvagem

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18 "Siamo di fronte alia riproduzione della cesura tearica del pensiero spinoziano, simulata per essere sublimata", p. 274 (cap. VII).

19 "Quasi a stipulare definitivamente, nella continuita di una esperienza, 1a diffe­renza di fasi 0 di contenuti, di propositi e di soluzioni", ibid.

20 "Questo e un dramma didattico", p. 276 (cap. VII). 21 "Non essenza finalistica, in ogni caso: bensi esso stesso atto, daro, emergenza

cosciente dell'esistente non finalizzato", p. 236-237 (cap. VII). 22 "L'esistenza pone I'essenza, dinamicamenre, costitutivamente, quindi la presenza

pone la tendenza: 1a filosofia si sbilancia sull'avvenire", p. 238 (cap. VII). 23 "E come si fosse formata un terribile temporate, ora e allimite della esplosione",

p. 129 (cap. 1II).

14 Antonio Negri

PREF A CI 0, de Alexandre Matheron

Gostaria de dizer aqui, ao mesmo tempo de minha admira~ao pelo livro de Negri, minha concordancia com 0 que me parece ser b essencial de sua interpreta~ao de Spinoza, e tambem, acessoriamente, as poucas re­servas que ele pode inspiraI a urn historiador da filosofia, profissionalmente sempre com a tenta~ao de permanecer na literalidade dos textos.

Admira~ao, no sentido cLissico como no sentido corrente da palavra, pela extraordinaria analise marxista atraves da qual Negri torna inteligi­vel a rela~ao entre a evolu~ao do pensamento de Spinoza e as transforma­c;6es hist6ricas ocorridas na situa~ao holandesa de sua epoca. Infelizmen­te, sou excessivamente incompetente no assunto para poder me permitir julgar a verdade ou a falsidade de sua hip6tese. Mas 0 que e certo e que ela e muito fecunda: permite ao mesmo tempo introduzir uma l6gica in­terna no que ja se sabia, e por em evidencia 0 carater significativo de ceI­tos dados de fato que, ate agora, passavam com excessiva freqiiencia como marginais. Ela nos faz entender, em primeiro lugar, de que maneira a "ano­malia holandesa" pode dar conta da persistencia taIdia, nos Paises Baixos, ' daquele pantefsmo utopista de tipo "renascentista" que, efetivamente, com muitas confusoes e incertezas, foi com certeza 0 de Spinoza nas partes mais arcaicas do Curto tratado. Faz-nos entender, em seguida, de que mane ira o aparecimento tardio na Holanda da crise do capitalismo que se iniciava pode dar conta do deslocamento desse pantefsmo inicial e da necessidade que Spinoza sentiu, como efetivamente sentiu, de operar urn remanejamento conceitual muito dificil. Faz-nos entender, finalmente, de que maneira a revolta de Spinoza diante da solw;ao absolutista que havia sido dada a crise em todos os outros lugares da Europa, e que estava amea~ando suceder tambem na Holanda, pode dar conta do resultado final desse remaneja­mento conceitual. Ora, deixando de lade a hip6tese em si, penso que, para o essencial, os fatos para os quais ela chama nossa aten~ao sao muito Ieais e muito importantes.

Isto e verdade, em primeiro lugar, para 0 estado final (ou relativa­mente final) da filosofia de Spinoza: para aquilo a que Negri chama sua "segunda funda~ao". Quanto a esse ponto, exceto por uma reserva que fa~o e a qual voltarei, concordo fundamentalmente com ele. Nessa "segunda funda~ao", nao apenas Spinoza rompeu com qualquer sobrevivencia de emanatismo neoplatonico (0 que todos os comentadores serios reconhe­cern), mas ele ja nao admite mais a menor transcendencia da substancia

A Anomaiia Selvagem 15

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elT! relas:ao a seus modos, sob qualquer forma que ela se apresente: a subs­tancia nao e urn fundo cujos modos seriam a superficie, n6s nao somos ondas na superficie do oceano divino, mas tudo e absorvido na superficie. A substancia sem seus modos nao passa de uma abstras:ao, exatamente como sao os modos sem a substancia: a unica realidade concreta sao os seres natura is individuais, que se comp6em uns com os outros para for­mar mais outros seres naturais individuais, etc., ao infinito. Mas isso nao quer dizer que 0 beneficio das analises anteriores tenha sido nulo; isso quer dizer que tudo 0 que era atribuido a Deus esta agora investido nas pr6prias coisas; nao e mais Deus quem produz as coisas na superficie de si mesmo, mas sao as pr6prias coisas que se tornam autoprodutoras, pelo menos par­cialmente, e produtoras de efeitos dentro do ambito das estruturas que definem as limites de sua autoprodutividade. Pode-se ainda falar de Deus (como faz Spinoza, e como, de seu proprio ponto de vista, ele tern razao em fazer) para designar essa atividade produtora imanente as coisas, essa produtividade infinita e inesgotavel de toda a natureza, mas com a condi­~ao de que se tenha bern em mente a que isto significa: a natureza naturante e a natureza enquanto naturante, a natureza considerada em seu aspecto produtor isolado por abstra~ao; e a natureza naturada, ou os modos, sao as estruturas que ela se da ao se desdobrar, a natureza enquanto naturada; mas na realidade ha apenas indivfduos mais au menos compostos, cada urn dos quais (naturante e naturado ao mesmo tempo) se esfor~a para produzir tudo 0 que pode, e para se produzir e se reproduzir a si mesmo, produzindo tudo 0 que pode: a ontologia concreta come~a com a teoria do conatus. Por isso e que Negri tern inteira razao ao caracterizar esse estado final do spinozismo como uma metafisica da forfa produtiva; e isso por oposi~ao a todas as outras metaffsicas classicas, que sao sempre mais ou menos metafisicas das rela~6es de produ~ao, na medida em que subordi­nam a produtividade das coisas a uma ordem transcendente.

Que essa metaffsica da for<;a produtiva funcione em todos os niveis do spinozismo, eis 0 que Negri explica admiravelmente. Ele nos mostra, seguindo 0 fio dos tres ultimos livros da Etica, como, nesse ser natural muito composto que e 0 homem, se constitui progressivamente a subjetividade; como a conatus humano, que se tornou desejo, desdobra em torno de si, gra<;as ao papel constitutivo (e nao rna is simpiesmente negativo) da ima­gina<;ao, urn mundo humano que e realmente uma "segunda natureza"; como os desejos individuais, sempre gra~as a imagina<;ao, se comp6em entre e1es para introduzir nessa "segunda natureza" uma dimensao inter-humanaj e como, gra~as ao enriquecimento assim trazido a imagina~ao peia pro­pria produ~ao desse mundo humano e inter-humano, nosso conatus pode­se tornar cada vez mais autoprodutor, isto e, cada vez mais livre, fazen­do-se razao e desejo racional, depois conhecimento do terceiro genero e

16 Antonio Negri

beatitude. Nesses tres ultimos livros da Etica, a ontologia se torna entao, diz Negri, fenomenologia da pratica. E ela desemboca na teoria do que ela mesma pressupunha, na verdade, desde 0 inicio: 0 "arnor intelectual de Deus", a cujo respeito esta certo dizer que e, sob certo aspecto (se bern que esse nao seja, em minha opiniao, seu unico aspecto), a pratica humana se autonomizando pelo conhecimento que ganha de si mesrna.

Mas resta perseguir a utiliza~ao desse conhecimento, elaborando a teoria das condi~6es de possibilidade coletivas de sua genese, t:ujo lugar estava indicado na Etica, sem ainda estar efetivamente ocupado. Tal e 0

objeto do Tratado politico, sobre 0 qual Negri tern razao em dizer que e 0

apogeu, no sentido ao mesmo tempo positivo e negativo, da filosofia de Spinoza: seu ponto culminante e ao rnesmo tempo seu extremo limite.

Ponto culminante, pois Spinoza ne1e opera agora a constitui~ao, a partir dos conatus individuais, de sse conatus coletivo a que ele chama "potencia da multitudo". E isso sempre de acordo com 0 mesmo princi­pio: primado da for~a produtiva sobre as rela~6es de produ~ao. A socie­dade politica nao e uma ordem imposta do exterior aos desejos individuais; tampouco e constituida par urn contra to, por uma transferencia de direi­to da qual resultaria uma obrigacs:ao transcendente. Ela e a resultante qua­se mecanica (nao dialetica) das interacs:6es entre as potencias individuais que, ao se comporem, tornam-se potencia coletiva. Como em toda parte na natureza, as rela~6es politicas nada mais sao que as estruturas que a for~a produtiva coletiva fornece a si mesma e reproduz sem cessar atraves de seu pr6prio desdobramento. Nenhuma dissocia~aQ, em conseqiiencia, entre sociedade civil e sociedade polftica; nenhuma idealiza<;ao do Esta­do, mesmo democratico: admito inteiramente, com Negri, que estamos ai nos antipodas da trindade Hobbes-Rousseau-Hegel, se bern que ele me tenha censurado, em razao de urn mal-entendido pelo qual sou em grande parte responsavel, por causa de uma lingua gem que me ocorreu usar sem ter rnedido todas as conota~6es, par ter hegelianizado Spinoza urn pouco demais. E admito com ele 0 irnenso alcance revolucionario e a extraordi­naria atualidade dessa doutrina: 0 direito e a potencia, e nada mais; 0 di­reito que tern os detentores do poder politico e portanto a potencia do multitudo e nada rna is: e a potencia coletiva, cujo usc a multitudo lhes concede e torna a conceder a cada instante, mas que ela tam bern poderia rnuito bern deixar de por a disposi~ao deles. Se 0 povo se revolta, tern por defini~ao direito de faze-Io, e 0 direito do soberano, par definics:ao, desa­parece ipso facto. 0 poder politico, inclusive no sentido juridico da pala­vra "poder", e 0 confisco por parte dos dirigentes da potencia coletiva de seus suditos; confisco irnaginario, que s6 produz efeitos reais na rnedida em que os pr6prios suditos acreditarn na realidade dele. 0 problema en­tao nao e 0 de descobrir a melhor forma de governo: e 0 de descobrir, em

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, , cada ripo de sociedade politica dada, as melhores formas de liberafao, ista e, as estruturas que permitirao a multitudo reapropriar-se de sua poten­cia, desdobrando-a ao maximo - e que por isso, mas apenas por isso, co­nhecerao uma auto-regular;ao orima.

Quanta aos limites em que Spinoza esbarrou no exame detalhado dessas estruturas (capitulos 6 a 11 do Tratado politico), sao evidenternente os pr6-prios limites da situa~ao hist6rica que era a sua. Negri amigavelmente me censurou por tef eu insistido demais nesse exame detalhado, que pareee a ele menos interessante pelo conteudo que pelo fracasso que manifesta. Era no entanto necessaria, pareee-me, levar a serio aquila que 0 proprio Spino­za levou a serio. Mas reconher;o junto com Negri que, para nos e hoje, do ponto de vista do porvir como do ponto de vista da eternidade (0 que, afi­nal, vern a dar no mesmo), 0 essencial do Tratado politico sao os funda­mentos, tais como sao expostos nos cinco primeiros capitulos. E como es­ses fundamentos seriam incompreensiveis para quem nao tivesse lido a Eti­ca, Negri tern inteira razao em dizer que a verdadeira politica de Spinoza e sua metafisica, que e ela mesma politica de urn lado a Dutro.

Resta saber como Spinoza chegou, de seu panteismo inicial segundo o qual "a coisa e Deus", a esse estado final de sua doutrina segundo 0 qual "Deus e a coisa". E e neste ponto que ja nao concordo inteiramente com Negri, pelo menos no sentido de que ele me parece ter estabelecido uma verdade que nao e exatamente aquela em que acreditava. Pois penso, en­quanta que ele ja nao pensa assim, que esse spinozismo final (mediante urn acrescimo importante, e verdade) e a de toda a Etica, inclusive dos !ivros I e II. Segundo ele, esses livros I e II, com a forma que conhecemos, em particular com a doutrina dos atributos divinos que neles consta, corres­ponderiam a primeira reda<;ao da Etica, a que foi interrompida em 1665; e mostrariam, apesar de algumas antecipa<;oes, urn estado intermediario do pensamento de Spinoza, caracterizado por uma extrema tensao entre as exigencias de seu primeiro panteismo e a tomada de consciencia da impossibilidade de manter essas exigencias ate 0 tim; donde resultaria, querendo-se ou nao, uma certa dualidade entre a subsrancia e os mod os: de urn lado Deus, de outro 0 rnundo (0 "paradoxo do rnundo", diz Negri). Seria apenas nos livros III, IV e V, aD lado de algumas sobrevivencias da antiga doutrina reativadas para fins de "catarse" no livro V, que se mani­festaria plenamente a metafisica da for<;a produtiva: a teo ria dos atribu­tos teria quase desaparecido e nao desempenharia mais que urn papel re­sidual. Ora, sobre esse ponto, parece-me possivel uma discussao, que se poderia iniciar dirigindo a Negri as duas seguintes obje<;oes provis6rias:

1) E rnuito dificil reconstituir a prirneira reda<;ao da Etica a partir apenas dos materiais fornecidos pela obra. E verdade que os comentadores que 0

tentaram (em particular Bernard Rousset) conseguiram resultados muito in-

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teressantes e muito convincentes sobre certos pontos: pade-se fazer 0 levan­tamento, na Etica, de duas camadas de vocabulario distintas, uma das quais parece nitidamente mais arcaica (porque mais proxima da terminologia do Curto tratado); e, de uma a outra, a transforma<;ao vai no sentido de urn imanentismo mais radical, passando Spinoza do vocabuIario da participa­<;ao para 0 da potencia. Mas, por urn lado, isso sao apenas resultados par­cia is. E, por outro lado, referem-se a todos os livros da Etica: encontram­se as duas camadas em cada livro, sem que elas se repartam mais particular­mente entre os dois primeiros para a rna is antiga, e os tres ultimos para a rnais recente. Partanta naa me parece passive! afirrnar que as dais primei­ros livros, tais como os conhecemos, sejam anteriores a 1665, sendo so os tres ultimos posteriores a 1670. Ainda mais porque, de qualquer maneira, e muito pouco provavel que Spinoza, ao retomar sua reda<;ao em 1670 depois de cinco anos de interrup<;ao, nao tenha revisto a totalidade de seu texto. A antiga camada de vocabulario, mais provavelmente, sao, em cada livro, as palavras e expressoes que Spinoza manteve porque Ihe parecia possivel, mesmo ao pre<;o de algumas aparencias de ambigilidade que ele considera­va facilmente dissipaveis, reutiliza-Ios sem entrar em contradi<;ao com 0 novo estado de sua doutrina. Com efeito.

2) Nao vejo, de meu lado, contradi<;3.o entre os do is primeiros livros e os seguintes. Pode parecer que ha se considerarmos certos enunciados isoladamente, mas, se os recolocarmos no encadeamento das razoes, es­sas contradi<;oes aparentes desaparecem. E verdade que Spinoza quase nao fala dos atributos nos livros III, IV e V; 0 que e normal, pois tal nao e 0

objeto deles e 0 essencial sobre esse ponto ja foi dito. Mas as proposi<;oes que constam nesses tres livros sao elas mesmas demonstradas a partir de outras proposi<;6es, que sao demonstradas por sua vez a partir de propo­si<;oes ainda anteriores, etc.; e finalmente, se remontarmos a cadeia ate 0

fim, recaimos quase sempre em proposi<;oes referentes aos atributos. Tal­vez seja este, em definitivo, meu principal (e, em ultima analise, meu uni­co) ponto de desacordo com Negri: ele nao leva a serio a ordem das ra­zoes, que the parece ter sido acrescentada de fora e nao ser nada rna is que o "pre<;o pago por Spinoza a sua epoca". Nao posso, evidentemente, pro­var-lhe que se deve leva-Ia a serio. Mas penso que, quando se decide faze-10, descobre-se em toda a Etica uma coerencia logica muito grande; com a condi<;ao, explicito, de interpreta-Ia inteira em fun<;ao da doutrina final: se nao, efetivamente, haveria uma falha. Penso, com Negri, que a onto­logia concreta come<;a com a teo ria do conatus; mas a doutrina da subs­tancia e dos atributos e destinada a demonstrar essa teoria: a demonstrar que a natureza inteira, pensante e extensa ao mesmo tempo, e infinita e inesgotavelmente produtora e autoprodutora; e, para demonstra-Io, era preciso reconstituir geneticamente a estrutura concreta do real comefan-

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do por isolar por abstrac;ao a atividade produtora sob suas diversas for­mas - que sao precisamente os atributos integrados em uma 56 substan­cia. Pode-se, e certo, pensar que era inutil demonstra.-Io, mas Spinoza nao pensou assim. Pode-se tam bern pensar que ele esteve errada em naa pensa-10; sabre este ponto, novamente, nao teoho nada a objetar que seja logi­camente obrigat6rio: e uma questao de escolha metodol6gica. Mas e ver­dade que, se escolhermos considerar a ordem das raz6es como essencial, somas levados a dar mais importancia do que Negri ao que chamamos im­propriamente, por flaO ter podiclo encontrar terma mais adequado, 0 "para­lelismo" do pensamento e da extensao; 0 que, sem contradizer em nada sua interpretac;ao da doutrina final, simplesmente lhe aerescenta alguma coisa. Tal era 0 sentido da "reserva" a que eu aludia acima: e a teoria dos atributos, compreendida como Spinoza quis que fosse compreendida, que fundamenta, parece-me, a propria "segunda fundar;ao". Atraves disso a "vida eterna" do livro V, sem deixar de ser exatamente 0 que dela diz Negri, pode pareeer ao mesmo tempo, e sem "catarse" alguma, como eterna no sentido estrito.

Mas, enfim, penso que a primeira de minhas duas objer;oes anula em parte 0 alcance da segunda. Houve, de qualquer maneira, uma primeira reda<;ao da Etica, mesmo se nao foi reproduzida tal e qual nos livros I e II. E a argumenta<;ao de Negri a respeito dos outros textos do periodo 1665-1670 me da apesar de tudo a impressao de que essa primeira redar;ao deve certamente ter sido aproximadamente conforme ao que ele nos diz dela. o que tende a prova-lo sao, primeiramente, certos trechos comentados por ele da correspondencia de Spinoza que data dessa epoca. E e principalmente o papel de catalisador desempenhado pelo Tratado teol6gico-politico que ele estuda admiravelmente. Por urn lado, efetivamente, Negri nos faz sen­tir de modo muito convineente ate que ponto as exigencias da luta politi­ca travada ao longo de toda a obra, ao levarem Spinoza a tomar consciencia do papel constitutivo da imaginar;ao (ja vimos qual sera a importancia dela em seguida, nos tres ultimos livros da Etica), devem ter-Ihe inspirado a necessidade urgente de refundir seus conceitos. E, por outro lado, 0 que parece sugerir muito fortemente que essa necessidade ainda nao estava satisfeita em 1670 e a liga<;ao que Negri estabelece entre 0 conteudo que ele determina para a primeira reda<;ao da Etica e 0 fato de que, no Teo16-gico-politico, Spinoza ainda (ala de urn contrato social, quando todo 0

contexto mostra que logicamente ele ja poderia dispensa-lo: para se atre­ver a deixar completamente de falar de eontrato (como sera. 0 caso no Tratado politico), era preciso, efetivamente, possuir a doutrina final em sua forma mais madura; e e muito fecundo dar conta do desaparecimento dessa no<;ao vinculando-a, como faz Negri, a uma matura<;ao geral da fi­losofia de Spinoza em seu conjunto.

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Minhas reservas sao entao secundarias em relar;ao a minha admira­r;ao e a minha concorrencia. Em definitivo, e para alem das questoes de detalhe, 0 que me impressiona em Negri, principalmente, sao suas intui­r;oes fulgurantes que nos fazem perceber, como urn relampago constante­mente renovado do conhecimento do terceiro genero, a propria essencia do spinozismo. Isso vern com certeza (e nesse ponto, como em varios ou­tros, concordo com Deleuze) do fato de que sua reflexao teorica e sua pratica sao, desde ha muito tempo, as de urn verdadeiro spinozista.

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NOTA DO TRADUTOR DA EDr<;:Ao FRANCESA:

Para as ohras de Spinoza, adotamos 0 seguinte sistema de referen­cia: prirneiro a edi,ao Gebhardt, Spinoza Opera, 4 vol., Heidelberg, 1924 (abrevia,ao G., seguida da indica,ao do torno, depois da pigina), e em seguida, para a tradu,ao francesa, a edi,ao da Pleiade, Paris, 1954 (abre­via,ao P., seguida da indica,ao da pigina). Exernplo: "Etica II, Proposi­,ao XIII (G., II, p. 96; P., p. 367)".

NOTA DA TRADUTORA DESTA EDr<;:Ao:

Foram mantidas as referencias da ediC;ao francesa: as citac;oes, entre­tanto, para maior fidelidade a intenC;ao do autor, foram traduzidas da versao italiana feita por ele.

22 Antonio Negri

PREFAcro

Spinoza e a anomalia. Se Spinoza, ateu e maldito, nao acaba seus dias na prisao ou na fogueira, como cutros inovadores revoiucionari(}s nos seR

culos XVI e XVII, isto apenas indica 0 fato de que sua rnetafisica represen­ta a polaridade efetiva de uma rela<;ao antagonica de for<;as ja solidamente estabelecida; na Holanda do sfculo XVII, a tendencia seguida peio desen­volvirnento das for,as prod uti vas e das reia,6es de produ.;ao f clara: 0 futuro e para 0 antagonismo. Neste quadro, a metafisica materialista de Spinoza e entao a anomalia parente do seculo XVII: nao uma anomalia marginal e vencida, mas a do materialismo vencedor, do ser que avan<;a e co10ca, cons­tituindo-se, a possibilidade ideal de revolucionamento do mundo.

Sao tres as razoes pelas quais e uti! estudar 0 pensamento de Spinoza. Cada uma dessas razoes nao e apenas positiva, ela e igualmente problema­tica. Spinoza, em outras palavras, nao e apenas urn autor que coleca e resolve certos problemas de e em seu seculo; ele faz isso tambem, mas a propria forma da solu,ao cornpreende urna problernaticidade progressiva que alean,a e se instala em nosso horizonte filosofico. As tres razoes sao as seguintes:

Primeira: Spinoza funda 0 materialismo moderno em sua figura mais alta: determina 0 horizonte proprio da especula~ao filo,sofica moderna e contemporanea, 0 de uma filosofia do ser imanente e dado, do ateismo como recusa de qualquer pressuposic;ao de uma ordem anterior ao agir humano e a constituic;ao do ser. 0 materialismo de Spinoza, apesar de sua forma produtiva e viva, nao ultrapassa entretanto os limites de uma concepc;ao puramente "espacial" - ou ffsico-galileana - do mundo. Claro esta que ele forc;a essa concepC;ao, tenta destruir seus limites, mas nao chega a uma solw;ao, ate deixa por resolver 0 problema da rela~ao entre dimensoes es­paciais e dimensoes temporais, dinamicas e criativas do ser. A imaginac;ao, essa faculdade espiritual que percorre 0 sistema spinozista, constitui 0 ser numa ordem que apenas alusivamente e temporal. Mesmo assim 0 proble­ma esta colocado, e verdade que sem soluc;ao, mas em termos puros e for­tes. Antes mesmo da inven~ao da diaietica, 0 ser escapa a essa especie de monstro que e 0 materialismo dialetico. A leitura socialista e sovietica de Spinoza nao enriquece 0 materialismo dialetico, ela s6 faz enfraquecer as potencialidades da metafisica spinozista, suas capacidades de ultrapassar uma visao puramente espacial e objetivista do materialismo.

Segunda: Quando enfrenta tematicas politicas (e a poHtica e urn dos eixos essenciais de seu pensamento), Spinoza funda uma forma nao mis-

malia Selvagem JNSTITUTO DE PSICOlOGIA _ UfRGS 23

AAno BIBLJOTEClI

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f' tificada de democracia. Pode-se dizer que Spinoza coloca 0 problema cia clemocracia no terreno do materialismo, criticando entao como mistifica­,ao toda cancep,ao juridica do Estado. A funda,ao materialista do cons­titucionalismo democratico se inscreve em Spinoza no problema da produ­crao. 0 pensamento spinozista une a relac;ao constituic;ao-prodw;ao num nexo unitario. Nao e possiveI ter uma concepc;ao justa do politico sem unir des­de 0 inicia estes dois term os. E impossfvel e abjeto falar de democracia fora desse nexo: sabemos bern disso. Parem tem-se misturado Spinoza com ex­cessiva freqiiencia a urn mingau "democnitico" informe, feito de transceo­dentalismo normativo hobbesiano, de vontade geral rousseauniana e de Aufhebung hegeliana, cuja fun,ao propria e a de separar produ,ao e cons­tituic;ao, sociedade e Estado. Mas nao, no imanentismo spinozista, na con­cep~ao especificamente spinozista do polftico, democracia e uma polftica da multitudo organizada na prodm;ao, a re1igiao e uma religiao dos "igno­rantes" organizados na democracia. Essa constru~ao spinozista do polfti­co constitui urn momento fundamental do pensamento moderno: e se nao consegue exprimir ate 0 fim a funda~ao da luta de classe como antagonis­mo fundador da realidade, nem por isso deixa de enunciar todos os pressu­postos dessa concep~ao, fazendo da interven~ao das massas 0 fundamento da atividade de transforma~ao, ao mesmo tempo social e politi ca. A con­cep~ao spinozista "encerra" rejeitando toda uma serie de problemas misti­ficados propostos a burguesia no decurso dos seculos seguintes pelo pensa­mento liberal-democratico, principalmente em sua versao jacobina (e na linha teorica Rousseau-Hegel). Colocando 0 problema de forma pura: a rnultitudo que se faz Estado, os ignorantes que se fazem religiao - urn passado esra descartado, qualquer solu~ao juridica e idealista do problema esta eliminada, e entretanto, os seculos seguintes nao deixarao de, monstruosamente, tor­nar a propor isso - alude potentemente aos problemas que ainda hoje a luta de classe comunista se coloca. Constitui~ao e produ~ao como elemen­tos de urn tecido no qual se constroi a experiencia das massas e seu futuro. Sob a forma da igualdade radical imposta pelo ateismo.

Terceira: Spinoza nos mostra que a historia da metafisica engloba alternativas radicais. A metafisica, como forma eminente de organiza~ao do pensamento moderno, nao e urn todo homogeneo. Engloba alternati­vas produzidas pela historia subjacente da luta de classe. Ha "outra" his­toria da metafisica. Historia santa contra historia maldita. Sem esquecer entretanto que so se pode ler a epoca moderna a luz da metafisica tomada em toda sua complexidade. Em conseqiiencia, se isto for verdade, nao sao o ceticismo e 0 cinismo que constituem a forma positiva do pensamento negativo (do pensamento que percorre a metafisica para nega-la e abrir para a positividade do ser): a forma positiva do pensamento negativo so pode ser a tensao constitutiva do pensamento e sua aptidao para se mover como

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media<;ao material do processo historica da rnultitudo. 0 pensamento cons­titutivo possui a radicalidade da nega~ao, mas ele a sacode para enraiza­la no ser real. Em Spinoza, a potencia constitutiva da transgressao quali­fica a liberdade. A anomalia spinozista, ou seja, a re1a~ao contraditoria de sua metaffsica com a nova ordem da produ~ao capitalista, torna-se aqui anomalia "selvagem", isto e, expressao radical de uma transgressao his­torica de toda ordem nao direramente constitufda pelas massas, posic;ao de urn horizonte de liberdade indefinfvel de outra maneira que nao urn horizonte de libera~ao - pensamento tanto mais negativo quanto e mais constitutivo, quanta mais avan~a. Toda for~a de antagonismo, todo 0 tra­balho do pensamento inovador da epoca modema, toda a genese popular e proletaria de suas revolu<;oes e toda a gama das posi,oes republicanas, de Maquiavel ao jovem Marx, tudo isso se condensa na experiencia exem­plar de Spinoza. Quem poderia negar que, neste como em outros pontos, Spinoza se encontra em pleno imago do debate filosofico dos tempos mo­demos, quase como Jesus menino no Templo de Jerusalem?

Essas sao nossas primeiras razoes para interrogar Spinoza. Mas tal­vez nao seja inutil voltar urn pouco a isso. Pois essa descida as origens de uma alternativa teorica (a da revolu~ao face a genese da ordem capital is­ta, continuando justamente essa contradi~ao instalada no meio do desen­volvimento do pensamento moderno), e por outro lade esse reconhecimen­to, principalmente no pensamento de Spinoza, mas nao unicamente, de urn terreno e de urn projeto que nos permitem construir "para alem" da tra­di~ao do pensamento revolucionario, este tam bern enrijecido e cansado. Estamos diante de uma tradi~ao que foi recolher da lama as bandeiras da burguesia. Podemos nos perguntar, ao vermos sua historia, se ela nao tera recolhido apenas a lama.

Neste sentido, a leitura de Spinoza constituiu para mirn uma experien­cia de incrivel frescor revolucionario. Alias eu nao sou 0 unico que teve 0

sentimento de que era possivel avan<;ar nessa dire~ao. Houve uma grande renova~ao dos estudos sobre Spinoza nos ultimos vinte anos. No plano da interpreta~ao, estritamente filologica, esse fenomeno esra bern represen­tado pe1a extra ordinaria leitura da Etica, infelizmente inacabada, proposta por Martial Gueroult. Mas talvez 0 mais apaixonante seja outra coisa: isto e, as tentativas de releitura de Spinoza dentro da problematica critica da filosofia contemporanea, marxista entre outras. Na escola althusseriana, Macherey, por exemplo, refazendo 0 percurso da leitura hegeliana de Spi­noza, nao se satisfaz em denunciar as profundas falsifica~oes dela: indo muito mais longe, localiza no pensamento de Spinoza urn alicerce de criti­ca antecipada da dialetica hegeliana, urn trabalho de funda<;ao de urn me­todo materialista. Em outra perspectiva, e com preocupa~6es sistematicas diferentes, mas com uma potencia de inova~ao talvez ainda maior, Deleuze

A Anomalia Selvagem If;!ST1TUTO DE PS!COLOGJA _

BIBlIOTCCJl UFRGS25

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nos mostrou em Spinoza urn horizonte filos6fico pleno e ensolarado, que e i reconquista do materialismo como espa,o da pluralidade modal, como libera~ao concreta do desejo concebido como potencia construtiva. Temos ainda, no campo cia filosofia cia religiao e cia filosofia polftica, a redefini\=ao hist6rico-estrutural de Hecker e a Dutra, bern rna is feliz, de Matheron: a democracia pensada como essencia material, como produto cia imagina­\=ao das massas, como tecnica e projeto constitutivos do ser - que varre de urn 56 golpe 0 lagro dialetico. Desse ponto de vista, Spinoza critica 0

futuro antecipadamente: e portanto urn fil6sofo contemporaneo, pais sua filosofia e a de nosso futuro.

o que acabo de dizer - a respeito da profunda renova,iio das inter­preta\=oes do pensamento spinozista desde 0 fim dos anas 60 - contribuiu certamente para esclarecer algumas das razoes que levaram 0 autOr a rea­lizar este trabalho. Mas talvez se deva esclarece-Ias ainda mais. E incon­testa vel que fomos incitados a estudar as origens do pensamento moder­no e da hist6ria do Estado moderno atraves da ideia de que a analise da crise da genese do Estado burgues e capitalista pode contribuir para 0 es­clarecimento dos termos da crise de seu periodo de dissolu~ao. Mas devo acrescentar que, se esse projeto levou-me a empreender meus trabalhos anteriores (sobre Descartes, etc.), hoje ele me estimula muito menos. 0 que me interessa, efetivamente, nao e tanto a genese do Estado Burgues - e sua crise - quanta as alternativas te6ricas e as possibilidades subjetivas de revolu,iio em ato. Explico-me: 0 problema colocado por Spinoza e 0

da ruptura subjetiva da unidimensionalidade do desenvolvimento capita­lista (em sua dimensao burguesa e superestrutural como em sua dimensao propriamente capitalista e estrutural). Spinoza nos mostra a alternativa vi­vendo como potencia material dentro do bloco metafisico da filosofia mo­derna - para ser claro, do itinerario filos6fico que vai de Marsilio Ficino e Nicolau de Cusa a morte da filosofia no seculo XIX (ou, para falar como Keynes, a feliz eutanasia daquele saber de proprietario). Sempre achei paradoxal 0 fato de que os historiadores da filosofia reconstroem as al­ternativas indo para baixo: Gilson, em dire~ao a filosofia crista da Idade Media para a cultura moderna, Wolfson em dire,iio a cultura judaica da Idade Media para Spinoza - para citar apenas alguns exemplos. Sabe-se la por que esse procedimento e tido como cientffico! Quem poderia dize­Io? Para mim, esse procedimento representa exatamente 0 contrario de urn discurso cientffico, pois procura genealogias culturais, e nao uma genealogia material de condi~oes e de fun~6es de pensamento: ja a ciencia e sempre descoberta do futuro. Libertar-se de urn passado incomodo tambem nao adianta muito se nao se procura ao mesmo tempo 0 gozo do presente e a produ~ao do futuro. Por isso e que quero reverter 0 paradoxo e interpelar o futuro a partir da potencia do discurso spinozista. Ese, por prudencia e

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preguic;a, nao tiver exito com 0 futuro, quero pelo menos tentar uma for­ma as avessas de leitura do passado: colocando Spinoza diante de nossos olhos, eu, pobre "doutor" entre tantos outros, YOU interrogar urn mestre de verdade. Quero tentar uma forma de leitura do passado que me permi­ta, no caso, localizar os elementos passfveis de comporem, juntos, a defi­ni~ao de uma fenomenologia da pratica revolucionaria constitutiva do futuro. Tentar uma leitura do passado que me permita sobretudo (que nos obrigue a isso) acerrar as contas com toda aquela confusao culpada, com todas aquelas mistifica,6es que - de Bobbio a Della Volpe e seus ultimos produtos - nos ensinaram desde a tenra infancia a santa doutrina que reza que democracia e Estado de direito, que 0 interesse geral "sublima" 0 in­teresse particular sob a forma da lei, que os 6rgaos constitucionais sao responsaveis diante do povo em sua totalidade, que 0 Estado dos parti­dos * e uma magnifica mediac;ao polftica entre 0 uno e 0 multiplo, e tantas outras facecias do genero. No seculo XVII, Spinoza nao tern nada aver com esse monte de infamias. A liberdade, a verdadeira, a plena liberdade, aquela que amamos e pela qual vivemos e morremos, constr6i direramen­te 0 mundo, imediatamente. A multiplicidade niio e mediatizada pelo di­reiro, mas pelo processo constitutivo: e a constituic;ao da liberdade e sem­pre revolucionaria.

As razoes invocadas para justificar nosso estudo de Spinoza confluem, por outro lado, rodas as tres no terreno daquilo que se costuma chamar "procura de uma nova racionalidade". Numa forma radical, Spinoza de­finiu uma racionalidade "outra" que a da metaffsica burguesa. 0 pensa­mento materialista, 0 da produC;ao e 0 da constituic;ao, torna-se entao hoje o fundamento elementar e inconrornavel de qualquer programa neo-racio­nalista. Spinoza realiza tudo isso atraves de uma tensao fortfssima que contribui para determinar uma dinamica de projeto, uma dinamica de trans­forma~ao da ontologia. Vma ontologia constitutiva, baseada na esponta­neidade das necessidades, organizada pela imaginac;ao coletiva: esta e a racionalidade spinozista. Como base. Mas nao e s6. Spinoza nao se satis­faz em definir uma base, ele trabalba igualmente para desenvolve-la: e, quaisquer que sejam os limites desse desenvolvimento, convem delimitar e submeter a critica a arquitetura projetada. Particularmente onde ela en­globa a dialetica, nao como dispositivo formal do pensamento, mas como articulac;ao da base ontologica, como determina~ao da existencia e da potencia. 0 que suprime toda possibilidade de transformar a dialetica em chave generica, ela que e tomada, ao contrario, como urn modo de orga­nizaC;ao interne do conflito, como uma estrutura elementar do conhecimen-

.. Stato dei partiti: expressao corrente em italiano, designando 0 fato de que a estrutura do Estado e organizada em fun~ao do jogo dos partidos politicos. (N. do T.)

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to. E procurei assim caprar oeste estudo - no que se refere ao pensamen­to materialista - a teosaa spinozista para a defini~ao de urn horizonte de absoluta multiplicidade das necessidades e dos desejos; no que se refere ao pensamento produtivo - a tentativa spinozista de localizar na teoria da imagina~ao a filigrana da relas;ao entre necessidade e riqueza, a solu<;ao de massa da parabola platonica do arnor, socializada pelas dimensoes mo­demas da abordagem, pelos pressupostos religiosos das lutas, pelas con­di\=6es capitalistas do desenvolvimento; no que se refere, finalmente, ao pensamento constitutivo - a primeira defini<;30 moderna, por Spinoza, de urn projeto revoiucionario, na fenomenoiogia, na ciencia e na polftica, de refunda,ao racional do mundo, projeto baseado na libera,ao e nao na explora,ao do homem pelo homem. Nao formula e forma, mas a,iio e conteudo. Nao posirivismo, mas positividade. Nao legislac;ao, mas verda­de. Nao definic;ao e exerdcio do poder, mas expressao e gestao cia poten­cia. E preciso estudar ainda mais a fundo essas tens6es. Pois Spinoza cons­titui urn verdadeiro esca.ndalo (para 0 saber "racional" comum do mun­do em que vivemos): e urn filosofo do ser que realiza imediatamente uma reversao total do enraizamento da causalidade na transcendencia, colocan­do uma causa produtiva imanente, transparente e direta do mundo; urn democrata radical e revolucionario que elimina imediatamente ate mesmo a simples possibilidade abstrata de Estado de direito e de jacobinismo; urn analista das paixoes que nao as define como padecer, mas como agir­agir historico, materialista e portanto positivo. Deste ponto de vista, este trabalho e apenas uma primeira tentativa de aprofundamento. Ele requer, por exemplo, e urgentemente, urn complemento de analise sobre a ques­tao das paix6es, isto e, dos modos concretos de desdobramento do proje­to spinozista de refunda\30. 1sto sera 0 objeto de urn segundo ensaio, centrado nos livros III e IV da Etica. Trabalho a ser realizado e desenvol­vido em toda a sua potencia, nao pela pesquisa de urn estudioso solitario, naturalmente, mas na dimensao e na dire\ao de uma fenomenologia da pra­tica coletiva e constitutiva, rede a ser lan\ada para uma atual, positiva e revolucionaria defini\ao da racionalidade.

Esta obra foi escrita na prisao. Mas tambem pensada, no essencial, na prisiio. Claro que eu ja conhecia bern Spinoza, por assim dizer, desde sempre: desde 0 liceu, era apaixonado pela Etica (e aqui penso com afeto em meu professor de entao). Depois continuei a trabalhar nisso, nao dei­xava passar uma oportunidade de leitura. Mas nao tinha tempo para ini­ciar urn trabalho. Vma vez no carcere, recomecei tudo de zero. Lendo e to­mando notas, insistindo Com meus correspondentes para que me mandas­sem livros. Agrade,o-lhes de todo 0 cora,iio. Eu estava convencido de que na prisao se tern tempo. Ilusao. Pura ilusao! A prisao, seu ritmo, as trans­ferencias, a defesa, nao nos deixam tempo porque dissolvem 0 tempo: esta

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e a forma principal da pena no regime capitalista. Assim e que esse traba­lho, como todos os outros, foi feito no tempo roubado ao sono, arrancado ao regime do cotidiano. Que 0 cotidiano carcerario seja terrivel e nao te­nha a elegancia dos institutos universitarios, e bern verda de: e espero que essa falta de e1egancia se resolva, nesta pesquisa, em concretude demons­trativa e expositiva. Quanto ao resto, que me perdoem nao rer dado uma bibliografia complera (embora parerra-me ter visto 0 que era necessario ver), talvez nao ter suficientemente explorado 0 tecido histarico da cultura de Spinoza (em bora a leitura de Madeleine Frances e de Kolakowski, prin­cipalmente, me permita sentir-me em boa companhia), ter talvez cedido com excessiva facilidade aos encantos das interpreta~6es do "seculo de ouro" propostas por Huizinga e Kossman (mas substituf-las pelo que?), ter as vezes gozado do prazer da tese - fen6meno inevitavel para quem esra trabalhando fora da comunidade cientifica. Isto posto, nao penso que a prisao influen­cie no que quer que seja na qualidade do produto - nem para melhor, nem para pi~r: nao estou implorando a boa vontade da critica. Gostaria ate de poder me iludir com a ideia de que a solidao desta maldita cela tenha sido tao fecunda quanto a de Spinoza em seu laboratario atico.

Antonio Negri

Das prisoes de Rovigo, Rebibbia, Fossombrone, Palmi e Trani 7 de abril de 1979 -7 de abril de 1980

Dadas algumas dificuldades na localizaIJ3o dos textos criticos, preferi remeter as citac;6es (alem das traduc;6es que reporto) exdusivamente a ed. de C. GEBHARDT, SPINOZA, Opera, in Auf trag der Heidelberger Akademie der Wissenchaften, Heidel­berg, C. Winters, Universitatsbuchhandung, 1924-1925,4 vol.

A Anomalia Selvagem 29

Page 16: Negri, Antonio - A anomalia selvagem_poder e potenência em Spinoza

,1 Capitulo I A ANOMALIA HOLANDESA

1. 0 PROBLEMA DE UMA IMAGEM

Estudar Spinoza e se colocar 0 problema da despropor<;ao na historia. Da despropor<;ao de urn pensamento em rela<;ao as dimens6es historicas e as rela,oes sociais que definem sua genese. Urn simples olhar empirico e 0

suficiente para comprova-lo. 0 pensamento de Spinoza, atestam as croni­cas, e monstruoso, positiva ou negativamente. "Chaos impenetrable", "un monstre de confusion et de tenebres" para uns: Paul Verniere nos fez magis­tralmente a historia dessa tradi~ao do pensamento frances antes da Revo­Iw;ao I • Mas outros falam tambem "d'un homme iIIustre & savant, qui a ce que l'on m'asseure, a un nombre de Sectateurs, qui sont entierement attachez a ses sentimens,,2 -,0 que e fartamente demonstrado pela cor­respondencia de Spinoza. Em todos os casos, essas cronicas nos apresen­tam urn personagem e urn pensamento, uma irnagem e urn julgamento que evocam urn carater sobre-humano. E duplo, as vezes satanico: 0 retrato de Spinoza esta acompanhado de urn lema que reza "Benedictus de Spi­noza, Amstelodamensis, Gente et Professione Judaeus, postea coetui Chris­tianorum se adjungens, primi systematis inter Atheos subtiliores Arehi­teetus,,3. Ou entao, ao contrario: "illui attribue assez de vertus pour faire nai"tre au Lecteur l'envie de s'eerier: Sancte Spinoza, ora pro nobis"4. Con­tinuando nessa iinha, poderiamos encontrar aspectos certamente nao teoricos do culto de Spinoza ate no Pantheismusstreit, em Herder e em Goethe, sem falar da ideia de urn Spinoza "athee vertueux et saint de la raison laiqllc ", que volta a circula<;ao na Europa da belle epoque5

Essa imagem dupla de Spinoza sai cia cronica para percorrer a histo­ria da filosofia de maneira igualmente variada: a historia das interpreta­<;6es do pensamento de Spinoza e agora tao longa e contrastada que sobre ela se poderia tecer uma verdadeira historia da filosofia moderna6. Aqui tambem 0 essencial nao e simplesmente a dualidade dessa figura filosofi­ca, facilmente definivel em todo lugar onde aflora 0 enigma panteista. Essa mesma dualidade e essencial, sim, mas passando a ser monstruosidade, 0

absoluto de uma oposi<;ao que se revela na dualidade. E certamente Ludwig Feuerbach quem, melhor que qualquer outro, interpreta essa situa~ao, ele que compreende por urn lade 0 pensamento de Spinoza como urn mate­rialismo absoluto (0 reverso do hegelianismo)7, e que considera (ao coo­trario) a forma tomada por essa reversao, 0 naturalismo spinozista, como

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uma opera~ao de sublima<rao que realiza a passagem "da nega~ao a afir­ma\ao de Deus,,8. Pais bern, e justamente esse carater absoluto, esse extre­mismo, 0 que e marcante na realidade dupla do pensamento de Spinoza.

E agora, uma hip6tese: existem efetivamente dais Spinoza. Se conse­guirmos apenas afastar e veneer as calunias e as apologias produzidas pela hist6ria erudita, se nos colocarmos no terreno solido cia consciencia critica e hist6rica de nosso tempo, esses dais Spinoza surgem cia sam bra. E deixam de pertencer a hist6ria maldita ou santificada dos seculos obscur~s que pre­cedem a Revolu~ao. Sao dais Spinoza que participam cia cultura contem­poranea. 0 primeiro representa a mais alta consciencia produzida pela re­volw;ao cientifica e pela civiliza,ao do Renascimento. 0 segundo produz uma filosofia do porvir. 0 primeiro e produto do mais alto e mais amplo desenvolvimento da historia cultural de seu tempo. 0 segundo desloca e projeta as ideias de crise e revolw;ao. 0 primeiro e urn promotor da ordem do capitalismo, 0 segundo talvez seja 0 promotor, 0 autor de uma consti­tui<;ao futura. 0 primeiro e 0 ponto-final do mais alto desenvolvimento do idealismo. 0 segundo participa da funda<;ao do materialismo revoluciona­rio, de sua beleza. Mas esses dois Spinoza fazem uma so filosofia: e no entanto duas tendencias, bern rea is. Reais? Constitutivas do pensamento de Spino­za? Contidas na rela<;ao de Spinoza com seu tempo? Teremos de trabalhar no aprofundamento dessas hipoteses. Nao sera 0 horizonte empirico da historia erudita, nem 0 continufsta e categorial da historia filosofica que poderao nos restituir a verdadeira dualidade do pensamento de Spinoza. A ideologia nao tern historia. A filosofia nao tern his to ria. A ideologia e sua forma filosofica podem apenas ser historia. A historia de quem as produ­ziu e atravessou com seu pensamento a espessura de uma dada pratica. Po­demos aceder a eSsa pratica, a essa situa<;ao, mas entre aquele ontem e esse hoje nao ha outra continuidade senao a de uma nova pdtiea determinada. Nos e que nos apossamos de urn autor e the fazemos perguntas. Quem auto­riza essa utiliza~ao de Spinoza? Essa liga~ao entre sua pratica filosofica e a nossa? E a situa<;ao historica do pensamento de Spinoza, em todas as suaS impliea<;6es. A dualidade do pensamento de Spinoza, esse impulso interno que desloca 0 sentido dele para diversos horizontes, e uma anomalia tao forte e tao espedfica do pensamento spinozista que ela 0 torna ao mesmo tempo proximo a nos, possivel para nos, e irredutfvel a todos os mecanismos de filia<;ao, a todos os sistemas da ideologia da historia. 0 que noS e dado e

uma exee<;ao absoluta. Essa anomalia se fundamenta no mundo em que Spinoza vive e de­

senvolve seu pensamento. Anomalia spinozista, anomalia holandesa. "Quem pode lembrar-se", interroga Huizinga, "de outro povo que, mal tendo nas­cido, ja tivesse chegado ao apice de seu desenvolvimento civil? Talvez nos­so espanto fosse menor se a civiliza~ao holandesa do seculo XVII fosse uma

A Anomalia Selvagem 31

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perfeita e purfssima expressao cia forma de civiliza\ao entao dominante na Europa. Mas, examinando bern, flaD e 0 caso. Ao contrario, embora se en­contrasse entre a Fran~a, a Inglaterra e a Alemanha (abstrafmos aqui da Italia e da Espanha), a terra de nossos pais, mais que urn exemplo e urn modelo, representou urn desvio em rela~ao aD tipo geral de civiliza~ao cia epoca, urn caso a parte em muitos aspectos,,9. 0 que significa isso?

Para avaliar 0 fundamento dessa tese, comecemos primeiramente pon­do-a em rela'rao com os comportamentos culturais, com os aspectos mais sutis cia civiliza~ao do seculo de Duro. A apologia erudita nos mostra urn Spinoza canticle e reservado: e e verdade - a corresponciencia e muitissi­mos testemunhos nos confirmam. Mas isso nao e uma legenda, e nao pode ter valor de apologia, pois e a sociedade holandesa que e feita desse modo: o fil6sofo fica escondido na medida mesma em que esta socializado e inse­rida em uma vasta sociedade cultural perfeitamente adequada. Kolakowski, como veremos, nos descreve a vida reiigiosa e as formas de comunidade escolhidas pelas camadas cultas da burguesia holandesa 10: simplesmente, Spinoza vive num muncie no qual e uma regra social a de que as amizades e as corresponciencias se Cfuzem amplamente. Mas, para certas camadas de­terminadas cia burguesia, a suavidade de uma vida culta e retirada se aCOffi­

panha sem contradi~ao nenhurna cia convivencia com urn poder capitalista exercido em termos perfeitamente maduras. Sao essas as condi~6es de vida de urn burgues holandes. Do Dutro genic cia epoca, Rembrandt van Rijn, pode-se dizer a mesma coisa: em suas telas, a potencia da luz se concentra com intensidade sobre as figuras de urn mundo burgues em fantastica ex­pansao. Vma sociedade prosaica, mas extremamente potente, que faz poe­sia sem saber por que tern for~a para faze-Io. Huizinga sustenta com razao que 0 seculo XVII holandes nao conhece 0 barroco, em outras palavras, nao conhece a interioriza~ao da crise. E e verdade. Se durante a primeira meta­de do seculo XVII a Holanda e a terra de elei,ao de todos os libertinos da Europa, e do proprio Descartes, em busca de liberdade11 , nela nao se en­contrara entretanto nada do clirna cultural frances, da crise que 0 esplen­dor dissimula com dificuldade, e que a grande filosofia s6 faz exorcizar. Poder-se-ia dizer ralvez que 0 seculo XVII nunca atingiu a Holanda. Aqui, tem-se ainda 0 frescor do humanisrno, intato. Do grande humanismo e do grande Renascirnento. Tem-se ainda 0 sentido e 0 arnor da liberdade, no sentido rna is pleno do termo, justamenre 0 do humanismo: consrruir, re­formar. Tem-se ainda em funcionamento, imediatamente visfveis, as virtu­des revolucionarias sutilmente enfraquecidas pela crise nos outros paises, e que 0 abso.Iutismo em geral tenta anular em seu sistema politico.

Urn so exemplo: 0 absolurismo, naquele tempo, tenta remodelar 0

movimento de renova~ao fechando-o nas academias, num projeto de uni­fica~ao e controle da unidade literaria e cientifica do Estado. Quantos filo-

32 Antonio Negri

sofos e historiadores da filosofia tern desde entiio perambulado sob as ja­nelas das academias, ardendo do desejo de poder instalar·se nelas! Na Ho­landa do seculo de ouro, 0 pensamento e as artes tern sua sede nao apenas fora das academias, mas ate, na maior parte dos casos, fora das universida­des12 0 exemplo de Spinoza vale por todos os outros: ao declinar do ofe­recimento do excelenti'ssimo e nobilissimo senhor J.L. Fabritius, que lhe prop6e em nome do Eleitor palatino uma citedra em Heidelberg, ele lem­bra ao nobre que 0 carater absoluto da liberdade de filosofar nao sofre Ii· mita~ao alguma 13. Contra 0 que 0 outro hornem da Corte, irritado, pode apenas murmurar essas palavras malevolas: "II se trouvait bien mieux en Hollande oU ... i1 avait une liberte entiere d'entretenir de ses opinions et de ses maximes Ies curieux qui Ie visiteraient, et de faire de tous ses Disciples, ou des Deistes, ou des Athees"14. E exatamente 0 que Spinoza pensa (Tra­tado politico, cap. VIII, art. 49): "As universidades fundadas a custa da Republica se estabelecem menos para cultivar os ralentos que para conte­los. Numa livre republica, ao contrario, a melhor maneira de desenvolver as ciencias e as artes consiste em dar a quem quer que 0 pe'ra a autoriza'rao para ensinar publicamente, por sua conta e com risco de sua reputa~ao."

Mas essa anomalia holandesa, justamente, nao e feita somente de tranquilidade e sociabilidade. E de uma grande potencia comercial que se trata. Leyde, Zaan, Amsrerda estao entre os maiores centros industriais da Europa. 0 comercio e a pirataria se estendem do Vfstula as fndias Oci­dentais, do Canada as Molucas 15. Aqui, a ordem capitalista do lucro e a aventura selvagem da acumula'rao nos mares, a imagina~ao consrrutiva produzida pelos comercios, e 0 espanto que conduz a filosofia - isso tudo se conjuga. A imensidao selvagem dessas dimensoes acarreta urn saIto qualitativo que pode ser uma extraordinaria matriz, urn extraordinario campo de produ'rao metafisica. Contrariamente ao que afirma Cantimori seguindo Huizinga, penso que 0 Grotius internacionalista pode nos dizer mais sobre essa epoca que 0 Grotius autor de tratados piedosos 16: pois e nessa dimensao que aqui a anomalia se torna selvagem. Por fora e por dentro. Thalheimer, em sua introdu'rao ao estudo de Spinoza, acentua a intensidade da revolu~ao social em curso. Revolu'rao burguesa, mas jus­tamente sob forma anomala: ela nao e protegida pelo poder absoluto, mas se desdobra numa forma absoluta, em urn vasto projeto de domina'rao e de reprodu,iio selvagens. A luta de classe adota por muito tempo uma solll(;ao dinamica e expansiva: a forma politica da oligarquia ou da mo­narquia (de ripo "bonapartista", acrescenta Thalheimer!) instalada pelos Orange em 1672 - de qualquer modo num altlssimo nlvel de socializa­~ao capitalista (Holanda e Veneza: quantos politicoS e moralistas, duran­te os seculos da "crise da consciencia europeia", perseguiram 0 sonho de urn desenvolvimento na "forma imediata" da socializa'rao do capital! Vol-

A Anomalia Se1vagem 33

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rr

raremos logo a esse ponto)17, Nao pretendo discutir aqui a exatidao da defini<;iio de Thalheimer: meu problema e bern outro. Ou seja, que a ma­teria dessa vida holandesa, dessa sociabilidade cultural, e sobredeterminada pelas dimens6es da revolu~ao em curso.

Entao, se 0 fil6sofo nao esta na Academia, mas em sua o£icina, e se essa oficina se pareee tanto com ados humanistas (seguindo as recomen­da<;6es de Huizinga de nao confundir 0 humanismo do Norte, erasmiano, com 0 da Italia e 0 da Alemanha), a oficina do humanista, entretanto, ja nao e mais a de urn artesao. Como vamos ver, as grandes tendencias cultu­rais dominadas pelo pensamento de Spinoza: judaismo, Renascimento, Con­tra-Reforma e cartesianismo, jei mudaram de aparencia quando chega a stntese: oferecem-se a ele como filosofias que buscam ser adequadas para a revolw;ao em curso. Em Spinoza, essa mudanc;a e urn dado. A oficina do humanista ja nao e artesanal. Claro esta que e urn espfrito construtivo que a anima, 0 do Renascimento; que diferenc;a entretanto na propria maneira de se situar diante do saber: como ja parece longfnqua a epoca do artesa­nato, no entanto grande, de Giordano Bruno ou do ultimo Shakespeare, para ficarmos nos exemplos mais puros e mais perfeitos desse ultimo periodo do Renascimento - tao brilhantemente analisados por Frances Yates18! Ao contrario, aqui, na Holanda, em Spinoza, a revolu'fao romou as dimens6es da acumulac;ao em escala mundial, e isso e 0 que faz a anomalia holandesa: o aspecto desproporcionado de suas dimens6es construtivas a apropriadoras.

Pode ser utillembrar urn conceito ao qual voltaremos longamente: 0 conceito de multitudo. Ele aparece principalmente no Tratado po[{tico, a obra mais madura de Spinoza, mas e urn conceito que vive ao lange de toda a elaborac;ao do pensamento de Spinoza. Ora, e esse urn conceiro no qual a intensidade da heranc;a do Renascimento (0 sentido da dignidade nova do sujeito) se conjuga em extensao: essa qualidade nova do sujeito se abre ao sentido da multiplicidade dos sujeitos e a potencia construtiva que ema­na da dignidade deles, entendida como totalidade - ate levar 0 problema teorico e etico ao limite de compreensao do desmedido radical do desen­volvimento em curso.

E na base dessa for<;a material que se pode compreender a filosofia de Spinoza, como potencia e como anomalia em relac;ao a todo 0 pensa­mento do racionalismo moderno. Racionalismo irremediavelmente con­dicionado e fechado nos limites do desenvolvimento mercantilista19. Ve­remos, e claro, que esse seculo XVII hoI an des que nao e seculo XVII, essa primeira grande experiencia do essor capitalista e do espfrito burgues tam­bern encontram 0 momento da crise e a revelac;ao da essencia critica do mercad020. Mas a anomalia se prolonga tam bern na borda da crise do desenvolvimento: este foi levado ate rao longe, 0 apogeu da revoluc;ao trans­bordou de tal maneira os termos do movimento dclico - saltando a bai-

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xa conjuntura de 1660-1680, e cruzando de modo ambfguo em 1672 a crise das formas politicas pre-absolutistas - que permite a Spinoza nao fazer da crise 0 pecado original da filosofia racionalista (como antes em Des­cartes, ou na cultura francesa contemporanea): atraves da consciencia da crise, ela determina, ao contrario, que seja conectada uma visao superior, absoluta, da realidade. 0 tempo historico: seu paradoxo, muitas vezes des­tacado por Huizinga sob os mais diversos angulos, quando escreve, por exemplo, que "a Republica havia, por assim dizer, saltado a fase do mer­cantilismo,,21, e ia passar diretamente da acumulac;ao primitiva i fase do mercado monetario; ou ainda, em outra perspectiva, 0 tempo historico que ve a Holanda enterrar definitivamente as fogueiras para bruxas no inicio do seculo XVII - pois bern, esse tempo historico se submete ao tempo critico, e sua anomalia constitutiva permite a anomalia spinozista passar por cima dos proprios limites da cultura e da filosofia burguesas, alimen­tar e transfigurar a dimensao selvagem, aberta, enorme de sua base, orien­tando-a para uma filosofia do porvir.

Existem entao dois Spinoza? E bern possfvel. Ao ritmo da anomalia holandesa, determina-se efetivamente urn potencial te6rico que, sem dei­xar de se enraizar no conjunto complexo do desenvolvimento capitalista e no amago de seu involucro cultural, evolui entao numa dimensao futu­ra, numa determina'fao que ultrapassa os limites do tempo hist6rico. A crise da utopia da genese burguesa, a crise do mito originario do mercado -esse momento essencial da historia da filosofia moderna -, nao significa em Spinoza recolhimento, mas saIto, avan'fo, projec;ao no futuro. A base se decomp6e e libera 0 sentido da produtividade humana, a materialidade de sua esperanc;a. A crise destroi a utopia em sua determinidade historica de utopia burguesa, dissolve sua superficialidade contingente e abre-a, em compensa'fao, para a determina'fao da produtividade humana, coletiva: a filosofia critica instaura esse destino. Os dois Spinoza serao naturalmente dois momentos internos de seu pensamento.

2. A OFICINA SPINOZISTA

Os instrumentos e os componentes do pensamento de Spinoza se reu­nem no apogeu da revoluc;ao holandesa. 1a vimos que h:i uma base histo­rica do pensamento de Spinoza: proveniente dela e junto com ela aparece uma figura origin:iria, estrutural, que 0 processo genetico nos mostra sur­gindo. 0 pensamento percorre a ossatura desse substraro e a reconhece criticamente. A analise e a produc;ao filosoficas preveem uma totalidade material da qual se desembarac;ar para dela sair com capacidade de sfntese - e eventualmente de deslocamento. A sintese spinozista e potente em sua

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r' adequac;ao a potencialidade espedfica de sua epoca: e 0 que temos que ver 'agora. Adequac;ao a potencia e a tonalidade de seu tempo.

Idade de Duro, seculo de Duro? "E justamente 0 nome do seculo de ouro que naD cai bern. Cheira aquela aurea aetas, aquele mitol6gico Eldo­rado que ja nos aborrecia urn pOlleD quando eramos crianc;as e Hamas Ovidio na escola. Se 0 periodo florescente de nossa hist6ria tern que ter urn nome a qualquer pre<;o, que seja ele tirado da madeira e do a<;o, do piche e do alcatrao, das cores e cia rinta, cia ousadia e cia piedade, cia inteligencia e cia imaginac;ao. Idade de auro caberia melhor para 0 seculo XVIII, quando 0

Duro transformado em moedas se amontoava nos eafres." Eo que escreve Huizinga, e Cantimori destaca a inteligencia de sua abordagem22. E entao nessa "aura" tao densa e determinada que Spinoza e seus interlocutores se encontram, ocupando bruscamente 0 primeiro plano. Nao existe aqui, nessa sociedade holandesa e entre essas camadas da burguesia, a rfgida divisao do trabalho revelada pela elite intelectual europeia, francesa em particular, mergulhada na crise e na reestruturac;ao absolutista. Ou pelo menos nao tanto. A ciencia experimental ainda nao e de maneira alguma puro assunto de especialistas, menos ainda uma atividade de Academia; frequentemente ela e ate estranha a qualquer atividade professoral. 0 estudo das leis da reflexao faz parte do trabalho dos opticos, construtores de lentes, Jelles e Spinoza; Schuller, Meyer, Bouwmeester e Ostens sao medicos, e cuidam daquela emendatio do corpo que deve tambem investir na alma; De Vries faz parte de uma familia de comerciantes e pratica 0 comercio em bern grande escala, Bresser e cervejeiro, Blyenberg, vendedor de cereais; Hudde e urn ma­tematico que dedica urn estudo as taxas de juros sobre as rendas e deve a amizade de De Witt ter obtido 0 cargo de burgo-mestre de Amsterda. Pe­netramos assim na ultima e mais alta camada do cfrculo spinozista: urn meio que ve os membros da oligarquia participarem do desenvolvimento da fi­losofia, de De Witt a Burgh e a Velthuysen, ate Huygens e Oldenburg, ago­ra atraidos para a orbita da cultura cosmopolita23 . Ciencia, tecnologia, mercado, polftica: suas ligac;oes e articulac;oes nao devem ser colhidas numa mistura instavel que a ciencia do poder estaria separando (como nos ou­tros pafses europeus), mas diretamente como agentes, como facetas de uma concepc;ao da vida, de sua forc;a, de sua potencia ainda nao corrompida. Como atividade produtiva, como trabalho.

A biblioteca de Spinoza24 corresponde duplamente a essa situac;ao. Nao e uma biblioteca de especialista, a maneira do academico do seculo XVII25: e antes a biblioteca de urn comerciante culto, onde os classicos latinos e os politicos italianos (Maquiavel reinando) estao ao lado dos poetas espanhois e da filosofia humanista e contemporanea - uma biblioteca de consulta, para estimular 0 espirito, de estilo renascentista. Mas, em segundo lugar, nao e uma biblioteca da crise do Renascimento, nao e uma biblioteca bar-

36 Antonio Negri

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roca: 0 escritorio de urn intelectual da primeira metade do seculo era bern diferente26 - aqui nao ha magos, nao ha mnemotecnica. Em suma, e uma biblioteca humanista, na continuidade do projeto humanista, longe da cri­se que este sofreu em outros lugares. E uma cultura ainda of ens iva.

Se formos agora definir os componentes culturais do arsenal spi­nozista, encontramos pelo menos quatro: 0 judafsmo, 0 humanismo do Renascimento no senti do proprio, a escolastica (a~ lado da filosofia e da teologia tradicionais, renovadas pela Contra-Reforma) e 0 cartesianismo.

Spinoza e fortemente ligado a cultura judaica. Faz parte cla rica co­munidade de Amsterda que participa diretamente do poder27. A familia dos Spinoza e de nivel alto28 . Spinoza e educado nas escolas judaicas e certamente participa da polemica religiosa que se abre nelas29• As fontes judaicas do pensamento de Spinoza estao no amago de uma polemica agora secular: de Joel a Wolfson, a analise entretanto avanc;ou muit030 - e tudo isso deu resultados importantes. Mais importante ainda e 0 estudo das discussoes abertas na cultura judaica holandesa, e em particular na comu­nidade de Amsterda: as figuras de Uriel da Costa e de Juan de Prado pare­cern decisivas na constituic;ao dessa cristalizac;ao de problemas em torno dos quais se define a modernidade do debate31 • E no entanto, quando aca­bamos de ver bern isso tudo, ainda nlo chegamos ao imago do problema, tal como Spinoza 0 entende especificamente. Ele nao pode ser entendido a partir de seu lugar na tradic;ao judaica: e urn problema que se refere evi­dentemente a cultura do seculo XVII, 0 do encontro e do confronto entre uma filosofia do ser, tradicional, finalista, e a revoluc;ao humanista, seu nominalismo conceitual e seu realismo do ser. Quando se fala da influen­cia do pensamento judaico na filosofia de Spinoza, em sua formac;ao, e quase impossivel separa-la da influencia humanista. Assim como 0 con­junto da cultura, 0 judafsmo foi investido pelo humanismo: em func;ao direta da abertura da comunidade judaica ao mundo - a filosofia do mercado, as primeiras fafscas do espfrito do capitalismo nao podiam dei­xar de determinar, aqui tambem, ferteis conexoes. E e aqui que podemos estabelecer urn ponto forte, que certamente tern tambem sua importancia para quem quiser compreender a expulsao de Spinoza da comunidade. Em Spinoza, desde 0 inicio, a concepC;ao do ser se destaca das duas formas tradicionais elaboradas pela metafisica judaica: do finalismo teologico, expresso tanto na forma da imanencia quanto na forma do neoplatonismo, para chegar, ao contrario, a uma concepc;ao realista e produtiva do ser. Urn realismo produtivo cujo sentido nao se pode entender sem percorrer novamente todo 0 caminho que leva do primeiro humanismo a revolu~ao cientffica, e que se separa definitivamente, no decorrer desse processo, de qualquer suporte teologico. A concep~ao da imanencia da divindade no ser esta presente em toda a tradic;ao metafisica judaica, e encontra em

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Maimonides seu supremo fil6sofo32; assim tambem, por seu lado, a tradi­~<;ao cabalfstica, que emerge com for<;a no pensamento de Crescas, traz em pleno humanismo a ideia de cria<;ao-degrada<;ao de inspira<;ao plotiniana33;

pais bern, Spinoza conhece ambas as variantes metafisicas da tradi<;ao ju­daica, mas apenas para se libertar delas.

o encontro entre humanismo e filosofia judaica e simbolizado por Leaa Hebreu. Spinoza possui seus Dialogos34, Dar e que vern provavelmente a defini<;ao produtiva do ser caracterfstica de rada a sua primeira filoso­fia. Esse encontro e certamente decisivo no que se refere a filosofia do conhecimento, cnde aparece a sfntese "intuitio", "imaginatio", "ratio", que determina uma constante do pensamento de Spinoza35

: a tradi,ao do Banquete platonico se estabelece assim na grande filosofia moderna. Mas, no fundo, poder-se-ia objetar, isso ja ocorrera com Giordano Bruno! E Spinoza pareee ref tirado muira coisa de Bruno36! E entretanto ha aqui mais do que em Bruno, rna is do que era possivei rirar do pensamento de Bru­no: a produtividade do ser definida por Giordano Bruno nunca se liberta cia analogia com a produc;ao artesanal ou a criac;ao artfstica, e conseqiien­temente recai no campo do animismo universal37• A concepc;ao do ser em Spinoza, ao coorrario, e uma concepc;ao sohredeterminada, lange de qual­quer analogia ou metafora possiveis: e a concepc;ao de urn ser parente, que nao conhece hierarquia, que 56 conhece sua propria forc;a constitutiva38.

E claro que entao a tendencia naturalista que atravessa a filosofia do huma­nismo e do Renascimento para chegar a Telesio e a Campanella tambem acaba se esgotando, quaisquer que sejam as influencias sobre pontos es­pecfficos que delas se possam encontrar na obra de Spinoza39

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Bern, voltemos agora ao problema dos dois Spinoza, pondo em re­la~ao 0 primeiro e 0 segundo: paradoxalmente, teremos de qualquer modo "ser produtivo" contra "ser produtivo". 0 que significa isso? Significa que Spinoza sustenta desde 0 inicio uma concep~ao radicalmente onto16gica, nao finalizada, produtiva. Quando seu pensamento passar para urn nivel superior, chegara a uma concep~ao tal que, sem que 0 ser perca sua espes­sura, qualquer residuo de transcendencia se encontrara eliminado. 1a. nao ha mais lugar para a transcendencia gnoseologica no primeirfssimo Spi­noza (salvo talvez na concep<;ao do atributo). 0 mesmo se veri fica para todo momento possive! de transcendencia etica. Passar para a fase de ma­turidade significara, para a filosofia de Spinoza, raspar 0 minimo residuo de diferen~a ontologica, e ate 0 proprio conceito de produtividade onto­logica quando ele quer se colocar como eategorialmente articulado. 0 ser produtivo do segundo Spinoza sera apenas constitui<;ao ontologiea da pra­tica. Trabalhando na cultura que lhe e contemporanea, Spinoza recupera, depura, fixa urn primeiro polo ontel6gieo, fundamental e fundador, retoma a tradi~ao judaica uma concep<;ao substancialista do ser que desenvolve a

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maneira dos humanistas, no sentido da produtividade. Exacerba 0 natu­ralismo ate ultrapassa-Io. Mas a segunda fase de seu pensamenta marcara urn salto qualitativo: a urn certo nivel de afinamento erftieo, 0 problema passa a ser 0 do materialismo desenvolvido.

Essa prime ira polariza<;ao cultural da filosofia de Spinoza em seu perfodo de genese e ao mesmo tempo confirmada e posta em crise pelas influencias determinadas por urn segundo grande grupo de doutrinas: a escolastiea da Contra-Reforma e 0 eartesianismo. Ainda aqui as auas dou­trinas estao estrategicamente misturadas, principalmente no meio cultu­ral holandes, e formam urn pesado claro-eseuro por tras do pensamento de Spinoza40. Ora, 0 fundamental aqui e que essas duas doutrinas rom­pem a unidade do ser. Uma atraves de uma reelabora<;ao da teoria da trans­cendencia ontologica e da funda<;ao de uma metafisiea do possivel, a ou­tra atraves da teo ria da transcendencia epistemologiea. Spinoza com cer­teza encontra 0 pensamento da Contra-Reforma desde a juventude: em 1652 ele esta na escola de Franciscus van den Enden, urn ex-jesuita que provavelmente acrescentava a eleganeia do latim e do holandes reminis­cencias da filosofia da ordem S.J41 Mas, de qualquer modo, ele podia respirar esse pensamento em terno de si, de tal modo estava difundido na eultura universitaria, filosofica e teologica de seu temp042. E aqui e preci­so prestar aten<;ao: essa corrente de pensamento, com efeito, apoia-se em elementos que serao paradoxalmente essenciais na genese da segunda fun­da<;ao da Etica43, quando a unidade absoluta do ser pantefsta vai procurar se abrir ao problema da constitui~ao do real, enfrentara para isso a tematica do possivel e tendera para uma filosofia do porvir. No pensamento politi­co do Spinoza da maturidade, sera, a!em do mais, essencial verificar a in­fluencia das teorias da Contra-Reforma. Mas por enquanto, no primeiro Spinoza, ha antes uma urgencia contraria: ele tinha de se libertar desse pen­samento, dessa escolastica reacionaria da Contra-Reforma, da irrealidade ordenada do ser que ela descrevia, das hierarquias e dos graus ontologicos, das ordens do imaginario.

o quadro teorico tinha igualmente de se libertar da ideologia razoa­vel do cartesianismo: "Em Descartes, Deus e sem duvida objeto da mais clara e rna is distinta das ideias, mas essa ideia nos faz conhece-lo como incompreensivel. Tocamos 0 infinito, nao 0 compreendemos. Essa incom­preensibilidade se manifesta na onipotencia, a qual, elevada acima de nossa razao, marca-a com uma precariedade de princfpio e nao the deixa outro valor senao aquele com que a investiu, atraves de urn decreto arbitrario. De Deus, 0 misterio se espalha para as coisas. Feito para conhecer 0 infi­nito, nosso entendimento, inca paz de decidir se elas sao finitas ou infini­tas, encontra-se reduzido a prudente afirma<;ao do indefinido. Finalmen­te, na base de nosso ser, nos sa natureza psicofisica poe em evidencia a

A Anomatia Selvagem 39

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f !ncompreensibilidade de uma uniao substancial entre duas substancias incompativeis. A onipotencia incompreensivel de Deus se manifesta aqui num efeito singular, e a razac e obrigada a se limitar a si mesma para re­conhecer nessa esfera a primazia do sentimento. Assim, no alto, em bai­XO, e ate no centro, nossa razac permanece em toda parte confrontada com o misterio,,44. A revolu\=clo em seu apogeu naG admire essas fraquezas. 0 Deus de Descartes e pura e simplesmente "asylum ignorantiae "45 assim como 0 Deus dos supersticiosos e dos ignorantes. Traduzido ern pIasa: a rela\=ao, vista pelo lade cia burguesia, quef a totalidade, quef uma solu\=ao imediata. Se confrontarmos Spinoza com seus contemporaneos na Euro­pa, encontramo-nos diante de urn carater absoluto e imediato na concep­c;ao do ser que destroi qualquer ilusao tatica. A tatica e 0 ser sem soluC;ao: e Descartes46. E 0 sonho dos robins, seu projeto domina do pelo medo, diante da crise do mercado, diante da primeira avaliaC;ao dos efeitos da luta de classes - e, em seguida, diante da aceitac;ao da mediac;ao absolutista. Para completar 0 raciocfnio: serao ainda menos aceitas, nos Paises Baixos, no apice do processo revolucionario, concepc;oes que, de urn modo ou de outro, vejam 0 ser se expor num vazio sem fundo de existencia, sob os trac;os do misticismo, judeu ou cristao, que 0 seculo continua a produzir. Se a uto­pia se ergue, e entao uma utopia positiva. Se 0 ser vern a presenC;a, e urn ser pleno. Essa compacidade do ser bern que sofre 0 assalto da via meto­dica, mas 0 proprio metodo e plenitude ontologica: em todo caso nao ha o menor artificio, 0 sentido ontologico da fisica galileana expulsa 0 meto­dologismo formal de Descartes47• Nada a ver com Descartes, entao, nem mesmo deste lado. Nada de metodo considerado como uma hipotese. Nada de moral provisoria. Nenhum direito para 0 indefinido se apresentar como urn para alem da superficie, nem no terreno ontologico, nem - ainda menos - no da etica. 0 mundo frances e continental embrenhou-se no campo do compromisso necessario. Aqui na Holanda, isso nao tern sentido. Na verda de, 0 classicismo deforma a ordem da razao, retira a originalidade produtiva que e peculiar a inteligencia revolucionaria. 0 pensamento e a experiencia da crise ainda estao longe do Spinoza dessa epoca.

Voltamos assim ao centro motor do periodo de genese do pensamento de Spinoza. E urn pensamento de tipo renascentista, no qual 0 imanentismo naturalista e levado aos limites de uma concepc;ao ao mesmo tempo abso­lutamente ontologica e absolutamente racionalista. E urn conjunto poten­te que constitui essa sintese: em relac;ao com as dimensoes da revoluc;ao capitalista e da maturidade alcanc;ada na Holanda peIo processo da acumu­lac;ao primitiva.

Tudo isso, entretanto, perderia conotac;oes essenciais se fosse esque­cido outro componente dessa sintese: urn componente formal e no entan­to fundamental. 0 componente religioso. A filosofia e a biografia tornam

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a se cruzar aqui, e de maneira determinante. Quando, a 26 de julho de 1656, Spinoza for expulso da comunidade judaica de Amsterda, e muito prova­velmente tam bern do milieu comercial judaico - encontrando-se assim numa situac;ao economica dificil -, ele vera se formar em torno de si urn grupo de pessoas que serao os primeiros companheiros de estrada decla­rados de sua pesquisa. Por volta de 1660, ao se retirar para Rijnsburg, a pequena comunidade se reforc;a e se torna filosoficamente importante. Outro grupo se reune em Amsterda. Ora, trata-se de uma comunidade religiosa. Colegiantes, arminianos? A propria definic;ao desses termos e pro­blematica48 • Na verdade, trata-se de uma experiencia solida e nova: soli­da porque retoma todos os aspectos de uma religiosidade "sectaria", ago­ra integrando a socialidade holandesa; nova porque traduz essa experien­cia naquela formidavel experimentac;ao de rigor racionalista aplicado ao comportamento religioso. Mas falar de experiencia religiosa nao e abso­lutamente 0 mesmo que fazer dessa comunidade uma comunidade con­fessional49; e, por outro lado, declarar que essa comunidade nao e con­fessional nao e 0 mesmo que afirmar que ela se compoe de esprits fibres, quase que de libertinos a francesa, certamente nem colegiantes nem refor­madores religiosos50. Kolakowski51 , retomando as conclusoes de Meins­ma52, nos conta a historia daquela comunidade. E, acrescenta, simplesmente nao tern sentido colocar 0 problema da distinc;ao, para os menonitas, en­tre comunidade e reforma interior e - naquele clima - em ultima anali­se tambem nao tern sentido distinguir entre reformadores religiosos e li­vres-pensadores deistas. 0 fato e que a atitude nao confessional e funda­mental, e que e sobre essa base que se articulam as diversas figuras da sin­tese entre racionalismo e religiosidade. Mas se os membros do circulo spinozista nao se consideram como crista os, nada nos autoriza a concluir­mos dai que eram libertinos, ou estranhos a qualquer preocupac;ao religio­sa53• Estamos entao no aspecto formal da sintese spinozista. 0 racionalismo eo ontologismo absolutos tomam a forma da religiosidade: mas ela ja per­corria aquele pensamento, do Eros de Pia tao ao Demonio de Diotima re­contado por Leao Hebreu.

Aqui, entretanto, a conexao e a 0 mesrno tempo serena e ainda mais tensa que antes: serena em sua visao da plenitude do ser, em sua conscien­cia da maturidade da revoluC;ao. Mas novamente tensa, e ainda mais que antes, pois 0 proprio fato de se apresentar como urn solido projeto revo­lucionario exige que seja ultrapassado, reivindica urn deslocamento de conjunto. Nao deixa de ser curioso que ninguem tenha querido captar naquele Spinoza os elementos selvagens ja contidos nesse primeiro exito sintetico! Eram elementos impuros para 0 racionalismo, mas no entanto bern presentes, e que importancia tinham! 0 circulo spinozista e atraves­sado por pontas de religiosidade quiliastica e por uma tensao interna que

,~"'. , , - . A Anomalia Selvagem

iEiti3LLJ il t.~,4 41

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rr ~nao poderemos deixar de lef ate no Spinoza da maturidadeS4• Mas talvez fosse necessario aqui levar em conta muitos outros elementos, 0 menor dos quais nao sendo 0 fato de que Rijnsburg fica a dois passos de Leyde, que se tornara centro textil e manufatureiro de primeira importancia, e antes terra anabatista por excelencia. E a terra tala sua hist6ria55•

Teremos que voltar amplamente a tudo isso. Queremos por enquanto insistir no fato de que a forma reiigiosa do pensamento de Spinoza depen­de da forma da cultura holandesa no apogeu do processo revoluciomlrio. Essa religiosidade sobredetermina a especificidade material do processo revolucionario tal como e lido por Spinoza. E uma mistura de racionalismo teologico refinado, vasta adesao popular e amplo debate. Como lembra Huizinga, neste ponto a tradi~ao do humanismo popular reapropriou-se do calvinismo e 0 transfigurou. E isso e exatamente 0 que faz essa anoma­lia holandesa: a extraordinaria continuidade da presen<;a do milO huma­nista, de que 0 primeiro Spinoza e 0 apologista.

3. A REVOLU<;Ao E SUA BORDA

E verdade que a forma politica da Republica dos Paises Baixos nao esta ao nivel da maturidade alcan~ada pela revolu~ao social e economica. Todos os autores frisam issoS6. Mas que forma polftica e essa? Na realida­de, no periodo que nos interessa e que vai da morte de Guilherme 11(1650) it "Grande AssembIeia" de 1651, que atravessa todo 0 periodo da hegemo­nia de Johan De Witt (1653-1672) eve, para terminar, a vit6ria de Guilherme III e da casa de Orange, a forma politica da Republica holandesa nao che­ga a se definir. Ela permanece urn conjunto de figuras e estruturas, federadas ou hierarquizadas, ligadas, de qualquer maneira, segundo esquemas que evitam qualquer carater funcional e resultam simplesmente de uma acumu­la~ao de experi(!ncias tradicionais, em particular das experiencias institu­cionais proprias ao desenvolvimento comunal, preso na permanencia das formas politicas da Idade Media tardia: 0 equilibrio dos poderes ou 0 cara­ter central de urn poder sao fixados a cada vez, dependendo das rela<;6es de for~aS7. Diante desse magma constitucional, as proprias apela~6es rna is usuais, como "republica oligarquica" ou "monarquia bonapartista" (no sentido de Thalheimer) me parecem entao excentricas e inadequadas. Na verdade a constitui~ao holandesa nao tern urn conjunto formal de regras, e vive antes da permanencia - agora bastante inerte - da dinamica ins­titucional propria ao processo revolucionario. Lendo Spinoza: "Os holan­deses pensaram que fosse suficiente, para ganhar a liberdade, depor 0 con­de e tirar a cabe~a do corpo do Estado; nao pensaram em reformar esse Estado. Deixaram ficar todos os membros em sua disposi~ao anterior, de

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maneira que a Holanda se tornou urn condado sem conde, urn corpo sem cabe~a, e 0 proprio Estado nao tern nome que 0 designe. Por isso nao e de espantar que a maior parte dos suditos ignore em que mao se encontra a potencia soberana do Estado"S8. Mas dal nasce tambem 0 potencial de crise da constitui~ao: Spinoza tam bern 0 frisa. De Witt insiste sem cessar nesse ponto depois cia falencia da "Grande Assembleia"S9. E preciso entretanto que a essencia negativa da coisa, ate aqui enfatizada, revele igualmente sua essencia positiva, que the esta inevitavelmente ligada se nao poaemos me­ramente negar a potente efetividade da existencia e do desenvolvimento da Republica. E nao penso estar me utilizando de categorias totalmente ina­dequadas ao insistir na seguinte hipotese: a constitui~ao politica da Repu­blica holandesa, durante esse periodo, esta completamente implicada em sua constitui~ao economica. As formas polfticas sao relativamente neutras, "con­junturais" - para falar como Keynes-Hamilton quando estudam justamente a rela~ao que define a genese do capitalismo, pensando sua rela~ao com a forma-Estado*60. De Witt e Guilherme III, eles mesmos sao fenomenos con­junturais, desde 0 momenta em que a constitui~ao formal (se e que se pos­sa icientifica-la) esta completamente subordinada a materialidade constitu­cional das rela~6es economicas. Nao tenho a pretensao de que isto consti­tua uma regra: ao contrario, e urn sinal- mas de quanta importancia! -do carater excepcional da Holanda, da anomalia que ela constitui. Quanto a forma da ideologia, comparada com a extraordinaria for~a de inova~ao das rela~6es de produ~ao, permanece arcaica: quer se trate do democratismo da escola althusseriana (mas teremos de voltar a certos aspectos dessa tradi­~ao, essenciais em outros aspectos)61, ou das novas tentativas de teoriza~ao do absolutismo feitas pelos irmaos De La Court ou Von Insola62

, ela nao influi em nada sobre 0 que sao realrnente as rela~6es de for~a politicas. Nao e uma frase de efeito deslocada insistir no fato de que a Companhia das In­dias Orientais apresenta caracteristicas formais mais adequadas que qualquer outra figura constitucional no sentido estrito, que qualquer ideologia pro­priamente politica, para nos designar a verdade da constitui~ao holandesa.

Se quisermos ir mais ao fundo do problema, e novamente, tam bern sob este aspecto, do humanismo e do Renascimento que se devera partir para se compreender alguma coisa. Da ideia do mercado como espontaneidade das for~as produtivas, como sua rigorosa e imediata socializa~ao, como determina<;ao de valor atraves desse processo. A filosofia da apropria<;ao emerge naturalmente da do mercado. 0 mercado realiza a fa~anha de uma

>} "Forma-stato"; conceito da autoria de Negri, designando ao mesmo tempo 0

Estado como forma e a forma do Estado; constitui 0 titulo de uma das obras de Negri, La forma stato. Per fa critica dell'economia politica della costituzione, Milao, 1977. (N.

do T. da ed. francesa)

A Anomalia Selvagem 43

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coincidencia entre a apropria~ao individual e a sociabiliza~ao da for~a pro­dutiva63. Pouco irnporta que a "Respublica" seja na verdade urn conjunto de "res publicae": 0 essencial e a solu~ao que tern de se irnpor, e 0 disposi­tivo que tern de ser implantado Com a rela~ao delas, e a unidade dinamiea e criadora de valor - valorizante para todos os seus membros - que essa rela~ao nao pode deixar de determinar. A efetividade dessa representa<,;ao e importante do ponto de vista da amllise: efetivamente, pode-se ler nela 0

funcionamento produzido para qualificar a realidade pelos tempos fortes do desenvolvimento e uma certa dimensao institucional do comercio (as Companhias, por exemplo, ou a Bolsa de Amsterda).

Qual e 0 esquema cultural, filosofieo, ideologico, que rege essa repre­senta~a064? Diante dessas representa\oes da realidade, costumamos racio­cinar em termos dialeticos: mercado igual a dialetica. Nao no seculo XVII. a esquema filosofico mais adequado a esse tipo de imaginario real e, nessa situa~ao, 0 esquema neoplatonico. Urn neoplatonismo renovado, eoneebi­do como urn desenho da correspondencia universal das causas e efeitos, vivido como urn vInculo contInuo entre existencia subjetiva e essencia objetiva, entre individualidade e coletividade. A hist6ria da filosofia, de Dilthey a Cassirer e a Paolo Rossi65, fez questao de mostrar a importancia da representa\ao neoplatonica do mundo que atravessa triunfalrnente 0 Renascimento e se rearticula nas filosofias que dele derivam. Parece-me que se deve alern dis­so insistir num fato que constitui para nos urn ponto essencial no periodo aqui considerado: essas fun~oes de conexao universal, interpretadas pelo neoplatonismo, perdem cada vez mais sua pesada conota~ao ontologica que, na tradi~ao plotiniana originaria, situava a conexao no quadro do proces­so metaffsico de cria~ao-degrada~ao do ser, a dimensao da rela~ao "horizon­tal" se encontrando submetida a da cria\ao e da hierarquiza\ao "verticais". Como bern demonstrou Deleuze66, 0 neoplatonismo, ao se desenvolver, tende a se transformar em filosofia da expressao, em pensamento da superficie, e a eliminar todo aspecto de transcendencia, de hierarquia, de emana\ao e de degrada\ao. E eu queria dizer que me parece que a primeira ideologia de mercado - essa ideologia que produz extraordinarios efeitos de efica­cia constitucional- esta ligada a urn plano ideologico assim. No primeiro Spinoza, teremos com que captar e avaliar a perspectiva que se abre aqui.

Mas no entanto e sempre de ideologia que se trata, de utopia burgue­sa. Ideologia de classe que, em fun\ao de seus interesses, quer destruir a contradi,iio e 0 antagonismo de que se alimenta. Por volta de 1660 se abre na Holanda, como no restante das economias europeias, urn cicio econo­mico descendente, que vai durar ate perto de 1680. Esse cicio descendente nao implica, naturalmente, uma feroz recessao economica, ou qualquer outro fenomeno patologico ana logo, num lugar como os PaIses Baixos, onde as estruturas capitalistas sao tao fortes. Mas, tudo isso se acrescentando a outras

44 Antonio Negri l

contradi\oes que se abriram ao nivel internacional (deve-se lembrar em particular a segunda guerra anglo-holandesa, em torno de problemas de con­correncia maritima, 1665-1667, e 0 grave conflito franco-holandes que, de uma maneira ou de outra, com uma alternancia de vitorias e derrotas, se estende de 1670 a 1676), a crise aparece e se revela particularmente eficaz para atingir e destfuir a especificidade da experiencia e da ideologia politi­ca holandesas67. Em outras palavras, 0 que entra essencialmente em crise e o sonho de uma socializa,iio linear dos efeitas do desenvolvimento capita­lista, 0 que entra em crise e 0 modelo de expansao no qual 0 conflito de classe estava contido e posta em equilibrio. A revolu,ao capitalista mostra sua bor­da: mesmo na Holanda, com uns trinta anos de atraso em rela\ao a cesura representada na Europa pelos anos 30 do seculo xvn68 , mas com uma efi­cacia nem por isso menor. E bern verdade que a derrota dos De Witt e a so­lu~ao orangista da crise constitucional de 1672 nao representam 0 momento pontual e decisivo da crise: ja desde a metade dos anos 60, a politica dos De Witt era fun\ao das dificuldades novas do desenvolvimento, as quais ela se curvava. E nao se pode dizer, por outro lado, que a solu\ao orangista re­presente uma saida do marasmo institucional: nao e uma reforma consti­tucional, mas uma restaura~ao. De fato, urn e outro, De Witt e Guilherme III, sao momentos de uma conjuntura, mas de uma conjuntura critica, des­tinada a tornar-se sempre mais pesadamente critica. Fim da anomalia ho­landesa? Seja como for, e certo que, com a passagem que ocorre aqui, a situa~ao holandesa, apesar de todas as especificidades que conserva, come\a a se aproximar da situa~ao europeia. A teoria politica pouco a pouco e levada a aceitar 0 pensamento que, com a crise, melhor interpreta a natureza ago­ra inevitavelmente critica do desenvolvimento da classe burguesa: de ma­neira que, desse ponto de vista, Hobbes realmente se torna 0 Marx da bur­guesia. A exigencia burguesa de apropria~ao necessita, para se desenvolver, e ate para se eonservar e se estabilizar, de uma rela~ao de sujei~ao. Isso tudo QCorre na ideologia: simula~ao da rela\ao politica que e historicamente vivida como crise do desenvolvimento revolucionario que precede. Chega-se ate a considerar 0 proprio desenvolvimento revolucionario, a gloriosa of ens i­va de apropria~ao do humanismo e do Renascimento, como urn estado de guerra, como uma sociedade de vioH~ncia natural de que e preciso se liber­tar: a crise do desenvolvimento e projetada sobre a genese, de maneira a qua­lificar a insuficiencia de urn proeesso, os limites de urn projeto, a conscien­cia culpada que se segue ao desmasearamento de uma mistifica\ao - que entretanto fora uma ilusa069•

Na borda do processo revolucionario, no limite da crise, Spinoza re­eusa a conclusao hobbesiana, recusa a conclusao burguesa. Recusa a bur­guesia? Pelo menos uma eoisa e certa: seu pensamento vai mais aiem dos limites determinados pela reflexao sobre a crise. Nao e que esta nao entre

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r emlinha de conta, naa e que 0 patente atomismo mecanicista dos pressupos­tos hobbesianos naD seja aceito - e entao que a crise, como possibilidade e atualidade de seu conceito, DaD tenha seu lugar na filosofia. Mas, em Spi­noza, a borda da revolw;ao naD pode se reduzir a crise - naD pode ser pura e simplesmente encerrada dentro das dimensoes da crise. Em Spinoza, a de­fini~ao do sujeito historico nao pode ficar fechada dentro do conceito de crise. Oode a burguesia, na cesura do seculo XVII, assume a crise como urn elemento constitutivo de sua propria defini~ao, Spinoza opera urn desloca­mento da for,a global detida pelo projeto anterior, pela plenitude do de­senvolvimento. Vma filosofia do porvir se implanta sobre essa base pre-cons­titufda, 0 impulso revolucionario continua a agir, a crise e urn obstaculo e naD uma essencia. A essencia e construtiva, a crise so e aceita para ser ultra­passada. A descontinuidade e a oportunidade para urn saito para a frente.

Limitemo-nos ao nfvel propriamente filosofico. Vimos como a ideo­logia do mercado se da originariamente sob uma forma neoplatonica. No entanto - 0 que justamente corresponde a potencia da anomalia holande­sa -, Spinoza retoma esse horizonte por sua conta, de uma maneira pro­pria a exacerbar ate a estrutura do neoplatonismo, a leva-Io ao limite de urn pensamento de superffcie. Ora, quando intervem a experiencia e 0 pensamen­to da crise, essa superffcie e remexida por uma for~a de destrui~ao que re­cusa qualquer ideia de lineariclade dos processos constitutivos, qualquer ideia de espontaneidade. Duas solu~oes sao possiveis: ou restaurar a linearidade e a essencialidade dos processos constitutivos atraves da media~ao e da sobre­determina~ao de uma nm~ao de comando - e essa e a linha mestra da utopia burguesa do mercad070; ou entao, e essa e a linha spinozista, localizar, no movimento de passagem do pensamento de superffcie a uma teoria cia cons­titui~ao da pratica, 0 caminho da supera~ao da crise e da constitui~ao do projeto revolucionario. Em Hobbes, a crise conota 0 horizonte ontologico e 0 subsume: em Spinoza, a crise e subsumida sob 0 horizonte ontologico. Talvez seja este 0 verdadeiro lugar de nascimento do materialismo revolu­cionario moderno e contempora.neo. Seja como for, os modelos de socie­dade baseada na apropria,ao se diferenciam em termos ontologicos: em Hob­bes, a liberdade se curva ao poder, em Spinoza, 0 poder a liberdade.

E estranho: mais uma vez, 0 pensamento de Spinoza se revela a nos como uma gigantesca anomalia. Na verdade, esta defini~ao que estamos dando de seu pensamento e quase como uma nega~ao de sua historicidade. o pensamento de Spinoza, absolutamente hegemonico no momento em que interpreta 0 triunfo da ideologia revolucionaria, torna-se minoritario, encontra-se exclufdo da historia da ideologia burguesa, a partir do momenta em que se poe a pegar, a virar e reverter no sentido da emancipa~ao 0 proprio conceito de crise, a endurecer sobre os conteudos revolucionarios do projeto humanista. Mas sabemos 0 quanta e va a hist6ria da ideolo-

46 Antonio Negri

gia! Sabemos, em contra partida, a for~a que tern a esperan~a de verclade e de emancipa~ao! 0 pensamento de Spinoza aparece entao como urn pa­radoxo vivo: sua filosofia se apresenta como uma filosofia pos-burguesa. Macherey 71 fala de filosofia pos-diaIetica. Com razao: pois a dialetica e na realidade a forma sob a qual sempre se apresenta a ideologia burgue­sa, em todas as suas variantes - inclusive na de uma dialetica puramente negativa de crise e de guerra. Quando Spinoza transfigura de maneira materialista os conteudos revolucionarios do humanismo, ele leva, ao con­trario, seu pensamento para alem de qualquer configura~ao dialetica. Leva a esperan~a e a pratica humanas de transforma~ao para alem de qualquer forma dialetica. Para alem de qualquer media,ao sobredeterminada. 0 que equivale a dizer: para alem do conceito de burguesia, tal como este se for­mou de maneira hegemonica durante os seculos passados.

Chegamos assim ao ponto de definir uma ultima serie de conceitos, que deveremos aprofundar. A filosofia de Spinoza, enquanto filosofia hu­manista e revolucionaria, e antes de mais nada uma filosofia de apropria­,ao. Assim como a filosofia de Hobbes. A diferen,a, ja vimos, reside na distin~ao entre urn e outro quanto ao sentido ontol6gico da apropria~ao: em Hobbes, ela se apresenta como crise e tern entao de encontrar nova­mente uma legitimidade a partir do poder, da sujei~ao. 0 horizonte cria­dor de valor e 0 comando exercido sobre 0 mercado. Em Spinoza, ao con­trario, a crise anula 0 senti do da genese neoplatonica do sistema, transfi­gura, destruindo-a, qualquer concordancia metafisica pre-constituida, e nao coloca mais 0 problema do poder para a liberdade, mas sim 0 problema de uma constitui~ao da liberdade. Essa distin~ao pressupoe no entanto uma serie de novos conceitos. 0 que equivale a dizer que nao se pode superar o esquema de Hobbes enquanto se mantem 0 ponto de vista da individua­lidade. 0 deslocamento spinozista do problema deved entao fundamentar, como uma fenomenologia da pratica constitutiva, urn horizonte ontol6gico sobre 0 qual essa fenomenologia possa caber. Esse horizonte e coletivo. E o horizonte da liberdade coletiva. De urn coletivo nao problematizado­simples transferencia do sonho indistinto e espontaneo da utopia revolu­cionaria do humanismo? Nao. A ideia de crise, subsumida sob 0 processo ontologico, age nele: poe em movimento todos os mecanisrnos necessarios a constitui~ao do coletivo. A ideia de multitudo transforma 0 potencial utopico e ambiguo que a caracteriza no Renascimento em projeto e ge­nealogia do coletivo, como articula~ao e constitui~ao conscientes do con­junto, da totalidade. Por isso e que a revolu~ao e sua borda sao em Spino­za 0 terreno no qual se alicer~a uma extraordinaria opera~ao de prefigu­ra,ao do problema fundamental da filosofia dos seculos que virao: a cons· titui~ao do coletivo como pratica. Entao sim, desse ponto de vista, a filo­sofia de Spinoza e uma filosofia sem tempo: seu tempo e 0 futuro!

A Anomalia Selvagem 47

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r NOTAS

1 P. VERNIERE, Spinoza et La pensee franyaise avant la Revolution, 2. vol., Pa­ris, 1954. A frase citada e de Massillon, VERNIERE, I. P. l.

2 A. VAN DER LINDE, Benedictus Spinoza. Bibliografie. Nieukoop, 1961 (re­prodw;ao em fac-simile da edi(j3.o de 1871). A frase transcrita e tirada do depoimento de Van Stoupe, citada a p. 19.

3 Ibid., p. 29. 4 Ibid., p. 33. 5 Como nota com razoIO P. DJ VONA oa bibliografia relativa a seu verbete B.

Spinoza, in Storia della filosofia, organizada por M. DAL PRA, t. 7, p. 901 (Milao, 1975): d. principalmente as obras de V. Delbos e de L. Brunschwicg. No que se refere a Icalia, pode-se mencionar a contribui~ao de G. RENSI (Modena, 1929).

6 Como frisa N. ALTWICKER em sua contribui'fao (Spinoza. Tendenzen des Spinozarezeption und Kritik) que serve de Einleitung a coletanea Texte zur Geschichte des Spinozismus, Darmstadt, 1971, organizada por ele mesmo (p. 1-58).

7 L. FEUERBACH, Samt!' Werke, editadas por W. BOLIN e F. ]ODL, Stuttgart, 1959, t. 3, p. 322.

8 Ibid., p. 384. 9 ]. HUIZINGA, Nederland's Beschaving in de Zeventiende Eeuw, trad. italiana

(La civiitiz olandese del Seicento, Turim, pp. 5-6). 10 L. KOLAKOWSKI, Chretiens sans Eglise. La conscience religieuse et Ie lien

confessionnel au XVIIe siecle. trad. francesa, Paris, 1969. Mas ver tambem as observa­!foes importantes de G. SOLARI, in Studi storici di filosofia del diritto, Turim, 1949, pp. 73-80, 95-97 (voltaremos as caracteristicas dos escriros de Solari sobre Spinoza): de F. MELI, in Spinoza e due antecedenti italiani dello spinozismo, Floren!fa, 1934; de C. SIGNORILE, Politica e ragione. Spinoza e it primato della politica, Padua, 1968, com abundantes referencias bibliograficas.

11 G. SCHNEIDER, Der Libertin. Zur Geistes - und Sozialgeschichte im 16. und 17. Jahrundert, Stuttgart, 1970. Mas ver principalmente G. COHEN, Ecrivains frant;ais en Ho/Jande dans la premiere moitit du XVIIe siecle, Paris-Haia, 1921.

12 Alem das observa~6es de Kolakowski, ver 0 livro fundamental de P. DIBON, La philosophie neerlandaise au siecie d'or, Amsterda, 1954, para 0 que se refere a pri­meira metade do seculo.

13 Cartas 47-48 (G., IV, pp. 234-236; P. pp. 1227·1229). 14 A. VAN DER LINDE, op. cit., p. 26. 15 Neste ponto pode-se apenas remeter as muitas obras de E. H. Kosmann. Cf.,

alem disso, a titulo de complemento, Culture and Society in the Dutch Republic during the 17th Century, Londres, 1974, deJ.L. PRICE.

16 D. CANTIMORI, em seu Prefacio a trad. italiana da op. cit. de HUIZINGA, assinala que esta derruba 0 julgamento que habitualmente e feito de Grotius, pensan­do-o, bern mais que como urn reputado teorico do direito internacional, como "0 autor de urn De veritate religionis christianae que, em latim ou em lingua materna, era trans­portado aos quatro cantos do mundo pelos mercadores e os marinheiros holandeses, a quem era confiado 0 objetivo de difundir uma religiosidade tolerante e racional, de tipo humanista e erasmiano" (p. XIX). Cf. igualmente G. SOLARI, op. cit., p. 93 sqq.

17 A. THALHEIMER, "Die Klassenverhaltnisse und die Klassenkampfe in den Niederlanden zur Zeit Spinozas", in THALHEIMER-DEBORINE, Spinoza Stellung in der Vorgeschichte des dialektischen Materialismus, Viena-Bedim, 1928, pp. 11-39. De

48 Antonio Negri l

uma maneira gera~ a respeito da sociedade holandesa no seculo XVII, ver igualmente S. Von DUNIN-BORKOWSKI, Spinoza, t. 3: Aus den Tagen, Munster, 1935. Podem­se acrescentar algumas observa~c3es a respeito do imaginario relativo a socializa~ao ime­diata da socializa~ao capitalista, mas apenas para notar como com isso algumas dimen­sc3es do processo revolucionario da burguesia sao - por assim dizer - enfeitados e ao mesmo tempo atenuados, reduzidos conscientemente a continuidade temporal do de­senvolvimento das formas institucionais. Este parece ser urn dos papeis essenciais cum­pridos na esfera da ideologia pe1a imagem de Veneza e seu governo (a qual e preciso entretanto acrescenrar outra imagem, igualmente importante - em particulac nos meios dominados pe1a burguesia financeira: a de Genova). De uma maneira geral, d. Traite politique, cap. VII, art. 20; cap. VIII, art. 18,27,29, etc.; C. SIGNORILE, op. cit. p. 216 sq., dedica urn desenvolvimento util a essa questao j em referencia sobretudo a dois textos fundamentais (os de Chabot e de Braudel), com uma consideravel bibliografia comentada. Vma ultima observa~ao sobre 0 livro de Signorile, que nos foi muito util pela riqueza de sua informa~ao: ele se baseia na tese de urn primado da politica nas origens do pensamento burgues; 0 que e pelo menos excessivo, principalmente (mas nao ape­nas) no que se refere a Spinoza. Conseqiientemente, Signorile se polariza quase exclusi­vamente sobre 0 "politico", que ele pressup6e a titulo de "ideologia oculta" que arra­vessaria a metafisica. Mas como deixar de ver que a metaffsica e entao a unica forma praricavel de politica: aqui, neste seculo e neste pais?

18 Penso mais particularmente em F. YATES, Giordano Bruno and Hermetic tradition, Londres, 1964, e Shakespeare's last plays: a new approach, Londres, 1975.

19 Retorno aqui uma tese fundamental, pelo menos no que se refere ao raciona­lismo de Descartes (e por uma parte tambem de Leibniz) desenvolvida porJ. ELSTER, Leibniz et la formation de l'esprit capitaliste, Paris, 1975.

20 Torno a liberdade de remerer as teses ja amplamente desenvolvidas em meu Descartes politico 0 della ragionevole ideologia, Milao, 1970.

21 ]. HUIZINGA, op. cit. (trad. italiana, p. 19). 22 ]. HUIZINGA, op. cit. (trad. italiana, p. 113); D. CANTIMORI em seu Prefa­

cio (p. XIII da trad. italiana). 23 As informa~c3es relativas a esses amigos e correspondentes de Spinoza se encon­

tram nas biografias de Spinoza, e em particular no hvro de Dunin-Borkowski. Sobre a con­tribui~ao de Hudde a obra de De Witt, d. Le rapport de Johann De Witt sur Ie calcul des rentes viageres, editado por P.].L. DE CHA TELEUX, Haia, 1937. C. SIGNORILE, op. cit., pp. 78-88, dedica 6timas paginas a figura cultural de De Witt. Sua bibliografia e adequada.

24 Cf. Catalogus van de Bibliotheek der Vereniging Het Spinozahuis te Ri;nsburg, Leyde, 1965. Esse catalogo retoma em parte a obra fundamental de A.]. SERV AAS VAN ROUEN, Inventaire des livres formant La bibliotheque de Benedict Spinoza, Haia, 1988, eo de P. VULLIAUD, Spinoza d'apres sa bibliotheque, Paris, 1934.

25 Ver os estudos dedicados especificamente a esta questao. Cf. de todo modo a biblioteca de Leibniz, e a obra de R. MERTON, Science, Technology and Society in 17th Century Eng/and, 23 ed. j Nova Iorque, 1970.

26 Permiro-me remeter aqui aos livros ja citados de Frances Yates, as obras de Paolo Rossi, assim como a meu Descartes politico, cit.

27]. HUIZINGA, op. cit. (trad. italiana, p. 51). Cf. igualmente FEUER, Spinoza and the Rise of Liberalism, Boston, 1958; C. SIGNORILE, op. cit., p. 8 sp., 227 sqq., inrervem longamente a respeito, juntando uma bibliografia.

28 A.M. VAZ DIAS - W.G. VAN DER T AK, Spinoza, Mercator et Autodidactus, Haia, 1932.

A Anomalia Selvagem 49

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r 29 I.S. REVAH, "Spinoza et les heretiques de la communaute judeo~portugaise d' Amsterdam", in Revue d'histoire des religions, 154, 1958, pp. 173·218.

30 M. JOEL, Zur Genesis der Lehre Spinozas, Breslau, 1871; H.A. WOLFSON, The Philosophy ofSpinoza, Cambridge, Mass., 2 (omos, 1934.

31 Alem das remiss6es de Gebhardt as obras de Uriel da Costa, ver.I.S. REVAH, Spinoza et Juan de Prado, Paris-Haia 1959, assim como "Aux origines de la rupture spinozienne. Nouveaux documents", in Revue des Etudes juives, 2.1964, pp. 359-431. Os Texte zur Geschichte, ja cicados, contem urn artigo extremamente importante de Harry A. WOLFSON, "Spinoza und die Religion dec Vergangenheit" (ef. principalmente p. 298), que define os teernos da polemica suscitada por Uriel da Costa no seio da Sina­goga. 0 que vale a pena notar e 0 uso que Spinoza pode fazer dessa polemica; urn usa que nao e em caso algum uma volta ao quadro determinado dos problemas entaD le­vantados (segundo toda probabilidade 0 problema da imortalidade individual da alma), mas que s6 as reroma atraves de urn deslocamento metafisico substancial da problema­tica. Na mesma ordem de ideias, deve-se tam bern acentuar que as analises geneal6gicas, que a reconstruc;:ao das filiac;:5es tematicas, entre passado e presente, entre cultura iu­daica tradicional e sistema spinozista, s6 tern interesse nesta perspectiva.

32 A esse respeito, d. sobretudo S. ZAC, L'idee de vie dans fa phifosophie de Spinoza, Paris, 1963, pp. 29-38.

33 Ibid., pp. 78-83. Mas sobre este assunto d. principalmente H.A. WOLFSON. 34 Cf. SERVAAS VAN ROUEN, op. cit., p. 132. 35 Cf. R. HONIGSWALD, "Spinoza; Beitrag zur Frage seiner problem geschicht­

lichen Stellung", in Texte zur Geschichte des Spinozismus, cit., p. 83 sqq. 36 A esse respeito, as amilises de Chr. Sigwart (em sua tese sobre Spinoza, Gotha,

1886) e de R. AVENARIUS, Ueber die beiden ersten Phasen des Spinozischen Pan­theismus und das Verhaltnis der zweiten zur dritten Phase, Leipzig, 1968, permanecem validas.

37 Born comentario de S. ZAC a esse respeito, op. cit., pp. 90-93. 38 Cf. R. HONIGSWALD, op. cit., p. 91 sq., mesmo se esta ideia de sobredeter­

minac;:ao do ser e muitas vezes pensada pelo autor em termos qualitativos bern mais que em termos de intensidade ontol6gica. F. ALQUIE, in Nature et verite dans fa philoso­phie de Spinoza, "Les cours de Sorbonne", Paris, 1971, em particular p. 14-15, insiste na relac;:ao Spinoza-Bruno. Ele sustenta a tese de urn "matematismo" excessivo de Spi­noza em sua definic;:ao do conjunto metaffsico - determinac;:ao vinda de Giordano Bruno e desdobrada como em Bruno em termos de produc;:ao. Nao e inutil fazer algumas ob­servac;:5es a respeito dessa interpretac;:ao de Alquie. 0 faro de colocar uma influencia do pensamento de Bruno no de Spinoza tern repercuss5es no conjunto da interpretac;:ao de Alquie: uma interpretac;:ao que considera 0 pensamento de Spinoza como 0 de uma trans­cendencia, de tipo panteista, do ser em relac;:ao a suas determinac;:5es sucessivas (subs­ra,ncia transcendente em relac;:ao aos atributos, dualismo da concepc;:ao de ideia - idea ideae -, desproporc;:ao na relac;:ao entre intelecro e reflexao, dualismo nltido entre ra­zao e paixao); em suma, no pensamento de Spinoza, a ideia de uma transcendencia do ser dominaria a metafisica, a transcendencia religiosa dominaria a etica (sabre este se­gundo pOnto, F. ALQUIE nos deu outra serie de aulas: Servitude et liberte selan Spino­za). E importante insistir em tais interpretac;:5es (criticadas com extremo rigor na obra de Martial Gueroult), para ver em que sentido pode-se pensar numa influencia de Gior­dano Bruno: no da manutenc;:ao de urn horizonte religioso irredutivel, 0 do naturalismo religioso - segundo Alquie, essa permanencia do pensamento de Bruno, do pensamen­ro do Renascimento, leva 0 pensamento de Spinoza a refluir completamente para os

50 Antonio Negri

dualismos cartesianos, ao contrario de acabar com eles. Claro esta que uma interpreta­c;:ao dessas nao cabe em minha leitura de Spinoza (tampouco, alias, na de Bruno).

39 A ideia de uma estreita conexao entre 0 pensamento de Spinoza e 0 de Telesio e de Campanella vern de CASSIRER (Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenchaft der Neuren Zeit, nova ed. Darmstadt, 1973, t.lI, pp. 79-84). Convicc;:ao retomada essencialmente de W. Dilthey, que considera a filosofia de Spinoza como a "condusao" da grande epoca do naturalismo do Renascimento.

40 Ver em particular a opiniao expressa a esse respeito por DJ VONA nos verbe­tes que escreveu para a Storia della filosofia, cit., de DAL PRA. Pode-se ter"confianc;:a em Di Vona, diante de seu profundo conhecimento ao mesmo tempo da filosofia de Spinoza e da filosofia da segunda escolastica.

41 Cf. as bibliografias de Spinoza, e, de qualquer modo, DI VONA, op. cit., p. 559·560; A. RAVA, Studi su Spinoza e Fichte, Milao, 1958, p. 148, evidenciou bastan· te esse encontro.

42 ]. FREUDENTHAL, em sua obra fundamental Spinoza und die Scholastik, Leipzig, 1886, insistiu longamente sobre os ecos da segunda escolastica no pensamento de Spinoza. Tematica longamente retomada por Dunin-Borkowski.

43 Ver infra, cap. V spp. 44 M. GUEROULT, Spinoza. Dieu (Ethique, 1), Paris, 1968, pp. 9-10. E preciso

tambem ter sempre em mente 0 segundo volume de Gueroult: Spinoza. L 'ame (Ethique, 2), Paris, 1974. Como ja notei (supra, n. 38), ao evocar os trabalhos de Ferdinand Alquie, encaixa-se aqui uma questao decisiva para toda leitura de Spinoza - a respeito da in­terpretac;:ao da relac;:ao Spinoza-Descartes. E evidente que voltaremos a este problema. Mas minha citac;:ao de Gueroult e minha concordancia fundamental com sua leitura da relac;:ao Spinoza-Descartes me imp5em aqui urn esclarecimento - pelo menos biblio­grafico. Na interpretac;:ao de Alquie, ja vimos, a ideia de subsrancia, enquanto natura naturans, implica a permanencia em Spinoza de urn certo dualismo infra-sistematico. o que tern conseqiiencias na gnoseologia e na etica. Gueroult opoe a isso uma recusa de principio. Seu comentario da Etica tern a ambii¥ao de evidenciar 0 imanentismo ab­soluto e a 16gica cerrada do panteismo spinozista. Veremos mais adiante os limites da interpretac;:ao de Gueroult. Mas tenho de dizer que pessoalmente concordo inteiramen­te com essa posic;:ao, com esse afastamento de Descartes. Depois da publicac;:ao do pri­meiro volume de Gueroult, M. DOZ (Revue de mitaphysique et de morale, 1976, n. 2, pp. 221-261) retomou a critica de Alquie, voltando a atacar a hip6tese, emitida por Gueroult, de uma unidade absoluta do projeto spinozista. Doz insiste em particular no fato de que Spinoza procederia atraves de uma serie de paradoxos, e colocaria "pro­gressivamente verdades parciais, deixando lugar a hip6teses que serao progressivamen­te eliminadas". Coloca alem disso 0 problema do estatuto da ontologia spinozista (este e efetivamente 0 problema central), para sustentar a tese de urn "vazio dessa ontologia" e portanto de uma necessidade, para ela, de ser "preenchida pela teologia". Gueroult estaria enganado quando afirma que 0 sistema spinozista possui uma 16gica interna, cujo desdobramento e suficiente para superar de maneira end6gena e estrutural todas as di­ficuldades que podem se apresentar. Com efeito, essas dificuldades seriam insuperaveis, na medida em que 0 ser spinozista seria definido segundo urn procedimento de alter­mincia: ora transcendencia de tipo naturalista, ora vazio de tipo cartesiano: s6 a teoIo­gia, ou seja, uma chave externa, permitiria portanto superar as dificuldades da ontologia spinozista. Seria melhor entao a ideologia razoavel de Descartes, que faz das mesmas dificuldades uma chave interna ao sistema, inscrita em seu dualismo originario. Ginette DREYFUS ("Sur Ie Spinoza de Martial Gueroult: reponses aux objections de M. DOZ",

A Anomalia Selvagem ;~"" ,. ~ ,; .; -....) J ~ '..:' _, 51

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r' r in Cahiers Spinoza, n. 2, pp. 7-51) na minha opiniao respondeu claramente a D<?z, mesmo tendo-o feiro com dureza excessiva (no sentido em que ela liquida naD apenas, como e legitimo, os problemas colocados por Doz, mas tambem outros problemas que nao podem sec eliminados tao facilmente): atraves de uma recusa radical de roda ideia de assimetria, em Spinoza, entre ontologia e teologia. Quanta a metodologia paradoxal, G. Dreyfus a interpreta como work in progress, e portanto como intrinsecamente coerente. Em con­cordancia com as teses de G. Dreyfus, pode-se lee no mesma numero dos Cahiers Spi­noza (pp. 53-92) 0 artigo de Jean BERNHARDT, "Infini, substance et attributs. Sur Ie spinozisme" (a respeito de urn estudo magistral); e mais particularmente a p. 59, quan­to ao carater origimirio do abandono por parte de Spinoza do horizonte cartesiano.

45 Etica, I, Apendice (G., II, p. 81; P., p. 351). Mas do momenta em que se trans­mite aqui essa defini~ao polemica dada por Spinoza, e born logo acrescentar, para evi­tar qualquer mal-entendido - desses mal-entendidos que com excessiva frequencia tornam-se interpreta~6es -, que a formula «Deus asylum ignorantiae" nao e absoluta­mente indicio de alguma posi~ao aristocratica e dianoetica. Em seu artigo de 1930, "Politica religiosa di Spinoza e la sua dottrina del 'jus circa sacrum"', retomado in Studi storici, op. cit., pp. 73-117, G. SOLARI ja mostrava claramente, com extrema mimicia, que, contrariamente a uma opiniao excessivamente difundida, a concep<;ao spinozista da divindade nao chega a nada diferente da ideia de uma religiao dos ignorantes, de uma materialidade dos comportamentos religiosos como chave constitutiva das esferas da etica e da politica. Nesse belissimo artigo (bern melhor que a outra contribui<;ao de SOLARI aos estudos spinozianos, La dottrina del contratto sociale in Spinoza, 1927, a que voltaremos), a religiao dos simples e considerada como urn elemento ativo da cons­titui<;ao; donde algumas conclus6es extremamente importanres a respeito da polemica anti-separatista e antijuridicista conduzida por Spinoza. Essas analises de Solari encon­traram urn desenvolvimento que nao poderia ser mais amplo e mais bern articulado, na obra recente de A. MATHERON, Le Christ et Ie salut des ignorants chez Spinoza, Pa­ris, 1971. Matheron expoe muito longamente, de maneira extremamente esclarecedora, os diversos momentos atraves dos quais as formas da religiao (da profecia a fe dos hu­mildes) se tornam constitutivas. Urn aspecto essencial, historico, do pensamento de Spinoza aparece de modo perfeitamente claro em sua exposi<;ao: a reversao determina­da pela filosofia spinozista quando ela toma a religiao dos ignorantes, a salva<;ao dos pobres como 0 tecido material do desenvolvimento historico e determinado da verda­de. E portanto: a religiao popular nao como elemento passivo, mas como condi<;ao ati­va da ciencia. Papel fundamental, entao, fundador e constitutivo, 0 da imagina~ao. Mas voltaremos longamente a tudo isso no correr de nossa 0 bra. Urn ultimo ponto: Ma theron localiza de maneira muito precisa os processos logico-criticos atraves dos quais 0 pen­samento de Spinoza derruba a concep~ao tradicional da "dupla verdade", e a concep­<;ao "poHtica" do uso da religiao: e preciso lembrar isso aqui, no momento em que jus­tamente se procuram ddinir as condi~oes historicas do pensamento de Spinoza, mes­mo voltando mais longamente adianre.

46 Permito-me mais uma vez remeter a meu Descartes politico. 47 Cf. S. ZAC, op. cit., p. 104-120. 48 j.e. VAN SLEE, De Ri;nburger Coilegianten, Haarlem, 1895. Mas ver tam­

bern G. SOLARI, Studi storict~ cit., p. 95-97; F. MELI, Spinoza ... , cit.; K. SIGNORILE, op. cit., em particular a bibliografia fornecida nas notas 25 sqq., 35 sqq. ja falamos do carater geral das obras de Solari e de Signorile, e em particular da utilidade do texto deste para uma analise de tipo historico. Nao e inutil dizer algumas palavras sobre as caracteristicas essenciais do livro de Meli. Com grande sensibilidade historica, esse es-

52 Antonio Negri

r critor muito jovem, morto prematuramente, soube compreender, em plena epoca fas­cista (seu livro e de 1924), nao tanto as rela~oes singulares entre 0 pensamento de Spi­noza e a mentalidade secraria quanto os grandes temas de rdorma racional que atra­vessam 0 pensamento de Spinoza e dos membros das seitas. Analisando a teoria da cons­titui~ao e da toleriincia nas correntes hereticas, Meli pos em evidencia, num estilo ex­tremamente elegante, a existencia de uma continuidade revolucionaria entre 0 pensa­mento italiano do Renascimento e 0 de Spinoza. No apice da barbarie fascista, ele sou­be escrever urn livro europeu.

49 C. GEBHARDT, "Die Religion Spinozas", in Archiv fur Geschichte de Philo­sophie, t. XLI, 1932.

50 M. FRANCES, Spinoza dans les pays neerlandais de fa seconde moitie du XVIIe siecle, Paris, 1937.

51 L. KOLAKOWSKI, op. cit., p. 206-207 e passim. 52 K.O. MEINSMA, Spinoza en zi;n kring, Haia, 1896 (trad. alema, Berlim, 1909). 53 Sobre esta questao, d. tambem L. MUGNIER-POLLET, La phi/osophie po-

litique de Spinoza, Paris, 1976, pp. 35-49. 54 Como bern demonstrou Kolakowski, essa tematica deve ser considerada como

essencial no campo religioso da Holanda da epoca. A Carta 33 de Oldenburg a Spinoza contem alus6es interessantes a certos projetos sionistas. Sobre esta questao, d. MUGNIER­POLLET, op. cit., pp. 20-21.

55 Ernst BLOCH, Thomas Munzer. 56 Cf. as obras ja citadas de Huizinga, Kossmann, Thalheimer e Mugnier-Pollet.

Ver tambem C. SIGNORILE, op. cit., e a obra de K. HECKER, Gesellschaftliche Wirk­lichkeit und Vernunft in Spinoza, Regensburg, 1975.

57 Ch. WILSON, La RepubJique hollandaise des Provinces-Unies, Paris, 1968; D.]. ROORDA, Partijen Factie, Groningen, 1961;].S. BROMLEY-E. H. KOSSMANN (orgs.), Britain and Netherlands, vol. II, Londres-Groningen, 1961-1964.

58 Tratado politico, G., III, p. 352; P., p. 1032. 59 j. DE WITT, Brieven, Amsterda, Ed. R. Fruin-G.W. Kernkamp, 1906 sqq., t.

l., p. 62. 60 Cf. Hamilton-Keynes, que justamente sustentaram a tese de uma natureza

conjuntural do essor capitalista. 61 Infra, nos capltulos em que estudamos a teoria polftica de Spinoza. 62 A esse respeito, ver principalmente 0 artigo de E.H. KOSSMANN, "The De­

velopments of Dutch Political Theory in the Seventeenth Century", in Bromley-Kossman, op. cit., t., p. 91-110.

63 MACPHERSON, La theorie politique de l'individualisme possessif, trad. fran­cesa, Paris, 1971. Cf. meu prefacio na trad. italiana (prefacio retomado na edio;ao italiana desta obra, mas nao traduzido aqui. N. do T.).

64 Seria preciso inserir aqui uma reflexao que buscasse, na base das obras de Borkenau e Elster, determinar as normas segundo as quais a representa<;ao politica pode ser reportada :it materialidade do desenvolvimento economico e da luta de classes.

65 W. Dilthey, E. Cassirer e Paolo Rossi sao os autores que melhor enfatizaram essas dimensoes do desenvolvimento historico-filosOfico.

66 G. DELEUZE, Spinoza et Ie prob/eme de l'expression, Paris, 1968, p.12-18. 67 Cf. as obras ja citadas na n. 56. 68 Sobre a grande crise do seculo XVII, ver as obras citadas em minha Apresentao;ao

in Rivista critica di storia della filosofia, n° 1, 1967. Cf. alem disso, para a totalidade geral dos estudos, Stato e rivoluzione in Inghilterra, organizado por .Mario TRONTI, Milao, 1977.

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53 )

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r 69 Este e urn dos temas fundamentais da obra de MACPHERSON, La theorie politique de /'individualisme possessif, trad. francesa, Paris, 1971.

70 Ver, entre as obras recenres, a reconstrur;ao do nascimento da ideologia do mercado feita por C. BENETII, Smith. La teoria economica della societa mercantile, Milao, 1979.

71 P. MACHEREY, Hegel au Spinoza, Paris, 1979: relatamos aqui a tese funda­mental da obra de Macherey (a qual teremos que voltar varias vezes); tese que tern como ponto de partida diversas observac;oes de L. AL THUSSER (principalmente nos Elements d'autocritique, Paris, 1973).

54 Antonio Negri l

Capitulo II A UTOPIA DO CIRCULO SPINOZISTA

1. A TENSAO DA IDEOLOGIA

Korte Verhandelingvan God de Mensch en deszelfs Welstand, 1660: pode ser que seja totalmente insoluvel 0 problema de critica filos6fica le­vantado peto texto do Curto tratado sobre Deus, 0 homem e sua bem­aventuranral. Entretanro, quero levar em conta este texto: nao como urn primeiro rascunho da Etica, e claro - ainda que haja muitos elementos de continuidade entre nosso texto e as primeiras proposi~6es desta obra -, nem tampouco como "urn texto irremediavelmente danificado,,2, mas como urn importante documento sobre uma situa~ao ideol6gica partilha­da por Spinoza e aqueles que, entre Amsterda e Rijnsburg, fazem parte de seu drculo - e intervem provavelmente no texto como devo~ao confusa, assim contribuindo para desfigura-lo. Uma situa~ao ideol6gica que se ca­racteriza por uma decisao te6rica deliberadamente pantefsta ou antes -nesse quadro - quase mfstica.

A primeira parte do Curto tratado e, desse ponto de vista, exemplar3:

e a constru~ao, por eta pas sucessivas, da identidade substancial do obje­to. Por eta pas sucessivas4: uma concep~ao da divindade como causa sui, como imanencia absoluta, nos Didlogos5: a polemica contra toda concep­~ao antropom6rfica da divindade, se qualificarmos como antropom6rfico o fato de colocar, sob uma forma ou outra, uma defini~ao metaf6rica ou anal6gica do ser - isto no capitulo VII, que constitui talvez outra cama­da fundamental do text06; tres momentos que se seguem: a identidade absoluta, a priori, da essencia e cia existencia de Deus (cap. 1-11)7, a assi­rnila,ao da ideia de Deus e da ideia de infinito positivo (cap. III-VI)8, e, para terminar, a essencia de Deus e a essencia da Natureza que encontram sua identidade por meio da identidade dos atributos que constituem to­das as duas (cap. VIII-IX)9. Mas essas etapas nao se sucedern senao na ordern cronol6gica da cornposi,ao: de urn ponto de vista l6gico nao hi etapas, mas somente a circula~ao, a fluidez de uma mesma substancia, vista sob diversos angulos de abordagem, mas incansavelmente repetida em sua central ida de, em sua infinidade positiva. 0 ponto de vista da filosofia se encontra na substancia, em sua percep~ao e constru~ao imediata. E urn contrato onto16gico que esra descrito aqui, uma rela~ao que ro~a a inten­sidade mfstica. "Tudo aquilo que compreendemos clara e distintamente como pertencendo a. natureza de uma coisa, podemos afirma-Io igualmente

A Anomalia Selva gem 55

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rr r com verdade sabre essa coisa. Ora, que a existencia pertence a natureza

de Deus, podemos compreender isso clara e distintamente. Ergo ... " "As essencias das coisas sao ab aeterno e permanecerao imutaveis por roda eternidade. A existencia de Deus e essencia. Ergo ... "lO.

Chamou a aten\=ao de todos os comentadores a excepcional paten­cia desse primeiro Spinoza: talvez seja justamente isso 0 que nos garante que se pode utilizar 0 Curto tratado como urn rexto de Spinoza. Cassirer frisa aqui que "0 metoda geral da reflexao filosofica, que havia sido 0 ter­reno comum de radas as doutrinas, para aiem de seus conflitos, cede lu­gar a urn modo de pensamemo totalmente diferente. A continuidade na coloca<;30 dos problemas pareee se interromper bruscamente", "aquilo. que em to.da parte era co.nsiderado. co.mo. urn resultado. e to.mado. aqui co.mo. po.nto de partida", e a tensao. mfstica e extremamente fo.rte ll . Guero.ult vai ainda mais lo.nge, sem no. entanto insistir nas co.no.tac;6es misticas, quan­do. discerne aqui, na afirmac;ao. spino.zista de urn o.bjetivismo. abso.luto. do. ser, uma inflexao. abso.lutamente o.riginal no. quadro. da filo.so.fia mo.der­na 12. Eu t~mbem penso. que a uto.pia do. cfrculo. spino.zista realmente se revela aqui no. maximo. de sua tensao., no. co.njunto. co.mplexo. das deter­minac;6es revo.lucio.ruirias que the dao. sua fo.rma o.riginaria. Vo.ltemo.s ao.s elemento.s da o.ficina spino.zista: to.rnamo.s a enco.ntra-Io.s to.do.s aqui, e 0.

que se to.rna particularmente evidente e a influencia do. naturalismo. do. Re­nascimento., so.bretudo. na versao. de Gio.rdano. Bruno., marcada pelo. entu­siasmo. de sua co.ncepc;ao. heroica do. pantefsmo.13: "Ora, fica claro. que 0.

ho.mem tern a ideia de Deus, ja que ele co.mpreende o.s atributo.s de Deus - que ele nao. po.de, sendo. imperfeito., pro.duzir po.r si mesmo.. Mas que ele co.nhec;a esses atributo.s, isso. e evidente; co.m efeito., ele sabe, po.r exem­plo., que 0. infinito. nao. po.de ser co.mpo.sto. de diversas partes finitas; que nao. po.de haver do.is infinito.s, mas so urn; que este e perfeito. e imutavel; sabe tambem que co.isa alguma pro.cura po.r si mesma sua propria destrui­c;ao. e, depo.is, que 0. infinito. nao. se po.de mudar em alguma co.isa melho.r, ja que e perfeito., e perfeito. nao. seria se se transfo.rmasse; e ainda que nao. po.de ser co.agido. po.r nenhuma o.utra co.isa, ja que e o.nipo.tente ... "14.

o mais marcante e entao. a to.nalidade geral do. Curto. tratade, essa o.pc;ao. ino.cente e radical reco.nhecida po.r Deleuze15 co.mo. a caracteristica do racionalismo absoluto: a op,iio pelo infinito positivo que introduz uma definic;ao. imediatamente qualitativa do. ser (nao. cartesiana, nao. aritmeti­ca, irredutivel a distinc;ao. numerical. Deste po.nto. e curto. 0. passo. para captar 0. espirito. religio.so. que anima essa primeira co.lo.cac;ao. do. co.nceito. do. ser no. circulo. spino.zista: e inco.ntestavel que aqui a razao. e a fe (0. cris­tianismo.) se identificam de maneira imediata. Naturalmente, essa identi­dade - que e 0 tra,o distintivo do desenvolvimento da segunda fase da Reforma holandesa (e protestante em geral) - tern forte carga de suspen-

56 Antonio Negri

se: pDis ha implicitamente nessa identidade uma alternativa extrema, Dil raZaD sem cristianismD, DU cristianismo. sem razao.16• Mas po.r que nao. acei­tar po.r enquanto. a felicidade dessa identidade, a breve, po.rem fo.rte, exis­tcncia dessa uto.pia, a sinceridade daqueles que qualificam de "crisrao." 0.

pantefsmo. e seu entusiasmo. fundado.r? Dito. isto., sequer abo.rdamo.s no.sso. pro.blema, entretanto. Na reali­

dade, este se cDloca no. Curto. tratado. taO. 100gD arrefece 0. entusiasmo. ini­cial da percepc;ao. do. ser. VejamDs, po.r exemplo., a nDta (certamtnte acres­centada mais tarde) que Spino.za intrDduz a titulo. de explicac;ao. do. texto transcrito acima: "Os atributos de Deus; melho.r seria dizer: ja que ele cDmpreende 0. que e proprio. a Deus, po.is essas cDisas naD sao. atributo.s de Deus. Sem elas, Deus evidentemente nao. e Deus, mas ele nao. e Deus po.r elas, po.is elas nao. no.s dao. a co.nhecer nada que exista co.mo. substan­cia, elas sao. semelhantes ao.s adietivos que, para serem co.mpreendido.s, exigem urn substantivo. .. 17. EstamDs no. indeterminado.. A uma tendencia a situar 0. atributo na essencia a qual ele se identifica, legivel no. texto, co.rrespo.nde, em no.ta, uma definic;ao. adjetival do. atributo.. Dai uma al­ternativa, a mesma, alias, que e vivida no. terrenD da experiencia religio.sa: o.u uma CDnCepc;ao. francamente mistica do. ser, que capta a divindade atra­yeS do. mecanismo. da definic;ao. negativa, o.il 0. achatamento. do ser e da divindade, do. atributo e do mo.do num unico nfvel da substancia. Ou cris­tianismo. sem razao., ou razao sem cristianismo.. E ambas as tendencias estao ~

presentes: no. entanto., Spinoza nao as explora. No. capitulo VII, inverten­do. de maneira manifesta o.s dados do. problema, ele afirma, ao contrario: "As definic;6es devem enta~ ser de dois generos: 1) As dos atributos, que pertencem a urn ser existente por ele mesmo. Esses atributos nao exigem nenhum conceito de genero ou 0 que quer que seja que os fac;a ser melhor co.mpreendidos, em o.utras palavras, que os torne mais darDs, po.is, ja que existem co.mo. atributo.s de urn ser existente pDr ele mesmo, sao. conhecido.s tambem por eles mesmo.s; 2) As das outras coisas que nao. existem po.r elas mesmas, mas somente pelo.s atributos de que elas sao. o.s modo.s e que, sendo. como 0 genero delas, permitem conhece-las .. 18. Deus, atriburo, mo.do.: e posto em funcionamento. urn co.nfuso processo de emanac;ao, sinal de uma resposta parcial, timida e indecisa a questao fundamental que se coloca co.m o surgimento do ser infinito po.sitivo.! Diante da colocac;ao. do. pro.blema, ha ainda uma co.ncepc;iio. no.minal do.s atributos, urn "dizer Deus" que nao. e de mo.do. algum a explicitac;ao da mane ira fundamental co.mo 0. ser e le­vado em conta19. "Natura naturans" e "Natura naturata" (cap. VIII e IX da primeira parte)20 repetem 0. enigma de urn indissociavel entrecruzamento. de misticismo., pro.dutividade teo.logica e ontolo.gia da emanac;ao., repetem 0. enigma colocado pela co.mplexidade das fontes e dos co.mponentes da maquina spino.zisra21 .

A Anomalia Se1vagem 57

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r' !

Sao estes os fatos: uma utopia positiva, proposta com excepcional 'potencia, mas que balan<;a entre a anula<;ao IDistica e 0 objetivismo logico e ontologica, em termos que, de qualquer modo, naa chegam a se liberar do indistinto e do indeterminado. E no entanto a tensao inovadora que emana da primeira percep<;ao do ser nao foi suprimida. Na segunda parte do Curto tratado, ela se exerce em cutra perspectiva, em outras dim en­soes. No pleno do ser vern a se constituir a essencia do homem. 0 que exacerba 0 problema, mais do que 0 esclarece: pais de urn lado 0 disposi­tive metafisico mantem sua ambiguidade e se desdobra atraves da ema­na<;ao e sua dedu<;ao da "via descendente"; e de Dutro, a precisao crescen­te dos diversos graus de conhecimento, sua passagem da sombra da "opi­nio" e da confusao da "experientia" a distin<;3o progressiva da "fides" e do conhecimento claro22, tende a fixar 0 absoluto do conhecimento racional e a determina<;ao do valor etico num terreno de afirma<;ao pura23. Esta­mos diante do segundo elemento da utopia do circulo spinozista: a con­cep<;ao do conhecimento como sfntese, e mesmo rna is, como simbiose de entendimento, vontade e liberdade. A dimensao religiosa da abordagem transparece aqui na urgencia que se exprime de ligar 0 teorico e 0 pratico, na necessidade que se imp6e de viver naturalmente, laicamente, a vida dos santos e dos profetas. Sera ainda necessario invocar a utopia religiosa holandesa? ou 0 ensinamento de alguma ascese judaica? ou entao a influen­cia chissica do estoicismo do Renascimento? ou enfim, pura e simpiesmente, aquela atitude caracteristica do fim do Renascimento que se pode ler nos Rosacruzes e na mlstica reformadora da primeira metade do seculo XVn24? Ha urn pouco de tudo isso, sem duvida alguma, na intensidade com que 0

circulo spinozista sente as coisas. Mas nao e tanto essa intensidade que nos interessa quanto a tensao que deIa emana. E e uma tensao metodica na teoria do conhecimento, constitutiva no plano da etica, e em consequen­cia profunda mente inovadora no plano da ontologia.

E bern verdade que nao e coisa tacil exumar no Curto tratado a sig­nifica<;ao positiva da tendencia seguida por esse pensamento. Tomemos por exemplo 0 conhecimento e sua tendencia para 0 metodo. Parece em primeiro lugar que ha muito pouco a acrescentar ao que ja foi sublinhado a respeito da utopia teologizante: a confusao permanente entre "fides" e "conhecimento absolutamente claro,,25 implica uma aderencia ao ser que e plenitude pas­sional, racional e mistica de sua apreensao. E no entanto, no desenrolar do raciocinio, a instancia do conhecimento claro se determina cada vez mais. o mecanismo causal, posto em movimento pela afirma<;ao da substancia divina, 0 determinismo absoluto que ja nos aparece definido no Curto tra­tado26, tern de se desdobrar no plano do conhecimento. A dedu<;ao se tor­na geometrica porque 0 conhecimento deve e pode ficar adequado ao rit­mo determinista do ser. No Apendice geometrico do Curto tratado27, nota

58 Antonio Negri

Gueroult28, "a causa sui e conhecida como a propriedade de cada substan­cia": de fato, 0 jogo dos axiomas, proposi<;oes, demonstra<;6es e corolarios nos mostra, no pleno de urn tecido coerente, que todas as substancias sao ontologicamente integradas. Esclarecendo bern: a integra<;ao na ordem do metodo e da ontologia nao atinge aqui a for<;a constitutiva que a Etica nos oferece, e em geral 0 carater indeterminado do procedimento impede que a ruptura da dedu<;ao panteista e dos obscuros caminhos da "via descenden­te" se manifeste com toda clareza. A estetica do panteismo ainda nao esta dissipada, apenas se alude a potencia construtiva do metodo, a at>reensao imediata e original do ser substancial cria uma especie de meio macio no qual a dedUl;ao escorre mais do que se desenvolve. E no entanto nem por isso e menos verdade que essa "instala<;ao no absoluto", que esta na base de toda articula<;ao ulterior, possui a for<;a de arrastar para urn pensamen­to de superficie, plenamente imanente, de aplanar num horizonte firme e construtivo 0 universo inteiro do conhecimento. 0 pensamento da profun­didade se aprofunda a tal ponto que se encontra paradoxalmente virado as avessas em pensamento da extensao, desenvolvido em terreno plano e cons­trutivo. A imanencia se faz tao extrema que se da como a nega<;ao das tres categorias reais, das tres articula<;6es ontologicas que tern como nome "equi­vocidade, eminencia, analogia,,29. E urn impulso 0 que registramos aqui, apenas urn impulso, mas absolutamente conatural com a especificidade do momento genetico do pensamento de Spinoza.

£, tam bern no terreno especificamente etico que urn impulso provo­ca 0 desdobramento da tendencia ontologica originaria. De peIo menos dois pontos de vista. 0 primeiro consiste na retomada da temarica tradicional das paix6es3o. Mas 0 mais marcante aqui e a dire<;ao nitidamente cons­trutiva, a determina<;ao fenomenologica e a qualidade particular do pen­samento genealogico em funcionamento no processo de de£ini<;ao. Urn tecido pleno de ser, compacto, ve as paix6es se formando e se articulando nao como os resultados de uma dedu<;ao feita a partir do absoluto, mas como os motores de uma constitui<;ao do absoluto. Nao passa de urn co­me<;o, e claro, estarnos longe dos amplos desenvolvimentos da Etica! Mas a tensao da utopia se mostra novamente em toda a sua potencia. Mais importante e a segunda perspectiva que se abre a partir da propria cons­tru<;ao da ideia de beatitude. E a beatitude suprema, esse projeto de resol­ver 0 problema da articula<;ao entre conhecimento e liberdade, e a uniao da alma com a divindade, mas e tambem 0 sentimento de urn processo cons­titutivo, de uma comunhiio de saber e liberdade, de uma sociabilidade absoluta: "Todos os efeitos que produzimos fora de nos sao tanto rna is perfeitos, quanto estao mais aptos a se unirem a noS para forma rem jun­tos uma so e mesma natureza, pois e assim que mais se aproximam dos efeitos interjores. Se, por exemplo, ensino meu proximo a amar 0 prazer,

A AnomaJia Seivagem r;--,- ", r.-:~c-'", 59

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a gloria, a avareza, sofrerei as desagradaveis conseqiiencias disso, e claro ~ quer eu mesma os arne ou nao; mas tal nao se da se meu unico objetivo e 0 de poder fruir da uniao com Deus e pfoduzir em mim ideias verdadei­ras e fazer com que meu proximo partilhe dessas coisas. Pais rodos pode­mos igualmente participar dessa salva~ao, como e 0 caso quando ela exci­ta neles 0 mesma desejo que em mim e faz assim com que a vontade se confunda com a minha, e que formemos uma 56 e mesma natureza onde sempre reina 0 acordo .. 31 . A indistinta tensao da utopia do drculo spi­nozista vai mais aiem da intensidade metafisica que the da suas conota­~6es religiosas e filos6ficas: a utopia que os homens produzem e tambem a utopia deles mesmos, da suavidade da comunidade da qual participam coletivamente aD mesma tempo em que a vivem. Essa humanidade imediata de uma participac;ao coletiva na utopia qualifica a propria proje~ao teori­ca32, 0 ponto de vista da ontologia agora e identico aD ponto de vista da salva~ao, da comunidade, do ardor que leva a construir. E fica claro que depois disso qualquer referencia ao absoluto da negatividade se tarna su­perflua, charne-se ela mal ou diabo33 ! No campo dessa suavidade, dessa plenitude de urn ser do qual cada urn participa, e 0 proprio conceito de absoluto, nao digo do negativo, mas ate do positivo, que pareee mesma se dissipar. 0 caminho da sfntese entre conhecimento e liberdade se abre sobre 0 dispositivo onto16gico de causa sui, e, se na teoria do conhecimento este recolhimento leva ao metodo, esse mesmo recolhimento aqui faz pres­sao no sentido de uma teoria da potentia, da expansao do ser pratico. 0 desenho que se come~a a entrever e 0 da dilui~ao do absoluto sobre a po­tencia construtiva, no conhecimento met6dico como na filosofia da prciti­ca. Ainda resta urn longo caminho para percorrer, mas as premissas nao permitem que seja outro.

Com tudo isso, 0 Curto tratado e urn texto de panteismo. Tal e sua tonalidade fundamental. Prova disso e ainda que, na Correspondencia desse period034, os temas fundamentais do panteismo reaparecem, sao retoma­dos tendo, se isso e possivel, ainda mais intensidade que no Curto trata­do. Mas, ao avaIiarmos a significa~ao global dessas premissas no pensa­menta de Spinoza, nao devemos entretanto esquecer que, se 0 pantefsrno termina sendo no seculo XVII uma filosofia que perdeu a significa~ao uto­pica que 0 Renascimento the dera (Giordano Bruno morreu na fogueira, a utopia esta morta), todavia, na situa~ao holandesa e no espirito do cfr­culo spinozista, ele ainda constitui uma base de resistencia a derrota. Base insuficiente, sem duvida alguma. Mas consideravel como possibilidade para ir para frente. E preciso atravessar 0 panteismo. So assim e que se pode ultrapassa-lo. Assim e que come~amos a ler desde 0 Curto tratado algu­mas premissas dessa nova estrategia. Onde? ja vimos. Em que sentido? Aqui tam bern, corne~amos a perceber urn caminho. De "causa sui" a "potentia"

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e a "methodus". Ultrapassar 0 pantefsrno implica sua reabertura. Mas ele e plenitude de ser: sua reabertura s6 pode ser uma constru<;ao de ser. Urn projeto que a filosofia deve seguir com metodo, uma pratica que a filoso­fia deve construir. Sem media~ao, mas, ao contrario, atraves de urn traba­lho e uma obra de constitui~ao de novOS campos de verdade, singulares e determinados. Spinoza, registrando urn passado revolucionario e uma uto­pia viva, se poe em condi~oes de superar a derrota.

2. METODa E !DEIA VERDADEIRA: ESTRATEGIA E DESVIO

A passagem a problematica do Tractatus de Intellectus Emendatione (1661)35 foi interpretada par alguns como "uma mudan<;a completa de perspectiva" - que alias ja seria perceptivel nas corre<;oes e acrescimos ao Curto tratad036• Veremos ate que ponto, em geral, isto e pouco verda­deiro: ja vimos ate que ponto e pouco verdadeiro no que se refere aos acres­cimos ao Curto tratado, quando consideramos a Apendice geometrico como 0 momenta sem duvida mais avan~ado daquela elabora~ao. Eu queria agora emitir a hip6tese de que 0 Tractatus de lntellectus Emendatione (que daqui em diante chamaremos TRE) nao represente urn deslocamento de perspectiva metaffsica, mas uma primeira tentativa - extremamente im­portante, em certos aspectos profundamente inovadora, mas substancial­mente inacabada e contradit6ria - para ultrapassar 0 horizonte panteista originario. De que maneira? Atraves da tentativa de captar e desenvolver, no terreno da teoria do conhecimento, todos os tra~os espedficos da pri­meira abordagem utopica que pudessem determinar uma opera~ao de aber­tura no seio da plenitude do ser. Dai, entao, 0 problema fundamental, ver­dadeira ponta de Ian<;a do TRE, que nao e a de chegar a urna nova confi­gura'fao da metaffsica, em rela'fao com urn novo conceito de verdade

37,

mas ao contrario 0 de cavar 0 terreno onto16gico ate produzir urn novo horizonte de verdade, de rernontar da potencia do ser a potencia da ver­dade38. Mas ate que ponto e possivel essa eSCaVa'fao? Que resultados pode obter essa estrategia rnet6dica em uma situa~ao em que 0 dispositivo on­tologico permanece inalterado? No estado atual da pesquisa, nao termi­nara isso par produzir urn impasse, urn desvio de sentido, a tendencia global do pensamento nao sera tao desviada que a for'fa dessa tentativa sera fi­nalmente anulada? E sera que nao se pode dizer que nessas condi'foes, a partir do reconhecimento do fracasso do projeto do TRE (construir urn novo conceito de verdade no seio da plenitude panteista do ser), mas so­mente enta039, se impora a necessidade de uma modifica'fao radical da pr6-pria concep~ao do ser? Essas perguntas nos levariam longe demais: nosso trabalho de reconstrU'fao esta apenas come~ando. Aqui iremos nos satis-

A Anomalia Se1vagem 61

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r fazer em procurar captar a maneira especifica como 0 TRE aprofunda a

~ utopia do cfrculo spinozista. Precisamos entretanto de Dutra considerac;ao preliminar. Pais se e

verdade que 0 ponto de vista ontologico permanece fundamental, nem por isso emenDS verdade que aqui Spinoza "nitidamente tama posit;:lo no debate referente ao metoda de conhecimento, tao caracteristico do pensa­menta do seculo XVII,,4o. Vejamos 0 que Spinoza escreve a Oldenburg: "Em seguida me perguntais que enganos vejo nas filosofias de Descartes e de Bacon. Nissa, embora eu nao tenha 0 habira de assinalar os erras dos Dutros, quefa entretanro aceder a vassa desejo. Sua prime ira e maior in­suficiencia e ir perder-se longe demais do conhecimento da causa primei­fa, e da origem de radas as coisas. 0 segundo erro e nao conhecer a ver­dadeira natureza da mente humana. 0 terceiro, nunca terem determina­do a verdadeira causa do erro. Que seja absolutamente necessario 0 ver­dadeiro conhecimento desses tres pontos e algo que so os homens despro­vidos de qualquer paixao pela ciencia podem ignorar,,41. 0 esquema da resposta, entao, e simples: Spinoza remete antes de mais nada ao funda­mento ontologico da teo ria do conhecimento, ao fato de que a logica de­pende da causa primeira - no que se refere a Descartes, e preciso acres­centar que em sua filosofia a mente se subdivide abusivamente em diver­sas fun~oes, e se subtrai assim ao determinismo da causa; no que se refere a Verulanio, a mente igualmente procura se subtrair ao determinismo on­tologico, quando se forja uma representa~ao das coisas «ex analogia suae naturae" e nao «ex analogia universi". A crftica e tao clara num caso quanta no outro: mas, examinando bern, enquanto as cartas desse perfodo insis­tern na polemica anticartesiana, que chega a conclusoes inteiramente ra­dicais42, a discussao da teo ria baconiana do conhecimento e muito mais aberta e disponfvel a outras influencias do racionalismo empirista, hob­besiano em particular. Influencias efetivas e de cerra consistencia. 0 que nao constitui urn paradoxo, se quisermos recordar caracteristicas huma­nistas e construtivas da utopia do circulo spinozista - daquela atmosfera que 0 levou ao tao feliz encontro com Oldenburg e com 0 primeiro proje­to cientifico do colegio londrino43. Longe de ser urn paradoxo, ao contra­rio, is so corresponde plenamente ao esquema construtivo e logico do pro­jeto ontologico tal como ja foi esbo<;ado no Curto tratado. Como foi am­plamente demonstrado, entre outros, por Cassirer e Koyre44, trata-se de fato de uma concep~ao logica largamente convergente no ritmo indutivo que preve, de urn encontro que, sem nada conceder no terreno das premissas metafisicas, pode entretanto ocorrer ao nivel da teoria do conhecimento, na medida em que a consideremos como 0 metodo da defini<rao genetica e da geometriza~ao funcional. Mas nao e so: defini<rao genetica e geometri­za<rao, tanto para os filosofos ingleses quanto para Spinoza, estao situa-

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das num quadro fisico dotado de potencia construtiva - quer se trate da traC;ao qualitativa da rela<rao natural "sentida" por Bacon45, do impulso do "conatus" em Hobbes46, ou daquilo que ainda nao passa do inicio da afirma<rao spinozista da "potentia". Em cada urn dos casos, 0 ponto de vista do relacionismo matematico, surgido primeiramente sob a forma poetica do neoplatonismo, depois remodelado na abstra<rao do mecanicis­mo, esta subordinado a continuidade das rela<roes e das potencias fisicas. Spinoza, no TRE e em torno do TRE, portanto toma realmente I;?osi<rao

nO debate do seculo XVII sobre a teoria do conhecimento, mas apenas para aprofundar e enriquecer 0 ponto de vista pantelsta originario.

Estamos agora em condi<;6es de ler 0 TRE. Encontramo-nos nova­mente, e logo, no terreno da utopia: os 25 primeiros paragrafos47 colocam o problema do conhecimento como ascetica da beatitude, e apresentam a ccemendatio" em rermos que, longe de distinguir moral e conhecimento, enfatizam, ao contrario, sua conexao. "Emendatio" e urn termo de medi­cina, designa uma tecnica, uma opera<rao com uma finalidade precisa: a reforma do intelecto e sua cura para que desse modo 0 intelecto seja resta­belecido no ser e portanto chegue a virtude. A esse respeito, insistiu-se nas fontes estoicas ou neo-estoicas do discurso spinozista: mas sera que urn lugar­comum do seculo pode ocupar lugar de fonte48 ? A origem, a fonte dessa abordagem na realidade esta muito mais proxima - e justamente nos pa­ragrafos onde estaO expostas as condi<roes previas da cc emendatio" que pode­mOS reconhece-la: nada mais e senao a sociabilidade etica e a comunhao espiritual vividas pelo circulo spinozista, e ja prescritas no Curto tratado.

"Tal e entao 0 fim para 0 qual eu tendo, a saber, adquirir uma natu­reza assim superior, e esfor<rar-me para que muitos outros a adquiram comigo. Com efeito, isso tambem pertence a minha felicidade aplicar-me para que muitos outros compreendam 0 que compreendo, a fim de que seu entendimento e seus desejos concordem perfeitamente com meu entendi­mento e meus desejos. Para que isso se fa<ra, e preciso rer da Natureza co­nhecimento sufieiente para a aquisi<rao dessa natureza humana superior; depois e preciso formar uma sociedade tal como ela deve ser, a fim de que o maior numero possivel de homens cheguem, tao faeil e seguramente quanta possivel, a esse objetivo. Em seguida, deve-se dedi car os esfor<ros a uma filosofia moral, assim como a ciencia da educa<rao das crian<ras; e como a saude e urn meio importante para a consecw;ao desse fim, sera pre­ciso elaborar uma medicina completa. E comO muitas coisas dificeis tor­nam-se faceis atraves da arte, e que esta nos faz ganhar muito tempo e co­modidade na vida, nao se deixara de lado absolutamente a meca.nica. Mas antes de tudo sera preciso encontrar urn meio de curar 0 entendimento e de purifica-Io tanto quanta se puder no inicio do empreendimento, a fim de que ele compreenda as coisas facilmente, sem erro, e 0 melhor possl-

A Anomalia Selvagem 63

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, veL Donde ja se pode ver que quero dirigir todas as ciencias para urn uni­co objetivo e urn unico fim, a saber, 0 de chegar a essa suprema perfei~ao humana de que falamos; assim, tudo aquila que, nas ciencias, nao nos faz avanc;ar em dire<;ao ao nosso objetivo devera sec rejeitado como inutil; ou seja, em uma palavra, que radas as nossas ac;oes assim como rodos os nossos pensamentos deverao estar voltados para esse fim "49.

Nas linhas que se seguem, Spinoza insiste ainda em ideias semelhan­tes, mas nao mais tanto nas condic;6es quanta nos meios concretos que podem permitir a busca cia verdade, e exp6e entaa os pontos essenciais de uma especie de "moral provis6ria": sociabilidade e simplicidade de linguagem, a fim de pacier encontrar ouvidos dispostos a Duvir a verdade; busca do prazer nos limites da conservac;ao da saude; ganho e uso do dinheiro para assegurar a reproduc;ao da vida50• Mas como definir essa ascetica, se nao nos termos prosaicos de urn sentimento burgues da vida, da feliz experiencia de vida social que historicamente triunfou nos Paises Baixos? Nao ha nada de "pro­visorio" nesse primeiro esboc;o, a ascese e inteiramente positiva, e se a abertura do TRE, com excessiva freqiiencia definida como urn discurso sobre a du­vida existencial e a ascese mistica, retoma 0 genero <. de contemptu mundi "51 ,

e unicamente em sua forma literaria. Na realidade, a etica aqui vern apenas do existente, leva 0 existente a revelac;ao de si mesmo. A etica e aqui 0 ser que mostra sua figura pratica, e urn raciodnio ontologico (como sao todas as utopias) a rnedida do individuo ou do grupo.

"Aqui apenas direi brevemente 0 que entendo por bern verdadeiro e tambem 0 que e 0 bern supremo. A fim de que isso seja compreendido, e preciso notar que bem e mal se dizem apenas de maneira relativa; a tal POnto que uma so e unica coisa pode ser dita boa ou rna conforme seja vista sob diversos pontos de vista; do mesmo modo que 0 perfeito e 0 imperfeito. Com efeito, de coisa alguma, considerada em sua natureza, se dira que e perfeita ou imperfeita; sobretudo quando soubermos que tudo 0 que se faz se faz segundo a ordem eterna e as leis determinadas da Natureza. Mas como a fraqueza humana nao se coaduna com essa ordem atraves de seu pensamento, que no entanto 0 homem concebe uma natureza humana muito mais forte que a sua, e que ao mesmo tempo nao ve nada que 0 impec;a de adquirir tal natureza, ele e incitado a procurar os meios que 0 conduzirao a tal perfei­c;ao. Tudo aquilo que possa ser urn meio de chegar a isso e chamado urn bern verdadeiro. E 0 bern supremo e para ele 0 de conseguir fruir - COm outros individuos se for possivel- de tal natureza superior. Mostraremos no lugar que Ihe cabe qual e essa natureza, a saber, que ela e 0 conhecimen­to da uniao que a mente possui com a Natureza inteira. "52

c<Cognitio unionis, quam mens cum tota Natura habet": mas, uma vez o espfrito voltado para tal fim, para tal reforma de si mesmo, como garan­tir essa abertura do ser do ponto de vista do conhecimento? Segundo que

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metodo selecionar, articular e fazer amadurecer as formas do conhecimen­to, de tal modo que a finalidade pnitica, a santidade e a beatitude possam ser descobertas pelo entendimento? Sejamos bern elaros: 0 problema ainda nao e - mas alguma vez sera, no TRE? - 0 do conhecimento: retomando a divisao em quatro graus de conhecimento53, ilustrados por exemplos54, Spinoza se satisfaz ate aqui em levantar simplesmente uma lista, inteiramente subordinada a intensidade etica da abordagem. Essa classificac;ao tern sido excessivamente debatida: «perceptio ex auditu: perceptio ex vaga ~xperientia; perceptio ubi essentia rei ex alia re concluditur, sed non adaequate"; e fi­nalmente "perceptio per salam suam essentiam" - ja muito se procuraram os antecedentes e a descendencia diss055. Na realidade, 0 problema 56 pode comec;ar depois dessa classificac;ao, onde 0 conhecimento toma forma, en­quanto tal, dentro de uma certa autonomia de sua propria problematica, quando esse ser dado se abre ao problema da constituic;ao da verdade.

cc Hie sic consideratis videamus, quis modus percipiendi nobis sit eligen­dus. "56 Essa entrada no assunto, entretanto, nao nos introduz a uma tematica tradicional do conhecimento. Esta-se realizando uma passagem: mas ain­da e, antes de tudo, novamente, uma passagem ontol6gica. Em outras pa­lavras, a crftiea das tres primeiras formas da pereepc;ao inteleetual, em pro­veito do conhecimento essencial, e pura e simplesmente uma apologia do ser. "0 quarto modo compreende a essencia adequada da coisa e isso sem perigo de erro. Assim, dever-se-a principalmente usa-Io. "57 Por que razao? _ Porque s6 0 quarto modo nos ofereee uma ideia nao instrumental do me­todo, uma fundac;ao do metodo que nao se baseia no mal infinito de uma busca puramente cognitiva - urn metodo enraizado na potencia inata do entendimento, dotado de uma potencia construtiva que integra igualmente a natureza essencial do entendimento. A metafora que surge - uma das ra­rfssimas metaforas encontradas na obra de Spinoza, e isto em plena epoca barroca58, quando floresee a metafora -, essa metafora vern como refor­c;o para aprofundar 0 sentido do diseurso: com 0 quarto modo de conheci­mento, 0 metodo esta estreitamente ligado a materia do conhecer, do mes­mo modo que 0 martelo que forja 0 ferro deve ser forjado no ferro; e 0

proeesso progressivo do metodo se eaka na marcha progressiva da produ­c;ao material, da transformac;ao da natureza em instrumento e do instrumento em nova natureza - segunda natureza, natureza construida.

"Mas do mesmo modo que os homens, no inicio, usando instrumen­tos naturais, e embora com dificuldade e de mane ira imperfeita, puderam fazer eertas coisas muito faceis, e depois de faze-las, fizeram outras, mais dificeis, com menos dificuldade e rna is perfeic;ao, e assim, elevando-se por graus dos trabalhos mais simples aos instrumentos, e dos instrumentos vol­tando a outras obras e instrumentos, chegaram a poder realizar muitas coisas, e muito dificeis, com pouca labuta; do mesmo modo 0 entendimento, com

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sua for~a inata, forma para seu uso instrumentos intelectuais, com os quais adquire outras for~as para outras obras intelectuais e gra~as a essas obras forma outros instrumentos para si mesmo, ou seja, 0 poder de levar avante a investiga~ao: assim ele vai avan~ando de grau em grau ate atingir 0 cume da sabedoria. Ora, que assim ocorra com 0 entendimento, e 0 que se ve facilmente, contanto que se compreenda tanto 0 que e 0 metodo da busca da verdade quanto 0 que sao esses instrumentos inatos, unica coisa de que ele precisa para fabricar outros a fim de prosseguir. »59

Que dizer mais? Que 0 estatuto ontol6gico da utopia spinozista mos­trou-se aqui no maximo de sua potencia? Para que? Para se convencer dis­so basta ler os para.grafos que se seguem, onde 0 realismo do conhecimen­to se libera de qualquer dependencia em rela<;ao a percep<;ao. "Habemus enim ideam veram." Mas "idea vera est diversum quid a suo ideato". A verdade e entao signo de si mesma, mas a recomposi<;ao da verdade e da ordem objetiva do mundo esta por fazer. 0 verdadeiro metodo e aquele segundo 0 qual a propria verda de, ou as essencias objetivas das coisas, ou ainda as ideias - esses tres termos exprimem a mesma coisa - sao busca­das na devida ordem6o• 0 encadeamento objetivo do verdadeiro se libera assim de qualquer dependencia em rela~ao a percep~ao, e nao e mais su­bordinado senao ao projeto de constitui~ao: estarnos confrontados com 0

radicalismo absoluto do ser objetivo. Mas nao e so: esse realismo vive, com efeito, numa situac;ao em que 0 tinico apoio de que precisa e ele mesmo, e a verdade que ele exprime imediatamente. Se, como deplora Gueroult, a sfntese cognitiva no TRE nao e levada ate 0 nivel da completude do ser, se eia nao tern necessidade de se regular sobre a definic;ao da natureza divina, e porque 0 conhecimento se estabeleceu, sem conseguir se desembarac;ar disso, sobre uma realidade completamente emaranhada, feita de essencias avaliadas diretamente por elas mesmas: 0 conhecimento aqui nao conhece uma 16gi­ca interna que 0 leve aos mais altos nfveis do ser, 0 mais alto nfvel do ser­pela primeira vez- e 0 ser presente, 0 ser imediat061 . Veremos mais adiante a importancia dessa reversao do panteismo, de uma filosofia da pro fundi- . dade a urn pensamento da superficie: contentemo-nos em anotar aqui que ela representa urn dos caminhos atraves dos quais se desdobra 0 radicalis­mo absoluto do ser objetivo. 0 metodo aqui vai entao a procura da verda­de escavando 0 mundo da ideia e do ser, e alcanc;ar a verdade, constituir uma ideia adequada, significa fazer falar 0 ser. 0 isolamento cia verdade e func;ao do ser que se diz. No momenta em que a busca met6dica identifica a ideia adequada, cria a forma, a norma segundo a qual ela se exprime, no sentido de que nela e 0 ser que se exprime. 0 metodo e, desse ponto de vista, conhecimento refletido, em dois sentidos: de urn lade enquanto se configu­ra como ideia da ideia, como norma do ser que fala; de Dutro, porque as­sim ele permite ao conhecimento seguir a ordem do ser, e faz do conheci-

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mento urn processo de acumulac;ao de experiencias do ser real, numa subi­da em dire~ao ao absoluto, em direC;ao ao mais alto ponto de compreensao da totalidade62. Claro esta que esse enraizamento objetivo da verdade, essa co-essencialidade do metodo com a ordem onto16gica podem parecer pa­radoxais63, ou dar oportunidade a objec;ao dos ceticos, que contestam a ver­dade qualquer valor objetivo64. Mas por que aceitar essa acusa<;ao de pa­radoxo, ou a suspeita cetica de uma irrealidade do ser, quando 0 que nos confirma em nossa apreensao da realidade e 0 que ~~ad vitae et societatis usum attinet"? Os ceticos que encontramos pelo caminho devern ser con­siderados "tanquam automata quae mente omnino earent", como artificiosos exegetas do nao-ser65. A utopia agora ganhou corpo, alcan<;ou a mais alta transparencia.

Ele tern agora de se desdobrar num programa, numa estrategia. "Re­sumamus jam nostrum propositum. "66 Em primeiro lugar determinamos o fim para 0 qual organizavamos nossa busca, escreve Spinoza. Definimos em seguida a percepc;ao que melhor podia nos permitir avanc;ar em dire~ao a perfei~ao. Em terceiro lugar, definimos 0 caminho que 0 entendimento deve tomar para ter urn born inicio e caminhar utilmente na busca da ver­dade: a norma da ideia verdadeira, a ideia de adequac;ao constituem essa linha. Porem, para que tudo isso seja bern desenvolvido, e preciso adotar as seguintes regras: I) distinguir a ideia verdadeira de todas as outras per­cepc;6es; II) trac;ar novas regras para perceber as coisas desconhecidas, de acordo com as regras ja dadas; III) estabelecer uma ordem que nos evite esgotarmo-nos na busca de coisas intiteis; IV) levar esse metodo ate seu ponto de aplicac;ao mais alto e mais perfeito, ate 0 contato com 0 Ser mais perfei­to67

. Tal e 0 programa. Sabe-se que 0 TRE esta inacabado: Spinoza s6 desen­volveu plenamente 0 primeiro ponto, e comeC;ou a redigir 0 segundo. Nem sequer abordou os dois outros pontos. Nem por isso 0 programa deixa de ser claro: define 0 que se poderia chamar uma estrategia da adequac;ao, numa perspectiva que percorre a qualidade essencial do ser para tornar a reunir suas diferenc;as na substancialidade divina. A ascese tearica, ao se conduir, volta a encontrar sua plenitude pnitica. E por isso mesmo que, nessa indistin­c;ao tearico-pratica, a ideia de adequac;ao do pensamento e da realidade nos mostra outra vez a tensao constitutiva que a anima. A estrategia projetada portoda a primeira parte do TRE (paragrafos 1-49) e uma estrategia de cons­tituic;ao do real, solidamente enraizada na utopia da plenitude do ser.

Estrategia de constituic;ao versus utopia pantefsta: mas isto se man­tern? Nao sera. antes a formidavel tensao da utopia que mantem, em for­mas ja agora sirnuladas, a expansividacie construtiva do metodo? Nao estamos entao atingindo 0 limite do pensarnento utapico, ja nao mais obs­taculo a ser superado, mas limiar crftico? 0 problema nao se coloca da­ramente aos olhos de Spinoza. Ele segue 0 programa que determinou. Mas

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r e justamente na realiza~ao do programa que 0 desvio entre estrategia e realidade se torna cada vez mais nftido. 0 fundamento do procedimento construtivo do metoda, ja vimos, e a potencia do processo de adequa~ao. Mas sera a ideia de adequa<;ao capaz de exprimir a patencia onto16gica que a fundamenta? Ou naD sera necessaria admitir que ela foi lao<;ada excessivamente adiante - com extrema determina<;ao - e se encontra ao mesma tempo bloqueada numa dimensao profunda do set, onicompreen­siva, quase sufocante? Em surna, sera que tal ideia de adequac;ao e consti­tuic;ao naa exige 0 questionamento do pressuposto ontologico do qual, entretanto, provem? Nao havera uma contradic;ao insoliivel entre estrate­gia de constitui~ao e utopia panteista?

A segunda parte do TRE68 percorre essa contradi"ao. Mas de urn ponto de vista que, se pode finalmente satisfazer 0 erudito amante das sutilezas da teoria do conhecimento no seculo XVII, certamente nao pode pretender resolver a contradi<;ao. Em lugar de desenvolver a exigencia constitutiva, Spinoza, ao contrario, aprofunda uma analise diferencial da ideia, como se partisse em conquista de sua pureza, de sua verdade originaria. Distinguir a ideia verdadeira de todas as outras percep<;oes: tal e portanto 0 primeiro objetivo. E 0 substrato ontologico da busca produz entao uma especie de fenomenologia da ideia. Reconhecemos bern, nesse ponto, aquilo que faz a irredutivel originalidade da experiencia teorica de Spinoza. Ha aqui momen­tos de fantastica riqueza, de fantastica imagina<;ao filosofica! Spinoza re­tern, com efeito, dois casos fundamentais: em primeiro lugar, distinguir 0

simples do complexo, extrair do confuso a verdade essencial como clareza intuitiva (e 0 caso da "idea ficta": panigrafos 52-65; da "idea falsa": pani­grafos 66-68; da "idea vera": panigrafos 69-73); em segundo lugar, distin­guir a ideia verdadeira, ou pelo menos 0 signo da verdade, onde se acumu­lam uma sobre a outra diversas formas de percep<;ao (ideia e imaginario: par. 74-76; "idea dubia" ... "talis cartesiana sensatio": par. 77-80; ideia, me­moria e esquecimento: par. 81-87; ideias, palavras, imagina<;ao: par. 88-89) e onde 0 importante nao e tanto distinguir diversos graus de clareza quan­to separar - mas, por isso mesmo, novamente, escavar, reconstruir, remo­delar - potencias cognitivas diversas e/ou concorrentes. Pela primeira vez na historia cia filosofia moderna, ve-se fundado, no Spinoza dessa epoca, 0

procedimento da analise transcendental que encontrara em Kant sua expo­si<;ao mais acabada; mas 0 que tam bern se ve fundado, pela transparencia ontologica na qual 0 fato de conhecimento sempre tern de ser considerado, e a orienta<;ao fenomenologica da fun.;ao transcendental. Sejamos bern elaros: e apenas urn come.;o. Alem disso, ja indieamos isso e breve voltaremos a aborda-lo, nao e a linha principal da pesquisa. Esse ensaio de analise feno­menol6gica e entao, em Spinoza, precario e nervoso: parece-me no entanto importante tornar a acentuar aqui 0 aspecto qualitativo da utopia, seu carater

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selvagem. E a totalidade humana que e posta em questao -da sensa.;ao a razao, dos sentidos a imagina<;ao e a ideia - e a analise avan.;a pondo em evidencia sua complexidade interna, exibindo a alma, mostrando-nos a ra­zao em toda a sua potencia selvagem. Os exemplos dados por Spinoza nao tern a aparencia elegante da metafora barroca, mas antes a densidade plu­ralista propria a imagina<;ao pictural de Hieronymus Bosch. Quando De­leuze, a esse respeito, fala de ressurgencia do filao scotista da filosofia classica, aeerta na mosca69 ! Nao e entao de espantar que se veja Spinoza pr<~por como material de analise 0 proprio mundo do delfrio, ou a dimensao da opiniao mais fantastica ou decididamente insana: e justamente essa abordagem que evidencia, nao uma filosofia iluminista e seu projeto abstrato de domina­<;ao intelectual, mas a vontade de saber, de conhecer: atravessar 0 mundo em sua totalidade, lan.;ar-se para a grande exterioridade da aventura e da descoberta, lan.;ar-se para a sublime interioridade da consciencia.

Mas com tudo isso, 0 quadro fundamental, 0 tecido estrutural nao se enriquecem: e, ao eontrario, urn mecanisme redutivo que dirige a linha prin­cipal da analise. Ja vimos que a distin<;ao se faz inicialmente seguindo dois caminhos: 0 caminho analftico e 0 caminho fenomenologico. Mas 0 caminho analitico esta colocado numa posi<;ao de supremacia ontologica. A medida que se afirma essa supremacia, entramos num horizonte abstrato de co­nhecimento. Diante de urn mundo tao rico, 0 conhecimento prefere se apre­sentar separadamente, e portanto se enrolar e se desenrolar sobre si mesmo.

"Pois quanta ao que constitui a forma do verdadeiro, e certo que 0

pensamento verdadeiro nao se distingue do falso apenas por uma deno­mina<;ao extrfnseca, mas principalmente por uma denomina<;3.o intrfnse­ca. Com efeito, se algum artesao conceber uma obra segundo as regras de sua arte, embora essa obra nunca tenha existido e mesmo nunca venha a existir, seu pensamento no entanto e verdadeiro: que essa obra exista ou nao, seu pensamento e 0 mesmo. ,,70

o conhecimento busca a marca intrfnseca da verda de: mas isso des­troi a experiencia real da "fabrica". Em outras palavras, a produtividade do saber, a reinser<;ao da causalidade no pensamento, tao potentemente focalizada pelo TRE, depois de ten tar se desdobrar no mundo como pro· jeto de compreensao, depois de lan<;ar essa estrategia, retorna sobre si mesma: a produtividade do conhecer se recolhe sobre a exclusividade e a especificidade da potencia do pensamento. Esta e a crise do TRE. Ela tern seu lugar nesse afastamento entre produtividade do saber e capacidade de mostni-la em funcionamento. Determina-se em torno do fato de que a ideia de verdade - definida no seio da total ida de, intensiva e extensiva, da ontologia panteista - e inca paz de tomar definitivamente as dimens6es de uma fun<;ao fenomenologica, e incapaz de se apresentar definitivamen­te como uma potencia fisica. 0 TRE antecipa muitos temas, ao mesmo

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tempo crfticos e construtivos, que teremos oportunidade de voltar a en­contrar e aprofundar ao estudarmos 0 pensamento do Spinoza da maturi­dade. Mas aqui 0 projeto se bloqueia, sofre urn desvio. E e de se notar que urn bloqueio assim se verifica, no essencial, todas as vezes que a comple­xidade do real penetra tao profundamente na alma que faz desta uma tu­multuada sintese psiquica, rigida e indissociavel, que poe em xeque qual­quer tentativa de nela isolar fun~6es superiores. 0 metodo de distin~ao tern entao de se afastar: ja. nao e mais 0 problema do peso da alma que e leva­do em considera<;ao. Passa-se por cima dele. 0 pensamento foge de uma complexidade que se mostra incontroIavel. E assim que a alma e novamente condenada a passividade: novamente, depois, por assim dizer, de ter sido aliciada para que em sua totalidade mostrasse for<;a expressiva e produti­va. Sera que esperara demais71 ?

Mas afinal, a construtividade do metodo nao pode realmente coexistir com 0 panteismo? A este nivel da busca, isso nao e possive!. 0 espa<;o fe­nomenol6gico que se abrira se fecha agora. Da domina<;ao que 0 conheci­mento pretendia exercer sobre 0 mundo, passa-se novamente (e de acor­do com a tradi~ao) a domina<;ao que 0 conhecimento exerce sobre si mes­mo. A ideia de adequa<;ao cede lugar entao a de concatena<;ao: claro esta que 0 real se espelha na ideia, e a concatena<;ao das ideias corresponde entao a do real.

"E porque, com efeito, nao compreendemos as propriedades das coi­sas enquanto ignorarmos a essencia delas; se as deixarmos de lado, per­verteremos necessariamente a concatena<;ao do entendimento que deve re­produzir a Natureza, e afastar-nos-emos inteiramente de nosso objetivo.,,72

Dupla concatena<;ao: mas isso e obvio, idealismo nao quer dizer acos­mismo. Mas que 0 polo ideal esta agora entregue a si mesmo, 0 proprio real esta entregue a ideia. 0 real nao e negado: e reduzido as dimensoes da ideia. A inferencia logica, no momento preciso em que pretendia se construir em sua perfei<;ao, mostra-nos sua incapacidade de se regular sobre oreal: ja nao passa de uma experiencia logica puramente protocolar, 0 ser se vo reduzido ao estado de formula protocolar73 • 0 peso do ideal na absolutez cia concatena<;ao panteista impede que 0 concreto se afirme como potencia material. A produtividade do ser e completamente recuperada na produtividade da ideia. A reconstru<;ao do ser se apresenta como 0 proje­to de construir regras logicas de montagem metafisica. 0 ser e imutavel e eterno, nao como horizonte e norma positiva de produ<;ao, mas como norma formal de concatena<;ao.

"Ora, de acordo com a ordem, e para que todas as nossas percep­<;oes sejam ordenadas e unificadas, e preciso que, tao rapidamente quanto possivel- a razao ° exige -, busquemos saber se hci urn Ser, e tambem qual e ele, que seja a causa de todas as coisas, a fim de que sua essencia

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objetiva seja tambem a causa de tadas as nossas icieias. E entao nossa mente, assim como dissemos, reproduzira a Natureza de maneira perfeita, pois dela tera objetivamente tanto a essencia quanto a ordem, quanta a uniao. Donde podemos ver que precisamos antes de tudo deduzir sempre nossas ideias de coisas fisicas, ou seja, seres rea is, avan<;ando, tanto quanto pos­sivel, seguindo a serie das causas, de urn ser real a outro ser real, e isso de maneira a nao passar pelas coisas abstratas ou pelos universais, nem de1es deduzindo alguma coisa real, nem deduzindo-os de alguma coisa real: urn e outro, com efeito, interrompem 0 verdadeiro progresso do entendimen­to. Ora, e necessario notar que, por serie das causas e das coisas reais, nao entendo aqui a serie das coisas singulares mutaveis, mas somente a serie das coisas fixas e eternas. Com efeito, seria impossivel para a fraqueza humana seguir a serie das coisas singulares mutaveis, tanto em razao de sua quantidade que ultrapassa qualquer numero quanta em razao das in­finitas circunstancias que se referem a uma so e mesma coisa, cada uma das quais pode ser causa da existencia ou da nao-existencia dessa coisa. Pois a existencia delas nao tern nenhuma conexao com sua essencia, ou (como ja dissemos) nao e uma verdade eterna. ,,74

Assim termina a analise do ponto I do metodo. A passagem ao ponto II apenas confirma 0 desvio verificado ate aqui na argumenta<;ao, em sua dimensao real.'Ou antes, acentua-o. Da distin<;ao a defini<;ao da ordem: mas este e urn caminho para 0 eterno, pois a ordem se fundamenta no eterno, e o conhecimento procede para esse limite. Donde uma analise da imediatez do signo da verdade, e a consequente dedu~ao das regras - na realidade simples propriedades do entendimento em sua apreensao da verdade - que o entendimento prop6e a si mesmo para conduzir seu projeto metodico75

.

"Reliqua desiderantur." 0 TRE para aqui. Em pleno idealismo. A poton­cia formadora da razao se desenrola inteiramente sobre ela mesma. E aqui, por conseguinte, que se bloqueia a inversao spinozista do cartesianismo.

Ora, Spinoza e perfeitamente ciente da contradi\ao na qual 0 proce­dimento metodico elaborado no TRE esta prisioneiro. 0 procedimento metodico terminou ficando inteiramente fechado sobre 0 entendimento: mas como pode 0 entendimento sustentar na totalidade a tensao da uto­pia? "Mas, ate aqui, nao possuiamos nenhuma regra para encontrar as defini<;6es, e como nao podemos estabelece-Ias, a nao ser que a natureza ou a defini<;ao do entendimento, assim como sua potencia, seja conheci­da, segue-se dai, ou que a defini<;ao do entendimento deve ser clara por si mesma, ou que nada poderemos entender. Esta entretanto nao e absolu­tamente clara por si mesma. ,,76 Compreendemos aqui a razao da interrup­<;ao do TRE. Sobre tal base ontologica, e preciso necessariamente recor­rer ao idealismo para superar a dificuldade da defini~ao. Mas 0 idealismo vai contra a utopia, que e humanista e revolucionaria, e quer defrontar com

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as coisas. A estrategia sofreu urn desvio: e preciso refletir. Uma pausa. A quem insiste para que ele publique 0 TRE, invocando a liberdade holan­desa como garantia da possibilidade de publica,ao, Spinoza responde com amabilidade: na realidade, as mesmas cartas nos mostram que, nesse caso, a nao-publicac;ao do TRE nao e uma questao de prudencia77• Isso persis­tira ate a carta a Bouwmeester de 1666, em que Spinoza encerra rapida­mente seu discurso sobre 0 metodo remetendo seu interlocutor a uma afir­mac;ao fundamental: "Segue-se daf que as percepc;oes claras e distintas que formamos dependem somente de nossa natureza e de suas leis determina­das e permanentes, ou seja, de nossa potencia absolutamente nossa,,78. Mas isso significa que a concepc;ao do ser mudou: ele se enuncia como poten­cia. Uma transformac;ao da fundac;ao ontologica permite-nos agora dizer que "a definic;ao do entendimenro e absolutamente clara".

3. A ESPESSURA ONTOL6GICA

Os Principia da filosofia de Descartes, demonstrados segundo me­todo geometrico, e acompanhados por urn Apendice que resume reflex6es metaffsicas: os Cogitata metaphysica, sao publicados em 1663 com urn Prefacio de Ludwig Meyer79. Parece ser uma obra secundaria: e a unica editada e assinada por Spinoza em vida, e e fruto de uma serie de aulas dadas a urn cerro Casearius80. Mesmo se 0 sao muito menos do que sus­tenta Meyer em seu Prefaci08\ os Principia sao no entanto fieis aos Prin­cipes de Descartes, cujas gran des linhas acompanham. Quanto ao meto­do geometrico de exposic;ao utilizado, seu carater artificial nao pode noS escapar - por uma razao que me parece clara: quanto mais Spinoza reto­rna fielmente 0 conteudo teo rico do pensamento de Descartes, rna is 0 me­todo geometrico se revela inadequado e deslocado. Voltaremos a isso. Obra secundaria, entao? Nao parece que seja. Com efeito, se de urn ponto de vista biogrcifico essa obra e apenas 0 produto de uma oportunidade que nem sequer foi procurada, seu lugar na genese do pensamento de Spinoza e na hist6ria do drculo de qualquer modo e extrema mente importante. Ela constitui efetivamente 0 momento de reflexao critica, a pausa que se tor­nou necessaria pel a crise da tentativa metodol6gica do Tractatus de In­tellectus Emendatione. E verdade que ji hi no TRE - principalmente nas notas enos acn!scimos - freqiientes remiss6es a Philosophia: eo objeti­vo declarado dessas remissoes e sempre 0 de contribuir para definir novas potencialidades ontologicas, destinadas a renovar a abordagem cognitiva82. E verda de, alem disso, que a primeira redac;ao da Etica ja esta em prepar~ (e as primeiras proposic;6es do Livro I tern uma solida base ontologica)83. E no entanto, e preciso insistir nisso, os Principia, e sobretudo os Cogitata,

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constituem urn momento essencial: realmente, e aqui que se especifica 0

conteudo da pausa tao necessario ao avanc;o do pensamento de Spinoza - 0 polo ontologico da alternativa panteista ganha urn relevo critico e uma posic;ao de eminencia teorica decisiva em relac;ao a tendencia idealista. Claro e que nao devemos esperar urn nivel de autocritica que perturbe 0 curso continuo da maturac;ao teorica de Spinoza. A autocritica visa apenas aos resultados, ou antes a incompletude da teoria do conhecimento, que ela vincula a teoria do ser; trata-se de urn processo de pensament6 que ape­nas aflora a possibilidade de uma abertura sobre a potencia desdobrada do ser. Prepara<;ao, bern mais que efetua<;ao da passagem do primeiro ao segundo Spinoza - se a imagem, de valor puramente alusivo e hipoteti­co, me e permitida (alias, veremos isso em breve, a primeira redac;ao da Etica tambem se encontra dentro desses limites). Mas e importante acen­tuar que nessa bruma, entre metodo e soluc;ao idealista, tal reflexao inter­vern imediatamente. Principia e sobretudo Cogitata restituem a filosofia urn terreno solido, reivindicam sua espessura ontologica.

Ludwig Meyer interpreta essa passagem do ponto de vista da pro­blematica do circulo spinozista. Em seu Prefaci084, insiste nos tres pontos fundamentais do anticartesianismo utopico e revolucionario: nenhum dua­lismo entre pensamento e extensao, nenhuma independencia da alma hu­mana, identidade do entendimento e da vontade85. 0 radicalismo de Meyer retoma os motivos do circulo spinozista, seu extreme racionalismo de fun­damento humanista86: ele poe esse conteudo em relac;ao com 0 metodo, com a tensao constitutiva que the e programaticamente atribuida, e insis­te na importancia decisiva do fato de que "por meio do metodo demons­tram-se as conclusoes atraves de definic;6es, postulados e axiomas,,87. Pobre Meyer, na verdade se esta bern longe de uma sintese adequada e triunfan­tel 0 projeto destacou-se do horizonte constitutivo, a tensao utopica de­sembocou numa fusao idealista, 0 que nao pode ser resolvido formalmen­te, e muito menos literariamente: pois de fato 0 metodo geometrico dos Principia pouco mais e do que urn expediente literario. Isso nao obsta que a utopia, sua tensao, deva resistir: mas para tanto, e novamente 0 tecido ontologico que tern de ser percorrido. Insistir na ontologia, diante da cri­se do metodo, diante da fuga para 0 idealismo, e 0 que 0 conteudo para 0

Prefacio deveria ter representado e antecipado: com esta condic;ao e que podiam se manter a filosofia e a esperanc;a do circulo. ESpinoza se move justamente nesse terreno: Principia e Cogitata assim como nas primeiras proposic;6es da Etica nas quais trabalha ao mesmo tempo. Mas por pou­co tempo ainda: entre 1664 e 1665 ele deixara definitivamente Rijnsburg, e na mesma oportunidade 0 circulo, e se transferid. para Voorburg, perto de Haia, para uma comunidade bern mais vasta: a sociedade politica - a utopia enta~ se medid. com a realidade. E 0 fara muito bern.

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Mas nao antecipemos. Voltemos a nosso ponto. 0 que reter dos Prin­.. cipia? Pouca coisa que ja nao tenha sido vista no Curto tratado, quanta a primeira parte, que retoma a parte metaffsica dos Principes de Descartes: insistencia particular sabre a teoria do erro e da vontade, sobre as defini­~6es de liberdade, etc.88: sabemos em que sentido. Na segunda parte, consta­tamos que Spinoza assimilou muito bern a fisica cartesiana: tudo isso e im­portante, assim como as criticas emitidas por ele, ao menos a titulo de anuncio dos desenvolvimentos essenciais da "ffsica" do Livro II da Etica89• Se ficas­semos nisso, entretanto, nao retirariamos nada da leitura dos Principia: num confronto expHcito com Descartes, sao eles uma retomada dos temas fun­damentais e fundadores do Curto tratado - nada alem de urn inflexiio do eixo tearico spinozista. Que chega quase a se romper nos Cogitata, diante das dimens6es tomadas por essa inflexao. De improviso, mas com extrema decisao, 0 pensamento se dirige diretamente sobre 0 ser e poe em funciona­mento uma maquina de guerra contra todas as formas possiveis de idealis­mo. A autocrftica fica exposta a luz do dia. E com isso ficam novamente a descoberto as potencialidades materialistas da critica spinozista.

Do que se trata? De nada rnais do que 0 seguinte: os Cogitata con­sideram desde 0 infcio que 0 problema central e 0 da defini"iio do ser90 Mas tern uma maneira peculiar de faze-Io: temos de urn lado uma definic;ao do ser em si mesmo (0 que se concebe clara e distinramente como 0 que e ne­cessario ou possivel), e de outro uma definic;ao negativa, a distinc;ao entre ser real e ser irre-al, ficc;ao, quimera, ser de razao. Ora, e preciso fazer caber nessa segunda grande categoria 0 conjunto das formas de pensamento com as quais opinamos, explicamos, imaginamos e memorizamos. A apreensao do verdadeiro ser deve ser radicalmente distinta de tudo 0 que nao serve para a apreensao do ser em sua imediatez. A tradic;ao da teo ria do conhecimen­to tal como se estabilizou em torno dos grandes fil6es, 0 platonico e 0 aris­totelico, produz, diante da reta razao, puros nomes. Nao e que esses nomes sejam inuteis; 0 siio na forma sob a qual foram hipostasiados pela tradi"iio da teoria do conhecimento; deixam de se-Io assim que sao trazidos de volta a func;ao que e a sua, sem contestac;ao: designar qual ida des da essencia real, com sua func;ao de "nomes comuns". Nomes comuns e nao universais. A unidade e a materialidade imediata do ser nao permitem outra abordagem. Nunca, na histaria da metaffsica, 0 processo de demoliC;ao do universal che­gara tao longe: do universal e da pr6pria filosofia. Os instrumentos dessa demolic;ao sao novamente, em grande parte, os do ceticismo, mas servem para afirmar a plenitude do ser e de sua imediatez. Urn mecanismo mistico, de definic;ao negativa da essencia suprema? Nao 0 diria91. 0 mecanismo de pensamento e antes aquele que vimos no TRE, aquele que definimos em referencia ao ascetismo burgues e as suas motivac;6es praticas: poderfamos ir mais longe, e dizer que e urn mecanismo que lembra 0 caminho negativo

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e cdtico que canduz da duvida a afirmac;ao cartesiana do "eu penso" - salvo que aqui 0 processo e animado pela posic;ao origimiria do ser total e com­pacto, enuncia diretamente uma recusa de qualquer saida idealista. Nessa perspectiva, os Cogitata aprofundam a critica de toda ideia de transcendental na ordem do conhecimento, cuja substancialidade ontol6gica negam, qual­quer que seja a maneira como possa ser enunciada. Nomes inessenciais sao essencia e existencia, realidade e possibilidade, e tambem verdade e erro: names inessenciais todas as vezes que pretendam uma determina~ao onto-16gica autonoma que nao os qualifique como puros modos do ser total92.

Novamente urn aspecto selvagem do pensamento de Spinoza: a maneira como e realizada a destruic;ao de todo transcendenta193. Novamente a tensao do drculo spinozista, mas finalmente subtraida a qualquer tentac;ao neopla­tonizante, a qualquer pensamento da emana"iio e da degrada"iio do ser. Niio, o pr6prio ser e dado em sua interna, necessaria tensao: entre totalidade e modalidade, niio hi media"iio, ha apenas uma tensao, nao hi subsun"ao abstrata, transcendental, ha apenas a tensao do pr6prio ser: "a coisa e a ten­dencia pelo qual a pr6pria coisa tende a perseverar em seu ser,,94. E urn conceito de "inercia" do ser que e introduzido aqui (e na segunda parte dos Cogitata 0 proprio conceito de vida e reconduzido a ele)95, conceito extre­mamente importante porque exprime uma primeira definic;ao adequada da ideia de "potentia", uma primeira aplicac;ao materialista da fun~ao de "causa sui" a multiplicidade modal, e porque assim fundamenta na totalidade con­creta do ser apreendido sua recusa de qualquer ilusao transcendental.

Se, como com razao ja se fez96, procurar-se 0 quadro cultural a que se vinculam as Cogitata, nao se podera deixar de reconhecer a neo-esco­lastica reformada. Mas, antes do que procurar filia,,6es e determina,,6es ambiguas, cabe aqui captar imediatamente 0 sentido de oposic;ao do pen­samento de Spinoza. Na neo-escoIastica, 0 pensamento revolucionario tern de ser dominado em temos reformisticos: a continuidade do ser e media­tizada pelo conceito de urn ser analagico, cujo transcendental essencial resulta ser a possibilidade - a ordem e a eminencia do ser tomam entao uma for­ma que permite urn movimento de englobamento na hierarquia da imagem da dominaC;a097. Em Spinoza, a resposta e clara: 0 pr6prio conceito de pos­sibilidade e rejeitado, porque qualquer concepc;ao ana16gica do ser e rejei­tada. 0 ser e univocidade. Este ser univoco nao e traduzivel em ser ana16gico no terreno do conhecimento: mas, sempre no terreno do conhecimento, tam­bern nao pode ser mantido como ser univoco. Ou seja, a analise real nos mostra urn ser univocamente determinado que s6 pode ser percorrido como tal no terreno da ontologia, e portanto da adesao a totalidade. No terreno do conhecimento, apresenta-se como ser equivoco: qualquer homologia torna-se impossivel. Por isso e que a tensao que se libera aqui s6 pode ser resolvida no terreno da pratica: da potencia, dentro da determina~ao onto-

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logica enquanto ta198. De urn so golpe, Spinoza destroi a representa~ao esco­Iastica do ser analogico e a idealista da univocidade pensada: a neo-escolastica que reforma a imagem do poder, e 0 cartesianismo e 0 idealismo que fo­gem das responsabilidades da transforma,iio.

Estamos aqui diante da mais completa exposi~ao da utopia do circulo spinozista99• Ela encontra nos Cogitata sua formula~ao mais explfcita e mais elaborada, depois da indetermina,iio da abordagem do Curto tratado e da fuga para 0 idealismo do TRE. Nos Cogitata, a utopia e redefinida na for­ma do paradoxa ontologico do ser e da modalidade, da univocidade e da equivocidade. Eo mesmo tipo de tensao que encontraremos em toda a pri­meira redac;:ao da Etica. Naturalmente, a colocac;ao aqui e muito mais gros­seira, mas e extremamente importante captar a genese desse paradoxo on­tologico e seu afinamento posterior. 0 momento essencial dessa genese parece ser a critica nominalista, empirista e as vezes cetica do universal, ou seja, de qualquer modo de conhecimento que queira recuperar urn vinculo gno­seologico com a realidade. A critica do universal constitui entaD 0 momen­to central do movimento genetico da analise spinozista. Mas e preciso no­tar tam bern a recuperac;ao de Descartes num sentido anticartesiano. Pois 0

mecanismo da duvida nao e utilizado na perspectiva de uma funda<;ao idea­lista do conhecimento, mas na de uma passagem a apreensao do ser. 0 metodo do racionalismo se encontra submetido ao do materialismo. Vive em particular no horizonte da total ida de. E 0 conceito real de ""potentia" constitui a unica mediac;ao. Mediac;ao interior ao ser, que nao e portanto sequer uma mediac;ao, mas a forma da tensao, a vida do ser. Claro que a analise da "'potentia" nao esta desenvolvida aqui, esta somente fundada, e apenas se entreve sua for<;a de expansao conceitual. 0 paradoxo metaffsi­co esta so colocado, entao, nao esta resolvido. Era preciso avan<;ar. Era preciso lan<;ar esse paradoxo sobre a realidade, captar sua face e sua forc;a constitutiva. E, nesse caminho, medir sua crise - e com ela a possibilidade de uma filosofia do porvirl00.

NOTAS

1 Na introdw;ao a sua tradw;ao italiana do Curto tratado (Trattato politico, Flo­renc;a, 1953), p. IX-XXIII, G. SEMERARI resumiu os termos da polemica entre Freu­denthal e L. Robinson a respeito do texto. Semerari aceita as condusoes de C. Gebhardt, intermediarias entre a liquidac;ao do texto por Freudenthal e sua aceitac;ao por Robinson. Nunca se deve esquecer que essa polemica, um pouco como a interpretac;ao de Spinoza de modo geral, atravessa a historia da filosofia contemporanea em seu conjunro (d. Fischer, erc.): de qualquer maneira, a tentativa de ligar 0 Curto tratado a interpretac;ao da Etica por urn fio conrinuo e direto e uma rentativa particularmente insensata. F. ALQUIE, Nature et verite ... , cit., pp. 17-18, toma particularmente posic;ao contra tal

76 Antonio Negri

projeto, pondo em guarda contra a ilusao que consiste em ir procurar (e pensar enCOll· trar) no CT a intuic;ao spinozisra em estado pur~. Tese inteiramente justa, mas que na~ deve ser confundida com a da presenc;a nesse texto de uma intuic;ao filosOfico·politica absolutamente determinada que, sem esrar na base do pensamento de Spinoza em sua especificidade, constitui no enramo 0 ponto de partida de seus problemas.ldeia impen­savel para Alquie, que rejeita (p. 19) qualquer estudo genealogico do pensamento de Spinoza. Mas, atraves dessa negac;:ao, nao se chega endio a assumir exatamente aquilo que inicialmente se havia negado: a existencia no CT de uma intuic;ao em estado puro? D.essa estranha sintese enrre naturalismo e carresianismo que constituiria a car"acteristi­ca e 0 limite essenciais de todo 0 pensamento de Spinoza? Efetivamente, nossa aborda­gem dessa obra de Spinoza sera diferenre: procuraremos sua especificidade em sua di­mensao de texto coletivo, de texto do "circulo" spinozista, para mostrar como Spinoza chega a desenvolver sua filosofia partindo desse texto e da problemitica que dele se segue. Sobre 0 pensamento metafisico do Curto tratado, d. J.·M. POUSSEUR, "La premiere metaphysique spinoziste de la connaissance", in Cahiers Spinoza, II, p. 287-314. Boas observac;oes tambem de MELI, op. cit., a esse respeito.

2 J. FREUDENTHAL, "Veher den Kurzen Traktat", in Zeitschrift fur Philoso­phie und philosophische Kritik, 1896, pp. 238-282.

3 G., I, pp. 15·50; P., pp. 15·42. 4 Segundo GEBHARDT, 0 CT e feito de tres camadas essenciais: 1. Restos do

primeiro ditado de Spinoza: cap. VII da primeira parte e cap. I e XVII (salvo 0 inicio) da segunda parte; 2. As Verhandelinge na traduc;ao direta do texto remanejado em la­tim pela mao de Spinoza: cap. I-VI e X da primeira parte; Preficio e cap. II-XXVI da segunda parte; 3. As notas, os diilogos e os apendices. Cf. SEMERARI, op. cit. Segun· do M. GUEROULT (op. cit., p. 472), a obra compreende dos textos mais amigos aos mais recenres: 1. Os Diilogos (que, segundo Gebhardt, pressupoem ao contrario 0 CT no senrido proprio do termo); 2. 0 CT propriamente dito; 3. As adic;oes marginais; 4. o Apendice geometrico. Por roeu lado, e limitando-me a uma simples analise de con­teudo, a tese de Gueroult me parece aceitivel.

5 G., I, pp. 28·34; P., pp. 26·31. 6 G., 1, pp. 44-47; P., pp. 37-40. Sobre esse ponto, a cronologia de Gebhardt nao

esra em contradic;ao com a de Gueroult. 7 G., I, pp. 15·27; P., pp. 15·26. 8 G., I, pp. 35·43; P., pp. 31·37. 9 G., I, pp. 47·50; P., pp. 40·42. 10 G., I, p. 15; P., pp. 15·16. 11 E. CASSIRER, op. cit., pp. 73-77; J.M. POUSSEUR, no artigo cirado, insistiu

com razao na especificidade do pomo de vista do CT. 0 conhecimento e aqui puramente passivo: a tese de uma passividade absoluta do conhecimento esta contida e amplamente desenvolvida na segunda parte do CT. E evidente que tal concepc;ao esti em absoluta contradic;ao com a metafisica do Spinoza da maturidade. A explicac;ao genetica proposta por Pousseur para explicar 0 desenvolvimento do pensamento spinozista e muito me­nos con vincente. Apoiando-se no essencial sobre 0 esquema de Cassirer, de parece, com 'efeito, pensar em uma contradic;ao nao resolvida que se desenvolvesse ao longo de toda a evoluc;ao do pensamento de Spinoza, contradic;ao entre a intuic;ao panteista do ser como totalidade, e a concepc;ao material e espacial da modalidade concreta. Contradic;ao real­mente, mas que nao fica sem soluc;ao: 0 que consrirui a especificidade do desenvolvi­mento spinozista e exatameme 0 fato de colocar a permanencia comemponinea desses dois aspectos, a soluc;ao de superficie e dinamica, e constitutiva do dualismo.

A Anomalia Selvagem 77

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12 M. GUEROULT, op. cit., I, pp. 9·16. A observalfao de Gueroult, naturalmente, e preciosa. Mas 0 pOnto de vista global, estrutural de sua analise talvez nao Ihe permita captar plenamente a determinidade da apreensao do ser. A esse respeito, podem·se usar com proveiro as observalfoes, evocadas acima, de Pousseur, na~ contra, como Pousseur freqiientemente procura fazer, mas dentro da interpretalfao de Gueroult, para proeurar justamente qualificar essa inflexao. E nao se podetia negar aqui a presenlfa de urn aspec· to mistico. Ou talvez "estetico" - caracteristica essencial da filosofia burguesa em seu periodo de genese, segundo ADORNO (refiro·me antes de mais nada a seu Kierkegaard). Sobre esse ponto, ver tambem as anilises de M. HORKHEIMER em Die Anfiinge. Quais sao as conseqiiencias de uma posilfao estetica numa operalfao de definilfao do ser? As que se determinam na tentativa de definir a atividade metafisica como atividade de desvela· mento. A estetica opera no seio da genese do pensamento burgues sob a forma acabada de entidade 16gica a ser desvelada, de realidade a ser descoberta. Quando falamos da inten~ sidade mitica e mistica da intuilfao do circulo spinozista, referimo~nos, naturalmente, a essa figura geneal6gica da ideologia burguesa. Devemos fazer implicitamente 0 esforlfo de acompanhar a hist6ria dessa ideologia e analisar seus multiplos dsenvolvimentos, nao apenas para compreender essa fase do pensamento de Spinoza, mas ainda e principal· mente para compreender como ele depois romped. com esse tipe de posijfoes. Urn unico exemplo: pensemos no conteudo estetico de urn conceito como 0 de "vontade geral", autentica sintese do particular e do universal segundo os preceitos da estetica burguesa. Pois bern, essa ideologia perniciosa esta tao presente no desenvoivimento heroico dessa primeira ideologia spinozista quanta esra ausente do pensamento de Spinoza chegado a maturidade (ou antes, presente nele sob uma forma negativa, como objeto ao qual aplicar a critical. 0 pensamento da constituilfao material do ser rompe com a continuidade mi~ tico~estetica da genese da ideologia burguesa, desviando·se assim de todo projeto de "leitura critica", como critica do ser atraves de urn desvelamento negativo (por onde se entra jus· tamente na filosofia da crise da burguesia: ver novamente 0 Kierkegaard de ADORNO).

13 Torno a remeter as obras citadas de Sigwart e Avenarius. 14 G., I., p. 18; P., pp. 17·19. 15 G. DELEUZE, op. cit., p. 22, com uma referencia a Merleau-Ponty. 16 L. Kolakowski, op. cit., pp. 227~236; paginas extremamente importantes para

quem procurar ter uma visao de conjunto das alternativas vividas pelo pensamento rep ligioso do seculo XVII holandes. Desnecessario acrescentar que as observalfoes de Ko~ lakowski sao tambem muito importantes do ponto de vista da sociologia da religiao.

17 CT (G., I, p. 18, nota; P., p. 18, nota). 18 CT (G., I, pp. 46~47; P., pp. 39AO). A respeito dessa introdulfao da teoria dos

atributos, DI VONA, op. cit., p. 562, faz a seguinte observalfao: "Esta doutrina, que pode ser considerada como a divida mais importante de Spinoza para com a tradilfao neoplatonica, chega ate ele atraves de multiplos intermediarios".

19 Cf. L. ROBINSON, Kommentar zu Spinoza's Ethik, Leipzig, 1928, p. 63 sp., 150 sq.; M. GUEROULT, op. cit., vol. I, pp. 426-427.

20 CT (G., I, pp. 47-48; P., pp. 40-41). 21 GUEROULT, op. cit., vol. I, p. 345 sp., 564 sq., analisa a fundo a historia das

expressoes "natura naturans" e "natura naturata", em referencia sobretudo a escolistica da epoca de Spinoza.

22 CT (G., I, p. 61; P., p. 51). 23 Para uma analise mais aprofundada desta tendencia propria ao pensamento

de Spinoza, estudada bern alem do ambito do CT, petmito~me remeter a G. DELEUZE, op. cit., cap. II·IV.

78 Antonio Negri

24 A. KOYRE, no comentario de sua edi'Jao billngiie (frances~latim) do Tractatus de Intellectus Emendatione, Paris, 1964, p. 99, insiste particularmente nessa questao, sobre a possibilidade de uma influencia dos rosa~cruzes ("Este programa de alfao e es~ pantosamente parecido com os programas dos grupos rosa-crucianos"). Cf., ibid., as referencias a literatura neo~estoica.

25 CT (G., I, p. 54 sp.; P., p. 45 sq). 26 CT (G., I, pp. 40·43; P., pp. 35·37) (cap. VI: "La predestination divine"). So~

bre esta questao, d. M. GUEROULT, op. cit., pp. 576~577. 27 CT (G., I, pp. 114-121); P., pp. 90-95. 28 M. GUEROULT, op. cit., pp. 484-485. 29 G. DELEUZE, op. cit., p. 40 e, de maneira mais geral, 0 conjunro dos caps. II·IV. 30 CT, cap. V-XIV (G., I, pp. 114-121; P., pp. 52-64). 31 CT (G., I, p. 112; P., p. 89). Mas, sobre esses temas, d. tambem, na segunda

parte, os caps. VI, XIX e XXVI. 32 CT (G., I, pp. 112·113; P., p. 89). Falfo alusao ao famoso trecho: "Resta~me

ainda, para terminar, dizer aos amigos para quem escrevo ... " 33 Aplicar esta observa'Jao particularmente ao curioso capitulo XXV da segunda

parte do CT ("Dos demonios" (G., I, P. pp. 112-113; P., p. 85). 34 Ver as Cartas I, II, III e IV, a que voltarei a me referir em breve. 35 De ora em diante chamado TRE. 36 E. CASSIRER, op. cit., p. 87. Mais prudente, F. ALQUIE, Nature et verite ... ,

cit., pp. 23~27, fala simplesmente de urn "grande progresso". 37 Ibid., p. 11. 38 G. DELEUZE, op. cit., p. 76 sq. 39 Como nos mostra a Correspondencia, SPINOZA trabalha no TRE pelo me~

nos ate 1666. Voltaremos as razoes de sua nao~publica'Jao. 40 P. DI VONA, op. cit., p. 564. 41 Carta II a Oldemburg (G., IV, p. 8; P., p. 1062). 42 E principalmenre nas Cartas II e IV, a respeito mais particularmente da tematica

da vontade (1iberdade~determinismo) e da definilfao da axiomatica que ele procura aprofundar, que a polemica de Spinoza contra 0 pensamento cartesiano parece avan· Ifar muito. Cf. tanto F. ALQUIE, Servitude et Liberte ... , cit., p. 10 sq. quanto J. BERN~ HARDT, art. cit., p. 59. Alquie ve no infcio do TRE acentos cartesianos do estilo "mo~ ral provisoria". Ja vimos que se trata de uma ronalidade comum aos autores daquele seculo, sern ser especificamente cartesiana.

43 Encontram~se informa'Joes sobre Oldenburg e a Royal Soeiety na Corresponden. cia. Cf. alem disso as relalfoes entre Spinoza e Boyle e a discussao que se abre entre eles sobre a fisica dos liquidos. Sobre as rela<;6es Spinoza~Oldenburg e sobre a historia da Royal Society, d. C. SIGNORILE, Politica e ragione, cit., p. 7 e 226 (com uma bibliografia).

44 E. CASSIRER, op. cit., pp. 96~102; A. KOYRE, nas notas de sua edi'Jao, ja cita~ da, do TRE, e em particular nas dos paragtafos 3, 16,25,31,32,45,81,89 e 93 arrolou refetencias a Bacon: assim como refetencias a Hobbes nas dos paragrafos 72, 76 e 85.

45 Remeto aqui as leituras mais abertas e mais recentes do pensamento de Bacon, que fazem dele urn grande autor do Renascimento: ver particularmente os trabalhos de Paolo Rossi. Mas Karl Marx tam bern poe muito bern em foeo, em varias oportunida· des, 0 frescot revolucionario do "sentir" em Bacon, de sua exalta'Jao da sensibilidade.

46 Sobre a conceplfao da natureza em Hobbes, d. 0 sempre fundamental Thomas Hobbes' mechanical conception of nature, Copenhague~Londres 1928 de F. BRANDT. Sobre as rela'Joes entre 0 pensamento hobbesiano e 0 pensamento continental, permi·

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~ to-me remeter ao que esta dito em meu Descartes politico, assirn como it bibliografia comentada que e1e contern. Ver aiem disso a contribui~ao extremamente importante de J. BERNHARDT., art. cit. E preciso particularmente retomar aqui duas series de anali­ses feitas nesse arrigo. A primeira (pp. 59-65) (rata da importancia decisiva da adesao de Spinoza ao metoda geometrico de Hobbes. Bernhardt faz muitas referencias a Hobbes, cuja Examinatio considera como texto fundamental. Ainda a esse respeito, ele tam bern evoca, assim como Gueroult alias, a (eoria geometrica de Savile. Uma segunda serie de analises procura provar que hi continuidade entre 0 procedimento da geometria gene­rica e 0 especifico da metafisica spinozista da substancia. A abordagem de Bernhardt nos dois casos e exrremamente convincente.

47 TRE, paragrafos 1-25 (G., II, pp. 5-12; P., pp. 102-110). 48 Sobre este ponto ver as Notas de A.KOYRE, op. cit., aos paragrafos 1 e 13 . • , TRE (G., II, pp. 8-9; P., pp. 106-107). 50 TRE (G., II, p. 9; P., p. 107).Ver a Nota de A.KOYRE, op.cit., ao par. 17. 51 TRE, par. 1-10 (G., II, pp. 5-7; P., pp. 102-105). 52 TRE (G., II, p. 8; P., pp. 105-106). 53 TRE, par. 18-19 (G., II, pp. 9-10; P., pp. 107-108). 5. TRE, par. 20-25 (G., II, pp. 10-12; P., pp. 108-110). 55 Entre as obras recentes, d. M. GUEROULT, op. cit., t. II, pp. 593-608 (analise

alias notavel). Para uma lista de referencias, d. A. KOYRE, op. cit., Nota aos par. 18·19. 56 TRE (G., II, p. 12; P., p. 110). 57 TRE (G., III, p. 13; P., p. 111). 58 Ver as paginas que dediquei a metafora em Descartes em meu Descartes, as·

sim como a bibliografia contida naquele volume. 59 TRE (G., II, pp. 13-14; P., pp. 111-112). 60 TRE, par. 33-36 (G., II, pp. 14-15; P., pp. 112-113). 61 GUEROULT exprime sua posi'Sao quando confronta as diversas formas da

teoria do conhecimento em Spinoza. Ver a n. 55 deste capitulo. E naturalmente em DELEUZE, op. cit., cap. VIII, que se pode ver longamente exposta essa tese do metodo como presen'Sa, em superficie, no progresso da ideia da adequa'Sao.

62 TRE, par. 37-42 (G., II, pp. 15-17; P., pp.I13-115). 63 TRE, par. 43-46 (G., II, pp.17·18; P., pp. 115-116). 64 TRE, par. 47-48 (G., II, p. 18; P., pp. 116-117). 65 Cf. P. MACHEREY, op. cit., p. 43094. 66 TRE (G., II, p. 18; P., p. 117). 67 TRE, par. 49 (G., II, pp. 18-19; P., p. 117). 68 TRE, par. 50 sg. (G., II, p. 19 sg; P., p. 117 sg.). 69 G. DELEUZE, op. cit., passim. 70 TRE (G., II, p. 26; P., p. 126). 71 TRE, par. 81·87 (G., II, pp. 30-33; P., pp. 131·133). 72 TRE (G., II, p. 35; P., p. 136). 73 TRE, par. 98 (G., II, p. 36; P., p. 137). 7. TRE (G., II, p. 36; P., p. 137). 75 TRE, par. 102-108 (G., II, pp. 37·39; P., pp. 138-141). 76 TRE (G., II, p. 38; P., p. 139). 77 Cf. particularmente as Cartas VI, VII, XI, XIII e XIV. 78 Correspondencia (G., IV, p. 188; P., p. 1195). 79 Usarei nas notas as abrevia'Soes Prine. e Cogit. 0 titulo completo da obra e:

Renati Des Cartesl Principia Philosophiael more geometrico demonstratal perl Benedietus

80 Antonio Negri

de Spinozal Amstelodamensen! Aeesserunt eiusdeml Cogitata Metaphysical In quibus difficiliores quae tam in parte Metaphy-I sices generali quam specia/i occurrunt questionesl

breviter explicatur. 80 Encontram-se informa'Soes sobre a genese e a publica'Sao dos Prine. nas Car-

tas IX, XIII e XV. 81 Prine., (G., I, pp. 131-132; P., p. 152). 82 Ver particularmente TRE, Notas: G., II, p. 14, 15 e 29; P.,p.ll1, 112, 113e 129. 83 A partir de 1663, a Correspondencia atesta 0 trabalho de elabora'Sao da Etica. 84 Prine. (G., I, pp. 127-133; P., pp. 147-154). 85 Prine. (G., 0, p. 132; P., pp. 152-153). 86 Sobre 0 pensamento de Meyer, suas obras e suas rela'Soes com a cultura ho­

landesa, d. L. KOLAKOWSKI, op. cit., pp. 749-750, assim como a bibliografia sobre a questao, p. 792.

87 Prine. (G., I, p. 127; P., p. 147). 88 Prine., Primeira parte, Proposi'Soes 15-16 (G., I, pp. 172-177; P., pp. 185-190).

Mas sobre esta questao, ver M. GUEROULT, op. cit., t. II, pp. 619-623. 89 Prine. (G.,I,p.181 sg.;P.,p.193 sg.).Cf.M. GUEROULT,op. cit., t. I,p. 529556.

Mas agora temos tam bern 0 excelente artigo de A. LECRIV AIN, "Spinoza et la physique cartesienne. La partie II des Principia", in Cabiers Spinoza, vol. I, pp. 235-265; vol. II, pp. 93-206. Nao se deve alem disso esquecer as sugestoes, freqiientemente preciosas, de G. GENTILE em suas Notas a tradu'Sao italiana da Etica, inclusive sobre as questoes que tocam mais particularmente a fisica. Do ponto de vista mais geral do clima cultural e cientifico no qual se desenvolve a critica spinozista da fisica de Descartes, deve-se ter em mente essencialmente os trabalhos de Huygens que, naqueles anos e na epoca imediata­mente posterior, e numa rede de circula~ao de conhecimento de que 0 proprio Spinoza faz parte, elabora os fundamentos de sua fisica. Sobre tudo isso, alem das 6timas obser~ va,6es de U,CRIVAIN (art. cit., I, pp. 237-241,244-246), d. tambemJ. BERNHARDT, art. cit., p. 82; do mesmo modo, GUEROULT, op. cit., t. II, pp. 557-558.

90 Cogit., Primeira parte (G., I, p. 233 sq; P., p. 244 sq.). 91 Como ja vimos, a literatura spinozista insiste muito nas determina'Soes misticas

da primeira fase do pensamento filosOfico de Spinoza. Ja vimos tambem, ao falarmos do CT, que tal insistencia e perfeitamente justificada, que trata-se a1 de urn dos aspectos da utopia burguesa da apropria'Sao e da reorganiza'Sao do mundo. Isto posto, os elementos mfsticos com razao observados na primeirissima fase da filosofia de Spinoza nao pode­riam ser considerados como urn dado incontornavel de seu pensamento. Estamos aqui diante de urn preconceito sustentado per uma ignorancia da situa'Sao da religiao naque­la epoca: 0 componente religioso, realmente, esta tao maci~amente presente na cultura que nao se pode isola~lo como tal, por muito justificada que uma opera'Sao do genero possa parecer. Em segundo lugar, se aparecem aqui posi'Soes misticas em Spinoza, elas estao englobadas numa dialetica espedfica aquela epoca, a do barroco, que consiste em reverter positivamente 0 processo de essencializa'Sao da duvida, do ceticismo. Esta e antes a oportunidade de reconhecer 0 carater socratico da argumema'Sao spinozista - cujo objeto e a nega'Sao do universal. Mas breve voltaremos a tudo isto.

92 Cogit., Primeira parte, cap. I e III (G., I, pp. 237-244; P., pp. 250-258). Trata­se al de urn problema central. Retomemos aqui algumas indica'Soes dadas por LEeRl­VAIN (art. cit.). Qual e 0 estatuto cientffico dessa obra de Spinoza, se pergunta 0 au· tor? Ele mostra entao que 0 problema e dar uma base ontologica e totalizame a con· cep'Sao fisica da tradi~ao matematica galileu-cartesiana. 0 problema fundamental de Spinoza e entao 0 de descobrir os prindpios da nova fisica ate captar as essencias sin-

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gulares das coisas. Isto em primeiro lugar. 0 problema e, em segundo lugar, identificar de uma vez por todas- a ideia de infinito e a de produtividade positiva. 0 paradoxo de Zenao sobre 0 infinito deve se tornar sem objeto (I, 258). 0 problema fundamental e 0

da indivisibilidade efetiva de urn movimento infinitamente produtivo, que compreenda por isso em si mesmo a razao da lei. Do principio de inercia ao principio do conatu5 como individualiza~ao do principio, tal e 0 movimento seguido pela teoria. "A expli­cita~ao das essencias singulares das coisas deve permanecer sendo 0 objetivo fundamental, e nenhum processo de abstra~ao, por eficaz que seja para aceder a este ou aquele aspec­to particular do todo da natureza, nao poderia oculta-Io OU nos desviar dele. 0 me­canicismo cartesiano apareceu sem dtivida a Spinoza como urn momento necess,hio do conhecimento da natureza, mas, ao ficar cada vez mais complexo, ele s6 podia se inte­grar ao proc:esso de conhecimento dessa natureza inteira aceitando os limires que lhe eram impostos pela particularidade do dominio objetivo ao qual correspondia" (I, p. 264). 0 principio de individualidade fica assim introduzido na fisica em termos de cinetica e dinamica, com uma determina~ao oposta a que lhe era concedida pela concep(fao car­tesiana - coesao das partes numa situa'fao de repouso reciproco (II, p. 200). "Mas, mais essencialmente, a partir de 1661-1663, aparece que a reflexao spinozista sobre a fisica estcl dominada pelo projeto de conceber uma dinamica cujo estatuto, relativamente complexo, fosse comandado por uma dupla determina\=ao. Por urn lado ... a recusa de uma mednica restrita ... Por outro lado ... a elabora'fao de uma verdadeira dinamica ... tornando mais complexo e dialetizando 0 mecanicismo de Descartes ... Em suma, tudo isso implicava a dedu(fao rigorosa e precisa do modo respectivo de articula(fao do atri­buto Extensao, dos modos infinitos imediatos (movimento e repouso) e do modo infi­nito media to. Era, ao que parece, unicamente com essa condi'fao que 0 enunciado do principio de inercia e a admissao do mecanicismo podiam se conciliar com 0 dinamis­mo interno expressivo da teoria do conatus (II, pp. 202-203).

93 Cogit., Primeira parte,cap. IV, V e VI (0.,1, pp. 244-249; P., pp. 258-264). 94 Cogit., Primeira parte (G., I, p. 248; P., p. 263). 95 Cogit., Segunda parte, cap. VI (G., I. pp. 259-260; P., pp. 276-2771. Cf. as

artigos de H. JONAS in Journal of the History of Philosophy, III, 1965, e de DUCHES­NEU in Cahiers Spinoza, II.

96 P. DI VONA, op. cit., p. 569-570. Ver, naturalmente, os trabalhos de Freu­denthal e de Dunin-Borkowski sobre as influencias do pensamento escolastico.

97 Cf. P. DI VONA, "La scolastica dell'eta post-tridentina e nel Seicento", in Storia della filosofia, organiza~ao de M. DAL PRA, vol. cit. VII, pp. 755-777. Ver tambem os trabalhos de Carlo Giacon.

98 Cogit., Segunda parte (G., I, p. 249 sq.; P., p. 264 sq). 99 A. LECRIVAIN, art. cit., insistiu fortemente nas motiva~6es politicas de Spi­

noza em sua maneira de encarar a fisica: "E preciso reconhecer que 0 projeto spinozista nao e, fundamentalmente, de natureza epistemol6gica, mas de ordem etico-politica" (I, p. 247). Alem disso, acrescenta Ucrivain (II, pp. 204-206), essa disposi'fao critica na fisica spinozista torna-se fundamental para a elabora~ao da teoria politica da maturi­dade. A politica spinozista, com efeito, procuraria determinar uma serie de elementos de tipo quantitativo (extensao, ntimero, dura~ao, etc.), juntamente com a elabora\=ao de uma concep~ao organica, talvez organicista, da polftica - intui'fao de uma energetica ou de uma dinamica social. A democracia apareceria em Spinoza como urn estado de equilibrio perfeito, e portanto como a realiza~ao da fisica spinozista. E bern necessario dizer que esta tese de Lecrivain e no minimo discutivel, extremamente discutivel: nao que a abordagem fisica nao tenha papel nenhum na defini~ao politica; mas ela e estra-

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nha ao mito da ordem e do equilibrio, como veremos longamente na continua'fao deste trabalho. As indica~6es de Lecrivain permitem antes caracterizar 0 estado do mito no circulo spinozista durante os anos que nos interessam aqui: a este titulo, elas estao per­feitamente certas, e fazem-nos captar a continuidade entre modelo epistemologico e mo­delo politico (ou antes etico-pratico).

100]. ELSTER, Leibniz et la formation de l'esprit capitaliste, cit., evoca muito episodicamente a figura de Spinoza, negando ate a possibilidade de pensar sua filosofia em temos de ideologia capitalista (p. 7). Tal afirma~ao s6 e possivel por9ue Elster se atem a uma concep~ao completamente objetivista do desenvolvimento do espirito ca­pitalista. Segundo ele, seria Leibniz quem, melhor do que ninguem, teria prefigurado 0

espirito capitalista (reduzido por Elster, para 0 essencial, ao espirito de investimento) atraves do dinamismo pluralista de seu sistema e seu principio de multiplica~ao. 0 que certamente e verdade. Mas que nao e decisivo, se posso me permitir uma obje~ao: a dinamica entre pluralismo de mercado e multiplicador capitalista (do investimento) na verdade nao pode ser descrita em termos simplesmente objetivos: essa obietividade e percorrida por uma serie de antagonismos, por uma possibilidade permanente de crise, e a filosofia de Spinoza aqui e bern mais capaz que a metaffsica leibniziana de abra'far uma fenomenologia de conjunto do capitalismo.

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Capitulo III PRIMEIRA FUNDA<;:Ao

1. 0 INFINITO COMO PRINCjPIO

A existencia nao e urn problema. A imediatez do ser se revela em ter­mos nao problematicos ao entendimento puro. A existencia enquanto tal nao tern de ser definida. A existencia e a espontaneidade do ser. A filosofia afirma, e urn sistema de afirmacroes, ja. que ela exprime diretamente, ime­diatamente, a ossatura da existencia. Mas a existencia e sempre qualifica­da, rada existencia e essencial: ou seja, rada existencia existe enquanto es­sencia. A rela~ao essencia-existencia e a forma ontol6gica primordial: rela­~ao e tensao entre nomes impredicaveis de Dutra maneira, que tomam coo­sistencia no nexo que os une. A coisa, a substancia constituem 0 fundamento. o ser se da todo inteiro: vivemos nesse elemento, tudo e dessa textura. Mas nao se pode pensar 0 todo de maneira indeterminada quando cada momento da existencia e inteiramente determinado: determinar a existencia como totalidade e pensar sua infinitude - infinitude determinada, positiva, to­talidade justamente. A urn nivel ontologico superior, mas concordando com as premissas, a existencia e a espontaneidade do ser considerado como to­talidade: os vfnculos existenciais se inscrevem na totalidade, na serie infini­ta das rela~6es que ela determina; na coisa ou na substancia absoluta. Esse englobamento da existencia no infinito nao e para ser pensado como urn processo, mas como a propria produ~ao do infinito, enquanto essencia po­sitiva. 0 real e sempre ordenado segundo a determina~ao infinita: mas, reciprocamente, essa tendencia a infinitude tern de se reverter a si mesma e se exprimir como determinidade plural das coisas produzidas, sem que por isso 0 infinito seja concebido como divisivel. A totalidade onto16gica e 0

termo da expressao espontanea do real: 0 real e 0 produto da espontanei­dade da totalidade infinita. A espontaneidade da existencia corresponde a espontaneidade da produ~ao. A correspondencia espontanea e perfeita entre a existencia singular e a existencia total, na tensao da expressao como nos vinculos da produ~ao, e 0 principio e 0 termo da filosofia.

A filosofia fala porque 0 ser nao e mudo. 56 0 mutismo do ser pode acarretar 0 silencio da filosofia. "Entendo por causa de si aquilo cuja es­sencia envolve a existencia: ou seja, aquilo cuja natureza nao po de ser concebida senao como existente." "Entendo por substancia aquilo que e em si e por si concebido: ou seja, aquilo cujo conceito nao carece do con­ceito de alguma outra coisa do qual deva ser formado." "Entendo por Deus

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urn ser absolutamente infinito, ou seja, uma substancia constituida de uma infinidade de atributos cada urn dos quais exprime uma essencia eterna e infinita." "Entendo por eternidade a propria existencia, enquanto ela e concebida como conseqiiencia necessaria da mera defini~ao de uma coisa eterna." 1 0 ser diz suas correspondencias necessarias. Ora, essa red on de­za do ser e inteiri~a, tanto para as coisas quanto para Deus, e a eternidade a exprime da maneira mais adequada. Diferentemente de toda a filosofia da epoca, a filosofia come~a pela defini~ao: defini~ao real - 0 -6er fala, a filosofia desdobra uma conexao real; defini~ao genetica - 0 ser e produ­tivo, a filosofia segue 0 fio da produtividade do ser; defini<rao sintetica -o ser tern conex6es logicas que a filosofia traz a luz e desenrola atraves de uma sucessao de slnteses2. A lista das defini~6es expoe uma serie de teses ontologicas. A axiomatica e urn formulario para a argumenta~ao ontol6-gica: "I. Tudo aquilo que e, ou e em si, ou e em outra coisa; II. 0 que nao pode ser concebido por outra coisa deve ser concebido por si; III. De uma dada causa determinada, segue-se necessaria mente urn efeito, e, ao con­trario, se nao e dada nenhuma causa determinada, e impossivel que urn efeito se siga; IV. 0 conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e envolve-o; V. As coisas que nao tern nada em cornum entre si tam­bern nao podem ser conhecidas umas pelas outras; ou seja, 0 conceito de uma nao envolve 0 conceito da outra; VI. A ideia verdadeira deve convir com 0 seu ideato; VII. A essencia de tudo aquilo que se pode conceber como inexistente nao envolve a existencia"3. Se as defini~oes falam de coisas e de substancias, a axiomatica con tern uma teo ria formal das rela~oes onto­logicas que constituern - real, universal e sinteticarnente - as substan­cias. A axiomatica nao e urn regulamento funcional, urn horizonte de co­nexoes formais, mas pelo contrario urn motor, urn dinamismo substancial: ela escava uma realidade viva cujas regras de movimento extrai. "Ou a de­fini~ao explica a coisa tal qual ela e fora do entendimenro; neste caso, ela deve ser verdadeira e nao difere de uma proposi~ao ou de urn axiorna, a nao ser pelo fato de que a defini~ao se aplica as essencias das coisas ou de suas afec~6es, enquanto que 0 axioma se estende mais largamente ate corn­preender as verdades eternas. Ou, enta~, a defini~ao explica a coisa tal qual ela e ou pode ser concebida por n6s; neste caso, ela difere de uma propo­si~ao ou de urn axiorna porque exige somente ser concebida absolutamente e nao, como urn axioma, como uma verdade."4

o axioma enta~ se distingue da defini~ao por desdobra-la em uma rela~ao dinamica, ate a verdade. A redondeza do ser compreende entao a circularidade de urn dinamismo eterno, real e logicos.

A Etica come~a assim: in media res. Seu ritmo, abstratamente fun­dador, e entao apenas aparente. A Etica nao e em caso algum uma filoso­fia do come~o. Mas no pensamento contemporaneo, a partir da irrita~ao

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• sentida por Hegel diante das defini,oes inaugurais da Etica, 6 nega,iio de uma filosofia do come~o quer dizer filosofia da media~ao, em suas diver­sas variantes de filosofia dialetica ou de filosofia da crise. Em Outros ter­mos, coloca-se a articula~ao antes da totalidade, como fundamento da totalidade: a espontaneidade e impensavel. Em Spinoza, nao ha come~o, isto e, nao ha residuo do pensamento mitico proprio a toda filosofia que se pretenda cosmogonia, mas tambem nao ha 0 menor indicio de media­,iio: e uma filosofia da afirma,iio pura que se reproduz com aumentada intensidade a niveis sempre mais substanciais do ser. Nessa fase de seu desenvolvimento, e uma filosofia totalizante da espontaneidade. Nessa fase e nessas camadas de forma~ao do texto - camadas quase impossiveis de isolar de urn ponto de vista filologic07 e no entanto identificaveis no tra­balho de edifica,iio e de reda<;iio de uma primeira Philosophia, que Spi­noza redige entre 1661 e 1663 e retoca pelo menos ate 16658. Primeira reda~ao na qual se pode reconhecer a formula~ao acabada, a primeira sin­tese do panteismo do circulo e das primeiras obras de Spinoza. Mas esse panteismo ja esta afetado por urn deslocamento fundamental: todo resi­duo que pudesse ser empiricamente referido a situa~ao historica determi­nada do debate filosofico holandes e completamente erradicado, a inten­sidade da funda~ao ontologica cumpriu urn salto qualitativo essencial. Esse saito qualitativo se imp6e com 0 metodo geometrico, com sua primeira aplica~ao concreta e radical, com a possibilidade - metodicamente cons­truida - de organizar a totalidade em rela<;oes de propor<;ao, sem que­brar sua compacidade intrinseca. 0 metodo geometrico - causal e pro­dutivo - nao e nem unilateral, nem unilinear: corresponde a versatilida­de produzida pela univocidade do ser. Podemos entao atacar 0 ser por todos os lados, na redondeza das rela'roes reversiveis e cambiantes - assim fei­tas porque 0 ser e imutavel e eterno - que 0 constituem. A primeira ca­mada da Philosophia, se nao e isolavel do ponto de vista da critica filol6gica, nem por isso e menos identificavel de urn ponto de vista teo rico: corres­ponde a uma exposi<;ao sistematica da absoluta radicalidade ontologica e metodol6gica do panteismo. A primeira camada da Philosophia e uma apologia do ser, da substancia, do infinito e do absoluto, como centralidade produtiva, como rela~ao univoca, como espontaneidade. 0 sistema e a totalidade das rela<;oes, melhor, e a rela<;ao ontologica enquanto tal.

Mas pode-se acrescentar alguma coisa. A saber, que a Etica esta bern longe de se apresentar como urn texto unitario. Quero dizer com isso que a Etica nao e apenas, como todo texto filosofico complexo, uma obra em varios niveis, de estruturas e orienta'r6es mUltiplas9• A Etica nao tern ape­nas uma dimensao, por assim dizer, espacial: uma constru'rao com diver­sos pianos, atravessada por rela~6es internas diversas e diversamente orga­nizadas. A Etica tern tam bern uma dimensao, por assim dizer, temporal: e

86 Antonio Negri

obra de toda uma vida, mesmo se 0 trabalho de reda<;ao se reparte funda­mentalmente em dois periodos - de 1661 a 1665, de 1670 a 1675. Mas essa vida mio e apenas a vida do filosofo, e tambem a matura~ao do ser que se dispoe em uma sucessao de problemas e encontra seu ritmo de desenvol­vimento em sua propria for~a produtiva interna. 0 Bildungsroman - tal e a Etica na experiencia teorico-pnitica de Spinoza - se superpoe ao itine­.. rio da Darstellun teoricalO• A Etica de Spinoza e uma Biblia moderna cujas diversas camadas teoricas descrevem urn itinerario de libera~ao. ~ partir da existencia, incontornavel e absoluta, do sujeito a ser liberado, vivendo a historia de sua praxis em termos ontologicos, e assim tornando a propor a teoria a cada novo deslocamento da praxis. A prime ira camada da Phi­losophia e entao a afirma~ao da existencia, da existencia como essencia, como potencia e como totalidade. Os deslocamentos sucessivos, ou, para simpli­ficar, 0 deslocamento dos anos 70, acompanham 0 curso da hist6ria inter­na do ser que - ele mesmo - construiu seu novo problema.

No principio entao e a totalidade, e 0 infinito. Mas nao e urn prind­pio em sentido proprio: e apenas urn infcio. As oito primeiras Proposi~6es do livro I da Etica exp6em simplesmente a totalidade da substancia, e isto nao e urn prindpio fundador, mas 0 esquema do sistema ontol6gico em sua complexidade circular. Ao enviar a Oldenburg essas oito Proposi~6es, ou parte delas, Spinoza assim as comenta: "Come~arei entao por falar breve­mente de Deus; defino-o como urn Ser constituido por uma infinidade de atributos, cada urn dos quais, em seu genero, e infinito, isto e, sumamente perfeito. E preciso notar aqui que entendo por atributo tudo aquilo que se concebe por si e em si, de modo que 0 conceito de tal atributo nao envolva o conceito de outra coisa. Por exemplo, a extensao se concebe por si e em si, mas tal nao se da com 0 movimento, que se concebe em outra coisa e cujo conceito envolve a extensao. E que seja esta a verdadeira definic;ao de Deus, isto resulta do fato de que, por Deus, entendemos urn Ser sumamen­te perfeito e absolutamente infinito. Que tal Ser existe, e facit de demons­trar a partir dessa defini~ao, mas nao cabe faze-Io aqui. 0 que e preciso demonstrar aqui, para responder a vossa primeira pergunta, sao as propo­si'roes seguintes: 1) nao podem existir na natureza duas substancias que nao difiram pela totalidade de sua essencia; 2) que a substiincia nao pode ser produzida; mas e proprio de sua essencia existir; 3) que toda substancia deve ser infinita, ou seja, sumamente perfeita em seu genero. Demonstrado isto, ser-vos-a facil compreender meu intento, contanto que tenhais em vista a defini<;ao de Deus ... " 11 A totalidade se da entao sob a forma da completa circularidade de seus componentes substanciais: sao as mesmas figuras que reaparecem a cada nivel do ser, da coisa singular a divindade. Em conseqiien­cia, esse conjunto inaugural se refere a urn horizonte de essencias, conjun­to exclusivo, real e infinito. A totalidade se da sob a forma da exclusivida-

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de: e como seria possivel pensar uma totalidade na~ exclusiva? "Definicrao 'III: Entendo por substiincia aquilo que Ii em si e que Ii concebido por si: ou seja, aquilo cujo conceito nao carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado." "Proposicrao IV: Vma substancia nao pode ser produzida por outra substancia."12 A totalidade se da em seguida como existencia ime­diata: mas como pensar sua existencia de outra maneira que nao imediata? "Se entao alguem dissesse que tern de uma substancia uma ideia clara e distinta, isto e, verdadeira, e que entretanto duvida de que essa substancia exista, na verdade seria como se dissesse que tern urn ideia verdadeira e que suspeita que ela seja falsa. "13 A totalidade se da Como infinita: e como poderia ela ser finita? "Como ser finito e, na realidade, uma negacrao parcial, e ser infinito, a afirmacrao absoluta da existencia de uma natureza qualquer, segue­se entao s6 da Proposicrao VII, que toda substancia deve ser infinita."14 (Proposicrao VII: "Pertence a natureza de toda substancia existir. ")15 A to­talidade e substancia: mas se a substancia e a relacrao essencia-existencia, a totalidade e a afirmacrao da presencra infinita dessa essencia que e a causa de si mesma, dessa essencia produtiva ja colocada pela Definicrao I: "Vma substancia nao pode ser produzida por outra coisa; ela sera entao causa de si, isto e, sua essencia envolve necessariamente a existencia, ou seja, pertence a sua natureza existir"16. A existencia e portanto indiscutivel, a essencia e sua causa. 0 primeiro momento, que e justamente 0 da definicrao da exis­tencia como essencia, e da essencia como produtividade, como tensao em dire,ao i totalidade, esta colocado.

Mas nao conclufdo. E verdade que a potencia deste inicio parece as vezes querer encerrar e bloquear a pesquisa. E comum constatar em Spi­noza urn entusiasmo sobre pontos singulares da argumenta~ao, e ao me­nos todas as vezes em que esta atinge 0 absoluto - urn entusiasmo que chega a fazer pensar que esses pontos sejam, por assim dizer, experiencias conclufdas, ontologicamente acabadas e teoricamente satisfatorias. 0 es­panto da descoberta se faz encantamento. Mas encerramento e abertura sao inseparaveis. Desse ponto de vista, poder-se-ia dizer, 0 metodo e dia­letico; mas nao nos enganemos: e dialetico apenas porque se enraiza na versatilidade do ser, em sua expansividade, na natureza difusa e potente de seu conceito - e entao bern exatamente 0 contrario de urn metodo dialetico. Na medida mesma em que ha encerramento, ha abertura da compacidade do ser: no caso presente, aqui e agora, ela exige ser forcrada, quer uma regra de movimento, uma definicrao de sua propria articula~ao, ou ao menos da possibilidade dessa articulacrao. 0 encanto do metodo nao pode bloquear a pesquisa. A dimensao sublime do inicio nao deve em caso algum constituir obstaculo ao escavamento da totalidade. Por outro lado, as proprias defini~oes iniciais da espontaneidade do ser exprimiram uma forte tensao no momento em que nos apresentavam a substancia como to-

RR Antonio Negri

talidade: as alternativas "causa de si" - causada por outras coisas, liber­dade-coa<;ao, infinitude-limita<;ao, eternidade-dura<;ao nao coiocam, ao lado da afirma<;ao do polo positivo, a exclusao do polo negativo - nem mesmo de urn ponto de vista metodologico. Que toda afirmacrao seja uma nega<;ao nao e funcrao de urn principio de exclusao, mas de urn principio de potencia. Ou melhor, isso se deve a urn principio de exclusividade en­quanto figura de urn dinamismo ontologico de potencia. A relacrao positi­vidade-negatividade e uma tensao que organiza a potencia, no seiq da es­pontaneidade do ser. Proposi<;ao IX: "Quanto mais realidade ou ser cada coisa possui, tanto maior e 0 numero de atributos que Ihe pertencem,,17. E esta a especifica,ao determinada pela Proposi,ao VIII: "Toda substan­cia e necessariamente infinita" 18, em que 0 primeiro momento ontologico havia atingido 0 maximo de sua intensidade.

Voltaremos em breve a este tema da espontaneidade e da organiza­crao, po is ele levanta muitos problemas. Vejamos como e feito 0 livro I da Etica: depois de ter, nas oito primeiras Proposi~oes, levado 0 conceito de substancia ao apice de sua intensidade essencial, Spinoza introduz nas Pro­posi~oes IX e X 0 problema da articulacrao da substancia, para retomar em seguida, nas Proposi<;oes XI a XV, 0 tema da essencia, do infinito e da di­vindade. Neste primeiro feixe de Proposicroes, 0 surgimento do problema da articula~ao entao nao e incidente, mas e todavia parcial. Em outros ter­mos, ha aqui uma insistencia necessaria sobre a possibilidade da articula­~ao, como inerente a estrutura originaria da totalidade do ser. Mas 0 pro­blema da dinamica da totalidade, seu desenvolvimento, em uma palavra a problematica do atributo, e urn argumento tratado de maneira independente depois de urn breve desvio da argumenta~ao, e que de todo modo vern mais tarde. 0 problema da dinamica da totalidade implica, com efeito, que 0

conceito de potencia seja tornado nao apenas em seu valor intensivo, como princfpio essencial da autofundacrao do ser (sao as quinze primeiras Propo­sicroes), mas tambem em seu valor extensivo, como princfpio de articula­,ao dos graus de realidade: sao as Proposi,6es XVI e XXIX19. Entao aqui, no grupo das quinze primeiras Proposicroes, 0 tema do atributo, da articula­~ao, e colocado apenas em termos constitutivos da totalidade: a tematica do atributo como problema dos nomes da divindade e resolvida, sem arre­pendimento algum, na intensidade do ser. A articula~ao e suprimida, na realidade: permanece antes como possibilidade.

Essa possibilidade nos interessa ao mais alto grau. Pois ela serve para mostrar que a compacidade do ser total e sempre a versatilidade do ser. 0 infinito como princfpio e urn princfpio ativo. Sua exclusividade e a possi­bilidade de todas as formas do ser. Neste ponto e que entra em jogo a axiomatica, para acentuar essas variacroes da totalidade, essas figuras de sua produtividade. Essa cadeia do ser que nos levou a divindade exibe agora

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a centralidade do set como conjunto de radas as possibilidades. "Deus, ou seja, uma substancia constitufda por uma infinidade de atributos, cada urn dos quais exprime uma essencia eterna e infinita, existe necessariamente. ,,20

As demonstra~6es da existencia de Deus em Spinoza nao sao Dutra coisa senao uma aplica~ao cia axiomatica a 5ubstancia, senao a demonstrac;ao da infinita riqueza e plasmabilidade multilateral do ser, de sua riqueza tanto maior quanta maior e 0 grau de perfeic;ao. "Pais, se poder existir e poten w

cia, segue-se a isso que, quanta mais realidade pertence a natureza de uma coisa, mais esta tern por si mesma for<;as para existir; assim urn Ser abso­lutamente infiniro, ou seja, Deus, tern de si mesma uma potencia absolu­tamente infinita de existir e, consequentemente, existe absolutamente."21 Donde ainda 0 paradoxo da indivisibilidade: "Proposi,iio XIII: a substancia absolutamente infinita e indivisivel. Demonstrar;ao: Se fosse divisivel, as partes nas quais seria dividida ou reteriam a natureza de uma substancia absolutamente infinita, ou nao a reteriam. Na primeira hipotese haveria varias substancias de uma mesma natureza, 0 que e absurdo. Na segunda, uma substancia absolutamente infinita poderia cessar de ser, 0 que e igual­mente absurdo. CoroIario: Segue-se dai que nenhuma substancia e, em con­seqiiencia, nenhuma substancia corporea, enquanto e substancia, e divisi­veP'zz. 0 que mais uma vez nos traz de volta a definir;ao da circularidade do ser e a sua articular;ao produtiva, plena e total.

"Proposi,iio XIV: Afora Deus, niio pode ser dada nem concebida nenhuma substancia. Proposir;ao XV: Tudo 0 que e, e em Deus, e nada pode, sem Deus, ser nem ser concebido.,,23 Tal e a conclusao deste primeiro momento. Se quisessemos recortar nosso discurso em paragrafos, poderia­mos nomea-los assim: 0 infinito como principio e a versatilidade do ser; a compacidade do ser, ao mesmo tempo centralizada e aberta; espontanei­dade redundante e coerente de maneira multilateral, mas indivisivel. A existencia nao problematica se desdobrou como potencia. 0 ser e univo­C024. Mas aqui, nesta categoria da univocidade, todo 0 discurso e reaber­to. Ele niio e divisivel em paragrafos. Pois 0 que e problem.tico e justa­mente a pobreza teorica do proprio conceito de categoria. la e dificil com­preender a natureza de urn metodo que caka a realidade, mas conseguir compreender bern exatamente nos mesmos termos uma ideia e a realida­de, isto parece francamente impossivel para a tradir;ao metafisica. 0 pa­radoxo dessa categoria spinozista de ser univoco e que seu registro e constituido pela totalidade do real. Niio h. mais indicio de abstra,iio: a categoria do ser e a substancia; a substancia e unica, e 0 real. Ela nao esta nem aquem, nem alem do real: ela e 0 real todo inteiro. Tern 0 sabor e a tensao do mundo, possui divinamente a unidade e a pluridade deste. 0 ser absoluto e a superficie do mundo. "Tudo, digo eu, esta em Deus, e tudo 0

que aconteceu, acontece somente pelas leis da natureza infinita de Deus e

90 Antonio Negri

e conseqiiencia da necessidade de sua essencia ( ... ); nao se pode entao di­zer de modo algum que Deus seja passive! da a,iio de outro ser ou que a substancia extensa e indigna da natureza divina, ainda que seja suposta como divisivel, contanto que se conceda que e eterna e infinita. Mas ja dissemos 0 bastante sobre este ponto, por enquanto. ,,25

2. A ORGANIZAc;:Ao DO INFINITO

As provas spinozistas da existencia de Deus, expostas na Etica26 , sao extremamente importantes, nao somente porque, como vimos, elas poem em primeiro plano a versatilidade do ser, e portanto a relativa equivalen­cia, para a definir;ao da existencia de Deus, dos argumentos a priori e a posteriori, mas tambem porque exp6em 0 ponto de vista ontologico -verdadeira base de toda demonstrar;ao - a uma ten sao maxima. Na or­dem do ser univoco, se tudo prova Deus, tudo e Deus; mas a consequen­cia disso e ou negar-se toda ideia de articular;ao da ordem ontologica, ou entao, se admitirmos uma diferenciar;ao da ordem ontologica, enfraque­cer a univocidade dessa ordem e renunciar ao ponto de vista ontol6gico inicial. Nesta primeira camada da Etica, a articular;ao do horizonte onto­logico na~ e negada, a espontaneid;1de do ser quer a organizar;ao - a sis­tematica inteira e entao submetida a uma tensao fortissima. 0 ser quer a organizar;ao e, no clima revolucionario da utopia do circulo spinozista, ele a obtem. A univocidade do ser e a compacidade da ontologia sofrem en­tao variar;6es da definir;ao, atraves das quais procuram - ou ao menos postulam - formas de organizar;ao adequadas - em termos de organi­zar;ao no seio da univocidade do ser.

Spinoza nao ve nenhuma contradir;ao em fazer variar a centralidade e a univocidade do ser submetendo-as a articular;ao. Com efeito, 0 crite­rio de organizar;ao e () dinamismo escorrem do ser segundo a ordem da essencia: mas a essencia e produtiva, e causa, e potencia. A organizar;ao do infinito corresponde as modal ida des do mecanismo causal. "Proposi­r;ao XVI: Da necessidade da natureza divina devem seguir-se infinitas coi­sas, em infinitos modos (ou seja, tudo aquilo que pode cair sob urn enten­dimento infinito).,,27 "Coroi;irio I: Disso se segue que Deus e causa efi­ciente de todas as coisas que podem cair sob urn entendimento infinito. Corolario II: Segue-se II: que Deus e causa por si, nao por acidente. Co­rolario III. Segue-se III: que Deus e absolutamente causa primeira. "28 Mas isto nao basta. Por si mesma, a causa eficiente e dinamica, mas na~ e orde­nadora. Ela impulsiona 0 mercado, mas na~ determina, por si mesma, 0

surgimento do valor. E preciso para isso, em primeiro lugar, que 0 meca­nismo causal dilua sua central ida de prod uti va, adira a realidade, se apoie

A Anomali-a Selvagem 9I

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sobre ela e se identifique a ela: "Deus e causa imanente, mas nao transiti­va de todas as coisas,,29. E e preciso em seguida que, assim procedendo, ele individualize e qualifique esse fluxo imanente que e 0 seu: "Deus nao e apenas causa eficiente da existencia, mas tambem da essencia das coisas"30. Estamos provavelmente no amago de urn dos paradoxos rna is caracte­rfsticos do pensamento de Spinoza: a utopia da completa superposi~ao de fato (dinamico) e valor (ordenador) e colocada atraves de uma analise que desdobra uma identidade pre-constituida (Deus, a univocidade do ser), e a reproduz sob 0 nome de organiza~ao. Este e 0 metodo do espontaneismo, da afirma~ao de uma unica realidade substancial atraves de seu desdobra­mento teorieo (metodieo e substancial).

Seguindo essa linha metodol6gica - que e entao a de urn projeto, ou antes, do projeto por antonomasia -, 0 livro I da Etica na~ encontra ne­nhum obstaculo, nem mesmo nenhuma dificuldade. E a figura metafisica do atributo que permite, ou antes, exprime absolutamente este metodologia. "Entendo por atributo aquilo que 0 entendimento percebe de uma substancia como constituindo sua essencia. ,,31 Deus se exprime como causa, isto e, 0

infinito se propaga: e a ordem dessa infinitude divina e filtrada atraves do f1uxo dos atributos. "Proposi<;ao XXI: Tudo aquilo que segue da natureza absoluta de urn atributo de Deus deve ter sempre existido e e infinito, ou seja, e infinito e eterno pela virtude desse atributo. "32 "Proposi~ao XXII: T udo aquilo que segue de urn atributo de Deus, enquanto e modificado por uma modifica~ao que, em virtude desse atributo, existe necessariamente e como infinita, deve existir necessariamente e ser infinito. ,,33 "Proposi~ao XXIII: Todo modo que existe necessariamente e e infinito deve ser segui­do, necessaria mente, ou da natureza absoluta de urn atributo de Deus, ou de urn atributo afetado por uma modifica~ao que existe necessariamente e e infinita. ,, 34 0 atributo e entao 0 intermediario atraves do qual 0 absoluto vai em dire~ao ao mundo e se organiza nele. E a chave que permite fundar a deterrnina<;ao degradante, ou melhor, fluente do ser. 0 atributo se expri­me pelo verbo "sequi": segue-se que ... A existencia, ja reconhecida essen­cia, e agora reconhecida como articula~ao, enquanto que 0 atributo inter­preta e determina a tensao que se desdobra entre os dois termos fundamen­tais da ontologia. Mas tam bern neste caso 0 ser nao perde sua versatilida­de: a legisla~ao dinamica e qualitativa representada pela a~ao do atributo se propaga ate se identificar com a especificidade da essencia das coisas multiplas. A coisa e sempre, no termo desse processo, <fad aliquid operandum determinata", "Uma coisa que e determinada por Deus a produzir algum efeito nao pode se tornar ela mesma indeterminada"35: mas a legisla~ao do ser assim chegou a se fundar sobre cada coisa particular, sobre 0 horizonte de todas as coisas, sobre a potencia da coisa. "S6 da necessidade da essen­cia de Deus segue-se, com efeito, que Deus e causa de si e de tocias as coi-

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sas. Porranto a potencia de Deus pela qual ele e todas as coisas sao e agem e a sua propria essencia. "36

Neste ponto, entretanto, a ordem fluente do ser e a ordem constitutiva cia potencia, continuamente duplicacias em referencia a identidade ("Tudo aquilo que concebemos estar no poder de Deus e necessariamente": Pro­posi<;ao XXXV37 versus Proposi<;ao XXXVI38; "Nenhuma coisa existe de cuja natureza nao se siga algum efeito"), redeterminam uma forte tensao. o caminho seguido por Spinoza consistiu em por em movimento urn pro­cesso de diferencia~ao da unidade, para dar uma articula~ao a totalidade do sistema, para fazer variar as dire~6es do infinito. Esse caminho nos le­vou da pacata tensao dos elementos eonstitutivos da subst:incia suprema a violenta tensao do determinismo da realidade. 0 processo de emana,ao­degrada~ao do ser supremo desembocou no reconhecimento da potencia do mundo da coisa: 0 determinismo e a perfeita coincidencia da degrada­<;ao do ser e da emergencia do real. Mas 0 problema que se tinha procura­do resolver subindo-se aos pincaros e novamente encontrado na base, in­tacto. 0 mecanismo neoplatonico foi manobrado ate representar-se no fim como urn simples dispositivo relacional. Mas nada foi resolvido com isso: s6 se fez acumular uma fantastica carga de implosao do sistema para den­tro dele mesmo. E sem duvida alguma uma exigencia da utopia revolucio­naria. Mas exprime tam bern a exigencia de uma regra manifesta de orga­niza~ao, de uma conquista de norma de organiza~ao por parte da espon­taneidade. No Spinoza dessa epoca, as dimens6es do problema estao as­sim delimitadas: elas 0 estao efetivamente - ou seja, urn criterio racional de organiza~ao deve ser posto a servi~o da utopia. Ou seja, ainda, neste caso nao e tanto 0 processo de duplica~ao que interessa - este se deduz. Muito mais importante e a lei desse processo, pois s6 de sua expressao e que depende 0 valor da utopia. Voltemos entao a pensar no atributo, ava­liando a extraordinaria importancia crftica que sua tematica assume aqui: o atributo deve ser a norma de organiza<;ao, deve ser a regra expressa do processo de transforma~ao da espontaneidade em organiza~ao, deve ser a 16gica das variantes do infinito. Mas ele 0 e?

Sem duvida tenta se-lo. Em toda esta primeira camada da Etica, 0

atributo procura transgredir a compacidade do ser. Deve estar dentro, mas nao pode estar dentro; pode estar dentro, mas nao deve. Mediatizar a re­la<;ao entre fato e valor comporta essas alternativas e contradi~6es. E isto tanto no terreno pantefsta classico, que recolhe e dirige toda tensao do existente para 0 centro do ser, quanta no terreno de uma filosofia da su­perficie de conota<;ao ainda metaffsica, que achata a tensao sobre as filei­ras do ser e de sua plenitude. Colocar-se como criterio de organiza~ao da espontaneidade significa entao exercer alguma media~ao, ser portador de alguma transcendencia, ou pelo menos de alguma diferen<;a. Quais? 0 lugar

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do atributo no sistema de Spinoza deu lugar a uma polemica secular de ~ extrema violencia, dificuldades de ordem filologica acrescentando-se a dificuldade interna do sistema, imediatamente evidente39. Como ja foi muitas vezes nota do, a historia da noc;ao de atributo no pensamento de Spinoza nao deixa de ter uma certa coerencia. No Curto tratado, 0 atri­buto e urn nome da divindade, e a teoria do atributo e antes uma pratica ascetica que consiste em nomear a divindade: 0 que corresponde a uma fase durante a qual a relac;ao espontaneidade/organizac;ao do ser se resol­ve na experiencia direta do agir ascetico - sabemos disso desde Kola­kowski40• Na Carta IVa Oldenburg 0 atributo e definido ainda "id quod concipitur per se et in se" - 0 elemento ontologico, "id quod in se est", que aparecera na Etica, e completamente deixado de lado41 • A rela~ao entre espontaneidade e organiza~ao, entre divindade e mundo, e mediatizada pela consciencia. Mas, ja no Curto tratado, os nomes tern claramente tenden­cia a se objetivarem, a se assimilarem a substancia. Essa tendencia se tor­na atualidade na Etica: «Deus sive omnia Dei attributa,,42. Quanto mais o horizonte ontologico amadurece, mais 0 nome deixa de ser urn signo para tornar-se urn elemento da arquitetura infinita do sistema. 0 entendimen­to penetra cada vez rnais no ser real. A palavra filosofica torna-se sernpre rna is a expressao irnediata do encadeamento do ser absoluto. Se, na pri­rneirissima experiencia de Spinoza (sem duvida, depois da documenta~ao que nos forneceu Wolfson) estao presentes urn certO fenomenismo e urn nominalismo inteiramente tradicionais na filosofia judaica entre a Idade Media e 0 humanismo, entre Mairnonides e Crescas43, esses obstaculos a identidade absoluta tambem estao superados na Etica. "Quanta a Spino­za, se nos Cogitata Metaphysica ele ainda professa a doutrina mairno­nidiana da incomensurabilidade entre a ciencia de Deus e a do homem, ele a rejeita nas Proposic;6es XXX e XXXII do livro I, como refuta no Escolio da Proposi~ao XVII a compara~ao do entendimento divino e 0 entendi­mento humano com 0 cao constela~ao e 0 cao latindo. ,,44

Tudo isto no entanto nao e satisfat6rio. Pois mesmo se 0 absoluto esta a esse ponto achatado sobre 0 ser, 0 que falta e urn momento essen­cial da arcicula,ao do ser. Hegel4s e os historiadores da filosofia que 0 se­guiram46 teriam razao talvez em identificar no absoluto spinozista uma indeterminidade insuperavel? Certamente nao. Nao e por acaso que, quan­do seguimos os desenvolvimentos dessa interpreta~ao, percebemos que, nao conseguindo encontrar a chave da leitura da rela~ao substancia-atributo em Spinoza, esses comentadores preferem resolver 0 problema por meio de urn arrombamento dialetico, sobredeterminando essa rela~ao nos ter­mos do idealismo absoluto (implicitarnente amassando Spinoza em cima de Schelling). Uma opera~ao dessas e inaceitavel. Urn metodo de leitura, qualquer que seja, nao pode negar seu objeto. Eo objeto, apesar de todas

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as dificuldades que determina, e aqui 0 atributo como transgressao do ser. E urn problema para ser entendido em termos spinozistas e, se implica con­tradi~ao, ela deve ser apontada e avaliada como tal.

o atributo tende entao a se identificar a substancia. Mas, dados os elementos do problema, e preciso acrescentar que ele s6 pode tender a identifica~ao com a substancia como substancializa~ao (enraizamento do ser) daquele dinamismo transgressivo da identidade representado pelo atributo. Relendo 0 que Spinoza escreve a De Vries: "Alias, quand9 a vossa observa~ao de que eu nao dernonstro que a substancia (ou 0 ser) possa ter varios atributos, talvez nao tenhais sido atento a minhas demonstra~6es. Com efeito, dei duas. A primeira e de que nada e mais evidente para nos do que 0 fato de que cada ente e concebido sob algum atributo, e, quanta mais realidade ou ser tern urn ente, mais numerosos devem ser seus atri­butos. Donde se segue que urn ser absolutamente infinito deve ser defini­do, etc. A segunda demonstra~ao, que julgo a melhor, e a de que quanto mais numerosos saO os atributos que atribuo a urn ente, mais sou obriga­do a atribuir-Ihe existencia, ou seja, mais 0 concebo sob a forma do ver­dadeiro; enquanto que seria 0 contrario se houvesse imaginado a Quime­ra ou algo similar. Quanto ao que dizeis, de nao conceber 0 pensamento senao com as ideias, porque sem as ideias 0 pensamento se destr6i, penso que isto vos acontece porque separais de urn lado vosso ser como coisa pensante e de outrO vossos pensamentos e conceitos. Assim, nao e de es­pan tar que, excluindo todos os vossos pensarnentos, nao vos reste nada para pensar. Quando ao pr6prio problema, penso ter demonstrado com suficiente clareza e evidencia que 0 entendimento, se bern que infinito, per­tence a natureza naturada, e nao a natureza naturante. Alem disso, nao vejo que rela\=ao pode haver com a inteligencia da terceira defini~ao, nem em que modo represente uma dificuldade. Com efeita, tal qual a transmi­ti a v6s, se nao me engano, ela se enuncia assim: 'Por substancia, entendo aquilo que e em si e e concebido por si, ou seja, aquilo cujo conceito nao envolve 0 conceito de outra coisa'. E a mesma coisa que entendo por atri­buto, com a diferen~a que esse terrno se emprega com rela\=30 ao entendi­mento que atribui a substancia tal natureza determinada. Esta defini~ao, digo, explica bastante claramente 0 que entendo por substancia ou atri­buto,,47. 0 que me parece surgir com clareza e exatamente isto: que 0 enraizamento do atributo no ser nao nega sua fun~3o de transgress30 da identidade. Atributo e, ao mesmo tempo, a mesma coisa que a substancia _ sua diferen~a e enunciada em rela~ao ao entendimento. Esta impercep­tivel, mas fundamental diferen~a, que - na rela~ao entre espontaneidade e organiza~ao - os contemporaneos chamam de consciencia: isto e 0 atri­buto. Urn instante de eminencia l6gica no seio da univocidade do ser, ins­tante suficiente para transmutar 0 horizonte material num horizonte de

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valor. Fun~ao enigmatica, ou pelo menos obscura? Nao sou eu que 0 nego. Mas sua obscuridade teo rica nao poderia anular sua funrrao sistematica, o fato de que essa fun~ao seja essencial para a defini~ao da utopia e de suas determinarroes etico-politicas.

Mas nao e s6. E evidente que e impossivel aceitar uma solu~ao subje­tivista do problema do atributo - ou antes, se (estando exclufda toda determina~ao puramente fenomenica, como procuramos demonstrar) a face subjetiva do atributo s6 pode ser considerada como 0 revelador do pro­blema da articula~ao do absoluto, como indice da emergencia da conscien­cia, e portanto como hipostase determinada da duplicac;ao ut6pica -, entao deve-se concluir dOl que a solw;iio inversa do problema e igualmente ina­ceitavel. 0 atributo e a forc;a produtiva da substancia, s6 uma interpreta­~ao objetiva e dinamica pode explicar sua natureza - dizem48.

E e preciso acrescentar logo que esta leitura, em certos aspectos, se caka em tra~os fundamentais do sistema de Spinoza. E a potencia, e a potencia do ser, e a extensao infinita da causalidade produtiva que sao colocadas aqui no centro da reflexao. A esse respeito, vimos tam bern com que continuidade Spinoza tra~a a longa cadeia do ser atraves da analise da expressao do atributo, como essa expressao vive ao ritmo dos graus de solidifica~ao substancial manifestados em diversos nfveis pela potencia. Apenas, e aqui que comec;a 0 problema: come~a quando 0 processo ema­nativo - ou antes, 0 processo que inegavelmente se ressente dessa tradi­~ao filosofica - consegue ser inteiramente projetado na tela da existencia do mundo: e a espontaneidade do ser junta-se aqui a totalidade da poten­cia, na difusao multipla da causalidade produtiva sobre todas as coisas existentes. 0 paradoxo do ser se reabre aqui, e nao e a teoria da objetivi­dade do atributo que pode servir para explica-lo: pelo contnirio, ela 0 nega. Nada de desconcertante ate aqui: esta interpreta~ao antecipa, indevida­mente, conclusoes que tambem seeao as nossas49 . Mas ha tambem nessa antecipa<;ao uma intoleravel nega~ao de outro aspecto que e absolutamente espedfico desta fase do pensamento de Spinoza: e e 0 reaparecimento con­tinuo de uma for~a que leva a urn fechamento do sistema - e portanto tam bern das coisas produzidas, e no entanto dotadas de potencia - para dentro do sistema, para seu centro produtivo. A interpreta~ao objetivista do atributo, como fun~ao que qualifica a substancia e a desenvolve na determinarrao, nao capta a rea~ao centrfpeta da determinarrao. A esponta­neidade e explicada como tal, e-Ihe retirado 0 sab~r da utopia - que con­siste exatamente nisso, no fato de que a espontaneidade quer a organiza­rrao e a encontra atraves do movimento do atributo. Na interpretarrao objetivista, 0 atributo desempenha 0 papel de intermediario do absoluto, mas somente numa dire~ao centrffuga: e 0 retorno do sistema sobre si mesmo, a alegria da utopia, tudo isto e deixado de lado. A ordem cons-

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titutiva do ser acaba assim sendo vista s6 em termos emanativos~ 0 que e, antes de tudo, contraditorio com 0 proprio desenrolar da argurnenta<;ao, onde a coisa - resultado ultimo do processo - nao e essencia degrada­da, oscilante sobre 0 nada de urn limite negativo da expressao metafisica, mas participa, pelo contrario, de urn horizonte de potencia, de urn ser pleno. Mas essa atitude e principalmente contradit6ria em rela<;ao ao espirito do sistema que, em termos intercambiaveis e versareis, sempre qualifica as expressoes do ser reconduzindo-as a substancia primeira, e so define esta como causa primeira enquanto ela e a totalidade do real.

E tempo de conduir esta reflexao sobre 0 atributo. Volternos a Pro­posi~ao XIX: "Deus e eterno, ou seja, todos oS atributos de Deus sao eter­nos. Demonstra~ao: Deus e, com efeito, uma substancia que existe neces­sariamente, ou seja, a cuja natureza pertence 0 existir, ou (0 que vern a dar no mesmo) de cuja defini~ao se segue que ele existe, e assim ele e eterno. Alern disso, deve-se entender por atributos de Deus aquilo que exprime a essencia da substancia divina, ou seja, aquilo que pertence a substancia: e isto mesmo, digo, que os atributos devem envolver. Ora, a eternidade per­tence a natureza da substancia; assim cada urn dos atributos deve envolver a eternidade, e assim todos sao eternos. Escolio: Esta Proposi~ao tocna-se ainda rnuito evidente pela maneira como demonstrei a existencia de Deus. Segue-se como efeito desta demonstrarrao que a existencia de Deus, como sua essencia, e uma verdade eterna. Alem disso, demonstrei a eternidade de Deus tambem de outro modo, e nao ha necessidade de reproduzir aqui aquele raciocinio"so. Ora, 0 que e mais relevante aqui sao os seguintes elementos, que podem tambem ser urn resumo de nossa discussao: 1) 0 atributo per­tence a substancia, possui uma identidade ontologica corn ela. 2) A identi­dade entre substancia e atributos nao comporta, no entanto, reciprocidade formal do atributo da substancia: a substancia e uma infinidade de atribu­tos. 3) 0 atributo e entao uma abertura da e na substancia; nao encontra nem eminencia nem degrada<;ao em sua determinidade, mas somente uma participa~ao na versatilidade do ser total - 0 que e bern claramente demons­trado pelo Escalio da Proposic;ao XIX, onde 0 ritmo das pro vas da existen­cia de Deus e diretamente aplicado ao atributo51 . Mas se esta e a determi­na~ao do atributo, a justeza da defini~ao estrutural deve logo se abrir para a identifica~ao da ambiguidade de sua coloca~ao sistematica. 0 atributo deveria organizar a expansividade do ser: na realidade apenas a revela. 0 atributo deveria ordenar 0 conjunto das potencias: na realidade apenas as relaciona. E portador de uma indicarrao de dever ser, de normatividade on­tol6gica: mas esta nao e demonstrada, e apenas dita, hipostatizada. Desse ponto de vista, depois dessa prirneira camada da Etica, a figura do atributo noS aparecera ern vias de extin~ao: na rnedida em que a Etica se abre ao problema da constituic;ao enquanto tal, a fun~ao do atributo se tornara cada

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.. vez mais residual52 . Com efeito, a filosofia de Spinoza evolui para uma concepc;iio da constituic;iio ontologica que, voltando-se para a materialidade do mundo das coisas, elimina aque1e substrato metafisico ambfguo, que os residuos emanacionisticos, embora transferidos para a nova cultura, nao deixam de reter. Substrato ambfguo e no entanto necessario: necessario para fixar no horizonte da espontaneidade do ser urn criterio de organiza\ao. Erro, hip6stase, enigma? Nao mais do que nos mostra 0 funcionamento material das institui\oes do mundo burgues desde os tempos de sua origem - se­culos obscur~s ou idade de ouro, pouco importa: a superposi\ao de uma ordem criadora de valor ao tecido das re1a~oes internas a produ~ao. A uto­pia spinozista Ie e interpreta este mundo, mas tenta sobretudo Ihe impor uma racionalidade. Enquanto esse horizonte e assumido pela filosofia, 0 atribu­to e que deve organiza-Io. Esse tipo de pensamento tern necessidade vital de contradi~oes e de paradoxos. Ate que, reve1ando-se a verdadeira razao deles, empurrando-se a razao contra a hipostase, a critica volta a agir: mas ela revela tam bern a crise desse horizonte ontologico.

3.0 PARADOXO DO MUNDO

"Entendo por modo as afec~oes de uma substancia, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual e tam bern concebido. ,,53 Como se organiza este nquod in alia est, per quod etiam concipitur" no fluxo infinito da produc;iio? 0 problema do criterio de organizac;iio deve chegar a se confrontar com 0 mundo: e aqui mesmo e que teremos a prova da impossibilidade, para aque1e criterio de organiza~ao ja definido, de sus­tentar 0 peso do mundo. As formas metafisicas da media~ao espontanea enfrentam a irredutibilidade do modo, do mundo dos modos. Que fique bern claro: 0 livro II da Etica so faz anunciar as condi\oes da crise. E, re­pito, sao as condi~oes de urn posterior saito para a frente, de uma refor­mula~ao do problema a urn nfvel superior: a valora\ao da crise se da em termos positivos, atraves do deslocamento do projeto. Seja como for, es­sas condi\oes agora sao dadas, e aparecem em particular nas premissas e nas primeiras Proposic;6es do livro II, onde e focalizado 0 problema meta­fisico do mundo. E 0 ultimo trecho da metafisica de Spinoza, e a exposi­~ao de sua fisica, preliminares essenciais da etica.

o que e 0 mundo, entao? "Por realidade e perfei~ao entendo a mes­rna coisa"s4: por principio, a existencia do mundo entaO nao tern necessi­dade de nenhuma media\ao para ser ontologicamente validada. E essa va­lidade ontologica do existente tern a amplitude e 0 dinamismo do horizon­te da singularidade. Em si, na singularidade corporal: "Entendo por corpo urn modo que exprime de maneira certa e determinada a essencia de Deus,

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enquanto esta e considerada como coisa extensa"ss. Essencialmente, isto e, na singularidade das rela\oes que definem cada coisa em particular: "Digo que pertence a essencia de uma coisa aquilo que, se e dado, a coisa neces­sariamente e colocada, e se e suprimido, a coisa necessariamente e suprimi­da; au ainda, aquila sem a qual a coisa nao pode nem ser nem ser concebi­da e que, vice-versa, sem a coisa nao pode nem ser nem ser concebido"S6. E enfim coletivamente, na unidade de varias a~6es concorrendo juntas para urn mesmo fim: "Por coisas singulares, entendo as coisas que sao finitas e tern urn existencia determinada. Que se varios indivfduos concorr~m para uma mesma a~ao de tal modo que todos sejam ao mesmo tempo causa de urn mesmo efeito, considero-os tad os, sob esse ponto de vista, como uma mesma coisa singular"s7. 0 mundo e entao 0 conjunto versatil e complexo das singularidades. A axiomatica do livro II destaca isso muito claramente: as caracteristicas de alta formalidade metafisica que qualificavam a axio­matica da parte I (urn formulario para a argumentac;iio ontologica). Mais que uma expressao da forma do ser, a axiomatica do livro II e uma descri­C;iio, urn aprofundamento da analitica da singularidade: "I. A essencia do homem nao envolve a existencia necessaria, isto e, segundo a ordem da natureza, tanto pode acontecer que este ou aquele homem exista, quanto que nao exista"; "Sentimos que urn certa corpo e afetado de muitos mo­dos"; "v. Nao sentimos nem percebemos outras coisas singulares que nao os corpos e os modos de pensar"S8. Esses Axiomas, na medida em que nao exprimem criterios formais do raciocfnio, mas antes defini~6es substanciais do nexo das singularidades, deveriam ser chamados "postulados", como no livro III, na mesma articula~ao de coloca~ao argumentativa - e isso acontece porque a ideia de conexao ontol6gica formal ja se deslocou mate­rialmente no mecanismo produtivo do sistema, ou seja, esta posta no hori­zonte - primeiro ou ultimo: este e 0 problema - de sua produtividade. De qualquer maneira, no terreno da emergencia singular.

Mas entao 0 mundo da singularidade nao exige media\ao? Sera que a presencialidade existencial do modo e suficiente para si mesma? Mas entao a instrumenta\ao logico-metafisica atraves da qual este mundo parece ter sido gerado e pura e simples maquinac;iio? Este problema salta imediata­mente aos olhos: logo se evidencia aquela instabilidade que 0 livro I da Etica havia expressado tao fortemente. Quando a enfase e posta no modo, quando a analise se volta para a singularidade, com 0 amor que uma ascese revolu­ciomiria sente por eIa, peIo movimento e pela luta que dela emanam, 0 enigma da mediac;iio da espontaneidade deve ser ele mesmo problematizado. E en­contramo-nos assim desde ja, desde as Defini~6es e Axiomas do livro II, diante de uma duplica~ao do horizonte existencial: de urn lado, ja vimos, ° mun­do da singularidade; de ourro, ° da mente, do intelecto, do pensamento. Duplicac;iio que e contraposic;iio. "II. 0 homem pensa."S9 "III. Nao se diio

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modos de pensar, tais como 0 amor, 0 desejo ou qualquer outro que possa ~ser designado peIo nome de afeto da alma, se nao se der no mesmo indivi­duo uma ideia da coisa amada, desejada, etc. Mas uma ideia pode ser dada sem que seja "dado nenhum outro modo de pensar. ,,60 Sublinhemos este verslculo: "Mas uma ideia pode ser dada sem que seja dado nenhum outro modo de pensar. "; e a especifica~ao da independencia do pensarnento, da media~ao, da exigencia de uma organiza~ao do infinito. "Entendo por ideia urn conceito da Mente, que a Mente forma porque e uma coisa pensante." "Entendo par ideia adequada uma ideia que, enquanto e considerada em si, sem rela~ao com 0 objeto, possui todas as propriedades ou denomina­,5es intrinsecas da ideia verdadeira. ,,61 Mas aqui a ambiguidade da parte 1 se fez contradi,iio. 0 inicio do livro II e a coloca,ao de uma contradi,ao. o mundo "sub specie aeternitatis" e a mundo "sub specie libertatis~' se encontram fixados num emaranhado alternativo. 0 ponto de partida do livro II da Etica nos prop6e como alternativa aquila que a livro I havia vivido como uma ambigiiidade. Par que? Porque a realidade viva da utopia exige que as dais palos se deem com toda sua intensidade: ora, aquila que tinha sido pressuposto como sintetico se apresenta como crise, mas e mais por­que a realidade da polaridade foi avaliada do que pelo fato de que a sintese esteja expressamente em crise. 0 que comec;a a configurar-se como crise e aqui a espontaneidade da convergencia das duas tens6es: mas tudo isto se da de maneira vaga, nao expressamente percebida, quase a despeito da von­tade sistematica. E no entanto a utopia, desdobrando-se, devia chegar ate lao E mesmo aqui, a utopia nao entra em crise porque perderia seu vigor in­tdnseco, mas porque se encontra confrontada com outras series de fatos, au melhor, com a serie dos fatos que haviam sido hipostasiados nela62

. Seja como for, 0 problema esta colocado. A espontaneidade do processo nao serve mais para mostrar a forc;a centdfuga da subsrancia e a centdpeta do modo como elementos superpostos e concordantes. Sua rela~ao e problema. 0 mundo e paradoxa da alteridade e da coincidencia; subsrancia e modo se quebram uma sabre 0 outro, e vice-versa63.

A argumenta~ao propria mente dita do livro II da Etica, que come~a com as Proposi~6es, parte do problema que acabamos de definir, ainda implfcito nas Definic;6es enos Axiomas. As Proposic;6es aqui considera­das (I a XIII do livro II) referem-se a dedu,ao da essencia do homem64

Dentro deste campo determinado, a drama metafisico da substancia e do modo deveria encontrar seu desfecho. Deve-se dizer que a op~ao spinozista por uma reconstitui~ao positiva da organicidade da utopia e pela reafir­mac;ao de sua feliz espontaneidade e totalmente explicita: mas quantos e quais problemas isso levanta! A argumentac;ao metafisica do livro I nos havia deixado diante dos atributos, como mediac;ao entre os modos e a subsrancia. Mas agora explode 0 paradoxa: a unifica~ao dos atributos, dos

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dois atributos ("0 pensamento e urn atributo de Deus, ou seja, Deus e coisa pensante" contra: "A extensao e urn atributo de Deus, ou seja, Deus e uma coisa extensa")65 cria uma dimensao do mundo que nao e hierarquica, mas plana, igual, versatil e equivalente. A essencia absoluta, predicada univo­camente, refere-se tanto a essencia divina - existencia de Deus - quanto a todas as coisas que descendem de sua essencia. Estamos num ponto fun­damental, num ponto em que a ideia de potencia - como ordem univoca, como dissoluc;ao de toda mediac;ao e abstra<rao (pais tal e, em contra partida, a ideia de poder) - passa ao prirneiro plano com enorme for~a. ':0 vulgo entende por potencia de Deus sua vontade livre e seu direito sobre todas as coisas que sao, e que, par esta razao, sao comumente consideradas con­tingentes. Deus, diz-se com efeito, tern 0 poder de destruir tudo e de tudo aniquilar. Alem disso, com muita freqiiencia se compara a potencia de Deus ados reis. Mas ja refutamos isto ... e rnostrarnos que Deus age com a mes­rna necessidade com que se conhece a si mesrno; ou seja, como da necessi­dade da natureza divina se segue (como admitem todos unanimemente) que Deus conhece a si mesmo, assim se segue com a mesma necessidade que Deus faz infinitas coisas em infinitos mod os. Alern disso mostramos ... que a potencia de Deus nao e outra coisa senao a essencia ativa de Deus; e-nos entao tao impossivel coneeber que Deus nao aja quanto que Deus nao seja. Alem do rna is, se eu quisesse continuar a desenvolver estes assuntos, po­deria tambem rnostrar aqui que aquela potencia que 0 vulgo imagina em Deus e tao-somente uma potencia humana (0 que mostra que Deus e eon­cebido pelo vulgo como urn homem, ou a semelhan<ra de urn homem), mas implica tam bern impotencia ... Ninguem podera perceber corretamente 0

que quero dizer se nao tomar cuidado para nao confundir a potencia de Deus com a potencia humana ou 0 direito dos Reis. "66 Que dizer entao? Os proprios atributos - como fun<rao de mediac;ao da espontaneidade do ser, entre substancia e modos - foram reintegrados num terreno horizontal, em superficie. Nao sao intermediarios do trabalho de organiza<rao, tern urn lugar subordinado (estao-se extinguindo), num horizonte linear, num es­pa~o onde s6 ernergem as singularidades. E estas na~ recebem nenhuma rnediac;ao, mas simplesmente se colocam em uma imediara rela~ao de pro­dU<rao da substancia. "Potentia" contra "potestas": lembremo-nos deste trecho, como daquele a que alude a Defini,ao VII (sobre a potencia da a,ao eoletiva na constituic;ao da singularidade), ele representa a indicac;ao de urn dos pontos rna is importantes e signifieativos, como veremos, da filo­sofia spinozista do porvir. Mas volternos a nosso ass unto. "0 ser formal das ideias reconhece Deus COmo eausa somente enquanto este e cons ide­rado como coisa pensante, e nao enquanto e explieado arraves de outro atributo. Ou seja, as ideias, tanto dos atributos de Deus quanta das coisas singulares, nao reconhecem como causa eficiente os pr6prios ideatos, ou

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seja, as coisas percebidas, mas 0 proprio Deus enquanto e coisa pensan­fe. "67 0 modo e entao 0 mundo: a causa eficiente, em sua expressao, nao exige media~ao alguma. "A ordem e a conexao das ideias sao a mesma que a ordem e a conexao das coisas. ,,68 Sao as singularidades modais que en­tram aqui diretamente em conexao, determinando urn paralelismo que so a procura desesperada de uma coerencia do sistema pode ainda tentar li­gar com a rela~ao metaffsica entre os dois atributos. Com efeiro, nao se trata de urn paralelismo entre os atributos, mas de uma tensao do modo em dire~ao a uma constru~ao unificada e singular de si mesmo.

Nas interpretac;6es mais recentes, mais penetrantes e filologicamente mais fieis do paradoxo spinozista da substiincia e do modo, quis-se intro­duzir neste ponto, para tentar preservar a importancia do atributo, uma posterior subdivisao do sistema. Coloquemos que "substancia pensante e substancia extensa sao uma unica e mesma substancia, compreendida ora sob urn atributo, ora sob 0 outro. Assim tambem urn modo da extensao, e a ideia deste modo, sao uma so e mesma coisa, mas expressa de duas ma­neiras,,69. Encontrar-nos-iamos enta~ diante de urn paralelismo que e em primeiro lugar 0 do pensamento e da extensao - paralelismo fundado sobre uma ratio essendi, extracognitiva; por outro lado se da urn paralelisrno do modo e da ideia de modo, segundo uma ratio cognoscendi, urn paralelismo intra-cognitivo que "replica" no plano gnoseologico aquele que e fundado ontologicamente7o. Mas devemos nos perguntar se e possivel, no Spinoza dessa epoca, separar a ordem gnoseologica da ordern ontol6gica. E possi­vel anular assim 0 paradoxo revelado pela relaC;ao imediata substancia-modo? E licito negar essa emergencia de uma for~a capaz de reverter a relaC;ao rnetafisica, e, neste caso preciso, da ordem da emanaC;ao? Na realidade, nao se trata de uma "replica", mas de uma "redu~ao" da genese do ser a pre­senc;a do ser, que se da na singularidade com formidavel potencia71 . Toda tentativa de resistencia a essa violencia do paradoxo, e da consequente re­versao dos termos, se revela inca paz de dar conta, nao da coerencia, mas da forc;a e da felicidade da primeira formula~ao do sistema, da primeira camada da Etica. A medida que 0 raciodnio ontologico vai prosseguindo e se aproximando da realidade, ele destroi as estradas, as pontes e cada re­miniscencia do caminho percorrido. Os atributos e 0 paralelismo ontologico estao-se extinguindo. Mas 0 processo nao para aqui. Por enquanto, orga­niza-se aqui sobre aquila que, desde sempre, constitui 0 ponto-limite do pan­teismo: se Deus e tudo, tudo e Deus. A diferenc;a e consideravel: de urn lado urn horizonte idealista, de outro, urn potencial materialista.

o desenvolvimento da utopia spinozista contem entao uma tenden­cia para reduzir sobre urn plano horizontal 0 mecanisme de produC;ao metafisica. E incrivel a aceleraC;ao que Spinoza imp6e neste sentido a seu "prolixum methodum". Em poucas Proposic;6es do livro II, esse desenvol-

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vimento se efetua em termos radicais. A complexidade ontol6gica da subs­tancia e rapidamente destrin~ada: "A ideia de uma coisa singular existen­te em ato tern Deus como causa, nao enquanto e infinito, mas enquanto e considerado como afetado por outra ideia de coisa singular existente em ato, da qual Deus e causa, enquanto e afetado por uma terceira, e assim por diante ate 0 infinito"72. Neste terreno da singularidade 0 infinito ex­tensivo, em processo, 0 indefinido, nao resulta ser contraditorio com 0

infinito intensivo, existente em ato: e assim 0 fato de que a substaricialidade humana se dissolva numa serie de conex6es singulares nao aparece con­tradit6rio com sua existencia singular. "A primeira coisa que constitui 0

ser atual da Mente humana nao e senao a ideia de uma coisa singular exis­tente em ato"73. A singularidade nao e contraditoria com a substancialidade divina, com 0 infinito Como principio: pelo contrario, ela e tanto mais divina quanto e mais singular, difusa, difusiva - so neste ponto, na verdade, pode ser pensada exclusivamente na divindade. A utopia nunca se recomp6e com tanta intensidade quanto no momento em que esta a ponto de afirmar sua propria negac;ao! "A Mente humana e uma parte do intelecto infinito de Deus: e assim quando dizemos que a Mente humana percebe esta ou aquela coisa, nao dizemos senao que Deus, nao enquanto e infinito, mas enquan­to se explica pela natureza da Mente humana, ou seja, enquanto constitui a essencia da Mente humana, tern esta ou aquela ideia. " 74 0 que quer di­zer que a constitui~ao da realidade singular e determinada pela insisten­cia da produC;ao divina. Deus e a reversao da transcendencia, nem que seja simples transcendencia 16gica. Deus e 0 mundo que se constitui. Nao ha nenhuma mediac;ao: a singularidade e 0 unico horizonte real. Deus vive a singularidade. 0 modo e 0 mundo, e e Deus.

A Proposic;iio XIII do livro II da Etica representa 0 limite extremo da deduC;iio paradoxal do mundo na primeira camada do sistema de Spi­noza. Cam a Proposi~ao XIII, a passagem da metaffsica a fisica se assina­la como reversao do horizonte filosofico. "0 objeto da ideia que constitui a Mente humana e 0 Corpo, ou seja, urn certo modo, existente em ato, da Extensao, e nada mais. "75 Note-se bern: a reversao e efetiva: da mente existindo em ato, passamos ao corpo existindo em ato. "Segue-se dai que o homem e constituido de Mente e Carpo e que 0 Corpo humano, assim como 0 sentimos, existe. "76 Toda a tematica do racionalismo idealista, tao caracteristica do pensamento da Contra-Reforma, esta reduzida a nada: o materialismo do mundo e fundador, pelo menos tanto quanto a ideia de modo e constitutiva - e essas duas fun~6es se apresentam juntas numa unidade primordial e indissociavel, garantida peta ordem substancial do mundo. Entao, a corporeidade e fundadora: "Disto compreendemos nao apenas que a Mente humana e unida ao Corpo, mas tambem 0 que se deve entender por uniao da Mente e do Corpo. Ninguem entretanto podera ter

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dessa uniao uma ideia adequada, ou seja, distinta, se antes nao conhece adequadamente a natureza de nosso Corpo,,77. Ora, 0 conhecimento do corpo e total e absolutamente ffsico: 0 movimento inercial da ffsica de Galileu torna-se a rede de funda<;ao e desenvolvimento do mundo da sin­gularidade78• "Axioma 1. Todos os corpos ou estao em movimento ou em repouso. Axioma II. Cada corpo se move ora mais lentamente, ora mais rapido. ,,79 Segue-se a isso que os corpos se distinguem uns dos outros na base das leis e determina<;oes atuais de movimento e repouso, de veloci­dade e lentidao. A serie das rela<;6es causa is se desdobra sobre urn hori­zonte indefinido de determina~oes eficientes. "Segue-se dai que urn corpo em movimento se move ate que seja determinado por outro ao repouso, e que urn corpo em repouso permanece assim ate que seja determinado ao movimento por outro. "SO Nesse horizonte puramente meca.nico, 0 proble­ma evidentemente e 0 da forma na qual se colocam as rela<;oes de movi­mento e/ou repouso, de simplicidade e/ou complexidade, para constituir esses con juntos relativamente estaveis a que chamamos singularidades in­dividuais. Como se forma a Gestalt?, poderfamos nos perguntar. E a res­posta de Spinoza e absolutamente coerente com a posi~ao mecanicista, e em harmonia com sua recusa em considerar 0 indivfduo como uma subs­rancia: "Quando varios corpos de mesma ou de diferente grandeza sao pres­sionados por outros de modo a aderirem uns aos outros, ou de modo que, se se movem com 0 mesmo grau ou com graus diferentes de velocidade, comunicam reciprocamente seus movimentos segundo uma certa rela~ao, diremos entao que esses corpos esrao unidos entre si e que todos juntos compoem urn s6 corpo, ou seja, urn Individuo, que se distingue dos ou­tros por aquela uniao de corpos"Sl. A forma da individualidade e com­pletamente constituida (e subordinada em seu movimento - que e pura­mente existencial, ou seja, implica uma resposta nao s6 a pergunta quid sit, mas tambem a pergunta an sit) por quantidade, propon;6es de quanti­dade e de movimento, dire~6es de quantidade e de movimento. A genera­lidade desta forma de singularidade e absoluta. "Vemos entao com isso em que condi~ao urn Indivfduo composto pode ser afetado de muitas ma­neiras, sem deixar de conservar sua natureza. E ate 0 momenta s6 conce­bemos urn Individuo composto apenas por corpos que se distinguem en­tre eles pelo movimento e 0 repouso, a velocidade e a lentidao, ou seja, corpos simplissimos. Se agora concebermos outro, composto por varios Individuos de natureza diferente, encontraremos que pode ser afetado de varias outras maneiras, sem deixar de conservar sua natureza.]a que, com efeito, cada parte e composta de varios corpos, cada uma podera, sem nenhuma mudan~a de sua natureza, mover-se ora mais lentamente, ora mais rapido, e em con sequencia comunicar seus movimentos as outras partes, ora rna is lentamente, ora mais rapido. Se, alem disso, concebermos urn

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terceiro genero de Individuos, composto desses Individuos do segundo, en­contraremos que pode ser afetado de muitas outras maneiras sem nenhu­rna mudan<;a em sua forma. E continuando assim ate 0 infinito, concebe­remos que a Natureza inteira e urn s6 Individuo cujas partes, isto e, todos os corpos, variam de uma infinidade de maneiras, sem nenhuma mudan­<;a do Individuo total."S2

Bem,o tecido da utopia se desenvolveu completamente em suas ex­tremas alternativas internas. 0 fluxo da emana<;ao, de onde partiraoa ana­lise83, desenvolveu-se em for<;a constitutiva sincronica, estrutural: a fun­~ao de continuidade e de organiza~ao do atributo veio-se extinguindo diante do aprofundamento do paradoxo do modo - consistente em sua capaci­dade (e tensao) fundadora do mundo, no movimento do microcosmo in­dividual para 0 macrocosmo. As extremas alternativas (da totalidade es­pontanea da divindade e da multiplicidade indefinida do movimento causal) convivem numa oposi<;ao cuja complementaridade s6 e garantida por seu caniter absoluto. A polaridade s6 e resolvida na base do carater absoluto do contraste. Do ponto de vista do lugar desse avan<;o spinozista na polemica cientifica de seu tempo, e bastante claro que 0 mecanicismo e tornado aqui como forma de verdade do mundo. Mas e na forma parado­xal em que se coloca 0 problema do mecanicismo que reside a irredutivel originalidade da abordagem spinozista: com efeito, contrariamente ao que ocorre com os mecanicistas puros ou em Descartes84, 0 mecanicismo, aqui, nao e elemento de uma constru<;ao linear do mundo, como para os pri­meiros, nem 0 tecido sobre 0 qual se exerce, mediatizando-se - ao lado do encadeamemo infinito das causas - 0 comando da infinita potencia divina, como para 0 outro. Em Spinoza, 0 mecanicismo e dado ao mesmo tempo como base e como limite do modo de produ<;ao: e a pr6pria colo­ca<;ao do mecanicismo na base do modo de prodw;;ao que comprova seu limite. Limite que consiste na necessidade - revel ada pela atual insufi­ciencia da sintese paradoxal- de transferir 0 procedimento causal da or­dem da constitui<;ao sincronica, estrutural, sobre a qual ate aqui se tern exercido, para a fun<;ao de for<;a constitutiva no sentido proprio, diacronica, organizadora do mundo e do proprio absoluto. A for~a revolucionaria da utopia spinozista atingiu 0 limite da posi<;ao absoluta, do maximo apro­fundamento analitico de uma totalitaria determina<;iio de compatibilida­de entre todos os seus componentes historicamente constitutivos. Esse cararer absoluto agora assumiu caracteristicas de tensao sobre-humana, como se, depois de uma longa acumula~ao de for~as, uma terrivel tempes­tade estivesse para estourar. Urn trabalho de sintese extraordinariamente complexo, compreendendo todas as coordenadas revolucionarias do se­culo, foi englobado na imagem do absoluto e das alternativas de que este e portador. Esse conjunto de diversos pIanos do ser foi reduzido a urn s6

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plano do ser, e posta sob tensao. 0 horizonte do mecanicismo tornau-se urna eondi<;ao absoluta de abertura ontologiea. E de liberdade? "Passo agora a explica\ao das coisas que tiveram necessariamente que se seguir a essencia de Deus, ou do Ser eterno e infinito. Entretanto naD tratarei de rodas ... ; explicarei apenas aquelas que podem nos conduzir, como que pela mao, ao conhecimento da Mente humana e de sua beatitude suprema,,85: assim comet;ava 0 livre II. Efetivamente, 0 paradoxa do mundo cleve ama­durecer em paradoxo da liberdade.

NOTAS

1 Etica I, Defini~oes 1,3,6 e 8 (G., II, pp. 45A6; P., pp. 309-310). 2 Cf. a este respeito M. GUEROULT, op. cit., I, pp. 25-26, 33 e 35, onde essas

caracteristicas do metodo spinozista estao evidenciadas, e principalmente a oposi<;ao delas as posi<;oes metodologicas de Hobbes e de Descartes.

3 Etica I, Axiomas 1-7 (G., II, pp. 46-47; P., p. 311). 4 Carta IX (G., IV. p. 43; P., p. 1088); d. tambem Carta IV (G., IV. pp. 12-14;

P., pp. 1066-1068). 5 M. GUEROULT, op. cit., t. I, p. 90 sq. nota com razao que esse conjunro axio­

matico agrupa proposi<;oes de especies diferentes, de origens diferentes e de valores 10-gicos diferentes. Esta daro que satisfazemo-nos aqui em destacar 0 carater sistematico da axiomatica.

6 G.W.F. HEGEL, Wissenchaftder Logik, S. W., Edi<;ao G. Lasson, yo. IV, p. 165. 7 Tal e por exemplo a opiniao de G. GENTILE em seu Prefacio a edi<;ao bilingiie

(italiano-Iatim) da Etica (Ethica, trad. de G. DURANTE, notas de G. GENTILE, revis­tas e aumentadas por G. RADEllI, Floren<;a, Sansoni, 1963). Ver tambem a posi<;ao de Alquie, evocada acima.

8 Reunindo 0 conjunto do material filosOfico produzido por Spinoza, M. GUE­ROULT (op. cit., t. I, pp. 14-15, nota) pensa poder conduir que a primeira reda<;ao da Etica (pelo que e dito a respeito na Carta XXVIII a Bouwmeester, escrita em 1665) teria sido constituida da seguinte maneira: uma Introdu<;ao compreendendo a materia das Partes I e II: De Deo, de Natura et Origine Mentis, ou Metafisica; uma Primeira Parte, correspon­dente as partes III e IV cia recla<;ao definitiva, isto e, a servidao da alma, ou Psicologia; e uma Segunda Parte, a da liberdade da alma, ou Etica, correspondente a atual quinta parte.

9 Houve diversas tentativas de analise estrutural da Etica. A mais aventurosa (con­tendo alias elementos extremamente interessantes) me parece ser a proposta por A. MATHERON, Individu et communaute chez Spinoza, Paris, 1969.

10 G. DELEUZE, em apendice ao vol. cit., expoe urn "estudo formal do plano da Etica e do papel dos Escolios na realiza<;ao desse plano: as duas Eticas" (pp. 313-322). Uma analise formal dos caracteres filosoficos dos Escolios (positivo, ostensive e agressi­vo) 0 leva a condusao seguinte: "Ha entao como que duas Eticas coexistentes, uma cons­tituida pela linha ou 0 fluir continuo das Proposi<;6es, Demonstra<;Oes e Corohirios, a outra, descontinua, constituida pela linha partida ou a cadeia vulcanica dos Escolios. Vma, com rigor implacave1, representa uma especie de terrorismo da cabe<;a, e progride de uma ProposilJao para a outra sem se preocupar com as conseqiiencias praticas, elabora suas

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regras sem se preocupar em identificar os casos. A outra recolhe as indigna<;oes e as ale­grias do coralJao, manifesta a alegria pnitica e a luta pratica contra a tristeza e se expri­me dizendo "e 0 caso". Neste sentido a Etica e urn livro duplo. Pode ser interessante ler a segunda Etica por sob a primeira, saltando de um Escolio para 0 outro" (p. 318).

11 Ca,ta II (G., IV, pp. 7-8; P., p. 1061). 12 Etica I, Deiini,iio III; Proposi,iio VI (G., II, p. 45 e 48; P., p. 310 e 313). 13 Etica I, Proposi'fao VIII, Escolio II (G., II, p. 50; P., p. 3150). 14 Etica I, Proposi<;ao VIII, Escolio I (G., 00, p. 49; P., p. 314). 15 Etica I, Proposic;ao VII (G., 00, p. 49; P., p. 313). 16 Etica I, ProposilJao VII, Demonstra<;ao (G., II, p. 48; P., p. 313). 17 Etica I, Proposi'fao IX (G., 00, p. 51; P., p. 316). 18 Etica I, Proposi,iio VIII (G., II, p. 49; P., p. 313). 19 Analisaremos estas ProposilJoes na segunda parte deste capitulo. Convem en­

tretanto ter em mente 0 plano do livro I da Etica proposto por M. GUEROULT (op. cit., t. I, p. 19). A primeira se'fao (Proposi'foes 1 a 15) e dedicada a construfao da essen­cia de Deus, e se divide por sua vez em duas: a) Dedu<;ao dos elementos da essencia de Deus, a saber, das subsrancias de urn so atributo (Proposi'foes I a VIII); b) ConstrulJao da essencia de Deus pela integra<;ao das substancias de urn so atributo em uma subs­tancia constituida de uma infinidade de atributos, existindo por si, indivisivel e unica (Proposi<;6es IX a XV). A segunda se~ao e dedicada a dedu¢o da potencia de Deus (Pro­posi'foes XVI a XXIX) e se divide igualmente em duas subse'foes: a) Dedu'fao de Deus como causa ou Natureza Naturante (Proposi~oes XVI a XX); b) Dedu'fao de Deus como efeito ou Natureza Naturada (Proposi'foes XXI a XXIX). A terceira se'fao deduz Deus como identidade de sua essencia e de sua potencia, e a necessidade subseqiiente tanto de seus efeitos quanto do modo de sua produ<;ao (Proposi<;oes XXX a XXXVI).

20 Etica I, Proposi~ao XI (G., II, p. 52; P., p. 317). 21 Etica I, Proposi'fao XI, Escolio (G., II, p. 54; P., p. 319). 22 Etica I, Proposi~ao XIII, Demonstra'fao (G., II, p. 55; P., p. 321). 23 Etica I, Proposi~oes XIV e XV (G., II, P. 56; P., p. 322). 24 Sobre a univocidade do ser em Spinoza, d. sobretudo 0 livro de Deleuze. 25 Etica I, Proposi~ao XV, Escolio (G., II, p. 60; P., p. 326). 26 Etica I, Proposi<;ao XI, Demonstra'foes e Escolio (G., n,pp. 52-54; P., pp. 317-320). 27 Etica I, Proposi,oes XVI (G., II, p. 60; P., p. 327). 28 Etica I, Proposi<;oes XVI, CoroIarios I, II e III (G., II, pp. 60-61; P., p. 327). 29 Etica I, Proposi,iio XVIII (G., II, p. 63; P., p. 331). 30 Etica I, Proposi,iio XXV (G., II, p. 67; P., p. 335). 31 Etica I, Deiini,iio IV (G., II, p. 45; P., p. 310). 32 Etica I, Proposi'fao XXI (G., II, p. 65; P., p. 332). 33 Etica I, Proposi,iio XXII (G., II, p. 66; P., p. 334). 34 Etica I, Proposi,iio XXIII (G., II, p. 66; P., p. 334). 35 Etica I, Proposi,iio XXVII (G., II, p. 68; P., p. 336). 36 Etica I, Proposi'fao XXXIV, Demonstra~ao (G., II, p. 77; P., p. 345). 37 Etica I, Proposi'fao XXXV (G., II, p. 77; P., p. 345). 38 Etica I, Proposi'fao XXXVI (G., II, p. 77; P., p. 346). 39 AU:m das bibliografias dadas em qualquer manual bem-feito, d., a respeito da

polemica secular em torno da filosofia de Spinoza, e em particular em torno da inter­preta'fao dos atributos, as tres mais completas entre as bibliografias recenres: The Spi­noza Bibliography, organizada por A.S. OKO, Boston, 1964; A Spinoza Bibliography, 1940-1967, organizada por]. WETLESEN, Oslo, 1967;]. PREPOSIET, Bibliographie

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s1'inoziste, Besan~on-Paris, 1973. Sabre a tematica do atriburo, deve-se ter em mente pelo menos 0 velho manual de De Ruggiero, particularmente util porque situado intei­ramente dentro da problemarica idealista.

40 Remero aqui ao livro varias vezes mencionado de L. Kolakowski, a cujas teses ainda sera necessario voltar; em particular, veremos, as paginas em que de assinala a presen~a de influencias quiliasticas sobre os membros do "circulo spinozista", e, mais geralmente, de posi'foes analogas nos meios asceticos da segunda Reforma holandesa. Sobre a defini'fao dos atributos (e a tematica dos nomes da divindade) no Curto trata­do, d. supra, cap. II, primeira parte, e a bibliografia dada nas noras (em particular as remissoes a Gueroult). Sera medida a disd.ncia que separa 0 ascetismo dos circulos ho­landeses do misticismo de todas as tradi'foes, cat6lica, reformada ou hebraica, a des­peito de uma tematica comum, ados nomes da divjndade, analisando, por exemp!o, a contrario, a tematica dos nomes da divindade em Juan de la Cruz (d. a Introdu~ao de G. AGAMBEN a edi'fao italiana de suas Poesie. Turim, 1974).

41 Carta IV (G., IV, p. 13; P., p. 1066). Essa observa'fao nos vern de L. ROBIN­SON, Kommentar zu Spinozas Ethik, Leipzig, 1928, pp. 63-63, 136-137 e 150-153.

42 Etica I, Proposi'fao XIX (G., II, p. 64; P., p. 331). A respeito da controversia sobre 0 atributo, a analise mais completa, entre as obras recentes, e a de M. GUEROULT, op. cit., t.1. pp. 426-461. Ele fornece tambem toda a bibliografia desejavel, minuciosa­mente comentada, e isto ate os comentarios mais recentes: particularmente importante e a leitura feita por Gueroult da obra de Wolfson, a ser considerada sobre mais de urn aspecto como urn trabalho fundamental entre as interpreta~6es recentes de Spinoza. Sobre a inrerpreta'fao subjerivista do arributo em Spinoza, de origem direramente hegeliana, d., com diversas nuances, as obras de J.E. Erdmann, Rosenkranz, Schwengler, E. von Hartmann, Ulrici, Pollock, Constantin Brunner, Wolfson, etc.

43 Foi pdncipalmente H.A. WOLFSON (The Philosophy of Spinoza, Cambridge [Mass.], 1934) que insisriu nesse ponto. Foi possivel dizer que a importancia da obra de Wolfson, entre os esrudos sobre a filosofia judaica da Idade Media e suas influencias sobre a filosofia moderna, era companivel ados rrabalhos de E. Gilson sobre a Idade Media crista e suas influencias sobre a filosofia moderna.

44 M. GUEROULT, op. cit., r. I, p. 459. Mas sobre 0 mesmo assunto, d. igual­mente, no mesmo volume, pp. 562-563, apendice se referindo a uma analise de A. KOY­RE (Revue de metaphysique et de morale, 1951, p. 50 sq., repetido em Etudes d'histoire de la pensee philosophique, pp. 93-102).

45 A analise mais completa da interpreta'faO hegeliana de Spinoza se encontra agora na obra varias vezes mencionada de P. Macherey. La se encontrarao os textos mais imporrantes da interven'fao cririca hegeliana, devidamente verificados e comentados.

46 Sobre a tradi~ao historiografica hegeliana referente ao pensamento de Spino­za, d. M. GUEROULT, op. cit., t. I, pp. 462-468.

47 Carta IX (G., IV, pp. 44-45; P., pp. 1089-1090). 48 Sobre este ponto, a posi~ao de K. FISCHER e fundamental (Geschichte der

neuren Philosophie, I Bd., 2 Th., 3 ed., 1880, p. 356). 49 Cf. infra, Cap. V sq (particularmente 0 cap. VII). 50 Etica I, Proposi~ao XIX, Demonstra'fao, Esco1io(G.,II, p. 64; P., pp. 331-332). 51 Tais sao igualmenre as conclus6es de MACHEREY, op. cit., pp. 97-137, e em

grande parte tambem as de DELEUZE, op. cit., cap. II e III, e principalmente cap. V. Nao ha nada a acrescentar as conclusoes a que chegam esses autores, fora alguma pe­quena ressalva: a respeito nao ranto do conteudo do que dizem quanta da total ausen­cia neles de qualquer abordagem historica da obra de Spinoza.

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52 Cf. infra, desde a rerceira parte deste capitulo, sobre a abertura da problema-rica da extin~ao do atributo.

53 Etica I, Defini'fao V (G., II, p. 45; P., p. 310). 54 Etica II, Defini~ao VI (G., II. p. 85; P., p. 355). 55 Etica II, Defini'fao I (G., II, p. 84; P., p. 354). 56 Etica II, Delini,.o II (G., II, p. 84; P., p. 354). 57 Etica II, Defini'fao VII (G., II, p. 85; P., p. 355). 58 Etica II, Axiomas I, IV e V (G., II, p. 85-86; P., p. 355-356). 59 Etica II, Axioma II (G., II, p. 85; P., p. 355). 60 Etica II, Axioma III (G., II, pp. 85-86; P., p. 356). 61 Etica II, Delini,6es III e IV (G., II, pp. 84-85; P., pp. 354-355). 62 Evidenremente nao pensamos nos enfronhar numa discussao relariva aos carac­

teres do pensamento utopico. No que me toea, tenho entreranto em mente a filosofia cririca da utopia elaborada por A. DOREN, "Wunschraume und Wunschzeite", in Vortrage der Bibliotek Warburg, Berlim, 1927; E. BLOCH, Thomas Munzer, theologien de la Rivolution, rrad. franc., nova edi~ao, Paris, 1975; e, naturalmente, HORKHEI­MER-ADORNO, La dialectique de la raison, trad. franc., Paris 1974. Para uma dis­cussao geral: Utopie, Begriff und Phanomen des Utopischen, organizado por A. NEU­SUSS, Neuwied-Berlim, 1968.

63 E. BLOCH, Le principe - esperance, trad. franc., Paris, 1976, viu bern que esse problema consriruia um momento importante do sisrema spinozisra, mas preferiu renunciar as inruic;6es que sua filosofia da esperan~a poderia permirir levar mais adian­te, para ligar aquele momenta de sfntese contradiroria presente em Spinoza a uma rra­di'fao inrerpretativa de forte colorac;ao hegeliana.

64 Claro que tenho em mente 0 comentario de M. GUEROULT, op. cit., t. II, a quem devo esta defini~ao da parre formada pelas treze primeiras Proposi~oes do Iivro II. Alem do comentario de L. ROBINSON, fundamental rambem, terei ainda consran­temenre no espfrito 0 comentario de GUEROULT ao analisar 0 resto do livro II (infra, terceira parte do cap. IV).

65 Etica II, Proposi,6es I e II (G., II, p. 86; P., pp. 356-357). 66 Etica II, Proposi'fao III, Escolio (G., II, pp. 87-88; P., p. 357). 67 Etica 11, ProposiC;ao V (G., II, p. 88; P., p. 358). 68 Etica II, Proposi,.o VII (G., II, p. 89; P., p. 359). 69 Etica II, Proposi~ao VII, Escolio (G., II, p. 90; P., p. 360). 70 Esta ideia de "replica" constitui principalmente 0 fio conduror da interprera­

'faO de Gueroult. Aqui come~amos a cririca a ela, mas voltaremos ao assunto a respeito da conclusao do livro II da Etica.

71 Tanto G. Deleuze quanta P. Macherey nos parecem esrar de acordo com isso. 72 Etica II, Proposi,.o IX (G., II, pp. 91-92; P., p. 362). 73 Etica II, Proposi,.o XI (G., II, p. 94; P., p. 365). 74 Etica II, Proposi'fao XI, Corolario (G., II, pp. 94-95; P., pp. 365-366). 75 Etica II, Proposi,.o XII (G., II, p. 96; P., p. 367). 76 Etica II, Proposi~ao XIII, Corolario (G., II, p. 96; P., p. 367). 77 Etica II, Proposi'fao XIII, Escolio (G., II, p. 96; P., p. 367). 78 Sobre esta Proposi'fao XIII, d., de uma maneira geral, M. GUEROUL T, op.

cit., t. II, p. 103-190; A. RIVAUD, "Physique de Spinoza", in Chronicum Spinozanum, IV, p. 24-57; S. VON DUNIN-BORKOWSKI, "Dien Physik Spinozas", in Septimana Spinozana, Haia, 1933. Em primeiro lugar, naruraimente, 0 arr. cit. de LtCRIVAIN.

79 Etica II, Proposi~ao XIII, Axiomas I e II (G., II, p. 97; P., p. 368).

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80 Etica II, Proposi~ao XIII, Carolatio do Lema III (G., II, p. 98; P., pp. 369.370). 81 Etica II, Proposi~ao XIII, Defini~ao (G., II, pp. 99-100; P., p. 371). 82 Erica II, Proposi<;ao XIII, Esc6lio do Lema VII (G., II, pp. IOI-102;P.,pp. 372-373). 83 E principalmente P. DI VONA (op. cit., p. 582)que insiste na presen~a de resi-

duos neoplatonicos na defini~ao do modo. 0 que e inteiramente pertinente. 84 Sabre a questao do mecanicismo e da interpreta'iao cartesiana do mecanicismo,

permito-me remerer as obras varias vezes mencionadas de Borkenau, assim como a meu Descartes politico. E necessaria lembrar, aiem disso, contra as interpreta~Oes de]. ELS­TER, op. cit. (em particular p. 33, 71-72 e passim), que e justamente em Spinoza que as duas grandes tensoes internas do mecanicismo (atomismo e vitalismo) chegam pela pri­meira vez a uma sintese. Descartes e Leibniz, representantes das duas orienta(joes opos­tas da epoca: tal e a visao de Elster. Que acrescenta que nao ha lugar para Spinoza nes­se confronto. Claro: Spinoza nao pode ser classificado no ambito especifico de urn con­fronto cultural determinado, pois seu pensamento se situa bern mais alem dessa pole­mica, seu pensamento esta calcado no movimento progressivo da realidade - do de­senvolvimento do capitalismo primeiramente, de seu antagonismo determinado em se­guida. Numa primeira fase, 0 pensamento de Spinoza assume com confian'Ja e de ma­neira mitica a plenitude da rela'Jao entre mecanicismo e conce~ao vitalista da poten­cia; numa segunda fase, Spinoza pressupoe essa unidade, que ele volta em dire/fio a urn processo de constituiljao. A especificidade do debate sobre 0 uso capitalista da ciencia, claramente analisada por Elster no que se refere ao seculo XVII, e ao meSrno tempo pres­suposta e ultrapassada pe10 "mecanicismo" spinozista.

85 Etica II, nota servindo de prefacio (G., II, p. 84; P., p. 354). Sobre 0 sentido e o alcance do projeto exposto nessa nota, d. M. GUEROULT, op. cit., t. II, p. 9.

110 Antonio Negri

Capitulo N A IDEOLOGIA E SUA CRISE

1. 0 SPINOZISMO COMO IDEOLOGIA

Na historia do pensamento politico moderno e contemporaneo, Spi­noza aparece, ou antes ressurge de vez em quando, como alguem que con­tribui para a fundac;iio (niio tanto - mas tam bern - do pensamento libe­ral ou do pensamento socialista quanto) da ideologia burguesa. Quero dizer ideologia burguesa enquanto a considero, para alem de suas formas su­cessivas de organiza\=ao politica, como 0 fundamento e a estrutura da ideia de mercado, essa mistifica~ao eficaz da organiza~ao social com vistas a produ~ao. Desse ponto de vista, poderiamos falar sem mais rebu\=os da tradi~ao spinozista como de urn verdadeiro componente constitutivo da ideologia capitalista: mas e melhor se mostrar rna is prudente, pois se e inegavel que elementos propriamente capitalistas estao incluidos na trans­posi~ao ideologica do pensamento de Spinoza, assim mesmo a fun~ao da ideologia e mais nuan\=ada e mais articulada.

Vimos que 0 projeto do circulo spinozista e a primeira camada da Etica sao representativos da utopia revolucionaria da burguesia. A matu­ridade e a anomalia do desenvolvimento dos Paises Baixos permitem que a utopia se de sob uma forma que, do ponto de vista da complexidade e da potencia, ultrapassa de longe todas as tentativas anteriores, sem dei­xar de se manter na esteira e repetindo a intensidade do pensamento hu­mano do Renascimento. A rede logica da utopia se estende sobre a deter­minac;iio da correspondencia entre totalidade e multiplicidade. A opC;iio decisiva - 0 Kunstwollen por assim dizer - que constitui a utopia fixa a correspondencia logica sob a forma de uma homologia ideal, de uma hipos­tase. Mas nao resolve 0 problema - pois, ate, os termos da correspon­dencia compreendem (como tentamos demonstrar) tendencias totalitarias, implicam a potencialidade de uma oposi\=ao absoluta, acima da extre­mizac;iio do horizonte da totalidade e do radicalismo da multiplicidade. A utopia e transgredida, mesmo se sua for\=a the vern dessa transgressao. De modo que toda media~ao organizadora e cancelada, e a tematica neoplato­nica, de qualifica<;ao hierarquica do processo, se extingue. De modo que, por outro lado, a utopia se encontra exposta a uma verifica~ao, interna e externa, de sua propria efetividade e, na tensao absoluta que a constitui, compreende em sl mesma e alude a potencia de sua propria nega~ao e de sua propria superac;iio (de qualquer modo, niio dialetica!).

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A ideologia anula tudo isso. A utopia spinozista e assumida exatamente por aquilo que ela nega: representam-na como modelo de organizac;ao1.

Aquela correspondencia antagonfstlca do real que em Spinoza cresce cada vez mais ate se fixar como enigma da homologia da totalidade, para depois se reabrir necessariamente a verificac;ao do real, a dissolu~ao pratica do enigma - aquela mesma correspondencia hom610ga e enigmMica e assu­mida como valor. Como criterio de valida~ao, como figura de organiza~ao. E a ideia de mercado. De urn horizonte real que interpreta 0 milagre da transforma~ao das for~as produtivas em rela~oes de produ~ao determina­das, dos vfnculos de organiza~ao em rela~oes de comando, das singulari­dades e liberdades em totalidades e necessidades, da materia em valor. Esse horizonte e a troca: nao uma troca versa til e livre, como a descrita pelo ser meca,nico de Spinoza, mas uma troca como valor, como hierarquia, como comando - tal e a ser descrito pelo spinozismo. 0 determinismo se coloca sob 0 signo da media<;ao: do trabalho da multiplicidade ao valor da totali­dade. E sobre esta ideia de mercado, da mistifica~ao das rela~oes reais con­tida nesta ideia, que se organiza a ideologia pantefsta da tradi~ao spinozista: a esperan<;a humana ligada a atividade de produ<;ao fica entao fechada e abafada no ambito estreito do dominio do valor. E, a partir dessa ideia, se desenvolvem as ideologias que mistificam a liberdade - como determina­~ao individual agindo sobre 0 mercado - inscrevendo-a na generalidade necessaria a funda~ao do poder politic02• Novo nivel da media~ao, nova formula<;ao do enigma da dissolw;ao da individualidade na totalidade. 0 paradoxo da potentia e da potestas, da potencia humana contra 0 poder do absoluto - e portamo contra 0 absoluro polftico do poder -, e inter­pretado de maneira linear, segundo vfnculos de homologia. A revolw,;;ao bur­guesa, como forma politica adequada da revoluc;ao social imposta pelo de­senvolvimento do capitalismo, assume 0 spinozismo, a ideologia da homo­logia entre individualidade e generalidade, liberdade e necessidade, traba­lho e valor, como uma mistificac;ao sobre a qual se basear.

Naturalmente, e preciso relembrar novamente aqui outro elemento extrema mente importante na constituic;ao da ideologia burguesa: 0 pen­samento de Hobbes. No fil6sofo ingles, a forma imediatamente politica da exigencia de apropriac;ao capitalista esta traduzida com perfeic;ao nos termos da tradi~ao contratualista. A rela~ao e a hierarquia entre contrato de uniao e contrato de sujei~ao - ou seja, entre organizac;ao e explora­~ao, entre valor e mais-valia - sao pelo menos tao enigmaticas, se nos atemos a considerac;oes puramente te6ricas, quanta a feliz explosao da ideia de mercado em Spinoza. Nao e por acaso que ha querelas sem fim dos historiadores a esse respeito: 0 que e 0 contrato hobbesiano? contraro de uniao, contraro de sujeic;ao ou contrato a favor de terceiros? equal e a natureza da obrigac;ao decorrente dele? E 0 fundamento da normatividade:

112 Antonio Negri

e urn puro dever ser, fundado sobre a divindade (e entao Hobbes e ou nao e ateu?), ou ao contrario urn criteria positivista? Etc., etc.3 No entanro as contemporaneos nao tinham duvida alguma, e nao reduziam Hobbes nem a urn doctor subtilius, nem a urn continuador do contratualismo medie­val. Realmente, nao e muito diffcil ver em seu sistema 0 fundamento de uma ciencia - apologetica, se quisermos, mas funcional e tecnicamente adequada - para a construc;ao de uma imagem capitalista do poder e do Estado. Em Spinoza a coisa e diferente: 0 Spinoza real, e nao 0 da ideolo­gia, ataca e supera justamente as conexoes da definic;ao hobbesiana do poder, e torna a analisar sua genese, para demonstrar sua inconclusividade atual, a contradic;ao representada por urn eventual fechamento do siste­ma (efetivo em Hobbes), e a possibilidade, ao contrario, de abrir 0 ritmo constitutivo para uma filosofia do porvir. Ora, 0 spinozismo e 0 esqueci­mento e a destruic;ao dessa abordagem de Spinoza: no lugar disso, ele com­bina a definic;ao cientffica, mistificada, mas eficaz, de Hobbes, e a ideolo­gia - a ideologia da sintese espontanea e automatica do singular e da to­tali dade, pretensamente extraida da parte metaffsica da Etica.

Rousseau esta no centro dessa operac;ao. A literatura tern frequen­temente mencionado as diversas e possantes influencias exercidas pelo pensamento de Spinoza sobre 0 de Rousseau4. De fato, nao se pode pen­sar nem a propria ideia de vontade geral como base das ideias modernas de soberania, de validade juridica e de funda,ao democratico-liberal do Estado, se nao se conjugam 0 paradoxo rousseauniano da vontade geral e o paradoxo spinozista do ser. A substancia spinozista e a filigrana metaff­sica do conceito rousseauniano de vontade geral. Mas nao e suficiente fi­car nesta facil e feliz aproximac;ao hist6rica. Com efeiro, como e sabido, a ideia de vontade geral e talvez mais importante para a hist6ria da metafi­sica que para a da teoria moderna e contemporanea do Estados. Efetiva­mente, ela representa 0 esquema genea16gico da formac;ao da concepc;ao dialetica do absoluto. Da ideia kantiana de comunidade humana6 a dis­cussao entre Jacobi e Mendelssohn7, ate a abstra<;ao schellinguiana do ab­soluto e a sua reduc;ao dialetica em Hegel, sao sempre a feliz linearidade e a transcri,ao da singularidade na totalidade que regem 0 quadro filos6fi­co e 0 mistificam de maneira funcional- sem deixar de the conceder uma aparencia de humanidade8. A burguesia sempre viveu sua rela~ao com 0

Estado como uma laboriosa media~ao, a historia da acumulac;ao primiti­va e a historia de uma mediac;ao politica, e a infelicidade da consciencia burguesa e sua indeterminidade critica nascem com iss09. Ora, entre von­tade geral e absoluto hegeliano se cumpre a transfigura<;ao do trabalho para a totalidade da media<;ao politica: urn argumento ontologico para a poli­tica, para 0 Estado. A mediac;ao e imediata. Nao no sentido de uma pon­tualidade e de uma simultaneidade (urn tiro de pistola, diria Hegel): nao,

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nao neste sentido - mas porque, qualquer que seja 0 sistema complexo ~ da media~ao, ela se desenrola sobre urn terreno ontologico unitario, con­tinuo e homogeneo. 0 mecanismo da nega~ao constr6i 0 ser: «omnis deter­minatio est negatio", e vice-versa. Nao ha mais resistencias a domina~ao da burguesia: 0 absoluto spinozista interpreta sua hegemonia. 0 enigma do mercado se apresenta e se imp6e entao como lei luminosa do funcio­namento das categorias juridicas e eticas. A burguesia pode considerar 0

Estado, gra~as a esta transforma~ao juridica e polftica, como sua emana­~ao direta. A anula~ao do mundo real, sua duplicaC;ao numa imagem juri­dica e polftica: este e 0 efeito dessa opera~ao, este e 0 conteudo maci~o que faz a imporraocia do spinozismo como ideologia. Sem Spinoza, sem essa redu~ao ideol6gica de seu pensamento, sem 0 totalitarismo extremista que dela decorre, e ate dificil pensar a ditadura juridica e politica do jacobi­nismo, essa heran~a revolucionaria tao cara a burguesia10!

Mas nao basta. 0 spinozismo como ideologia chegou tao longe que ele torna impossive1, ou ao menos extremamente dificil, 0 simples fato de pensar urn horizonte polftico de outro modo que como urn horizonte de media~ao. Nao somente a ideia de mercado, mas tam bern a ideia de crise do mercado, estao subordinadas a media~ao interna do ser, a prefiguraC;ao panteista. Suponhamos com efeito que a correspondencia e a homologia dos componentes do mercado sejam contestadas, que desapare~a a espontanei­dade da relac;ao: a imagina~ao politica e filos6fica, porem, sabe apenas si­mular, diante da crise da ideia de mercado, novos projetos que - mesmo se os conteudos mudam - conservam a forma da organizac;ao e da subor­dina,iio, da identidade e da homologia do poder! A espontaneidade da sin­tese se op6e seu carater voluntario, a anarquia ordenada por leis invisiveis, a ordem visivel do plano!!. Nova alternativa: a propria ordem do plano pode se romper contra uma realidade mais rica e mais antagonistica. Na pers­pectiva do spinozismo, segue-se a isso, de toda mane ira, a necessidade de recompor a unidade: a unidade como projeto - a forma pura repete 0 axioma da homologia! Ate as filosofias da Krisis seguem a logica do spinozismo. Nao se da libera~ao fora da totalidade, repete urn pensamento que, ainda na reversao formal da crise, simula 0 adagio chissico: correspondencia en­tre individuo e universo, comando do universal. Vma imagem de vida so­cial, assim como uma imagem do desenvolvimento da ciencia, que nao fos­sem centradas, uma sobre a ideia de poder, outra sobre a ideia de totalida­de, seriam impensoiveis. A liberdade da potentia e sua irredutibilidade ao processo dialetico da media~ao sao, dentro do spinozisniO, dentro da ideo­logia de mercado, dentro do totalitarismo da ciencia, impossiveis. Assim Spinoza - aquele Spinoza mutilado e traduzido em spinozismo - e redu­zido a Rousseau; e, novamente, ate Marx (e a descoberta da luta de classes como fundamento da crise do mercado) e reconduzido e massacrado em

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Rousseau; e 0 pr6prio Rousseau e retalhado na dura materia da necessida­de capitalfstica da mistifica~ao da potentia em potestas12•

Anulac;ao do pensamento de Spinoza, foi dito - e, em particular, anu­la,iio da potencialidade de antagonismo contida em seu pensamento pelos elementos da utopia, tam bern e sobretudo na fase em que a utopia trjunfa. Potencialidade de antagonismo dos componentes: em Spinoza 0 real niio e manipuIave1, nao e dialetizave1, nao e pIastico diante de manobra te6rica alguma - sua versatilidade nao e diaU:tica, a determinaC;ao e nega~ao no sentido proprio, aqui e agora, niio possibilidade nem atualidade de alguma reviravolta logica. 0 pensamento de Spinoza nao e pensamento do ser se­nao depois de se ter fixado como pensamento ontol6gico, do enraizamento ontoi6gico, material, coisa1. 0 horizonte spinozista nao conhece hipotese de vazio, de possibilidade abstrata, de formalismo; e uma filosofia do ple­no, da estabilidade material da posi,iio, da determinidade, da paixiio. Ideo­logizar a utopia spinozista, transforma-Ia em constante do pensamento bur­gues s6 e possive1 onde 0 pleno da concepc;ao spinozista da coisa, das coi­sas, da modalidade e da substancia seja limado, raspado ate se reduzir a sombra, duplica,iio da realidade - e niio realidade verdadeira e imediata. Na Proposi,iio XIII do livro II, que acabamos de estudar, essa materialidade da coisa esta justamente expressa de maneira tao radical que s6 a forma da argumenta,ao paradoxal permite the dar sentido. 0 pleno: ou seja, 0 cara­ter s6lido, determinado, inapagavei de qualquer emergencia existencial. Do outro lado, a ideologia do spinozismo qlier a afirmac;ao de urn horizonte ideal e absoluto, sintese politica da soberania (como identidade do Estado), media~ao. Poderia ele jamais imaginar isso, 0 Spinoza que temos diante de nos, ja mergulhado na crise da utopia e que, nas cartas a Oldenburg de 1663, se mostra de tal modo condicionado por sua afirmac;ao da determinidade ontologica do singular e da dinamica da totalidade, que chega ate (com precipitac;ao, com excessiva precipitac;ao) a refutar qualquer verossimilhanc;a a hip6tese do vacuo fisieo em qualquer forma, contra as tentativas experi­mentais de Boyle - mas isso para dizer, sem arrependimento algum: deter­minidade de toda dimensao metafisica 13?

2. SPINOZA BARROCO?

Hoi entretanto urn ponto no qual Spinoza parece aderir ao spinozismo, e propagar uma versao ideol6gica do sistema. Podemos situar esse momento no ultimo pedodo de Rijnsburg, entre 1663 e 1664. Na verdade, as datas nao significam grande coisa: sem duvida a crise holandesa ja come~ou, e a segunda guerra de navegac;ao com a Inglaterra esta-se aproximando, sobrecarregando a crise com pesadas implicac;6es externas14• Mas a par-

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ticipa\=ao de Spinoza na vida polftica ainda nao e direta, contrariamente ao que acontecera depois da transferencia para Voorburg (1664). Entre­tanto, sao significativas as razoes do abandono de Rijnsburg: terminou 0

periodo de reflexao consecutivo a expulsao da Sinagoga, 0 periodo de sis­tematiza\=ao da utopia spinozista; a transferencia de Rijnsburg para Voor­burg significa a necessidade de se por numa situa\=ao em que seja possivel a verifica\=ao da utopia na realidade, de encontrar urn ambiente em que 0

conhecimento e a adesao ao espirito objetivo da epoca fossem diretos. Tal e 0 conteudo da escolha de Voorburg15 . Mas aqui temos a considerar so­mente a situa\=ao na qual a decisao da transferencia amadurece, e a condi­\=ao teorica na qual ela se determina: por assim dizer, devemos esclarecer a necessidade dessa contingencia.

o ponto rna is alto da primeira camada da Etica e sem duvida a Pro­posi\=ao XIII do livro II. A contraposi\=ao da substancia e do modo, com efeito, se da a urn nivel tao absoluto e de tanta tensao que a reversao do horizonte da substancia sobre a superffcie da modalidade, e vice-versa, se encontra a cada trecho. Neste momento a versatilidade originaria do ser se fez fragilidade de suas dire\=oes. Nao ha op\=ao de eminencia sobre esse £luxo de univocidade: ha uma insistencia sobre a determinidade dessa po­laridade, mas tambem uma possibilidade de inversao, de reversao. 0 sis­tema vive de urn equilibrio instavel que e a ultima possibilidade de unida­de interna da utopia, la onde seus componentes tiverem sido avaliados de maneira realista. Em sua urgencia em defrontar com 0 real, em rearticular a determina\=ao ontol6gica dos componentes, em evidenciar a chave pra­tica do sistema, para alem da possibilidade abstrata da complexa reversi­bilidade dos fatores, a teoria entao procura uma solu\=ao. Claro que 0 sis­tema poderia, tam bern, se organizar sobre essa fragilidade, e mante-Ia em sua simples transvalora\=ao, e Ihe impor uma tensao absoluta de supera­c;ao - que fosse, entretanto, somente pensada, mediac;ao ideal do para­doxo como tal, de sua consistencia e somente dela. Tal e a imagem que 0

barroco da da realidade - e essa e uma fortissima tendencia da epoca 16.

"Ayer deidad humana, hoy poca tierra;! aras ayer, hoy tumulo oh mortales!! Plumas, aunque de aguilas reales,! plumas son: quien 10 ignora, mucho yerra. ,,17 Mas mesmo se ha em Spinoza lugar para a cultura espanhola 18,

a cultura holandesa esta bern alem, com seu cheiro de piche e de ac;o. E Spinoza tam bern: e mais possivel ouvir-se nele, para ficarmos na poesia espanhola que realmente 0 influencia, sintonia e ressonancia dos cantos renascentistas sobre a natura naturans de Lope de Vega ou Francisco de Quevedo l9. Mas se isto e certo em geral, se cada vez mais 0 verificamos ao longo do desenvolvimento do sistema, nao deixa de ser verdade que -a guisa de conclusao da prime ira redac;ao da Etica -, estamos assistindo a urn momenta de grande instabilidade do projeto. Este e atraido, se nao

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dominado, tocado, se nao definitivarnente arrastado, por uma soluc;ao de tipo barroco, e de significac;ao ideol6gica.

Possuimos urn texto, a Carta XII a Ludwig Meyer, datada de 20 de abril de 166320 em Rijnsburg, que constitui a esse respeito urn documen­to da mais alta importancia. Documento barroco? Vejamos pois. "Entao para come~ar, procurarei responder as perguntas que me fazeis em vossas cartas. E ja que me interrogais quanto ao conceito de infinito, e com pra­zer que vos comunicarei meu pensamento sobre tal ponto.,,21 A analise sobre 0 infinito parte de uma definic;ao complexa que determina tres pa­res de not;oes: 1.1: "0 infinito por sua natureza, ou seja, em virtude de sua definic;ao" e 1.2: 0 infinito como "aquilo que nao tern limites, nao pela forc;a de sua essencia, mas pela sua causa"; 2.1 "0 infinito porque nao tern limites" e 2.2: 0 infinito como "aquilo cujas partes, mesmo estando com­preen did as entre urn maximo e urn mInimo conhecidos, nao podem entre­tanto ser fixadas e expressas com urn mimero"; 3.1: infinito como "aqui­la que s6 se pode entender, e nao imaginar" e 3.2: "aquilo que, ao contra­rio, tambem se pode imaginar"22. Se observarmos esta definic;ao, devemos imediatamente notar que 0 ponto 1.2, ou seja, 0 indefinido, se encontra especificado por 2.1 e 2.2: esses dois numeros, efetivamente, designam 0

indefinido como indefinido extensivo (que nao tern limites) e indefinido intensivo (indefinidamente subdivisivel). 0 par formado por 3.1 e 3.2 sera provisoriamente deixado de lado. Com efeito, e sobre os quatro primei­ros pontos que se faz inicialmente a pesquisa: a distinc;ao do infinito e do indefinido fica assim transportada para a distinc;ao entre substancia e modo, entre eternidade e durac;ao. Ate aqui estamos no terreno da Etica, da Pro­posic;ao XIII do livro II; infinito e indefinido, exatamente como substan­cia e modo, revelam a polaridade do mundo. A diferenc;a ontol6gica esta fixada, mas os termos da diferenc;a permanecem num horizonte absoluta­mente unfvoco. E oeste ponto que a instabilidade se rompe: 0 infinito es­sencial vern a tomar a forma do ser eminente face ao indefinido existen­cial. "Ve-se (de fato) c1aramente que concebemos a existencia da subst:in­cia de acordo com urn genero totalmente diferente daquele da existencia dos modos. E do qual nasce a diferenc;a entre a Eternidade e a Durac;ao. Por meio da durac;ao, na verdade, podemos explicar apenas a existencia dos modos; enquanto que a existencia da substancia se explica par meio da eternidade, que e fruic;ao infinita do existir (existendi) ou, com licenc;a dos latinistas, do ser (infinitam essendi fruitionem). De tudo isto resulta evidente que quando, como acontece com freqiiencia, consideramos a exis­tencia e a durac;ao dos modos em relac;ao exclusiva com sua essencia, e nao em relac;ao com a ordem natural, podemos 0 quanta quisermos determina­las e pensa-las maiores ou menores e ate dividi-Ias em partes, sem destruir o conceito que temos delas. Enquanto que a eternidade e a substancia, do

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~momento que nao se podem conceber senao como infinitas, nao podem se sujeitar a isso sem que ao mesmo tempo na~ seja destruido 0 respectivo conceito. "23 0 que acontece nesse texto? Acontece que uma diferen<;a gnoseol6gica, aquela entre 0 entendimento e a imagina<;ao, e a defini\ao da preeminancia do primeiro sobre a segunda - que emerge em 3.1 e 3.2 - intervem para sobredeterminar a distin\ao real. Rompeu-se a corres­pondencia instivel na qual se estabilizara a re!a<;ao entre ser substancial e ser modal: a maior dignidade ontologica do entendimento em re!a<;ao a imagina\ao reclassifica 0 ser, coloca a preeminencia do infinito em rela­<;ao ao indefinido, rompe a continuidade do fluxo univoco do ser - rein­troduz uma media\ao gnoseol6gica dentro de uma rela<;ao global, ate aqui construida atraves da nega<;ao de qualquer media<;ao (nem que seja, em si mesma, ontol6gica, como a exercida pelo atributo )24.

o infinito e 0 intelecto tentam sobredeterminar a utopia: apresentam­se como criterio de fixa<;ao do ser versatil que se movia em torno dos dois polos tendencialmente intercambiaveis sob 0 regime da utopia. Falamos entao de fun<;ao ideol6gica por uma razao fundamental: porque nesta du­plica<;ao do inte!ecto diante do mundo se determina uma imagem de exal­ta<;ao da substancia e de degrada<;ao do mundo que e de fato funcional para a estabiliza\ao de uma rela\ao de poder, para a determina<;ao de urn co­mando destacado do fluxo aberto e livre de auto-organiza<;ao do real. Todas as no<;oes que servem para descrever a realidade modal, como a medida, o tempo e 0 numero, sao reduzidas a urn nivel inferior, degradado, do ser, no limite do nada. Em compensa\ao, "ha muitas no\oes que nao se po­dem adquirir com a imagina\3.o, mas somente com 0 intelecto, como a substancia, a eternidade e simiiares; e se alguem procurar explicar tais no<;oes recorrendo aquelas que so servem para a imagina\ao, nao faz se­nao alimentar, ele mesmo, aquela imagina\ao que 0 leva a de1irar,,25.

Brutalmente, nesta carta sobre 0 infinito, fomos lan<;ados para 0 ter­reno do panteisrno rnais tradicional - para 0 terreno da prirneira ideolo­gia capitalista da acumula<;ao, que 0 neoplatonismo organiza de rnaneira adequada. E houve quem visse, no bloqueio da utopia spinozista, uma pre­figura<;3.o da fase historica em que 0 capitalisrno holandes estava prestes a entrar atraves da recessao do ultimo quarto de seculo: a fase do mercado financeiro - e 0 ser capitalista assim faz girar em torno de si, como plane­tas, clareando-os com sua pobre luz, os modos de produ<;ao e de trabalho. As categorias do ser parecem entao imitar as de uma rnercadoria muito especial, que e 0 dinheir026. Nao penso que se possam tirar tais consequen­cias dessa interrup<;ao do desenvolvimento do pensarnento do Spinoza -mesmo se elas se justificam sobre urn ponto preciso da analise. Em compen­sa\ao, penso que essa versao ideologica do ser seja uma variante passagei­ra de uma crise mais profunda, que 0 pensamento de Spinoza esta tentan-

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do superar. Spinoza barroco? Nao. 0 carater impossive! de captar da cri­se, na base da exacerba<;ao de seus termos, em que consiste propriamente o barroco, nao constitui uma dire<;ao do desenvolvimento do pensamento de Spinoza, mas apenas urn momento de estagna<;ao, urn sinal de passagem.

E entretanto necessaria ter em mente que a crise envolve 0 quadro inteiro da utopia inicial. Vma feliz utopia da correspondencia universal, exaltada pela espontaneidade do mercado e pe!a abertura do desenvolvi­mento: mas agora que aponta a crise social e que 0 horizonte perde suas tonalidades otimistas, a utopia tern de se abrir a realidade. As possibilida­des e tentativas neste ponto podem ser realmente indefinidas: e na~ e segu­ro que deem certo. Uma possibilidade nao deixa de ser a barroca, da trans­figura\ao dos propios termos da crise, Oll melhor, de sua transvalora\ao ideal. Outra e aquela que justamente Ludwig Meyer, destinatario da carta sobre o infinito e autor do prefacio dos Cogitata, certamente urn dos membros mais ativos do cireulo spinozista, termina adotando: 0 caminho da exalta~ao extremista do ideal utopico, de seu crescimento separado na comunidade crista, da exalta,ao milenarista. Na Philosophia S. Scripturae Interpres, 0

racionalismo mais extremo organiza a ideia biblica de libera<;ao - a natu­reza comanda a escritura para realiza-la27• Em ambos os casos, na solu<;ao barroca como na quiliastica, e a exacerha<;ao da utopia que vence. E 0 ca­rater impossivel de captar de urn quadro racional do mundo, caracterizado pela perfei\ao do ser e pela perfeita correspondencia de seus componentes, que na crise se estende drasticamente, ou na exibi<;ao fantastica de urn pro­jeto-drama de recomposi<;ao formal, ou na execu<;ao terrorista (racional­mente tal, mesmo se assume, sei la, uma figura de quaere) do projeto.

Spinoza atravessa a crise sem ceder aos extremismos para encontrar uma solu<;ao. Ou melhor, ele nao tenta sair dessa crise determinada con­servando intactos os dados do quadro teorico: ele questiona 0 quadro in­teiro. Breve verernos como. Quanto a carta sobre 0 infinito, representa apenas uma pausa, urn momenta extatico de reconstru<;ao da historia do projeto. Talvez uma experiencia de transvalora\ao barroca! Mas dai a falar de urn Spinoza barroco, e muito longe. Nao e por acaso que, no momento de en­cerrar a carta sobre 0 infinito, Spinoza volta, atraves da critica dos argu­mentos causais de demonstra<;ao da existencia de Deus, a alguns elementos constantes de seu pensamento. "Gostaria ainda de observar de passagem que os peripateticos modernos compreenderam mal, me parece, a demons­tra<;ao com a qual os antigos tentavam provar a existencia de Deus. Esta, de fato, tal como a encontro exposta por urn judeu de nome Rab Ghasdaj (Hasday Crescas), soa assim: se existe urn progresso das causas ao infinito, todas as coisas que sao, sao causadas; mas a nada daquilo que e causado cabe a existencia necessaria por for<;a de sua propria natureza; portanto nao ha nada na natureza a cuja essencia caiba necessariamente a existencia. Mas

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isto e absurdo, e portanto a premissa tambem. Porque a for~a do argumen­to nao esta no fato de que nao seja realmente possivel conceber 0 infinito urn ate ou urn progresso das causas ao infinito; mas somente no fato de que se supoe que as coisas que nao existem necessariamente por sua natureza nao sejam determinadas a existir por uma coisa que existe necessariamente por sua natureza. ,,28 0 que significa isto? Significa que a rela~ao causal nao pode ser concebida a partir de uma sua hipotetica liberdade, mas so de sua necessidade Certa. Mas, entao, que sentido tern conceber qualquer eminen­cia que seja na ordem do ser? Nao significa, este ataque a prova causal, exatamente 0 contrario daquilo a que a noc;ao de infinito terminava che­gando, ou seja, a intimac;ao da absoluta univocidade do ser? Nao, substan­cia e modo na~ se confrontam como realidade e irrealidade, como intelec­to e imaginac;ao. Nao se colocam em uma derivac;ao emanatista. Constituem antes uma polaridade. A crise consiste na descoberta da impossibilidade de uma mediac;ao linear e espontanea dessa polaridade. Justamente na crise da forc;a constitutiva, da interna tensao da propria utopia.

3. 0 LIMIAR cRinco

Por volta de 16640 projeto spinozista entao esta em crise. Uma ten­sao particularmente aguda, efetivamente, parece ter tornado conta do sis­tema - mas de maneira selvagem, pois essa tensao nao se apazigua na perspectiva de urn equilfbrio intra-sistematico, mas, ao contrario, se des­dobra para fora. Poderia 0 barroco ser uma soluC;ao? Nao, pois consiste apenas na fixac;ao hipostatica, na duplicac;ao ideal da patologia da rela­c;ao. 0 que e contraditorio com a exigencia humanista, com 0 realismo da primeira perspectiva utopica de Spinoza. Claro e que agora e impossivel uma pacificac;ao interna do sistema, a menos que se sacrifiquem a poten­cia e a deterrninidade de urn de seus palos: a pesquisa filosofica entao so pode, por assim dizer, indinar-se para fora. Mas 0 terreno proprio do novo projeto deve ser prefigurado, em sua abertura para fora, pela luta logica que se desenrola dentro do sistema. E essa insistencia na luta que afasta Spinoza de toda tentac;ao de hipostase, de idealismo, de barroco, inclusi­ve quando vern a se impor urn percurso que deixa de lado 0 terreno pro­blernatico cava do ate entao.

"A caracterfstica do panteismo de Spinoza reside no fato de que ele se revela ao mesmo tempo como a expressao de uma luta logica. ,,29 Vol­temos entao aos elementos da crise. A versatilidade do ser se bloqueou sobre uma dualidade, uma polaridade. Potencialmente, essa polaridade pode novamente se reverter e se tornar circulac;ao do ser - como vimos, e forte a tendencia para uma filosofia da superffcie, para uma reversao da con-

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cepc;ao da substancia sobre 0 nivel dos modos, para a constituic;ao de urn horizonte reahsta. Mas nao acontece. Muito pelo contnirio, rendencias opostas estao em campo - de reconfigurac;ao da emanac;ao, de nega~ao do proprio horizonte geometrico. Houve quem sustentasse que esse impasse se devia a urn limite "escolastico" do pensamento de Spinoza. "0 que e propriamente escoldstico nessa exposi~ao, nao e a imitac;ao do procedimen­to dernonstrativo da matematica, mas, ao contrario, 0 conteudo do con­ceito fundamental de que parte Spinoza. 0 conceito de substan..cia e por ele assumido sem mais e posto em primeiro plano, sem nenhuma tentati­va de crftica."30 Ora, prossegue Cassirer, esse conceito de subsdncia e indeterminado, e quando se procura captar seu conteudo, encontra-se ora "existencia", ora "totalidade" das determinac;oes particulares, "ordena­mento dos seres singulares": finalmente, a positividade do conceito de subs­t.lncia parece residir na dependencia matematica que as coisas estabelecem entre elas' de uma vez por todas31 . Entao, se existencia, totalidade e ima­nencia parecem ser as caracterfsticas essenciais da substancia, nem por isso o problema esta resolvido, nem mesmo se as entendemos numa ordem de importancia crescente do ponto de vista ontologico, po is esses elementos, de todo modo, nao estao colocados na subst.lncia de maneira determina­da. Mas outras contradic;oes se apresentam, se examinamos como as co i­sas vern-se produzindo a partir de sse conceito de subst.lncia. Com efeito, nunca se tern em Spinoza uma decisao entre do is pontos de vista: urn di­namico, segundo 0 qual a substancia e uma forc;a, 0 outro estatico, segun­do 0 qual a subsrancia e uma pura coordena~ao linear. "0 operari passa para 0 puro sequi matematico": os dois aspectos da filosofia de Spinoza, o naturalista renascentisra e 0 metodico matematico, se separam continua­mente32. Com tudo isto, em bora esbarrando em enormes dificuldades, Spinoza enriquece de maneira extraordinaria 0 conceito de substancia. Real­mente, se Spinoza nao leva a cabo a concepc;ao formal e matematica do ser que ele, entretanto, emrevira, e porque "os motivos da primeira coo­cepc;ao continuam a se fazer semir, e sao justameme eles que dao urn ca­rater novo ao proprio racionalismo maremarico". Em Spinoza, os concei­tos de substancia e de causa, depois de serem definidos geometricamente, se enchem com uma realidade nova: "a nova ffsica entreabre ao mesmo tempo 0 caminho de uma nova possibilidade de merafisica"33. E, para conduir, assim diz Cassirer: "A doutrina da infinidade dos atributos cons­titui uma das partes estruturais do sistema que rcsistem a esse processo de formac;ao. Ela caracteriza da maneira mais dara 0 comrasre, diante do qual o spinozismo para, e deve parar, em ultima analise, enquanto se esforc;a para exprimir oa forma do conceito de subst.lncia seu verdadeiro pensa­mento fundamental da rigida concatena~ao dedutiva de tudo 0 que e real. o dualismo de tal concep~ao agora se torna evidente: de urn lado encoo-

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tramos uma regra universal que se aplica a totalidade e exclui de si toda particularidade do real, de outro, uma "coisa de todas as coisas" que leva e conserva consigo a plenitude infinita de todas as propriedades; por urn lado, 0 puro pensamento de uma conexao necessaria de todas as proprie­dades, por outro, novamente, 0 Ens Realissimum da Escolastica"34.

Evocamos tao longamente esta leitura de Cassirer porque ela toca, cer­tamente, 0 problema fundamental da crise do pensamento de Spinoza: a luta 16gica que, dentro de uma tendencia inicialmente unitaria, as partes em cisao travam entre elas. E 0 registro do fim da utopia humanista, e a recep<;ao filos6fica de sua crise. Mas em Cassirer a importancia da percep<;ao crftica e prejudicada pela estreiteza e pelas ideias preconcebidas que presidem it sua interpreta<;ao, alem da generaliza<;ao metafisica indevida e da conota<;ao tradicional de sua exposi<;ao. Nao assinalar, por exemplo, 0 esgotamento da tematica do atributo, nesse ponto crucial da pesquisa spinozista, e (par­ticularmente) inacreditavel e mostra quanto poder mistificador possui a tradi<;ao interpretativa academica sobre os leitores mais inte1igentes! Ape­sar de tudo, 0 ponto e tocado. Mas na realidade 0 limiar crftico e atingido por Spinoza em termos bern mais especfficos, diante de urn problema bern mais determinado: 0 problema da mente, que e como que dizer 0 problema do homem e de seu conhecimento de beatitude, ou seja, 0 problema prati­co. Estamos novamente na primeira camada da Etica, no conjunto das Pro­posi,oes que se seguem it Proposi,ao XIII (livro II), isto e, que se seguem ao momento em que nos foi dada uma valora<;ao maxima e irredutfvel da ma­terialidade da existencia singular ou modal, e em que ao mesmo tempo foi anunciada pela primeira vez a possibilidade de urn processo de constitui­<;ao do ser a partir da modalidade. Se isto e certo, era inevitavel que se par­tissem aqui, com forc;a furiosa, quase em vagas sucessivas, as permanencias de uma antiga mas sempre renovada concep<;ao espiritual da mente, do pen­samento, do homem. A emergencia da modalidade material, singular, e de sua for<;a de existencia, e de sua perspectiva constitutiva, havia sido evidente demais para que essa emergencia nao aparecesse como escandalosa e deses­tabilizadora. E entao, contra essa afirmac;ao, repetem-se motivos do Curto tratado e do TRE. E uma grande, uma derradeira reivindica<;ao de huma­nismo utopista, que percorre 0 livro II da Etica - mas que nesse espac;o sistematico ja esta ultrapassada, como veremos.

Vejamos esse trajeto de perto. Temos inicialmente urn grupo de Pro­posi,oes (XIV-XXIII) nas quais se desenvolve a dedu,ao da imagina,a035. Ou seja, essa descri<;ao da singularidade material transforma em prime ira forma de conhecimento a sfntese de corpo e mente na qual termina 0 me­canismo de autoconstituic;ao material. E uma experiencia exaltante que se realiza aqui: 0 pensamento vive as afec<;6es do ser na individualidade de­las e as transforma em ideia. Ideia confusa e no entanto real: alargamento

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dos espa<;os de conhecimento diante do conhecimento simplesmente ver­dadeiro, base e projeto para urn processo cognitivo e operativo no mundo das paixoes, definitivo fechamento de todo "caminho para baixo" (do absoluto aos modos) e alusao a urn "caminho para cima", constitutivo. Nas Proposi,oes seguintes (XXIV-XXXI)36, esse genero de conhecimento se desdobra exaustivamente. 0 conhecimento imaginativo vive as afec<;oes do corpo, da exterioridade, da dura<;ao, seguindo fenomenologicamente sua intensidade e dureza. A individualidade se fixa sobre si mesma na medida em que percorre 0 mundo real.

Mas eis que essa formidavel experiencia, a que todo 0 desenvolvimento anterior nos trouxera, torna-se novamente uma especie de fundo, simples claro-escuro de momentos eminentes de conhecimento intelectual puro. Tinha havido de fato urn momento em que a individualidade, a singulari­dade haviam emergido como tais: 0 conhecimento confuso - mas real­era 0 indicio da consistencia ontol6gica delas. 0 feixe das imagens, dos conhecimentos confusos, nao destruia, mas antes vinha constituindo 0 ponto de apoio ontol6gico da singularidade. "Digo expressamente que a Mente nao tern nem de si, nem de seu Corpo, nem dos corpos exteriores, urn co­nhecimento adequado, mas apenas urn conhecimento confuso e mutilado cada vez que percebe que as coisas segundo a ordem comum da Natureza, isto e, cada vez que e determinada do exterior, isto e, pelo encontro fortui­to das coisas, a considerar isto ou aquilo, e na~ cada vez que e determinada do interior, isto e, pelo fato de que considera varias coisas simultaneamen­te, a conhecer as concordancias entre elas, as diferen<;as e as oposi<;6es; cada vez, de fato, que ela esta disposta interiormente deste ou daquele modo, entao contempla as coisas clara e distintamente, como mostrarei mais adiante. "37

Mas agora 0 peso da tradic;ao, 0 idealismo sinuoso e insidioso do TRE, os pr6prios desequilfbrios do livro I da Etica, reaparecem com for<;a (sobretu­do nas Proposi,6es XXXII-XLIV do livro II). 0 conhecimento inadequa­do esta a borda da irrealidade. Nao e a intensidade do contata ontol6gico, mas urn ritmo progressivo de degrada<;ao do ser que fixa 0 sentido da ver­dade. A falsidade e privac;io na ordem do ser. Desse modo, 0 mundo nao e apenas duplicado cognitivamente em urn horizonte real e urn horizonte da representac;ao, mas e organizado segundo uma ordem descendente de valores de verdade. Realmente todos os enigmas do pantefsmo, realmente uma absurda (em termos spinozistas) concepc;ao da verdade - que e, por assim, dizer, duplicada duas vezes, a primeira numa ordem idealista em rela<;ao ao real, depois em uma hierarquia fluente da verdade ideaJ38. De­pois de terem sido colocados no plano do ser univoco, imaginac;ao e inte­lecto sao submetidos a uma classifica<;ao idealista. Eo processo ja indica­do na Carta XII. Mas aqui, na Etica, outras cartas ja haviam side lam;adas: essa inversao, quando nao seja urn ultimo ato de resistencia a urn processo

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amea~ador, aparece como uma intriga do intelecto. Consequentemente, 0

sistema nao consegue se por em equilfbrio: antes, se precipita numa serie de contradi~oes. As mais evidentes sao as registradas nas partes mais pro­priamente epistemo16gicas dessa discussao onde, sem ver nisso nenhuma con­tradi~ao, Spinoza coloca ao mesmo tempo urn conhecimento nominalista (fixado sobre a experiencia do mundo) e urn conhecimento apodftico, co­loca ao mesmo tempo uma crftica radical dos transcendentais e uma abor­dagem cognitiva "verdadeira" que, ao contrario, suhstancialmente os re­pete39. Se "0 que e comum a todas as coisas e se encontra igualmente na parte e no todo nao constitui a essencia de nenhuma coisa singular,,4o, se por outro Iado conhecemos atraves de no,aes comuns que niio tern nada a ver com os transcendentais do ser41 , entao a pretensao de uma hierarquia de formas de conhecimento e puramente ilusoria e contraditoria.

Vemos assim concretizada e definida de maneira determinada a grande contradi~ao historico-teorica captada por Cassirer. Mas percebe-la de ma­neira determinada nos da uma vantagem em rela~ao a Cassirer - a de com­preender que afinal essa contradi~ao nao e assim tao decisiva. 0 labirinto que se determinou na verdade e muito menos intrincado do que se poderia pensar. Afloram, e certo, as grandes determina~oes do metodo e da concep~ao do mundo, mas na realidade se concentram sobre a ambiguidade suhstan­cia-modo, essencialmente sobre ela. E urn complexo antinomico que, como ressalta Dunin-Borkowski,42 coloca uma antitese extrema: "Ou s6 os modos ou so a substancia, ou so 0 intelecto como faculdade ou s6 urn sistema de ideias "43. E no entanto esse complexo antinomico, no fim das contas, e ar­rastado para urn terreno de operatividade problemarica, pois no mesmo momento em que e colocado com tal extremismo, a tensao, por assim di­zer, cai, e da lugar aos elementos estruturais do projeto.

Luta logica-labirinto-limiar crhico. Estamos entao no ponto. ja as ultimas Proposi'roes do livro II abordam 0 problema, desfazem alusivamente o complexo antinomico, propoem uma solu~ao. 0 conhecimento como intui'rao, edisto que se trata: e na~ mais de uma concordancia formal, de uma sfntese entre todo e partes, de urn esbo~o da utopia. "E proprio a na­tureza da Razao perceber as coisas sob urn certo aspecto de eternidade. "44 "Sub quadam aeternitatis specie,,4S: para come~ar. Todas as coisas: "Cada ideia de urn corpo qualquer, ou de uma coisa qualquer existente em ato, envolve necessariamente a essencia eterna e infinita de Deus. "46 E, caso na~ esteja suficientemente claro 0 assunto, assim 0 comenta 0 Escolio: "Nao entendo aqui por existencia a dura~ao, ou seja, a existencia enquanto e concebida abstratamente e como uma certa especie de quantidade. Falo da propria natureza da existencia, que e atribufda as coisas singulares pelo fato de que, pela eterna necessidade da natureza de Deus, seguem-se infinitas coisas em infinitos modos. Falo, repito, da propria existencia das coisas

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singulares enquanto estao em Deus. Pois, embora cada uma seja determi­nada a existir de certa maneira por outra coisa singular, entretanto a for~a pela qual cada uma persevera na existencia segue-se da necessidade eterna da natureza de Deus,,47. Em outras palavras, atraves daquela forma supe­rior de conhecimento que se determina em torno da identidade ontol6gica das coisas, 0 absoluto divino e atribufdo ao mundo, revelado para 0 mun­do, em sua pluralidade singular. Eque esta 56 possa ser a solu,ao do problema e demonstrado pela continua~ao da argumenta~ao de Spinoza48: a singu­laridade e livre. A liberdade e a forma do ser singular. A identidade do ser singular e sua natureza pratica. A necessidade nao e contraditoria com a liberdade, e somente sinal do absoluto ontologico da Iiberdade. A necessidade nao retira a singularidade do mundo, arrancando-a para 0 absoluto, ao con­trario, ela devolve essa singularidade ao mundo, fundamenta-a e a sobre­determina em termos de absoluto. No Escolio da Proposi~iio XLIX49, com que se termina 0 livro II da Etica, polemizando vivamente contra todas as teorias do livre-arbftrio, Spinoza aprofunda de maneira extraordinariamente eficaz sua teoria da liberdade. A liberdade e a forma da singularidade do homem, enquanto essencia pratica da mente, enquanto capacidade de cons­truir 0 ser. A mente e a vontade, a intui~ao e a liberdade sao a solu~ao de toda antinomia do absoluto e varrem ate as pr6prias condi'roes deste, colo­cando a genese do ser absoluto sobre 0 "operari" da modalidade: "sub qua­dam aeternitatis specie". A antinomia entao nao e "superada", ela e trans­bordada, revertida, no horizonte de uma fenomenologia operativa.

A autocrftica spinozista da utopia produzida no periodo inicial da propria filosofia chega assim aos primeiros resultados. Neste limiar cdti­co se propoe, pura e simplesmente, uma refunda'rao metaffsica do siste­ma. Atraves de uma passagem ontologica que consistiu, em primeiro lu­gar, em por em crise 0 processo genealogico (da essencia) a partir da subs­tancia que a dinamica dos atributos assegurava, em segundo lugar, em por em crise 0 processo de produ'rao das coisas a partir das essencias que no­vamente os atributos promoviam. 0 "caminho para baixo" que assim to­mara forma nao resiste aos resultados do processo de constitui'rao, sofre uma heterogenese dos fins. Porque, na verdade, 0 efeito do "caminho para baixo" nao e a organiza'rao do infinito, mas 0 paradoxo do mundo, 0 dua­lismo da substancia e do modo. Podia-se determinar, neste ponto, urn tra­jeto filosofico em tudo semelhante ao que outras filosofias da epoca - a maior parte, no ambito do racionalismo cartesiano - percorrem: e, ao contnirio, determina-se urn saito logico de enorme alcance. Confrontado ao dualismo, Spinoza nao 0 hipostasia nem 0 mediatiza, mas reverte 0

absoluto divino sobre 0 mundo dos modosso. A sintese, se houver, haveni sobre a realidade singular e plural dos modos. 0 "caminho para baixo" se revela ser pars destruens de toda metafisica da emana'rao, de toda uto-

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pia renascentista. Do ponto de vista da ideologia, e a indistin~ao do mun­do capitalista e sua tradu~ao reformista proposta pelas filosofias do racio­~ nalismo cartesiano que sao aqui atacadas e destrufdas. As antinomias do mercado e do valor saltam ao primeiro plano: contra elas, a infinita pro­dutividade do trabalho humano procura uma nova organizac;a051 .

Nao e entao por acaso que urn acontecimento biogrcifico, a passa­gem de Rijnsburg para Voorburg, ganha aqui uma significa,ao de ordem geral. Efetivamente, a ruptura do sistema, a nova base metaffsiea caracte­rizada como limiar cdtieo do passado, implieam uma interrup~ao efetiva, uma cesura real do desenvolvimento filosofico. Reconstruir urn horizonte geral que mantenha e desenvolva a densidade ontologica do modo, a po­tencia do mundo, implica uma serie de instrumentos fenomenol6gicos in­teiramente novos. A filosofia do mundo, a ffsica do modo, para produzi­rem uma nova metaffsica, tern de se inserir no mundo, avaliar e exaltar a eticidade do modo singular e plural. Insistir sobre a eticidade do modo significa percorrer sua fenomenologia. Depois do desenvolvimento de uma pars destruens tao radical, depois da identifica~ao de urn solido ponto de apoio a partir do qual reabrir a perspectiva metaffsica, a elabora~ao da pars construens requeria urn momento prcitico. A etica nao podia se constituir em projeto, em metaffsica do modo e da realidade se nao se inseria na his­toria, na polftica, na fenomenologia da vida singular e coletiva: se nao ti­rava desta urn novo alimento. Tinha de percorrer 0 mundo da imagina­~ao e das paix6es para dele fazer a materia e a for~a constitutiva da re­constru,ao do mundo. 0 horizonte ontologico produzido pelo desenvol­vimento cdtico da primeira camada da Etica deve agora encontrar uma materialidade dinamica sobre a qual desdobrar sua propria for,a. Desse ponto de vista, nao e de espantar que, no meio da elabora~ao da Etica, Spinoza deixe tudo de lado e come,e 0 trabalho politico (pois a critica bfblica e teologica, na epoca, e imediatamente politica)! Alguns comen­tadores percebem a centralidade do trabalho politico de Spinoza52: mas e sua centralidade ontologica, estou dizendo ontologica, que e de se notar. E no entanto tudo 0 que aconteceu ate aqui conduz a esse resultado: 0

desenvolvimento da analise metaffsica, a critica interna da ideologia, a iden­tifica~ao do limiar cdtico do sistema na emergencia da irredutfvel eticidade do modo. Agora e a hist6ria que deve refundar a ontoiogia, ou - se qui­sermos - e a ontologia que deve se diluir na eticidade e na historicidade para se tornar ontologia constitutiva. A hist6ria e a politica: "Esta doutri­na (efetivamente) e bastante util a sociedade com urn, pois ensina de que modo os cidadaos devem ser governados e dirigidos, isto e, nao para que sirvam de escravos, mas para que cumpram livremente 0 que e melhor"53.

Resta urn ultimissimo ponto. E 0 carater seivagem, ate mesmo dessa interrup~ao do ritmo metaffsico. A potencia da reversao ontologica, a

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determinac;ao da eminencia do mundo, a insistencia da eticidade como forc;a constitutiva, tern na verdade tal violencia interna de decisao e uma forma tao total que tornam a Figura do conjunto do pensamento de Spinoza im­possivel de relacionar com a serena moderac;ao do pensamento da epoca. Uma qualquer coisa de desproporcionado e sobre-humano. Urn desenro­lar selvagem. Nao fac;o questa:o de acentuar novamente as caracteristicas materiais, historicas desse comportamento. Mas, por Deus, que isso fique em mente: de outro modo, tornam-se incompreensfveis 0 dilacera,mento, a ferida, a tra~ao que Spinoza imp6e a historia do pensamento ocidental. E tambem a esperanc;a.

NOTAS

1 T ais sao os efeitos, sobretudo na Fran~a, dos progressos do conhecimento do sistema spinozista antes da Revolu~ao. Sobre isso tudo, ver 0 livro de Verniere ja men­cionado. Cf. tambem C. SIGNORILE, op. cit., que, sem deixar de seguir 0 fio do dis­curso de Verniere, 0 enriquece de maneira bastante substancial com suas analises histo­ricas. Talvez retomando certas sugestoes de F. MELI (op. cit.), Signorile insiste nas re­la~oes do spinozismo com 0 cleismo ingles, e mais particularmente com Toland. T odas essas analises refor~am a ideia do spinozismo como imagem ideologica: a de urn mode-10 de pensamento certamente revolucionario, mas esdtico, fixado e bloqueado. Esque­ma de uma alternativa puramente ideologica, puramente pensada, e nao projeto opera­torio e constitutivo. Pode-se entretanto notar, em Meli, uma certa sensibilidade para a abertura de urn discurso aberto sobre 0 spinozismo: 0 que, para mim, se cleve essencial­mente a continuidade observada por Meli entre as posi~oes de Spinoza e as dos refor­madores religiosos italianos, e mais particularmente socinianos.

2 Seria igualmente necessario evocar aqui, mas voltaremos a isso longamente mais adiante, a corrente dos interpretes liberais do pensamento de Spinoza, de L. ADELPHE, De La notion de la souverainete dans la politique de Spinoza, Nancy, 1910, a L.S. FEUER, Spinoza and the Rise of Liberalism, Boston, 1958. E, recentemente, B. BARRET-KRIE­

GEL, L'Etat et les esclaves, Paris, 1979. 3 Mais uma vez, remeto evidentemente ao Iivro de C. B. Macperson, varias vezes

mencionado: encontra-se ai urn abundante comentario da literatura teorica a respeito de Hobbes. Ver tambem A. NEGRI Descartes politico, p. 149 sq.

4 Cf. sobretudo R. Derathe, Rousseau et fa science politique de sons temps, Paris, 1950; R. DE LACCARIERE, Etudes sur fa theorie democratique, Spinoza, Rousseau, Hegel, Marx, Paris, 1963; W. Eckstein, "Rousseau and Spinoza", in Journal of the History of Ideas, V, junho, 1944, p. 259-291; M. Frances, "Les reminiscences spinozistes dans Ie Contrat social de Rousseau", in Revue philosophique, 141, n. 1, 1951, pp. 61-84.

5 Remeto aos trabalhos de Fester, Ritter, etc., e, de uma maneira geral, aos estu­dos dedicados as influencias do pensamento revolucionario frances no desenvolvimen­

to do idealismo alemao. 6 L. Goldmann, La communaute hamaine et l'univers chez Kant, Paris, 1948. 7 F. J.Jacobi, Lettres a Monsieur Moses Mendelssohn sur la doctrine de Spinoza,

[rad. fro in Oeuvres philosophiques, Paris, 1946.

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8 Sobre este ponto, ver sobretudo os escritos eticos de 1802-1803 (G.W.F. Hegel, tradu~ao italiana de A. Negri, Scritti di filosofia del diritto, Bari, 1962) e a "filosofia de lena" (trad. fr.: Systeme de la vie hhique, Paris, 1976).

9 Sobre a formac;ao da consciencia burguesa, 0 velho livro de P. Hazard, La crise de la conscience europeenne, 1680-1715, Paris, 1935, permanece valido.

10 AIem da velha obra de B. GROETHUYSEN, Phifosophie de fa Revolution fran~aise, Paris, 1947, ver aquela, bern recente, de F. Furet, Penser fa Revolution, Paris, 1978. E preciso no entanto ressaltar que as trabalhos hist6ricos sabre a retomada por parte de Rousseau de certos tra~os fundamentais do pensamento politico de Spinoza nao sao unilateralmente condicionados pela ideologia do spinozismo. E de se notar a pru­dencia de M. Frances (art. cit.): voltaremos longamente a essa contribui~ao, mas con­vern notar deste ja que, se ela assinala pontos de contato entre as duas filosofias (analo­gias na forma do contra to, p. 65; analogias na defini~ao do conteudo do contrato como "vontade geral", pp. 66-70; analogias na concep~ao do direito de insurrei~ao, p. 78; analogias na concep~ao da religiao civil, p. 81; etc.), isto nao a leva a negar ou a ealar a existencia de pontos de divergencia. Ela insiste em particular na oposi~ao entre 0 ra­dicalismo da constitui~ao de Spinoza e 0 juridismo de Rousseau (sobretudo pp. 74-76) enos mostra tambem as conseqiiencias da ausencia de distin~ao em Spinoza, contraria­mente ao que aconteee em Rosseau, entre poder legislativo e poder executivo. A partir desses primeiros elementos de aprofundamento da historia do pensamento politico de Spinoza, chegaremos a mostrar que, se bern que realmente haja fortes analogias entre Spinoza e Rousseau, e principalmente na letra dos textos deles, na verdade elas sao in­teiramente secundarias em rela~ao a oposi~ao teorica radical das correntes de pensa­mento nas quais se inserem esses dois filosofos. Mas voltaremos a isso.

11 G.L. KLINE, Spinoza in Soviet Philosophy, Londres, 1952: pesquisa extrema­mente importante, e muito bern documentada, sobre a acolhida dada a Spinoza pelo re­gime socialista.

12 Seria necessario reconstruir aqui a abundante literatura, muito pouco interes­sante, referente a rela~ao teorica Rousseau-Marx. Na Italia particularmente, ficamos par muito rempo submetidos ao peso de uma ortodoxia estabelecida por Della Volpe e sua escola: a rela~ao Rousseau-Marx como rela~ao entre dois pensadores radicais-libe­rais. Haveria coisas bern mais interessanres a se dizer sobre a rela~ao Marx-Spinoza. M. RUBEL, "Marx a la reneontre de Spinoza", in Cahiers Spinoza, n. 1, pp. 8-28, traba­lhou reeentemente sobre os cadernos de Marx a respeito de Spinoza, com a aten~ao fi­losofica e a vigilancia crfrica que se conhecem nele. A tese fundamental de Rubel e de que Marx, em seus cadernos de estudo de 1836-1837, sente que a Figura impura do "spinozismo" levantada pela esquerda hegeliana e apenas a simuh:;ao de uma aiterna­riva (materalismo fingido) na historia da filosofia iluminista. Por rd.s do Spinoza do spinozismo, deve haver ourra coisa, que se trara de procurar e de separar desse primei­ro Spinoza! A MATHERON, "Le TIP vu par Ie jeune Marx", no mesmo numero dos Cahiers Spinoza, susrenta uma tese proxima: 0 jovem Marx procura em Spinoza urn fundamento para uma alrernativa radical, para alem da tradi~ao "spinozista".

13 Cartas XI, XIII, XIV e XVI (G., IV, pp. 48-52, 63-69, 69-72, 73-75; P., pp. 1091-1095, 1113-1115).

14 Alem dos textos ja mencionados de Kossmann, d., sobre este periodo, e em particular sobre a segunda guerra de navega~ao, P. j. BLOK, Geschiedenis van het Nederlandsche Yolk, Leyde, 1915, t.III, p. 131 sq.

15 Sobre a transferencia para Voorbug, sobre 0 contexto politico da epoca e so­bre as rela~oes no momento mantidas por Spinoza, d. A. DROETIO, Introdu~ao a tra-

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du~ao italiana do Tratado politico (SPINOZA, Trattato politico, Turim, 1958), em particular pp. 8-33. Croetto nos da tambem todas as referencias uteis ao assumo.

16 E evidente que nao e possivel forneeer aqui uma bibliografia sabre os caracreres gerais do barroco. Permito-me remeter a meu Descartes politico, 0 della ragionevole ideo­logia, cit., no qual comento pelo menos a literatura mais importante sobre a questao.

17 G6NGORA, Sonetos completos, Madri, 1969. 18 Consultar as cadlogos da biblioteca de Spinoza ja mencionados no primeiro

capitulo. Sobre a hist6ria portuguesa e espanhola da familia Spinoza, d. MUGNIER­POLLET, op. cit., cap. I, que relata igualmente a literatura sabre a questao~

19 As obras de Quevedo constavam da biblioteca de Spinoza. Mas aqui se trata unicamente de ler a produC;;l(»)' rica desses autores para procurar sentir a profundidade de tais assonancias. De meu lado, fiz a experiencia com LOPE DE VEGA, Oeuvres lyriques, e com Francisco de Quevedo, Ohras completas, Madri, 1976, t. II.

20 Carta XII (G., IV, p. 52-62; P., pp. 1096-1102). 21 Carta XII (G., IV, p. 52; P., p. 1096). 22 Carta XII (G., IV, p. 52; P., p. 10961. 23 Carta XII (g., IV, p. 54-55; P., p. 1097). 24 M. GUEROULT, op. cit., t. I, dedica a carta sobre 0 infinito paginas exempla­

res, que naturalmente estao no sentido da sua propria interpreta~ao, decididamente panteista e tradicional, do pensamento de Spinoza. Essas paginas mereeem ser lidas, pais deixam transparecer claramente 0 embara~o de Gueroult diante dessa duplica~ao gno­seologica do horizonte ontologico. P. DI VONA, op. cit., p. 570, considera essa carta sobre 0 infinito como uma "verdadeira e energica sfntese de toda a filosofia de Spino­za": ela me da uma impressao exatamente conrraria.

25 Carta XII (g., IV, p. 57, P., p. 1099). 26 ].T. DESANTI, Introduction a l'histoire de la philosohie, Paris, 1956, anali­

sou justamente a conexao entre a filosofia de Spinoza e 0 desenvolvimento do grupo de Witt e do banco de Amsterda durante a perfodo 166011670. A. SOHN-RETHEL, Gels­tige und koperliche Arheit. Zur Theorie des gesellschaftlichen Synthesis. Frankfurt, 1970, p. 98, ao mesmo tempo em que avalia a tenrativa de Desanti, sustenta que "sua demons­tra~ao no entanto e insuficiente, pais, se bern que chegando ao limiar da forma~ao dos conceitos, ela nao chega a ultrapassa~lo". 0 que esta cerro: uma analise materialista da filosofia nao pode se fundamentar numa simples correspondencia material, ela tern de articular uma analise do desenvolvimenro categorial com a da forma da consciencia possive!. Em Desanti, a analise nao uitrapassa 0 alcance da consciencia possive!.

27 0 livro de Meyer e de 1666. Sabre toda esra questao e, de modo geral, sobre os problemas levantados pela interpreta~ao dos textos sagrados no ambito de uma Weltanschauung racionalista e panteista, assim como sobre as muitas solu~oes de tipo quiliastico dadas a esses problemas, d. L. KOLAKOWSKI, op. cit., em particular p. 180 (a respeiro de P. Serrarius, intermediario entre Spinoza e Oldenburg; quiliasta. Cf. tam­bern p. 651 e 705-707), 200-206 (sobre a quiliasmo de Brenius), 325-335 (sobre F. van Leenhof e sobre a inspira~ao quiliastica do proprio cocceianismo: volraremos a este ponto), e 749-759 (sobre Ludwig Meyer).

28 Carta XII (G., IV, pp. 61-62; P., p. 1101). 29 E. CASSIRER, op. cit., p. 111. 30 E. CASSIRER, op. cit., p. 106. 31 Ibid., pp. 107-112. 32 Ibid., p. 114. 33 Ibid., p. 114.

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34 Ibid., pp. 120-121. 35 Ver sabre este ponto os comentarios ja varias vezes mencionados, e em particular

os de M. GUEROULT, op. cit., t. II, pp. 190-256 e de L. ROBINSON, op. cit., t. II. 36 Para urn comentario, d. M. GUEROULT, op. cit., t. II, pp. 260-323. 37 Etica, II, Proposi~ao XIX, Esc61io (G., II, p. 114; P., p. 386). 38 Apesar do carater exemplar de sua analise do ponto de vista filo16gico, M. GUE­

ROULT, op. cit., t. II, pp. 352-390 e 587-592 exclui naturalmente, aqui, como em QU­

tros lugares, a possibilidade de coorradi'Sao desse genero; mas ete 56 pode faze-Ia com a condi<;ao de rearticular a cada vez 0 conceito de oOl;iio comum, e de submeter 0 carater concreto deste (que ele no entanto reconhece) a urn enorme feixe de condi~6es, extrema~ mente m6ve!' 0 conceito de "replica" torna~se fundamental na analise de Gueroult: e e1e que permite salvar a ideia de uma estrutura sistematica do livro II da Etica. Posi~ao que no entanto se reve1a perfeitamente contradit6ria, sobretudo quando Gueroult trata do discurso epistemo16gico de Spinoza, ou seja, do discurso sobre as nor;6es comuns.

39 Etica II, Proposir;ao, Esc6lios I e II (G., II, p. 120~122; P., p. 392). 40 Etica II, Proposi,ao XXXVII (G., II, p. 118; P., p. 390). 41 Etica II, Proposir;ao XL, Esc61io II (G., II, p. 122; P., p. 394~395). 42 S. VON DUNIN~BORKOWSKI, sj, "Spinoza nach 300 Jahren", in N. ALT~

WICKER, Texte zur Geschichte des Spinozismus, cit., p. 59-74. 43 DUNIN-BORKOWSKI gostaria de acrescentar uma terceira antinomia: "Ou

somente urn sistema de movimentolrepouso, ou somente a ideia de qualidade", mas ele aqui esta muito menos a vontade, pois tal par nao e absolutamente colocado pela fisica de Spinoza, nem mesmo a titulo de hip6tese. Como se sabe, 0 esquema de interpreta­r;ao de Dunin-Borkowski e singularmente fiel ao pensamento de Spinoza na medida em que 0 ataca de fora, submetendo-o a urn confronto radical com a metafisica classica. Aqui, como em Cassirer, a critica se baseia na ideia de uma permanencia da concepr;ao do atributo em Spinoza, numa definir;ao exclusiva da metafisica como terreno de en­contro/defrontar;ao com 0 spinozismo.

44 Etica II, Proposi~ao XLIV, Corolario (G., II, p. 126; P., p. 399). 45 Boa intepreta~ao desta f6rmula in MARTIAL GUEROULT, op. cit., t. II, pp.

609-615. 46 Etica II, Proposi~ao XLV (G., II, p. 127; P., p. 400). 47 Etica II, Proposi~ao XLV, Esc6tio (G., II, p. 127; P., pp. 400-401). 48 Etica II, Proposi,6es XLVIII-XLIX, Esc61io (G., II, pp. 129-136; P., pp. 402-404). 49 Etica II, Proposir;ao XLIX, Esc61io (G., II, pp. 131-136; P., pp. 405-411). so Sabe-se que G. Deleuze tam bern chega a uma hip6tese desse genero, sem no

entanto supor uma interrup~ao interna do sistema spinozista: ele prefere antes insistir na mudan~a de signo sofrida pela dinamica produtiva do atributo, de urn horizonte emanativo a urn horizonte expressivo. Parece~me que tal percurso ainda nao consegue captar 0 momento de reversao ontol6gica que parece tao importante em Spinoza.

51 Sobre a interpretar;ao dessa ideologia no pensamento do seculo XVII, permi­to-me mais uma vez remeter a meu Descartes poLitico. Nesse livro procurei mostrar 0

campo das solu~6es produzidas pela burguesia depois da falencia definitiva da utopia do mercado e da continuidade mercado-Estado caracteristicas do Renascimento. De urn lado 0 libertinismo e 0 mecanicismo, de outro a ressurgencia de esperan~as revolucio­narias e a volta do desespero com a crise, sob a forma do jansenismo; no centro do dis­positivo, 0 cartesianismo: uma metafisica, uma etica e uma teoria da ciencia que, ao mesmo tempo em que satisfazem as urgencias do momento, a exigencia de urn Estado absoluto, e atendendo as necessidades do modo de produr;ao manufatureiro, nem por

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isso deixam de preservar a autonomia da burguesia, abrindo para e1a urn horizonte operatorio de poder. Em Spinoza, essas diversas solu~oes sao afastadas desde 0 inicio, sem nenhuma exce~ao: 0 pensamento de Spinoza na~ parte da crise desse seculo, mas de urn projeto de desenvolvimento e articular;ao da utopia do Renascimento. A crise nao e sua doenr;a infantil, ela e apenas urn limite colocado a seu crescimento, limite a ser ultrapassado. Por isso e que se pode dizer que em Spinoza nao ha tentativa de sublimar a crise por solur;oes autoritariasj ela e interpretada pelo que e: uma contradir;ao - en~ tre mercado e valor, entre re1ar;ao de produr;ao e for~a produtiva.

52 Ou ao menos aque1es que estudam mais parricularmente 0 pensamento politico de Spinoza. Entretanto, como veremos, nem todos estao convencidos da natureza igual­mente politica da metafisica da Spinoza - muito peIo contrario! Assim e que temos os especialistas em metaffsica, que consideram 0 pensamento politico de Spinoza como secun~ dario, mesmo se concordam em the conceder certa imporrancia, e os especialistas em pensamento politico que 0 consideram como central, mas nao implicam a metafisica de Spinoza em sua politica. 0 que estou tentando demonstrar, por meu lado, e a centralidade polftica da metafisica de Spinoza - e, naturalmente, como veremos, a centralidade his­torica do Tractatus theologico-politicus no desenvolvimento da ontologia spinozista.

53 Etica II, Proposir;ao XLIX, Escolio (G., II, p. 136; P., p. 411).

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Capitulo V CESURA DO SISTEMA

1. IMAGINA<;Ao E CONSTlTUI<;Ao

"Ao acordar uma manha, as primeiras luzes do dia, de urn sana bas­rante pesado, as imagens que me tinham surgido em sonho persistiam diante de meus olhos tao vividamente como se fossem objetos reais, em particular a de urn brasileiro negro e hirsuto que eu nunca vira antes. Essa imagem desaparecia em grande parte quando, para me distrair, eu fixava os olhos num livro ou em qualquer objeto; mas assim que eu desviava 0 alhar ou nao fixava nada com aten<;ao, a mesma imagem do mesma etfope me rea­parecia igualmente vivicia, ate que aos POllCOS sumiu de minha cabe<ra."l Spinoza e Caliban, poderiamos dizer imediatamente a respeito dessa car­ta de 20 de julho de 1664 ao "doutissimo e sapientissimo Pietro Balling". Mas, alem de uma inoportuna ironia sobre Balling, perturbado pel a reali­zas:ao de urn pressagio sobre a morte do fiIho, sabe-se da complexidade do personagem de Cali ban. A tal ponto que 0 problema de Cali ban - que eo da fors:a liberatoria da imaginas:ao natural- se situa na mais alta abs­tra,ao da medita,ao filos6fica. "Digo que todos os efeitos da imagina,ao que se originam nas coisas corporeas nao podem nunca ser pressagios de coisas futuras, porque suas causas na verdade nao envolvem nenhuma coisa futura.,,2 Isto nao elimina que "os efeitos da imaginas:ao derivam da cons­tituis:ao ou do Cor po ou da Mente,,3. Imaginas:ao e constituis:ao. A ima­gina~ao, entao, percorre todo 0 real. "Vemos que a imaginas:ao pode ser determinada somente pela constituis:ao da alma, pais, como experimen­tamos, ela segue em tudo os tras:os do intelecto, e concatena e liga uma as outras suas imagens e suas palavras, sem interrups:ao, do mesmo modo que a intelecto concatena e liga suas demonstras:oes, a tal ponto que nao po­demos compreender quase nada daquilo de que a imaginas:ao nao forme imediatamente uma imagem.,,4 Mas esse escorrer da imagina~ao por toda parte atraves do reallevanta infinitos problemas. Antes de mais nada devo sublinhar que estou imerso nesse mar da imaginas:ao: e 0 mar da propria existencia. E muito diferente da profundidade do mar no qual 0 sujeito se encontra mergulhado pela duvida cartesian a das Meditaroes: "Tamquam in profundum gurgitem ex improviso delapsus"s. Li, 0 ponto de apoio procurado pela inquieta<;ao da pesquisa e urn ponto fixo, urn comes:o e uma garantia do conhecimento -, aqui, em Spinoza, esse reconhecimento da situas:ao existencial, de sua obscura compleis:ao, nao implica nenhuma

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referencia ao outro, ao superior, ao transcendental. 0 muncio dos modos - que e 0 horizonte das ondas do mar, como poderia dizer uma possivel metafora spinozista - e real, seja como for. 0 segundo problema levan­tado por esta perceps:ao e 0 seguinte: se os efeitos da imaginas:ao derivam da constituis:ao da alma, de que modo a imaginas:ao participa da consti­tuis:ao da alma? e em que medida, na eventualidade de assim serem as coisas, a imaginac;ao participa, com a alma, da constituis:ao do muncio e de Sua libera,ao? De novo 0 problema Cali ban.

Essa carta, essas hipoteses caem na borda da primeira camada da Etica. Alguns autores prop6em considera-las como residuos de urn proje­to de sistema inacabado e tosco.6 Mas essa sugestao nao e aceitavel se olha­mos outras cartas do mesmo periodo (1664-1665), imediatamente poste­riores a carta a Balling: as Cartas "ao doutissimo e sapientissimo senhor G. de Blyenberg,,7. "Honesto comerciante", mas sobretudo born cristao, Blyenberg do a Cali ban 0 nome de Adao. A possibilidade de Adao come­ter 0 mal, assinala Blyenberg com justeza, e realmente incompreensivel a partir dos Principia de Spinoza, tanto quanta a imaginas:ao de Cali ban: sao ou nao sao constitutivas vontade e imaginas:ao? "Em minha opiniao nem vos nem 0 senhor Descartes resolve is 0 problema, quando dizeis que o mal e urn nao-ente, para qual Deus nao concorre.,,8 Ora, a resposta de Spinoza e no minima drastica - e demonstra a total incompreensao des­sa articulac;ao de seu pensamento par parte daqueles que excluem a posi­c;ao do problema da potencia da imaginas:ao como sustentas:ao da segun­da camada, a conclusiva, da Etica. "Quanto a mim, nao posso admitir que o pecado e 0 mal sejam nada de positivo, e muito menos ainda que qual­quer coisa possa ser ou se fazer contra a vontade de Deus. Ao contnirio, digo que, nao apenas 0 pecado nao e nada de positivo, mas afirmo tam­bern que nao podemos dizer, se nao impropriamente e falando humana­mente, que pecamos contra Deus, como quando dizemos que os homens of end em Deus.,,9 "Torno como exemplo a decisao, ou seja, a vontade de­terminada de Adao de comer do fruto proibido. Esta decisao ou vontade determinada, considerada em si so, inclui tanto de perfeis:ao quanto ex­prime de realidade, como explica 0 fato de que nao podemos conceber nas coisas uma impedeis:ao senao em comparac;ao com outras que contenham mais realidade; conseqiientemente, na decisao de Adao, se a consideramos em si mesma sem comparac;ao com outras mais perfeitas au que indicam urn estado mais perfeito, nao poderemos assinalar nenhuma imperfeic;ao, e podemos, ate, cornpani-la com infinitas outras coisas que, em relas:ao a ela, sao de longe mais imperfeitas, como pedras, troncos, etc. E isto, de fato, qualquer urn esta disposto a adrnitir, porque qualquer urn observa com adrniras:ao nos anirnais aquilo que detesta e ve com repugnancia acon­tecer entre as hornens, como a guerra das abel has e 0 ciurne dos pornbos:

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~oisas que se desprezam no meio dos homens e que, ao contrario, sao in­dicio de maior perfei~ao nos anima is. Assim sendo as coisas, segue-se a isso que 0 pecado, enquanto nao indica senao uma imperfei~ao, nao pode con­sistir em alguma coisa que exprima uma realidade, como a decisao de Adao e sua execu~ao."10 E neste pleno de ser que se move a verdade. Entao nao e possivel fazer 0 ser se degradar absolutamente em dire<;ao a priva<;ao e a nega<;ao, porque "a priva~ao nao e 0 ato de privar, mas simples e mera carencia, a qual em si nao e nada mais que urn ser de razao, ou seja, uma especie de pensamento que formamos quando comparamos as coisas en­tre elas. Dizemos, por exemplo, que 0 cego e privado da vista, porque somos levados a imagina-lo facilmente como vidente ... ,,11 "De modo que a pri­va~ao nao e outra coisa senao negar da coisa algo que julgamos que per­tence a sua natureza; e nega<;ao nao e outra coisa senao negar algo a coisa porque nao pertence a sua natureza. E por isso que em Adao 0 apetite pelas coisas terrenas era mau somente em rela<;ao ao nosso intelecto e nao em rela<;ao ao de Deus."12 E entao 0 problema e 0 de nao crer que nos sa li­berdade consista em uma certa contingencia ou em uma certa indiferen­<;a, ela consiste, na verdade, "no modo de afirmar ou negar; de maneira que quanto menos indiferentemente afirmamos ou negamos uma coisa, tanto mais somos livres" . 13

Resumindo: a reivindica~ao do mundo dos modos coloca imediata­mente, no plano do conhecimento como no plano da vontade, 0 proble­ma da realidade da imaginaC;aa e da liberdade. Uma realidade canstitutiva, nao mais oferecida pela divindade e residuo de seu processo de emana~ao - Cali ban, alias, Adao, coloca 0 problema da realidade nao rna is como totalidade, mas como parcialidade dinamica, nao como perfei~ao absolu­ta, mas como priva~ad relativa, nao como utopia, mas como projeto. 0 estatuto gnoseol6gico e etico da realidade moral e posto em primeiro pla­no. Mas isso significa uma ruptura radical com toda a 16gica anteriormente elaborada e nao nos espantaremos, neste ponto, se 0 TRE permanece ina­cabada. "Par falta de tempa", cama se justifica Spinaza14? 0 fata e que em Voorburg 0 problema ja e 0 de uma l6gica que siga os processos cons­titutivos da realidade. 0 projeto ainda esta pouco claro? Certamente. Mas irreversivel. Por ora podemos apenas identificar a tendencia, nao descreve­la; medir seu alcance, nao descrever suas passagens. Coisa certa e que, seja como for, uma cesura, extremamente profunda, aconteceu no sistema e, daqui em diante, este, da constitui~ao da rea Ii dade modal e de seu destino absoluto, e 0 horizonte de Spinoza.

Mas observemos outra coisa. Aquela mesma concep<;ao que nega a for<;a constitutiva do ser e mistifica a determinidade modal do mundo, afogando-a na indiferen~a ideal- entretanto, "se bern que 0 rata e 0 anjo, a tristeza e a alegria dependam igualmente de Deus, nao se po de dizer,

134 Antonio Negri

porem, que 0 rato tenha a forma do anjo nem que a tristeza tenha 0 as­pecto da alegria"15: isto seria 0 bastante para destruir toda a verossimi­lhan<;a - aquela mesma concep~ao, enta~ reinvindica, na forma da teo­lagia, a validade da imaginac;aa. Enquanta palemiza com Blyenberg sa­bre a natureza da liberdade, Spinoza e obrigado a defrontar com este pro­blema. Deus aparece cama Rei e legisladar, as meias da salvac;aa saa di­tos com 0 nome de leis, a salva~ao e perdi~ao sao colocados como premio e pena num universo moral que dilui, em figuras antropom6rfic;as, a ne­cessidade e a determinidade do conhecer e do agir humanos e destr6i as­sim a absoluta validade destes16. E no entanto essa imagina<;ao corrupta constr6i efetivamente 0 mundo! Ela e tao potente quanta a tradi~ao, e tao vasta quanto 0 poder, e tao devastadora quanta a guerra - e de tudo isto e a auxiliar, de modo que a infelicidade do homem e sua ignorancia, a su­persti<;ao e a escravidao, a miseria e a morte se inserem naquela mesma faculdade imaginativa que, pelo outro lado, constitui 0 unico horizonte de uma humana convivencia e de uma positiva, hist6rica determina<;ao do ser. Uma nova funda<;ao metafisica, se ela quer atravessar 0 mundo, nao pode recusar entao 0 afrontamento com essa figura da realidade, teoI6gico-po­Utica. Separar a verdade, a capacidade dos homens para construi-la e a Ji­berdade da vida, do conjunto das catastrofes que realmente a imagina<;ao determina no mundo torna-se assim 0 primeiro ate de uma reforma 16gi­ca que fundamente uma reforma etica. E politica? Necessariamente. Teo-16gico e politico sao termos intercambiaveis17• E verdade que a revolu<;ao humanista ja atacou fortemente essa legitima<;ao medieval do poder. Mas nao a erradicou: de modo que ela se reproduz, nao tanto como legitima­<;ao do poder quanta como supersti<;ao e conserva<;ao, irracionalidade e bloqueio. Como obscurantismo.

Uma guerra absurda esta-se desenrolando18, como para selar a opo­si<;ao aqui de urn desencantado diagn6stico. Urn estranho dialogo aconte­ce entre beligerantes. De Londres, Oldenburg escreve a Spinoza: "Aqui se espera, de urn momenta para 0 outro, a noticia de uma segunda batalha naval, a nao ser que vossa esquadra torne a voltar para 0 porto. 0 valor, que dizeis que os vossos VaG comprovar, e mais bestial que humano. Pois se os homens agissem a luz da razao, nao se estra<;alhariam uns aos ou­tros, como os animais da floresta. Mas de que serve se lamentar? As pai­xoes durado tanto quanta os homens; mas mesmo aquelas nao sao per­petuas, e os melhores podem combate-Ias"19. De Voorburg Spinoza escreve, em troca: "Fico feliz em saber que, em vossa Sociedade, os fil6sofos se recordam de si mesmos e de seu pais. Estou ansioso para conhecer os ulti­mos trabalhos deles, assim que os beligerantes estejam saturados de san­gue e fa<;am uma tregua para refazer as for<;as. Se aquele famoso humorista vivesse hoje, certamente morreria de rir. la quanta a mim, essas massas

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armadas nao me levam nem a rir nem a chorar, eu antes me ponho a filo­safar e a observar mais atentamente a natureza humana. Efetivamente, nao ereic que tenha 0 direito de zombar cia Natureza, emenDS ainda de me queixar dela, se p'enso que os homens, como tudo, de resto, sao somente parte cia Natureza e ignor~ como cada uma dessas partes se combina com o todD e de que modo se liga com rodas as Durras. E apenas por falta des­se conhecimento que certas coisas da natureza, de que tinha somente uma percep\=ao incompleta e mutilada, que nae ficava de acordo com nossa mentalidade filos6fica, me pareceram antes como vas, desordenadas e ab­surdas. Deixo, entao, que cada urn viva a seu talante, e quem quer morrer que morra em paz, contanto que a mim seja permitido viver pela verda­de,,2o. Parece uma exclama'Sao libertina: entretanto e 0 prologo do pro­grama seguinte: "Estou atualmente compondo urn tratado sobre minha mane ira de entender a Escritura; e sou levado a faze-Io pelas razoes seguin­tes: 1) os preconceitos dos teologos, pois sei que e1es, mais que qualquer outra coisa, impedem os homens de aplicarem seu intelecro a filosofia; pro­ponho-me entao a revelar esses preconceitos e a livrar deles os espiritos rna is advertidos; 2) a opiniao que 0 povo tern de mim, sempre a pintar-me como ateUj tenho de combate-la 0 mais possivel; 3) a liberdade de filoso­far e dizer 0 que sentimos; liberdade que pretendo defender por todos os meios contra os perigos de supressao representados pela excessiva autori­dade e insolencia dos predicantes,,21.

o Tractatus theologico-politicus22 mostra, em sua genese, uma ex­traordinaria centralidade na historia de conjunto do pensamento de Spi­noza. Quase todos os comentadores 0 reconheceram, mas de maneira banal. Porque na verdade todos tiveram de ver essa interrup'Sao do desenvolvi­mento da Etica que a reda<;ao do TTP representa, entre 1665 e 1670 .. E e evidente que depois dessa cesura cronologica, quando Spinoza recome'Sa a trabalhar na Etica, as coisas mudaram: 0 horizonte se alargou, a mate­ria polftica - com a riqueza que representa para a vida passional e etica - sera recuperada ao discurso metaffsico. Mas nao basta reconhecer isto. Na verdade nao e por acaso que, depois desse reconhecimento, a Etica seja lida, de todo modo, como uma obra unitaria. A interrup'Sao representada pelo TTP seria urn parenteses. Quando nos encontramos diante de uma interrup'Sao que e uma refunda'Sao. E - alem da analise da crise da pri­meira camada da Etica, que realizamos; alem da analise do novo caminho do pensamento etico em sua segunda fase, que faremos - e a propria materia do TTP que 0 mostra23. Aqui, com efeito, os fundamentos teolo­gicos e fisicos dos livros I elIda Etica sao, por assim dizer, postos de lado. £. como se, do ponto em que ate aqui a filosofia conduziu, se revelasse urn mundo novo, impossivel de percorrer com os velhos instrumentos, mas tambem impossivel de avaliar e ainda men os de medir com eles. Ate 0

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momento, sobretudo nas Cartas, viemos sentindo urn clima. Com 0 TIP torna-se logicamente claro que 0 mundo da imagina'Sao e da historia, da religiao e da polftica - tal como sao concretamente - nao pode ser agre­dido do ponto de vista da teologia racional e da fisica. Eventualmente podera voltar a se-lo, se tivermos primeiramente percorrido a trama desse complexo real. Mas entao, a partir do novo proposto pelo real, que signi­ficado de orienta'Sao podera ter a velha tranche metafisica? Nao devera ela mesma ser submetida a for'Sa da transforma'Sao real? Aqui, a~interruP'Sao e imediatamente refunda'Sao. E os fios historicos e teoricos que consegui­mos puxar se entrela'Sam de maneira nova. Vma nova 16gica, dentro do mundo da imagina~ao, dentro do mundo tout court, em suma: mas isso significa fazer uma discrimina~ao no mundo, ver sua realidade se desenrolar e ao mesmo tempo eliminar aquilo que se opuser ao progresso da verda­de. E essa discrimina~ao afeta tambem 0 sistema, seu avan~o, seu desen­volvimenro. Veremos 0 quanto! Mas no inicio ela 0 deixa de lado - nao finge, en tao, mas realmente opera uma refunda~ao.

Caindo-se das alturas do livro II da Etica, os primeiros capftulos do TIP realmente surpreendem. Ai se enconrra uma enorme riqueza de conhe­cimentos tecnicos: tecnico-teologicos, filologicos, lingiiisticos, politicos. A biblioteca de Spinoza nos informa a esse respeiro24. Mas tudo isso imedia­tamente se funde num projeto polemico: "T ratado teologico-polftico, con­tendo algumas disserta~oes com as quais se mostra como a liberdade de­filosofar nao somente pode ser concedida sem prejuizo da religiao e da paz do Estado, mas ate nao pode ser negada senao destruindo ao mesmo tem­po a religiao e a paz do Estado"25. Projeto polemico, mas determinado. Na verdade, e consideramos agora os seis primeiros capitulos, que sao precisa­mente os polemicos, a poiemica tam bern e busca da realidade e, de manei­ra imediata e autonoma, coloca~ao do problema logico da imagina~ao. As materias enfrentadas (cap. I: "Da profecia"; cap. II: "Dos profetas"; cap. III:"Da voca<;ao dos hebreus, e se 0 dom profetico foi peculiar a eles"; cap. IV: "Da lei divina"; cap. V: "Da razao pela qual foram introduzidos os ritos, e da fe na tradi~ao historica, ou seja, como e para quem esta e necessaria"; cap. VI: "Dos milagres")26 estao submetidas a urn tratamento logico, isto e, a urn esquema de pesquisa orientado num sentido fenomenologico, vi­sando a identificar 0 nivel da realidade que e constituido pela imagina~ao.

Sao assim destacados dois niveis da argumenta~ao. 0 primeiro (A), que podemos chamar "da revela~ao a institui~ao" e que e diacronico em seu desenvolvimento, genealogico. Parte dos temas polemicos (contra a su­persti<;ao e 0 fanatismo religioso) para definir (A 1) 0 estatuto gnoseologico destes: os capitulos I, II e III veem a abordagem polemica se desenhar sobre urn esquema que agora conhecemos bern, 0 da den uncia da aliena~ao reli­giosa e da mistifica<;ao teologica. Mas (A2) a analise entao levanta a mira,

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deslocando-se do terrene do conhecimento revelado para 0 terrenD cia rea­lidade hist6rica. 0 esclarecimento tea rico nao tern rna is nada a ver com 0

reino das sombras ideol6gicas, mas com a realidade cia mistifica\=ao histo­rica, eficaz. E no capitulo IV que se determina essa passagem. Enfim (A4), nos capitulos V e VI, 0 eixo analitico tarna a se deslocar: e a genese das ins­titui~6es, a fun<;ao historicamente constitutiva da imagina~ao que come<;a a ser levada em conta. Com este rirma diacronico, entretanto, esta identi­ficado urn nfvel sincronico de pesquisa, que podemos chamar "cia ilusao a constitui<;ao" (B). Atravessa as diversas fases do discurso, de maneira mais ou menes ariva, e se articula teoricamente em tres pontos: (Bl) a analise, a identifica<;ao da imagina<;ao como fun<;ao constitutiva da falsi dade e da ilusao, a que segue (B2): a acentuac;ao do significado ambiguo, oscilante, flutuante da imaginac;ao como forc;a transcendental: a terceira camada (B3) se liga a analise do fundamento ontologico - isolado, verdadeiro - da ac;ao da imaginac;ao. Entramos na ordem do ser real. Estes seis capitulos formam urn todo bastante organic027, quase como uma parte I do TIP, e 0 capitu­lo IV constitui dentro deles urn ponto focal, tanto no sentido diacronico quanto sincronico, 0 centro de (A) e a sfntese de (B).

Tendo em mente essas orientac;oes, entremos no merito. Nos tres primeiros capitulos do TfP (AI), 0 problema e 0 da analise e da critica da profecia, ou seja, da revelac;ao enquanto ela e expressa pel os profetas para o povo judeu. A negac;ao de todo estatuto ontologico especifico da verda­de profetica e imediatamente colocada (Bl). Se entretanto toda verda de encontra em seu fundamento a potencia divina, eu poderia dizer que a profecia "e urn efeito da potencia de Deus; mas me pareceria estar dizen­do palavras vas. Seria na verdade como se quisesse explicar com urn ter­mo transcendental a forma de uma coisa singular. Tudo, na verdade, e produto da potencia de Deus; alias, ja que a potencia da Natureza nao e outra coisa senao a propria potencia de Deus, e certo que nos, na medida em que ignoramos as causas natura is, nao conhecemos a potencia de Deus: e entao insensato recorrer a potencia de Deus quando ignoramos a causa natural de uma coisa, ou seja, a propria potencia divina,,28. 0 horizonte da profecia enta~ nao pode ser outro senao aquele da mera imaginac;ao. Consequentemente, no plano da pura abstrac;ao, "como a simples imagi­nac;ao nao implica, por sua natureza, a certeza, assim como faz toda ideia clara e distinta, mas e preciso necessariamente, para que se possa estar seguro, acrescentar a imaginac;ao alguma coisa que e 0 raciocinio, ve-se que a Profecia por si mesma nao podia implicar certeza,,29. Acontece en­tretanto que a imaginac;ao profetica passa por expressao da "directio Dei" e que para os judeus ela esta ligada com sua propria vocac;ao de povo elei­to. "Desejo entao", acrescenta Spinoza, "explicar aqui em poucas pala­vras 0 que entendo em seguida por governo de Deus, socorro de Deus in-

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terno e externo, por eleic;ao de Deus e finalmente por fortuna. Por gover­no de Deus, entendo a ordem fixa e imutavel da Natureza, em outras pa­lavras, 0 encadeamento das coisas naturais; dissemos acima, realmente, e mostramos em outro lugar, que as leis universais da Natureza, segundo as quais tudo se faz e tudo esta determinado, nao sao senao os decretos eternos de Deus, que implicam sempre wna verdade e uma necessidade eter­nas. Seja quando dizemos que todas as coisas acontecem segundo as leis da Natureza, seja quando afirmamos que elas sao ordenadas portiecreto ou por governo de Deus, dizemos a mesma coisa. Em segundo lugar, nao sendo a potencia de todas as coisas naturais senao a propria potencia de Deus, que sozinha produz e determina todas as coisas, segue-se a isso que tudo de que 0 homem, ele mesmo parte da Natureza, se utiliza atraves de seu trabalho para a conservac;ao de seu ser, e tudo aquilo que the e of ere­cido pela Natureza sem dele exigir trabalho, na realidade Ihe e oferecido so pela potencia divina, enquanto esta age seja pela propria natureza do homem, seja por coisas externas a propria natureza do homem. Entao, a tudo aquilo que a natureza humana pode produzir so por sua potencia para a conservac;ao de seu ser, podemos chamar socorro interno de Deus, e Socorro externo a tudo aquilo que a potencia das coisas externas produz de uti! para ele. Donde se explica facilmente 0 que se deve entender por eleic;ao de Deus: ja que, efetivamente, ninguem age senao segundo a or­dem predeterminada na Natureza, isto e, pelo governo e 0 decreto eterno de Deus, segue-se a isso que ninguem escolhe sua mane ira de viver e nao faz nada, senao por uma vocac;ao singular de Deus que elegeu tal indivi­duo de preferencia aos outros para tal obra ou tal maneira de viver. Por fortuna, entendo nada rna is que a direc;ao divina, enquanto esta regula as coisas humanas por meio das causas externas e imprevistas,,30. Nesta base, a operac;ao concreta da imaginac;ao consiste simplesmente na fusao de ele­mentos historicos que desdobram efeitos derivantes de causas eficientes contidas na propria natureza humana. "E por isso e preciso dizer sem re­serva que esses dons nao estao reservados a nenhuma nac;ao, mas sempre foram comuns a todo 0 genero humano, a menos que queiramos imagi­nar que a Natureza em outras epocas tenha criado diversos generos hu­manos."31 A imaginac;ao e ilusao: a eticidade e potencia, divina e natural. Esta argumenta~ao parece ser mera "pena de Taliao" imposta a posic;ao pantefsta inicial, e assim tern sido considerada por muitos comentadores32.

jei a mim parece que 0 enxerto imediato da segunda fase da analise, isto e, do aprofundamento da func;ao crftica, modifica substancialmente o quadro (B2). Entao, a profecia e imaginac;ao, e a imagina\=ao, ilusao: vigilia ou sono - 0 estado profetico -, escuta, contemplac;ao, loucura33 ? "jei que e assim, devemos procurar de onde os Profetas puderam tirar a certeza a respeito daquio que eles percebiam apenas pela imaginac;ao e nao por prin-

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dpios seguros da mente. ,,34 Em outras palavras, 0 problema consiste na natureza especial dos efeitos da imagina<;ao profetica, no paradoxo de urn nada essencial que produz ser e certeza historicos. E neste momento que a fun<;ao critica se faz fenomenologica. A imagina<;ao justifica seu ser con­fuso e indeterminado plasmando-se sobre a potentia natural, sobre 0 de­senvolvimento e 0 incremento do operari humano. De maneira que se iden­tificam dois niveis: 0 primeiro, estatico, no qual a imagina<;ao nos prop6e uma defini<;ao, parcial, mas positiva, de seus proprios conte6dos; urn se­gundo, dinamico, onde 0 movimento e os efeitos da imagina~ao sao vali­dados em fun~aQ da constitui\ao etica do mund035. 0 politico torna ver­dadeiro 0 teologico. E com isto se coloca, modernamente, 0 problema da "falsa consci(~ncia"! Por isso, temos agora de seguir esse processo que torna verdadeira a ilusao como fun<;ao potente, temos de constatar e separar dentro dela a verdade e a falsidade. 0 paradoxa instrumental da critica "libertina" da religiao e ace ito aqui, ao mesmo tempo (a imagina<;ao e ilu­sao) sob a forma revertida que propriamente 0 constitui ( ... e a ilusao cons­titui 0 real): mas a reversao spinozista da fun<;3.o constitutiva evita ao mesmo tempo 0 perigo cetico, escapa a toda tenta<;ao cetica - a atividade cons­titutiva, com efeito, nao e uma simples fun<;ao politica, nao e dupla ver­dade, e, isto sim, potencia ontologica. 0 ensino da revela~ao e sem d6vi­da "ad hominem", sinal ilusorio de uma verdade oculta, mas e 0 carater operatorio da ilusao que a torna real e portanto verdadeira36

. Sobre esse aspecto, e preciso destacar imediatamente a transforma~ao sofrida pelo proprio conceito do politico: nao mais ast6cia e dominio, mas imagina­<;3.0 e constitui<;ao. A prime ira Figura em que se da esta sintese e a de urn "pacto divino", ou melhor, a da ilusoria Figura do pacto social. "Para vi­ver em seguran<;a e evitar os ataques dos outros homens, assim como dos anima is, 0 governo da vida humana e a vigilancia sao de grande utilidade. E a razao e a experiencia ensinaram que a maneira mais segura de conse­guir isto e a forma<;ao de uma sociedade com leis bern estabelecidas, a ocupa<;ao de uma certa regiao do mundo e a reuniao num mesmo corpo social das for<;as de todos. Para formar e conservar uma sociedade, entre­tanto, requerem-se uma energia e urn empenho fora do com urn; e, por isso, sera mais segura, mais constante e menos exposta as alternativas da for­tuna aquela sociedade que e fundada e dirigida principalmente par homens sabios e vigilantes; ao contrario, aquela que se comp6e de homens rudes depende mais da fortuna e tern menos estabilidade. Se no entanto ela sub­sistiu por muito tempo, isso se deveu ao governo de outro, e nao ao seu proprio; se ela venceu graves perigos e seus negocios prosperaram, ela nao podera deixar de admirar e adorar 0 governo de Deus (enquanto Deus age por causas exteriores desconhecidas e nao pela natureza e a mente huma­nas), po is tudo Ihe aconteceu de mane ira impensada e inesperada; 0 que

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realmente pode ser considerado miraculoso."37 Essa sociedade e entao validada pe!a ilusao da justi<;a divina, a profecia - e ate 0 milagre - tor­na-se a trama do sistema politico, e a revela~ao e fun<;ao da ordem social, e e com esse objetivo que ela se reproduz38. Com isto estamos a borda daquele nfvel de pesquisa, direta e explicitamente politico-constitutivo, que designamos par (B3), depois de vermos sua possibilidade de construir, atraves das fases polemica e fenomenologica. Nos tres primeiros capitu­los do TTP, isto apenas se esbo<;a - por exemplo, com 0 surgimento das rela~6es "jus-potentia,,39 ou «societas-imperium" (que em si compreende a ideia de ordenamento: "0 fim de toda sociedade e de todo Estado ... e a seguran<;a e a comodidade da vida; mas urn ordenado so pode subsistir na base das leis as quais todos estao vinculados; po is se cada membro de uma sociedade pudesse se subtrair as leis, com isso a sociedade se dissolveria e o ordenamento polftico ruiria"40. E apenas uma abordagem, mas jei nos permite constatar a matura<;ao dessa interioriza~ao da potencia constituriva ao desenvolvimento do real, que a tematica da imagina<;ao antes propu­nha de maneira tao laboriosa e exterior.

Chegamos assim ao capitulo IV do TIP: aqui a problema da consti­tui<;ao come<;a a se colocar em termos realmente explicitos (Al). Ou seja, a densidade do processo ate aqui abordado e transferida para 0 nivel teo­rico e lei se desdobra teoricamente (B3). Falamos de urn enxerto constitutivo, obscuramente percebido, da potentia humana na potentia natural e divi­na: como se explica esse enxerto, como se explica essa sintese? E preciso ter em mente que 0 problema nao se complica tanto, como pretendem certos crfticos, pela dificuldade em distinguir entre lei divina e lei humana. "A palavra 'lei', compreendida no sentido absoluto, indica 0 fato segundo 0

qual cada urn dos individuos ou todos ou alguns de uma mesma especie agem segundo uma so, certa e determinada maneira; e esta maneira de­pende au da necessidade natural au da decisao do homem. A lei que de­pende da necessidade natural e aquela que decorre necessariamente da propria natureza, ou seja, da defini<;ao da coisa; enquanto que aquela que depende da decisao do homem, e que se chama mais propria mente 'direi­to', e a lei que os homens prescrevem para si e para outros, para tornar a vida mais segura ou rna is comoda, ou por outros motivos. ,,41

A distin<;ao entao e clara. Tanto que e justamente a partir de sua in­tensidade, da intensidade contraditoria das duas acep<;oes do termo "lei", que se coloca 0 problema. 0 projeto constitutivo tern de se medir e se confrontar com a heran<;a da primeira camada da Etica: efetivamente, e lei que se colocou a contradi<;ao, 0 paradoxo da co-presen<;a do absoluto divino e do absoluto modal. Como se pode mediatizar essa dupla absolutez? Ou melhor, tern sentido colocar 0 problema dessa media~ao? 0 capitulo IV nao da res posta clara a essa interroga~ao. De urn lado, e sugerida a

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,Possibilidade-necessidade de uma media<;iio. Com efeito, Spinoza fala de uma "lei divina natural", cujas caracteristicas seriam a universalidade humana, a inteligibilidade e 0 inatismo, a natureza etica42 , Ista e jusnatu­ralismo43• Mas por outro lado, e com muira mais for~a, e sobretudo com largulssima possibilidade de desenvolvimento teorico posterior, 0 proble­ma da media<;iio e suprimido. E suprimida a hipotese Rousseau. Como ja vimos na metafisica, onde havia ocorrido a crise do pensamento de Spi­noza, 0 absoluto se torna for~a constitutiva da possibilidade, se estende na supedkie da constitui~ao do mundo. "Se bern que eu admita de modo absoluto que radas as coisas sao dererminadas a existencia e a\:1o segun­do uma certa e determinada razao a partir das leis universais da Nature­za, digo no entanto que estas leis dependem da decisao do homem. ,,44 Lei: decisao humana. Se a lei se encontra carregada de alusoes teologicas, nes­sa perspectiva isso so depende da necessidade de sobredeterminar a efica­cia dela. Para falar como urn autor moderno, a natureza positiva da lei deve ser situada numa esfera de neutralizar;ao do conflito social, espedfica, re­lacionada com 0 horizonte de val ores do seculo XVII, e no seculo XVII tal esfera ainda e teologica4s. Mas, 0 que e importante destacar, e essa primeira emergencia que se abre da potencia constitutiva da ar;ao huma­na. Aquilo que a imaginar;ao propunha como realidade de ilusao esta trans­formado agora em positividade da vontade e da liberdade, em indicio de urn processo de constituir;ao. Nos capitulos V e VI (A3), essa perspectiva se aprofunda rna is e assume as caracteristicas nitidamente produtivas e sociais que definem 0 positivismo spinozista: mas ja estamos no centro de urn novo horizonte de pesquisa, e entao veremos a continuar;ao desse dis­curso na segunda parte deste capitulo.

o que viemos dizendo ate agora, de todo modo, e suficiente para provar a justeza de nossa posi<rao inicial. 0 que quer dizer que a imagina~ao re­presenta 0 campo no qual emerge a necessidade de uma reversao de con­junto da metafisica de Spinoza. 0 TTP nao e urn episodio secundario ou marginal: ao contrario, e 0 lugar onde se transforma a metaffsica de Spino­za. Esta certo, entao, dizer que 0 politico e urn elemento fundamental do sistema de Spinoza: mas so tendo em mente que 0 proprio politico e meta­ffsico. Nao e urn ouropel, mas a alma da metaffsica. 0 politico e a metaff­sica da imagina~ao, e a metaffsica da constituir;ao humana do real, do mundo. A verdade vive no mundo da imaginar;ao, e possivel ter ideias adequadas que nao esgotem a realidade, mas sejam abertas e constitutivas de realida­de, intensivamente verdadeiras, 0 conhecimento e constitutivo, 0 ser nao e somente encontrado (nao e somente urn ter), mas e atividade, potencia, nao ha somente Natureza, ha uma segunda natureza, natureza da causa pr6xi­rna, ser construido: essas afirmar;oes, que os comentadores tern bastante di­ficuldade em enquadrar na imagem estatica do spinozismo, na figura imo-

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vel da analogia cosmica46, encontram, ao contrario, urn lugar adequado nessa nova abertura de sua filosofia. A atividade imaginativa conquista urn esta­tuto ontologico. Certamente nao para confirmar a verdade da profecia, mas para consolidar a do mundo, e a positividade, a produtividade, a socialidade da a<rao humana47

. E ela que representa 0 absoluto. Nisto consiste a cesura do sistema, mas nisto consiste principalmente a enorme modernidade des­se pensamento. Cali ban, na verdade, e urn heroi contemporaneo ..

2. FlLOLOGIA E rA TICA

Vma 16gica nova, capaz de atravessar 0 existente sob a Figura do mundo que foi construida pela imagina<rao, e de separar nele a verdade da falsidade: assim se especifica 0 projeto do TTP a partir do capitulo VII, ou seja, depois da indaga~ao sobre a natureza metaffsica da imagina~ao. o primeiro terreno de analise e 0 mundo da imagina<rao profetica, e, no caso, apostolica. Em conseqiiencia, 0 segundo terreno, sempre regido pe­las regras da imagina<rao, sera 0 que chamamos 0 mundo social, isto e, 0

conjunto das rela~oes que se estendem dentro e entre a sociedade civil e 0

Estado. A analise feita nos capitulos VII-X sobre a interpreta<rao da reve­la<rao apostolica (como ja os conteudos substanciais daquela anteriormente realizada sobre 0 profetismo hebraico) deve ser orientada - assim como ocorreu historicamente, sendo a imagina<rao profetica dirigida a constru­<rao de urn ordenamento social - para a analise dos princfpios e das con­di<;6es da socialidade que e realizada nos capitulos XI-XV. Examinemos sucessivamente esses dois campos de pesquisa.

"Vma ambi<;ao criminosa conseguiu fazer com que a religiao nao consista tanto em seguir fielmente os ensinamentos do Espirito Santo quanta em defender as inven<r0es humanas; e, ate, fazer com que a religiao con­sista nao na caridade, mas na difusao das discordias entre os homens e na propaganda de odio acerbo, disfar<rado com 0 falso nome de zelo divino e de fervor ardente. A esses males se acrescenta a supersti<rao, que ensina a desprezar a Natureza e a Razao, a admirar e venerar somente aquilo que as contradiz; assim, nao e de admirar que os homens, para melhor admi­rar e mais venerar a Escritura, procurem interpreta-la de tal maneira que ela pare<ra, ao maximo, contraria a essa mesma Natureza e a essa mesma Razao. Assim chegam a imaginar que profundfssimos misterios estao es­condidos nos livros Santos, e se esgotam em sonda-Ios deixando de lado 0

litil pelo absurdo; e tudo 0 que se inventa nesse delfrio se atribui ao Espi­rito Santo e trata-se de defender com todas as for~as, com ardente pai­xao. "48 E preciso entao se liberar dessas perigosas ilusoes. Devemos trans­formar a logica natural em tecnica de discrimina<rao hist6rica entre 0 ver-

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dadeiro e 0 falso (hermeneutica), e de discrimina\ao logica entre fun\oes liteis e fun\oes destrutivas (exegese), que a imagina\ao nos apresenta no inteiro horizonte da revela\30. "Para resumir, 0 metodo de interpreta\30 da Escritura nao difere do metodo de interpreta\ao da Natureza, mas esta de acordo com este em tudo. Como 0 metodo de interpreta\ao da Natu­reza, na verdade, consiste essencialmente em descrever a historia da pro­pria Natureza, para dela retirar, a partir de dados certos, as defini\oes das coisas naturais, assim, para interpretar a Escritura e precise reconstruir a historia verdadeira da propria Escritura, para depois deduzir desta, como legitima conseqiiencia de principios e dados cerros, 0 pensamento de seus autores. ,,49 "Por isso e que 0 conhecimento de todas essas coisas, isto e, de quase todo 0 conteudo da Escritura, deve ser tirado da propria Escri­tura, assim como 0 conhecimento da Natureza, da propria Natureza."50 Mas tal conhecimento historico tern de ser integra do pela fun\30 racional que se exerce sobre a Escritura, "Iuz natural", clareando sua materia. Sao, entao, dois os pianos de aplica\ao da crftica: 0 primeiro, a que chamamos hermeneutico, e urn terreno no qual, justa sua propria principia ("a regra universal da interpreta\ao da Escritura e a de nao atribuir-Ihe como seu ensinamento senao aquilo que como tal resulta, da maneira rna is evidente possivel, de sua historia")51, reconstruimos 0 processo atraves do qual se exprime a revela\ao. Instrumentos tecnicos espedficos estao a disposi\ao da atividade hermeneutica: antes de mais nada, a analise linguistica; em seguida a redu\ao tipica dos livros singulares da Escritura a assunto ge­ral; finalmente a analise do contexto cultural52. Em segundo lugar, para coroar a analise hermeneutica, deve-se abrir a critica exegetica: "Assim reconstruida a historia da Escritura e colocado 0 firme proposito de so admitir como verdadeira doutrina profetica aquilo que se conclui dessa historia e se deduz da maneira rna is clara, e tempo de se delimitar a pes­quisa ao pensamento dos profetas e do Espirito Santo. Mas tam bern para isso sao necessarios uma ordem e urn metodo semelhante ao seguido para a interpretac;ao da Natureza com base na historia da propria Natureza. Do mesmo modo que, no estudo das coisas natura is, e preciso se esforc;ar antes de tudo para descobrir as coisas mais universais e que sao comuns a Na­tureza inteira, como 0 movimento e 0 repouso, suas leis e suas regras, que a Natureza sempre observa e pelas quais constantemente age, depois su­bir de la, gradativamente, para as outras coisas menos universais; do mes­mo modo, na historia da Escritura, procuraremos antes de tudo 0 que e rna is universal, 0 que e a base e 0 fundamento de toda a Escritura, 0 que e finalmente recomendado por todos os Profetas como uma doutrina eter­na e da mais alta utili dade para todos os homens"53. E evidente 0 papel central que, na atividade exegetica, e assumido pela razao: a hermeneutica descobre 0 tecido real que a exegese discrimina. Em que sentido e segun-

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do que criterios? Segundo urn unko criterio: 0 da luz natural. "Nao te­nho duvida de que todos ja tenham entendido como este metodo nao exi­ge nenhuma Luz fora da Natural. A natureza e a virtude dessa luz consis­tern no fato de que ela deduz e conclui por via de legitima consequencia as coisas obscuras daquelas que sao conhecidas ou daquelas que sao da­das por conhecidas; nosso metodo nao exige mais nada. E certamente concordamos que ele nao e suficiente para esclarecer todo 0 conteudo da Biblia, 0 que nao se deve entretanto a algum defeito do metodo, mas ao fato de que 0 caminho que ele ensina, que e 0 direito e 0 verdadeiro, nun­ca foi seguido nem levado em considera~ao pelos homens, de modo que com 0 tempo ele se tornou muito arduo e quase impraticavel. "54

A luz natural fica entao restaurada. Afirmando isto, Spinoza reassume e funde no projeto exegetico pelo menos tres filoes de critica revoluciomi­ria que preparam seu trabalho: 0 da critica biblica propriamente ditoSS, 0 da critica filos6fica da revela,ao e da refunda,ao da luz natural56, e final­mente a reivindica,ao politica da liberdade individual de pensamento e de critica: "Cabe assinalar que as leis de Moises, ja que constitufam 0 direito publico da patria, tinham necessidade evidente de uma autoridade publi­ca para serem conservadas; pois, se cada urn fosse livre de interpretar a seu talante 0 direito publico, nenhum Estado poderia subsistir, mas se dis­solveria com isso e 0 direito publico se reduziria a urn direito privado. Mas o caso da religiao e bern divers~. Na verdade, ja que ela consiste, nao tan­to em atos exteriores, mas na simplicidade e sinceridade de animo, nao e de competencia de nenhum direito publico nem de nenhuma autoridade publica"57. Sao tres determina\6es, todas igualmente potentes, do pensa­mento revolucionario do humanismo, que constituem aqui a base do dis­curso. Mas 0 que se cleve destacar imediatamente e a especificidade da rei­vindica'rao spinozista da luz natural. Efetivamente, ao mesmo tempo em que as reassume, ela ultrapassa Suas proprias determina\oes geneticas. A IUl natural, a razao, se configuram desde logo nao simplesmente como capacidadade anaiitica, configuram-se como for\a constitutiva; nao sim­plesmente como func;ao interpretativa, mas como instancia construtiva. Na atividade hermeneutica, a razao, com efeito, percorreu 0 ser segundo a ordem gradual da emergencia da verdade. A critica que Spinoza faz nes­sas paginas ao metodo exegetico de Maimonides58 nao consegue escon­der a profunda afinidade cia tecnica intepretativa spinozista com as meto­dologias do judaismo medieval 59: ou seja, aqui como la a exalta\ao da fun<;ao da razao (e com isso as obscuridades misticas da tradic;ao judaica sao eliminadas) se da num contexto ontologico. A exegese hist6rica da Escritura na realidade e uma analise historico-hermeneutica da razao. A luz natural, ao intervir na analise da Escritura, ilumina sua propria gene­se historica. De modo que, neste ponto, podemos identificar 0 encontro e

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a:-profunda simbiose entre a instancia revolucionaria da inteligencia renas­centista e a intensidade do construtivismo erieD da tradi~ao judaica. 0 rea­lismo desta se incorpora definitivamente ao racionalismo moderno60. Rea­liza-se mais uma das premissas da utopia do circulo spinozista - ao mes­mo tempo em que se caloca uma severa cririca ao conjunto do projeto. 1sto tudo cia lugar a conseqiiencias importandssimas: pais a rela~ao entre me­toda e ontologia e revertida, em rela~ao a concepc;ao do seculo XVII, car­tesiana e em geral idealista. 0 metoda esta dentro da ontologia, nao e nenhum caso formal - a restaura\=ao da luz natural e obra historica e humana, ao mesmo tempo em que e uma explora,ao da realidade que mostra a forc;a coletiva, ontologicamente densa, dessa conquista humana. Vma conquista que inova 0 ser. A espessura ontol6gica do pensamento de Spinoza encontra, atraves cia hermeneutica da revelaC;ao, uma dinamica interior que organiza 0 desenvolvimento da razao61 .

Mais do que nunca e necessario tornar a acentuar a cesura que cons­tituem essas paginas do Tratado teol6gico-politico em relac;ao a primeira camada do pensamento metafisico. Pode-se falar realmente de uma rever­sao. Mas e necessario acentuar, ao mesmo tempo, que a reversao ainda e preca.ria, que se trata - justamente - de uma reversao de ponto de vista, e que por enquanto se exerce em niveis secundarios, em bora importantis­simos, em relac;ao a tarefa que espera a filosofia: a fundac;ao materialista de urn horizonte etico. Entretanto e uti I marcar 0 fato de que a precarieda­de da renovaC;ao ontologica e sentida peIo proprio Spinoza. No mesmo mo­mento em que escreve essas paginas do TIP, em 1666, Spinoza, com efei­to, envia a Jean Hudde uma serie de cartas sobre 0 principio ontologic062. Nelas 0 ontologismo e levado tao longe que se torna uma mistura explosi­va: ser absoluto tendendo a perfei,ao, de urn lado (completando a prova a posteriori da existencia de Deus na Etica: "Ja que, com efeito, poder existir e potencia, segue-se a isso que, quanta maior a realidade que cabe a natu­reza de uma coisa, tanto rna is forc;a tern ela para existir")63, de outro, ex­pansao do ser e transbordamento de sua perfeic;ao atraves do mundo - mas de maneira positiva, potente, construtiva: "Tudo 0 que envolve a existen­cia necessaria nao pode ter em si nenhuma imperfeic;ao, mas deve exprimir a perfeic;ao pura. Mas ja que e s6 da perfeic;ao que pode resultar que exista urn ser por sua propria suficiencia e seu proprio poder, se supomos que exista urn ser que nao exprime todas as perfeic;oes, devemos tam bern supor que exista 0 ser que compreende em si todas as perfeic;oes. Com efeito, se existe por sua propria suficiencia aquele que e dotado de menor potencia, tanto mais deve existir aquele que e dotado de potencia rnaior,,64. 0 que e fun­damental aqui e 0 sentido do processo da perfeic;ao do ser, como via ascen­dente, a partir dos seres particulares: e 0 questionamento explicito da ima­gem neoplatonica da degrada,ao do ser, da linguagem da priva,ao. E como

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a potencia do universo multiplo e tal, torna-se logicamente necessario leva­la para 0 absoluto - nao por mediac;ao, nao atraves de alguma misteriosa dialetica, mas por transferencia, descentramento, salta de nivel ou, 0 que da no mesmo, negaC;ao de nivel. Paradoxalmente, quase por absurdo, as­sim se exprime Spinoza: "Sendo assim, segue-se que nao pode haver senao urn so Ser, isto e, Deus, que exista por virrude propria. Com efeito, se co­locamos, por exernplo, que a extensao envolve a existencia, e entao neces­sario que seja eterna e indeterminada e que nao exprima absolutamente nenhuma imperfeic;ao, mas uma perfeic;ao; e porranto a extensao pertence­ra a Deus ou sera alguma coisa que de algum modo exprima a natureza de Deus, sendo Deus urn Ente que, nao somente sob certo aspecto, mas abso­lutamente, e indeterminado e onipotente. E isto que dizemos para 0 caso da extensao deve tambem ser dito de tudo aquilo que queremos afirmar como envolvendo a existencia necessaria "65. 0 absoluto se exprime entao agora sob uma forma que exige implicitamente a reversao do quadro de exposi­c;ao do sistema: a superffcie absoluta da potencia exige ser apresentada num novo cenario metafisico. Eo metodo tambem se dobra a isso: "as percep­c;oes claras e distintas que formamos dependem so de nossa natureza e de suas leis determinadas e permanentes, ou seja, de nossa potencia absoluta­mente nossa" - uma potencia refinada por "uma assidua meditac;ao e uma intenC;ao e urn proposito firmemente constantes "66, pela vida etica com con­dic;ao de reapropriac;ao do ser.

Meditac;ao, intenc;ao e proposito firrne, entretanto, nao bastam aqui a Spinoza para resolver a defasagem entre a espessura ontologica do me­todo hermeneutico e a definic;ao metafisica do ser. Por isso e que, no TIP, podernos sem duvida reconhecer na rnetodologia 0 ponto mais alto em que se organiza a pesquisa. Doravante a busca prossegue equilibrando-se em duas vertentes: uma pesquisa fenomenol6gica que enriquece a concepc;ao do ser, enquanto os niveis de definic;ao ontologica se organizam de modo precario sobre urn nivel de superficie - que no entanto ainda nao conse­guiu recuperar toda a potencia construtiva que the cabe.

Voltemos ao texto do TIP. Que significa intervir no tecido da imagi­nac;ao profetica para nele discriminar a positivi dade do processo historico? Isto quer dizer exaltar a liberac;ao da razao, mas ao mesmo tempo significa identificar as condic;oes constitutivas da liberaC;ao real. Ja nos capitulos V e VI, como coroamento da critica filosofica da revelaC;ao profetica, 0 pro­blema havia sido colocado: a funC;ao real e positiva do desenvolvimento historico da razao, 0 elemento a ser isolado no mar do existencial imagina­rio, e a constituic;ao do coletivo. "A sociedade e de grande utilidade, e mesrno absolutamente necessaria, nao somente no que se refere a defesa contra os inimigos, mas tambem pela uniao de multiplas atividades que nela se insti­tui. ,,67 A func;ao da revelac;ao e entao a de construir 0 social e organiza-lo.

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",se os homens fossem constitufdos pela Natureza de tal modo que s6 tives­sem desejo daquilo que e ensinado pela verdadeira razao, a sociedade cer­tamente nao teria necessidade de lei alguma, bastaria absolutamente escla­recer os homens pelo ensinamento dos verdadeiros prindpios morais para que eles fizessem por si mesmos e com reta intenc;ao aquilo que e realmente util. Mas, pelo contnirio, a natureza humana tern uma conformac;ao bern diversa: todos procuram 0 proprio interesse, certamente, mas nao segundo os ditames da razao sadia; e, em geral, levados apenas por seu capricho e pelas paix6es que eles desejam alguma coisa e a julgam util (sem levar em considera,ao 0 futuro ou algo alem deles mesmos). Donde segue que ne­nhuma sociedade pode subsistir sem urn poder coativo, nem, conseqiiente­mente, sem leis, que limitern e regulem os apetites e a cupidez desenfreada dos homens. ,,68 E ainda: a func;ao da revelac;ao e a de perrnitir uma asso­ciac;ao que seja rnotivada, de motivar urn "poder moderado", ou seja, urn poder capaz de articular de maneira eficiente a vitalidade da associac;ao e a necessidade do comand069. 0 equilibrio e a moderac;ao dessa relac;ao sao essenciais, sao a condic;ao mesma da implantac;ao do poder. Na verdade, 0 que interessa antes de rnais nada a Spinoza na definic;ao do coletivo e seu caniter consensual. Antecipac;ao contratualista? Talvez.

Depois que a analise hermeneutica colocou nas proprias articulac;6es do ser as normas de desenvolvimento da razao, as condic;6es da socialidade (como condic;6es da liberac;ao real) continuam a amadurecer. Dissipando­se historicamente, as sombras do imaginario guard am como residuo a positividade da imagina,ao. Os capitulos XII-XV do TTp70 tomam-se a proje,ao da positividade da imagina,ao, ja definida como possibilidade nos capitulos anteriores. Neles, a carga ontologica que a hermeneutica formou se transforma decididamente em forc;a constitutiva, em horizonte cons­titutivo das condic;6es coletivas da liberac;ao. E urn processo extremamen­te forte, de intensidade crescente. Constitutivo. E necessario insistir aqui nessa func;ao, porque frequentemente a critica anula 0 alcance ontologico do proprio termo "constitutio", reduzindo-o antes a "disposic;ao" e ati­tude humana que a atividade construtiva e estrutural71 • Esta reduc;ao -obvia em todas as leituras pantefstas que negam por principio a sobre­determinac;ao ativa do ser sobre 0 horizonte modal - e, exatamente nas articulac;6es do sistema que estamos considerando, absolutamente insus­tentavel. Contra essas interpretac;6es, pode-se fazer valer justamente 0 tre­cho que se pode identificar nos capftulos XI-XV, e que se enrafza na posi­tividade constitutiva da obediencia. Obediencia, entao, e a passagem, 0 termo que vincula religiao e sociedade. Para estabelecer a figura da obriga­c;ao normativa, Spinoza so be ate ela a partir da analise do ato de consen­so. A primeira e ainda pobre defini,ao do "poder moderado" ja indicava este caminho. "A natureza humana nao tolera a coerc;ao absoluta, nem,

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como diz Seneca 0 Tragico, 0 imperio da violencia nunca teve longa dura­,ao. 56 urn poder moderado se mantem."n Ora, a fun,ao posit iva da imaginac;ao religiosa consiste antes de tudo na difusao da obediencia. Em diversos estagios do desenvolvimento historico. Com 0 ensinamento dos apostolos, a funC;ao da religiao se eleva em relac;ao aD que se obtivera do ensinamento dos profetas: aqui, religiosidade nacional, la, religiao universal. A interiorizac;ao da consciencia religiosa que se tern com 0 cristianismo uni­versaliza a definic;ao politica da obediencia: a crenc;a se apresenta agora como a forma a priori da obediencia polftica - elemento interior da obriga­c;ao. Nao, portanto, de uma obediencia particular, mas da obediencia em geral, forma do politico, elemento constitutivo do consenso. A imagina­C;ao comec;a a guardar como resfduo uma dimensao coletiva que e ao mes­mo tempo ideologica e estrutural- a religiao universal como legitimac;ao da obediencia, e a obediencia como efetividade do social, do coletivo.

o problema da constitui~ao do coletivo se torna cada vez mais ex­plicito, e a procura de sua soluc;ao cada vez rna is apaixonada nos capitu­los que consideramos aqui. E preciso ter em mente os do is pontos que constituem a legitirnac;ao da organizac;ao social como efeitos historicos do desenvolvimento da razao: de urn lado a universalizac;ao do conteudo da religiao, do outro, a explicitac;ao cada vez mais evidente da func;ao cons­titutiva da imaginac;ao religiosa. Ora, em primeiro lugar, 0 conteudo da religiao. A analise hermeneutica, aplicada ao ensinamento dos apostolos, leva a reduzir 0 conteudo da religiao a alguns principios simplfssimos, e antes de rna is nada a urn essencial: "que a lei divina nos tenha chegado intacta neste sentido, ninguem pode duvidar disso. Com efeito, a partir da propria Escritura, sem nenhuma dificuldade, percebernos que 0 resumo de seu ensinarnento e de amar a Deus sobre todas as coisas e ao proximo como a si mesmo,,?3. Mas esse trabalho de reduc;ao nao e urn empobrecimento da consciencia religiosa: e simplesmente discriminac;ao da imaginac;ao e de­terminac;ao dos motivos que podem torna-Ia produtiva. E fundac;ao de urn codigo defsta: de uma serie de afirmac;6es - "pouquissimas" e "simplfs­simas" que provem diretamente da luz naturaF4. Qual e 0 efeito hist6rico institucional da ac;ao da imaginac;ao religiosa assim descrita? Nada rna is do que a determinac;ao da obediencia como condic;ao a priori da socialidade, do coletivo - 0 que significa dizer da vida e da reprodw;:ao dos hornens. A revelac;ao fala de coisas sobrenaturais. Deus se adapta as irnaginac;6es e as opinioes! Isto nao e de espantar porque os profetas e os apostolos "fa­lam de acordo com a inteligencia do vulgo, que a Escritura prop6e tornar obediente, nao douto,,75. A reivindicac;ao de urn codigo deista se articula entao estreitamente com a identificac;ao da fun~ao politica da religiao; a imaginaC;ao constituiu as bases da sociedade, colocando a obediencia _ teologicamente motivada - como legitima~ao do comando sobre a asso-

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ciac;ao. De maneira que, por "fe', se entendera puramente "0 fato de tef de Deus tais noc;6es que, ignoradas, e eliminada a obediencia em relac;ao a Deus, e, colocada tal obediencia, elas sao necessariamente colocadas"76. "Segue-se a isso que a fe nao exige tanto dogmas verdadeiros quanta dog­mas piedosos, isto e, tais que movam 0 animo para a obediencia ... 77 "E preciso, para avaliar a piedade ou impiedade de uma fe, levar em ccnra somente a obediencia ou a insubmissao daquele que a professa, e nao a verdade ou a falsidade cia propria fe.',78 "0 quanta e salutar e necessaria esta doutrina no Estado, se quisermos que os homens vivam na paz e na concordia, quantas causas e que causasl de perturba<;6es e crimes ela eli­mina, deixo que cada urn julgue por si." 79

Seguimos ate aqui uma serie de principios articulada da seguinte maneira: em primeiro lugar, da religiao nacional a cat6lica universal; de­pois, 0 aprofundamento da religiao universal e a revela<;ao de seu conteu­do: obediencia; disso decorre urn codigo defsta, que atesta a expansividade 16gica da categoria; finalmente, na medida em que a obediencia se apre­senta como base do conceito de obriga<;ao normativa, separa<;ao da reli­giiio e da filosofia, da fe e da razao, e determina<;ao da dignidade liberadora da razaoso. Considerando em filigrana essa serie de momentos, e recons­truindo-a na base da pura razao, temos urn esquema da religiao como imagina<;ao. Organiza-se assim: em primeiro lugar, distin<;ao entre a ima­gina<;ao negativa, que se torna supersti<;ao, e a imaginaC;ao como positi­vidade, que se torna obediencia; a obedien~ia e forma positiva da imagi­na~ao porque seu conteudo e a paz, ela e a possibilidade de se estabelecer 1I!ll contrato-consenso entre os homens; a paz entao se coloca como a base da associac;ao civil, e representa urn bern superior para a vida dos homens; qualquer superac;ao desses valores, qualquer separa<;ao em relac;ao a eles, so pode ocorrer na forma de uma superior fundac;ao e realizaC;ao, que e aquela determinada pela razao. Assistimos entao a urn desenvolvimento teorico, na verdade, no sentido iluminista. A razao, atravessando a imagi­na<;ao, libera desta urn conteudo de verdade, enquanto que a imaginac;ao constr6i a positividade do existente, e portamo da pr6pria razao. Cabe imroduzir aqui algumas considera<;6es. E sao: a rela<;ao entre 0 horizonte fenomenologico percorrido, a fun<;ao constitutiva descrita e 0 conteudo de verdade esclarecido ainda e gravemente problematica. A relac;ao se con­clui na separac;ao entre a imaginac;ao negativa - causa de guerra e inse­guran<;aS1 - e a imaginac;ao positiva, constitutiva de paz e de socialidade: mas essa separac;ao e vertical, reintroduz uma considerac;ao eminente do ser racional. E bern verdade que "conclufmos de modo absoluto que nem a Escritura deve se conformar a Razao, nem a Razao a Escritura ,,82: isto nao impede que essa separac;ao seja exaltac;ao da eminencia da razao em relac;ao a fe. E continua a se-Io embora a razao tenha percorrido 0 tecido

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fenomenol6gico da imaginac;ao: e efetivamente aqui que a hermeneutica hist6rica da razao encontrou os mais fortes limites. E em que? De novo, justamente, numa concepC;ao do ser nao perfeitamente unificada sobre a superffcie da existencia. E portanto na permanencia de resfduos dualistas no desenvolvimento de conjunto do projeto.

Estamos seguindo urn processo, e chegamos a urn estagio intermedia­rio. Vma fortfssima tendencia para definir os paliers essenciais de uma nova ordem ontol6gica comec;a a se exprimir dentro do sistema spin~zista. Es­tes sao os alicerces de uma nova estrutura: urn horizonte ontologico intei­ramente univoco dentro do qual os enigm:;iticos dualismos do panteismo ficam achatados sobre urn nfvel de total equivalencia; uma dinamica cons­titutiva que opera a transformac;ao contfnua do ser, e 0 move em termos materialmente motivados; uma dimensao coletiva, social, da pratica onto-16gica. A hermeneutica da razao nos fez avanc;ar fortemente nesse terre­no, verificando a urgencia de soluc;ao que a crise e 0 problematismo on­tol6gico da primeira camada da Etica haviam colocado sobre a mesa da pesquisa. Mas a filologia do ser, ate aqui, ainda nao conseguiu atingir seu fim: ou seja, 0 fim estrategico nao e alcanc;ado ao termo da parte filol6gica do TTP. Estao ainda presentes urn residuo dualista, uma cansativa pro­blematicidade. Nao bastou para resolver 0 problema a reduc;ao da fe a con­diC;ao a 'priori da socialidade. A abordagem fenomenol6gica, tao potente ao enfrentar a revelaC;ao profetica, nao conduz 0 conjunto da pesquisa. Pronto, penso que chegamos a identificar 0 momento de crise do discurso de Spinoza nesses capftulos, 0 momento em que ele opera uma retirada tatica em relaC;ao ao projeto estrategico: e e la onde coloca uma perspecti­va universalista, tipicamente jusnaturalista - ou seja, onde a critica do ensinamento apost61ico nao chega a concretizar completamente seus efei­tos na dimensao hist6rica (deve-se dizer que a critica no caso do profetismo judaico tinha sido mais radical!), mas, ao contnirio, os coloca sobre urn terreno de significado universal. 0 ensinamento do cristianismo, apost6-lico, e 0 conteudo da luz natural, e uma serie de princfpios universais, simplissimos, e 0 fundamento de urn c6digo defsta. Ora, 0 jusnaturalismo e urn bloqueio ao projeto constitutivo. Parece que Spinoza sente esse blo­queio quando tenta considerar a fe do ponto de vista da produC;ao de obe­diencia e a obediencia como produc;ao de socialidade: mas isto pode no maximo reduzir a potencia 16gica do jusnaturalismo a potencia formal e transcendental, e nao elirnina a eminencia de seu principio. 0 positivismo da imagina<;ao para diante do transcendentalismo da razao jusnatural. Cla­ro que podemos justificar esse bloqueio tatico, diante da imponencia dos resultados ate aqui oferecidos pelo desenvolvimento do TTP: mas per­manece urn bloqueio, urn problema aberto que, de agora em diante, temos de reconsiderar no ambito da definic;ao da cesura do sistema.

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Uma ultima eonsidera~ao, voltando urn poueo atras. Essa retirada tatica q;'e 0 jusnaturalismo mostra no decorrer de urn processo de pesquisa deci­didamente voltado para a capta~ao da dinamica constitutiva reconduz-nos it concep~ao.logiea do universal na Etica. Ora, como ja vimos83, na Etica a polemica contra 0 universal e contra toda forma de transcendentallogico e extremamente forte. 0 conhecimento e dirigido sem desvios para a intui~ao do concreto, do ontologicamente determinado: a comunica~ao logica se baseia em "no~5es comuns" que nao tern nada a ver com 0 universal, mas sao, ao contrario, generaliza~5es de defini~5es nominalistas das propriedades co­muns dos corpos. E urn racionalismo positivo, oposto ao platonismo e a qual­quer concep~ao realista do universal, aquele que Spinoza elabora com a dou­trina das no~5es comuns84• A critica destacou a importancia do impacto dessa concep~ao nominalista sobre 0 pensamento de Spinoza - verdadeira e propria base de reversao, possibilidade logica de captar a positividade em seu dina­mismo material85J De maneira que na Etica estava colocada, sob este aspecto (se bern provavelmente apenas sob este aspecto), a oportunidade de desen­volver a tematica constitutiva. Muitos outros elementos se opunham a isso, em particular e sobretudo a concep~ao do scr eminente. Mas certamente nao a concep~ao critica do universal. Estamos aqui no paradoxo do Tratado teo­logico-politico - pelo menos da parte ate aqui estudada: e que no meio de uma cansativa busca constitutiva, a pesquisa se bloqueia e volta taticamente para tras, justamente num ponto em que tudo esta disposto para que pudesse avan~ar. 0 TTP nao conhece as "no~5es comuns", em vez disso ele utiliza os universais. 0 jusnaturalismo, a teoria da luz natural e do defsmo apon­tam, e isto e suficiente para reintroduzir no conjunto da obra de Spinoza uma problematica (a dos universais) que parecia definitivamente ultrapassada. Bloqueio da pesquisa, entao, contradi~ao dela! Mas bern depressa, nos ca­pftulos XVI-XX, que analisaremos no proximo paragrafo, a analise se apro­funda justa mente contra esses limites. Veremos isso, entao. Mas urn certo jusnaturalismo (paradoxal e, se quisermos, quase entre parenteses), de qual­quer modo, esra relan~ado aqui: fara a felicidade do pensamento polftico dos seculos seguintes, e servira em particular como base para as historias aven­turescas do spinozismo. Pelo menos naquela forma, extremamente difun­dida e cujo estereotipo e representado por Bayle e os autores holandeses do seculo XVII, que combina a irracionalidade da fe e a certeza do universal natural86• A sintese rousseauniana do spinozismo vira mais tarde: mas ela mesma tambem pressupod esse paradoxo que se pensou poder ler na her­meneutica spinozista. Entretanto nao era jusnaturalismo, senao como reti­rada tatica, afastamento momentaneo da linha fundamental do projeto -e de qualquer modo contraditorio, tanto com 0 desenvolvimento posterior do pensamento de Spinoza quanto com a primeira reda~ao da Etica. Nao, Spinoza nao e urn jusnaturalista, senao por acidente.

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3. 0 HORIZONTE DA GUERRA

Este panigrafo tambem poderia ter-se chamado: para alem do jusna­turalismo, para alem do "acidente" jusnaturalista. Com efeito, mal se entra no capitulo XVI ("Ate aqui tivemos 0 cuidado de separar a Filosofia da Teologia e de mostrar a liberdade de filosofar que esta concede a todos. Agora e tempo de nos perguntarmos ate on de deve se estender, num Esta­do bern organizado, essa liberdade deixada ao indivfduo de pensar e mzer o que pensa. Para examinar essa questao como metodo, devemos tratar dos fundamentos do Estado e em primeiro lugar do direito natural de cada urn, abstra~ao feita, por enquanto, do Estado e da religiao,,87), logo se evidencia a acidentalidade de uma concep~ao jusnaturalista, racionalista e idealista, que parecia estar apontando nos capftulos precedentes. "Por Direito e Institui~ao da Natureza, nao entendo outra coisa senao as regras da natureZa de cada individuo, segundo as quais concebemos cada ser como determinado a existir ease comportar de uma certa mane ira. "88 E, ao con­trario, uma concep~ao racionalista mas naturalista, tendenciosamente mate­rialista, a que se imp6e. "Por exemplo, os peixes sao determinados pela Natureza a nadar, os grandes a Comerem os pequenos; em consequencia os peixes sao os donos da agua, e os grandes comem os pequenos, em vir­tude de urn Direito Natural soberano. E certo, com efeito, que a Natureza considerada de modo absoluto tern direito soberano sobre tudo 0 que esta em seu poder, ou seja, 0 Direito da Natureza se estende ate tao longe quanto se estende sua potencia; po is a potencia da Natureza e a propria potencia de Deus, que tern sobre todas as coisas urn direito soberano. Mas a poten­cia universal da Natureza inteira nao sendo nada mais fora da potencia de todos os individuos tornados em conjunto, segue-se a isso que cada in­dividuo tern direito soberano sobre tudo 0 que esta em seu poder, ou seja, o direito de cada urn se estende ate onde se estende a potencia determina­da que lhe cabe. E sendo a lei suprema da Natureza que cada coisa se es­force por perseverar em seu estado, tanto quanta possa, e isto nao em ra­zao de outra coisa, mas somente de si mesma, segue-sc que cada indivi­duo tern direito soberano de perseverar em seu estado, ou seja (como eu disse), de existir e se componar como ele e naturalmente determinado a fazer. Nao reconhecemos aqui nenhuma diferen~a entre os homens e os outros indivfduos da Natureza, nao mais que entre os homens dotados de Razao e os outros que ignoram a verdadeira Razao, nem entre os deficientes, os loucos e os sa os de espfrito. Tudo 0 que uma coisa faz ao agir segundo as leis da sua natureza, com efeito, ela faz com direito soberano, pois ela age tal como e determinada pela Natureza e nao pode agir de outro mo­do.,,89 Desejo e for~a constituem 0 direito natural individual. Vale a pena se perguntar: e jusnaturalismo, isto? Poderiamos sustentar, em vista do

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numero de analogias e influencias diretas que podem ser invocadas aqui, de Grotius a Hobbes9o, que estamos diante de uma versao pessimista do jusnaturalismo. Nao me parece. 0 especifico de Spinoza e que ele evita e refuta aquelas que parecem ser as caracteristicas essenciais das filosofias jusnaturalistas, ou seja, a concep~ao absoluta da funda<;ao individual e a concep~ao absoluta da cessao do contrato - a esses fundamentos abso­lutos se opoe, no pensamento spinozista, uma fisica da sociedade, isto e, uma medinica das pulsoes individuais, e uma dinamica das rela<;oes de as­socia<;ao, cuja caracteristica e nunca se fechar sobre urn absoluto, mas proceder, ao contrario, por deslocamentos ontologicos. A dificuldade -bern conhecida da historiografia filosOfica - em classificar 0 Direito Na­tural de Spinoza entre as diversas especies de Direito Natural deriva de uma unica razao radical: 0 pensamento social, juridico e politico de Spinoza nao e jusnaturalista. Onde 0 pensamento do Direito Natural e, nos fundamen­tos, uma anaHtica das paixoes, 0 de Spinoza e uma fenomenologia dessas mesmas paixoes; onde 0 pensamento jusnaturalista, na teoria do contrato e do absolutismo, e percorrido por uma instancia dialetica, 0 de Spinoza e aberto a uma problematica da constirui<;ao.

A demonstra<;ao dessa principal diferen~a entre 0 pensamento spino­zista e 0 jusnaturalismo nao e taO completa nesta primeira defini<;ao do direito natural individual (que ja vimos), quanto no trecho seguinte, 0 contrarual. "Se consideramos que os homens, sem a pratica do socorro mutuo e sem 0

culro da razao vivem necessariamente em pessimas condi~oes ... , veremos claramente que eles, para viverem em seguran~a e da melhor maneira, tive­ram necessariamente de se unir e fazer de modo a terem objetivamente 0

direito que cada urn tinha por natureza sobre todas as coisas e que isso fosse determinado, nao mais pela for<;a e 0 apetite de cada urn, mas pelo poder e a vontade de todos. Mas teria sido inutil que se propusessem a faze-Io, se quisessem ter continuado a seguir somente 0 que 0 apetite sugere, pois pe­las leis do apetite cada urn e arrastado de modo diferente; por isso tiveram de estabelecer de maneira bern firme e convir entre eles de regularem cada coisa segundo os ditames da razao, a qual ninguem ousa se opor abertamente, para nao aparecer como insensato, e de frear 0 apetite naquilo que este sugere de danoso aos demais, e de nao fazer aos outros 0 que nao queriam que lhes fizessem, e finalmente de defender 0 direito alheio como 0 proprio. De que modo, depois, esse pacto tera de ser estipulado, para que seja valido e du­radouro, e 0 que devemos ver agora. ,,91 A primeira vista, e a utilidade co­mum, organizada pela razao, que determina 0 pacto, isto e, a passagem de urn estado de natureza, em que reina 0 antagonismo, ao estado artificial e pacifico constitufdo pelo contrato. Mas e realmente artificial e ficdcio esse Estado construido pelo contra to? Se fosse, estarfamos em pleno jusnaturalis­mo. Na verdade, nao 0 e e portanto nao estamos dentro dos esquemas do

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direito natural. Com efeito, a passagem das individualidades a comunidade nao se efetua por transferencia de potencia Oll por cessao de direito, mas no amago de urn processo constitutivo da imagina~ao que nao conhece cesura logica. 0 Estado - ernbora definido sobre uma base contratual - nao e ficticio, ao contrario, e uma determina~ao natural, uma segunda natureza, constitufda pela dimlmica conflitual das paixoes individuais, e recortada para este fim pela a~ao daquela outra potencia natural fundamental que e a ra­zao. Deslocamento da potencia. E sobre 0 fio fenomenologico e sobre o"entre­la~ar da imagina~ao e da razao que se compoe essa trama, evitando assim seja 0 individualismo pessimista, seja 0 dialetismo contratual, seja oorgani­cismo absolutistico de Hobbes - com 0 qual a polemica se torna direta92•

Retornemos entao a leitura do texto de Spinoza, com cui dado para nao nos deixarrnos confundir pelas terminologias que pesadarnente cobrem, com palavras jusnaturalistas, aquilo que nao e jusnaturalista - terrnino­logias que no enranto, conremporaneamente, quase de surpresa, readquirem urn sentido metafisico preciso e uma denota<;ao contradit6ria com a coe­rencia do direito natural, justamenre ate identificar a tensao constitutiva. E entao: "Como ja dernonstramos que 0 direito natural e deterrninado sornente pela potencia de cada urn, segue-se a isso que, quando urn trans­fere a urn outro, espontaneamente ou pela for~a, da propria potencia, outro tanto Ihe cede necessariarnente do proprio direito; e aquele que detem 0

pleno poder de con stranger a todos pel a for~a e controla-Ios com a amea­~a da pena capital, que todos universalmente temem, diz-se que tern 0 su­premo direito sobre todos: direito que tera sornente enquanto conservar essa potencia de fazer aquilo que quer; de outro modo, seu poder sera precario, e ninguem que seja mais forte que ele sera obrigado a lhe obede­cer se nao quiser. Com este criterio, uma sociedade pode ser constituida sem nada que contrarie 0 direito natural, e qualquer pacte pode sempre ser observado de boa-fe: isto e, com a condi~ao de que cada urn transfira roda a propria potencia para a sociedade, a qual, sozinha, deted assim 0

supremo direito natural sobre tudo, ou seja, 0 supremo poder, a que cada urn, ou livremente, ou por temor dos castigos, devera obedecer. Este di­reito da sociedade se chama 'democracia', a qual se define, por isso, como a uniao de todos os homens que tern, em conjunto, pleno direito a tudo 0

que esta em seu poder. Daf a conseqiiencia de que 0 soberano nao esta sujeito a nenhuma lei, mas todos lhe devem obedecer em tudo; ja que isto deve ter sido tacito ou expressamente pactuado entre todos, quando trans­feriram para a sociedade todD 0 proprio poder de se defender e assim todo a proprio direito"93. Primeiro paradoxo terminol6gico: poder absoluto =

democracia. Mas isto significa uma unica coisa: e que a passagem nao com­portou (senao de maneira simulada) uma transferencia de direitos, mas apenas urn deslocamento de potencias, nao uma destrui~ao, mas uma mais

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complexa organiza~ao de antagonismos. A rela~ao entre exercicio do po­der e expressao do consenso nao esta achatada sobre nenhuma sintese de poder: e entreranto uma rela~ao aberta - "0 pacto nao pode rer nenhu­rna for~a, senao em razao da utilidade, desaparecida a qual 0 proprio pacto fica completamente anulado e destruido,,94. Ora, 0 governo democratico e "0 mais natural e 0 mais conforme a liberdade que a natureza concede a cada urn. Nele, com efeito, ninguem transfere a outrem 0 proprio direito natural de modo tao definitivo que depois nao possa mais ser consultado; mas 0 transfere a maior parte da sociedade inteira, da qual ele e membro. E por esse motivo rodos permanecem iguais, como eram antes no esrado de natureza,,95. Mas dizer isto (alem de sobredeterminar a profundissima distancia que separa Spinoza do mecanicismo e do organicismo hobbesia­nos) significa exatamente outra coisa: voltar para td.s, retomando 0 dis­curso a partir da natureza da a~ao individual, de onde 0 processo come­~ara, e reafirmando a continuidade, ou de todo modo a falta de solu~ao de continuidade que ° processo registra - significa bern definir 0 signifi­cado (reverte-Io?) daquela precipitada passagem da individualidade ao contrato descrita pelas primeiras paginas do capitulo XVI, abafada den­tro de uma terminologia jusnaturalista. Aquele antagonismo das individua­lidades, ponto de parrida do processo, mantem entao sua natureza, mes­rno no nfvel da sociedade desdobrada. 0 individuo nela se apresenta no­vamente como direito absoluto. "Ninguem podera jamais transferir sua potencia, e consequentemente seu direito, ao ponto de deixar de ser urn homem; e tampouco havera jamais urn soberano que possa fazer rudo 0

que quiser. "96 E ainda: "Para conhecer bern are onde se estendem 0 direi­to e 0 poder do governo, e preciso notar que 0 poder do Estado nao esta lirnitado ao uso da coer~ao apoiada no medo, mas compreende todos os meios de fazer com que os homens obede~am a seu comando; nao e 0 modo de obedecer, de fato, mas a propria obediencia que faz 0 sudito"97. De rnaneira que nao e 0 absolutismo que constitui a sociedade politica, mas a organiza~ao da potencia das individualidades, a resistencia ativa que se transforma, pelo uso da razao, em contrapoder, 0 contrapoder que se des­dobra coletivamente como consenso ativo, a pratica consensual que se articula em constitui~ao real. 0 antagonismo natural constroi a histori­cidade concreta do social- seguindo a potencia consriruriva da imagina­~ao coleriva e sua densidade material. Nao 0 absoluto, nem 0 democrati­co, e 0 resultado do processo, mas uma constitui~ao coletiva do real.

Recapitulemos, e coloquemos os problemas novos que nascem des­sa primeira leitura. 0 desenvolvimenro da indaga~ao spinozista - e a pri­meira observa~ao a ser feita -, longe de retomar os esquemas do direito natural, tenta, ao contrario, nessa primeira defini~ao explicita da doutri­na poHtica, regular-se sobre uma dinamica constirutiva. A tese da social i-

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za~ao, sustentada antes atraves da analise dos percursos da imagina~ao, procura no terreno politico uma verifica~ao e uma solu~ao de suas multi­plas antinomias. 0 ritmo genetico do social, em cima dos antagonismos individuais, e representado de maneira particularmente versatil, e os va­rios deslocamentos de potencia se afirmam com muita for~a no ambito de urn projeto constitutivo. Desse ponto de vista nao ha duvida de que ° que lemos ate agora e 0 primeiro anti-Hobbes que a historia do pensamento politico ocidental nos apresenta. Urn anti-Hobbes que se demora, ate na­mora, com 0 realismo hobbesiano da descri~ao da sociedade natural (e talvez, como veremos mais adiante, 0 aceite como descri~ao adequada da condi<;ao historica), mas que visa deliberadamente a demolir as fun,6es logicas desse sistema - em particular 0 motor dialetico que permite uma transferencia do direito individual para 0 absoluto. Mas parar neste pon­to e opor-lhe uma dinamica constitutiva nao e apenas fundar urn anti­Hobbes, e rambem, ao mesmo tempo, promover urn anti-Rousseau. Ja como tinhamos visro98, e justamente na transferencia dialetica do indivi­dual para 0 universal, para 0 absoluro, que 0 milagre (e a mistifica~ao) politica da ideologia burguesa do Estado se origina. Talvez 0 misticismo realista de Hobbes e 0 ascetismo utopico de Rousseau tenham estado ambos presentes na ideologia do circulo spinozista: agora, e a mesma autocrftica que os ataca e os risca do horizonte especulativo spinozista - agora e para sempre99. 1nutil voltar a isto. Mais importante e insistir no faro de que Spinoza, ao atacar esse incipiente filao ideologico, reivindica uma experien­cia politica igualrnente forte e teoricamente alternativa: a experiencia que remete aos homens de Maquiavel e de Althusius lOO. Maquiavel: "E cerro que os Prfncipes, para oprimir 0 povo, tern necessidade de uma for~a ar­mada paga por eles e que alem disso ainda eles receiam, tanto quanta a liberdade de uma miHcia de cidadaos, autores, com sua coragem, seu la­bor e 0 sangue que derramam em abundiincia, da liberdade e da gloria do Estado"lOl. Althusius: e s6 a resistencia, ou seja, 0 desenvolvimento e a organiza~ao de seu direito, que constitui a soberania - com isro, e evi­dente, 0 conceito de soberania esta implicado no de constirui~ao (no sen­tido juddico)102, Estas fontes, com a carga de lutas revolucionarias e liberta­rias que as caracteriza, do pensamento republicano do humanismo aos an­timonarquistas protestantes, ressoam dentro da defini~ao spinozista do con­trato social como "poder e vontade de todos"103 - quase a antecipa~ao de uma violenta e polemica contraposi~ao a "vontade geral"!

Isto posto, surge entretanto uma serie de graves problemas. E sao todos inerentes aquele mesmo conceito de constitui~ao que come~a a emer­gir com tanto vigor. Efetivamente, 0 processo de constitui~ao aqui e evi­dente sobretudo como fun~ao negativa: ou seja - e a propria forma de exposi~ao 0 demonstra, em seus laboriosos va ivens, no incerto andamen-

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to logico da defini~ao (e na conseqUente imprecisao terminologica, tao pouco habitual em Spinoza) -, isto entao quer dizer que, observado em filigrana, 0 processo funciona: a) como colocar;ao do problema da figura da rela~ao entre individualidade e socialidade, e como alusao a seu per­curso abstrato; b) como destrui,ao de toda possibilidade de hip6stase da sintese, como insistencia na sua eventualidade historica e nas caracteristi­cas versateis do consenso; c) como indica~ao de uma dificuldade funda­mental na solur;ao do problema: pois na verdade 0 mecanismo do deslo­camento ontologico da potencia, do nivel individual ao social, esta indi­cado, mas essa indicar;ao por enquanto reside no vazio de uma imagina­r;ao metaffsica que possa reger 0 processo em seu coni unto. Donde a insu­ficiencia atual da tematiza,ao (que, veremos, afeta a totalidade do Trata­do teoI6gico-politico) e 0 surgimento de novos problemas. Mas para iden­tifica-Ios e born acompanhar, por assim dizer, de dentro, os limites do pro­cesso constitutivo. E sempre 0 tema contratual que devemos ter em mira: e a dificuldade surge essencialmente diante da insuficiencia do contrato para criar uma obrigar;ao eficaz 104. Ora, muitos autores tern indicado esse "li­mite" interne do pensamente spinozista105 ; mas e urn limite? Se, como acontece freqUentemente, esse "limite" e assinalado em relar;ao a finalizar;ao conceitual operada pelo pensamento politico para produzir uma definir;ao juridica do Estado moderno (com Hobbes e Rousseau como arquetipos), essa etiqueta nao cabe sobre Spinoza: ele esta buscando outra coisa. 0 pensamento de Spinoza nao e urn pensamento "liberal", em sentido ne­nhum, nao e fundador do Estado de direito, de maneira alguma, nao tern nada a ver com a "sublime" linha Hobbes-Rosseau-Kant-Hegel! 0 limite agora, e desta vez sem aspas, e entao unicamente relativo a impossibilida­de atual de fechar a essencia contratual num sistema dinamico adequado: e na cesura, ainda nao superada, do sistema, na dificuldade de rea tar 0

contrato com a forr;a constitutiva da imaginar;aoI06 . Quando, nos 6ltimos anos de sua vida, que nao deixam de ser 0 momento de maior maturidade do sistema, no Tratado politico (1675-1677), Spinoza elimina da argumen­tar;ao constitutiva a teoria do contrato exposta no TTP, a organizar;ao do sistema, com isso, terna-se coerente - quaisquer que sejam os limites da nova formular;ao. Mas e preciso ir bern alem da sistematiza~ao atual! Neste momento, em cornpensar;ao, temos sob os olhos apenas dois elementos: de urn lado uma relar;ao de potencias fundada sobre 0 antagonismo, refi­nado mas ainda nao definitivamente integrado ao processo constitutivo (ao projeto deste), e em segundo lugar a rigorosa exclusao de qualquer con­cepr;ao hipostatica dessa relar;ao. Atenr;ao: eu nao disse que a concepr;ao antagonica da realidade social seja deixada de lado quando da posterior maturar;ao do sistema - antes, acontecera ate 0 contrario. 0 que e aban­donada e a figura do contrate e a ilusao de optica que ela produzia: 0

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jusnaturalismo spinozista. Mas para que isso acontecesse era preciso que o discurso politico spinozista perdesse sua relativa autonomia e voltasse a ser urn aspecto, uma conseqUencia do desenvolvimento do sistema: a ver­dadeira politica de Spinoza e sua metafisica.

Por enquanto estamos ainda bern aquern dessa conclusao. Os pro­blemas colocados pelo Tratado teoI6gico-politico, depois da tem:itica da fundar;ao reexaminada ate aqui, sao enfrentados de maneira adequada a ambigliidade e a imprecisao atuais do projeto. E preciso entretanto distin­guir entre a dimensao de urn projeto constitutivo, agora solidamenfe ad­quirida, e as dificuldades concretas de sua execu<;ao. Essas dificuldades seguem urn esquema descontinuo, nos capitulos seguintes do TTP, isto e, elas partem de urn problema unico - impossivel de resolver no plano politico,' dele se irradiam mantendo a autonomia do nivel politico da ar~ gumentar;ao, para fracassar uma por uma, nao seguindo urn ritmo coerente, mas, a cada vez, na propria singularidade da tentativa. No fim, nenhuma dessas tentativas sera uti! para a continuar;ao da analise. Mas, como elas provem todas de urn unico problema, 0 da constituir;ao ontologica do real, contribuem para enriquecer a essencia logica deste, para descrever sua complexidade no sistema. Quais sao essas tentativas? Sao: 1) uma proposta positivista (no sentido juridical; 2) urn aprofundamento da fenomenologia historica do contratualismo; 3) uma proposta abertamente politica, que queria ser realista e acaba sendo regressiva, de teor conservador e inspira­r;ao oligarquica; 4) uma afirmar;ao de laicismo na tematica do "jus circa sacra"; 5) uma bela reivindica,ao etico-politica da "libertas philosophandi". Vejamos urn a urn estes temas, lembrando-nos novamente que eles nao se colocam absolutamente numa sucessao logica, mas so ganham sentido a partir do problema a que se referem, do ponto de onde emanam e nao dos resultados a que chegam, de qualquer modo em sua parcialidade e em sua inconseqiiencia em relar;ao ao sistema 107.

o positivismo juridico de Spinoza e tentador, pelo menos na forma em que surge nessa ultima tranche do TIP. "Justir;a e uma disposir;ao cons­tante de animo para atribuir a cada urn aquilo que lhe cabe segundo 0 di­reito civil. Injusti<;a, ao contrario, consiste em retirar de alguem, com pre­texto de direito, aquilo que pelo direito civillhe cabe. ,,108 A validade da lei e estabelecida como fundamento da justir;a 109. Neste momento, entao, 0

convencionalismo positivista e expressamente colocado como a solur;ao que permite ultrapassar 0 limite ontologico encontrado pelo desenvolvimento da perspectiva constitutiva. Em que aspecto, para mim, essa solur;ao e ao mesrno tempo parcial e estimulante? E parcial porque 0 positivismo juridi­co que se afirma aqui e puramente legalista - enraizado num horizonre fenornenologico esteril, representa uma positividade do comando que ga­nha validade num plano unica e absolutamente formaP 10. 0 limite onto-

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logico repercute no plano da historicidade e empobrece 0 conteudo do dis­curso teorico jurfdico. Ao mesmo tempo, esse positivismo e tentador na medida em que alude a uma positividade do direito que se move sobre as articula~6es e os movimentos ontologicos do processo constitutivo. A aborda­gem spinozista do problema do direito exige este complemento da analise.

Complemento da analise que Spinoza, nas paginas imediatamente seguintes, tenta abordarili. Se, diz ele, 0 estado de natureza, que devemos conceber "sem religiao e sem lei", passa a "estado de religiao" - e vimos a imagina~ao produzir essa passagem -, devemos alem disso captar a norma dessa passagem historica, e identifica-la no "contrato explicito" que constitui tam bern 0 estado de religiao. "E essa promessa ou transferencia de direito para Deus ocorre do mesmo modo como concebemos que se faz numa sociedade comum, quando os homens decidem renunciar ao proprio direito natural. Com urn pacto explfcito e com juramento. "112 Contrato, entao, como norma da transforma~ao da sociedade? Historia como fluxo e substitui~ao de fases contratuais diferentes, cada vez rna is caracteriza­das pelo dominio da razao? 0 quanta a proposta e abstrata salta imedia­tarnente aos olhos. Mas tambem 0 quanto esses atos sao bern pouco spino­zistas, justamente hi onde 0 pensamento de Spinoza e considerado como instancia fenomenologica e como vontade constitutiva. De modo que tam­bern nesta abordagem de uma fenomenologia hist6rica do contratualismo fica uma tentativa malsucedida, uma indica~ao excentrica. No entanto ela tambem enriquece 0 quadro. Pois, com efeito, desse modo estamos nova­mente colocados diante da indomavel riqueza do mundo da imagina~ao, dessa laica e voraz concep~ao da diversidade e da versatilidade do ser fenomenologico - do reaparecimento potente da concep~ao do ser univo­co, como riqueza, indomavel reino da vida,

Neste terreno do ser indomavel, porem na falta de uma alternativa ontologica suficiente para dirigir sozinha a continua~ao da indaga'rao, a pesquisa spinozista vai e vern. Agora retorna, muda de quadro, depois de aludir aos trajetos da potencia ontologica, para na fenomenalidade do exis­tente, na casuistica do politico. No capftulo XVIII "deduzem-se alguns prin­dpios politicos a partir da estrutura da Republica dos Hebreus e da sua hist6ria" 113. Aqui a erraticidade do raciocinio, sobre urn ass unto descone­xo, onde a analogia ocupa 0 lugar do encadearnento de ideias, se perde. Fingindo uma reorganiza'rao da experiencia historia do Estado judaico, exprime-se uma serie de maximas que mais lembram as coletaneas erudi­tas da epoca que 0 estilo logico do pensamento de Spinoza 114. Se nisto devesse consistir a passagem da teoria polftica a analise politica, essa tentativa se concluiria por urn completo fracasso. A propria exalta'rao do regime polf­tico dos Paises Baixos tambem e inteiramente conservadora nessas paginas. E depois, de maneira geral, "com esses exemplos fica inteiramente confir-

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made aquilo que dissemos, ou seja, que cada Estado deve conservar sua forma de governo, que nao pode ser mudada sem 0 perigo de uma total ruina do proprio Estado"115. Pode ser que, por exemplo, a despropor'rao que se ve­rifica entre a exalta'rao - urn pouco retorica, na verdade - das experien­cias republicanas e a posi~ao muito nitidamente regressiva das propostas polfticas se deva a preocupa'rao, fortemente sentida por Spinoza, de corres­ponder as expectativas do milieu oligarquico ao qual, a partir de Voorburg, ele estende a mao! E nao h:i duvida de que justamente naqueles anas se esta desgastando, por tras da fachada cada vez rna is caduca da ilusao republi­cana, 0 regime dos de Witt - de modo que a analogia entre 0 texto spinozista e os fatos politicos, e portanto a fun<;ao do texto, sao efetivas116. Mas e verdade tambem que com isso (no plano teorico) 0 discurso nao apenas nao avan'ra, mas ele recua. Positivamente, e preciso assinalar nesse capitulo uma efemera volta do interesse pe10s momentos historicos reais, sua descri<;ao e estudo117.Novamente 0 carater indomavel da historicidade concreta? Tal­vez, mas aqui a historia se tornou opaca.

Finalmente, e quase com urn suspir~ de alivio, entao, que lemos os dois ultimos capitulos do Tratado teoI6gico-politico, 0 XIX (onde "se demonstra que 0 direito de regulamentar as coisas sacras pertence inteira­mente ao Soberano e que, se quisermos obedecer a Deus, 0 cuho religioso externo deve se adequar a paz do Estado,,118), e 0 XX (onde "se mostra que num Estado livre e licito a cada urn pensar 0 que quiser e dizer 0 que pensa")119. Nao porque 0 problema da constitui<;ao seja mais bern abor­dado nesses capitulos, nao porque 0 fio do sistema seja retomado e desen­volvido, mas porque positivamente, livremente se alargam aqui as tenden­cias progressistas do pensamento spinozista. Uma op<;ao politica radical a favor do Estado laico e da liberdade de pensamento conquista urn espa­<;0 definitivo. Capitulos iluministas, combativos, de engajamento pessoal. "Quer consideremos entao a verdade ou a seguran~a do Estado, ou enfim o interesse da Religiao, somos obrigados a admitir que ate 0 direito divi­no, ou seja, relativo as coisas sacras, depende absolutamente do decreto do soberano e que este e interprete e defensor daquele. Donde se segue que os ministros da palavra de Deus sao aqueles que ensinam a piedade reco­nhecendo a autoridade do soberano e conformando-se com 0 decreto pelo qual ele a adequou a utilidade publica.'. 120 Quanto a liberdade de pensa­mento, "demonstramos que: I) E impossivel retirar dos homens a Iiberda­de de dizerem 0 que pensam. II) Que essa liberdade pode ser reconhecida ao individuo sem perigo para 0 direito e a autoridade do soberano e que 0

individuo pode conserva-Ia sem perigo para esse direito, se ele dela nao tirar licen<;a para mudar 0 que quer que seja aos direitos reconhecidos no Estado ou para agir contra as leis estabelecidas. Ill) Que 0 individuo pode possuir essa liberdade sem perigo para a paz do Estado e que ela nao gera

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inconvenientes que nao se possam facilmente eliminar. IV) Que 0 gozo dessa liberdade dada ao indivlduo e sem perigo para a piedade. V) Que as leis promulgadas a respeito de materias especulativas sao completamente inu­teis. VI) Mostramos enfim que nao apenas essa liberdade pode ser conce­dida sem que a paz do Estado, a piedade e 0 dire ito do soberano sejam amea<;ados, mas que, para conserva<;ao deles, eia deve se-Io.,,121

Com isto chegamos ao ponto de poder fazer uma avalia<;ao de con­junto desses capitulos de Spinoza. Do ponto de vista do sistema, estamos no meio da cesura metafisica, do paradoxo teorico. 0 projeto constitutivo, no Tratado teoI6gieo-politieo, tentou for<;ar a crise, mas nao consegue. A imagina<;ao constitui urn terreno percorrivel, mas - na falta de uma refun­da<;ao ontol6gica - ela nao suporta 0 peso da tarefa. No entanto, dentro da cesura acumularam-se possibilidades e condi<;6es de uma supera<;ao. Entre a prime ira camada da Etiea e 0 Tratado teol6gieo-politieo nao se registra progressao teo rica senao no sentido de uma acumula<;ao metodo­logica e de uma sintese homogenea de momentos analiticos que se haviam formado separadamente: certamente, mas como essa acumula<;ao e impor­tante! Pela primeira vez, com efeito, 0 construtivismo geometrico se ligou a densidade ontologica da fisica spinozista, e isto em vasta escala, e se pro­vou num desenho constitutivo do qual toda influencia do velho dedutivismo pantelsta estO eliminada 122. E com ela toda possibilidade de deslizar para as virtudes e as mora is provisorias da crise do Renascimento, da dupla verdade a tatica heuristica, da doutrina dos dois tempos a ideologia da media<;ao burguesa. Uma metodologia corpulenta, fundamentada no ri­gor da causalidade produtiva, agressiva e indomavel, e a que aparece ago­ra. Mas, e isto e ainda rna is importante, na cesura registrada pelo TIP se materializam e se aprofundam 0 sentido e a defini<;ao do ser. A cesura nao e, nao pode ser somente metodologica. As caracteristicas versareis do ser univoco, sobre as quais a metodologia se experimentou, voltam a se des­tacar agora, em todos os niveis e em todos os sentidos. E urn ser polemico aquele que surge no fim do Tratado teo16gieo-politico, e urn horizonte de guerra que aparece. As vezes, quando 0 projeto constitutivo nao consegue apoio na realidade, e como se nos encontrassemos numa situa<;ao que s6 uma teoria dos jogos poderia caracterizar: e "na solidao do campo" nao e estranho que Spinoza se divirta com esse pensamento123

. Trata-se justa­mente de urn jogo: partidos, antagonismo, alternativas estrategicas - "urn jogador e leal quando fundamenta suas possibilidades de ganho ou de perda, ou seja, suas probabilidades, nas mesmas bases que seu adversario". Mas e urn jogo bern rna is consistente que nos e proposto aqui, resultante dos multiplos fracassos do ensaio constitutivo do Tratado teoI6gico-poli­tieo. Horizonte da guerra, foi dito - ou seja, horizonte ontologicamente denso de continuas incurs6es da potencia em dire<;ao a constitui<;ao, de cru-

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zamentos e tens6es e antagonismos descritos por uma fisica da historicidade. Descritos sobre a superficie do ser univoco, que faz pressao - nao satis­feito com sua horizontalidade atingida, com sua bela e movimentada pla­nura: aqui, desta nova base, e reconstruido 0 horizonte da libera<;ao. 0 caminho que leva da utopia a crise foi impavidamente percorrido por Spi­noza, que destruiu 0 quadro inicial, a imagem centripeta do ser, mas sem, de modo algum, renunciar a iniciativa revolucionaria de que aquele ideal se alimentara. "Dos fundamentos do Estado, tais quais os expusemos aci­rna, segue-se de modo bastante evidente que seu fim ultimo nao e domi­nar os homens nem coagi-Ios pelo medo e submete-los ao direito alheio; mas, ao contra.rio, liberar a cada urn do temor, a fim de que possa viver, na medida do possfvel, em seguran<;a, e isto a fim de que possa gozar do melhor modo do proprio direito natural de viver e agir sem dano a si nem aos outros. 0 escopo do Estado, digo, nao e converter em animais os ho­mens dotados de razao nem fazer deles automatos, mas, ao contra rio, fa­zer com que sua mente e seu corpo possam com seguran<;a exercer suas fun<;6es, e que eles possam usar da livre razao e nao lutem urn contra 0

outro com odio, ira ou ardiI, nem se deixem arrastar por sentimentos inf­quos. 0 verdadeiro fim do Estado, portanto, e a liberdade. ,,124 Agora, e esta liberdade que e reconstruida, constitufda. Dentro e a partir de urn horizonte que nao nos garante nada mais alem da absolutez da multiplici­dade modal, e coloca 0 indomavel reino da imagina<;ao como 0 unico ser a realizar. A crise da metafisica obrigou a indaga<;ao a fazer uma volta, a uma verifica<;ao no politico. Mas os problemas fixados pelo politico, 0

horizonte da guerra no qual a indaga<;ao se bloqueou, remetem nova men­te para a ontologia. Nenhum problema, e menos ainda 0 da Iibera<;ao, pode encontrar espa<;o de solu<;ao fora da ontologia. Todos os termos agora estao colocados, nesta articula<;ao fundamental do desenvolvimento do sistema - ainda que na forma da cesura - que e representado pelo Tratado teo-16gieo-politieo. A politica e a alma da crise e do desenvolvimento da filo­sofia de Spinoza. Mas sua solu<;ao, a retomada e a realiza<;ao da instancia constitutiva remetem necessaria mente a ontologia. De novo.

NOTAS

I Carta XVII (G., IV, pp.76·77; P., pp. 1115.1116). 2 Ibid. (G., IV, p. 77; P., p. 1116). 3 Ibid. 4 Ibid.

5 R. DESCARTES, (Euvres, ed. Adam-Tannery, t. VII, pp. 23-24. 6 Tal e por exemplo a posi~ao de GUEROULT, op. cit., t. II., pp. 572-577, em

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polemica com Ch. APPUHN, in Chronicum Spinozanum, IV, 1924-1925, p. 259 sq. • 7 Cartas XVIII, XIX,XX, XXI, XX!!, XXIII, XXIV e XXV!! (G., IV, pp. 79-157

e 160-162; P., pp. 1118-1167 e 1170). 8 Carta XVIII (G., IV, p. 83; P., p. 1120). 9 Carta XIX (G., IV, p. 88; P., p.l123). 10 Carta XIX (G., IV, pp. 89-90). 11 Carta XXI (G., IV, p. 128). 12 Carta XXI (G., IV, p.129). 13 Carta XXI. Nas sucessivas cartas entre Spinoza e Blyenberg nao se Ie nada de

novo: a troca se esgota na repeti~ao das posi~6es respectivas. Sobre esse coniunto de cartas a Blyenberg, muito insistiu F. ALQUIE, Servitude et liberte selon Spinoze, cit., particularmente as pp. 20-25, onde adota essa correspondencia como emblematica da posi~ao etica de Spinoza. A tese de Alquie e decididamente a de que a etica de Spinoza, como demonstram as respostas a Blyenberg, se op6e a moral, a concep~ao do homem como contingencia e como liberdade. A base naturalista da etica nao permite que os efeitos morais se liberem em sua plenitude. Naturalmente, como ja vimos, essa leitura de Alquie repete a simpatia pela moral aberta de Descartes (deste ponto de vista, a lei­tura das cartas de Blyenberg, que se refere explicitamente a Descartes, e importante) con­tra a posi~6es de Spinoza. Desnecessario tornar a destacar como as pressupostos de Alquie impedem uma correta leitura do problema de Spinoza. E bern verdade que, nos ultimos capitulos de seu trabalho, Alquie reconhece pelo menos a paradoxalidade e a problema­ticidade das posi~6es eticas de Spinoza: mas nao quer, nem pode, dados os pressupos­tos de seu pensamento, diminui-Ios numa interpreta~ao que colha, dessa paradoxalidade, a feliz abertura construtiva. De todo modo, devemos voltar a leitura de Alquie quando examinarmos a quinta parte oa Etica (G., IV, p. 130).

14 A. KOYRE, no Avant-Propos de sua edi~ao, cit., do TRE, p. XVII, se surpreende com essa afirma~ao spinozista que voltamos a encontrar em cartas a Bouwmeester, a Tschirnhaus e na advertencia as Opera postume. Se na verdade, como parece pensar Koyre, Spinoza tivesse mantido intacto 0 esquema de sua primeira logica (idealista), nao se compreenderia 0 porque do bloqueio da reda~ao do TRE.

15 Carta XXIII (G., IV, p. 149). 16 Carta XIX (G., IV, pp. 92-93). 17 Pdo menos em duas perspectivas, imediatamente presentes em Spinoza: a da

Reforma holandesa e do meio protestante e sectario em que vive (a esse respeito, ter sempre em mente 0 livro de Kolakowski), e a do pensamento dos "politicos" e dos li­bertinos _ desde Maquiavel, tam bern sempre presente para nosso autor. Mas mais adiante falaremos da rela~ao Maquiavel-Spinoza.

18 Trata-se da segunda guerra de navega~iio anglo-holandesa, que dura de 1665 a 1667; ela e muito malvista, principalmente na Inglaterra. De maneira geral, ver, so­

bre essa guerra, a bibliografia historica ja dada. 19 Carta XXIX (G., IV, p. 165; P., p.1174). 20 Carta XXX (G., IV, p. 166; P., p.1175). 21 Ibid. (G., IV, p. 166; P., pp.1175-1176). 22 SPINOZA publica anonimamente 0 Tractatus teologico-politicus em Amster­

da, em 1670. Como indica a carta anteriormente citada, de ja esra trabalhando nisso

em 1665. Utilizaremos a abrevia~ao TIP. 23 A novidade da abordagem do TIP e sentida por todos aqueles que 0 estudaram

por de mesmo. Podemos lembrar, dentre os textos mais importantes: L. STRAUSS, Spi­noza's critique of religion, Nova Jorque, 1965 (tradu~ao inglesa de Die Religionskritik

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Spinozas ais Grundlage seiner Bibelwissenschaft, Berlim, 1930), assim com "How to study Spinoza Theological-political Treatise", in Proceedings of American Academy for jewish Research, XVII, 1948, pp. 69-131; G. BOHRMANN, Spinozas Stellung zur Religion, Giessen, 1914; M.]. BRADSHAW, Philosophical Foundations of Faith, Nova Iorque, 1941; P. Siwek, "La revelation d'apres Spinoza", in Revue universitaire, 1949, XIX, p. 5-46; S. ZAC, Spinoza et ['interpretation de l'Ecriture, Paris, 1965; e finalmente, ah~m da introdu~ao de E. GJANCOTTI BOSCHERINI a tradu~ao italiana de A. DROEITO, Turim, 1972, 0 ensaio de DROEITO, "Genesi e struttura del Trattato teologlco-politico", in Studi urbinati, XLII, n. 1, 1969. Esse sentimento da novidade do texto raramente os leva, entretanto, a consideni-Io a viravolta metafisica do pensamento de Spinoza. Esse ponto me parece muito bern visto, em compensa~ao, por S. ROSEN, "Baruch Spinoza", in History of political Philosophy, Chicago, 1963, pp. 413-432, e sobretudo par W. Eckstein em seu velho, mas sempre importantissimo "Zur Lehre yom Staatsvertrag bei Spinoza", in B. ALTWICKER, Texte, cit., p. 372 sq. (O ensaio de Eckstein e de 1933.)

24 Ver sobre essa questao as obras ja citadas, que descrevem a biblioteca e a escri­vaninha de Spinoza. As Opera posthuma contem alem disso urn ensaio intitulado Com­pendium grammatices linguaes hebraeae, incompleto, mas extremamente interessante.

25 TIP (G., 1Il, p. 3; P., p. 606) . 26 Cap. I (G., 1Il, pp. 15-29; P., pp. 617; 634); Cap. 1I (G., 1Il, pp. 29-44; P., p.

634; 651); cap.m (G., m, pp. 44-57; P., pp. 651-666); cap. IV (G., m, pp. 57-68; P., pp. 666-679); cap. V (G., 1Il, pp. 69-80; P., pp. 679-692); cap. VI (G., m, pp. 80-96; P., p. 693; 711).

27 Tanto Giancotti Boscherini quanta S. Zac prop6em dividir 0 TIP em quatro partes: parte polemica, cap. I-VI; exposi~ao do novo metodo critico de interpreta~ao, cap. VII-X; cap. XI-XV, fase construtiva, sobre a essencia da filosofia e a da fej cap. XVI-XX, parte politica. Cada parte sendo dotada de uma certa unidade interna e uma articula~ao propria.

28 TIT, cap. I (G., m, p. 28; P., p. 633). 29 TIP, cap.!! (G., 1Il, p. 30; P., p. 635). 30 TIP, cap. 1Il (G., m, pp. 45-46; P., p. 653; 654). 31 TIT, cap. 1Il (G., m, pp. 46-47; P., p. 654). 32 A esse respeito esra estabelecido todo urn sistema de remiss6es ao Curto trata­

do, ao TRE e as primeiras Proposi~6es da ~tica. Com efeito, nada mais simples do que estabelecer tais quadros de referencia. Mas com que objetivo? 0 TIP nao e uma apli­ca~ao da Etica, e menos ainda das obras mais antigas de Spinoza.

33 TIP, cap. I (G., m, pp. 16-18; P., pp. 619-621). 34 TIP, cap. I (G., m, p. 29; P., p. 634). 35 A critica aos idola baconianos, ja compreendida no TRE, e longamente reto­

mada nessas paginas, onde a imagina~ao, inclusive em seu aspecto obscuro e como co­nhecimento mutilado, conserva seu estatuto de realidade.

361TP, cap. II (G., III, p. 43-44; P., p. 650; 651). Cf. as Notas a tradu~ao italia-na ja citada.

37 TIP, cap.m (G., 1Il, p. 47; P., pp. 654-655). 38 Ibid. (G., 1Il, pp. 48-49; P., pp. 656-657). 39 TIP, cap.lI (G., 1Il, pp. 39-41; P., pp. 645-647). 40 TIT, cap. m (G., 1Il, p. 48; P., p. 656). 41 TIP, cap. IV (G., 1Il, p. 57; P., p. 666). 42 TIP, cap. IV (G., 1Il, pp. 61-62; P., pp. 670-672). 43 0 estudo das fontes jusnaturalistas do TIP exigiria urn longo e minucioso tra-

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balho, que deveria essencialmente retra~ar 0 caminho do estoicismo holandes e, por outro ~lado, 0 da escolastica reformada. Por enquanto, 0 que importa apesar de tudo e lem­brar a Defensio fidei catholicae de GROTIUS. Contra as asser<;oes de Dunin-Borkow­ski a respeito de uma pretensa ignonincia do pensamento cat6lico da parte de Spinoza, d. as Notas de E. GIANCOTII BOSCHERINI a edi<;ao italiana citada, pp. 40-42.

44 TIP, cap. IV (G., III, p. 58; P., p. 666-667). 45 Teol6gica e metafisica: tal e a posi<;ao, perfeitamente justa, de Carl Schmitt,

principalmente em seu livro sobre Hobbes, mas tambem, de modo geral, em toda a sua analftica da legitima~ao. L. STRAUSS, Persecution and the Art of Writing, Glencoe, 1952, insiste de maneira igualmente convincente no carater fundamental desses criterios, em sua centralidade metodol6gica. E estranho ter de lembrar isso com tanta freqiiencia, dian­te das reiteradas tentativas de explicar 0 pensamento do seculo XVII a partir de ourcas grades de leitura. 0 que nao quer dizer que 0 problema da legitima~ao do poder nao esteja no centro do dispositivo social; isso quer dizer simplesmente que ele nao pode ser lido no seculo XVII senao em termos de metafisica e de teologia. Os referentes do pro­blema da legitima<;ao mudam com as epocas.

46 Cf., para tomar apenas um exemplo, M. GUEROULT, op. cit., t. II, pp. 572-577,578-580,583-586.

47 Os comentadores tem longamente dissertado sobre 0 grau de verdade da ima­gina<;ao profetica, sem grandes resultados. Dentre eles: A. GUZZO, II pensiero di Spi­noza, Turim, 1964, p. 79 sp.; S. ZAC, L'idee de vie dans la philosophie deSpinoza, Paris, 1963; e, recentemente, M. CORSI, Politica e saggezza in Spinoza, Napoles, 1978, pp. 66-67. Ja a abordagem da problematica da imagina~ao feita por F. MELI, Spinoza e due antecedenti, cit., e bem mais importante e bern mais uti!. Tendo come~ado por aprofundar a questao dos vinculos entre a concep<;ao spinozista da liberdade e da tole­cancia e as correntes hereticas do seculo XVI, e portanto tendo podido avaliar a densi­dade religiosa dessas teorias, Meli pode entao colocar sem nenhuma dificuldade 0 tema da imagina<;ao numa perspectiva totalmente diversa das platitudes racionalistas: ele mostra, ao contrario, sua fun'rao de media<;ao entre religiao e razao. A imagina'rao se articula com 0 desenvolvimento do "amor" dos hereticos. Notar aqui a possibilidade de ler a rela~ao entre 0 pensamento de Spinoza e 0 dos deistas dos seculos XVI e XVII (principalmente ingleses), longe dos caminhos batidos do spinozismo -leitura tentada justamente por Meli. Nas Notas a tradu'rao italian a da Etica, RADETTI, integrando 0

discurso de C. GENTILE, e se referindo explicitamente aMeli, destaca (p. 724: comen­tario de Etica II, Defini<;ao 3) a possibilidade de resolver a querela aberta pela confron­ta'rao entre teoria da passividade da mente (encontrada no Curto tratado) e teoria da atividade da mente (que a teoria da imagina'rao justamente come'ra a desenvolver a partir do TIP e do Hvro II da Etica). A dimensao constitutiva adquirida pelo saber surge da plenitude da imagina~ao, da reversao da compacidade da etica, considerada no Curto tratado como urn campo reservado do conhecimento. Cf. as Notas de GENTILE e RA­DETII; sobre a imagina<;ao, comenrario e referencia, p. 746.

48 TTP. cap. VII (G., III, pp. 97-98; P., p. 712). 49 TIP. cap. VII (G., III. p. 98; P., p. 712-713). 50 Ibid. (G., III. p. 99; P., p. 713). 51 Ibid. (G., III. p. 99; P., p. 714). 52 Alem dos textos ja mencionados a respeito do TIP em geral, ver, a prop6sito

da exegese bfblica de Spinoza: H. BONIFAS. Les idees bibliques de Spinoza, Mazamet, 1904; O. BIEDERMANN. Die Methode der Auslegung und Kritik der bilischen Schriften in Spinozas ITP im Zusammenhang mit seiner Ethik. Eclangen, 1903: E. PILLON. "Les

166 Antonio Negri

origines de l'exegese moderne, Spinoza", in Critique phitosophique. V. 22.1876, p. 337 sq. Lembrar-se de uma maneira geral da imporrancia do TIP na Alemanha, nos seculos XVIII e XIX, na cria~ao do metodo exegetico moderno, para toda a tradi'rao que vai de Schleiermacher a Tothacker. Ver, de qualquer maneira, H. GADAMER, Verite et me­thode, trad. fr., Paris, 1976. Lembrar-se que algumas das tecnicas propostas por Spino­za sao de aplica<;ao constante hoje em dia.

53 TIP. cap_ VII (G_, III. p. 102, P., p. 717). 54 TIP, cap. VII (G., III p. 112; P., pp. 728-729). 55 Cf., sobre este ponto, as Notas de E. GIANCOTIl BOSCHERINI ~ edi~ao ita­

hana do TIP. Duas series de observa<;oes devem ser levadas em considera~ao aqui: as que se referem a dimensao politica da interpreta<;ao (0 autor se refere aqui ao relato de Sir William Temple); as referentes a tradi<;ao humanista e reformada em materia de in­terpreta,!;ao (a dimensao religiosa), a ser reportada ao ensinamento dos socinianos. Mas d. tam bern 0 livro de Kolakowski.

56 Influencia notavel de Bacon, muitas vezes recusada por Spinoza em outros contextos. Influencia de Hobbes acima de tudo. Cf., aqui tam bern, as Notas de E. GIAN­COTII BOSCHERINL

57 TIP, cap. VII (G., III. p. 116; P., p. 733). Sobre os aspectos do pensamento de Spinoza relativos a defesa da liberdade de pensamento, a bibliografia e imensa. Limitamo­nos a remeter as obras ja mencionadas de Feuer e de Strauss.

58 TIP, cap. VII (G., III, pp. 113·116; P., pp. 729-733). Sobre este ponto em particular, d. J. Husic, "Mairnonides and Spinoza on the interpretation of Bible", in Philosophical Essays. Oxford, 1952.

59 Cf., a esse respeito, as Notas de E. GIANCOTTI BOSCHERINI, p. 281-282 da edi<;ao italiana do TIP. Cf. tambem a obra de F. S. MIRRI. Richard Simon e it metodo storico-critico di B. Spinoza. Floren,!;a, 1972.

60 Se tivesse sido possivel, gostariamos de ter redigido aqui uma nota sobre as teorias contemporaneas da interpreta'rao: com efeito, pode-se encontrar nos textos de Spinoza estudados aqui a atitude construtivista tao caracteristica das tecnicas operacionais de interpreta<;ao hoje em dia tao difundidas.

61 Tanto do ponto de vista da analise da rela<;ao do pensamento de Spinoza com a tradi~ao do ontologismo hebraico quanto do ponto de vista da determina,!;ao dos momentos hist6rico-constitutivos do pensamento de Spinoza, e mais particularmente no TIP, e fundamental 0 livro de A. MATHERON, Individu et communaute chez Spi­noza. Paris, 1969. Teremos oportunidade de voltar longamente a isto.

62 Cartas XXXIV, XXXVe XXXVI (G., IV, pp. 179-187; P., pp.1185-1194). 63 Etica I. Proposi<;ao XI. Esc6lio (G., II, p. 54; P., p. 319). 64 Carta XXXV (G., IV, p. 182; P., p. 1188). 65 Carta XXXVI (G., IV, pp_ 185-186; P., p. 1192). 66 Carta XXXVII de Spinoza a G. Bouwmeester, de Vooburg, a 10 de junho de

1666 (G., IV pp. 188-189; P., p. 1195). 67 TIP, cap. V (G., III, p. 73; P., p. 684). 68 Ibid. (G., III, p. 73; 75; P., p. 684; 685). 69 Ibid. (G., III, p. 74; P., p. 685). 70 TIP, cap. XII-XV (G_, III, pp. 158-188; P., pp. 786.824). 71 Tal e, por exemplo, a interpreta<;ao da palavra "Constitutio" dada e repetida

por M. GUEROULT, op. cit., t. II, p. 196 e 572. Contra esse tipo de interpreta<;ao, os argumentos de Metheron tem muita for'ra.

72 TIP, cap. V (G., III, p. 74; P., p. 685).

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73 TIP, cap. XII (G., 1II, p. 165; P., p. 794). 74 TIP, cap. XIII e sobretudo cap. XIV (G., III, p. 168 e 177-178; P., p. 797 e

809-810). 75 TIP, cap. XlII (G., 1II, p. 172; P., p. 802). 76 TIP, cap. XIV (G., III, p.175; P., p. 806). 77 TIP, cap .. XIV 9 (G., 1II, p. 176; P., p. 807). 78 Ibid. (G., 1II, p. 176; P., p. 808). 79 Ibid. (G., 1II, p. 179; P., p. 811). 80 0 capitulo XV do TIP e dedicado a separa~ao da fe e da filosofia. A separa­

~ao da teologia e da filosofia, e a consequente liberdade da razao constituem 0 Leitmotiv da interpreta~ao dada para L. STRAUSS do TIP. Essa abordagem de Leo Strauss e importantfssima e extremamente rigorosa: efetivamente, ele nao se percle numa exalta­~ao abstrata da liberdade da razao, mas pensa essa liberdade da razao como instrumento de constirui~ao, constitui~ao da politica em particular, de uma politica concebida como urn instrumento da Reforma. Cf. 0 resumo da interpreta~ao de Leo Strauss nos Texte de Altwicker, cit., em particular p. 330, 333 e 359-36l.

81 TIP, cap. XV (G., 1II, pp. 173-174; P., pp. 804-805). Cf. as Notas de E. GIAN­COTII BOSCHERINI a respeito dessas passagens: esses textos sao importantes, pois ve-se nascer, em torno do tema da supersti~ao, 0 da situa~ao da religiao na Holanda, das teses deistas e do espirito pacifista que as move e as legitima.

82 TIP, cap. XV (G., III, p. 185; P., p. 819). 83 Cf. supra, cap. III. 84 Sobre as "no~oes comuns", excelente comentario de M. GUEROULT, op. cit.,

t. II, p. 324 sq. 8S Esse destaque da fun~ao metafisica das no~oes comuns e realizado sobretudo

POt DELEUZE, op. cit., pp. 252-267. 86 Sobre este ponto, ver principalmente a analise das correntes religiosas da se­

gunda metade do seculo XVII feita par L. Kolakowski, op. cit. - ele chega tambem a trarar longamente do problema Bayle, mas, na perspectiva que e a nossa aqui, sua ana­lise do pensamento de Bredenburg (pp. 250-280) e para nos muito mais importante. Sobre o papel de Bayle, d., alem do texto, antigo mas sempre util, de E. PILLON ("La criti­que de Bayle du pantheisme spinoziste", in Annee philosophique. 1899, IX. p. 85-143), as obras de E. LABROUSSE, Pierre Bayle, 1963 e 1964, e de W. REX, Essays on Pierre Bayle and religious Controversy, Haia, 1965.

87 TIP, cap. XVI (G., 1II, p. 189; P., p. 824). 88 Ibid. 89 TIP, cap. XVI (G., III, p. 189; 190; P., p. 824; 825). 90 Como com muita justeza observa E. GIANCOTII BOSCHERINI, ed. cit., par­

ticularmente pp. 393-395. Mas ver tambem outras bibliografias. Os especialistas italia­nos no pensamento politico de Spinoza tern sido sempre particularmenre atentos as rela­~oes entre 0 pensamento politico-jurfdico de Spinoza e as teorias do direito natural; d. em particular os dais textos fundamentais na materia: A. RA vA, Studi su Spinoza e Fichte, cit., e G. SOLARI, Studi storici di filosofia del diritto, cit. Note-se que nenhum desses dois autores se perde numa pesquisa das influencias possiveis ao ponto de desconhecer a absoluta originalidade da teoria spinozista. E tambem verdade, entretanto, que tal acumulo de ele­mentos, tal insistencia sobre as origens do pensamento spinozista se paga sempre com uma grande imprecisao quanta a defini~ao da especificidade do pensamento spinozista. Como emblema da ambiguidade da leitura de Spinoza, que desde esses velhos mestres se perpetuou na tradi~ao hist6rico-filos6fica italiana, d. aquele que talvez seja 0 mais re-

168 Antonio Negri

cente dos produtos de escola: C. PACCHIANI, Spinoza tra teologia e politica. Padua, 1979; trabalho onde uma abundante bibliografia e uma leitura atenta nunca desembocam numa defini~ao precisa do pensamento revolucionario de Spinoza.

91 TIP, cap. XVI (G., III, p. 191; P., pp. 827-828). 92 TIP, cap. XVI, nota (G., III, p. 263; P., p. 832). Sobre a posi~ao geral de Spino-

za em rela~ao ao pensamento politico de Hobbes, ver tam bern a Carta L (G., III, p. 263). 9J TIP, cap. XVI (G., III, p. 193; P., p. 830; 831). 94 Ibid. (G., III, p. 192; P., p. 829). 95 Ibid. (G., III, p. 195; P., p. 833). 96 TIP, cap. XVII (G., III, p. 201; P., p. 842). 97 TIP, cap. XVII (G., III, p. 201; 202; P., p. 843). 98 Supra, cap. IV, primeira parte. 99 ja vimos longamente a autocritica de Spinoza relativa a ideologia do circulo.

Mas estamos vendo se abrirem problemas de enorme importancia para a historia da filosofia. Seria preciso, em particular, examinar aqui, a respeito justameme da critica spinozista ao pensamento hobbesiano, a questao das rela~6es entre 0 pensamento de Spinoza e os de Hobbes, Rousseau e sobretudo Hegel. De meu lado penso, como pro­curei mostrar acima, que essas rela~oes existem. No entanto, penso tam bern que a cri­tica por Spinoza da utopia inicial do circulo possui tal amplitude filosofica que ela fun­da ao mesmo tempo, da maneira mais clara possivel, a possibilidade de uma Cfirica dessa tradi~ao inimiga. Parece-me imporranre insisrir sobretudo na ideia de uma crftica (an­tecipada) a Hegel. Explico-me. Se ha mistifica($ao direta quando se tema fazer do pen­samento spinozista urn hobbesianismo malsucedido, parece-me muito mais grave pro­curar joga-lo indiretamente nos bra~os de Hobbes atraves de uma subsun($ao sob a cri­tica hegeliana. Sobre isso tudo, d. infra, cap. VII. Sobre a leitura hegeliana, d. M. GUEROULT, op. cit., t. I. Apendice 4, p. 462 sq. Para uma inversao da rela~ao Hegel­Spinoza, P. MACHEREY, Hegel ou Spinoza, pp. 3-13, 17-40.

100 Para situar 0 problema das alternativas as conentes idealisras e racionalistas do direito natural, podemos continuar a nos referir ao livro de o. VON GIERKE,Johan­nes Althusius, 1880, 6" ed., reimpr. Scientia, Aalen, 1968. Naturalmente, seria necessa­rio falar do carater as vezes bastante equivoco do dispositivo teorico de Gierke: nem por isso deixa de ser urn belo livro, e urn livro uti!.

101 TIP, cap. XII (G., III, p. 213; P., p. 860). Fica claro que ha ai uma referencia a urn tema fundamental do pensamento de Maquiavel. Seria preciso percorrer aqui, e criticar a (vasta) lireratura referente as rela($oes Maquiavel-Spinoza. Contentamo-nos em reme­ter aos artigos de A. RAVA. "Spinoza e Machiavelli", in Studi, cit., que examina com uma precisao filologica toda particular as rela~oes entre esses dois autores (trata-se sem duvida alguma do melhor esrudo sobre a questao, apesar da extraordinaria modestia do autor), assim como as observa~6es de C. SIGNORILE, op. cit., p. 138 sq. (que propoe, como e de seu habita, uma boa bibliografia geral, principalmente sobre a rradi~ao do "Maquiavel republicano"J. Ver tambem a obra recente de U. DOTII, Machiavelli: la fenomenologia del potere. Milao, 1979, texto fundamental para uma leitura contempo­ranea do radicalismo revolucionario do secretario florentino. Na leitura do livro de Dorti, resolvem-se muitas das duvidas suscitadas pela leirura de Spinoza (duvidas a respeito da verdadeira interpreta~ao spinozista de Maquiavel, de ate que ponto ele for~ou): e real­mente dificiller Maquiavel de oucro modo que como urn escritor republicano.

102 Cf. principalmeme L. Mugnier-Pollet. La philosophie politique de Spinoza, cit., p. 65-67, onde 0 discurso sobre 0 "constitucionalismo" de Spinoza, no sentido ju­ridico do termo, e referido ao pensamento de Althusius e de Bodin. Mas de maneira geral,

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sobre 0 conjunto das fontes constitucionalistas do pensamento spinozista, d. L. ARE­NILLA, "Le caIvinisme et Ie droit de resistance", in Annales E. S. C, XXII, 1967, pp. 350-369. Este artigo analisa com grande precisao a corrente de pensamento centrada no direito de resistencia, dos pressupostos religiosos do calvinismo ate aqueles, politi­cos, do constitucionalismo. Cf. sobretudo uma serie de observa~oes sobre a questao do eforato (p. 360 sq.) e sobre outros temas relativos a projetos de constitui~ao, que volra­remos a encontrar no Tratado politico.

103 TIP, cap. XVI (G., III, p. 191; P., p. 827). Sobre as fontes da ideia de contra­to social em Spinoza, d. W. ECKSTEIN, Zur Lehre vom Staatsvertrag, cit., p. 373. P. DI VONA, op. cit., p. 578 sq., insiste na importancia das influencias da escolastica da Contra-Reforma sobre a forma~ao do conceito de direito de resistencia e de contrato.

104 C.E. VAUGHAN, History of political philosophy before and after Rousseau. Londres, 1925, t. I: "Spinoza's theory stands or falls by his identification of rights with powers, in other words by his refusal do admit the idea of Right into the life of the State" (p. 92). Tem-se dito com excessiva freqiiencia que 0 limite da concep~ao de Vaughan con­siste no fato de ter considerado 0 pensamento politico de Spinoza independentemente de sua metafisica. Mas se retomar a metafisica de Spinoza significa modificar essas conclusoes de Vaughan (a respeito do conceito de obriga~ao), eu discordo. Em suma, e perfeitamen­te exato que 0 conceito de obriga~ao em Spinoza nao e enforced pela autoridade do Estado.

105 Alem do artigo de Eckstein, citado, d. 0 ensaio de G. SOLAR e 0 de G. MEN­ZEL, "Sozialvertrag bei Spinoza"; in Zeitschrift fur privat-und offentl. Recht der Gegen­wart, 34, 1907, pp. 451-460.

106 Salvo erro, essa ideia de uma central ida de do movimento constitutivo da imagina~ao foi indicada por W. DILTHEY, em seu Die Autonomie des Denkens, der konstrutive Rationalismus und der pantheistiche Monismus nach ihrem Zusammenheng im 17. Jahrhundert, que se encontra hoje em Ges, Schr., t. III. Essa ideia foi retomada de maneira infeliz por E. HUSSERL (a Etica spinozista como "die erste universale Onto­logie", in La crise des sciences europeennes et fa phenomenofogie transcendantale, trad. fr., Paris, 1976, p. 75), e retomada com mais felicidade, mas de maneira bern escohistica, por R. HONIGSW ALD, Spinoza. Ein Beitrag ... cit.

107 Donde 0 carater, em minha opiniao, igualmente erroneo de dois comentarios sobre esses trechos do TIP, de inspira~ao no entanto contra ria: 0 de M. CORSI. Politica e saggezza in Spinoza, Napoles, 1978, que considera a filosofia de Spinoza como urn artificio naturalmente fundamentado, assumindo com coerencia uma fun~ao de emen­datio da consciencia atraves de diferentes graus de libera~ao; e 0 de A. MATHERON, op. cit., sobretudo na terceira parte, que considera a sociedade pohtica como uma sim­ples aliena~ao dirigida, sempre numa perspectiva de emendatio. 0 individuo em Corsi, o coletivo em Matheron: mas 0 problema nao e esse, pelo menos por enquanro. 0 pro­blema aqui nao e julgar 0 carater mais ou menos artificial desses trechos, desses mo­mentos da filosofia politica de Spinoza, mas simplesmente reconhecer seu relativo fra­casso: 0 artificio decorre do fracasso, decorre do fato de que 0 objetivo constitutivo e ontologico nao foi atingido. Trata-se, para Matheron, de uma situa~ao transitoria, dotada no entanto de uma logica dialetica propria; mas desde quando as cambalhotas dialeticas se adequam ao andamento linear do pensamento de Spinoza?

108 TIP, cap. XVI (G., III, p. 196; P., pp. 834-835). 109 TTP, cap. XVI (G., III, pp. 195-197; P., pp. 833-837). Comentarios notaveis

de E. GIANCOTII BOSCHERINI, pp. 405-408. 110 A. Matheron, op. cit., aponta claramente esse carater formal do positivismo

spinozista.

170 Antonio Negri

111 TIP, cap. XVI (G., III, p. 197-198; P., p. 837-840). 112 TIP, cap. XVI (G., III, p. 205; P., p. 848). Mas, de modo mais geral, ver 0

conjunto do capitulo. 113 TIP, cap. XVIII (G., III. p. 221; P., p. 872). 114 Ver as coletaneas de maximas contidas na biblioteca de Spinoza. Cf., alem

disso, Carta XLIV (G., IV. pp. 227.229; P., pp. 1222-1224). 115 TIP, cap. XVIII (G., III, p. 228; P., p. 881). 116 Os anos 1665-1670 sao os da derradeira e decisiva fase do embate, sobre a

questao das institui'foes, entre as for~as oligarquicas dirigidas por De Witt e a,. rea~ao orangista. No momento em que 0 regime aristocratico parece definitivamente assenta­do, e na verdade a monarquia que renasce. As guerras externas, em particular a guerra de navega~ao contra a Inglaterra, enfraquecem acentuadamente 0 regime. Tudo isso, como veremos, e vivido por Spinoza de maneira dramatica. Cf. as obras historicas ja citadas, particularmente supra, cap. I, n. 23.

117 Para atem do faro de que assistimos em Spinoza a uma elabora~ao da tipologia historica caracteristica da cultura protestante (referencia a Biblia em materia politica, mais que aos classicos do Renascimento politico: Decadas de Tito Livio, etc.; notar 0

uso puramente teorico de Tacito, de modo algum tratado por Spinoza como fonte his­torica), essas paginas do cap. XVIII sao interessantes pela retomada que nelas e feita da analise hobbesiana da revolu~ao inglesa.

118 TIP, cap. XIX (G., 000, p. 228; P., p. 882). 119 TIP, cap. XX (G., III, p. 239; P., p. 896). 120 TIP, cap. XIX (G., III, p. 236; P., p. 893). Sobre a tematica do jus circa sa­

cra, ver as notas de E. GIANCOTIl BOSCHERINI, pp. 473-477, assim como, natu­ralmente, 0 famoso artigo de G. SOLARI sobre 0 ass unto, in Studi storici, cit.

121 TYP, cap. XX (G., III, p. 246; 247, P., p. 907). 122 Isso ja foi varias vezes lembrado, trata-se de urn Leitmotiv do livro de P.

Macherey. 123 Fa~o alusao a Carta XXXVIII (G., IV, pp. 190-193; P., pp. 1196~1197), dirigida

"ao muito honrado Van der Meer" e datada de lOde outubro de 1666, relativa ao jogo de dados. Sobre 0 jogo de clados, d. HUYGENS, De ratiociniis in ludo aieae, 1656. Haveria evidentemente muita coisa a ser dita a esse respeito: jogo de dados e mercado. Pensemos apenas que quando Descartes reflete sobre os jogos e os campos de for~a, ele ainda esta falanclo da espada. Os tempos mudaram!

124 TIP, cap. XX (G., III, pp. 240-241; P., p. 899).

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Capitulo VI A ANOMALIA SELV AGEM

1. MEDIDA E DESMEDIDA

Quando Spinoza, em 1670, escreve 0 Prefacio do Tratado teo/agi­co-political, que publica anonimamente, e ao mesmo tempo transfere re­sidencia para Haia, podemos considerar como terminada a fase interme­dia.ria que se abriu depois da crise da primeira reda~ao da Etica. Fase in­termediaria, mas central no desenvolvimento do pensamento spinozista. A intenc;ao declarada do TTP e a lura contra 0 absolutismo monarquico e a defesa e extensao da liberdade da Republica. "Se 0 grande segredo do regime monarquico e seu interesse maior sao enganar os homens e pintar com 0 nome de religiao 0 medo que cleve domina-los, a fim de que eles combatam por sua serviciao como se se tratasse de sua salvac;ao, e que julguem, naa vergonhoso, mas honrado ao rna is alto ponto, derramar sell sangue e sua vida para satisfazer a vaidade de urn so homem, em com pen­sa<;ao, nao se pode conceber nem ten tar nada de mais absurdo numa livre republica, pois e inteiramente contrcirio a liberdade comum que 0 livre julgamento proprio esteja submetido aos preconceitos ou sofra alguma COef/;:ao. "2 Mas sabemos, e esse Prefa.cio 0 confirma, que a destrui<;ao da unidade preconstituida requer uma norma de reconstrw;:ao do social, e que a norma de constitui<;ao do social tern de ser ontologicamente fundada. Sabemos que 0 velho mundo - a rea<;ao orangista faz pressao para res­taura-Io - baseia sua legitimidade popular numa certa Igreja e numa cer­ta teologia, a da severa escolastica do calvinismo, e que 0 interesse mo­narquico organiza 0 fanatismo popular e sua imagem teologica, 0 fanatis­mo popular e sua imagem teol6gica, 0 finalismo religioso: 0 que significa, segundo Spinoza, que a base de legitimar.;ao consiste na imaginar.;ao cor­rupta e com certeza na "superstitia". "Se as homens pudessem resolver todos os seus assuntos segundo urn desfgnio definido ou ainda se a sorte sempre lhes fosse propicia, e1es nunca seriam prisioneiros da superstir.;ao.,,3 Superstir.;ao, condir.;ao imediatarnente politica. "0 medo e a causa que gera, mantem e favorece a superstir.;ao. ,,4 E os homens, tornados pelo "desme­dido desejo dos bens incertos da fortuna", tornam-se presa da loucura e do fanatismo, 0 que os entrega ao poder absoluto do monarca. Abater a rear.;ao, entao, e sola par os alicerces da rela<;ao "metus-superstitio" - mas e sobretudo constituir a seguran<;a da sociedade, desfraldando urn proje­to de liberdade e razao. "Assim demonstrada a liberdade que a lei divina

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revelada reconhece a cada urn, passo ao outro lade da questao: au seja, que essa rnesrna liberdade pode, ate deve ser concedida sem prejufzo para a paz do Estado e do direito da suprema autoridade, e que nao pode ser retirada sem grave perigo para a paz e sem grave dano para todo 0 Esta­do: e para dernonstrci-lo, parto do direito natural individual, que se esten­de ate onde se estende 0 desejo e 0 poder de cada urn, ninguern sendo obrigado por direito de natureza a viver segundo a vontade alheia, mas sendo, ao contrario, cada urn dono da propria liberdade. Dernonstro em seguida que ninguem abandona essse dire ito, a rnenos que delegue a ou­trem a faculdade de defende-lo, caso em que esse direito que cada urn tern de viver a seu modo, juntamente com 0 poder de se defender, e necessaria­mente exercido de modo absoluto pela pessoa para a qual foi delegado; e assim demonstro que aqueles que detem 0 poder supremo tern direito a tudo 0 que cabe em seu poder e que s6 esses sao defensores do direito e da liberdade, enquanto que todos os outros so podem agir em conformidade com 0 decreto deles. Entretanto, como ninguem pode se privar da facul­dade de se defender a ponto de deixar de ser homem, segue-se a isso que ninguem pode se privar de modo absoluto do proprio direito natural e que os suditos rnantem quase por direito natural algumas prerrogativas que nao lhes podem ser retiradas sem grave perigo para 0 Estado e que lhes sao tacitamente reconhecidas e por eles expressamente estipuladas com os detentores do poder supremo.,,5

Dois projetos se afrontam: de urn lado, a relar.;ao "medo-supersti~ao" se apresenta como barbarismo e servidao ao poder, e e exatamente como se dissesse: teologia-imaginar.;ao corrupta-monarquia; do outro, a "cupi­ditas" se desenvolve em "fibertas" e em "securitas", 0 que equivale a: fi­losofia-imaginar.;ao produtiva-Republica. Certamente nao se pode negar que Spinoza tenha aceito escolher seu campo. Toda a sua filosofia expri­me aqui urn ponto de vista, uma tomada de posir.;ao de partido sobre a rea Ii dade. A escolha politica baseia, condiciona e faz avanr.;ar 0 projeto metaffsico: legitimar a republica mundana e fundar a cidade de Deus, a republica do espirito. Para quem conhece a tradi<;ao revolucionaria do humanismo, dos chanceleres florentinos aos republicanos protestantes, isso nao e de estranhar: e uma continuidade, a que Spinoza esta renovando. A anomalia, a desmedida do projeto de Spinoza estao em outro ponto: no fato de que essa "spes" oposta ao "metus", que essa "libertas" oposta a "superstitio", que essa republica oposta ao absoluto monarquico, ele as coloca e renova quando 0 seculo inteiro as combate. De modo que a me­dida radonal que constitui 0 conteudo revolucionaria do discurso de Spi­noza se apresenta como uma desmedida em relar.;ao ao concreto hist6ri­co. Medida e desmedida da instancia spinozista: a tearia politica absorve e projeta essa anomalia no pensamento metaffsico. A metaffsica, levada

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p~ra as primeiras linhas da luta politica, contern em si a proporr:rao des­proporcionada, a medida desmesurada que e pr6prio de todo Spinoza. Mas a partir de que ponto de vista definir medida e desmedida, propon;iio e despropon;ao? Quem detem 0 conceito de razao, quando a razao serviu para destruir a medida do mundo encontrada no Renascimento? Quem age na desproporc;ao - aquele que nega a relar:rao entre infinito e indefinido e se larga ao desenfreado barroco, ou aquele que afirma e exalta a potencia dessa sintese? E entao evidentemente anomala a filosofia de Spinoza em seu seculo, e selvagem aos olhos da cultura dominante. E a tragedia de toda filosofia, de todo testemunho selvagem de verdade que se caloca contra 0 tempo: contra este tempo e contra esta realidade. Mas a tragedia pode-se abrir, potente, sobre 0 porvir.

A publica,iio do Tratado teol6gico-politico suscita ferozes polemi­cas6. 0 judeu de Voorburg ou de Haia esra no centro delas, reconhecido por tras do pseudonim07. Nao que essas polernicas nao fossem esperadas, e bern 0 demonstram as infinitas precauc;6es tomadas por Spinoza ja en­quanta prajetava a obra, 0 anonimato da publicac;ao e a tentativa de im­pedir sua tradw;iio holandesa8. Mas a violencia da resposta publica e par­ticularmente chocante e desagradavel: esses professores que 0' atacarn Ihe "parecem expor sua mercadoria a venda a maneira dos belchiores, que sempre of ere cern em primeiro lugar 0 que tern de menos valor. Dizem que o diabo e espertissimo, mas minha impressao e de que esta rac;a 0 supera de longe,,9. Na realidade, e a revelac;ao da anomalia que e inesperada para o proprio Spinoza, a revelac;ao de sua profundidade, de sua espessura. E uma revelac;ao para a consciencia te6rica de Spinoza. E entao: nao ha nada rnais potente que a rebeliao de urn inocente, nada rna is desmesurado que o contra-ataque da serenidade etica e da medida racional. Tudo estava teoricamente pronto, mas e dificil imaginar <cIa refonte de fEthique" -como diz A. Koyre analisando esses anos10 - fora da emoc;ao desse en­contro, des sa revela,iio da desmedida do projeto.

"Lamberto de Velthuysen ao doutissimo e preclarfssimo Jacob Ostens", de Utrecht, a 24 de janeiro de 1671 11 : urn professor de Utrecht resenha 0

Tratado teoI6gico-politico. Niio esquecer que Velthuysen e urn republica­no e urn partidario de De Witt, sua recensao e extremamente importante porque ultrapassa os limites da divisiio dos partidos aWls da qual Spinoza, com toda a boa-fe, tern tendencia a se mascarar. E uma carta importantfs­sima porque e urn furioso ataque que revela a desmedida do TIP e a discri­minac;ao da epoca, nao s6 te6rica ou politica, que se opee a ele. E entao, "nao sei qual e a origem desse homem, ou seu principio de vida; e nao importa sabe-Io. Seu livro e prova suficiente de que ele nao tern 0 espfrito tacanho e que nao e nem superficial nem leviano nesse estudo sobre as con trover­sias que agitam os cristaos da Europa. Esse autor esra convencido de que

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teria mais sucesso no exame das ideias que dividem os homens em facr:roes e em particlos se afastasse e rejeitasse qualquer preconceito. Por isso e que trabalhou mais do que 0 necessario para se liberar de qualquer supersti,iio: querendo se garantir contra eIa, ele se lanr:rou no contrario, e por querer evitar o pecado da superstic;ao, e a religiao inteira que ele rejeitou. Pelo menos ele nao se elevou acima da religiao dos deistas que estao em toda parte, e que sao particularmente nurnerosos na Franc;a (tais sao os costumes deste se­culo perverso); Mersenne publicou contra eles urn tratado que me lembro de ter lido antigamente. Mas nao acreclito que urn desses deistas tenha es­crito para essa pessima causa com tanta maida de, habilidade e finura quanta o autor dessa dissertac;ao. Alias, se nao me engano, esse homem nao inclui a si mesmo entre os deistas e nao permite que ainda sejam deixados aos ho­mens os mfnimos elementos do culto,,12. Este e 0 infcio, mas tambem 0 refrain e a conclusao do ataque, sustentada - e forr;oso reconhecer - por nota­veis qualidades demonstrativas. E nao valeria a pen"a prosseguir na analise dessa carta se, nela, 0 nivel da mera recensao nao fosse rapidamente ultra­passado e alguns elementos substanciais, neste momenta ja trabalhando para a segunda fundac;ao da Etica, nao fossem revelados - e criticados. Aquilo que Velthuysen destaca e denuncia e, com efeito, a reversao do ponto de vista metafisico, ocorrida no TIP e agora destinada a mais amplos desen­volvimentos: urn ponto de vista que, por tras do respeito formal do culto, propugna uma concepr:rao de religiao que surge e se desenvolve "esponta­neamente e sem nenhuma instituir;ao" 13, de uma pratica da liberdade tao extensa que reduz 0 papel do magistrado a "ter como unica preocupar;ao defender a justic;a e a probidade na comunidade civil" 14. E portanto urn ponto de vista metafisicamente ateu, ou seja, ontologicamente constitutivo. Con­clusao: Spinoza "introduz subrepticiamente 0 ateismo", "atraves de argu­mentos velados e disseminados, e 0 puro ateismo que ele ensina"15: reconstr6i o mundo longe do temor a Deus, longe da regra - no entanto substancial para a experiencia e 0 pensamento religiosos - da transcendencia divina e da contingencia humana. E e preciso acrescentar - e e 0 conceito que Vel­thuysen obscuramente percebe - que, nesta base, 0 TIP produziu tambem o instrumento do ateismo constitutivo - a «cupiditas" etica se articula com a "potentia" ontol6gica e, juntas, constituem (nao hobbesianamente, isto e, em termos falseados pela tendencia absolutista, pelo preconceito da trans­cendencia da obrigac;ao, mas em termos francos e decisivos) 0 conceito de apropriar;ao - esse termo fundamental da revoluc;ao da relac;ao entre ho­mem e Natureza, entre homem e Deus16 . Verernos isso mais tarde.

Por enquanto vejamos antes a resposta de Spinoza17. Ele reage com extrema violencia. A ironia de outras respostas polemicas esta completa­mente desaparecida aqui. "Libelo", 0 de Velthuysen, "sinistra interpreta­c;ao", engendrada "por malicia e ignorancia". Toda a minha vida e urn teste-

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munho de rninha virtude: continua Spinoza - entao nao sou urn ateu! Es­tranha argurnenta~ao, na verda de, e no entanto comurn naquele seculo, e sobretudo prudente. Ao contrario, "penso perceber a baixeza em que vive esse hornern. Ele nao encontra na virtude e no entendimento nada que lhe agrade por si mesmo, e preferiria viver segundo os impulsos de seus senti­mentos se nao houvesse esse obstaculo: ele tern medo das san~oes. Abstem­se das mas a~oes e observa os mandamentos divinos com a rnesrna relutan­cia de urn escravo e com animo titubeante. Por esse servidao, espera que Deus o honre com recompensas bern mais doces que 0 proprio amor de Deus, e isso tanto mais quanto e mais relutante e mal disposto a fazer 0 bern que faz; por isso e que pensa que todos os que nao sao freados por esse medo vivem de maneira descontrolada e recusam qualquer religiao,,18. "E onde e que 0 senhor Velthuysen viu que eu coloque Deus sujeito ao destino? E onde, rneu anarquismo em materia religiosa?" Devemos imediatamente nos perguntar se essa res posta se refere realmente a crftica do TTP feita por Velthuysen, ou se, antes, ela nao atende mais a preocupa~ao de expor a necessidade de uma defesa global do projeto. Nao e par acaso que a pole­mica insiste sobretudo contra 0 finalismo da concepcao religiosa de Velthuy­sen, contra esse ultimo ouripel racional da supersti~ao teologica! Mas tarn­bern, justamente, 0 ultimo obstaculo a proposta spinozista de empreender uma "via ascendente", de elaborar uma pratica constitutiva. E justamente nesses episodios polemicos que os fundamentos de tal pratica nos sao reve­lados em toda a sua extensao: espontaneidade e gratuidade do agir, deter­mina~ao divina imediata da abordagem, estatuto ontologico da separac;ao do justo. "A que ponto eram mais belas e nobres as reflexoes de Tales de Mileto, em rela~ao as do dito escritor, e 0 que demonstra este seu raciocf­nio. Todas as coisas dos amigos, dizia ele, sao comuns; mas os sa bios sao amigos dos deuses e todas as coisas sao dos deuses; entao, todas as coisas sao dos sabios. Assim, apenas com uma palavra, aquele homem de grande sabedoria se fez riqufssimo, mais com generoso desprezo que com sordida avidez pela riqueza ... "19 Espontaneidade, gratuidade, riqueza do ser infi­nito, ja tfnhamos podido aprecia-las na utopia inicial do pensamento spino­zista; mas de maneira indeterminada, como selos da totalidade e da perfei­~ao da sintese ontologica do mundo. Aqui e bern diferente. Aqui, sob 0

estereotipo do sabio, e 0 ponto de vista da subjetividade, da constru~ao do ser que se propoe inteiramente. A plenitude da concep~ao do mundo do re­nascimento se poe a servic;o de uma filosofia ontologica da praxis.

Mas, com tudo isto, ainda avaliamos pouco a profundidade da mu­danc;a operada por Spinoza, se nao a pusermos, por assim dizer, em ten­sao com a dramaticidade da crise cultural e poHtica que os Paises Baixos estao atravessando nesses anoS. Nao que a crise politica de 1672, a res­taurac;ao dos Orange - e 0 barbaro assassinato, a 20 de agosto, dos De

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Witt - possarn ser considerados como elemento decisivo e desencadeador da segunda fase do pensamento de Spinoza, ainda que a emoc;ao sentida par nosso autor pare,a ter sido grande: "ultimi barbororum!,,20. Tambem nao penso que seja possIvel dar importancia rna is do que anedotica ao encontro de Haarlem e a imagem que ele poderia dar de uma reinserc;ao de Spinoza nos milieux po/itiques 21. Bern mais importante e mais profunda e, parece-rne, a reflexao desses anos sobre as desgra~as causadas pela guerra, por essa guerra interminavel que mina 0 regime oligarquico e a' propria democracia holandesa 22. Decisiva, enfim, e a reflexao sobre as lutas reli­giosas e sua inerencia ao regime politico, que percorre todo 0 TIP e opoe, como demonio e Deus, 0 abuso religioso e sectario a convivencia demo­cratica organizada 23. Todos esses elementos sao considerados em conjunto, justamente postos em tensao com a matura~ao interna do pensamento spinozista, com sua nova projec;ao sobre a realidade, nao mais em termos de contemplac;ao, mas de reconstruc;ao. 0 que quer dizer que a crise do mundo exterior representa analogia com a crise do mundo interior. Mas no mesmo momento em que se coloca, essa analogia se rompe: 0 curso dos acontecimentos politicos vai no sentido de uma estabiliza~ao geral do ancien regime na Europa, enquanto que a filosofia de Spinoza, verdadeira filoso­fia de Krisis, combate e ultrapassa essa pacificac;ao repressiva, esse equili­brio da acurnulac;ao primitiva e do mercantilismo, que corta a esperanc;a e no fim degrada e institucionaliza a revoluc;ao humanista.

o tempo historico se corta do tempo real da filosofia spinozista. A desmedida, que a crise tornou consciente de si mesma, reorganiza os ter­mos de seu projeto. E se define como tal, justamente, por diferenc;a, por corte: metodo realmente novo num autor que declarara "nao ter por ha­bito apontar os erros dos outros". Agora, tres sao os pontos sobre os quais se consolidou a nova base de construc;ao. Numa carta a J. ]elles, urn pou­co tardia (2 de junho de 1674), mas extremamente densa em sua brevida­de, e importante como resumo detalhado de momentos criticos, Spinoza expoe Esses pontos. 0 polftico e 0 primeiro, mesmo se 0 pensamento de Spinoza agora esteja inreiramente voltado para a reconstruc;ao de ordem metaffsica. "No que se refere a politica, a diferen~a entre mim e Hobbes, sobre a qual me perguntais, consiste em que eu continuo a manter Integro o direito natural e afirmo que ao poder supremo, em qualquer cidade, nao cabe sobre os suditos direito maior do que a potencia que ele tern sobre os proprios suditos, como sempre ocorre no estado natural. ,,24 Isto e uma reafirmac;ao dos resultados do TTP. Contem urn enorme potencial: libe­rando-se do contrato de sujei~ao, 0 mecanicismo muda de natureza, 0 pen­samento genetico torna-se pensamento produtivo, sobre urn horizonte que a "potentia" mantem aberto. Mas essa afirma~ao sO alcan~a sua plena significac;ao e seu adequado desenvolvimento em referencia a urn quadro

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metaffsico que torne possiveis suas condic;6es. Realmente, 0 segundo ponto e logo colocado: se so urn quadro metafisico de superficie permite a liber­dade, entao a funda,ao da potencia deve colher em si a expansividade global da divindade no mundo, "No que se refere it demonstra,ao pela qual, no Apendice dos 'Principios' de Descartes geometricamente demonstrados, eu estabele~o que Deus so muito impropriamente pode ser dito uno ou uni­co, respondo que uma coisa s6 pode ser dita una ou unica em relac;ao a existencia, e nao em relac;ao a essencia: com efeito s6 podemos conceber as coisas numericamente depois de te-Ias reduzido a urn genero comum. Quem tern na mao, par exemplo, urn sestercia e urn escudo, s6 pensa no numero dois se coloca 0 sestercio e 0 escudo sob uma mesma denomina­c;ao, a de moeda. S6 entao podera. dizer que tern duas moedas, sendo 0

sestercio e 0 escudo, ambos, denotados por esse termo. Daf se segue ma­nifestamente que uma coisa nao pode ser dita una e unica antes que se tenha concebido outra com a mesma defini~ao que a primeira. Mas ja que a exis­tencia de Deus e sua propria essencia, e que nao podemos formar de sua essencia uma ideia universal, e certo que dizer de Deus que ele e uno ou unico mostra que nao se tern dele uma ideia verdadeira e que se fala im­propriamente a seu respeito. "25 A divindade e tal que a declarac;ao de sua unidade se torna pleonastica. Assim desaparece ate 0 ultimo sinal da figu­ra teologica tradicional da divindade. Aquilo que correspondentemente aparece e, no lugar, 0 contexto da infinita potencialidade produzida pelo divino. Urn horizonte total que nao reconhece rna is nem mesmo transcen­dencia 16gica. 0 divino e 0 conjunto da forc;a potencial. Aqui 0 pensamento de Spinoza se fez inteiramente pensamento de superficie. T erceiro ponto: a explosao extensiva da ideia da divindade implica - e aqui a perspectiva politica e fundamental na sugestao e na organiza~ao da abordagem - 0

deslocamento do ponto de inserc;ao met6dica. Sobre esta totalidade divi­na, e a determinac;ao concreta que esta em jogo. E, "para a ideia de que a figura e nega<;ao e nao algo de positivo, e manifesto que a pura materia considerada como indefinida nao pode ter figura e que s6 ha figura nos corpos finitos e determinados. Entao, quem diz que avista uma figura, nao esta dizendo senao isto: ele concebe uma coisa determinada, e de que ma­neira ela 0 e. Essa determina~ao entao nao pertence a coisa segundo seu ser, mas, ao contrario, segundo seu nao-ser. A figura nao e outra coisa senao uma determina<;ao, e sendo toda determina<;ao uma nega<;ao, a figura nao pode ser outra coisa senao uma nega~ao"26. 0 paradoxo do mundo, en­tre unidade e multiplicidade, ja nao e tal: sua dilata<;ao metaffsica da lu­gar a determinac;ao concreta. 0 concreto, como unico terreno da realida­de, e fruto da determina<;ao paradoxal. Que se atente bern: aqui, a impor­tancia do trecho nao vern absolutamente do faro de que a nega<;ao especi­fique 0 principio de determina<;ao. Esta rela<;ao nega~ao-determinaC;ao e

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nossa conhecida desde 0 Curto tratado. 0 elemento fundamental da pas­sagem que acontece aqui (ja antecipado, mas apenas alusivamente, na Carta XXXVII)2? eo seguinte: que "nega,ao" nao e rna is submetida a priva,ao, que a determina~ao nao e mais captada como elemento de urn mecanis­mo de degrada~ao e/ou de oposi~ao metaffsica, seja como for, nao dentro da relatividade dos segmentos da totalidade. "Non opposita sed diversa. ,,28

o mal, 0 erro tinham side sempre esmagados no terreno, preconstituido pelo ritmo emanativo, de uma nega~ao compreendida como relaC;ao; como relatividade, como priva<;ao. 0 metodo agora permite voItar-se para a de­termina<;ao em sua imediatez concreta, para depois se voltar para a tOla­lidade. A nega<;:ao e absoluta: determina~ao, justamente - nao transferencia de significados metaffsicos.

Como pode 0 ser se tornar transparente, diante de nos! Mas desta vez nao sao a transparencia e a versatilidade de uma totalidade objetiva, como era no reino da utopia: e, ao contnirio, a hip6tese da conexao me­t6dica e ontol6gica construfda, do conhecimento c1arificador e constitutivo. Atraves disso, "os espectros e os espfritos", que 0 yulgo imagina revela­rem a materia e sua vitalidade, podem ser afastados: pois chamamos "es­pectros as coisas que ignoramos,,29 mas, assim que a razao entra em cam­po, qualquer concep<;:ao do mundo que seja menos que necessaria e rigo­rosa para adequar constitutivamente a razao e 0 ser nos aparece como objeto de supersti~ao e ignorancia. 0 ser e transparente porque 0 conhe­cimento e adequado. Nao ha nenhuma media<;:ao entre 0 finito e 0 infini­to, nao ha nenhum livre-arbftrio que separe 0 necessario e 0 fortuito, nao ha nenhum anteparo entre a verdade e 0 existente. Aqui, entao, 0 ser e transparente em sua determina<;ao, enquanro e sempre determinado e ex­clui toda media<;ao produtiva da determina,ao, "A aUlOridade de Platao, de Aristoteles, de Socrates, etc., nao tern grande valor para mim: eu teria ficado surpreso se tivesseis citado Epicuro, Dem6crito, Lucrecio ou urn dos aromistas e partidarios dos atomos. Nao e de espantar que homens que acreditaram nas qualidades ocultas, nas especies intencionais, nas formas substanciais emil outras tolices tenham imaginado espectros e espfritos e acreditado nas sflabas para enfraquecer a autoridade de Dem6crito. Eles tinham tanta inveja de sua gloria que queimaram todos os livros publicados por ele. Se estivessemos dispostos a acreditar neies, que razoes teriamos para negar os milagres da Santa Virgem e de todos os santos contados por tantos fil6sofos, te610gos e historiadores dos mais ilustres, que podem ser citados a cern contra urn dos outros?,,30 Urn verdadeiro horizonte propria­mente materialista constitui, com a transparencia do ser e sua "superficia­lidade", a possibilidade de agi-lo laicamente.

o discurso pode se encerrar aqui. A desmedida que - na rela~ao com a evolu<;ao geral do pensamento politico e filosofico do seculo - caracte-

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fiza de mane ira relativa 0 pensamento spinozista come~a na verda de a emergir em termos absolutos. 0 movimento metafi'sico cia constitui~ao, aprofundando as proprias condi,iies, chega a definir urn horizonte mate­rialista. Mas, justamente, constitutivo. Nao e preciso esperarmos a "des~ coberta" cia dialetica para alcan~armos a sintese cia produtividade natu­ral, historica e humana com as condi~6es materiais de existencia 31. Aqui­la que uma primeira abordagem analitica cia defini~ao dos movimentos cia imagina~ao revelou, ou seja, a complexidade das articula~6es reais e ma­teriais cia razao, a consciencia filos6fica come<;a a seotir como primeiro, exclusivo problema metafisico. A etica e 0 terreno onde fun,ao constitutiva e condi'roes reais - ou antes, fora de qualquer tentac;ao idealista, ainda que longfnqua, materia is - devem se recompor 32. A primeira reda<;ao da Etica, nesta situa<;ao, nao e criticada: e simplesmente revertida. Realiza­se a possibilidade de que ela possa ser lida como a base problematica de uma representa<;ao de "superffcie", que quer dizer materialista, e de uma reconstru<;ao pratica do mundo. Se a primeira camada da Etica continha uma alternativa, esta agora se resolveu: so a "via ascendente", 0 caminho constitutivo, e percorrivel. Nada mais verdadeiro, numa analise estrutu­ral da Etica, nem mais facil, que nela recortar pianos diversos, portadores e multiplicadores da alternativa inicia1 33. Nao e isso, entao, 0 que se nega. Afirma-se, ao contrario, que essa "duplica<;ao" (e replica) de pianos e re­solvida por uma escolha teo rica: 0 materialismo, e por uma determina<;ao pratica: a tensao constitutiva. A segunda camada da Etica e a forma defi­nitiva da obra (pelo menos aquela que nos e deixada pelas Opera Posthu­rna), elaboradas entre 1670 e 1675, constituem a realiza,ao desse proje­to. E aqui se observa novamente sua anomalia. Pois esse projeto esta real­mente fora das medidas em reia<;ao as determina<;oes culturais da epoca: em seu ateismo, em seu materialismo, em seu construtivismo, representa a filosofia maldita, selvagem, a permanencia do sonho revolucionario do humanismo, organizada como resposta a sua crise, como antecipa<;ao de novo movimento de luta, como proje<;ao de uma grande esperan<;a. Insis­tir neste ponto: a desmedida nao deriva da rela<;ao - relativamente -desproporcionada com 0 tempo da crise, quanto da organiza<;ao absoluta que a consciencia da crise imprime ao projeto de supeni-Ia. A rna is alta fe na divindade e revertida - organizada na reversao material sobre 0 hori­zonte historico. A mais alta percep<;ao da potencia, recusando toda media­<;ao, tornando-se pura e simples forma material, come<;a ja nao mais ape­nas a percorrer as trajetorias da imagina<;ao produtiva, mas a reconstruir o tecido determinado delas, a transformar as faculdades em for<;a cons­titutiva, em segunda natureza. Com a segunda funda<;ao da Etica. a natura naturata conquista total hegemonia sabre a natura naturans. 0 que pode ser isto, senao obra do demonio?

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2. APROPRIA<;:Ao E CONSTITUI<;:Ao

A transforma<;ao do pensamento spinozista e representada a partir daquele ponto no qual a continuidade teorica, que ocorrera no desenvol­vimento (do horizonte emanativo a constitui<;ao sincronico-estrutural) da primeira coloca<;ao metaffsica da Etica, se interrompe: 0 sistema se volta agora para uma constitui<;ao diacronico-etica. A primeira organiza<;ao do infinito, insistindo na espontaneidade da rela<;ao entre multiplicidade e unidade e na perfei<;ao de tipo panteista de tal tensao, ficara bloqueada entre utopia e paradoxo; a reconstru,iio do sistema nao nega a esponta" neidade, mas nega 0 problema da rela<;ao, toma 0 infinito como base da multiplicidade e considera a perfei<;ao como urn horizonte aberto, materia­lista. Aqui se coloca a fundamental anomalia do pensamento spinozista nos confrontos de seu secuio, au seja, na elimina<;ao do problema da rela­<;ao entre infinito e indefinido, que esta na base de todas as filosofias racio­nalistas de tendencia idealista. A anomalia esta na' perspectiva radicalmente antifinalista da filosofia de Spinoza, onde por finalismo se entende - como Spinoza entende - todo projeto metaffsico que submeta a iniciativa do multiplo a uma sintese transcendental. Ainda que essa transcendencia seja puramente logical E uma condi<;ao historica que assim se rompe: e uma opera<;ao revolucionaria que se realiza. 0 finaIismo e sempre a hipostase de urn projeto preconstituido, e a proje<;ao, sobre a ordem indissoluvel da natureza, do sistema de reia<;oes consoli dado no mundo hist6rico, e apo­logia da ordem e do comand034. Tudo isso ja foi visto, e estamos nos apro­ximando do momento em que sera preciso reconstituir a segunda funda­,ao da Etica em toda a sua complexidade. Neste paragrafo, para concluir a parte preliminar, resta-nos ainda ver apenas como os elementos prontos para a nova fusao, neste momento incandescente do processo, ficarn, por assim dizer, espontaneamente predispostos.

o problema e 0 dos varios elementos, predispostos, urn por urn fi­xados, mas ainda nao combinados. 0 metodo ainda nao se apropriou do conjunto das figuras ontologicas que entretanto, em sua separa<;ao, con­tribuiu para constituir. E e uma situa<;ao diffcil, pois, por urn lado, a uni­dade metodica (ontologicamente enraizada) e urna urgencia fundamental do pensamento de Spinoza, por outro, falta ainda 0 ponto de apoio a par­tir do qual essa unidade se torne praticavel na nova perspectiva. Nem a tematica ate aqui enfrentada, em sua propria origem, ofereceu urn tecido solido sobre 0 qual recompor materialmente 0 projeto. A irnagina~ao! E certo que ela representa, em Spinoza e em todo ° seculo, aquele terreno ambiguo e flutuante no qual 0 metodo comprova suas capacidades de aplica~ao e de sintese, aquela mescla de natureza e razao que da lugar a paixao: 0 estoicismo renovado do seculo XVI havia imposto e privilegia-

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de esse quadro, 0 XVII segue seus passos.35 A paixao, portanto. Em rela­~ao a tematica cia imaginar;ao, a problematica das paixoes chega perto cia determina\ao pra.tica, pais no conjunto confuso de natureza e razao ela insere a vontade, ciai acende 0 elemento de escolha, de alternativa, even­tualmente de ruptura. Este e entao 0 ponto sabre 0 qual pode-se organi­zar uma perspectiva de constituir;ao, tendo definido nao 56 0 ambito e 0

ponto de vista, mas tambem 0 sujeito constituinte: 0 homem, em sua ima­ginar;ao e em sua passionaliciade, intermediarias do conhecimento e cia vontade _ 0 homem como atividade. 0 metoda aqui e aplid.vel a ontolo­gia. Na razao, inteligencia e vontade se identificam, nao existe id€:ia que nao seja urn ato de afirma~ao ou de nega~ao. 0 metodo e apropria~a036.

E, todavia, nem mesmo com isso se podia declarar resolvido 0 pro­blema do ponto de apoio. Efetivamente, se tornarmos a olhar 0 seculo, notamos que 0 pensamento do seculo XVII, de Descartes a Hobbes, de­senvolve a tematica da apropria~ao passional do mundo dentro de pers­pectivas que, imediata ou mediatamente, anulam 0 pr6prio conceito de apropria~ao. Para Descartes a apropria~ao e confinada ao reino mecani­co e torna-se inessencial para a liberta~ao do homem. 0 dualismo e ape­nas hipoteticamente mediatizado ao nfvel das paixoes, e relan~a seu desa­fio no terre no da teologia mais do que no da antropologia37. "Sei que embora 0 celeberrimo Descartes tenha acreditado que a Mente tern urn poder absoluto sobre suas a~oes, procurou, no entanto, explicar os Afe­tos humanos atraves de suas causas primeiras, e, ao mesmo tempo, mos­trar 0 caminho pelo qual a Mente pode ter urn dominio absoluto sobre os Afetos; mas, pelo menos em minha opiniao, nao mostrou outra coisa se­nao a agudeza de seu grande espfrito. ,,38 Ja para Hobbes, a apropria~ao e fundamental e sua fisica e efetivamente base de uma metafisica. Mas e adequada, esta metafisica? Nao acaba ela por negar, reintroduzindo a trans­cendencia da obriga~ao - se nao a inteira fisica - pelo menos uma ima­gem crivel do homem? A rela~ao entre paixao e constitui~ao inteiramente suhmetida - como que receosa das sugestoes trazidas - a reorganiza~ao da separa~ao do horizonte human039 ? 0 problema consiste enta~ no fato de que, em urn nfvel ou no outro, a filosofia do seculo XVII introduz 0 criteria da media~ao das paixoes como fundamento para a propria defi­ni~ao delas. A ambigiiidade, a flutua~ao das paixoes nao constituem urn caminho a ser percorrido, mas uma dificuldade a ser superada. Enquanto reintroduziam a tematica materialista das paixoes, as correntes neo-est6icas reinterpretavam a tematica idealista do controle das paixoes. "A maior parte daqueles que escreveram sobre os afetos e sobre a maneira de viver dos homens parecem tratar, nao de coisas naturais que seguem as leis co­muns da natureza, mas de coisas que estao fora da natureza. Na verdade, parece que concebem 0 homem na natureza como urn imperio em urn

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imperio. Creem, efetivamente, que 0 homem perturba a ordem cia nature­za mais do que a segue, que tern poder absoluto sobre suas proprias a~oes e que nao seja determinado senao por si mesmo. Atribuem, entao, a causa da impotencia e da inconstancia humanas, na~ a potencia comum da na­tureza, mas a nao sei que vfcio da natureza humana, da qual, por essa razao, se queixam, escarnecem, desprezam ou, como acontece mais geralmente, detestam-na; e aquele que sa be mais eloqiiente ou mais argutament~ cen­surar a impotencia da Mente humana e considerado quase divino. "40 A filosofia do seculo XVII em geral aceita este terreno. A apropria~ao passio­nal da natureza - essa metafora ideol6gica do mercado capitalista e da acumula~ao primitiva - tinha de se curvar as necessidades da organiza­<;ao social e estatal dos fluxos de valor. Diz-se que essa concep~ao laiciza a filosofia! E quem nega isso? Mas ela implica ao mesmo tempo uma ima­gem determinada do poder - e assim implicada nega a criatividade do tecido materialista ate aqui descoberto, ou pelo menos da uma visao mis­tificada de sua natureza e seus efeitos. Irnagina<;ao, paixao e apropria<;aa tornam-se elementos consubstanciais da ideologia burguesa de mercado - criatividade subordinada a ordern -, valor subordinado a rnais-valia?41 Urn finalismo, diferente daquele tradicional da teologia, mas nao men os eficaz, vern se instituir desse modo: a ambigiiidade passional se resolve numa pratica mediatizante da apropria<;ao, a apropria<;ao num esquema social ordenador que a sobredetermina - e mesmo verdadeira dialetica, esta, urn pracessa de media<;ao que nao constitui nada porque sua norma e imp li­cita, e constituida, e "causa formal" e nao "causa eficiente". A transcen­dencia domina a media<;ao, mesma que seja em formas 16gicas, transcen­dentais; a apropria<;ao e "legitimada" (submetida ao universal), au seja, desviada e mistificada em sua pr6pria defini<;ao. Nao e par acaso, entao, que em torno dessa reinven~ao da media~ao, dessa atualiza~ao do finalisrno, dessa restaura~ao da transcendencia, se coloca 0 filao anti-humanista e reacionario da filosofia do seculo XVII: aquele que, safdo diretamente da apologetica catolica ou reformada, encontra no cartesianismo teol6gico e no hobbesianismo politico uma base adequada para a reivindica~ao da tra­di<;ao - da teologia como da razao de Estado42

Quando, em Spinoza, 0 metodo e definido como apropria~ao, e urn mundo filosofico inteiro que deve ser posto de lado. A premissa e a con­cep~ao redicalmente unfvoca do ser, a argumenta~ao (no terreno da ideo­logia) e 0 radical atefsmo, a conclusao e uma concep~ao materialisra do homem. Nao vale a pena vol tar aqui a concep~ao do ser. Nem a Cfitica da teologia, se na~ para mencionar 0 fato de que as tensoes internas das "ex­periencias" de libera~ao religiosa mais radicais do seculo parecem encon­trar solu<;6es em Spinoza: tanto do Iado do hebraismo quanta do lado do protestantisrno. Experiencias, na~ ideologias, nao doutrinas - foi dito: que,

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justamente, a pr6pria abordagem e que recusa a mediac;:ao teol6gica, que a assume como hostil e estrangeira - as experiencias religiosas que se aproximam, ou cruzam, ou se identificam com 0 pensamento de Spinoza sao, elas tambem, apropria<;ao, apropria\ao da divindade43• 0 antiplato­nismo ontologico de Spinoza faz par com seu anticristianismo teologico. Donde a concep\ao materialista do homem, como atividade, como patencia de apropriac;:ao. No homem cleve se verificar aquela fusao dos elementos, ou antes, aquela implosao das premissas que, ao esfriar e se clarificar, nos of ere cern 0 instrumento do pfojeto constitutivo. A relac;:ao entre homem e horizonte constitutivo e preparada por uma serie de condi<;6es metafisi­cas agora resolvidas. Colocando-as uma ao lado da outra, veremos como elas preparam a defini<;ao do homem como atividade de apropria,ao. Em primeiro lugar, a colocar;ao do homem na natureza; a reversao da pers­pectiva metafisica nos confirmou a uniao indissoluvel do homem e da na­tureza, mas reverteu-a, em seu sentido, seu encaminhamento, fazendo do homem nao rna is a expressao da natureza, mas 0 produtor do mundo. A potencia do universo e da divindade, experimento-as agora na potencia constitutiva do mundo, encontro-as como qualificar;ao da existencia. "Pa­reced. surpreendente que eu procure tratar os vieios e as fraquezas dos ho­mens a maneira dos geometras e que queira demonstrar com urn raciodnio rigoroso aquilo que eles est30 sempre proclamando contrario a Razao, VaG e digno de horror. Mas eis fieu motivo. Nada acontece na natureza que possa ser atribuido a algum vieio existente nela; ela e efetivamente sem­pre a mesma; sua virtude e sua potencia de agir sao uma e a mesma em toda parte ... Tratarei entaO da natureza dos Afetos e de suas forr;as, do poder da Mente sobre e1es, seguindo 0 mesmo Metodo que nas partes anteriores de Deus e da Mente, e considerarei as ar;6es e os apetites huma­nos como se se tratasse de linhas, superficies e solidos44. Em segundo lu­gar, a colocar;ao do homem no conhecimento: descrevo 0 mundo de ma­neira convencional atraves de nor;oes comuns, mas logo - na medida em que minhas ideias ficam cada vez mais adequadas a realidade - capto a realidade como urn processo unitario ao qual aplico, conscientemente, minha razao. Entre a imaginar;ao e a intuir;ao, nao construo assim somen­te a verdade, mas tam bern minha liberdade. A verda de e liberdade, trans­formar;ao, liberar;ao. A potencia metansica da colocar;ao humana e a mesma coisa que 0 metodo de transformar;ao que provem daquela ar;ao unitaria que e produzida por razao e vontade. "Por virtude e potencia entendo a mesma coisa; isto e, a virtude, enquanto se refere ao homem, e a propria essencia ou natureza do homem, enquanto este tern 0 poder de fazer cer­tas coisas que so se podem entender atraves das leis de sua natureza. ,,45 Dito isto, a potencia apropriativa da essencia humana comer;a a se revelar com extrema clareza; as condir;6es se reunificaram - metafisica, formal-

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mente. Tern agora de se unificar atualmente, de mane ira determinada, para permitir considerar 0 processo constitutivo nao so como trama geral do ser, mas como genese, potencia em desenvolvimento. De novo imaginar;ao, paixao, apropriar;ao; mas seguras de nao cairem no drculo vicioso da fi­losofia do seculo XVII, preparadas, ao contnirio, para dominar a imediatez e constituir diretamente a realidade do mund046.

A essencia do homem. "Este esfor<;o (conatus), quando se refere s6 a Mente, se chama Vontade; mas quando se refere ao mesmo tempo a Mente e ao Corpo, se chama Apetite; isto, entao, nao e outra coisa senao a propria essencia do homem, de cuja natureza deriva necessariamente aquilo que Serve para sua conservar;ao; e entao 0 homem e determinado a faze-Io. Nao ha, portanto, nenhuma diferenr;a entre ° apetite e 0 desejo, exceto que 0 desejo se refere em geral aos homens quando tern conscien­cia de seu apetite, e por isso pode ser definido assim: 0 Desejo e 0 apetite com consciencia de si mesmo. Resulta entao de tudo isto que nao nos es­forcemos para coisa nenhuma, nenhuma coisa queremos, apetecemos ou desejamos porque a julgamos boa; mas, ao contra rio, que julgamos boa alguma coisa porque nos esforr;amos para ela, queremo-Ia, apetecemo-la e a desejamos.,,47 A essencia do homem e entao "appetitus": 0 mundo e qualificado pelo "appetitus" e pela "cupiditas". A unidade da razao (in­telecta e vontade) e a unidade da razao e do corpo sao propostas juntas. Por isso 0 apetite e ° desejo qualificam. Mas qualificar e uma potencia constitutiva estatica. Enquanto que a determinar;ao constitutiva que 0 homem da ao mundo e dinamica. 0 horizonte sobre 0 qual se libera a potencia constitutiva humana e aberto. 0 mundo e aquila que ainda nao e. E ° porvir. E essa projer;ao. Isto tambem e essencia humana, elemento fundamental da definir;ao. "0 Desejo e a propria essencia do homem, enquanto concebido como determinado para fazer alguma coisa por qual­quer afecr;ao dada. ,,48 Desejo esta em Spinoza como paixao, mas ao mes­mo tempo como apropriar;ao: "0 apetite e a propria essencia do homem enquanto e determinada para fazer as coisas que servem para sua conser­var;ao"49, 0 que significa que 0 desejo explica a essencia do homem na ordem dinamica da reprodur;ao e da constituir;ao. E real mente uma filo­sofia positiva, durfssima em Seu rigor construtivo, aquela que se esta for­mando. Uma filosofia da alegria, como alguns leitores quiseram chama­la

50? Provavelmente. 0 cerro e que finalmente chegamos a uma base de reconstrur;ao que dilatou a desmedida de nossa perspectiva, tanto em te­mos logicos quanta em termos eticos51.

Mas nao e so. 0 homem, como vimos, nao e "urn Estado dentro do Estado". A natureza nao e urn Estado confederado e confuso em sua cons­tituir;ao, como sao os Paises Baixos. Ao contrario, e uma entidade coleti­va, urn processo no qual a propria individualidade humana se constitui em

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entidade coletiva. "Por coisas singulares entendo as coisas que sao finitas e tern uma existencia determinada; que se varios individuos concorrem para uma me sma 3<;3.0, de sarte que rodos sejam aD mesma tempo causa de urn mesma efeito, considero-os todos, no que toea a isso, como uma mesma coisa singular. ,,52 Este trecho, alias ja logicamente preconstituido no livro II da Etica, tern aqui urn rei eva excepcional. A determinac;ao materialisra do processo constitutivo, efetivamente, e caracterizada por esta modali­dade ulterior: 0 coletivo, a multidao. De urn ponto de vista historica, a ruptura com 0 rigido individualismo das concep<;oes geralmente difundi­das no pensamento do seculo XVII, e em particular com a hobbesiana, torna-se total. 53 Do ponto de vista do sistema, a determina,ao spinozista do coletivo tern efeitos poderosos; com efeito, ela permite a concep<;ao da potencia desenvolver-se de maneira integral. Suponhamos que 0 desenvol­vimento da vida passional e social nao seja imediatamente articulado ao desenvolvimento do coletivo; dai resu!taria uma configura<;ao etica e so­cial na qual, a eficacia constitutiva da potencia, se oporia validamente, como (mica possibilidade determinada, a unifica.;ao logica ou politica, de qual­quer modo transcendental, do processo da individualidade. Mas isto e contra as premissas spinozistas; 0 processo constitutivo nao e imaginavel fora de alguma qualifica<;ao coletiva interna sua. "Ninguem paden! con­ceber corretamente a que quero dizer se nao tomar cui dado para nao con­fundir a potencia de Deus com a potencia humana au 0 direito dos reis."54 o que significa: nao e possivel 0 desenvolvimento da potencia divina do mundo, da tensao apropriadora que se exprime pela individualidade, se pensamos - como sugere a metafora absolutista - que essa potencia possa ser governada au ordenada atraves de media<;oes transcendentes ou trans­cendentais. A metafora da realeza divina e corrente na filosofia do seculo, e em particular na cartesiana55, para assinalar a impossibilidade de uma media<;ao ontologica da unidade e da multiplicidade. E tenha-se em men­te que 0 conceito do coletivo nao e outra coisa senao uma determina<;ao _ ontologica - da rela<;ao multiplicidade-unidade. A recusa spinozista da metafora real, absolutista, e entao sinal da aquisi.;ao do coletivo como solu<;ao ontologica. 0 "decreto", no qual se unifica - au, muito melhor, se exprime - a unidade originaria, a "simultaneidade da Mente e do ape­tite,,56 _ esse autodecretamento (sincronico) da natureza que poe de lado todo paralelismo, vale tam bern no plano diacronico, onde 0 coletivo e forma "simultanea" da constitui<;ao temporal do homem. E fundamental mente a vontade, em sua sintese dinamica com 0 intelecto, que impoe essa reve­la.;ao do procedimento da razao, a partir do individual para 0 coletivo, sem solu<;oes de continuidade que nao participem da mecanica interna da passagem, da fisica da qualifica<;ao, pelo proprio fato de que a essencia do processo e ativa e expansiva57. 0 materialismo constitutivo e expansive

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da potencia exige entao uma determina<;ao coletiva. Com isto 0 conjunto das condi<;6es constitutivas atingiu 0 mais alto ponto de fusao.

Concluindo. Apropria<;ao em rela<;ao a constitui<;ao: todas as condi­<;oes entao parecem dadas a urn nivel de fusao que se torna, ele mesmo, determinante e qualificante da figura da potencia e de sua a<;ao no mundo. Se agora examinarmos por urn momenta aquele que parece ser 0 documento mais apaixonado da polemica spinozista contra 0 finalismo, 0 Apendice da parte I da Etica 58, percebemos a relevancia que tern a passagem a que es­tamos assistindo. 0 animus polemico do Apendice efetivamente se abre agora, atraves das ideias de apropria<;ao e de constitui<;ao, em animus pro­dutivo. A alternativa na concep<;ao da verdade nao consiste mais na esco­lha entre 0 paganismo finalista e a afirma<;ao da norma em si contida pelas verdades matemaricas - mas consiste numa passagem ulterior: da verda­de em si para a verdade constitutiva, da adequa<;ao do entendimento e da coisa para a fun<;ao adequada da constitui<;ao material. "As leis da nature­za sao suficientemente amplas para produzirem todas as coisas que possam ser concebidas por urn entendimento infinito"S9: as condi~6es desse augu­rio, que representa urn dos pontos mais altos a que chegou a primeira ca­mada da Etica, sao dadas agora como pressupostos operativos.

3. FOR(A PRODUTIVA: UMA ANTfTESE HIST6RICA

Voltemos ao conceito de apropria~ao, vendo-o desta vez estreitamente em referencia a dupla "paixao-interesse" que, com 0 nascimento da eco­nomia politica, vid. se colocar no centro da teoria de maneira exdusiva. No momento, 0 peso desta dupla consiste em sua determina~ao hist6rica: eco­nomia politica, burguesia, capitalismo -categorias, todas, ate impensaveis fora de uma funda~ao passional, onde 0 interesse egofstico e sua legitima­~ao nao constituam 0 elemento fundamental60. Em tempos mais proximos a nos, fomos aos poucos chegando ao ponto de excluir da modernidade 0

pensamento que nao tome 0 interesse, ou pelo menos a materialidade da paixao, como ingrediente teo rico determinante. Nisto correspondendo a realidade: se a historia moderna e historia da genese e do desenvolvimento do capital, a tematica da paixao-interesse a tece estruturalmente e tern como efeito tornar insignificante qualquer pensamento, rna is ainda qualquer po­sic;ao metafisica, que tente se afastar do interesse como trabalho para a totalidade61 . E no entanto, isto tudo posto, nao resolvemos a serie de pro­blemas que surgem em torno do conceito de apropria~ao - nem a abun­diincia de bibliografia tern a capacidade de eliminar os problemas. E entio: nao sed a redu~ao de apropria~ao em interesse uma opera~ao ilegftima, in­teiramente apologetica, mistificante e, ainda por cima, postuma? Estamos

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no ponto: a analise da extensao e da intensidade, a capacidade de aplica­\=ao e a determina'rao hist6rica da categoria "aproprias:ao".

Se entendemos por apropria~ao a revolw;ao que se realiza na ordem da ideologia e da propria vida da era moderna, se podemos qualificar com esse terma a concepc;ao humanista de conquista da natureza e de transfor­ma<;ao do mundo que explode no fim da Idade Media e se imp6e na histo­ria da civiliza<;ao ocidental- no entanto, partindo daquela enorme exten­sao de epoca, 0 terma categorial vern se refinando e se determinando, assu­mindo significados alternativos e qualificando, na parabola hist6rica que descreve, diferens:as nao 56 ideais. No seculo XVII, encontramo-nos na ori­gem da extensao gera] do terma mas, ao mesmo tempo, na origem de sua diversa e alternativa qualifica<;ao. Apropria<;ao, de fato, e 0 transcendental da revolu<;ao capitalista, a trama do vInculo de subsun<;ao que a define: a capac ida de pnitica, a for<;a construtiva assumem as condi<;oes naturais, tornam-nas abstratas e circulantes, transformam-nas em segunda nature­za, em nova for<;a produtiva. Apropria<;ao e sinonimo da nova for<;a pro­dutiva. Mas este novo mundo se apresenta como for<;a unitaria e universal apenas em termos ideologicos; de fato, estruturalmente e urn mundo cindido. Quando surgem as primeiras crises, quando a ideologia e sua enfase cole­tiva se dissolvem, a realidade mostra a apropria<;ao reduzida ao interesse egoistico e a revolu<;ao capitalista como conserva<;ao politica ou mera trans­forma<;ao funcional das estruturas de domina<;ao. A revolu<;ao se dobra a media<;ao, e a media<;ao e submetida a reconstrU(;ao da domina<;ao. Enquanto que a apropria<;ao permanece sendo 0 transcendental das for<;as produti­vas, a tematica dos interesses registra com eficacia 0 nIvel das novas rela­<;oes de produ<;ao. No avan<;o ciclico do desenvolvimento capitalista, for­<;as produtivas e rela<;oes de produ<;ao acabam por se dispor em contradi­<;ao; uma contradi<;ao que, so ela, permite ler os seculos seguintes.

Mas a filosofia nao se perturba com isso! Esta contradi<;ao funda­mental, que a realidade registra cada vez rna is dramaticamente, corre ao lado da estrada real da historiografia filos6fica. A racionalidade, 0 valor, a criatividade encontrarn-se todos na exalta<;ao das rela<;oes de produ<;ao capitalistas; as for<;as produtivas e as contradi<;oes que delas ernanam sao compreendidas apenas como marginalidade ao processo filos6fico. Tere­mos naturalmente formas de mistifica<;ao mais ou menos abrangentes e potentes: 0 idealismo tenta a mistifica<;ao tout court da identidade de for­<;as prociutivas e de rela<;6es de produ<;ao, repete sem interrup<;ao - hipos­taseando-a fraudulentamente diante da crise estrutural da rela<;ao - a ilu­sao, originaria e revolucionaria, cia unidade cia produ<;ao capitalista. ja 0

empirismo produz desencanto para com a ideologia, mas cinicamente aceita a inversao da rerminologia explicativa e tenta justificar as contradi<;6es das rela<;oes de produ<;ao atraves da considera<;ao cia eficacia do desenvolvi-

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mento cielas. Do outro lado: e POSSIvei descrever uma continuidade de recusa e rebeliao diante dessas sinteses hist6ricas bem-comportadas? E possIvel ver 0 avan<;o real da lura de classes, do sempre necessariamente reemergente movimento das for<;as produtivas, desenhar (no ambito da pro­pria metaffsica) urn caminho de recusa e desvio, de destrui<;ao da mistifi­ca<;ao e de alternativa teorico-pratica? Existe uma linha de pensamento que, partindo da revolu<;ao humanista, assumindo a centralidade antropol6gi­ca do conceito de apropria<;ao, nega a crise cia revolU(;ao e recu.sa-se a dobrar a apropria<;ao it ordem do interesse capitalista, a individualiza<;ao ideologica de seu movimento? E em vez disso rea firma a potencia mate­rial, coletiva, constitutiva da apropria<;ao? Se nos atemos it historiografia filosofica consagrada, nada disso e admissivel, nem mesmo como questao elegante. E no entanto, com toda a sua bazofia, com todo 0 continuo e febril trabalho de ajustamento critico que realiza, a historia da filosofia nao consegue tapar os buracos negros, os vazios excessivos de sua capacidade de demonstra<;ao. E ate a retorica filosofica trope<;a nesses buracos negros, quando nao se precipita neles62!

Ainda mais diante de Spinoza. A metafisica de Spinoza, efetivamen­te, e a declara<;ao explicita, em todas as dimensoes, cia irredutibilidade do desenvolvimento das for<;as produtivas a qualquer ordenamento. Ainda mais ao ordenamento da burguesia. A historia das rela<;6es de produ<;ao deve, necessariamente, privilegiar 0 seculo XVII, pois nesse seculo a pure­za das alternativas ideologicas que acompanham a genese capitalista e total. Ora, como se sabe, no seculo XVII a linha que vence e aquela que, rna is tarde, sera chamada "burguesa". 0 desenvolvimento capitalista - diz-se -, diante das primeiras subleva<;oes da luta de classes, deve entrar em entendimento com 0 Estado: de fato, ele entra em entendimento com as velhas camadas de governo, impondo-Ihes uma nova forma - racional e geometrica - do comando - 0 absolutismo63. Mas, ao mesmo tempo, a burguesia nascente realiza outra fundamental, complementar opera<;ao, que e a de tornar dinamicos os termos da media<;ao, definindo uma articula­<;ao diante do Estado: a sociedade burguesa64, como terreno da indepen­dencia, da autonomia ou da separa<;ao relativas do desenvolvimento ca­pitalista e da propria burguesia como classe. Pretende-se a essencia antes da existencia. Uma abstra<;ao total, a divisao da sociedade em rela<;ao ao Estado, e afirmada com 0 objetivo de determinar a dinamica do desenvol­vimento burgues. A essencia da burguesia estara sempre separada do Es­tado: ate quando houver determinado 0 maximo da hegemonia sobre 0

Estado - portanto nao para que ela possa efetivamente se colocar contra o Estado (mas tern algum senti do por em termos de realidade urn proble· rna cuja base e pura fic<;ao?), mas para que ela nao possa se identificar com coisa alguma, senao com a propria forma de media<;ao potente das for<;as

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produtivas. A burguesia estani alternativamente "a favor" ou "contra" 0

Estado, sempre no firmo de sua caracteristica de forma improdutiva (ou seja: rela~ao de procill(;ao) cia organiza~ao para a domina<;ao das fon;as produtivas. Porque, entao, ela e desde sempre classe da explora,ao. Mas a explora<;ao capiralisra e camanda de uma reiac;ao, e fun<;ao de uma 0[­

ganiza<;ao - e meciia'fao, sempre e 56 mediac;ao das for<;as produtivas. E a individualidade do interesse que se sobrepoe aD processo coletivo cia apro­pria<;ao - transformac;ao mais constituiC;:1o - da natureza por parte das for,as produtivas. E mistifica,ao do valor que privatiza a realidade da extrac;ao da rna is-valia. E fetichismo contra for<;a prod uti va.

Hobbes-Rousseau-HegeL Como ja assinalamos65 , e fundamentalmente atraves desses tres apices que a mistificac;ao burguesa atinge sua perfei~ao. Em Hobbes a categoria de apropria~ao associativa (coletiva) se traduz, tanto paradoxal quanto eficazmente, na sujeir;ao autoritaria ao soberano, 0 meca­nismo de prodw;ao da rna is-valia se entrega ao fetichismo do valor. Em Rousseau a transferencia autoritaria das for~as produtivas para a sobera­nia e democraticamente mistificada e a aliena~ao absolutamente santifica­da. Daqui se desencadeia a conjunr;ao do direito privado e da forma abso­luta do direito publico, a funda,ao juridica da ditadura do capital. Hegel suprime 0 paradoxo, dialetiza-o, distribui-o entre momentos de autonomia relativa, restitui a cada urn sua margem de trabalho para exaltar no abso­luto a condi~ao alienada, para recompor na totalidade da explora'!ao a ilu­sao da liberdade de cada urn. De qualquer mane ira, a distinr;ao previa en­tre sociedade burguesa e Estado tarna-se urn enfeite da teoria; exatamente uma ficr;ao que 0 processo historico da teoria teve de admitir, e de que se livra agora, tendo chegado a maturidade da domina,!ao: e enta~ 0 Estado que produz a sociedade civil. Nada mudaria se, como nas correntes empi­ristas, a distinr;ao entre sociedade burguesa e Estado fosse mantida, pois a maior ou menor autonomia da sociedade burguesa nao incide sobre a na­tureza da defini~ao da burguesia; em todos os casos, c1asse de media,!ao para a explora<;ao - nao forr;a produtiva, mas rela~ao de produ'!ao.

o pensamento de Spinoza e a desmistifica~ao previa de tudo isso. Nao apenas porque e a mais alta afirma~ao metafisica da for~a produtiva do homem novo, da revolur;ao humanista, mas tambem porque e a negar;ao especifica de todas as grandes ficr;oes forjadas pela burguesia para masca­rar a organiza<;ao de sua propria domina<;ao. No caso especifico, em Spi­noza nao existe a possibilidade de fixar a rela<;ao de produr;ao indepen­dentemente da forr;a produtiva. A recusa do proprio conceito de media­<;ao esta na base do pensamcnto spinozista. E isto no momento de seu de­senvolvimento utopista, nele registrando a generalidade e a qualidade do pensamento moderno em sua genese revolucionaria. Mas la esta tambem em sua forma madura, nao utopica, naquilo que chamamos a segunda ca-

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mada da Etica - e isto torna unica e anomala a filosofia de Spinoza em seu seculo. as comentadores que tanto insistem na identidade da descri­<;ao spinozista e da hobbesiana do estado de natureza66 insistem no ob­vio, isto e, naquilo que e comum no seculo, a de~coberta do carater anta­gonista da acumula~ao capitalista diante da utopia unitaria que a havia iniciado. Mas ja nao captam a alternativa que se apresenta no terreno co­mum de uma filosofia da apropria~ao e a oposir;ao radical que a1 se deter­mina, atraves da qual Spinoza e 0 anti-Hobbes por excelencia. Ele man­tern 0 tema da apropriar;ao como tema central e exclusivo, recus~-se a desvirtua-lo num horizonte de interesses egofstas - conseqiientemente nega e refuta 0 instrumento imaginado por Hobbes para transferir 0 conceito de forr;a produtiva na de rela~ao de produ~ao, ou seja, 0 conceito de obri­ga~ao, e utiliza 0 contrato - social somente numa primeira fase, alias -como esquema de urn processo constitutivo (mais do que como motor de uma transferencia de poder). Alem disso Spinoza nega a distinr;ao socie­dade civil-Estado, esta outra ficr;ao funcional para a ideologia da rela~ao de prodw;ao. Para Spinoza a sociedade constroi em si mesma as funr;oes de comando, que sao inseparaveis do desenvolvimento da forr;a produti­va. Potencia contra poder67. Nao e por acaso que esse pensamento de Spinoza devia aparecer "acosmico" para esse grande funcionario zeloso da burguesia que e Hegel! Hegel ve, e ve com justeza, a forr;a produtiva da substancia spinozista como fundamento absoluto da filosofia moder­na: "Spinoza constitui urn ponto tao crucial para a hist6ria da filosofia moderna que se pode de fato dizer que apenas se escolheu entre ser spino­zista ou nao ser absolutamente fiI6sofo,,68. Mas, por outro lago, na medi­da em que Spinoza man tern firme 0 ponto de vista da forr;a produtiva, na medida em que nao cede ao s6rdido jogo cia mediar;ao, eis a cinica con- ~

c1usao de Hegel: "Spinoza morreu a 21 de fevereiro de 1677, em seu qua­dragesimo quarto ano, de uma ptisia de que sofrera durante muito tempo - de acordo com seu sistema no qual tam bern toda particularidade, toda singularidade, desaparece na unidade da substancia,,69. Antigamente se sabia lutar, na filosofia: estavam em jogo alternativas que atacavam 0

problema da rea~ao ou do progresso, da domina<;ao burguesa e da escra­vidao proletaria; isto vale a pena pelo menos assinalar. E a falsificar;ao e, na luta, urn instrumento habitual. Orientalismo da filosofia spinozista: que palha,ada! Extin,ao da particularidade e da singularidade no absoluto! Certo, no absoluto da for~a produtiva, Spinoza esta ate 0 fundo, assim como Maquiavel estava no absoluto da identidade social do politico, como Marx esta no absoluto do antagonismo que fundamenta 0 processo revolucio­nario do comunismo; mas por cefto nao para se distinguirem em vao, po­rem sim para indicar - Maquiavel Spinoza Marx - a unidade do proje­to humano de libera,ao diante da media,ao burguesa. De Maquiavel ti-

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r3faffi 0 maquiavelismo, de Marx, 0 marxismo; como para 0 spinozismo, tentaram, sem grande sucesso, fazer cieles ciencias subordinadas cia totali­dade burguesa da domina~ao. Quando, ao contrario, em Maquiavel e 0

enraizamento civil e republicano da categoria do polftico que resulta em termos fundamentais! E, em Marx, 0 tema do comunismo antecipa e fun­damenta a descri~ao do desenvolvimento capitalista e categorialmente 0

define como explora<rao! Em rodos os casos, Maquiavel, Spinoza, Marx, representam na hist6ria do pensamento ocidental a alternativa irredutivel a qualquer concessao cia meclia<rao burguesa do desenvolvimento, de qual­quer subordina<;iio das fon;as produtivas is rela<;6es de produ<;ao capita­listas. Este "outro" curso do pensamento filosofico deve estar presente como pano de fundo essencial de toda filosofia do porvir - esse "pensamento negativo", que percorre iconoclasta os seeulos do trjunfo cia metaffsica burguesa da media<;ao.

o que rna is chama a aten~ao, quando se estuda a coloca~ao de Spi­noza, dentro e contra 0 desenvolvimento do pensamento filos6fico no se­culo XVII, e 0 fato de que sua metaffsica, mesma percebida como seivagem, flaO consegue entretanto ser posta de lado. E e assim que, se por urn lade 0

cartesianismo e depois 0 grande empirismo pn!-iluminista continuam em seu esfon;o de constru~ao da media~ao burguesa do desenvolvimento, por Dutro os problemas politicos e metafisicos colocados pde pensamento spino­zista nao conseguem ser suprimidos, pelo contrario, tern sempre que ser controlados de alguma maneira. Nao e aqui 0 lugar para identificar os ele­mentos especfficos dessas opera<;oes de controle: bastaria, como alias ja se fez, e bern, acompanhar na vertente metafisica a rela<;ao Spinoza-Leibniz, como urn dos pontos mais importantes desse desenrolar7o. E aqui captar a impossibilidade de encerrar Spinoza e a concep<;ao metafisicamente funda­mental da for<;a produtiva dentro de urn sistema - se e que as repetidas abordagens leibnizianas podem ser definidas de tal modo - que nao acabe por conceder a concep<;ao constitutiva urn espa<;o muito rna is amplo do que aquele que na realidade se estava disposto a dar71 . Ou entao, na vertente polftica, reconstruir a cansativa genese do direito publico do Estado mo­derno, onde 0 contratualismo hobbesiano, geralmente hegemonico e - mais tarde - afortunado em seu encontro com a for<;a da inversao metafisica do rousseaunismo, nao consegue entretanto estar em condi<;oes - senao justamente em niveis de maxima abstra<;ao mistificadora - de destruir, de anular a potencia constitutiva da instancia de socialidade, desse momento constitutivo e constitucional, dessa resistencia antiabsolutista que 0 pensa­mento de Spinoza tao violentamente reivindica72. E como se a filosofia do seculo XVII tivesse uma borda escura, mantida para esconcier seu pecado original: 0 reconhecimento da categoria da apropria<;ao como fundamento traido cia filosofia moderna - que urn lapso contfnuo revela.

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Spinoza e 0 lado claro e luminoso da filosofia moderna. f: a nega,iio da media<;ao burguesa e de todas as fic<;oes 16gicas, metafisicas e juridicas que organizam sua expansao. E a tentativa de determinar a continuidade do projeto revolucionario do humanismo. Com Spinoza a filosofia conse­gue pela primeira vez negar-se como ciencia da media<;ao. Ha em Spinoza como que 0 senti do de uma grande antecipa<;ao sobre os seculos futuros e a intui<;iio de uma verdade tao radical da propria filosofia que impede de todo modo nao 56 0 achatamento desta sobre 0 seculo mas tambem, pa­rece as vezes, 0 confronto, a compara<;ao. Na realidade nao 0 entendem e o recusam. 0 proprio Leibniz, numa carta que trata de optica e supoe urn certo conhecimento, chama Spinoza de "medico"73. Coisa curiosa: medi­co, emendator, mago, Spinoza e rejeitado naquela gera<;ao pre-moderna com a qual ja 0 jovem Descartes, e toda a cultura contra-reformada, cato­lica ou protestante que fosse, pretendia ter definitivamente acertado as contas - gente do Renascimento, revolucionarios, magos, em desus074•

Para mim, Spinoza evoca rna is Shakespeare; urn dispositivo dramatico que nao ganha significados de fora, mas de dentro de si mesmo produz a for­ma dram:itica ou 0 confronto logico como expressao da propria potencia, como demonstra<;ao de urn revolucionario e independente vInculo com a terra - no caso de Spinoza uma potencia que pretende ser como a prefi­gura<;ao da libera<;ao. No absoluto. Medida e desmedida da obra spinozista, integridade do conceito de apropria<;ao, representa<;ao do metodo como constitui<;ao; os contemporaneos, envolvidos na defini~ao da media~ao bur­guesa do desenvolvimento, na~ podem conceber isto senao como anoma-10 e selvagem. Quando, ao contr:irio, trata-se cia unica, nao fingida, leitu­ra do trabalho real daquele curso historico, em sua densidade de motivos antagonistas e revolucionarios. Para 0 futuro! Enquanto todo 0 pensamento de urn seculo se dobra sobre a derrota, ao ponto de fixa-Ia nos grandes jogos metafisicos do cartesianismo e no lucido oportunismo do "liber­tinage"; enquanto 0 pensamento do mecanicismo se aplica a reconstru~ao da imagem do poder, a constru~ao de suas tecnicas especializadas de do­mina<;ao e, com isso, dedica-se a uma obra de anula~ao das experiencias revolucionarias; e quando se entende toda a filosofia para dar existencia a essencia mediatizadora da civilidade burguesa: "pensamento negativo", nessa situa~ao, e 0 pensamento spinozista, enquanto crftica e destrui~ao dos equilibrios da cultura hegemonica - cultura da derrota e da media­'fao. A defini'fao do pensamento negativo - sabe-se - e sempre relativa. o pensamento spinozista e apologia da for<;a produtiva. Urn pensamento negativo cheio de subsrancia?

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NOTAS

1 TTP, Prefacio (G., III, pp. 5-12; P., pp. 606-616). 0 carater fortemente polemi­co deste escrito pode fazer crer que seu autor fosse L. Meyer; contra tal hipotese, sancio­nando uma opiniao agora generalizada, d. as notas de E. GIANCOTII BOSCHERINI,

pp. 10-12. 2 Tl P, Prefacio (G., Ill, p. 7; P., p. 609). 3 TIP, Prefacio (G., Ill, p. 5; P., p. 606). 4 TIP, Prefacio (G., Ill, p. 5-6; P., pp. 607-608). 5 TIP, Prefacio (G., Ill, p. 11; P., pp. 614-615). 6 Cf., alem das obras ja mencionadas de Van def Linde, Verniere e Kolakowski,

a de E. ALTKIRCH, Maledictus und Benedictus, Spinoza im Vrteil des Volkes und der Geistigen bis auf C. Brunner, Leipzig, 1924. De uma maneira gerai, para as rea~6es de

Spinoza, v. as biografias . 7 "Judeu de Voorburg", era assim que os Huygens 0 designavam, em sua corres-

ponJencia familiar. 8 Cf. sobretudo as Cartas XXX e XLIV (G., IV, p. 166 e 227-229; P., pp. 1175-

1176 e 1222-1223). 9 Carta L (a Jelles) (G., IV, pp. 238-241; P., pp. 1230-1231). 10 No Preambulo de sua edi'fao do TRE. 11 Carta XL!! (G., IV, pp. 207-218; P., pp. 1205-1217). 12 Carta XLll (G., IV, p. 207; P., p. 1205; 1206. 13 Carta XLll (G., IV, p. 213; P., p. 1212). 14 Carta XUI (G., IV, p. 215; P., p. 1214). 15 Carta XLll (G., IV, p. 218; P., p. 1217). 16 Ver a segunda parte deste capitulo dedicada justamente a urn aprofundamento

da defini~ao da ideia de apropria<;ao em Spinoza. E born, no entanto, lembrar desde agora que foi Macpherson, em seu livro varias vezes mencionado, que introduziu essa catego­

ria no debate sobre a filosofia politica do seculo XVII. 17 Carta XUll a Ostens (G., IV, pp. 219-226; P., pp. 1217-1222). 18 Carta XUll (G., IV, p. 221; P., pp. 1218-1219). 19 Carta XLIV a Jelles (G., IV, pp. 228-229; P., p. 1223). Esclare<ra-se que 0 "dito

escritor" nao e Velthuysen, mas urn maquiavelista desconhecido evocado urn pouco antes

nesta carta. 20 Conta-se que quando foi anunciada a morte dos De Witt, Spinoza redigiu urn

texto de protesto come~ando precisamente por essas palavras; seu hospedeiro 0 impe­diu de afixar 0 folheto no local do delito. Tem-se muitas vezes considerado 0 assassina­to dos De Witt como urn momento fundamental para a elabora<;ao da teoria politica de Spinoza. 0 que talvez seja verdade, veremos ao analisar 0 Tratado politico. Parece to­davia que nao se deva superestimar, no conjunto, a influencia dos De Witt e seu circulo sobre a metaHsica de Spinoza. No livro de Mugnier-Pollet se encontrara uma tentativa

de marcar a importancia da crise de 1672. 21 Sobre a viagem de Spinoza ao quartel-general do exercito frances em Haarlem,

ver as biografias, e particularmente os documentos produzidos por Van der Linde. 21 Correspondencia (G., IV, p. 158; 164, 165, 166, 168 e 175; P., p. 1168, 1173,

1174, 1175, 1177-1178 e 1182). Ai se encontra uma quantidade de informa<;oes e refle­xoes sobre 0 tema, em particular sobre a segunda guerra de navega<;ao anglo-holandesa.

23 Urn unico exemplo: a exalta<;ao, pelo fim do TIP, da cidade de Amsterda (G., Ill, pp. 245-246; P., p. 806), ao mesmo tempo que a polemica, em nome da liberdade

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religiosa, contra as manifesta<;oes de fanatismo de entao (pensar na polemica levantada pelos gomaristas).

24 Carta L (G., IV, pp. 238-239; P., p. 1239). 25 Carta L (G., IV. pp. 239-240; P., p. 1230). 26 Carta L (G., IV, p. 240; P., p. 1230; 1231). 27 Cf. supra, cap. V, nota 66. 28 Tal e, com perd.io da palavra, 0 slogan da interpreta<;ao de G. Deleuze sobre

esse ponto, inteiramente reromada e confirmada por P. Macherey. 29 Carta III (G., IV, p. 244; P., p. 1233). Ela faz parte do grupo de carta§ troca­

das em 1674 por Spinoza e H. Saxe!. Cartas LI-LVI, em ramo da questao do animismo natural, par iniciativa de Soxe!. Spinoza esta extremamente polemico, e essa correspon­dencia tern urn fim abrupto.

30 Carta LVI (G., VI, p. 261; 212; P., p. 1247; 1248). THEUN DE VRIES, Barnch Spinoza, Hamburgo, 1970, lembra que desde a escola de Van der Enden 0 pensamento de Lucrecia e de Gassendi, e 0 epicurismo de urn modo geral, eram familiares a Spino­za. Cf. tambem M. RUBEL, Marx a la rencontre de Spinoza, cit.

31 103. me debrucei sobre essa tese de P. Macherey, para aprova-Ia; mas voltarei a este ponto mais longamente depois.

32 Segundo De1euze, 0 carater materialista da funda<;ao do mundo em Spinoza apareceria sobretudo nos Esc6lios da Etica. Posi<;ao correta, mas redutora. DELEUZE expoe sua tese principalmente no Apendice de seu livr~.

33 Tal e a contribui<;ao fundamental de M. Gueroult aos estudos spinozistas, prin­cipalmente no segundo tomo de seu livro tao abundantemente utilizado aqui.

34 Remero, para essas defini<;oes, ao ultimo livro de Feyerabend. 35 Para uma bibliografia sobre a difusao do estoicismo no seculo XVI, e sua con­

tinua<;ao e fortuna no seculo XVII, e para uma discussao sobre 0 sentido de toda essa tradi<;ao cultural, permito-me remeter a meu Descartes politico.

36 Tal e, como vimos, a conclusao geral da analise spinozista da re1a<;ao vonta-de-inte1igencia no livro II da Etica.

37 Sobre essa questao, d. principalmente S. Zac, L'idee de vie ... , cit., p. 104 sq. J8 Etica 1Il, Prefacio (G., n, pp. 137-138; P., p. 412). 39 Tal e a tese longamente exposra por Macpherson, que liga a tematica das pai­

xoes e da apropria<;ao, e a forma unica que e1a toma em Hobbes, aos novos desenvolvi­mentos dessa mesma categoria produzidos pela luta de classes na Inglaterra no seculo XVII. (Na Introdu<;ao a tradu<;ao italiana de seu livro, retomada no Apendice da edi­<;ao italiana da presente obra, fa<;o algumas observa<;oes a esse respeito, que julgo per­tinentes: perrnito-me remeter a elas.) Ao contrario, para uma apologia do capitalismo, d. A. HIRSCHMAN, The passions and the interests, Princeton, New Jersey, 1977.

40 Etica III, Prefacio (G., II, p. 137; P., pp. 412-412). 41. Sobre a tematica do mer­cado, existe entao acordo entre praticamente todos os comentadores, da esquerda como da direita. As coisas se complicam urn pouco quando se passa da tematica do mercado a da organiza<;ao capitalista como tal, introduzindo assim categorias mais determinadas. Aqui tambem nao falta materia. 0 livro de Borkenau e particularmente exemplar da critica historica dos anos 1920-1930 e das concep<;6es materialistas que abundavam na epoca; sobre essa obra, e sobre as polemicas levantadas, por outro lado, por tal abordagem metodol6gica, ver meu artigo in BORKENAU, GROSSMANN, NEGRI, Una polemica degli anni Trenta, Roma, 1979, retomado no Apendice da edi<;ao italiana da presente obra.

42 Reportar-se a Malebranche e a Geulinox, assim como a literatura sobre a ra­zao de Estado. Isto para as referencias diretas. Mas seria necessario examinar tam bern,

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paralelamente,o desenvolvimento das escolas de mediac;ao dentro da teoria do jusnatu­rahsmo do seculo XVII, ampliando assim para a metafisica a documentar;ao fornecida sobre esse ponto por O. VON GIERKE em seuJohannes Althusius, cit. (de ordem ex­clusivamente filos6fico-juridica, relativa somente ao direito publico), cobrindo os seculos XVII e XVIII. Evidente que leio nessas teorias uma atitude anti-humanista e as vezes francamente reaciomlria; a abordagem de Gierke e muito comedida. E no entanto ...

43 Reportar-se essencialmente a Kolakowski, op., cit., e em particular as pp. 227-236, nas quais ele coloca 0 problema fundamental da experiencia religiosa do seculo. Cf. tambem a Introdur;ao desse livro, onde 0 carater fenomeno16gico e estrutural da abordagem do problema e particularmente nitido. S. ZAC, L'idee de vie ... , cit., mas mais particularmente no capitulo VII, aIem do fato de que amplia 0 discurso a experiencia religiosa judaica, insiste longamente no carater vivo da filosofia spinozista da religiao.

44 Erica III, Prefacio (G., n, p. 138; P., p. 412). 45 Erica IV, Defini,ao VIII (G., n, p. 210; P., p. 491). 46 Cf. em particular S. ZAC, op. cit., p. 130-133, nas quais insiste - como alias

fara mais adiante - na extinr;ao do paralelismo, no realismo da imaginar;ao, e sobretu­do na nao-ambigiiidade da conce~ao spinozista da consciencia. Este ultimo ponto e dirigido principalmente contra F. ALQUIE, contra as teses sustentadas em seu Servitude et liberte chez Spinoza, Paris, Cours de Sorbonne, 1958. Mas foi principalmente A. MA THERON, em seu volume sobre Le Christ et el salut des ignorants chez Spinoza, Paris, 1971, que apontou essa materialidade das posir;oes metafisicas de Spinoza; ele a apontou sobretudo no TIP, a prop6sito do desenvolvimento da religiao popular pro­gramada pelo TIP. 0 discurso de Matheron incontestavelmente e cheio de falhas; ve­remos algumas delas. Mas por enquanto estamos nos preocupando essencialmente em percorrer essa capacidade constirutiva da imaginar;ao, que e criar;ao de historia sob a forma especifica assumida pela historia no seculo XVII: sob a forma da afirmac;ao his­torica da verdade e da salvac;ao. Num comentario conduzido com muito cuidado e in­teligencia, A. IGOIN, "De l'ellipse de la theorie politique de Spinoza chez Ie jeune Marx", in Cahiers Spinoza, I, pp. 213-228, retomando algumas das teses de Matheron, se per­gunta se a constituic;ao de uma via de salvac;ao eterna percorrida pela imaginac;ao da coletividade - da muLtitudo (desde 0 mundo dos pobres e dos ignorantes) - nao e 0

verdadeiro fim da reoria politica de Spinoza. Voltarei a esses problemas (ja percebidos por L. Strauss, ao menos em parte); 0 importante nao e tanto exibir a finalidade da imaginac;ao quanto seu processo, quanto sua potencia. Por fecundas que seiam, teses como as de Zac tambem caem dentro da objec;ao seguinte: 0 resultado da unificac;ao do modo finito no decorrer do processo da multitudo, no decorrer do processo da imagi­nac;ao, nao e dado no terreno da consciencia abstrata e espiritual, mas no da conscien­cia material e hist6rica. Esta func;ao materialista da imaginac;ao spinozista constitui 0

centro em torno do qual se resolve a crise da metafisica que havia tornado forma no fim do livro II da Etica. Donde a enorme imporrancia do TTP. Foi mais uma vez Mathe­ron que apontou essa dimensao do momento metafisico; d., em particular, p. 252 sq.

47 Etica III, Proposic;ao IX, Esc6lio (G., II, pp. 147-148; P., pp. 422-423). 48 Etica III, Definic;ao dos afetos, I (G., II, p. 190; P., p. 469). 49 Ibid. Explicatio. 50 Tanto G. Deleuze quanto S. Zac empregam essa expressao, se bern que inter­

pretando-a de maneira muito diferente. 51 Para uma interpretac;ao oposta, d. M. GUEROULT, op. cit., r.lI, pp. 547-551;

ele sustenta em primeiro lugar que a definilJao da essencia do homem em Spinoza, lon­ge de poder ser reduzida somente ao desejo, deve ser referida a ordem dos atributos dos

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quais, numa ordem decrescente, deriva a definic;ao concreta. E evidente que, na ordem perfeira do panteismo, a cupiditas s6 pode ser urn fen6meno subalterno e marginal. Prevenindo as objelJoes, Gueroult sustenta, em segundo lugar, que qualquer outra con­cepC;ao da cupiditas, e em particular a identificac;ao de sua capacidade constitutiva, pode acharar Spinoza sobre Schopenhauer.

52 Etica II, DefinilJao VII (G., II, p. 85; P., p. 355). S3 Para uma documentac;ao sobre 0 individualismo do pensamento politico no

seculo XVII, reportar-se mais uma vez ao livro de Macpherson. Do ponto de vista do spinozismo, devo lembrar aqui que emprego 0 termo "coletivo" para evidenciar a espe­cificidade da superac;ao spinozista do pensamento individualista do seculo XVIi - re­servando-me para chamar essa superac;ao pelo seu proprio nome, 0 de multitudo, as­sim que 0 conceito de multitudo tiver sido plenamente elaborado por Spinoza. Como noramos com freqiiencia, e proprio das obras de A. MATHERON (de Individu et com­munaute como do Christ ... ) insistir sobre a especificidade do coletivo e sobre a forma­c;ao do conceito de multitudo. Quando se fala do coletivo em Spinoza, nao se pode es­quecer, naturalmente, que ele se conjuga de urn lade a uma atitude possessiva, de outro a imaginar;ao: a reuniao desses tres elementos: coletivo, apropriac;ao e imaginac;ao, cons­titui a figura da reversao spinozista do individualismo possessivo. E na dimensao pos­sessiva e passional que ha identidade entre individualismo e coletivismo no seculo XVII; mas eles se opoem justamente por sua perspectiva de sintese, individual ou coletiva, e a oposic;ao e absolutamente radical. Desse ponto de vista, Spinoza representa a reversao de Hobbes, a ruptura (no amago da genese do Estado modemo e da ideologia burgue­sa) com toda a tradic;ao encarnada por ele. Isto posto, nao se deve deixar de insistir, mesmo assim, de urn ponto de vista genetico, no enraizamento da sua filosofia na di­mensao da imaginar;ao (da ordem passional) e da apropriac;ao, caracterfstica do pensa­mento do seculo XVII em seu conjunto.

54 Etica II, Proposic;ao III, Esco1io (G., II, p. 88; P., p. 358). 55 Em meu Descartes politico, assinalei varias vezes 0 recurso de Descartes a

metafora da realeza, sempre positivamente conotado. S6 Etica III, Proposic;ao II, Escolio (G., II, p.144; P., p. 418). 57 Encontra-se essa fundac;ao essencialmente in Etica II, Proposic;ao XLIX, Escolio

(G., II, pp. 131-136; P., pp.405-411). 58 Etica I, Apendice (G., II, pp. 77-83; P., pp. 346-354). 59 Erica I, Apendice (G., II, p. 83; P., pp. 353-354). 60 Sera suficiente referir aqui a bibliografia estabelecida por Alberto O. HIR­

SCHMAN, op. cit. Que me seja permitido remeter tambem a excelente obra de C. BE­NETTI, Smith. La teoria economica della societa mercantile, Milao, 1979.

61 A forc;a desse genero de interpretac;oes, de origem marxista e de reelaborac;ao (a ser enrendida no sentido de heresia) weberiana, torna-se hegem6nica sobretudo com a escola de Frankfurt: d. os estudos de Horkheimer sobre a filosofia modema.

62 Ver as considerac;oes sobre a hisroria da filosofia contidas na coletanea dirigida por Chatelet.

63 Cf. a bibliografia comentada contida em minha apresentac;ao da historia da genese do Estado modemo, in Rivista critica di storia della filosofia, 12-1967, pp. 182-220.

64 Johannes Agnoli lembrou recentemente, com razao, que a traduc;ao de "burger­liche Gesellschaft" nao e "sociedade civil", mas "sociedade burguesa".

65 Cf. supra, cap. IV, primeira parte. 66 Para urn quadro geral das ocorrencias dessa polemica e das relac;oes Hobbes­

Spinoza, para indicac;oes sobre as leituras de Spinoza de inspirac;ao hobbesiana, enfim,

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para uma documentac:;ao completa sobre a questao, d. E. GIANOTTI BOSCHERINI, Intioduc:;ao a ediC:;3o citada do TTP, p. XXVII-XXXIII.

67 Potencia contra poder: Spinoza contra Hobbes. L. STRAUSS, op. cit., pp. 229-241, e M. Corsi mostram bern as diferenc:;as consideraveis entre os pensamentos politicos de Hobbes e de Spinoza: mas 0 fazem em termos excessivamente abstratos, que nao convern a viralidade da definic:;ao spinozista da poHtica. Boa analise, sobre esre ponto, de S. ZAG, L'idee de vie, cit., pp. 236-240, mas ver rarnbem aquela, mais anriga, de M. FRANCES. "La liberte politique selon Spinoza", Revue philosophique, 1958, 148, p. 317-337.

68 G.W.F. HEGEL, Lefons sur l'histoire de fa philosophie, Frankfurt, 1971, P. 163. 69 Ibid., p. 160. Sobre 0 conjunto da questao, d. a minuciosa analise filol6gica

de P. MACHEREY, op. cit. 70 Sobre as rela~6es Spinoza-Leibniz, reportar-se, naruralmente, ao livro de G.

FRIEDMANN, Leibniz er Spinoza, Paris, nova edic:;ao, 1962. Ver tambem as multiplas alus6es disseminadas nos diversos estudos leibnizianos de Y. Belaval. Para uma analise urn pouco a margem, mas no entanto referindo-se a alguns dos temas que nos interes­sam aqui (se bern que excluindo misteriosamente Spinoza de sua reflexao), d. a obra ja citada de J. ELSTER, Leibniz et la formation de ['esprit capitaliste.

71 Depois de ter insistido talvez demais sobre as analogias entre Spinoza e Leibniz, G. DELEUZE, op. cit., p. 310, exclama - com razao, em minha opiniao (mas a custa de uma grave contradic:;ao): "Esta e a verdadeira oposic:;ao entre Spinoza e Leibniz: a teoria das express6es univocas de urn se op6e a teoria das express6es equivocas do outro."

72 Reportar-se a extra ordinaria documentac:;ao apresentada na obra ja citada de

O. von Gierke. 73 Carta XLV (G., IV, p. 231). (Esta palavra faz parte das formulas de cortesia

que fecham a carta, nao retomadas na edic:;ao da Pleiade - N. T. frances.) 74 Para uma documentac:;ao sobre este aspecto da cultura do Renascimento, re­

portar-se aos livros de Paolo Rossi e de F. Yates.

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Capitulo VII SEGUNDA FUNDA<;:AO

1. A ESPONTANEIDADE E 0 SUJEITO

"Considerarei as a~6es e os apetites humanos como se se tratasse de linhas, superfIcies e corpos."l A inten~ao declarada e redutora: 0 univer­so spinozista e bern mais fisko que geometrico, galileano que mecanicista2. Implica uma presen~a tao corp6rea dos elementos do quadro, urn conjun­to tao complexo de a~oes-rea~6es, que torna esse horizonte urn horizonte de guerra. T udo isso implantado numa estrutura de conjunto do ser que nao tern mais nada a ver com algum projeto que extra pole, por urn mini­mo que seja, 0 nfvel da modalidade, 0 terreno do mundo. "Os modos sao expressivos em sua essencia: eles exprimem a essencia de Deus, cada urn segundo 0 grau de potencia que constitui sua propria essencia. A indivi­dualiza~ao do finito em Spinoza nao vai do genero ou da especie ao indi­viduo, do geral para 0 particular; vai da qualidade infinita a quantidade correspondente, que se divide em partes irredutfveis, intrinsecas ou inten­sivas."3 A existencia em Spinoza e extensao, pluralidade de partes e so­bretudo mecanismo causal. A existencia do modo e pluralidade, e con­junto de partes, definida por uma certa rela~ao de movimento e repouso. Do Curto tratado ao livro III da Etica, passando pela Proposi<;iio XIII do livro II, a doutrina da existencia do modo e continua e coerente. "A teo­ria da existencia comporta em Spinoza tres elementos: a essen cia singu­lar, que e urn grau de potencia e de intensidade; a existencia particular, sempre composta por uma infinidade de partes extensivas; a forma indi­vidual, ou seja, a rela~ao caracterfstica ou expressiva, que corresponde eternamente a essencia do modo, mas tam bern sob a qual uma infinidade de partes se reportam temporariamente aquela essencia."4 Mas tudo isto deve ser visto por dentro: nem mesmo a filosofia pode transcender a mo­dalidade. 0 escopo do livro III da Etica e 0 de chegar, justamente, a sinte­se dinamica, constitutiva da espontaneidade do mundo da modalidade, vista no indefinido movimento de sua causalidade, ou da Mente, como impu­ta~ao interna, simultanea, da potencia infinita. "Urn afeto, chamado Pai­xiio da Alma, e uma ideia confusa mediante a qual a Mente afirma uma for~a de existir de seu Corpo, ou de uma parte deste, maior ou menor que aquela que afirmava antes, e, dada a qual, a propria Mente e determinada a pensar antes isto que aquilo"S; assim termina 0 livro III, pondo a ativi­dade subjetiva como elemento constitutivo do ser, resolvendo - atraves

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de reversao e de reduc;ao axiomatica - 0 paradoxa do mundo no qual a ffsica ficara blaqueada6

Como se determina esta total aderencia cia espontaneidade e da mente, da modalidade e da subjetividade? As premissas gerais metafisicas que conciuzem, com acelerac;ao cada vez maior, a filosofia a imergir no sec, ja as estudamos longamente. 0 livro III, De affectibus, apresenta-nos agora uma pro posta sistematica. Os ingredientes sao conhecidos, a dimensao e a cia fisica, 0 corte e de superffcie: qual a dinamica? Trata-se, nem rna is nem menDs, de percorrer a genealogia cia consciencia, como pec;a ativa da constituic;ao do mundo e como base da liberac;ao. Agora 0 mecanismo causal cleve se tornar rendenda e a tendencia se tornar projeto constitutivo - a ffsica passar para a fisiologia e esta para a psicologia (0 livro IV inte­gra e completa 0 processo). 0 procedimento demonstrativo e axiomatico: ou seja, para este como para a dialetica, e so a totalidade que explica -mas, diferentemente da dialetica, aqui 0 ser nao e idealmente determinavel nem manipulavel pelo metodo: 0 ser esra la, potente, indestrutivel, versa­til. A axiomatica mostra 0 ser como principio, a si mesma como abstra­\=ao determinada 7• Devemos entao nos colocar em situa\=ao, voltar a des­cer ate aquele grau do ser a partir do qual come\=amos a subir novamente.

Esse grau do ser e desde 0 inicio definido como aquele que, ao mes­rna tempo, detem a qualidade farmal da indefinida mabilidade8 e a dire­\=ao paradoxal desta - no sentido de que 0 movimento e dirigido peIo grau de sua maior au menor adequa\=ao ao ser: "I. Chamo causa adequada aquela cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente por meio dela. Chamo, ao contrario, causa inadequada, ou parcial, aquela cujo efeito nao pode ser entendido so por meio dela. II. Digo que somos ativos quando acontece em nos ou fora de nos alguma coisa da qual somos a causa ade­quada, isto e (pela defini\=ao anterior), quando de nossa natureza segue-se em nos ou fora de nos alguma coisa que so pode ser entendida clara e dis­tintamente por meio dela. Digo, ao contrario, que somos passivos quan­do em nos acontece alguma coisa, ou quando de nossa natureza segue-se alguma coisa, da qual somos apenas uma causa parcial,,9. Mas, dito isto, deva integra-Ia problematica e realmente:"III. Entenda par Afeta, as afec­\=oes do Corpo, pelas quais a potencia de agir do proprio Corpo fica acres­cida au diminufda, favorecida au impedida, e ao mesmo tempo as ideias dessas afec\=oes".10 Estamos novamente num ponto que conhecemos: eo paradoxo do mundo, elevado ao nivel da consciencia, e de novo a hori­zonte da guerra. E 0 paradoxo volta a ser insistido aqui: "Certas coisas sao de natureza contraria, isto e, nao podem estar no mesmo sujeito, en­quanta uma pode destruir a outra".l1 Mas, entao, 0 que pode significar adequa\=ao? 0 que sao graus de adequa\=ao? Como se pode romper, dan­do dire,aa aa mavimenta, a indefinida mabilidade e a passibilidade de

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contraste do ser modal? A tensao e extrema, mas ainda formal, excessiva­mente formal, colocada a margem de urn niveI absoluto de contraste que corre 0 risco de se tornar destrutivo.

De novo, nao e uma Aufhebung dialetica, mas urn aprofundamento axiomatico dos termos do discurso que nos permite reajustar - iniciar -a analise constitutiva. "Cada coisa, tanto quanto esta em si, se esfor\=a para perseverar em seu ser."12 "0 esfor\=o (conatus) com 0 qual cada coisa se esfor\=a para perseverar em seu ser, nao e outro serrao a essencia atual da propria coisa. "13 "0 esfor\=o com a qual cada coisa se esfon;a para perse­verar em seu ser, nolo implica nenhum tempo finito, mas urn tempo inde­finido."14 "A mente, seja enquanto tern ideias claras e distintas, seja en­quanta tern ideias confusas, esfor\=a-se para perseverar em seu ser por uma dura\=ao indefinida, e tern consciencia desse seu esfor\=0.,,15 Estas quatro Proposic;oes sao fundamentais. 0 "conatus" e for\=a do ser, essencia atual da coisa, dura\=ao indefinida e consciencia de tudo isso. 0 "conatus" e vontade, quando se refere a mente, e apetite quando se refere a mente e ao corpo. 0 desejo e 0 apetite com a consciencia de si mesmo. 0 "conatus" tende a se realizar na adequa\=ao16• A modalidade se articula, atraves da teoria do "conatus", propondo-se como potencia que e capaz de ser tocada pela passividade na medida em que e ativa, e nisto se apresenta como con­junto de afec\=oes inscritas na potencia. 0 mundo do modo finito se torn a subsumivel na teo ria das paixoes. E se apresenta como urn horizonte de oscila\=oes, de varia\=oes existenciais, como continua reIac;ao e propor\=ao entre afec\=oes ativas e passivas, como elasticidade. Tudo isto e regido pelo "conatus", elemento essencial, motor permanentemente ativo, causal ida­de puramente imanente que tral1scorre para alem do existente. Nao essencia finalista, em todo caso: mas ele proprio e ato, dado, emergencia conscien~ te do existente nao finalizado l7.

Estamos finalmente dentro da dinamica constitutiva do ser. Do ser em seu conjunto revelado pela consciencia e 0 mundo humanos. A simul~ taneidade nao e so dada, mas mostrada. "A ideia de tudo 0 que aumenta ou diminui favorece ou reduz a potencia de agir de nosso Corpo, aumen~ ta ou diminui, favorece ou reduz a potencia de pensar de nossa Mente." 18 o paradoxo do mundo, que as primeiras Proposic;oes do livro III haviam tornado a propor no nivel da consciencia, esta definitivamente superado. Ou antes, revertido: porque, anteriormente, 0 paradoxo conduzia a uma oposiC;ao estatica de elementos residua is, potenciais, e agora 0 paradoxo tensiona 0 contraste ate colocar am ate a "via ascendente", poe em movi­menta a tensao construtiva. 0 tema da perfeic;ao nao e urn atributo do ser senao na medida em que e 0 trajeto do corpo e da mente. Atraves das paixoes singulares a mente passa a graus maiores de perfei\=ao19. "A Mente, o quanto pode, se esfor\=a para imaginar aquila que aumenta ou favorece

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a pote-ncia de agir do Corpo. ,,20 Mas e preciso dize-Io em latim: Mens, quantum potest, ea imaginari conatur, quae Corporis agendi potentiam augent, vel juvant. 0 latim na verdade mostra melhor a conexao que se determinou aqui: "potentia - conatus - mens". E urn todo do qual a imagina<;ao e a paixao sao a passagem perfectlvel. Vma progressao da "potentia", impelida pelo "conatus", apreciada e fixada pela "mens", se poe entao em moviment021 • E e dentro dessas rela<;oes, sernpre oscilantes, mas enraizadas no real, m6veis, mas de cada vez constitutivamente diri­gidas, que a perfei<;ao vern se constituindo como tensao interna a supera­,ao que 0 "eanatus" opera sabre 0 existente. Os grandes pares "alegria­tristeza", "arnor-6dio" fazem aqui sua apari<;ao como sinais, chaves de leitura do processo constitutivo do mundo dos afetos: por ora sao tais, ou seja, elementos construtivos, formais, de urn esquema de proje<;ao onto-16gica. "Por Alegria, entao, entenderei a paixiio pela qual a Mente passa a uma perfeir;.iio maior. Por Tristeza, ao contnirio, a paixiio pela qual ela passa a urna perfeir;.iio menor. ,,22 "0 Arnor nao e outra coisa senao Ale­gria acompanhada pela ideia de uma causa externa, e 0 6dio nao e outra coisa senao Tristeza acompanhada pela ideia de uma causa externa. ,,23

A rela,ao entre espontaneidade e subjetividade se fecha assim numa sintese real, pela primeira vez no desenvolvimento do pensamento spinozista _ verdadeiro momento central da Etica, ponto fundamental da segunda funda<;ao. E naturalmente 0 processo 'tern a dimensao ontol6gica fixada no desenvolvimento anterior: uma dimensao, portanto, coletiva, geral, exuberante - mas isto veremos rna is tarde24• Destaque-se, ao contrario, outra importante consequencia: a imediatez ontol6gica - que ficou tao complexa neste grau de constitui<;ao - torna-se capaz de normatividade25

Porque, com efeito, 0 "conatus", - isto e, a imediatez existencial- ex­prime a tensao da essencia, em termos tendenciais. Essa supera<;ao e norma­tivamente qualificada, a norma se da como efeito de uma a<;ao tendencial que retoma em si sistematicamente a generalidade dos impulsos materiais que a movem. A complexidade de composi<;ao, de potencia do "conatus" torna possivel a produ<;ao da norma. Assistimos a dois processos: urn que acumula os elementos de perfectibilidade do "conatus", outro que os ex­prime como perfei~ao. A existencia coloca a essencia, dina mica, constitu­tivamente, portanto a presen~a coloca a tendencia: a filosofia, desequili­brada, lan,a-se para 0 porvir. Aquilo que a fisica hobbesiana e de modo geral 0 pensamento mecanicista haviam proposto em parte, e aquela ten­dencia que a poHtica hobbesiana e de modo geral 0 pensamento do abso­lutismo haviam certamente negado no momento da refunda<;ao transcen­dente da norma - e isto constituia 0 maior problema do seculo: bern, este problema e desmistificado e eliminado pela reivindica,iio spinozista do fato e do valor, simultaneamente colocados de frente na complexidade da com-

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posi"iio. A passagem da fisica do modo a fisica das paix6es modela 0 meca­nicismo dentro da continuidade vital do projeto revolucionario. Mecani­cismo-crise-absolutismo: a sequencia e revertida por Spinoza - a crise esta compreendida no projeto da liberdade. 0 horizonte da guerra se reverte e se constitui em horizonte de libera<;ao.

Assim colocado 0 esquema geral do projeto, Spinoza passa a tratar especificamente da genealogia da consciencia, da passagem do "conatus" ao sujeito, em termos analiticos. Todas as aproxima<;6es que vimos aos poucos virem se formando no desenvolvimento do pensamento spinozista, aqui estiio explicitadas e sinteticamente ordenadas. 0 livro III da Etica, daqui para a frente, pode ser subdividido do seguinte modo: a) Proposi­,6es XVI-XXVIII, analitica dos afetos na perspectiva do imaginario: b) Proposi,6es XXIX-XLII, analitica dos aferos na perspectiva da soeialidade - e da socializa,iio: e) Proposi,6es XLIII-LIII, constitui"ao dos aferos na perspectiva da nega"iio (do enfrentamenro e da destrui,ao): d) Proposi,6es LIII-LIX: constitui,iio dos aferos na perspectiva da libera,ao. 0 livro III se conclui pela lista de 48 defini<;oes dos afetos que servem para recapitu­lar, exteriormente, a complexidade da figura constitutiva exposta.

Entretanto, antes de entrar no merito da analitica constitutiva e das Defini<;oes, vale a pena acrescentar uma observa<;ao sobre 0 procedimen­to spinozista. Isto e, quero observar que a classifica<;ao que acaba de ser definida nao pode em caso algum ser lida deixando-se sugestionar pelo cur­so posterior da hist6ria da filosofia. Em Kant, com efeito, 0 esquema spino­zista e retomado, ao organizar a analitica e a dialetica da fun<;ao transcen­dental, e a relativa falencia da proposta kantiana e revisitada e 0 projeto ontologicamente refundado pelo idealismo classico, atraves mesmo do apelo a Spinoza26• Mas este procedimento e indevido: Spinoza na verdade assu­me 0 projeto constitutivo como projeto estrutural, ontologicamente eficaz: em nenhum caso a dialetica para ele funciona qual (kantiana) ciencia das aparencias ou (hegeliana) ciencia da oposi<;ao; em Spinoza a reia<;ao entre continuidade e descontinuidade fenomenologicas do ser se atem a efetivi­dade axiomarica dos princfpios e em nenhuma caso acede ao terreno da manipula<;ao transcendental dos momentos dialeticos. Isto deve ser preli­minarmente declarado e observado com aten~ao, porque 0 remoinho fei­to pelo "spinozismo" nos confrontos do pensamento de Spinoza foi tao forte e eficaz que impediu, ate agora, uma correta reapropria<;ao - com o texto - do procedimento constitutivo de sua filosofia. Assim preveni­dos, voltemos ao processo de constitui<;ao, atentos entao para nao dissi­par sua intensidade numa analitica ou diaIetica idealistas: e, ao contrario, uma fenomenologia da pratica coletiva que esta agindo aqui.

"56 pelo fato de imaginar que uma coisa tern alguma semelhan<;a com urn objeto que costume afetar a Mente com Alegria ou Tristeza, embora

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aqililo em que a caisa e semelhante ao objeto nao seja a causa eficiente desses afetos, nos todavia a amaremos ou a odiaremos. "27 A imagina\ao, portan­to, prolonga no tempo e no espac;o (mas aqui sobretudo no tempo, pais 56 da Proposi,ao XXIX em diante a dimensao espacial se torna fundamental no curso cia analise da socializa~ao) os afetos fundamentais, come<;a a coo­cretizar 0 esquema constitutivo. 0 reciclo do imaginario ressalta em sua imediatez constitutiva. A Proposit;ao XV ("Qualquer caisa pade ser aciden­talmente causa de Alegria, Tristeza ou Desejo,,28) nos havia deixado em uma defini<;ao sincronica cia estrutura: a Proposi<;ao XVI estira a estrutura diacro­nica da imagina<;ao e evidencia Sua fun~ao constitutiva - metafisica, ou melhor, metaindividual, ontologicamente densa: "sem nenhuma causa co­nhecida por nos" 0 imaginario se estira, mostrando uma autonomia pro­dutiva que, dinamizando tao forte e interiormente 0 ser, agora pede espe­cificar;ao. Nao importa que, do ponto de vista do conhecimento individual, a imaginar;ao chegue a resultados parciais e confusos: 0 que importa e essa sua tensao - coletiva - para alem do existente, essa sua ontol6gica fun­/faO constitutiva. Tanto que 0 elemento gnoseol6gico - a confusao, a par­cialidade, a incerteza, a duvida - e dobrado e transfigurado em funr;ao constitutiva, ele tambem, e de maneira fundamental. Urn "estado da Men­te que nasce de dois afetos contrarios se chama flutua/fao de animo, a qual por isso e, em rela/fao ao afeto, aquilo que a duvida e em relar;ao a imagi­nar;ao; e a flutua/fao de animo e a duvida nao diferem entre si se nao entre o mais e 0 menos. ,,29 A flutua/fao do animo representa 0 primeiro elemen­to do ritmo constitutivo: e uma potencia incerta, mas e potencia real, uma ampliar;ao significativa e eficaz do dinamismo previsto pela fisica spinozista (hi aqui remiss6es constantes it Proposi,ao XIII do livro II). A multiplicidade e dinamismo e a flutua,ao (mesmo na forma da duvida) perde toda cono­ta/fao residual exterior, gnoseol6gica, met6dica, para se tornar elemento substancial, chave constitutiva do mundo. Se e metodo, e 0 metodo do ser. E eis em a/fao, de fato, apenas para dar alguns exemplos, a flutuar;ao - desta vez na figura da inconstancia: "Pelo que ja dissemos, entendemos 0 que sao a Esperan/fa, 0 Medo, a Seguranr;a, 0 Desespero, 0 Contentamento, 0 Re­morso. A Esperanr;a, na verdade, nao e outra coisa senao uma Alegria in­constante, nascida da imagem de uma coisa futura ou passada, de cujo exito duvidamos. 0 Medo, ao contrario, e uma Tristeza inconstante, tamhem nas­cida da imagem de uma coisa duhia. Agora, se destes afetos se retira a duvida, a Esperan/fa se tarna Seguran/fa e 0 Medo, Desespero, ista e, Alegria, ou Tristeza, nascida da imagem de uma coisa que anteriormente tememos ou esperamos. 0 Contentamento, depois, e uma Alegria nascida da imagem de uma coisa passada de cujo exito havlamos duvidado. 0 Remorso, en­fim, e uma tristeza oposta ao contentamento"30. Ou ainda a flutuar;ao como rela/fao entre medida e desmedida: "Por ai se ve facilmente como acontece

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que 0 homem fa/fa de si e da coisa amada mais caso do que e justo, e, ao contrario, menos do que 0 justo da coisa que odeia; e eSSa imaginar;ao, quan­do se refere ao proprio homem que faz de si rna is caso do que e justo, se chama Orgulho, e e uma especie de Delirio, pois 0 homem sonha com os olhos ahertos que pode todas as coisas que s6 realiza em imaginar;ao, e que, portanto, considera como reais e com as quais exulta enquanto que nao pode imaginar aquilo que exclui a existencia delas e limita sua pr6pria potencia de agir".31 Urn plano do ser, em sua complexidade critica, e identificado, posto em movimento, dirigido, no processo constitutivo. A extrema riqueza da analise fenomenologica produzida e efetivamente uma escava,ao constru­tiva do ser: a analitica revela aquilo que 0 ser constitui, participa do movimen­to da colocar;ao de uma comp lexidade cada vez maior - articular;ao flutuan­te, mas cada vez mais complexa da composi/fao dos individuos reais32.

E eis que se abre uma nova dimensao da pesquisa, 0 terreno da socia­liza/fao dos afetos. "Esfor/far-nos-emos entao para fazer tudo aquilo que imaginamos que seja visto com Alegria pelos homens (N.B.: entenda-se aqui e em seguida aqueles homens em relar;ao aos quais nunca experimentamos nenhuma especie de afeto), e ao contrario, evitaremos fazer aquilo que irnaginamos causar aversao aos homens."33 0 "conatus" se estende para a dimirnica interindividual, intra-humana34. A passagem, a primeira vis­ta, parece bastante fraca: a exemplificar;ao do processo de socializar;ao e dada, no Escolio da Proposi,ao referida, pela analise das afec,6es de Ambi­r;ao e de Humanidade - afetos que se colocarn ern urn ambito etico fati­gada e arcaicamente motivado, quaisquer que sejam as elegantes analises que a esse respeito possam ser feitas35. Entretanto, para alem da fraqueza da exemplificar;ao, a nos interessa destacar 0 fato de que e outro sucessi­vo plano do ser que e atingido aqui. Se a teoria da imagina/fao se moveu deslocando sobre 0 terreno da consciencia a ffsica dos corpos elementa­res, aqui 0 posterior deslocamento se move ao nivel dos individuos for­mados. Comer;a entao a se tornar realmente claro esse mecanismo de ra­cionalizar;ao que e adequa/fao da razao, ao percorrer de grau em grau, cada vez mais complexo, a composir;ao ontologica. Mas, maior grau de com­posi/fao/complexidade ontologica significa tambem maior dinamismo e maior conflitualidade: 0 vinculo composir;ao-complexidade-conflitualidade­dinamismo e urn vinculo continuo de sucessivos deslocamentos (nao diale­ticos nem lineares no entanto) descontinuos. Vejamos com efeito amor e 6dio mudarem de lugar dinamicamente neste primeiro nivel de socializa­r;ao: os afetos fundamentais quando se voltam para os outros constituem novos afetos, pelo simples fato de que aos Outros se voltaram, que outrem os tenha posto em movimento; amor e odio, acompanhados por uma causa externa, se modificam36. E ainda: podem, na rela~ao com a causa exter­na, ate se revirarem em sua tensao inicial e se tornarem momentos con-

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tradit6rios37 - de qualquer modo, no entanto, expansivos. Entao, na mesma medida em que se desenvolve 0 arnor como instancia de socialidade, desenvolvem-se a conflitualidade e a luta que nascem do proprio amor: mas e urn novo terrena este no qual estamo5 agindo agora, urn novo terrena, expansivo, dinamico. A versatilidade do sec metafisico se fez exuberancia do sec erieD. De modo que flaD 56 do arnor nasce conflitualidade, mas por isso ele desenvolve a constitui<;ao do ser, em quantidade e qualidade, e quan­ta mais forte e 0 afeto tanto mais compreende variedades diversas de su­jeitos. "0 Desejo, que nasce cia Tristeza Oll cia Alegria, do 6dio Oll do Arnor, e tanto maior quanta maior e 0 afeto. ,,38 Estamos portanto dianre flaD 56

de urn mecanismo genetico da conflitualidade, mas de urn mecanismo ex­pansivo dela. A dinamica social do conflito de amor se expande em ter­mos cada vez mais complexos e moveis. A natureza etica do processo e entao assim definida: "Por bern entendo aqui todo genero de Alegria, e, alem disso, tudo aquilo que conduz a ela, e principalmente aquilo que satisfaz urn desejo, qualquer que seja este. Por mal, entao, entendo todo genero de Tristeza, e principalmente aquilo que frustra urn desejo. Acima, efetiva­mente, mostramos que desejamos uma coisa nao porque a julgamos boa, mas, ao contra.rio, chamamos boa a coisa que desejamos; e, consequente­mente, chamamos rna a coisa pela qual temos aversao; assim cada urn jul­ga ou estima, segundo seu afeto, que coisa e boa e que coisa e rna, que coisa e melhor equal e pior, e enfim que coisa e otima equal e pessima. ,,39

Confundir esta determina~ao ontologica com a moral do utilitarismo e, no minimo, miope: aqui, com efeito, 0 dinamismo e a articula~ao da indi­vidualidade estabeleceram urn mecanismo constitutivo irreversivel. E urn horizonte coletivo e materialista, este: nao se volta a individualidade nem como a urn principio nem como a urn valor, volta-se a ela simplesmente como a urn elemento da estrutura do ser que se desenrola continuamente em dire~ao e atraves da socialidade.

Deslocamento nao significa continuidade, senao justamente como con­tinuidade descontinua, serie de descontinuidades. Vma vez que a descon­tinuidade se comprovou na constitui~ao do individuo e na primeira se~ao da comunidade interindividual, a analise volta a levar em considera~ao 0

processo inteiro. 0 vinculo das condi~oes de sintese de necessidade e de liberdade, ate aqui constatado, vai rna is alem, procura uma chave expansi­va mais adiante. "0 6dio e aumentado por urn 6dio reciproco, e pode, em compensa~ao, ser destruido pelo Amor. "40 As bases conflituais da dinami­ca ate aqui analisada sao sobredeterminadas por urn grau quantitativo ul­terior. Isto significa que a complexa dinamica dos afetos nao desconhece, a medida que vai atingindo graus superiores do ser, a for~a do antagonis­mo e da destrui~ao reciproca, ao contrario, assume-a como central e a exalta. Expansividade tam bern e destrui~ao: mas isto num crescimento e numa su-

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perabundancia do processo vital, numa continua recoloca~ao em graus mais elevados do ser. 0 dinamismo e deslocamento - e, por isso, reversao re­pentina, recoloca~ao sistematica dos afetos, e de sua determinidade onto­logica, atingindo niveis de complexidade ontologica cada vez mais altos. Essas paginas sao shakespearianas! A tragedia do erico e triunfo do erico! Mais urn lampejo daquele caniter selvagem da anomalia spinozista! Mas 0 des­locamento continuo do descontinuo e de todo modo tendencial: e 0 e tanto quanta deve se-lo urn processo constitutivo, marcado pela for~a do'''cona­tus", pela vivacidade da acumula~ao dos estimulos e da mecanica resolutiva das flutuac;oes. Nem isso configura - sobretudo neste momenta, em que a emergencia dos momentos antagonistas esta evidenciada desse modo - ne­nhuma tensao teleologica: a tendencia e ate do "conatus", desenvolvido em serie, construido quantitativamente - resoluc;ao positiva de conflitualidade. Em nenhum caso, entretanto, essa tendencialidade (que se determina por sobre sucessivos graus do ser, atravessando 0 antagonismo) se achata. Cada constrw;ao de urn grau do ser e uma constitui~ao e quanta mais 0 ser se articula e se afina, tanto mais carrega a responsabilidade inteira do proces­so constitutivo, dos antagonismos resolvidos, da liberdade conquistada. Por isso "a Alegria que nasce de imaginarmos que a coisa que odiamos e des­truida, ou afetada por outro mal, nao nasce sem uma certa Tristeza da al­ma,,41. Por isso "0 Amor e 0 6dio em relaC;ao a uma coisa que imaginarnos livre devem ser urn e outro, por uma causa igual, maiores que em rela~ao a uma coisa necessaria"42. Consideremos estas duas Proposi~oes: elas mos­tram justamente 0 sinal pesadamente humano que 0 processo constitutivo impoe ao ser constituido. A fase antagonica do processo constitutivo mer­gulha cada vez mais profundamente no ser 0 indeterminado da vida, vai trans­formando a flutua~ao em duvida e oposi~ao etica, e sente estas como sofri­mento e pietas: a pratica constirutiva do ser e arriscada, porque e livre, ou melhor, porque so atraves do antagonismo atinge niveis cada vez mais al­tos de liberdade. "Os homens se alegram todas as vezes que se recordam de urn mal ja passado, e tern prazer em narrar os perigos de que foram libera­dos. Pois mal imaginam algum perigo, consideram-no como ainda futuro e sao determinados a terne-Io; mas essa determinaC;ao e de novo reduzida pela ideia da liberdade que eles uniram com a ideia desse perigo, quando foram liberados dele, 0 que os torna novamente seguros, e por isso se ale­gram novamente. "43 Eo processo continua: dilatando-se e encolhendo, per­correndo 0 plano do antagonismo enquanto se esforc;a em direc;ao ao pla­no da socialidade. Novamente - a coisa e sublinhada com clareza - a di­mensao espaciai, social no sentido proprio, volta a emergir: "Se alguem foi afetado por outro, de uma classe ou nac;ao diversa da sua, por uma Alegria ou uma Tristeza acornpanhada, como causa, pela ideia daquele outro sob o nome geral da classe ou da na~ao, ele amara ou odiara nao so aquele, mas

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tambem a todos aqueles cia mesma classe ou cia mesma nac;ao". 44 E isto significa justamente que 0 antagonismo multiplica, em radas as dimensoes devidas, a exuberante expansividade do ser constituinte. 0 ser que se cons­troi e, em Spinoza, uma rea Ii dade explosiva. Estamos agora longe das pri­meiras abordagens a tematica cia imaginac;ao, quando a incerteza do pfO­jeto se movia como entre sombras cia realidade! Aqui 0 ser critica, 0 ser conflitual, 0 ser antagonico se lOrna chave, ao mesma tempo, de maior per­feic;ao onto16gica e de maior liberdade erica. Sem que nunea essas poten­cias se achatem, ao conrrario, impondo urn crescimento seu, uma difusao sua que e medida da pOlencia do proprio antagonismo, da vida.

A ultima dire,ao da argumenta,ao do livro III e representada pelo grupo de Proposi<;5es que colocam diretamente a tematica da libera<;ao . Nao se disse que a este nfvel do processo constitutivo do ser tenha sido atingido 0 objeto da busca! No entanto a busca e livre, livre no sentido de que tira aqui as ultimas conseqiiencias da potencia do processo sobre 0 qual se constituiu - constituindo graus cada vez mais plenamente adequados de conexao ontologica. "Quando a Mente considera a si mesma e a sua potencia de agir, se alegra; e tanto mais quanto rna is distintamente imagi­na a si mesma e a sua potencia de agir. "45 "A Mente se esfon;a para so imaginar aquelas coisas que colocam sua potencia de agir. "46 0 esclareci­mento ontologico nao podia ser mais explicito, e na demonstra<;ao, com efeito, soa assim: "0 esforc;o da Mente, ou sua potencia, e a propria es­sencia da Mente. Mas a essencia da Mente (como e conhecido por si) so afirma aquilo que a Mente e e pode, mas nao aquilo que ela nao e e nao pode; e entao ela se esforc;a em imaginar so aquilo que afirma, ou seja, coloca sua potencia de agir.,,47 A seqiiencia "conatus", "potentia", "poten­tia mentis", "essentia mentis", "conatus sive essentia" e uma cadeia cons­titutiva que estende urn fio continuo atraves do ser. A reversao de qual­quer hipotese emanativa e total. E potentissimo 0 ritmo constitutivo. E certo que estamos ainda na fisica dos afetos e da multiplicidade, portanto no reino cia £lutuac;ao: '''Existem tantas especies de Alegria, de Tristeza, e de Dese­jo, e portanto de cada urn dos afetos deles compostos, como a flutuac;ao de animo, ou deles derivados, como 0 Amor, 0 6dio, a Esperanc;a, 0 Medo, etc., quantas sao as especies de objetos pelos quais somos afetados. ,,48 E na realidade 0 livro III nunca supera 0 horizonte da £lutua,ao e da multi­plicidade. E uma passagem. Mas, uma vez recordado isto, aprecia-se do mesmo modo esse incrivel dinamismo do ser. Urn dinamismo que se arti­cula com a versatilidade ontologica e a liberdade etica, de modo que nes­sa perspectiva constitui 0 carater singular e unico do processo: "Qualquer afeto de cada individuo difere tanto do afeto de outro quanto a essencia de urn difere da essen cia do outro. ,,49 De maneira que no fim 0 processo transborda. Essa soma de condic;6es - que pretendiam ser afetos passi-

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vos, fruto de reac;oes meca.nicas - transborda em direc;ao ao horizonte cia liberdade total, da atividade pura. "Alem de Alegria e do Desejo, que sao paix6es, ha outros afetos de Alegria e de Desejo que se referem a nos en­quanta somos ativos. ,,50 0 "conatus" fisico se transfigurou definitivamente na "cupiditas", como apetite dotado de consciencia: "Q.E.D."

Vale a pena agora pararmos urn momento nesta primeira conclusao. A cCcupiditas" se apresenta como paixao parcialmente, mas raciicalmente, racional. Talvez que essa sua condi<;ao de "parcialmente" raciona~ repre­sente urn elemento de negatividade, de insuficiencia ontologica e etica? A este ponto da busca esta excluida uma resposta positiva a interroga<;ao. A "cupiditas" e a propria essencia do homem.51 0 desenvolvimento analfti­co e constitutivo da passionalidade identificou, na base da espontaneida­de do ser, 0 ponto de consolida<;ao subjetiva. E urn relevo descontinuo, urn ser que se imp6e como singularidade, acima do £luxo das condi<;6es e dos movimentos constitutivos. Sua materialidade determinada esta absoluta­mente fixada. A racionalidacie dessa emergencia tambem esta absolutamen­te fixada em sua rela<;ao com a materialidade dos componentes e do mo­vimento constitutivo. A simultaneidade e identidade. Nao se da, portan­to, definic;ao da racionalidade que possa ser destacada cia sintese organica e material que ela determina com a corporeidade. Os mesmos termos, cor­poreidade e racionalidade, se tornariam vagos se apenas uma relac;ao os definisse. De modo que a tradicional tematica dualista perde for~a, e qua­se se extingue, neste ponto da pesquisa, nao so - como e evidente -do ponto de vista da analise ontologica, mas tam bern do ponto de vista termi­nologico. Manter Spinoza dentro dessa tradic;ao e de maneira geral, como faz a historia da filosofia moderna, manter fixos os parametros do racio­nalismo e do dualismo cartesiano como fundamentais para a leitura do seculo filosofico, sao agora rabiscos sem valor e uma mistificac;ao paten­te52. As "Defini~6es dos afetos" que encerram 0 livro III da Etica53 , levam essa identificac;ao materialista de corporeidade e racionalidade as ultimas conseqiiencias. 0 metodo da escava<;ao da realidade e central e exclusivo. A correspondencia e tao estreita que qualifica como abstra~ao toda dis­tin~ao. Urn horizonte materialista. Urn horizonte "pleno".

E isto, 0 "pleno", e certamente urn tema de grande importancia para a qualifica~ao desta camada do pensamento spinozista. A polemica spino­zista contra 0 vazio efetivamente tern imediato relevo metaffsico: cabe di­zer que nao e simplesmente uma polemica ffsica, mas que se refere a defi­nic;ao do proprio tecido materialista cia analise. 0 pleno spinozista e uma qualificac;iio metaffsica de materialismo. Ese vimos 0 pleno definir 0 cam­po das for~as que constituiam a fisica, se 0 tomamos como 0 tecido sobre o qual se estendia a imagina<;ao, agora ele se mostra a nos como caracteris­tica do ser: 0 processo constitutivo e urn processo de enchimento do pleno,

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de~constru'rao de uma plena gradualidade - nao de emana~ao, mas singu­lar em cada uma das suas emergencias - do ser. 0 horizonte da totalidade e pleno. Urn horizonte que tam bern e urn limite. Nito porque 0 horizonte seja uma borda para alem da qual, misticamente, se abre 0 abismo, mas porque 0 horizonte e 0 limite pleno sobre 0 qual a "cupiditas"-como s1n­tese humana do «conatus" fisico e da "potentia" da mente - prava sua trans­gressao do existente - construindo novo pleno, expondo metafisicamente a potencia do sec e fixando-a sabre a atualidade da tensao construtiva cia "cupiditas". Nao hci alternativa entre 0 pleno e 0 vazia, como naa ha em Spinoza alternancia entre ser e naD ser: nao hci nem mesma - por fim, e isto e determinante - uma simples concepc;ao do passivel, como media~ao do positivo e do negativo. Ha somente a plenitude construtiva do ser dian­te da inconceptibilidade metaffsica e etica do vazio, do nao ser e do pro­prio possive\. A perturba,ito e 0 espanto filos6fico que 0 pensamento hu­mano sofre no limite do ser se revertem em Spinoza no ser construtivo, em sua infinita potencia: nao tern necessidade dos afagos da ignora.ncia, ao con­trario, vivem do saber e da for~a construtiva da essencia humana. Estamos agora entao em condi~6es de entender 0 conceito de "cupiditas" e de ex­cluir em qualquer caso uma defini,ito negativa dele. Em que sentido se po­deria dar, a este respeito, negatividade? Nao se da possibilidade alguma: com efeito, diante da potencia constitutiva, so existe a tensao da essencia dina­mica, nao a vertigem de uma exterioridade, qualquer que seja. A «cupiditas" nao e uma rela~ao, nao e uma possibilidade, nao e urn implfcito: e uma potencia, sua tensao e explfcita, seu ser pleno, real, dado. 0 crescimento, em ato, da essencia humana e entao colocado como lei de contra~ao e ex­pansao do ser na tensao da espontaneidade a se definir como sujeito.

2. 0 INFINITO COMO ORGANIZAC;AO

Com a conclusao do livro III a etica spinozista aparece completamente a luz do dia. Em outros termos: os pressupostos metaffsicos agora estao dados - conseqiientemente 0 caminho etico, em sentido proprio, pode come~ar a ser percorrido. 0 horizonte da potencia e 0 tinico horizonte metaffsico possivel. Mas se isto e verdade, so a etica - como ciencia da libera,ito, da constitui,ito pratica do mundo - e adequada para explora-10. 0 infinito ativo se nos apresentou ate agora como potencia, agora 0

infinito ativo deve ser organizado pel a a\=ao etica. Mas ja que a a~ao etica e constituida pela mesma potencia que define 0 infinito, nao sera simples­mente "organizado" pela a~ao etica, como urn objeto por urn sujeito: porem se apresentara como organiza~ao estrutural do etico, do sujeito e do obje­to em sua adequa~ao - infinito, expressao da potencia infinita, organi-

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za\=ao da potencia: sao elementos intercambiaveis na grande perspectiva do agir humano. Na realidade, ate 0 inkio do livro IV, ja estivemos no terreno da organiza~ao do infinito, da analise que articulava a infinita potencia, fazendo, de seus elementos componentes, momentos de clarifi­ca\=ao da estrutura do ser. Os componentes agora estao inseridos na pers­pectiva da reconstru\=ao ontologica, tendo a a~ao do homem, em sua com­plexidade de mente e corpo, atingido plena eficacia constitutiva e cen­tralidade ontol6gica. 0 infinito e, a partir de agora, organiza,ito da I1bera­,ito humana: ele se enuncia como potencia na perspectiva da libera,ito do homem, na determina~ao da possibilidade de 0 homem agir eticamente.

Libera~ao, entao, nao liberdade - so mais tarde conseguiremos vol­tar a levar em considera~ao 0 conceito de liberdade, se ele ainda tiver sen­tido. Libera\=ao, porque 0 mundo se nos apresenta como horizonte construido pelo homem, mas e urn mundo de escravidao e imperfei~ao. Em Spinoza 0

termo libera~ao, aqui, e substituivel e intercambiavel com 0 termo perfei­crao. Na verdade, 0 que e a perfeicrao? Numa primeira instancia definitoria, por perfei~ao e imperfeir;ao so podemos entender aqueles "modos de pen­sar, ou seja, aquelas nor;6es que costumamos forjar quando comparamos entre si individuos da mesma especie ou genero". 54 E uma estipular;ao, con­vencional e relativa, do contetido destas categorias. Mas, numa segunda ins­tancia definitoria, isto e, quando engajamos a ar;ao na verificar;ao da no­crao com urn, sabendo bern que esta e uma verificacrao de adequa~ao, por­tanto de realidade - assim, entao, entenderemos como" bern" aquilo que sabemos com certeza ser urn meio de se aproximar cada vez mais do mode-10 que nos propomos da natureza humana, e como "mal" entenderemos 0 contrari055. Enfim, por perfei~ao, no terreno da adequacrao real, entende­remos "a essencia de qualquer coisa enquanto existe e opera de uma certa maneira "56, portanto entenderemos perfei~ao como liberacrao da essencia.

E importante, aqui, destacar a forma da argumentacrao que ve a pas­sagem de uma definicrao convencional para uma defini~ao real. Isso acon­tece porque, atraves do convencionalismo, reformula-se a critica de toda concepcrao, mesmo que finalista, do mundo etico: toda ideia de causa fi­nal deve ser desfeita. A remissao ao Apendice do livro I, feita aqui, relaciona a necessidade de agir com a necessidade de ser. Nao a causa final, mas a causa eficiente constitui entao 0 ser etico: 0 "conatus-appetitus-cupiditas" forma 0 tramite atraves do qual se irradia a tensao da essencia para a exis­tencia. A "cupiditas" e mecanismo de liberacrao. Se 0 horizonte metaffsi­co construido no livro I, e de qualquer maneira determinante da primeira fundar;ao do sistema spinozista, e novamente contactado aqui, certamen­te nao e para tirar a poeira da espedfica articulacrao categorial (os atribu­tos) da organiza\=ao do infinit057: pelo contnirio, aquela colocacrao catego­rial aqui e posta de lade e 0 metodo so configura uma tensao de escava-

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Com isto esta definido 0 projeto do livro IV. A analise spinozista abre o sistema no mundo da contingencia, do possivel, da pratica enquanto ciencia da contingencia e do possivel. E verdade que as Defini~6es do contingente e do possivel sofreram uma metamorfose essencial, em rela~ao a tradi~ao filosofica. "III. Chamo contingentes as coisas singulares, enquanto, consi­derando so sua essencia, nao encontramos nelas nada que coloque neces­sariamente sua existencia, ou a exclua necessariamente. "58 "IV. Chamo possivel as mesmas coisas singulares enquanto, considerando as causas pelas quais devem ser produzidas, nao sabemos se estas estao determinadas a produzi-las. ,,59 E que a revolucionaria concep~ao spinozista do ser chegou a englobar 0 negativo que constitui contingencia e possibilidade: engloba­o como elemento da organiza~ao do ser existente e sua borda, como grau subordinado do ser expansivo, portanto como espa~o a ser ocupado a par­tir da positividade, como alguma coisa a ser construida para integrar 0 infi­nito. A contingencia e 0 porvir, e 0 indefinido que a pratica humana, como "potentia", integra ao infinito positivo. "VIII. Por virtude e potencia en­tendo a mesma coisa: isto e, a virtude, enquanto se refere ao homem, e a propria essencia ou a natureza do homem, enquanto este tern 0 poder de fazer certas coisas que so se podem entender atraves das leis da sua nature­za. "60 A escravidao e 0 mal que a potencia humana reduz a contingencia, deslocando 0 ser sobre aquela determinidade da ordem do mundo que nos torna escravos - com isto a potencia do homem anula, com uma opera­~ao ontologica, a escravidao e poe em ate 0 processo real da libera~ao.

E importante destacar 0 fato de que 0 radicalismo ontologico do ponto de vista constitutivo, tal como aparece nestas paginas de Spinoza, tendo atingido a maturidade de uma solu~ao consolidada, representa na histo­ria do pensamento ocidental uma ruptura, uma mudan~a no desenvolvi­mento. Na historia da filosofia moderna, a afirma~ao de urn ponto de vis­ta ontol6gico e materialista constitui uma alternativa nao subestimavel. Ela escapa a ordem do desenvolvimento da ideologia burguesa e ao jogo das diversas possibilidades do desenvolvimento capitalista. Nao representa uma diversidade ideologica no ambito da perspectiva da revolu~ao capitalista, ja que esta, pelo menos a partir da crise dos anos 30 do seculo XVII, colo­cou definitivamente a media~ao no centro da defini~ao de categoria "bur­guesia": as alternativas para ela entao so sao possiveis dentro da consti­tui~ao da media~ao. Spinoza nega a rela~ao constitui~ao-media~ao e com isso a propria base do conceito de burguesia. A alternativa spinozista nao se refere a defini~ao de burguesia, mas a essencia da revolu~ao - 0 cara­ter radical da libera,ao do mundo.

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Esta (que vimos ate agora) e, por assim dizer, a introdu~ao do livro IV. Mas antes de entrar no merito do projeto constitutivo e de seus desen­volvimentos temos ainda que considerar alguns elementos. Com efeito, no inicio de cada parte da Etica, Spinoza passa urn certo tempo reorganizan­do os instrumentos de analise. Se fosse uma simples reorganiza~ao pode­damos deixar de lado a passagem. 0 fato e que, ao contrario, por tras dessa ""prolixidade metodica", operam-se modifica~oes nao despreziveis~Aqui, por exemplo, entre 0 Axioma do livro IV e a Proposi~ao XVIII, e inteira­mente retomado 0 processo sistematico que havia conduzido do "conatus" aO sujeito no livro III. A modifica,iio que intervem, porem, e importante - e um verdadeiro deslocamento de analise. Efetivamente, pelo fato de que a passagem do '"conatus JJ ao sujeito nao seja descrita como processo, mas seja dada como resultado, 0 potencial global da analise fica extrema­mente enriquecido. 0 que significa que a potencia constitutiva naa e sim~ plesmente reconstruida, mas exposta no terreno amplo e riquissimo que deve ocupar. 0 indefinido e subsumido sob a potencia positiva do infini­to. "'Nenhuma coisa singular e dada na Natureza, sem que seja dada ou­tra rna is potente e mais forte. Mas, se e dada uma coisa qualquer, e dada outra mais potente que pode destrui-la. "61 Juntamente com a Proposi~ao XIII do livro II e a Proposi,iio XLIII do livro III, este Axioma constitui 0

centro dinamico da filosofia spinozista. Nestes pontos a guerra esta sub­metida a pdtica humana. A hip6tese mecanicista e hobbesiana que, exa­tamente a este proposito, exatamente numa passagem an:iloga, impoe uma solu~ao transcendente, nestes trechos esta completamente descartada. Mas que riqueza oferece essa liga~ao a analise da vida! Que profundissima re­cusa da ideologia e colocada com isso! 0 Axioma em questao e urn pode­roso saIto para a frente, que repropoe 0 projeto constitutivo num altissimo nivel de potencia: aquele proposto por uma permanente reabertura do ser. Verdade que de urn deslocamento tao forte da analise derivam tambem efeitos negativos, sobretudo no plano expositivo. Ao come~ar 0 Apendice do livro IV Spinoza confessa, com efeito: "As coisas que expus nesta par­te sobre a reta maneira de viver nao foram dispostas de modo a poderem ser vistas em conjunto, mas foram sendo demonstradas por mim na or­dem dispersa, pela qual fui podendo deduzir mais facilmente uma coisa da outra. "62 E e bern verdade que 0 livro IV pode facilmente se prestar a ironia, nao so pela pretensa "geometria" do metodo que 0 regeria, mas tambem - e nisto esta a sensivel diferen~a em rela<rao aos outros livros - pela "ordem" (sic! isto e, pela efetiva dissimetria, como veremos) das dedu~oes. Entretanto a critica e irrisoria quando confrontada a for~a com a qual explode a projetualidade no novo terreno da libera~a063. Projetua­lidade que 0 primeiro grupo de Proposi,6es do livro IV acentua mais adian­te, sempre dentro do mesmo jogo argumentativo da mudan~a, do aprofun-

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rlamento de signa na recapitula~ao e na reexposi~ao do processo consti­tutivo tal como se desenrolou anteriormente. Quase que se poderia dizer que a sintese de uma tdade dialetica e repro posta agora como primeira posi\ao afirmativa de uma tdade sucessiva: a primeira e uma conclusao, a segunda e urn novo pfojeto. Mas esta aproxima'r:3.o tern apenas urn fim exemplificativo: na verdade a dioamica da passagem para urn sllcessivo, mais alto grau do seI, em Spinoza, nao preve a nega~ao, e oem a rfgida continuidade formal do processo dialetico.

Em que sentido sao entao manobradas as primeiras Proposi~6es do livro IV? Movem-se com a finalidade de acentuar a potencialidade do ser. Nao se trata de definir urn estado, parem uma dinamica, nao urn resulta­do, mas uma premissa. A. Proposi~6es III-VIII: 0 homem na vida etica, defini,iio adequada do campo de for,a dentro do qual se constitui a vida etica. B. Proposi~oes IX-XIII: a contingencia na vida etica, ou seja, a ima­gina~ao e 0 possivel como qualifica~ao alternativa e tendencial da consti­tui,iio humana do mundo. C. Proposi,6es XIV-XVIII: a "cupiditas" como motor, como dinamica da tendencia, como diluir-se da constitui~ao em transi~ao. Em cada uma dessas passagens e a tensao que e posta em pri­meiro plano, e a rela~ao constitutiva que e mostrada como fundamental. Mas vejamos uma por uma essas eta pas.

A primeira recapitula~ao abre a potencia humana para a dimensao da natureza e da vida em sua integridade. 0 campo de for~a que ate aqui ha­via constituido 0 microcosmo e virado as avessas na tensao em dire~ao ao macrocosmo. "E impossivel que 0 homem nao seja uma parte da Natureza e nao possa sofrer outras mudan~as senao aquelas que so se podem conhe­cer atraves de sua natureza e das quais ele e causa adequada."64 "A for~a eo crescimento de uma paixao qualquer e sua perseveran~a em existir nao sao definidos pela potencia com a qual nos esfor~amos para perseverar na existencia, mas pela potencia da causa externa confrontada com a nossa. ,,65 o antagonismo do mundo pro poe a extensao em dire~ao ao mundo do potencial recolhido na individualidade humana e nela determinado como limite interno do processo. A segunda recapitula~ao insiste nessa potencia e a requalifica como supera~ao da determinidade do existente, no terreno do possivel. E a essencia ultrapassando a existencia, e a realidade do inexis­tente colocada como esquema do desenvolvimento da individualidade eti­ca para com 0 mundo etico. "0 afeto em rela~ao a uma coisa que imagina­mos como necessaria e mais intenso, em igualdade de condi~oes, do que 0

afeto em rela~ao a uma coisa possivel ou contingente, isto e, nao necessa­ria."66 Nao basta portanto que 0 homem seja urn campo de for~as, funda­mental e encarnar este campo de for~as na extensao das tensees que for­mam 0 tecido geral do humano. A imagina~ao estende a tensao da essencia para a existencia sobre urn terreno, como nunca, amplo e decididamente

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corporeo - material, possivel. 0 nada que - atualmente - constitui 0

vinculo entre essencia e existencia torna-se fluido, fantasm:itico. E a urgen­cia real do inexistente, colocada como esquema expansivo cia eticidade. Fi­nalmente - terceira recapitula~ao - a "cupiditas" intervem mostrando as condi~ees formais da realidade da superac;ao da mera tensao. E assim que, se 0 "Desejo que nasce de urn conhecimento verdadeiro do bern e do mal pode ser extinto ou reduzido por muitos outros Desejos que nascem dos afetos que nos atormentam,,67, no entanto "0 Desejo que nasce da Alegria e mais forte, em igualdade de condi~oes, que 0 Desejo que nasce da Tristeza".68 Com isso a recomposi<;iio do dinamismo da realidade humana, 0 potencial organizativo que 0 infinito exprime por si mesmo e para si mesmo e repro­posto em urn alto nivel de potencialidade constitutiva. E a Alegria que as­sinala positivamente 0 processo constitutivo. E quando se diz "positiva­mente" se diz "ser", isto e, constru~ao do ser, eliminac;ao do inexistente.

Com isso se abre 0 processo de libera,iio. Este e colocado antes de mais nada como projeto de conjunto (Proposi,6es XIX-XXVIII). Esten­de-se depois pela sociedade (Proposi,6es XXIX-XXXVII), e finalmente (Proposi,6es XXXVIII-LXXIII) alean,a a concretude da determina,iio corporea, mostra a realiza~ao da "cupiditas" como sua transi~ao do rei­no da escraviciao para 0 da potencia aberta, como sua libera~ao. Vamos percorrer essas etapas.

"Quanto mais alguem se esforc;a e quanto mais e capaz de procurar o proprio util, isto e, de conservar 0 proprio ser, tanto mais e dotado de virtude, e, ao contrario, quanta rna is se negligencia a conservac;ao do pro­prio util, isto e, do proprio ser, tanto rna is se e impotente.,,69 "Nenhuma virtude se pode conceber anterior a esta (isto e, ao esfor~o de se conservar a si mesmo).,,70 E entao a escava~ao da realidade que poe em movimento as forc;as da liberac;ao. Estas estao implicadas a realidade, e sem contradi­c;ao, liberam a positividade do real, sua gradualidade constituida em ni­veis sucessivos de perfeic;ao. Aquilo que aparece como confuso ou falso so e definivel dentro do movimento intelectual do verdadeiro - isto e, da maior intensidade do ser - que destroi a falsidade. As duas realidades da relaC;ao de liberac;ao, 0 termo a quo e 0 termo ad quem, constituem pro­blema apenas na medida em que dessa problematicidade e constituido 0

real. 0 homem se desembara,a dessa problematicidade desenvolvendo a forc;a do intelecto como guia para a construc;ao de nfveis cada vez mais avan­c;ados e cheios de ser. "Agir absolutamente por virtude nao e outra coisa em nos senao agir, viver, conservar 0 proprio ser (estas tres coisas signifi­cam 0 mesmo) sob a direc;ao da Razao, isto baseando-se na busca do util proprio. ,,71 "Qualquer esforc;o nosso que procede da razao nao e outra coisa senao conhecer, e a Mente, enquanto usa a razao, nao julga que Ihe seja util outra senao aquilo que conduz ao conhecimento."72 "0 bern su-

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premo cia Mente e 0 conhecimento de Deus, e a suprema virtude cia Men­te e canhecer Deus ... 73 A partir cia discrimina~ao que 0 ser individual opera no existente, ate a virtude absoluta cia Mente que se adequa 0 objeto su­premo que e Deus, desenrola-se entaa 0 processo cia libera~ao, como e formalmenre proposto pdQ pfojeto. Evidentemente e passivel que esse pfojeto seja colocado, neste ponto: de fato, 0 esquema formal foi recom­posto e relan~ado a partir do altissimo potencial cia razao que a ciencia das paix6es havia produzido. Mas 0 fato de que seja possive! nao signifi­ca que seja real. Essa imediatez cia tensao do concreto para 0 absoluto nao mostra, com igual imediatez, a necessidade concreta, imediata do proces­so. Modo individual e absoluto divino constituem urn paradoxa que re­tern a stnrese, a homologia deles, no plano de uma abstrac;ao que agora, se for para ter valor, deve ser determinada. 0 processo da determinac;ao e o proprio processo constitutivo. Vimos como 0 ritmo da emanac;ao foi ex­pulso da teoria do conhecimento e como so a determinidade das no\=oes comuns, essas obras da Mente, pode determinar eta pas de conhecimento. Ou seja, vimos como 0 conhecimento procura a intensidade do concreto. E preciso entao passar do esquema abstrato da liberac;ao para aquele, con­creto, da constitui<;a074. Nem, em caso algum, pode esse processo de pen­samento ser dissociado da continuidade material da acumulac;ao do con he­cer. 0 acumulo do conhecimento, como ato adequado do ser, constitui 0

concreto. Neste caso como em nenhum outro 0 assim chamado misticis­mo spinozista se mostra a nos em toda a sua potencia - e nisso e bern mais ascese do que atitude propriamente mfstica: como incansavel caminho para o concreto e tentativa de abra\=a-Io, de cingi-lo, de identifica.-Io de manei­ra cada vez rna is nftida. A instrumentalidade da mente em dire\=ao a essa "finalidade" e total. A abstra<;ao se dirige para 0 concreto para Ihe ceder, uma vez alcan<;ado este, a dignidade do conhecer. Deus e a coisa.

Do abstrato para sua determina<;ao, portanto: esta e a etapa seguin­te da constru\=ao. Inicialmente, a ordem gnoseologica (do abstrato ao con­creto) corresponde a ordem ontologica de constitui\=ao apenas em termos funcionais, nao se da homologia - so na ordem constitutiva, em seu pro­cesso, 0 conhecimento se torna, ao contra.rio, instrumento organico do acumulo do ser. Mas entao deve ser confirmada essa passagem. Como se determina a passagem da no\=ao comum a apreensao do verdadeiro como constitui<;ao-modificacrao-integra\=ao do ser? As nocr6es comuns sao formas socia is do conhecimento que sao afinadas e conduzidas em direc;ao ao concreto a medida que a sociedade vai se formand075 . Voltamos a acen­tuar que esta genealogia das formas sociais em correspondencia com 0 afirmar-se das formas de conhecimento, do abstrato para 0 concreto, nao e urn processo dialetico, nao implica negatividade senao no sentido em que esta e colocada como inimigo, como objeto a ser destruido, como espa\=o

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a ser ocupado e nao como motor do processo; que, ao contrario, 0 motor do processo esta na instancia continua do ser em dire<;ao a libera<;a076. Nem esta continuidade anula 0 contraste, mas 0 coloca justamente como anta­gonismo e nao como banal e cinica justificacrao da imperfeicrao. Conhecer e mover-se em direc;ao a perfei<;ao, em dire<;ao a libera<;ao, e pura e sim­plesmente uma operac;ao de anexac;ao de ser. "Qualquer coisa singular, cuja natureza seja inteiramente diversa da nossa, nao pode nem favorecer nem reduzir nossa potencia de agir, e, em termos absolutos, nenhuma coisa pode ser para nos boa ou rna, se nao tiver algo em comum conosco.,,77 Mas a anexa<;ao do ser e uma discriminac;ao do ser - uma discriminac;ao domi­nada peIo sentido da positividade do ser individual e da necessidade e ur­gencia de sua valoriza\=ao. "Na medida em que uma coisa esra de acordo com nossa natureza, e necessariamente boa."78 Mas tambem vice-versa: "quanto mais uma coisa nos e util, tanto mais ela esta de acordo com nossa natureza. ,,79 De modo que a anexa\=ao e a discrimina<;ao do ser se dao agora num terreno decididamente conflituoso - como sao conflituosos 0 abs­trato e 0 concreto, a imaginac;ao e a realidade, a instancia constitutiva e 0

fato de que 0 mundo e dado existencialmente. Conduzir 0 caminho de li­berac;ao ate a solu<;ao desse contraste e a tarefa da filosofia, e a dimensao social e 0 primeiro terreno no qual a operacrao deve ser realizada.

Retomemos 0 discurso, acentuando 0 contraste. "Na medida em que os homens estao sujeitos as paixoes, nao se pode dizer que concordem por natureza. "so A partir da defini<;ao utilitarista se deduz entao a intima con­tradi<;ao da comunidade humana. Essa contrariedade entre os moveis de associa<;ao e aumentada pela diversidade, a inconstancia, a mutabilidade, a versatilidade das emergencias individuaisS1 e pela passionalidade que sobredetermina a heterogeneidade das singularidades individuais.S2 "So enquanto os homens vivem sob a direc;ao da razao concordam sempre por natureza"S3; assim intervem Spinoza na primeira percepcrao do contraste. Mas trata-se de tautologia: "e utilfssimo ao homem aquilo que concorda ao maximo com sua natureza, ou seja, 0 proprio homem. "S4 E a tautologia nao resolve 0 contraste. Ela determina uma solucrao puramente formal. 0 homem, colocado como conceito, neste trecho nao e urn concreto, mas uma simples nocrao com urn. Esta prime ira passagem atraves da socialidade, entao, funda a noc;ao comum bern rna is do que funda a socialidade como terreno e ambito onde desenvolver 0 processo de libera<;ao. A tautologia corresponde uma definicrao real da sociedade e do Estado em termos con­vencionais e positivistas. Os Esc61ios I elIda Proposi<;ao XXXVII cortam curto a instancia ontologica que, no entanto, e expressa pela Proposi<;ao a que se referem ("0 bern que cada urn, que segue a virtude, apetece para si ele 0 desejara tam bern para os outros homens, e tanto mais quanta e maior 0 conhecimento de Deus que tiver adquirido")S5: parece ate que os

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Esc61ios ironizam propositalmente. 0 justa e 0 injusto 56 podem ser predi­cad6s "no estado civil, cnde se decreta por consentimento comum 0 que e destes e 0 que e daqueles"86; 0 consentimento comum e sobredeterminado pela obriga,ao de obedecer ao Estado e portanto pelo refor,o da coa,ao dos acordosS? Caiu tambem 0 pressuposto coritratual. A solu,ao formal do problema da supera~ao dos contrastes e correspondente a existencia das no~6es comuns. Nem a passagem nem esses termes cia soiU/,;ao spinozista parecem incidentais: de modo que devemos nos perguntar qual e 0 lugar cieles no sistema do desenvolvimento do processo constitutivo.

Se, entaD, a essencia se faz existencia - existt!ncia social e civil neste caso - aceitando por urn lado as contrariedades dialeticas do utilitarismo e conseguindo media-las apenas formalmente atraves cia razao, se os Esco­lios I elIda proposi,ao XXXVII definem em seguida, na medida rna is ampia, "as fundamentos do Estado" como "renuncia ao direito natural deles", compromisso de nao se prejudicar reciprocamente, e terminam na reivindica~ao central e coletiva do direito positivo; finalmente, se tudo isso resulta numa clara funda~ao positivista do direito e do Estado - 0 pro­blema nao se atenua. Com efeita, Spinoza assim conclui a argumenta~ao: "Do que resulta evidente que 0 justo e 0 injusto, a culpa e 0 merito, sao no~oes extrfnsecas e nao atributos que expliquem a natureza da mente. ,,88

Coloca~ao extrinseca? Mas 0 que significa? Em minha opiniao - tenha-se em mente que exatamente a esse res­

peito devem-se destacar aquelas confusoes e dissimetrias no desenrolar argumentativo do livro IV que haviamos assinalado -, em minha opiniao, entao, a situa~ao que aqui se determina no sistema e situa~ao de crise. Nao e suficiente, na verdade, para resolver, nem mesmo para aprofundar a tematica constitutiva, a reproposi~ao da equivalencia entre "no~ao comum" e "sociedade civil". 0 Tratado teologico-polftico ja havia ido bern mais longe. E agora? Nao ha duvida de que existe uma incerteza no sistema. Esta fortemente indicada. Se por urn lado, de fato, esra. estabilizada a al­ternativa anti-hobbesiana como defini~ao de urn terreno de pesquisa poli­tica onde a instancia de apropria~ao se apresenta na forma da liberdade e prevalece em rela~ao a exigencia formal da seguran~a, e igualmente claro que essa exigencia e desarticulada e inerente antes aos mecanismos 16gi­cos (de aproxima~ao com a verdadeira natureza do processo constitutivo) que a operatividade desse processo. E cabe acrescentar que, na Etica, nao se supera esse nivel. 0 problema politico, como problema constitutivo, e remetido ao Tratado politico.

No entanta, se percebe 0 vazio da exposi~ao. Desordenada, mas efi­cazmente, Spinoza volta ao tema politico nas paginas que se seguem, ate a conclusao do livro IV. Volta a ele insistindo nos elementos constitutivos dessa area de pesquisa. No momento s6 podemos considerar essas abor-

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dagens a titulo indicativo, recordando a linha de argumenta~ao que em geral aparece: reproposta da indica\=ao formal etica da concordia ("Aquilo que conduz a Sociedade comum dos homens, ou seja, aquilo que faz COm que os homens vivam na concordia, e util, e, pelo contra.rio, e mau aquilo que introduz discordia no Estado,,)89, repropost~ do horizonte da guerra como terreno de onde surge a potencia etica da recomposiCfao social, e portanto funcionaliza~ao da oposis:ao a libera'!ao em rela,!ao ao medo e a ignoran­cia90• Pode-se observar que 0 fim iluminista se sobrepoe ao constitutivo? Certamente. Mas ha algo mais. Ha 0 fato de que nessa dissimetria do pro­cesso constitutivo, nesse fechamento sobre urn horizonte predominante­mente gnoseol6gico, Spinoza esti pagando sem avan,o sobre 0 tempo his" torico. A revolus:ao e sua borda, ontem; a crise e sua borda, hoje: a con­cretude do lance revolucionario nao e perceptivel aos olhos da teoria. A sociedade que se apresenta a Spinoza nao e dominada por uma constitui­,ao gobal da produ,ao. For,ar a imagem da libera,ao sobre 0 pressupos­to da produ,!ao corresponde entao a urn corte em rela,!ao ao real. E e este corte que, voltando-se sobre a forma argumentativa da Etica, nela deter­mina este e outros vazios, esta e outras suspensoes.

A sociedade e ainda uma perspectiva, urn fim da busca e da trans­formaCfao. Nao consegue ser mais que isso. A determinidade das relaCfoes sociais bloqueia a perspectiva. Manter-se no horizonte do possivel, e a1 determinar 0 caminho do abstrato ao concreto, e entao uma tarefa teori­ca que se coloca como alternativa. E uma alternativa especifica - uma al­ternativa que nao exclui, mas retem como implicita a dimensao nao resol­vida da socialidade. A ordem do sistema se dobra a ordem da pesquisa possivel, sem no entanto desaparecer. No atual horizonte da possibilida­de, sao entao 0 corpo e sua realidade determinada - historica, ontologi­ca, intelectualmente - que devem ser considerados. 0 corpo como orga­niza,!ao da "cupiditas", portanto 0 corpo como pulsao material percorri­da pela consciencia. A articula\=ao da consciencia e do corpo e colocada como dinamica. A possibilidade que, no terreno da hipotese da socializa­s:ao, e limitada pela dificuldade historica de determinar urn desenvolvimento da ruptura e fica entao fechada num projeto formal de constitui~ao, ja se torna - no terreno da corporeidade - real. "Aquilo que disp6e 0 Corpo humano de modo que este possa ser afetado de muitas maneiras, ou que 0

torna apto a afetar de muitas maneiras os corpos externos, e util ao ho­mem; e tanto mais util quanta mais, assim, 0 Corpo se tarna apto a ser afetado de rnuitas maneiras e a afetar os outros corpos; e, ao contrario, e nocivo aquilo que torna 0 Corpo menos apto a estas coisas. ,,91 Mas essa rnobilidade do corpo, essa ernergencia de necessidades, e tam bern 0 des­dobramento da razao. "Pois 0 Corpo humano e composto de muitissimas partes de natureza diversa, as quais tern continuamente necessidade de urn

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alimento novo e variado a fim de que todo 0 Corpo esteja igualmente apto a tudo 0 que pode seguir~se de sua natureza, e, conseqiientemente, a fim de que a Mente esteja igualmente apta a compreender mais coisas ao mes­mo tempo. Este metodo de vida esta em perfeito acordo, tanto com nos­sos principios quanta com a pratica comum; assim, esta maneira de viver, mais que qualquer outra, e a melhor de todas, e deve ser recomendada de todos os modos, e nao ha necessidade de tratar mais clara nem mais am­plamente este assunto. ,, 92 0 desdobrar da razao na articula<;ao e no equi­librio com 0 corpo constitui a verdadeira passagem do "appetitus" a "vir­tus". 0 conteudo consciente da "cupiditas" dispara para a frente, impli­cando a corpo, constituindo a possibilidade da virtude atraves de uma tensao entre essencia e existencia que e tam bern plenitude e unidade do cor­po e da razao humana. Trata-se, finalmente, de urn processo constitutivo completamente expresso. Extremamente laborioso - com recuos, e fre­qiientemente, discutindo sobre banalidades! 0 peso das casuisticas morais do seculo XVII se faz sentir. E no entanto 0 processo constitutivo avan<;a. E uma moral da generosidade a que surge, em prime ira instancia, dentre os pontos polemicos - por adequados e inadequados que sejam: "quem vive sob a dire<;ao da razao se esfor<;a, 0 quanta pode, para compensar 0

6dio, a Ira, 0 Desprezo, etc., de outro homem para com ele, com 0 Amor, ou seja, com a Generosidade" .93 Uma moral da generosidade, perfeitamente materialista, que e uma primeira constitui<;ao do corpo em pulsao virtuo­sa, dentro da determina<;ao social. A busca visa a constitui<;ao, ao preen­chimento do espa<;o da existencia. E.-me dificil encontrar as palavras para ampliar e rearticular 0 restritissimo vocabulario spinozista: cheio de ser, expulsao do mal atraves da invasao do vazio de ser que este constituia. Talvez, nessas paginas, seja rna is 0 desprezo polemico contra as virtu des cristas do negativo (a humildade, 0 arrependimento, etc.)94, seja mais a rei­vindica<;ao de urn socrcitico conhecimento de si, 0 que da antes de mais nada o tom do avan<;o constitutivo. Sobre 0 terreno do materialismo, sobre 0

terreno da plenitude do ser. Ate que na segunda instancia, 0 discurso se concretiza com maior potencia. A afIrma<;ao da "cupiditas" e aqui abso­luta: ela se apresenta como exaltac;ao de uma fun<;ao racional completa­mente desfraldada: "a todas as a<;6es a que somos determinados por urn afeto que e uma paixao, podemos, independentemente deste, ser determi­nados pela razao" .95 A razao nao transcende nem altera 0 corpo, Com­pleta-o, desenvolve-o, preenche-o. A afirma,ao e total e absoluta quando soa assim: "0 Desejo, que nasce da razao, nao pode ter excesso" ,96 A de­monstrac;ao acentua a afirma<;ao: "0 Desejo, considerado de modo abso­luto, e a propria essencia do homem, enquanto e concebido como deter­minado de urn modo qualquer a fazer alguma coisa; e por isso 0 Desejo que nasce da razao, isto e, que se gera em nos enquanto somos ativos, e a

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propria essencia ou natureza do homem, enquanto ela e concebida como determinada a fazer aquelas coisas que so sao concebidas adequadamente atraves da essencia do homem. Se, portanto, esse Desejo pudesse ter urn excesso, a natureza humana entao, considerada por si so, poderia se exce­der a si mesma, isto e, poderia mais do que aquilo que pode, 0 que e uma contradi~ao manifesta; e entao esse Desejo nao pode ter excesso" .97 Os efeitos dessa totalidade e intensidade da a<;ao do desejo, preenchido pela razao, sao, eles mesmos, absolutos. As passagens constitutivas sao agora revividas e reexpostas como atualidade. As fun<;6es da imagina~ao, e as figuras da temporalidade constituidas sabre ela, sao levadas a presenc;a, a dura,ao e vivida na intensidade de seu presente constitutivo. Todas as passagens da constitui<;ao etica em sentido proprio sao tam bern reexpostas na potencia do desejo realizado: "atraves do Desejo que nasce da razao, nos seguimos diretamente 0 bern, e indiretamente fugimos ao mal". 98 De modo que "0 homem livre em nada pensa menos que na morte; e sua sa­bedoria e uma meditac;ao nao da morte, mas da vida",99

A libera,ao se fez liberdade. 0 processo atinge 0 resultado. 0 infini­to nao e organizado como objeto, mas como sujeito. A liberdade e 0 infi­nito. Qualquer intermediario metafisico no caminho para a liberdade se resolveu na decisao constitutiva da liberdade. A serie inteira de condi~6es sobre as quais 0 mundo se construiu e agora dada como presen<;a. Presen­c;a refundadora da a\ao. Este e 0 tom mais alto que coneIui a constru~ao spinozista: esta nao resolveu 0 mundo de maneira sistematica, mas na verdade 0 dissolveu de maneira sistematica, para conduzi-lo para a ver­dade da ac;ao etica, como afirmac;ao da vida contra a morte, de amor con­tra 0 odio, de felicidade contra tristeza, de socialidade contra embruteci­mento e solidao. Aqui entao come,a a vida. Na liberdade reside a certeza do conhecer e do progredir. 0 tempo se dissolveu como dimensao que rouba a vida e a dissolve na ilusao. Aqui mais do que nunca 0 barroco ficou lon­ge, 0 tempo se estende em esperan<;a. A prisao do mundo se rompeu em suas grades e suas trancas. 0 mundo e urn presente plano, predisposto e hibil para acolher a tensao futura e plena, projetual do ser erico. Nao h:i concretude que nao consista numa incidencia pontual desse ser livre so­bre si mesmo: tanto em termos gnoseol6gicos quanta em termos eticos. Todo 0 sistema spinozista tende para esse ponto, para essa exaltac;ao da plenitude do existente, da do,ura do projeto etico de felicidade. 0 abso­luto materialismo da concepc;ao e extraordinariamente cortes, e essencial­mente transfigurado pelo subjetivismo do ponto de vista - nao rna is sim­plesmente metafisico, mas fenomenologico, constitutivo. Aquela esponta­neidade do ser que se concluiu no sujeito e agora novamente percorrida pela ac;ao etica do sujeito. No meio, a espessura do ser que foi devolvido a seus antagonismos essenciais, e a constituic;ao do mundo: desse mundo que,

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atraves desses antagonismos, foi dissolvido e reconstruido. 0 projeto de cOilstitui<;ao se tornou dessa maneira urn verdadeiro projeto da transi\=ao. A libera,ao e essencial para a constru,ao da liberdade e a liberdade se exprime como libera<;ao. Nao ha rela<;ao dialetica possivel, nesse horizonte, nao ha implica\=ao do preconstituido senao como barre ira a ser atravessa­da e derrubada. 0 horizonte da liberdade e 0 da afirma,ao absoluta por­que a liberdade passou atraves da nega,ao absoluta. Extinguiu 0 vazio construindo 0 pleno do ser. Esse ser e a substancialidade de tudo aquilo que a subjetividade coloca, constr6i, determina projetualmente. Uma sub­jetividade compacta e plena, como 0 e 0 ser substancial, resgatado e recons­truido dentro da projetualidade. Finalmente urn mundo inteiro, num se­culo em que 0 dualismo racionalista e idealista lacera a realidade!

3. LiBERA<;AO E LIMITE: A DESUTOPIA

o livro IV da Etica nao assinala 0 triunfo do mundo semio no senti­do de que forma e exalta a constitui,ao materialista da possibilidade, 0

ser etico do mundo: portanto a determinidade e 0 limite da libera<;ao. Uma verdadeira desutopia e proposta aqui. Com isto, nesse sentido realista do limite, a filosofia spinozista da libera,ao e a segunda funda,ao metafisica atingem seu apice. A libera,ao e uma defini,ao de possibilidades determi­nadas. 0 horizonte ontologico da superficie, reconstruido pela atividade humana constitutiva e sublimado na "cupiditas", e determinado e limita­do para todos os lados. Claro que a constitui<;ao do mundo em geral nao esta terminada, a mobilidade da "cupiditas" e da corporeidade humana constitutiva ainda tern de se desdobrar: mas dentro desse limite. "A po­tencia do homem e bastante limitada, e e infinitamente superada pela po­tencia das causas externas, e portanto nao temos urn poder absoluto de adaptar a nosso usa as coisas que estao fora de nos. Entretanto, suporta­remos com animo igual os acontecimentos contrarios ao que e pedido pela considera<;ao de nossa utilidade, se tivermos consciencia de termos cum­prido nosso dever, que nossa potencia nao podia se estender ate 0 ponto de evita-los, e que somos parte da natureza inteira, a cuja ordem obedece­mos. Se compreendermos isto clara e distintamente, aquela parte de nos que e definida pela inteligencia, isto e, a melhor parte de nos, 0 aceitara com plena satisfa<;ao e se esfor<;ara para perseverar nessa satisfa\=ao. Real­mente, enquanto compreendemos, nao podemos ter apetite senao pelo que e necessario, nem em geral encontrar satisfa<;ao senao no verdadeiro; e por isso, na medida em que compreendemos isto de maneira reta, 0 esfor\=o da melhor parte de nos concorda com a ordem de toda a natureza. "tOO E agora, entao, para alem desse limite. E preciso insistir no vinculo libera-

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<;ao-limite porque 0 limite, dentro da tensao liberatoria do livro IV, fixa 0

horizonte e a dimensao da liberas:ao. E configura 0 problema: se 0 pro­cesso de libera<;ao, no livro IV, construiu 0 sentido do limite, e a partir dessa dimensao determinada do limite que devemos - no livro V - reconstruir o processo de libera<;ao, tornar a verificar e eventualmente ultrapassar 0

limite, conhecendo-o, possuindo-o. 0 livro V da Etica, entao. 0 processo de libera~ao e instaurado peIo livro V como urn processo de transis:ao. Como urn deslocamento do ser. 0 panteismo spinozista encontra inteira­mente, e de modo penetrante, 0 sentido da contingencia: sua defi~i~ao ontologica, determinada. Aquilo que na prime ira reda~ao da Etica havia­se apresentado como paradoxo do mundo - de urn lado 0 ser substancial, do outro, 0 modo - se apresenta agora como etica do modo: etica e ab­soluto, etica do modo e transforma~ao liberat6ria do ser finito, transi~ao de urn grau a outro, mais alto, do ser, constitui~ao dinamica, coletiva e pratica ontologica. No livro V, 0 limite funda 0 novo curso da libera~ao.

"Passo finalmente a outra parte cia Etica que trata da maneira ou do caminho que leva a liberdade. Nesta parte, entao, tratarei da potencia da razao, rnostrando 0 poder que a propria razao tern sobre os afetos e 0 que e a Liberdade da Mente, ou seja, a beatitude; assim veremos 0 quanto 0 sabio supera em potencia ao ignorante. De que modo e por que caminhos 0 en­tendimento deve ser levado a perfei~ao e tambem com que arte 0 Corpo deve ser cuidado para poder cumprir adequadamente seu oficio sao quest5es que nao cabem a esta obra: a segunda, com deito, depende da Medicina e a primeira da Logica. Aqui, entao, como ja disse, tratarei somente da poten­cia da Mente, ou seja, da razao, e antes de tudo mostrarei qual e quanto domfnio ela tern sobre os afetos para frea-Ios e governa-Ios. ,,10t A tarefa esta clara. As condi,6es tambem. Aprofundemos. 0 pressuposto fundamental e que nao temos dominio absoluto sobre nossos afetos: e por isso devemos recusar 0 absolutismo voluntarista dos estoicos - essa nostalgica, e agora retorica e maneirista, reproposta da instancia revolucionaria e renascentista. Mas, assirn como a esse absolutismo, devemos tambem recusar toda media­~ao etica que, como a cartesiana, nao tenha capacidade de pesquisar den­tro do ser. 0 dualismo cartesiano e rigido e impotente, entrega-se - para a solu,ao do problema <'tico - ou a urn escamotage fisiologico (a glandula pineal: "hipotese mais oculta que toda qualidade oculta "102) ou a uma trans­cendente media<;ao: urn barroco Deux ex machina ideologico. Nao, e ne­cessario liberar-se dessas ilus5es; pela experiencia da Mente e pela inteli­gencia temos a possibilidade de colocar 0 problema da Ubera,iiocomo projeto de deslocamento do ser humano. Nao se trata de media<;ao de substancias, mas do movimento da unica substancia, de sua potencia.

Este e 0 eixo central, fundamental, do projeto. Mas e necessario, des­de ja, levar em conta urn dado e algumas conseqiiencias que dele derivam.

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o dado e que 0 livro V da Etica, bern mais que os livros III e IV que 0 pro­cidem, se liga ao tronco imaginario cia pesquisa spinozista, ao terrena cia primeira fundac;ao. Tern-se a nftida sensa~ao de que 0 trabalho de redar;;ao do livro V se distribuiu em varios perfodos e fases. De que antecipou, em boa parte, a propria reda<;iio dos livros III e IV. Tudo isto e demonstrado pelo reaparecimento, e verdade que residual, mas nao menDS eferive, de cenarios metafisicos que pareciam completamente ultrapassados e expul­sos do desenvolvimento do sistema 103. Mas, sobretudo, e demonstrado por uma forte tensao ascetica que volta a percorrer 0 texto. Quase como se 0

limite ontologico fosse apenas urn horizonte metafisico e nao uma qualida­de do modo e da a<;iio humana! A ascese quer for<;ar de modo cognoscitivo e moral aquila que esta ontologicamente fixado. Muira aten~ao aqui: essa tensao ascetica esta longe de ser exclusiva, ao contrario, e nitidamente su­bordinada a tensao constitutiva. Mas esta presente e veremos que ela de­termina urn desequilfbrio interno no livro V - desequilibrio que e esped­fico em seu desenrolar e sua tonalidade. Assim e que 0 livro V se apresenta como percorrido por duas tensoes: uma ascetica, a outra novamente cons­titutiva e materialisticamente determinada. As dissimetrias, as articula'roes, a apari'rao de contradi'roes, a tentativa de sintese, as dissonancias, e de novo as dissimetrias do livro V, fazem com que ele se apresente a nos como a adequada fase conclusiva - por urn periodo - de urn pensamento vivo.

o inkio do livro V representa, de todo modo, uma continuidade com o processo constitutivo analisado nas partes centra is (III e IV) da Etica. Come'ra, como se para dar 0 senti do dessa continuidade, com 0 desloca­mento axiomatico - neste novo nivel da etica desdobrada - dos prind­pios da constitui'rao ontologica. "'l, Se no mesmo sujeito sao excitadas duas a'roes contrarias, devera ocorrer necessariamente uma mudan'ra em ambas ou em uma so, ate que deixem de ser contrarias. II. A potencia de urn efeito e definida pela potencia de sua causa na medida em que sua essencia se explica ou se define mediante a essencia de sua causa."104 Como nao insistir na excepcional importancia desse corte axiomcitico que torna a propor a rela­'rao entre potentiae no centro do sistema? Parece, aqui, que a coloca'rao metafisica tipica do livro I, da utopia revolucionaria e pantefsta, esta sendo novamente exposta tal e qual. Mas isso e pura aparencia. Pois 0 ens realis­simum e sua potencia sao retomados, na verdade, mas ja considerados dentro da sublima'rao (nega'rao) do atributo, e das outras categorias metafisicas da emana'rao, dentro do horizonte real, e absolutamente singular, do modo. A dinamica plural do campo de fon;as se torna quadro metodico exclusivo e a tradi'rao do racionalismo fica completamente aplainada - banido todo dualismo, mesmo sendo gnoseologico - sobre 0 horizonte da superfkie, sobre a superfkie do mundo. Donde a possibilidade para 0 processo cons­titutivo de prosseguir, desenrolando a potencia, da "cupiditas" ate a inte-

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ligencia. 0 processo argumentativo e simples. Atraves da ideia clara e dis­tinta tada afec'rao pode ser depurada e sublimada. Nao existe nenhuma afecc;:ao do corpo sobre a qual nao seja POSSIVel apor 0 sinal da clareza e da distinc;:ao. A mente destroi as causas externas, os excessos, regula os apeti­tes e os desejos, ordena e concatena as afec'roes do corpo segundo a ordem exigida pelo intelecto. Neste quadro, alegria e amor pela liberdade podem se tornar, e se tornam, fo[(;as agentes, diretrizes das afec'roes do corpo. Que fique claro: a sublima'rao que se opera aqui e imanente, cumulati'\4a, pro­gressiva. "Quanto mais numerosas forem as causas simultaneamente con­correntes pelas quais urn afeto e excitado, rna is este e forte." 105 Eo sentido do processo e dado pela intensidade da adequa<;iio da mente ao real: "0 afeto em relac;:ao a uma coisa que imaginamos simplesmente, e nao como necessaria, nem como possIvel, nem como contingente, e, em circunstancias iguais, 0 mais forte de todos. "106 "Na medida em que a Mente conhece todas as coisas como necessarias, ela tern sobre os afetos uma potencia maior, ou seja, sofre menos com eles."107 Adequa'rao: ou seja, dinamica unitaria da mente e da realidade? Essa afirma'rao tam bern e fundamentalmente incor­reta, porque coloca a soluc;:ao do problema do racionalismo e nao, antes, a originalidade do problema spinozista: que e 0 da expressao da potencia. 0 paralelismo spinozista e, neste ponto, a elimina'rao de qualquer concepc;:ao do ser que nao seja absolutamente univoca e progressiva. '''Paralelismo'' e apenas uma palavra marcada pela ideologia do seculo, urn estereotipo cul­tural: 0 elemento substancial e a unidade do projeto constitutivo, da potencia. o encadeamcnro, articulado a destruic;:ao, e urn esforc;:o do ser, urn projeto, soluc;:ao de urn horizonte de guerra, construc;:ao do ser. Nao ordem nova, mas ser novo. Inteiramente positiv.o. Porranto, aumento da liberdade. "Entao, aquele que trabalha para governar seus afetos so por amor da Liberdade, este se esforc;:ara, 0 quanto possa, para conhecer as virtudes e suas causas e para encher sua alma com a alegria que nasce desse conhecimento verda­deiro, mas nem urn pouco de considerar os vicios dos homens, rebaixar os homens e gozar de uma falsa aparencia de liberdade. E quem observar com diligencia essas regras (na verdade, nao Sao dificeis) e se exercitar para se­gui-las, podera certamente, num breve espac;:o de tempo, dirigir suas ac;:5es de modo geral segundo 0 comando da razao."108 0 proprio metodo se tomou constru'rao de ser. A "geometria" do metodo - que e simples fumus -mostra na verdade sua substancialidade, sua inerencia ao ser como meto­do da liberdade. Como totalidade do positivo construida pela liberdade. A etica do modo e entao uma operac;:ao sobre 0 ser, no ser, para 0 sec. A etica da iibera'rao e uma etica constitutiva, ontologicamente constitutiva.

Neste ponto a intensidade do projeto constitutivo encontra as pri­meiras alternativas e dissimetrias. Depois que foi desenvolvida, nas treze primeiras Proposic;:oes do livro V, a instancia constitutiva no senti do da

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colltinuidade do projero, eis que explode a Proposi,ao XIV: "A Mente pode fazer de modo a que rodas as afec,6es do Corpo, ou seja, rodas as ima­gens das coisas, se refiram a ideia de Deus" ,109 Mas ista tambem pode sig­nificar: 1. A referencia a ideia de Deus sublima a "cupiditas", fazendo-a sal tar para urn nivel de compreensao superior do real. 2. A referencia a ideia de Deus absolutiza ontologicamente 0 processo constitutivo. A al­ternativa de interpretac;ao nao se colocaria, ou se colocaria com menos for~a, se a continuac;ao sistematica da analise nae fosse dissimetrica. Duas series de proposic;6es se defrontam. "A coisa e Deus" e "Deus e a coisa" ass ina lam dais horizontes: 0 primeiro e 0 despertar da utopia cia primeira funda,ao, 0 segundo e a confirma,ao da positividade do projeto da segunda fundac;ao. Vejamos como se abrem as duas trajetorias.

Em primeiro lugar, entaD: como 0 entendimento, que esta no corpo, constr6i sua rela~ao com a ideia de Deus. au ainda, como se produz uma safda ascetica do processo constitutivo. Agora, depois de determinada a possibilidade de se definir em termos claros e distinros qualquer afec,ao da alma e do corpo, assistimos a uma segunda passagem: a mente pode fazer de modo a que todas as afec~6es do corpo, ou seja, as imagens das coisas, se refiram a ideia de Deus. Segundo genero do conhecimento? Sim, na base do esquema gradualista e, no conjunto, calcado sobre a tematica da ema­na~ao da prime ira funda~ao metafisica. A argumenta~ao entao insiste na passagem necessaria da ideia clara e distinta a ideia de Deus: "Quem co­nhece a si e a seus afetos de modo claro e distinto, ama a Deus, e tanto mais quanto mais conhece a si e a seus afetos" .110 E aqui 0 carater dianoetico da argumentac;ao de Spinoza (ou pelo menos desta argumentac;ao) se torna ascetico. Em outras palavras, tanto na definic;ao da mente quanto na de Deus _ elas se tornam cada vez mais homogeneas - triunfa urn carater intelec­tual peculiar que imp6e a separa,ao em rela,ao a qualquer nivel de afeto. "Este amor para com Deus deve ocupar a Mente acima de tudo. Deus nao tern paixoes e nao experimenta nenhum afeto de Alegria ou de Tristeza. Ninguem pode odiar a Deus. Quem ama a Deus, nao pode se esfor~ar para que Deus 0 arne por sua vez. ,,111 0 processo da paixao e sublimado, a in­teligencia se da como abstrac;ao das coisas e do tempo. A mente impoe re­medios ao corpo e a sua vitali dade. Ascetica, no sentido classico. 0 Escelio da Proposic;ao XXl12 arrola os remedios que, no processo de ascese, a mente imp6e aos afetos. 0 conhecimento dos afetos, entao, se deve articular com a capacidade de separar 0 pensamento deles de suas causas externas, com o controle do tempo durante 0 qual os afetos se desenrolam, com a com­preensao da multiplicidade de causas dos afetos, com a discriminac;ao des­tas e com a analise do dinamismo que elas impoem a ascese em direc;ao a divinidade - ascese que no entanto s6 ocorre completamente quando, aos afetos e a seus efeitos, tiverem side impostos ordem e encadeamento.

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Em segundo lugar, entretanto, a tensao ascetica - paralelamente, simultaneamente, e aplacada, e trazida novamente para a relac;ao intrinse­ca com a corporeidade. A mente e ligada ao corpo, esta vinculada com sua durac;ao. "A Mente nao exprime a existencia atual de seu Corpo e nem mesmo concebe como atuais as afec~oes do Corpo senao enquanto durar 0 Corpo; e conseqiientemente nao concebe nenhum corpo como existente em ato, senao enquanto durar 0 seu Corpo; e portanto nao pode imaginar nada, nem recordar-se das coisas passadas senao enquanto durar 0 Corpo. "11~ Pode­se objetar: mas isto s6 pode ser residuo de urn caminho ascetico, ou mesmo uma condi~ao sua! Efetivamente, a colocac;ao 56 se torna total e radicalmente antiascetica, fora de qualquer duvida, quando Spinoza retoma e conjuga as duas afirmac;oes ontologicas fundamentais: a. "Quanto mais conhecemos as coisas singulares, mais conhecemos Deus.,,114; b. "Em Deus, todavia, e necessariamente dada uma ideia que exprime a essencia deste e daquele Corpo sob 0 ponto de vista da eternidade. "115 0 mundo e restaurado como tota­lidade irredutfvel. Deus e a coisa. A teoria do mundo retoma inteiramente em si e sem residuo algum a potencia divina, a causalidade eficiente, da radicalidade ontolegica a existencia. Deus vive inteiramente a vida da sin­gularidade e sua potencia, a versatilidade do ser: nao e nada mais alem disso. Implicitamente, a etica consiste em alcan~ar a eternidade do existente, do modo. Essa eternidade e construida em sua determinidade singular. Nao e em rela,ao ao problema da imortalidade da alma que Spinoza exclama: "A Mente humana nao pode ser absolutamente destruida junto com 0 Corpo, mas dela permanece alguma coisa que e eterna."116 Quando 0 exclama, e para sobredeterminar de maneira absoluta 0 existente, seu ser dado e sua singularidade divina.

As duas trajet6rias sao imediatamente eontradit6rias. Mas qual dos dois termos prevalece? Parece-me que a polaridade, residual e explicavel pela descontinuidade das redac;oes, e, no fim das contas, util para esclare­eer 0 sentido fundamental do pensamento spinozista. Ou seja, s6 ao se encontrar diretamente com a utopia e que a desutopia spinozista tern for­~a para se autodefinir plenamente. E s6 criticando, explicitamente e como totalidade, a primeira funda,ao que a segunda funda,ao atinge 0 cume de sua expressao. E entao a instancia constitutiva que tern uma nitida preva­lencia no desenvolvimento do livro V e a eontradi~ao, que vive ao longo do livro todo, serve para faze-la ressaltar. Com efeito, quando volta para o ambito do sistema, neste livro V, aquela distinc;ao progressiva entre di­versos graus de conhecimento (que era predominante na tradi<;ao do racio­nalismo), isto ja nao significa mais - como acontecia no inkio do pensa­mento de Spinoza - que a problematicidade do mundo e seu paradoxo possam encontrar soluc;ao apenas no plano gnoseol6gico. Essa influencia e esse residuo do pensamento do seculo XVII, do dualismo em sua forma

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mecanicista, de seu exasperado gnoseologismo, estao agora ultrapassados peli eoloea<;ao e pela dimensao ontologieas da Etica: radiealmente supe­rados. Isto e tao verdade que a instancia constitutiva penetra ate nos pon­tos mais altos da instancia ascetica, de sua reforrnula\=ao madura. "Este Arnor em rela\=ao a Deus nao pode ser contaminado nem por urn afeto de 1nveja nem por urn afeto de Chime; mas e tanto mais alimentado quanto mais numerosos sao os homens que imaginamos unidos a Deus pelo mes­mo vinculo de Amor.,,117 Esta proposi\=ao, que surge no centro da cons­tru\=ao ascetica do processo cognoscitivo, inverte 0 sentido deste: 0 conhe­cimento s6 se eleva ate a divindade, ate urn grau superior do ser na medi­da em que atravessa 0 imaginario e 0 social e e constituido por estes. 0 amor em rela\=ao a Deus, no momento em que e proposto novamente como tensao vertical acima da mundanidade, e contido e aplainado na dimen­sao horizontal da imagina\=ao e da socialidade que, s6 elas, 0 alimentam.

E entao, qual e 0 lugar da instancia ascetica? E apenas urn lugar resi­dual- e eficaz somente em definir fun\=oes de contraste? E isso, sem duvi­da, e sem duvida 0 elemento de claro-escuro sobre 0 qual se destaca a desu­topia spinozista. Mas e tam bern algo mais, e algo diferente. E em primeiro lugar uma especie de "moral provis6ria" - a reafirma\=ao da tensao logica do sistema em sua rela\=ao com 0 absoluto, reafirma\=ao que tern de viver na sociedade comum assim como nas comunica\=oes dos homens. Uma moral provisoria que afirma a validade de alguns altissimos criterios morais para conduzir, de maneira ainda extrinseca, a vida humana ate que 0 processo constitutivo esteja completado. 0 espirito ascetico e, por assim dizer, urn complemento e uma sobredetermina\=ao da imagina\=ao e de suas fun\=oes constitutivas de realidade. E uma justifica\=ao, uma motiva\=ao extrinseca do processo etico, mantida ate que a completude do processo etico atinja a solidez da rela\=ao imediata, e que se justifica a si mesma, de essencia e exis­tencia, da identidade delas. E uma opera\=ao existencial.

Mas, em segundo lugar, outra opera\=ao ocorre. E a ultima tentativa que se pode reconhecer no sistema de Spinoza de jogar 0 jogo da contra­di\=ao, como tal, sem deixar de conhece-la, mas em fun\=ao de urn salto gnoseologico. E uma tentativa que dura urn brevissimo periodo. "0 su­premo esfor\=o da Mente e sua suprema virtude sao conhecer as coisas atra­yeS do terceiro genero de conhecimento. "118 "Quanto mais a Mente esta apta a conhecer as coisas atraves do terceiro genero de conhecimento, mais ela deseja conhecer as coisas atraves desse genero de conhecimento."119 "Deste terceiro genero de conhecimento nasce a maior satisfa<;ao possivel da Mente." 120 Com a postula<;ao de urn "terceiro genero" de conhecimento, parece que a contradi<;ao se rompeu, do lado e a favor da ascetismo. Rea­parecimento do misticismo utopista do drculo spinozista? Reflexo ascetico deste no territorio da pratica? Sim: mas de qualquer modo e urn processo

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incapaz de se reger sobre uma dimensao media e construtiva. Proposi'1oes sumarias, repeti\=oes do TRE ou ate do Curto tratado. Reaparecimento que afeta 0 desejo e a esperan~a mais que 0 processo sistematico121 . Realmen­te, as tres Proposi~oes citadas sao seguidas por outras tres que redimen­sionam materialmente a abordagem ascetica, mediatizam-na reduzindo-a e reconduzindo-a a dimensao ontologica material: 0 "terce ira grau" de conhecimento e confrontado com a "cupiditas" ("0 esfor<;o, au seja, 0 Desejo de conhecer as coisas com 0 terceiro genero de conhecimento, mas do segundo"122) e a "cupiditas" e elevada a urn nivel de constitui\=30 em que a racionalidade serve como esquema de conexao entre corporeidade e divindade. Depois a eorporeidade e elevada a eteroidade: isto nao se da na forma da existencia determinada, mas novamente na forma da atra'1ao da essencia, da inteiigencia, sobre a existencia: "Tudo aquilo que a Mente conhece sob 0 ponto de vista da eternidade, ela conhece nao porque con­cebe a existencia presente atual do Corpo, mas porque concebe a essencia do Corpo sob 0 ponto de vista da eternidade." 123 Entao, a propria con­cep<;ao da divindade e reconduzida a dimensao da superficie, Deus e eter­nidade sao colocados no mesmo nivel do corpo. "Nossa Mente, enquan­to conhece a si e ao Corpo sob 0 ponto de vista da eternidade, tern neces­sariamente 0 conhecimento de Deus, e sa be que esta em Deus e que se concebe por meio de Deus. "124 "Em suma, a tentativa gnoseologica - a ascese aqui e urn momento da gnoseologia - permanece uma tentativa, nao supera 0 nivel da abordagem, da extremiza'1ao da pulsao. A ascetica, depois que se desenvolveu uma dinamica do ser tao completa e complexa, nao consegue se reformular. 0 ser tern espessura demais, peso demais, para poder se resolver num ate de conhecimento.

No entanto, ha uma razao para esse desvio do discurso. Enquanto a desutopia e colocada na rela<;ao entre libera<;ao e limite, a rigidez e a repe­ti'1ao de uma tentativa de solu'1ao gnoseologica - no proprio momento em que esta se revela urn mero residuo do sistema - tern uma fun'1ao. Esta consiste em tornar a prop~r, ao lade do processo sistematico, a historia interna do sistema, em mostrar - em urn momento, em urn ato, em uma situa<;ao - a incontroversa necessidade terminal de uma solu<;ao nao gnoseo-16gica. A conclusao ciessa tentativa de media'130 e 0 reconhecimento da Mente como mera "causa formal": "0 terceiro genero de conhecimento depende da Mente como de sua causa formal, enquanto a propria Mente e Eterna" .125 Causa formal! Depois que todo urn desenvolvimento sistematico havia cons­truido em todos os movimentos do ser a potencia ou a presen<;a da causa eficiente! Estamos diante da reprodu<;ao da cesura teorica do pensamento de Spinoza, simulada para,ser sublimada. Com efeito, 0 que aconteceu num periodo da historia do sistema e pontualmente reproduzido em urn episo­dio te6rico. Com que para estipular definitivamente, na continuidade de uma

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experiencia, a diferen,a de fases ou de conteudos, de prop6sitos e de solu­~6es. A diferen<;3 hist6rica. Mas se inicialmente a diferen<;a entre tempo tearico e tempo historico se clava como contradi<;ao, inteiramente a favor do tempo teorico - que antecipava, que rompia, com for\=a de prefigura<;ao utapica, 0 reai-, aqui a situa<;ao se repete a partir de uma perspectiva de vantagem preliminar do tempo hist6rico, cia dimensao ontologica, cia desu­topia. A liberacs:ao renascentista, que ja se apresentara como utopia, 56 pode ser real se reduzida a desutopia, a proposi<rao realista do universo etico cia revoiw;ao, 56 inscrevendo em si mesma 0 fim da utopia. Deve haver urn modo de reconhecer uma derrota sem ser derrotado, cleve haver urn modo de aceitar o limite cia vontade sem negar a forc;a construtiva do entendimento. 0 in­cidente do sistema que leva para dentro do livro V 0 mite da primeira re­dac;ao tern uma func;ao catartica. Novamenre uma func;ao moral proviso­ria. Nao e dificil, depois de tudo 0 que se disse, identificar os elementos estruturais desse processo. Se a utopia metafisica era uma transcric;ao da ideologia de mercado, a desutopia etica e a proposta da ruptura do merca­do, aqui trans posta e projetada na dimensao material e prcitica de uma fi­losofia do porvir. A desutopia e a revelac;ao das forc;as reais que se movem por tras da ruptura da perfeic;ao ideologica do mercado e dentro da crise do desenvolvimento linear do poder da burguesia, e a reivindicac;ao de urn projeto que - mesmo sobre estes durissimos obstaculos - conserva intei­ra sua potencia. Neste jogo interno da Etica desenrola-se entao uma real e importante alternativa historica, aquela que temos destacado frequentemente e com insistencia, a alrernativa entre crise do mercado suportada e crise do mercado vivida e superada na tensao constitutiva. A desutopia e a desco­berta de urn horizonte revolucionario real e futuro.

Se tornarmos a considerar as Proposic;oes ate aqui, se as tomarmos em rermos litera is e as distribuirmos em urn tecido tao objetivo quanto possi­vel, a chave de interpretac;ao disso sai confirmada. 0 supremo "conatus", ou seja, a suprema virtude da mente - e com isto se acentua a conotac;ao ativa e moral da mente - consiste em compreender, em passar e em pros­seguir, da ideia adequada de certos atributos de Deus ao conhecimento ade­quado da essencia das coisas. A conrinuidade "conatus-potentia-mens" fica assim confirmada e enraizada na propria materia divina. 0 conhecimento de terceiro grau consistiria no coroamento desse procedimento, e nisto re­sidiriam sua extensao, sua intensidade e sua total satisfac;ao. Mas, logo depois, a pressuposta continuidade nao se sustenta: do conhecimento mutilado e confuso, da opiniao ou da imaginac;ao, do conhecimento de primeiro gene­ro, enfim, nao pode surgir conhecimento superior. Pode, porem, das ideias adequadas que ja nutrem 0 segundo grau de conhecimento. Equal e entao a definic;ao possivel do "conatus"? Mas eis que surge uma nova reversao: o conhecimento de terceiro genero, enquanto compreende tudo sob 0 pon-

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to de vista da eternidade, compreende tambem a essencia do corpo sob 0

ponto de vista da eternidade. A ambigliidade literal dessas paginas e a maior possivel. Traz-nos a demonstrac;ao definitiva de que, dentro desse procedi­mento, a contradic;ao, a impossibilidade da convivencia de uma concepc;ao ascetica e de uma concepc;ao constitutiva se torna tao forte que fica insu­portaveI. Ao ponto de mostrar, como em urn claro/escuro, a necessidade nao s6 da alternativa trazida pela segunda fundaC;ao, mas sua obrigatoriedade, a irnprescindibilidade de uma verdade arternativa.

Em boa parte, isto e urn drama didatico. Quanta ret6rica se fez, quantas declamac;oes se recitaram em torno da relativa simplicidade desse resumo dramatizado do sistema - que e 0 livro V! Realmente nao valia a pena. Ao contrario, e absolutamente decisivo insistir no outro aspecto, esse essen­cialmente problernatico, que percorre esse livr~. Novamente a relac;ao li­beraC;ao-limite. Novamente a relac;ao e a tensao entre esperanc;a e consti­tuic;ao, novamente a borda nao derrotada da revolU(;ao que se estende em projeto. 0 dominio da crftica da utopia tern de se tornar construrivo. 0 pen­samento negativo tern de se conjugar com a perspectiva da constituic;ao. "Entao, quanta mais cada urn se eleva neste genero de conhecimento, tan­to melhor tern consciencia de si e de Deus, isto e, tanto mais e perfeito e bem­aventurado ... Mas aqui se deve notar que, mesmo estando certos de que a Mente e eterna, enquanto concebe as coisas sob 0 ponto de vista da eterni­dade, todavia, para explicar mais facilmente e para melhor fazer entender o que queremos mostrar, nos 0 consideraremos, como fizemos ate agora, como se ela s6 agora comec;asse a existir e so agora comec;asse a conhecer as coisas sob 0 ponto de vista da eternidade; 0 que e possivel fazermos sem nenhum perigo de erro, contanto que tenhamos a precauc;ao de nada con­cluir a nao ser a partir de premissas evidentes."126 Ate a fatuidade do me­todo geometrico - esse prec;o pago ao seculo - demonstra aqui sua radi­calidade ontol6gica e constitutiva. 0 pensamento negativo se conjuga efe­tivamente com a possibilidade do processo constitutivo. 0 grande pa­rentese de simulac;ao da historia do desenvolvimento do sistema, que per­corre 0 livro V da Etica, se fecha assim sobre essa potente projec;ao. Voltou para t[(is para tomar impulso, para saltar mais longe. Nao foi urn verda­deiro retorno, menos ainda uma regressao: foi apenas uma exigencia de cla­reza, uma autocritica final antes da ultima declaraC;ao metaffsica.

Que e a afirmac;ao plena e total da causalidade eficiente, atribufda a divindade no vinculo limite-libera~ao. Deus e 0 autor da etica e a etica e a ciencia da rela~ao constitutiva limite-liberac;ao. Deus e a desutopia que age sobre essa relac;ao. A problematica religiosa da salva~ao e completamente reinrerpretada dentro daquela, laica e materialista, da liberac;ao127• As Pro­posic;oes conclusivas da Etica desenvolvem entao a contradic;ao que percorre todo 0 livro V, impondo esse sinal positivo de liberac;ao e salvac;ao. Libera-

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,ao da escravidao e salva<;ao como horizonte positivo de felicidade. A ten­sao 'constitutiva antecipa, na exposi\ao, a tendencia, a esperan\a, a alegria, antecipa-as definindo 0 limite delas e sua positividade absoluta e materialista. "Temos prazer em tudo aquilo que conhecemos com 0 terceiro genero de conhecimento, e tal prazer e acompanhado pela ideia de Deus como cau­sa." 128 Amor intelectual de Deus: isto nao e jargao mistico, dentro da con­figura<;ao atual do sistema. Sua afirma<;ao ("0 amor intelectual de Deus, que nasce do terceiro genero de conhecimento, e eterno "129) nao e urn pro­cesso, mas uma condi\ao: "Embora esse Amor em rela\ao a Deus nao te­nho tido inicio, tern no entanto todas as perfei\oes do Amor como se tives­se tido urn inicio ... A unica diferen\a e que aqui a Mente possuiu eterna­mente as mesmas perfei\oes que fizemos como se so agora se tivessem jun­tado a ela, e isto com 0 acompanhamento da ideia de Deus como causa eterna. Ese a Alegria consiste numa passagem para uma perfei\ao maior, a beatitude deve sem duvida consistir no fato de que a Mente e dotada da propria per­fei\ao." 130 Uma condic;ao preconstituida e portanto nega\ao do misticis­mo. A altura do tiro do sistema nao anula no espa\o infinito a tendencia: coloca-a, simpiesmente, no altissimo nivel da perfei\ao. Que e libera\ao­por defini\ao. Que e libera\ao envolvida na estrutura do existente, na alrer­nancia de corpo e mente, de presenc;a e de eternidade: "Uma imagina~ao e uma ideia mediante a qual a mente considera uma coisa como presente; porem ela indica mais 0 estado presente do corpo humano do que a natureza da coisa externa. Urn afeto e entao uma imagina\ao enquanto indica 0 estado presente do corpo; e por isso a mente nao esta sujeita aos afetos que fazem parte das paixoes senao enquanto durar 0 corpo.,,131 De modo que, com as Proposi<;6es XXXV e XXXVI, a absolutez da defini<;ao do mundo como atual tendencia para a perfei\ao (ou como tendencia para a perfei\ao atual - 0 que da no mesmo) se expoe inteiramente: "Deus ama a si rnesmo com urn Arnor intelectual infinito" .132 "0 Arnor intelectual da Mente em rela­\ao a Deus e 0 proprio Arnor de Deus, com 0 qual Deus ama a si mesrno, nao enquanto ele e infinito, mas enquanto pode ser explicado atraves da essencia da Mente hurnana, considerada sob 0 ponto de vista da eternida­de; isto e, 0 Arnor intelectual da Mente em rela\ao a Deus e uma parte do Arnor infinito com 0 qual Deus ama a si mesmo. ,,133

A tensao exposra ate aqui, entao, faz 0 limite se dobrar a tendencia. Mas as duas afirma\oes sao complementares. Com efeito, sao indistingui­veis. E logo se seguem as anteriores novas Proposi\oes que voltam a se concentrar na substancialidade do processo, ou seja, tornam a propor a tendencia dentro da determinidade do limite. A rela\ao entre tendencia e limite e constitutiva. A dureza da abordagem ontologica volta imediata­mente a propor a pratica do agir constitutivo como elemento fundamen­tal e definit6rio do processo. Assim e que, se "nada se da na Natureza que

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seja contrario a esse Amor intelectual, ou seja, que possa destruf-lo" 134_ entao "quanto mais a Mente conhece as coisas de acordo com 0 segundo e 0 terceiro generos de conhecimento, menos ela sofre com os afetos que sao maus, e menos teme a morte" .135 Conseqiientemente, se "quem pos­sui urn Corpo apto a muitfssimas coisas, possui uma Mente cuja maior parte e eterna"136 - entao "quanto maior a perfei<;ao que uma coisa possui, mais esta e ativa e menos e pass iva, e inversamente, quanto mais ela e ativa, mais e perfeita" .137 A propria necessidade ontologica e constituida peIa quan­tidade de a,ao, a destrui<;ao e articulada - colocada e/ou retirada - pela potencia do agir constitutivo e por sua qualidade, por seu grau de perfei­\ao, a mente fica completamente absorvida no processo - gradual, cons­titutivo, sistematico - do ser. A redu<;ao do horizonte ontologico a ima­nencia e de tal maneira radical que ja nao representa nem mesmo urn resul­tado da busca, mas sim uma condi\ao desta: condi\ao previa para a defi­ni<;ao do projeto de libera<;ao. A dimensao teol6gica cede a ontol6gica, 0

sentido do limite - que tradicionalmente e excluido da ideia de divinda­de - e atribuido ao horizonte da divindade, 0 sentido da tendencia _ negado ao real pela filosofia do s<culo XVII - e identificado na ontologia.

A Etica se conclui assim com duas Proposi\oes que sao uma pura e simples apologia do materialismo e do dinamismo constitutivo do pensamen­to spinozista. A primeira e urn paradoxo ateu: "Ainda que nao sou besse­mos que nossa Mente e eterna, dariamos entretanto 0 primeiro lugar a Mora­lidade e a Religiao e, falando de maneira absoluta, a tudo aquilo que, na quarta parte, mostramos que se refere a for~a de alma e a Generosidade. "138

A segunda e urn apologo materialista: "A beatitude nao e urn pre­mio da virtude, mas a propria virtude; e nao obtemos esse gozo porque reprimimos nossos apetites sensuais (libidines); mas, ao contrario, e por­que 0 obtemos que podemos reprimi-Ios" .139 A redu~ao da potencia divi­na ao horizonte da libera~ao humana, ao jogo de seus limites, esta corn­pleta agora. 0 perene movimento que constitui a vida humana mostra a etica como perene movimento do limite e da tensao das "libidines", das "cupiditates" e da "virtus". A virtude e amor intelectual enquanto for exibi<;ao absoluta desse movimento. 0 arnor intelectual e a resultante de urn processo constitutivo da realidade. Na medida em que Deus e a coisa, Deus se torna, na a<;ao, em sua determinidade. A teologia e subsumida pela ontologia, a ontologia pela fenomenologia da pratica constitutiva humana.

A Etica se conclui com uma solu~ao deterrninada e radical dos dois pares alternativos que seu desenvolvimento havia produzido: os pares li­mite-absolutez e dado-tendencia - 0 que equivale a dizer as articulaC;6es do paradoxo metaffsico modo-substancia, ja fixado no livro II - sao re­solvidos dentro de urna ontologia constitutiva cujo fundamento materia­lista e pratico e radical. Os componentes geneticos do pensamento spino-

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zista se resolveram e se sublimaram numa nova perspectiva, numa nova funda<;ao, totalmente irredutivel aos elementos geneticos. 0 que resta ainda, depois dos livros III, IV e V da Etica, do ens realissimum escolastico? A ontologia spinozista e aqui a ontologia da tendencia sustentada peIo mo­vimento do ser pra.tico. 0 que resta ainda da utopia renascentista da nova ordem do mundo? A ontologia constitutiva de Spinoza nao visa a ordem, ao contnirio, destroi e dispensa qualquer ideia de ordenamento que nao seja imediatamente expressao de urn potencial do ser determinado. E o que resta da ideologia panteista da necessidade e da emana,ao? Todo horizonte que nao seja 0 do dado, 0 do mundo, e eliminado pela ontologia spinozista, e assim qualquer "via descendente", do absoluto para 0 real, e assim qualquer concep<;ao da necessidade que se coloque como dualista, alternativa, ou simplesmente represente urn esquema formal, em reIa<;ao it necessidade efetiva do ato de liberdade. A teoria do conhecimento se articula com essa especifica teoria do ato de liberdade. Esta tambem ma­terialista e genealogica, desenvolvida como simultaneidade do processo ontologico constitutivo. 0 limite que se opoe a tendencia, tanto na teo ria do conhecimento quanta na teoria da liberdade, nao e entao algo de exte­rior ao ritmo do ser constitutivo, mas simplesmente a marca determinada da potencia atual do processo constitutivo. Toda questao metafisica colo­cada fora desse territorio da pnitica constitutiva, inteIectual e pnitica, re­mete a supersti<;ao, a ideia de Deus como" asylum ignorantiae".

A iinica verdade que Spinoza aproveita de seu tempo e mantem em sua pureza e essa instancia de reconstru<;ao revoluciomiria do mundo. Ele a mantem intacta. Mantem-na potente. E mesmo essa pulsao revolucio­naria e levada contra a forma especifica assumida no seculo XVII peIa ideo­logia burguesa do desenvolvimento: contra a forma da nova ordem e da ascese. 0 reaparecimento, efemero, de uma pratica ascetica na etica spino­zista e, de todas as rnaneiras, urn elemento ontologico. Sua extin<;ao e a mais clara revela<;ao da determinidade antiburguesa (e anticapitalista) do pensamento spinozista. Ascese, no pensamento da burguesia capitalista, e ordern: e ordem na medida da acumula<;ao. Pratica constitutiva, no pen­samento spinozista, e subordina<;ao do limite a acumula<;ao, a constitui­<;ao. 0 limite fica dentro da pratica constitutiva: por isto ela e aberta. 0 limite nao a condiciona, nao e transcendente a ela, nao tern urn espa<;o exterior no qual se assente - 0 limite e medida essencial da rela<;ao com o existente, la onde a existencia so reconhece a essencia como potencia, como tensao de supera<;ao. A ideia de limite e ontologicamente consubs­tancial a de supera<;ao. A ideia de ordem, ou sua abstra<;ao normativa, seu formalismo, a ideia de negatividade que interioriza, nao e sequer concebi­vel em Spinoza. Nao ha ordem, mas libera<;ao. Libera<;ao como continua conquista, constru<;ao de ser. Nenhuma utopia, nenhuma pulsao idealista.

234 Antonio Negri

Apenas quando conexa, simultanea ao corpo, a mente pensa, nao em pa­ralelo, mas simultaneamente. A ordem e uma ideia que preve 0 paralelismo formal com a realidade: a forma corresponde it realidade. Nao h:i lugar para ordem em Spinoza porque nao ha lugar para 0 paralelismo, porgue nao ha lugar para qualquer desvio e, ainda mais, qualquer "corresponden­cia" entre a realidade e 0 pensamento. A salva<;ao e urn ideal razoavel, nao porque indica urn horizonte superior, mas porque carrega 0 homem intei­ro na libera,ao, como ator da libera,ao. A teologia desaparece. As deter­mina<;oes mistificadas produzidas por ela sao desmistificadas e incluidas na materialidade do projeto constitutivo, do projeto de libera<;ao, que e projeto de salva<;ao enraizado na auto-suficiencia do ser, fora de qualguer hipotese da ordem. No seculo XVII a ideia de ordem interioriza e exprime a ideia de crise: a etica spinozista rompe tam bern esse vinculo. A crise so e predicado da essencia, so reside ou se deposita na essencia, enquanto e sinal daquele limite que 0 ser existente, de maneira cada vez rna is pesada e ma­terial, rompe no sentido construtivo. A negatividade nao e urn objeto, mas urn nada. A crise nao e imputavel ao sujeito, mas a seu vazio, a sua ausen­cia. 0 projeto ontologico se ergue contra a crise enquanto, antes de mais nada, quer elimina-la como realidade ontologica, em outros termos, toma­a como causa externa contra a qual ele luta. Coloca-se uma etica da luta dentro da etica constitutiva na mesma medida em que a ideia formal, a or­dem, sua transcendencia normativa sao eliminadas pelo horizonte da pos­sibil ida de real. A desutopia spinozista e de tal maneira profunda que nega toda possibilidade, qualquer que seja, da hip6stase. Nao e uma resistencia a crise, e uma luta contra 0 nao ser, contra a potencia destrutiva e 0 vazio da ontologia. Ordem e uma perifrase de crise, crise e perifrase de vazio. Mas a iconografia renascentista, que vive de perifrases e simbolos, e a barro­ca, que exacerba a fun<;:ao deles, ja nao tern mais em Spinoza nenhuma razao para existir. 0 mundo e verdadeiro porque e superficie e porque e dado. E constitui<;ao ontologica, material. A iconografia, 0 simbolismo, a cor tam­bern sao apenas projeto: nao podemos toma-los por uma descri<;ao do real.

Mas ate agora s6 consideramos as dimensoes ontologicas colocadas pela Etica numa acep<;:ao particular. 0 terreno do ser e ate aqui apenas urn espa<;o. Gostariamos, deveriamos enfrentar essa tematica tam bern na di­mensao do tempo. Spinoza, por enquanto, nao nos ajuda muito. A anali­tica do tempo, no Spinoza da Etica, esta enraizada no paradoxo presen­<;a-eternidade e nao e articulada na mesma medida que a tematica do es­pa<;:o ontologico. E verdade que seria possivel, na reconstru<;ao de uma analitica do tempo, fazer urn movimento analogico ao da analitica do es­pa<;:o. Isso nos daria uma concep<;:ao do tempo como supremo ponto limi­te do problema da liberdade. E quem sabe se tal interpreta<;ao seria ina de­quada ao real desenvolvimento do pensamento spinozista! Mas seria ge-

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neriCa. Alem do mais, Spinoza nao gosta de analogia. A tematica do tem­po real e entao explicitamente levada em conta pela critica. Mas 0 tempo subverte a metafisica. A metafisica do tempo e a destrui~ao da metafisica. Uma ontologia do tempo faz baixar 0 objeto da analise do horizonte da especula~ao ao da pd.tica. A pratica construtiva, vista no horizonte do tempo, esta entao por construir - se for possivel faze-Io. Em sua especi­ficidade, em suas articula~5es, na dramaticidade colocada a esse ponto pela rela~ao limite-tendencia. Uma filosofia do porvir? A necessidade hist6rica da desutopia spinozista parece dar resposta positiva a esta interroga~ao.

NOTAS

1 Etica III, Prefacio (G., II, p. 138; P., p. 412). 2 Sobre este ponto, cf. principalmente S. ZAC, L'idee de vie ... , pp. 104-120. 3 G. DELEUZE, op. cit, p. 182. 4 Ibid, p. 191. 5 Etica III, Defini~ao geral dos afetos (G., II, p. 203; P.,p. 465). 6 Etica III, Defini~ao geral dos afetos, Explicatio (G, II, p. 204; P, pp. 485-486).

Cf, neste texto, a remissao explfcita as Proposi(foes XI e XIII do livro II: d. supra, cap, II, segunda parte.

7 Cabe acentuar aqui a diferen~a que separa nossa abordagem da de A. MA­THERON, Individu et communaute chez Spinoza, apesar dos noraveis resultados a que ele chega por outro lado (veremos mais adiante). 0 que me parece criticavel em Matheron e essencialmente seu metodo, sua tendencia a introduzir na analise do pensamento de Spinoza esquemas dialeticos, ou paradialeticos, pouco importa a palavra, caracteristi­cos, em todo caso, do marxismo existencialista dos anos 60. D esquema de Matheron e ode um dinamismo movido por urn processo de aliena(fao-recomposi(fao. Isso e justa­mente 0 que e excluido pela perspectiva spinozista, que e a de uma continuidade cons­trutiva. Hi uma incompatibilidade fundamental entre metodo dialetico e metodo axio­matico, que nao deve ser minimizada, como Matheron tern excessiva tendencia a fazer. Em sua obra posterior, Le Christ et Ie salut des ignorants, varias vezes evocada, a abor­dagem de Matheron e diferente, e bem mais madura.

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8 Etica III, Postulados I e II (G., II, pp. 139-140; P., pp. 413-414). 9 Etica III, Defini~oes I e II (G., II, p. 139; P., p. 413). 10 Etica III, Defini,ao III (G., II, p. 139; P., p. 413). 11 P.tica III, Proposi~ao V (G., II. p. 145; P., p. 420). 12 Etica III, Proposi,ao VI (G., II, p. 146; P., p. 421). 13 Etica III, Proposi~ao VII (G., II, p. 146; P., p. 421). 14 Etica III, Proposi,ao VIII (G., II, p. 147; P., p. 421). 15 Etica Ill, Proposi~ao IX (G., II, p. 147: P., p. 422). 16 "Etica III, Proposi(fao IX, Escolio (G., II, pp. 147-148; P., pp. 422-423). 17 Cf. principalmente G. DELEUZE, op. cit, pp. 197-213). 18 Etica III, Proposi(fao XI (G., II, p. 148; P., p. 423). 19 P.tica III, Proposi~ao XI, Escolio (G., II, pp. 148-149; P., pp. 423-424). 20 Etica III, Proposi,ao XII (G., II, p. 150; P., p. 425).

Antonio Negri

21 Etica III, Proposi,ao XIII (G., II, p. 150; P., p. 425). 22 Etica III, Proposi,ao XI, Esc61io (G., II, p. 149; P., p. 424). 23 Etica III, Proposi~ao XIII, Escolio (G., II, p. 151; P., p. 426). 24 Matheron, op. cit, em particular na segunda parte, p. 82 sq, mostra de maneira

excelente a dimensao social da teoria das paixoes em Spinoza. Ele considera 0 desenro­lar do pensamento spinozista, sobretudo no livro III, como urn desenrolar sistematica­mente duplicado: desenrolar da vida passional individual por urn lado, desenrolar da vida passional inter-humana de outro. Tudo isso e extremamente importante. Mas Matheron torna sua argumenta(fao singularmente confusa, e urn tanto inverossimil, ao insistir no faro de que 0 esquema dos livros III e IV da Etica nao seria mais do que uma "varia(fao livre sobre 0 tema da arvore sefirotica dos cabalistas". Conclusao inteiramente fantasista.

25 E preciso insistir nisso: trata-se de normatividade no sentido proprio do ter­mo, e nao de proposta ou conselho. Falou~se muito, com efeito, numa tendencia "tera­peutica" da Et£ca, vinculada enta~ ao horizonte do pensamento do Renascimento tar­dio. Deve ficar claro que tudo isso me parece perfeitamente insustentavel, quer se vin­cule essa dimensao terapeutica aos autores do Renascimento tardio e aos est6icos, quer se vincule a Descartes e a linha tra~ada por sua ciencia das paixoes. Em particular, nao existe 0 minimo tra~o de individualismo em Spinoza.

26 Sobre os vinculos entre interpreta~6es kantiana e hegeliana de Spinoza, ver li-vro de Macherey.

27 Etica III, Proposi~ao XVI (G., II, pp. 152-153; P., p. 428). 28 Etica III, Proposi~ao XV (G., II, p. 151; P., p. 427). 29 P.tica III, Proposi~ao XVII, Escolio (G., II, p. 153; P., o. 429). 30 P.tica III, Proposi(fao XVIII, Escolio (G., II, p. 155; P., pp. 430-431). 31 Etica III, Proposi~ao XXVI, Esc6lio (G., II, p. 159; P., p. 435). 32 E de se destacar aqui, en passant, para voltar a esse ponto mais adiante, que a

atitude spinozista nao pode em caso algum ser reduzida a uma atitude "utilitarista". A dimensao individual do utilitarismo eSta totalmente ausente do pensamento de Spinoza, inclusive onde ele mais insiste no nivel individual e inter·individual. Se fizermos questao de falar de utilitarismo, podemos no maximo evocar a ideia de "moral da simpatia", mas em seus aspectos fenomenol6gicos bem mais que racionalistas. Seria certamente interes­sante retomar aqui as analogias entre certas posi~oes de Spinoza e certas posi~oes de David Hume, que Vaughan ja procurava ressaltar, e sobre as quais voltaram todos os que insis­tiram nas rela~5es entre Spinoza e 0 deismo ingles (0 melhor estudo e 0 de F. Meli).

33 Etica III, Proposi,ao XXIX (G., II, p. 162; P., pp. 438-439). 34 As indica(foes de leitura de A. Matheron, evocadas com freqiiencia neste livco,

sao fundamentais aqui. 35 Polemizando com Macpherson, Matheron insiste no fato de que, em muitos

aspectos, a percep.;ao spinozista do mundo politico teria como horizonte a sociedade medieval (cf. em particular, op. cit, pp. 221-222). As referencias aqui feitas por Spino­za as virtudes de Ambi~ao e de Humanidade parecem evidentemente dar razao a Mathe­ron. Mas entao se colocam varios problemas, que com um tratamento correto pode­riam nos levar a conclus6es opostas. Particularmente: essa referencia, esses exemplos, estao eles realmente determinados em Spinoza? Nao me parece: sao bastante ocasionais - isso e tao verdade que nao tornaremos a encontra-los muitas vezes. Dutra pergunta: sera que essa retomada da moral cavalheiresca em pleno seculo XVII nao e uma sim­ples cobertura - e bastante grosseira - para falar da nova moral burguesa? Para uma resposta afirmativa, permito-me remeter a meu Descartes politico, no qual discuto a abun· dante bibliografia a esse respeito.

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36 Etica III, ProposifJao XXX, Esc6lio (G., II, p. 163-164; P., p. 440). 37 Etica III, ProposifJao XXXV, Esc6lio (G., II, p. 167; P., p. 444). 38 Etica III, ProposifJao XXXVII (G., II, p. 168; P., p. 445). 39 Etica III, ProposifJao XXXIX (G., II, p. 170; P., pp. 447-448). 40 Etica III, Proposi,ao XLIII (G., II, p. 173; P., p. 451). 41 Etica III, Proposi,ao XLVII (G., II, p. 175; P., p. 453). 42 Etica III, ProposifJao XLIX (G., II, p. 177; P., p. 455). 43 Etica III, Proposi~ao XLVII, Esc6lio (G., II, p. 176; P., p. 454). 44 Etica III, Proposi,ao XLVI (G., II, p. 175, P., p. 453). 45 Etica III, Proposi,ao UII (G., II, p. 181; P., p. 459). 46 Etica III, Proposir;ao LIV (G., II, p. 182: P., p. 460). 47 Etica III, Proposir;ao LIV, Demonstrar;ao (G., II, p. 182; P., p. 460). 48 Etica III, Proposir;ao LVI (G., II, p. 184; P., p. 463). 49 Etica III, Proposi,ao LVII (G., II, p. 186; P., p. 465). 50 Etica III, Proposi,ao LVIII (G., II, p. 187; P., p. 466). 51 Etica III, Definir;ao dos afetos, I (G., II, p. 190; P., p. 469). 52 E preciso entretanto reconhecer que as mais recentes das interpreta~6es de conjunto

do pensamento de Spinoza - a mais importante das quais me parece ser com toda certeza a de Gueroult - estao come~ando a se afastar desse caminho tradicional de leitura. Mes­mo se a interpreta~ao de Gueroult muitas vezes e extremamente literal e pouco preocupa­da em por explicitamente em questao as grandes linhas seguidas pelos historiadores da filo­sofia. Poderiamos dizer a mesma coisa das leituras que se inspiram na pesquisa de Wolfson.

53 Etica III, Defini,ao dos aletos, I-XLVIII (G., II, pp. 190-202; P., pp. 469-485). 54 Etica IV, Prelacio (G., II, p. 208; P., 489). 55 Etica IV, Prefacio (G., II, p. 208; P., p. 489). 56 Etica IV, Prefacio (G., II, p. 209; P., p. 490). 57 Cf. supra, cap. III, segunda parte. 58 Etica IV, Defini,ao III (G., II, p. 209; P., p. 490). 59 Etica IV, Delini,ao IV (G., II, p. 209; P., p. 490). 60 £tica IV, Defini~ao VIII (G., II, p. 210; P., p. 491). 61 £tica IV, Axioma (G., II, p. 210; P., pp. 491-492). 62 Etica IV, Apendice (G., II, p. 266; P., p. 553). 63 Cf., a este respeito, as Proposi~6es I e II do livro IV da Etica (G., II, pp. 211-

212; P., pp. 492-493). 64 £tica IV, Proposi~ao IV (G., II, p. 212; P., p. 494). 65 Etica IV, Proposi~ao V (G., II, p. 214; P., p. 495). 66 Etica IV, Proposi,ao XI (G., II, p. 217; P., p. 499). 67 Etica IV, Proposi~ao XV (G., II, p. 220; P., p. 502). 68 Etica IV, Proposi,ao XVIII (G., II, p. 221; P., p. 503). 69 £tica IV, ProposifJao XX (G., II, p. 224; P., p. 506). 70 £tica IV, Proposi~ao XXII (G., II, p. 225; P., p. 508). 71 Etica IV, Proposi~ao XXIV, (G., II, p. 226; P., p. 509). 72 Etica IV, Proposi,ao XXVI (G., II, p. 227; P., p. 509). 73 Etica IV, Proposi~ao XXVIII (G., II, p. 228; P., p. 511). 74 A este respeito, ver essencialmente G. DELEUZE, op. cit., pp. 217-281. 75 G. DELEUZE, op. cit., p. 268 sq., sobre a rela~ao entre genealogia das formas

de conhecimento e genealogia das formas de sociedade. 76 E necessario tocnar a acentuar 0 fato de que a posi~ao de Matheron e inaceita­

vel. Ele tam bern acentua, e as vezes com muitissima finura, a relar;ao entre formas so-

238 Antonio Negri

dais e formas do conhecimento, mas tenta interpretar a genealogia delas par meio de uma leitura de tipo "dialetico negativo".

77 Etica IV, ProposifJao XXIX (G., II, p. 128; P., p. 511). 78 Etica IV, Proposi,ao XXXI (G., II, p. 229; P., p. 512). 79 Etica IV, Proposi~ao XXXI, Corolario; d. tambem Proposi~ao XVIII, Esc6lio

(G., II, p. 230 e 222-223; P., p. 513 e 504-506). 80 Etica IV, Proposic;ao XXXII (G., II, p. 230; P., p. 513). 8I CI.Etica IV, Proposi,ao XXXIII (G., II, p. 231; P., p. 514). 82 CI. Etica IV, Proposi,ao XXXIV (G., II, p. 231; P., p. 514). 83 Etica IV, Proposir;ao XXXV (G., II, p. 232; P., p. 516). 84 Etica IV, Proposic;ao XXXV, Corolario I (G., II, p. 233; P., p. 517). 85 Etica IV, Proposi,ao XXXVII (G., II, p. 235, P., p. 519). 86 Etica IV, Proposi,ao XXXVII, Esc6lio II (G., II, pp. 238-239; P., p. 523). 87 Etica IV, Proposir;ao XXXVII, Esc6lio II (G., II, p. 238; P., p. 522). 88 Ibid. (G., II, p. 239; P., p. 523).

89 Etica IV, Proposir;ao XL. Cf. tambem Proposir;ao XLV, Corolario (G., II, p. 241 e 244; P., p. 529 e 530).

90 A tematica do Estado volta varias vezes no fim do livro IV da Etica: ver parti­cularmente Esc61io da Proposir;ao LIV, Esc6lio da Proposir;ao LVIII, Esc6lio da Propo­sir;ao LXX, Esc6lio da Proposir;ao LXXII, Esc6lio da Proposir;ao LXXIII. Voltaremos ao conjunto desses textos no capitulo seguinte.

91 Etica IV, Proposi,ao XXXVIII (G., II, p. 239; P., p. 523). 92 Etica IV, Proposir;ao XLV, Esc6lio do Corolario II (G., II, pp. 244-245; P., pp.

529-530). 93 Etica IV, Proposir;ao XLVI (G., II, p. 245; P., p. 530). 94 £tica IV, Proposir;6es LIII, LIV, etc. 95 Etica IV, Proposi,ao UX (G., II, p. 254; P., p. 540). 96 Etica IV, Proposi,ao LXI (G., II, p. 256; P., p. 542). 97 Etica IV, Proposir;ao LXI, Demonstrar;ao (G., II, p. 256; P., pp. 542-543). 98 Etica IV, Proposir;ao LXIII, Corolario (G., II, p. 258; P., p. 545). 99 Etica IV, Proposir;ao LXVII (G., II, p. 261; P., p. 547). 100 Etica IV, Capitulo XXXII (G., II, p. 276; P., p. 562). 101 Etica V, Prelacio (G., II, p. 277; P., pp. 562-563). 102 Etica V, Prefacio (G., II, p. 279; P., p. 564). 103 Sabre 0 reaparecimento da tematica do atributo no livro V da Etica (e trata-se

do sinal mais claro de urn ressurgimento de elementos da primeira redar;ao), d. infra, cap. VIII, onde examinamos a critica do atributo em referencia a Correspondencia. Ver esse capitulo, de modo geral, para uma analise dos elementos residuais que, no livro V, le­vam-nos a "primeira funda~ao". Em seu Servitude et liberte selon Spinoza, cit., F. ALQUIE, percebendo esse problema, insiste longamente no que ele chama 0 paradoxo do livro V da Etica. Insiste no fato de que urn novo horizonte e aberto pelo livro V, urn horizonte de liberdade absoluta: mas a abertura, nesses termos, desse novo horizonte, seria contra­dit6ria justamente com a atitude naturalista e determinista da definir;ao do valor nos outros livros. Essa reabertura do horizonte da liberdade, essa postuiac;ao de uma potencia me­tafisica absoluta do amor intelectual constituem aos olhos de Alquie uma retomada do horizonte cartesiano. E claro que rejeitamos essa posi~o de Alquie, assim como toda a sua reconstrur;ao anterior, baseada na tese "a etica contra a moral"! Isto posto, a amilise de Alquie consegue fazer ressaltar a fortissima diferenr;a que afeta a vocabulario etico no livro V: mas, contrariamente ao que pensa Alquie, nao se trata ai da solur;ao feliz (e, por

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assim dizer, obrigatoria) de um drama ate entao irresolvido, e logicamente insohivel, vivido pela metafisica de $pinoza. Trata~se do reaparecimento de uma camada problematica que se opoe a conclusao de um longo processo de constitui<;ao de uma perspectiva ontologi­ca radical. A metafisica de Spinoza nao e feita de um emaranhado inextricavel de ideias, sem solw:;ao possivel; se e verdade que ha nela uma realidade emaranhada, como em toda metafisica, a linha que vence, inclusive em rela<;ao a utopia da primeira funda~ao (que parcialmente volta a aparecer no livro), se nao corta 0 no, nem por isso deixa de puxar as fios de um discurso constitutivo. 0 que nao impede que 0 livro V seja a mais contra­

ditorio da Etica: isso foi muito bem vista por Alquie. 104 Etica V, Axiomas I e II (G., III, p. 281; P., p. 565). 105 Etica V, ProposiCfao VIII (G., II, p. 286; P., p. 571). 106 Etica V, Pcoposi,ao V (G., II, p. 284; P., p. 569). 107 Etica V, Proposi'fao VI (G., II, p. 284; P., p. 569). 108 Etica V. Proposi<;ao X, Escolio (G., II, p. 289; P., p. 574). 109 Etica V, Proposi~ao XIV (G., II, p. 290; P., p. 575). 110 Etica V, Proposic;ao XV (G., II, p. 290; P., 576). III Etica V, Pcoposi,oes XVI, XVII, XVllIe XIX (G., D,pp. 290-292; P.,pp. 576-577). 112 Etica V, Proposic;ao XX, Esc61io (G., II, pp. 292-294; P., pp. 578-580). 113 Etica V, Proposic;ao XXI, Demonstrac;ao (G., II, p. 294-295; P., p. 581). 114 Etica V, Proposi,ao XXIV (G., II, p. 296; P., p. 582). 115 Etica V, Pcoposi,ao XXII (G., II, p. 295; P., p. 581). 116 Etica V, Pcoposi,ao XXIII (G., II, p. 295; P., p. 581). 117 Etica V, Proposic;ao XX (G., II, p. 292; P., p. 578). 118 Etica V, Proposi,ao XXV (G., II, p. 296; P., p. 583). 119 Etica V, Proposic;ao XXVI (G., II, p. 297; P., p. 583). 120 Etica V, Proposi,ao XXVII (G., II, p. 197; P., p. 583). 121 Sobre as dificuldades e os problemas da sintese gnoseologica, sobre a proble­

matica relativa a continuidade entre os graus de conhecimento, ver, alem do famoso artigo de MARTINETTI na Rivista de filosofia, 1916, F. MELI, Spinoza e due antecedenti

italiani della spinozismo, Floren~a, 1934, cap. IV. 122 Etica V, Proposi,ao XXVIII (G., II, p. 297; P., p. 584). 123 Etica V, Pcoposi,ao XXIX (G., II, p. 298; P., p. 584). 124 Etica V, Proposi<;ao XXX (G., II, p. 299; P., p. 585). 125 Etica V, Pcoposi,ao XXXI (G., II, p. 299, P., p. 585). 126 Etica V, Proposi<;ao XXXI, Escolio (G., II, p. 300; P., pp. 586-587). 127 Como ja destacamos varias vezes, A. MATHERON, Le Christ et Ie salut ... , pro~

poe desse ponto uma analise muito elaborada, insistindo sobretudo na perspectiva religiosa. 128 Etica V, Proposi,ao XXXII (G., II, p. 300; P., p. 587). 129 Etica V, Proposi,ao XXXIII (G., II, p. 300; P., p. 587).

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130 Etica V, Proposi,ao XXXIII Escolio (G., II, p. 301; P., pp. 587-588). 131 Etica V, Proposic;ao XXXIV, Demonstrac;ao (G., II, p. 301; P., p. 588). 132 Etica V, Proposi<;ao XXXV (G., II, p. 302; P., p. 588). 133 Etica V, Proposi,ao XXXVI (G., II, p. 302; P., p. 589). 134 Etica V, Proposi,ao XXXVII (G., II, p. 303; P., p. 590). 135 Etica V, Proposic;ao XXXVIII (G., II, p. 304; P., p. 591). 136 Etica V, Proposi~ao XXXIX (G., II, p. 304; P., p. 592). 137 Etica V, Proposi,ao XL (G., II, p. 306; P., p. 593). 138 Etica V, Proposic;ao XLI (G., II, p, 306; P., p. 594). 139 Etica V, Proposi,ao XLII (G., II, p. 308; P., p. 595).

Antonio Negri

Capitulo VIII A CONSTITUIGAO DO REAL

1. "EXPERIENTIA SIVE PRAXIS"

Como verificar a possibilidade real de uma pratica constitutiva? Os adversarios de Spinoza - tanto na frente protestante quanto na cat6lica 1

- sustentam que 0 problema polItico e central em Spinoza, e substitui 0

religioso. E claro esta que fazem um julgamento negativo dessa inversao. "Vos referis todas as coisas a seguran~a publica, ou melhor, aquilo que, para ves, e 0 fim da seguran~a publica ... 0 que equivale a reduzir todo 0

bem do homem a bondade do governo civil, ou seja, ao bem-estar mate­rial.,,2 No decorrer de uma cerrada discussao que assume, talvez, pela pri­meira vez dentro dessa correspondencia, tons de polemica, ate 0 born Ol­denburg acaba sustentando essa posi~ao. Finalmente recebi 0 Tratado teo-16gico-politico, comunica ele a Spinoza em 1675, e vos escrevi. "Receio que minha carta nao vos tenha chegado. Nela expressava minha opiniao sobre esse tratado; mas agora, tendo examinado e considerado a coisa mais de perto, acho-a precipitada. Parecia-me entao que fosse algo nocivo para a religiao, pois julgava-a segundo os principios geralmente fornecidos pe­los teologos e pelas formulas confessionais habituais, as quais me parecem demasiadamente influenciadas pelas paixoes partidarias. Mas, refletindo mais profundamente sobre toda a questao, conven~o-me por varias razoes que, longe de prejudicar a verdadeira razao e a solida filosofia, y~s, ao contrario, contribuis para enfatizar 0 verdadeiro fim da religiao crista e para consolidar a divina sublimidade e a excelencia da fecunda filosofia.,,3 Perplexidade forte e imediata, portanto, e ainda confirmada por uma nova carta, na qual Oldenburg escreve:"Tendo sabido que pretendeis publicar vosso tratado em cinco partes, que me seja permitido aconselhar-vos, com a sinceridade da estima que tenho por ves, a nao misturar nela nada que pare~a, de qualquer modo que seja, atacar a prarica da vida religiosa, prin­cipalmente porque esta epoca degenerada e corrupta vive avidamente a ca~a de tais doutrinas cujas conclusoes parecem favorecer a expansao do vieio.,,4 Par que esse grande apoio de Spinoza, esse laudator da liberdade de pen­samento teria se tornado tao prudente, se nao tivesse sido atingido pela for\=a radical da critica spinozista? Nao muito tempo depois, ele mostra seu ponto de vista: "Nao posso deixar de aprovar vossa inten~ao de ex­plicar e aplainar as dificuldades encontradas pelos leitores do Tratado teo­logico-politico. E como tais avalio sobretudo as no~oes ambfguas que ele

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contem relativamente a Deus e a natureza, que muitos consideram que confundis. Ah~m disso, muitos sao de opiniao de que destruls a autorida­de e a valor dos milagres, quando quase todos os cristaos estao persuadi­dos de que s6 aqueles podem garantir a certeza da revela~ao divina. Di­zem, finalmente, que escondeis vossa opiniao a respeito de Jesus Cristo redentor do mundo e unica media~ao dos homens, alem de sua encarnac;ao e sacrificio, e pedem que declareis abertamente vossa ideia sobre estes tres pontos. Se 0 fizerdes e com isto tiverdes a aprovac;ao dos cristaos sinceros e razoaveis, penso que estareis em seguran~a",5 Mais adiante, aprofunda ainda: "Esperaveis, como vejo, que eu vas expusesse as opinioes que, em vossos escritos, parecem aos leitores subverter a pratica da vida religiosa. Dir-vos-ei 0 que os choca mais. Vos pareceis submeter todas as ac;oes e todas as coisas a uma necessidade fatal, a qual, se afirmada e admitida, faz ruir a base de todas as leis, de todas as virtudes e religioes, torna inutil todo premio e toda puni~ao, Tudo 0 que constrange ou obriga a uma necessi­dade e compreendido por eles como uma desculpa, e dai concluem que nin­guem ficaria sem desculpa diante de Deus. Se estamos conduzidos pelo des­tino e tudo segue a trama inelutavel predeterminada por uma mao de fer­ro, nao veern como ainda possa haver lugar para 0 delito e a pena".6 A subversao da religiao e subversao da politica, porque a politica se baseia na justic;a, nO premio e na pena: Spinoza, ao constituir a justi~a, a destroi, ao construir 0 mundo, destroi a possibilidade de domina-Io.

A resposta spinozista nao se faz esperar e e perfeitamente adequada as acusa\=oes que the sao feitas. Depois de alguns momentos de tergiversa­\=ao (Spinoza finge polemizar contra 0 materialismo vulgar, como se fosse esse 0 problema!7), ele reivindica totalmente a pratica constitutiva. Sua determina~ao politica e igualmente radical e subversiva. E verdade a acusa­\=ao que me fazem: 0 politico e central e fundador, em rela~ao a religiao _ mas positivamente. A velha e oportunista antropologia religiosa do libertinismo e vencida e tambem, provavelmente, suas deriva\=oes deistas8

o velho "bene vixit qui bene latuit" e varrido pela inversao spinozista da pratica. "Compreendo finalmente 0 que me pedieis para nao divulgar; mas como se trata exatamente do fundamento principal do tratado que pre­tendia publicar, desejo explicar aqui em poucas palavras em que sentido afirmo uma necessidade fatal de todas as coisas e todas as a\=oes. Pois nao subordino de modo algum Deus ao destino, mas penso que tudo procede com inevitavel necessidade da natureza de Deus, do mesmo todo que to­dos admitem que provenha da natureza de Deus que Deus conhe\=a a si mesmo; pois ninguem nega que isto procede necessariamente da natureza divina, e no entanto ninguem pensa que Deus conhe~a a si mesmo porque a isso e obrigado por algum destino, mas de mane ira inteiramente livre, se bern que necessaria. Alem do mais, essa necessidade inevitavel das coi-

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sa nao destr6i nem os direitos de Deus nem os direitos do homern. Com efeito, as rnesmas san\=oes morais, quer recebam quer nao da parte de Deus a forma de lei au de direito, sao do mesmo modo divinas e salutares; e 0

bern que decorrer da virtude e do arnor de Deus nao sera nem mais nem menos desejavel, quer 0 recebamos de Deus, concebido como juiz, quer emane da necessidade da natureza divina; assim como os males que deri­Yam das mas a~oes e das paixoes nao sao menos temiveis pelo fato de que delas derivam necessariamente; enfim, quer fa~amos por necessidade quer por contingencia 0 que fazemos, somos sempre conduzidos pela esperan­,a ou pelo temor. Par nenhum outro motivo, entao, os homens sao res­ponsaveis perante Deus, senao porque estao em seu poder, assim como 0

barro em poder do oleiro, 0 qual utiliza a mesma materia para fazer vasos ora decorativos ora triviais. Se refletirdes urn pouco sobre estas coisas, tenho certeza de que tereis como responder facilmente a todas as obje~oes que se costumam fazer a esta opiniao, como muitos ja experimentaram comi­go.,,9 0 mundo e barro nas maos do oleiro. No terreno metaflsico da su­perficie, a modalidade e construtiva. A ordem da constru\=ao e interna a constitui~ao, A necessidade e interna a liberdade. 0 politico e 0 tecido sobre o qual, de maneira central, se desenrola a atividade constitutiva do homem. Os frutos da Etica estao ainda mais maduros que os do Tratado teol6gi­co-politico: este tratado havia representado uma cesura critica que tinha de ser reformulada em urn novo projeto. Agora temos 0 resultado do es­fon;o: devemos desenvolve-Io. A possibilidade real de uma pratica cons­titutiva e 0 politico percorrido pela liberdade. A religiao nao funda 0 Es­tado, a verdadeira religiao respira onde hi liberdade1o.

Como percorrer 0 tecido do real, como constituir efetivamente 0 real? A defini,ao do terreno cede lugar a defini,ao do metodo. 0 Tratado teo-16gico-politico e a segunda reda\=ao da Etica nos conduziram ate 0 ponto no qual 0 Tratado politico - redigido entre 1675 e a morte de Spinoza em 77, e que permaneceu inacabadoll - aparece como urn produto ne­cessario12. Mas necessario nao significa linear. A constitui~ao e urn pro­cesso complexo. Liberamo-nos em primeiro lugar dos pontos de vista er­raneos sobre 0 politico, para podermos colher a vivencia da realidade. 0 primeiro capitulo do Tratado politico constitui a introdu~ao metodologica a constitui~ao do real, representada pela politica.

Acompanhemos essa polemica metodol6gica. No primeiro parcigra­foB, ela e dirigida contra a filosofia escoIastica: mas nao so - contra a filosofia em geral, contra a ciencia dos transcendentais, contra todos os que nao consideram as paixoes como a (mica realidade efetiva a partir da qual se fa~a uma analise do concreto. A politica nao e 0 reino do dever ser, mas e pratica teorica da natureza humana em sua efetividade. 0 Ma­quiavel do capitulo XV do Principe e quase parafraseado aqui 14. Mas nao

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so 0- grande secretario e envolvido aqui: esta envolvida toda a critica seis­centista da utopia, de Hobbes a Descartes, esta envolvido todo 0 espfrito do seculo. Que diferen~a, no entanto! Em Spinoza, a crise nao constitui urn horizonte, mas uma condi~ao, nao caracteriza 0 ser, mas so sua efeti­vidade. A hegemonia do ser sobre 0 dever ser 0 torna tanto efetivo quan­to dinamico e tendencial, isto e, capaz de compreender em si mesmo 0 de­senvolvimento, de se conhecer como causa eficiente. Os filosofos se per­dem na utopia, sonham com a idade de ouro: acumulam dana e inutilida­de. A segunda tendencia anaHtica e a representada pelos "polfticos"15. Estes procuram fundamentar sua ciencia na experiencia da natureza humana e assim fazendo se encontram principalmente em posi~ao contniria aos teo­logos e it sua pretensao de subordinar a politica a moral: mas fazem tudo isto mais por habilidade que por sabedoria. "E fora de duvida que os po­liticos escreveram sobre questoes politicas com fiuito maior Sllcesso que os filosofos, pois, baseando-se na experiencia, nao ensinaram nada que nao tivesse uma referencia pratica": mas a pratica nao e linear, nao e por si mesma emancipadora. A crise coloca 0 problema da pratica, bern mais do que simplesmente remete a ela. Os politicos sao a expressao mais aguda da crise, nao representam sua supera~ao. "E estou convencido de que a experiencia ja indicou todas as especies de organiza~ao poHtica que se possam conceber para uma convivencia humana organizada, assim como os meios que se devem adotar para governar a massa, ou seja, para conte­la dentro de certos limites: de modo que nao acredito que a esse respeito nos possa ocorrer no pensamento qualquer coisa comparavel com a expe­riencia ou com a pratica que ja nao tenha side descoberto e experimenta­do. Os homens sao feitos de tal modo que nao podem viver sem algum di­reito com urn; mas os direitos comuns e os negocios publicos foram, res­pectivamente, estabelecidos e ordenados por homens de grande agudeza, penetra,ao e habilidade de espirito, de modo que e diftcil crer que se pos­sa conceber algo de util a sociedade comum que a contingencia ou 0 aca­so ja nao tenham sugerido e que os homens atentos aos negocios publicos e a propria seguran~a ja nao tenham previsto."16 Os politicos entao ja disseram tudo: em rela~ao a oportunidade e ao acaso. Mas e exatamente este 0 elemento problematico: a rela~ao entre a prudencia dos politicos e governantes e a multitudo, como realidade viva que tern de ser contida dentro de determinados limites. Oportunidade e acaso sao os elementos formais da media~ao, vivem 0 terreno da imagina~ao: como se faz, por outro lado, a constitui~ao critica da media~ao? Como se constitui ela, re­cuperando 0 conteudo de liberdade que todo processo constitutivo cleve necessariarnente exprimir? "Experientia sive praxis": e 0 terreno cornum no qual se movern os politicos e Spinoza. Mas e tambern 0 terreno no qual a divisao se torna radical. Na minha politica, acrescenta com efeito Spi-

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noza!7, nao hi nada de novo, senao 0 fato de que 0 fundamento "com ar­gumentos certos e irrefutaveis", em cima da "conditio humanae naturae" , e que procuro "os prindpios que combinem perfeitamente com a pratica". Tudo isto com metodo matematico, considerando as paix6es humanas "como propriedades da natureza humana", propriedades necessarias, mes­rno quando sao danosas, do mesmo modo que todos os outros fenome­nos naturais, e, como estes, "efeitos de causas determinadas", "atraves das quais procuramos entender a natureza deles, e nosso espfrito te~ tanto prazer nessa contempla~ao rigorosa quanto na percep~ao do que e agra­davel aos sentidos". De maneira imperceptive!, porem inequivoca, a ex­periencia (ou ainda, a pratica humana) sofre uma discrimina~ao em nome de uma "condi~ao hurnana". Mas a propria multitudo e uma condi~ao hu­mana. A condi~ao e uma modalidade, e ser determinado. Mas 0 ser e di­namico e constitutivo. A condi~ao humana e portanto constitui~ao humana. A passagem da linguagem dos politicos a da verdadeira filosofia, como ciencia da experiencia e da pratica e nao simples descric;ao destas, e entao a passagem para a analise da necessidade da liberdade humana, dentro do ritmo progressivo e coletivo da constituic;ao.

Materialidade, coletividade, progressividade do processo real da cons­titui~ao sao explicitamente os objetos dos paragrafos seguintes a respeito do metodo. Como expliquei na Etica, recomec;a realmente Spinoza18, 0

homem e naturalmente sujeito as paixoes, entendendo-se por paix6es, es­sencialmente, a~ao vinculada e provocada pela "cupiditas". Nem a reli­giao tern alguma efid.cia contra 0 egofsmo e 0 comportamento de apro­priaC;ao. A religiao tern valor proximo da morte, quando as paix6es foram vencidas pela doen~a, ou entao na igreja, fora da rela~ao humana direta, mas nao tern valor como potencia de reparac;ao "no tribunal ou na corte, onde seria mais necessaria". De seu lado, a razao seria certamente capaz de dominar as paix6es, mas 0 caminho indicado por ela e 0 mais arduo. "De maneira que vive na poetica idade de ouro, ou seja, no mundo das fabulas, aquele que realmente acredita que toda uma massa (multitudo) ou os responsaveis pela coisa publica possam ser levados a viver unicamente segundo os ditames da razao." 0 fundamento do processo constitutivo so­cial insiste, entao, na materialidade dos desejos apropriativos. A polftica eo reino da imagina~ao material. Os proprios politicos, a propria prudencia deles, estao submetidos a isso, do mesmo que a multitudo. A lei constitutiva da associa~ao politica e absolutamente material, e irredutivel a moral e a razao - isto quando essas mesmas nao fazem parte do processo consti­tutivo. 0 processo e entao material e coletivo. Urn regime politico ("im­Zperium"), especifica Spinoza 19, nao pode se basear na virtude individual de seus administradores, nao pode se basear no projeto da individualida­de. Quem administra, nao importando a inten~ao que 0 anime - paixao

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ou razao -, tern de se ver posto em condic;6es de ser fiel, de administrar dignamente. "Libertas, seu fortitudo animi": esta mesma tam bern e uma virtude individual, neste caso, e portanto inadequada. Virtude privada: em compensaC;ao, s6 "imperii virtus securitas est". A pratica humana coleti­va, tornando-se politica, supera e compreende as virtu des individuais em urn processo constitutivo que se pretende geral. A dialetica entre multitudo dos cidadaos, dos suditos e prudencia dos administradores, dos politicos, que parecia constituir 0 problema, e realizada ao mesmo tempo que e ne­gada como formula dialetica: e novamente proposta como problema da dimensiio eoletiva da eonstitui~iio. A prudeneia noo e em si mesma urna virtude privada, ela s6 pode, aO contrario, viver e se desenvolver como elemento da constituiC;ao coletiva. 0 conceito de "seguranc;a" nao nega 0

de "liberdade". Spinoza poderia, como fara dentro de pouco, repetir 0

adagio do Tratado teologico-politico: "Finis revera Reipublicae libertas est." Se ele prefere aqui 0 conceito de seguranc;a, e para exprimir 0 cara­ter coletivo da liberdade civil. Vamos entaO conduir esta analise, tornan­do a prop~r a centralidade exclusiva da proposta constitutiva. ja que to­dos os homens, sejam barbaros ou desenvolvidos, se relacionam e dao origem a urn estado civil, a urn ordenamento politico, "a origem do Esta­do e seu fundarnento natural nao devern ser procurados entre os ensina­mentos da razao (ex rationi documentis), mas devem ser deduzidos da natureza ou condic;ao comum dos homens" .20

Assim se conclui 0 encaminhamento, insistindo na complexidade do processo constitutivo. Spinoza apenas se explicou. Colocou as condic;6es que a Etica, em sua segunda redac;ao, havia aprofundado de maneira de­cisiva. Ele agora vai procurar a sintese, a uniao indissociavel da liberdade e da necessidade, no terreno da constituic;ao real, que e 0 da materialidade e da dimensao coletiva da existencia politica. Mas e preciso estar atento. Aqui, diante da concretude do problema, as condic;6es metafisicas nao apenas se repetem: elas se esclarecem e se deslocam. 0 metodo nao se se­para da realidade que ele abra,a. A solu,iio dos pares eontraditorios do realismo politico: "prudentis"-"mu!titudo", "libertas"-"securitas", "condi­tio"-"constitutio,,21- essa soluC;ao se deve a urn avanc;o te6rico explici­to no desaparecimento da contradic;ao aparentemente fundamental entre liberdade e neeessidade. As aporias encontradas no livro V da Etica a esse respeito se dissolvem definitivamente. A "livre necessidade" nao e mais urn resultado, mas urn pressuposto. A liberdade, insiste Spinoza, aprofundando nesse periodo a discussao com Tschirnhaus22, nao consiste "no livre-ar­bitrio mas na livre necessidade" - em outras palavras, enta~, nao na ig­norancia das causas que a determinam, nao na "ficc;ao da liberdade", mas sim na consciencia de seu rnovimento. Neste ponto, a liberdade entao nao e mais urn resultado, mas tam bern nao s6 urn pressuposto formal: e urn

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sujeito. A consciencia vive a ideia como concordancia da ideia com seu idea to: neste caminho se estende a liberdade. Mas a propria concordancia nao e urn mero sinal extrinseco? "Para poder saber a partir de que ideia de uma coisa, entre as muitas que dela tenho, se podem deduzir todas as propriedades de urn su;eito, nao observa senao uma unica regra: a ideia ou definiC;ao da coisa que deve exprimir a causa eficiente dela. ,,23 Desse modo, sujeito e causa eficiente tendem it identidade. E a liberdade nao e urn caminho por sobre a concordancia entre ideia e idea to, mas c;usa efi­ciente. A livre necessidade e a atualidade do processo constitutivo que se torna explicita como poteneia ontologiea dinarniearnente estendida.

Com isto 0 horizonte da Etica se completa. Estariamos quase tenta­dos a falar de uma nova fundaC;ao do projeto. Mas seria algo extrinseco. Estamos apenas diante de uma extensao tematica da segunda fundaC;ao. Podemos entao dizer que, dentro dessa extensao, Spinoza enfrenta pela primeira vez uma analitica do tempo depois de ter tao amplamente desen­volvido aquela fisica do espac;o? A coisa parece evidente, a potencia cons­titutiva ou expressiva do ser pede ao tempo que se qualifique como essen­cia real. Isto nao elimina 0 fato de que esta reivindicaC;ao teorica e a pra­tica dessa dimensao sao apenas implicitas. E verda de que, nesses anos, debatendo com Tschirnhaus - urn interlocutor 6timo, estimulante -, Spinoza torna clara a critica do atributo e de qualquer possivelleitura do sistema como uma filosofia da emana~a024. Vma nova avaliaC;ao da dimen­sao temporal nao constitui apenas 0 fundo dessa reafirmac;ao critica. Alem disso, como que determinando uma condiC;ao da extensao da forc;a e da dimensao do processo constitutivo, Spinoza chega a uma serie de afirma­c;6es que mostram 0 quanta esta madura, inclusive sua ruptura em rela­c;ao a forma do pensamento e da problemcitica cartesianos, dos quais no entanto, e de maneira fundamental, Spinoza fizera seu ponto de partida. "A partir da extensao como Descartes a concebe, ou seja, como uma massa inerte, ... e totalmente impossivel demonstrar a existencia dos corpos. A materia em repouso, enquanto depender de si mesma, persistirci em repouso,. e so sera posta em movimento por uma causa externa mais potente. Por isso nao hesitei, em outra epoca, em afirmar que os prindpios cartesianos da natureza sao inuteis, para nao dizer absurdos. "25 Entretanto, tendo re­conhecido tudo isso, e preciso repetir que a qualificac;ao tern poral do pro­cesso constitutivo permanece implicita. A constituiC;ao do real, em sua forc;a e em sua dinamica, compreende 0 tempo como dimensao implicita do real. DuraC;ao e eternidade se baseiam na livre necessidade.

A livre necessidade e entao a fundac;ao da politica spinozista. E este o cerne de seu metodo de trabalho. Experiencia ou entao pratica: 0 que e fundador e a inerencia constitutiva da prcitica it experiencia, ao dado modal. "Ou entao" e sinal de implicaC;ao. E isto e valido tambem para os outros

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pares aparentemente antinomicos: a inerencia da "libertas" a "securitas", da "prudentia" a "multitudo" e igualmente intima e envolvente. Mas isso e valido principalmente para 0 par "condic;ao humana"-"constituic;ao da liberdade": aqui, 0 realismo politico e conquistado (a la Maquiavel e por­tanto em forma nao maquiavelica) como elemento e perspectiva dinami­ca de liberdade. Tudo isto conduz, como logo veremos, para urn ultimo par, desta vez nao aparentemente, mas realmente antinomico: "potentia" e "potestas", potencia contra poder. Potencia como inerencia, dinamica e constitutiva, do uno e da multiplicidade, da inteligencia e do corpo, da li­berdade e da necessidade - potoneia contra poder -Ii onde 0 poder se projeta como subordina,ao da multiplicidade, da inteligencia, da liberda­de, da potencia. Desta concepc;ao potencial e potente do poiftico, tentou­se dar com excessiva freqiiencia, na hist6ria das interpretac;oes a respeito de Spinoza, uma tranqiiilizadora qualificac;ao determinada, em sentido realista ou liberal ou democratico. Talvez cada uma dessas conotac;6es seja verdadeira, mas so parcialmente. A totalidade da potencia spinozista, como base da constituic;ao do real atraves da forma do politico, so e conotavel de urn modo: contra 0 poder. E uma conotac;ao selvagem, uma determi­nac;ao subversiva, uma fundac;ao materialista. 0 inlcio metodologico do Tratado politico, e 0 deslocamento metaffsico dos resultados da Etica pro­duzidos por ele, ja nos poem nessa situac;ao. Potencia contra poder.

2. "TANTUM JURIS QUANTUM POTENTIAE"

As Proposi,6es XXXIV e XXXV do livro I da Etica colocam a dife­renc;a entre "potentia" e "potestas", entre potencia e poder. "A potencia de Deus e sua propria essencia"26, "Tudo 0 que concebemos como estan­do em poder in potestate de Deus, e necessariamente" .27 Como se ve, essa diferenc;a - e nisso Gueroult insiste, com razao28 - se baseia inteiramente na duplicac;ao cognoscitiva oriunda do mecanismo produtivo dos atribu­tos. A "potestas" e dada como capacidade - conceptibilidade - de pro­duzir as coisas; a "potentia", como forc;a que as produz atualmente. Se­gundo Gueroult, essa diferen,a e colocada por Spinoza com urn fim argu­mentativo: demonstrar, "grac;as a identificac;ao da potencia de Deus com a necessidade interna de sua essencia, a falsidade das conce~6es aberrantes que se referem ao exerdcio de sua potencia" . Dai a imediata negac;ao da distinc;ao, assim que 0 fim argumentativo foi alcanc;ado: 0 poder, com potencia virtual, e negado na Proposic;ao XXXVI. ("Nao existe coisa al­guma de cuja natureza nao resulte algum efeito.,,29) A Proposi,ao XXXV, ou seja, a distinc;ao entre poder (potestas) e potencia, tern meramente urn significado polemico contra todos aqueles que, afirmando 0 livre-arbitrio,

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afirmam uma desproporC;ao entre 0 que e possivel a partir da essencia di­vina e quanta e atualmente dado no mundo. Ora, esta leitura de Gueroult e indubitavelmente correta. Ela reproduz a especificidade do quadro uto­pista da primeira redac;ao. Mas, como acontece freqiientemente com a interpretac;ao de Gueroult, a situac;ao teo rica fica achatada nesse terreno da utopia. Com efeito, em outro pont030, mostramos que a reduc;ao da "potestas" a "potentia" nao agia somente no sentido de tirar razao da ordem da degrada,ao e da emana,ao do ser (e portanto de tirar for,a organizativa do dinamismo dos atributos), mas tambem e sobretudo no sentido de tornar a abrir urn paradoxo do mundo, uma oposiC;ao nao re­solvida entre totalidade do ser e determinidade atual da modalidade. Quan­do depois, nos livros seguintes da Etica, essa oposi~ao se transforma em impulso constitutivo, a distinc;ao "potentia" -"potestas" perde tambem as func;oes polemicas que Ihe eram atribuidas no livro I. Ou seja, 0 termo "potestas", se nao e para ser completamente riscado do quadro de uma terminologia (spinozistamente) significativa, nao pode ser entendido - en­quanta horizonte de conceptibilidade - senao como func;ao subordinada a potencia do ser elemento - portanto - inteiramente determinado e submetido ao continuo deslocamento, a continua atualiza'rao determina­da pelo ser potencial. Nao apenas, entao, nao e possivel jogar com a dife­renc;a em termos de eminencia do poder ("potestas"), como ja acentuam o Spinoza da primeira redac;ao e Gueroult, mas - como quer 0 Spinoza da segunda redaC;ao - ela deve ser utilizada no sentido oposto, como base do relevo de superficie da "potentia" - real, concreta, determinada -diante de qualquer possibilidade e de qualquer ideato. Nesta reversao con­siste a realizac;ao da propria utopia humanista, mas reconduzida ao hori­zonte do materialismo. "Potestas", poder, desse ponto de vista, so pode significar: "potentia" em direc;ao a constituic;ao - urn reforc;o que 0 ter­mo poder nao representa, mas apenas indica, pois a potencia do ser 0 fixa ou 0 destroi, 0 coloca ou a ultrapassa, dentro de urn processo de consti­tuic;ao real. 0 reforc;o que 0 conceito de poder pro poe ao conceito de po­tencia so e relativo a demonstra'rao da necessidade para a potencia de sem­pre se colocar contra 0 poder. Mas, dito isto, volta a ressurgir a verdadei­ra dimensao da polftica spinozista - seu procedimenta que prepara as con­dic;oes do agir determinado no mundo reaP1.

o capitulo II do Tratado politico parte dessas premissas. Inicia-se a partir da liberdade metaffsica da potoncia. A liberdade metaffsica deve ser, como vimos no capitulo I, uma anaHtica dessa realidade. E imediata a re­missao ao Tratado teologico-politico e a Etica32, e 0 que foi sustentado nesses trabalhos deve agora ser reexposto atraves de uma demonstrac;ao apodftica33.

A demonstrac;ao apoditica e a exibic;ao que a potencia do ser faz de si mes­rna, evidenciando a necessidade divina de seu fundamento e de sua expan-

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sividade. "Se, portanto, a potencia pela qual as coisas naturais existem e agem e a propria potencia de Deus, e facil compreender-se 0 que seja 0 direito natural. Na verdade, ja que Deus tern direito sobre todas as coisas, e ja que o direito de Deus nao e outra coisa senao a propria potencia divina consi­derada como absolutamente livre, dai se segue que cada coisa natural tern por natureza tanto direito quanto potencia a existir e a agir; ja que a poten­cia pela qual cada coisa natural existe e age nao e outra senao a propria potencia de Deus, a qual e absolutamente livre. "34 "Potentia" -"jus" -" liber­tas": 0 vinculo nao poderia ser m;;tis estreito nem mais determinad035 - e, sobretudo, sua potencialidade e sua espontaneidade nao poderiam ser mais evidenciadas. A analise volta a origem, proeura a densidade do ser para revive-10 em imersao. A potencia selvagem da natureza spinozista e, como sem­pre,o primeiro cenario no qual se move 0 projeto constitutivo. 0 direito natural e entao a propria lei da natureza, em sua imediatez, expressao di­reta da "cupiditas", prolongamento, proje<;ao do "conatus". "Entao, se a natureza humana fosse de tal modo que os homens vivessem de acordo com os ditames unicamente da razao e nao procurassem outra coisa, 0 direito natural, enquanto proprio ao genero humano, seria constitufdo so pela po­tencia da razao. Mas os homens seguem antes 0 cego desejo do que a ra­zao, e por isso a potencia ou direito natural deles ser definida, nao pela razao, mas por qualquer apetite que determine as a<;oes deles e lhes ofere<;a urn meio de conserva<;ao. Reconhe<;o, e verdade, que esses desejos que nao surgem a partir da razao sao antes paixoes que a<;oes humanas. Mas, como se trata aqui da potencia ou direito universal da natureza, nao podemos reconhe­cer diferen<;a alguma entre os desejos que sao em nos gerados pela razao e aqueles que provem de outras causas, ja que tanto estas quanta aquelas sao produtos da natureza e desenvolvem a for<;a natural pela qual 0 homem se esfor<;a por perseverar no seu ser. 0 hornem, com efeito, seja 0 sabio seja 0

ignorante, e parte da natureza, e tudo aquilo pelo qual cada urn e determi­nado a agir cleve ser referido a potencia da natureza, enquanto esta pode ser definida atraves da natureza deste ou daquele hornern. Pois 0 homem, seguindo seja a razao seja unicamente 0 desejo, age apenas segundo as leis e regras da natureza, isto e, segundo direito natural. " 36 0 mundo humano natural e constituido em sua expressao imediata: nada mais erroneo do que considerar a humanidade em rela<;ao a natureza como urn Estado dentro do Estado: "imperium in imperio"37. A humanidade, ate, rnultiplica 0 po­tencial natural de imediatez e violencia, mas tam bern interpreta a tensao cons­titutiva inerente ao "aeternus ordo totius naturae,,38: uma ordern feita de graus sucessivos de perfei<;ao, tecidos pela positividade do ser. "A liberda­de na verdade e uma virtude, isto e, uma perfei<;ao: e entao aquilo que para o hornern e motivo de irnpotencia nao pode ser referido a sua liberdade. "39 "0 direito a institui<;ao natural, sob a qual os homens nascem e vivern em

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sua maior parte, so proibe aquilo que ninguem deseja ou pode fazer.,,40 A liberdade procede dentro dessa densidade do ser. Direito, e nao lei - as­sim como potencia e nao poder41.

Mas este processo e envolvido no paradoxo da modalidade: a auto­nomia dos sujeitos, exigida pela defini<;ao do direito natural, a antagonfstica. Desenvolvendo 0 conceito de direito natural em sua autonomia, chega-se com efeito a defini<;ao seguinte: "que cada urn esta sujeito ao direiro de outro enquanto permanecer em seu poder, e e autonomo na medida em que esta em condi<;6es de recha<;ar toda violencia, de exigir a seu juizo 0 ressardmento do dane sofrido, e, em uma palavra, de viver a seu talante. ,,42 0 estado natural e urn cenario antagonistico e a autonomia dos sujeitos nele se apre­senta como antagonismo, violencia, confronto de autonomias, de "cupidi­tates", quando nao simplesmente de "libidines", contrapostas. Esse e 0 ter­reno da mistifica<;ao e do engano, da irrealidade que procura colocar rela­<;oes de escravidao. Observe-se bern: seria facil considerar esta passagem a premissa negativa dialeticamente negativa, diante da defini<;ao inicial da potencia - de urn processo argumentativo que se encaminha - como efe­tivamente ocorre para uma solu<;ao de pacificayao. Mas nao e assim. Esse cenario antagonistico nao se coloca dentro de urn desenvolvimento dialeti­co, mas dentro de uma opera<;ao de deslocamento do ser. 0 antagonismo e urn segundo cenario - necessario diante do primeiro -, 0 da potencia: integra-o, opondo a potencia a determina<;ao negativa da ordem do ser, ao seu limite - que e, no proprio ser, instaurado. De modo que 0 problema da soluyao nao toea a impossiveis pacifica<;6es, mas abre-se ao risco da constru<;ao do ser. Do politico. Repete-se aqui 0 processo ja identificado nos livros III e IV da Etica, quando as condi<;6es antagonisticas do politico se formaram dentro da explicita tensao do processo fenomenologic043. Esse antagonismo e entao, ele mesmo, constitutivo. A autonomia do sujeito se abranda, deve se abrandar na rela<;ao inter-humana. Mas "se dois homens concordam e conjugam suas for<;as, aumentam sua potencia e em consequen­cia tam bern seu direito sobre a natureza", entao "quantos mais se juntam nessa rela<;ao, tanto maior sera 0 direito que todos adquirirao juntos,,44. Esta passagem e fundamental: a dimensao coletiva desloca 0 processo anta­gonistico do ser. A multitudo nao e mais uma condi<;ao negativa, mas a premissa positiva do constituir-se do direito. 0 argumento cetico que nega o direito zombando da verdade dos muitos e perfeitamente derrubado: esse direito e tal nao por ser for<;a dos mais numerosos, mas por ser constitui­<;ao dos mais numerosos. Os mais numerosos, a partir justamente da natu­ral inimizade que forma seu comportamento, come<;am a constituir corpo politico e juridico. E uma fisica politica, a que a partir deste ponto se con­centra e se desenvolve45. A teoria do contrato social, ja proposta no Trata­do teol6gico-politico diante de dificuldades iguais, nao tern mais espa<;o den-

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tro da defini<;ao desse antagonismo progressivo. A fisica substitui qualquer hip6tese voluntarista. Se a sociedade e inerente ao ser, e constitufda pelo ser no ser: nenhuma artimanha pode substituir 0 mecanismo, dupio, mas identico, do deslocamento ontol6gico e cia constitui~ao coletiva, para 0

horizonte fisico, material do mundo. £. nessa ordem fisica que se explicita a passagem constitutiva ulterior.

"A esse direito, que vern a ser definido pela patencia de uma massa de gen­te (multitudo), costuma chamar-se poder publico. E e exercido de modo absoluto por aquele que por cornum consenso administra a coisa publica, promulgando, interpretando ou abolindo leis, fortificando cidades, decidindo da guerra e da paz, etc. Quando essa administra<;ao cabe a uma assembleia de elementos safdos cia massa cornum, entaD 0 poder publico toma 0 nome de Democracia; se, ao contrario, e constituida por POllCOS elementos esco­lhidos, se chama Aristocracia; e finalmente, quando a administra\=ao da coisa publica, e em conseqiiencia 0 poder supremo, se encontra nas maos de urn so, entao se chama Monarquia ... 46 A determina\=ao constitutiva e entao dada no horizonte da multitudo. A multitudo se tornou uma essencia produtiva. o direito civil e a potencia da multitudo. 0 contrato e substituido pelo consenso, 0 metodo da individualidade pelo da coletividade. A realidade do dire ito encontra ao mesmo tempo, nessa constitui\=ao, sua dina mica e suas determina\=oes: em outras palavras, 0 direito civil constitui 0 justo e 0

injusto, que sao a mesma coisa que 0 legal e 0 ilegal. "0 reato entao so e concebiveI num Estado constituido, no qual seja decretado com base no direito comum de uma sociedade inteira 0 que seja 0 bern e 0 que seja 0 mal, e onde ninguem tenha direito de fazer nada fora daquilo que esd estabele­cido pelo decreto comum ou consenso. Com efeito, e reato aquilo que nao se pode fazer com direito, ou seja, que e proibido peIo direito; enquanto que a obediencia e a vontade constante de fazer aquilo que pelo direito e 0 bern e que por decreto comum deve ser feito. ,,47 "E, assimcomo 0 reato e a obe­diencia num sentido estrito, assim tam bern a justi\=a e a injusti\=a so podem ser concebidas num ordenamento juridico. Com efeito, nada existe na na­tureza de que se possa dizer com direito que seja mais de urn que de outro; mas tudo e de todos: entenda-se de todos aqueles que tern 0 poder de rei­vindid.-Ios. Mas num ordenamento em que se estabelece por direito cornum o que seja de urn e 0 que seja do outro, chama-se justo aquele que tern a constante vontade de dar a cada urn 0 seu, e injusto, ao contd.rio, aquele que tenta tornar propria a coisa alheia. "48

Pura afirma\=ao positivista e legalista do direito, esta? E, neste caso, qual e a coerencia com a concep\=ao metafisica da potencia, de cuja base partira 0 processo? Sed. que esta afirma\=ao do positivismo legalista nao e o reverso daquela subordina\=ao da lei ao direito que parecia constituir 0

ponto de vista da analise? Todas essas perguntas, com excessiva freqiien-

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cia surgidas na historia das interpreta\=oes spinozistas49, nao tern direito de aparecer e de se perpetuarem. Sao simplesmente produzidas pelo vieio da leitura parcial de urn sistema, pela incuravel imbecilidade da especializa\=ao e pela perda do gosto pela metaffsica. 0 positivismo spinozista e puramen­te aparente, se 0 entendemos em termos rigorosos e modern os: com efeito, e mera positivi dade da potencia. Historicamente, e fruto daquela colossal reversao dos termos operada pelo assim chamado paralelismo spinozista: o paralelismo afirma a identidade dos dois polos, nega absolutamente a sepa­rabilidade deles. Assim a rela<;ao multitudo-direito civil nega a separabifidade dos dois termos e reporta 0 dualismo a id~ntidade. Mas esta identidade e sempre a da potencia. 0 direito civil spinazista destr6i 0 direito natural, destroi qualquer afirma\=ao separada da lei, reintroduz a norm~tividade na processualidade constitutiva do humano. Ou seja, nega as proprias condi­\=oes nas quais e possivel falar de positivismo juridico: condi\=oes que pre­veem a transcendencia do valor da lei dentro do processo de produ<;ao ju­ridica, que supoem uma organica potencia da normatividade enquanto tal - separada, portanto, eminente50• 0 positivismo legalista nao ocorre em Spinoza porque nao pode ocorrer, porque e contraditorio e aberrante em rela\=ao a todas as condi\=oes do sistema e a sua forma metafisica. 0 justo e urn processo constituido pe1a potencia. As leis, as defini\=oes singulares do deli to, do legal e do ilegal sao filtros formais de uma progressao material e coletiva do humano. 0 positivismo spinozista e a positividade da porencia, segue a for\=a desta, organiza-lhe os limites - de qualquer modo e arrasta­do e subordinado ao projeto dela, e submetido a dinamica do antagonismo na qual a potencia se desdobra. So a refinada ciencia burguesa da mistifi­ca\=ao pode pretender negar criatividade a materia coletiva que age na his­toria e pode pretender deter a norma do dominio sobre esta materia: este e o positivismo, este e 0 legalismo. Em Spinoza nao se trata sequer da lei. 0 positivismo de Spinoza e a criatividade jurfdica, nao da lei, mas do COnsen­so, da rela\=ao, da constitui\=ao.

Potencia contra poder, entao, novamente. E nao e por acaso que 0

desenvolvimento do Tratado politico se concentra logo nas premissas da constru<;ao burguesa da doutrina do Estado. Se os capitulos I e II haviam enfrentado esse problema colocando os principios da politica como cons­titui\=ao em fun\=ao altemativa, e portanto em termos positivos - os capf­tulos III e IV colocam 0 problema critico em termos negativos, polemica­mente, nos confrontos dos dois temas fundamentais do pensamento jus­naturalista e absolutista moderno, 0 que significa, nos confrontos da pro­pria ideia da transferencia transcendental do direito natural e do cad.ter ilimitado do poder soberano. Em sua progressao, nao linear, mas contfnua, a maquina spinozista tritura 0 horizonte ideologico burgues, pondo em destaque todas as suas contradi\=oes e novamente construindo, atraves des-

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sa passagem peIo negativo, a alternativa - a alternativa republicana. 0 que temos diante de nos e uma especie de dialetica transcendental kantiana, ou seja, 0 desenvolvimento de uma dialetica das aparencias, que incide sobre as determina.;oes da razao, demonstrando ao mesmo tempo a exigencia da qual provem e que interpretam, e a discriminante de realidade e de irrealidade, na qual a exigencia e envalvida e blaqueada. Opasta a issa, a alternativa republicana ocorre no terreno da filosofia da afirma.;ao pura51 .

Primeiro ponto, portanto: critica da ideia da transferencia transcen­dental do direita natural, critica da genese juridica do pader. E calacada a problema da diferen.;a "sudito" -"cidadao"52. Dentro dos preceitos conso­lidados do jusnaturalismo, essa diferen,a e mediada e organizada pelo con­trato, nas varias formas em que este e proposto, mas que em cada caso so­bredeterminam 0 simples fenomeno associativo. Mas em Spinoza 0 contrato ja esta eliminado, assim como esta eliminada sua caracteriza.;ao individua­lista. Aqui, entao, a elimina.;ao do contrato funciona de maneira positiva. A passagem do individual ao geral e negada par Spinaza par principia. A passagem se da em termos coletivos. Nao se trata entao de transferencia de direito, mas de sua constitui.;ao coletiva. "Do artigo 15 do capftulo II tor­na-se evidente que 0 direito de soberania ou dos supremos poderes nao e senao 0 mesmo direito natural determinado peIa potencia, nao mais dos indivfduos singulares, mas da massa, que e guiada como por uma s6 men­te; ou seja, como os indivfduos no estado natural, assim tam bern aquele composto de corpo e mente que e 0 Estado tern tanto direito quanta e a potencia que desenvolve; e portanto cada cidadao ou sudito tern urn direi­to tanto menor quanta maior e a potencia que deIe deriva para 0 Estado; e entao, ainda, cada cidadao nao tern direito de fazer nem de possuir nada fora daquila que lhe cabe par decisiia comum do Estada."s3 Canstitui,iia absoluta, mas sempre relativa: com efeito, se "nao e de modo algum admis­sivel que os cidadaos singulares possam, por direito civil, viver como lhes apraz, e portanto 0 direito natural, por for.;a do qual cada urn e juiz de si mesmo, cessa necessariamente no estado civil", no entanto "eu disse expres­samente par direito civil, pois 0 direito natural de cada urn, se observarmos bern, nao cessa no estado civil. Tanto no estado natural quanto no civil, com efeito, 0 homem age segundo as leis da sua propria natureza e defende seus interesses. Ou seja, num estado como no outro, 0 homem e levado pela esperan.;a ou peIo temor a fazer ou deixar de fazer este ou aquele ato; mas entre urn e outro estado existe a diferen~a essencial que e a de que no esta­do civil todos tern os mesmos temores, assim como uma s6 e identica para todos e a garantia de seguran.;a e iguais as regras de vida: sem que por isso seja retirada aos individuos sua faculdade de julgamento" .54 Constituir;ao absoluta, mas sempre relativa: mesmo quando a tendencia absolutista se desdobra no maximo de sua potencia55, repete-se nela 0 paradoxo habitual:

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"assim como no estado natural maior e a potencia e maior a autonomia daquele que segue a razao, assim tambem e mais potente e mais autonomo aquele Estado que tern a razao como orienta.;ao e fundamento. 0 direito do Estado, com efeito, e determinado pela potencia da massa, que se con­duz como se tivesse uma so mente" .56 Paradoxo que encontra sua origem no fato de que a continuidade nao e fundada, mas e constitufda, nao e me­diada, mas e desenvolvida, nao e urn resultado, mas urn pressuposto. "Mas, para nao ter de interromper a cada vez 0 fio do discurso e parar p;tra resol­ver dificuldades desse tipo, desejo avisar que demonstrei todas essas coisas deduzindo-as da necessidade da natureZa humana como quer que esta seja considerada, au seja, do esfor,o universal de todos as homens para a pro­pria conservar;ao: esfor.;o que se manifesta em cada homem, seja ele igno­rante ou sabio; e portanto, como quer que consideremos os homens, como escravos das paixoes ou como vivendo segundo a razao, a coisa nao muda, sendo a demonstrar;ao disso, como dissemos, universal. ,,57 A soberania, 0

poder ficam assim reduzidos e achatados sobre a multituda: atingem ate onde atinge a potencia da multitudo organizada58. Este limite e organico, e ele­mento ontologico da dinamica constitutiva. Nada de transferencia, portanto. Nada de Hobbes, nem de Rousseau. Nem no terreno politico: e isto exclui qualquer recupera.;ao, e mais ainda valoriza~ao, por parte de Spinoza, das tematicas da razao de Estado; nem no terreno juridico: e com isto novamente e ressaltada a suspeita teorica de Spinoza diante de qualquer teo ria legalista e positivista. De modo que 0 politico e 0 jurfdico, 0 sudito e 0 cidadao (as acep.;oes terminol6gicas nao sao, neste caso, correspondentes nem correlatas) constituem diferen.;as inteiramente relativas e so mensuraveis dentro das variaveis da continuidade que vai da autonomia a multitudo e a soberania. Mas em outros termos, e bern mais sugestivos, se pode dizer: do "appetitus" a imaginar;ao e a razao. Aqui, neste desenvolvimento metafisico, 0 proces­so se aclara. Intensamente, profundamente. E isto serve sobretudo para excluir qualquer interpreta~ao vitalista ou organicista desse desenvolvimento filosofico spinozista59: encontramo-nos, antes, diante de uma analise do Estado que 0 restitui em toda a sua ambiguidade, reino de mistifica.;ao e de realidade, de imagina.;ao e de desejo coletivo. Realmente, 0 pensamento ne­gativo se tornou projeto de constituir;ao.

E agora chegamos ao segundo ponto da crftica de Spinoza ao absolu­tismo burgues: a crftica da ilimita~ao do poder soberano. Essa critica ja esta em grande parte contida no que Spinaza disse dentro do capitulo III do Tratado politico. Mas la ela e conduzida numa fun.;ao jurfdica, isto e, con­tra 0 mecanisme de legitima~ao (mediante contrato, mediante transferen­cia do direito) do absolutismo. ja no capitulo IV a polemica e qualitativa, ou seja, ela nao centra a ambigiiidade constitutiva da relar;ao - embora real - entre multitudo e Estado (como ocorre no capitulo III), mas, ao contra-

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rio, investe todo 0 conjunto das rela\oes constitutivas. Se 0 capftulo III eli­mmava 0 contrato como fun\ao 16gica, 0 capitulo IV 0 interpreta como fun\ao material e mostra sua contraditoriedade como instrumento, apesar de tudo, utilizavel. A argumentac;ao e inteiramente paradoxal. Mas ninguem diz, como de resto todo 0 desenvolvimento do sistema de Spinoza esta de­monstrando, que a argumentac;ao paradoxal seja, entre outras, menos efi­caz! 0 limite fundamental da ac;ao do Estado consiste, como se demons­trou, na extensao e na continuidade infra-estrutural dos direitos naturais. "Existem certas condic;6es, postas as quais se imp6em aos suditos 0 temor eo respeito para com 0 Estado, e eliminadas as quais nao apenas desapa­recem e temer e 0 respeito, mas 0 proprio Estado deixa de existir. Para conservar a propria autoridade, em suma, 0 Estado deve estar atento para que nao desaparec;am os motivos de temor e de respeito, sob pena de per­der seu ser de Estado. E tao imposslvel, para alguem que esta investido de poder, sair pelas ruas em estado de embriaguez ou nu em companhia de meretrizes, comportar-se como palhac;o ou violar ou desprezar abertamen­te as leis que emanaram dele mesmo, e conservar, apesar disso, sua digni­dade soberana, quanto e impossivel ser e nao ser ao mesmo tempo. Quan­do urn soberano mata e espolia as suditos, rapra as donzelas, etc., a sujei­C;ao se transforma em indignaC;ao e, portanto, 0 estado civil se converte em estado de hostilidade."6o 0 que quer dizer, e este Ii 0 sinal paradoxal da argumenta<;ao, que quanta mais a ilimita<;ao (a absolutez) do poder so be­rano se tiver desenvolvido em cima da continuidade das necessidades so­ciais e politicas da multitudo, tanto mais a Estado se encontra limitado e condicionado a determinidade do consenso. De modo que a ruptura da norma consensual desencadeia imediatamente a guerra, a ruptura do direi­to civil e por si mesma urn ato de direito de guerra. "As regras e os motivos de respeito e temor que 0 Estado deve conservar para sua pr6pria garantia nao sao do direito civil, mas do direito natural, pois nao podem ser rei­vindicadas por direito civil mas por direito de guerra, e 0 Estado s6 e obri­gado a elas pela unica razao pela qual tam bern 0 homem no estado natural e obrigado, se quiser se manter livre e nao quiser se tornar inimigo de si mesmo, a evitar se matar: dever, este, que nao implica sujeic;ao, mas denota a liberdade da natureza humana.,,61 0 assombroso, nestas paginas spino­zistas, e a sutileza do limite que separa 0 direito civil do direito de guerra. Mas certamente nao seremos nos a nos surpreendermos excessivamente, pois sabemos bern que s6 atraves do antagonismo 0 processo constitutivo des­Ioca 0 ser para niveis de perfeic;ao cada vez mais alta. 0 Estado, a sobera­nia, a ilimitac;ao do poder sao entao filtrados pelo antagonismo essencial do processo constitutivo, da potencia. Como ja no Tratado teoI6gico-po­litica, mas com refinado amadurecimento do problema, 0 horizonte do Es­tado e horizonte da guerra62 . 0 aperfeic;oamento da estrutura formal da

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constituic;ao do Estado estira, ate urn extremo limite de tensao, os antago­nismos de sua constitui~ao material. Donde uma conseqiiencia tearica a mais: o conceito de "sociedade civil" ,como momento intermediario no processo que leva do estado natural ao Estado politico, nao existe em Spinoza. 0 estado civil Ii ao mesmo tempo sociedade civil e Estado politico. Examinados sob diversos prismas: a primeira como consenso e constituir;ao material, 0 se­gundo como comando e constitui<;ao forrnal. Mas nenbum dos dois elementos pode existir separadamente. A hip6stase burguesa e capitalista da socieda­de civil como camada sobre a qual, qualitativamente, se baseia 0 direito, nao se encontra em Spinoza. Nao que nao seja concebida, mas e s6 como passagem nao formalizavel. Os termos da passagem s6 seriam formalizaveis se Spinoza distinguisse potencia e poder, fundamento de legitima<;iio e exer­cicio do poder - como a burguesia tern de fazer para mistificar seu poder, como a sublime linhagem Hobbes-Rousseau-Hegel tern de fazer para ga­rantir a mistificac;ao! 1a em Spinoza, sociedade civil e Estado politico se imbricam completamente, como momentos inseparaveis da associar;ao e do antagonismo que se produzem na constituir;ao. 0 Estado nao e concebivel sem a simultaneidade do social, nem inversamente a sociedade civil. A ideo­logia burguesa da sociedade civil entao e s6 ilusao.

A tensao da potencia e recuperada em toda a sua forr;a constitutiva. o adagio "tantum juris quantum potentiae" comer;a a ser demonstrado como chave de urn processo complexo. Depois de liberar 0 terreno do fetichismo absolutista, mas nao do carater absoluto da constitui~ao da multitudo -agora cabe reabrir 0 processo politico da liberdade em toda a sua extensao, considerar qual seja "a melhor constituir;ao de urn governocivil"63. "Equal seja a melhor constituir;ao de qualquer governo, isto se toma evidente a partir da finalidade do estado civil, que nao e outra senao a paz e a seguranc;a da vida. E portanro 0 melhor governo e aquele grac;as ao qual os homens vi­vern na concordia e na fiel observancia das leis. Sabe-se, com efeito, que as revoltas, as guerras e 0 desprezo ou a violar;ao das leis nao sao imputaveis tanto a maldade dos suditos quanto a rna constituir;ao do governo. Os homens nao nascem, mas se tornam civilizados. Alem disso, suas paixoes naturais sao as mesmas em toda parte; e, se em urn Estado a maldade reina mais que em outro, e sao cometidos mais delitos que em outro, isso certamenre se deve

. ao fato de que aquele Estado nao tomou as providencias suficientes para a concordia e nao organizou com sabedoria os direitos e, em conseqiiencia, nem sequer segurou totalmente as redeas do governo. Efetivamente, urn estado civil que vive em continuo temor de guerra e que sofre freqiientes violac;oes das leis nao e muito diferente do estado de natureza, no qual cada urn vive como Ihe apraz e em continuo perigo de vida. "64 E finalmente: "A respeito de urn Estado cujos suditos nao recorrem as armas porque estao subjugados pelo medo, deve-se dizer que esta sem guerra, antes do que em

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paz. A paz, realmente, nao e a ausencia da guerra, mas uma virtude que nasce da for~a da alma. "65 S6 a liberdade fundamenta a paz, e com ela 0 melhor governo. Mas, veja-se bern, a liberdade nao e simplesmente liberdade de pen­samento, mas expansividade do corpo, sua for~a de conservac;ao e de re­prodw;ao, como multitudo. E a multitudo que se constitui em sociedade com todas as suas necessidades. Nem a paz e simplesmente seguran~a, mas e a situa~ao na qual 0 consenso se organiza em republica. E regulamenta<;3.o interna entre antagonismos. A melhor constitui<;ao se coioca, para Spinoza, no limite entre direito civil e direito de guerra, e a liberdade e a paz sao feitas por urn e por outro direito. A unica imagem verdadeira da liberdade republi­cana e a organiza,iio da desutopia e a proje~iio realista das autonomias dentro de urn horizonte constitucional de contrapoderes. A demonstra,iio dada por Spinoza dessa asserc;ao, a mais forte e convincente, e uma demonstra<;ao por absurdo, como lhe acontece muitas vezes. "De que meios deve se utilizar para fundar e manter seu Estado urn principe movido exclusivamente pela sede de dominio, isso foi exaustivamente explicado peIo penetrantfssimo Ma­quiavel; mas nao fica claro, absolutamente, qual era seu objetivo. Se era urn born objetivo 0 que 0 autor se propunha, como e de se esperar de urn ho­mem sabio, parece ter sido 0 de demonstrar com quanta imprudencia frequen­temente se tenta derrubar urn tirano, enquanto que as causas pelas quais 0

principe se torna tirano nao podem ser eliminadas, mas, ao contra rio, se consolidam ainda mais, quanto mais se da ao principe motivo para temer, como acontece quando urn povo dernonstra hostilidade para urn principe e se gaba do parriddio como de uma nobre empresa. Alern disso, talvez ele tenha tido inten~ao de dernonstrar como urn povo livre deve tomar cuida­do para nao confiar de modo absoluto a pr6pria sorte a urn s6 homem; pois este, se nao e urn iludido que acredita que pode agradar a todos, tern bas­tante motivos para se sentir cotidianamente exposto a trai<;6es; razao pela qual e obrigado a se defender e a nutrir pelo povo sentimentos de descon­fian,a mais do que de afei,iio. E que esta tenha sido a inten,iio daquele sa­bio, sou induzido a pensar principalmente pelo fato, conhecido de todos, de que ele foi partidario da liberdade, em defesa da qual deu tambem con­selhos salutares. ,,66

S6 nos resta tirar as conclus6es da interpreta<;ao do adagio "tantum juris quantum potentiae" no terreno de uma filosofia da afirma<;ao pura. Parece-nos que 0 pensamento republicano de Spinoza se determina, nos primeiros cinco capitulos fundamentais do Tratado politico, em torno de alguns elementos importantes. Siio eles: 1. uma concep,iio do Estado que nega radicalmente a transcendencia deste - ou seja, desmistifica<;ao da autonomia do politico; 2. uma determina<;ao do poder como fun<;ao subor­dinada a potencia social da multitudo, e portanto constitucionalmente or­ganizada; 3. uma concep<;ao da constitui<;ao, ou seja, da organiza<;ao cons-

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titucional, necessariamente movida pelo antagonismo dos sujeitos. Com isso Spinoza se vincula, em 1, a corrente de critica anticapitalista e antiburguesa que percorre a modernidade, negando que 0 Estado absoluto, 0 Estado da acumula<;ao primitiva possa se representar como transcendencia em rela­<;ao a sociedade - assim como e pura mistifica<;ao pretender que 0 valor economico se autonomize em rela<;ao ao mercado. Em 2, Spinoza assume inteiramente 0 impulso radical da oposi<;ao popular ao Estado, particular­mente forte no periodo da crise do seculo XVII: e entao torna sua a re~vin­dica<;ao das necessidades sociais contra 0 Estado, a aflrma<;ao da hegemo­nia das for<;as prod uti vas, do associacionismo, do realismo juridico contra o comando. Em 3, Spinoza assume e torna sua a tradi~ao que fundamenta a melhor constitui<;ao (e tambem a possivel) no direito de resistencia, de oposi<;ao ao poder, de afirma<;ao da autonomia67. Dito isto, no entanto, deve­se dizer tambem que estes elementos nao sao suficientes para definir 0 con­junto, a totalidade do projeto politico de Spinoza. Pois 0 que disso deriva, em Spinoza, nao e uma concep<;ao quase anarquica do Estado. Pelo con­trario: Spinoza tern uma concep<;ao absoluta da constitui<;30. Mas nisto reside o carater revolucionario de seu pensamento: em exprimir de maneira abso­luta na constitui<;ao uma rela<;ao social produtiva, a produtividade das ne­cessidades naturais, e tudo isto como hegemonico em rela<;ao ao politico - em subsumir de maneira absoluta qualquer fun<;ao abstrata de dominio sob a positividade da expressiio da necessidade de felicidade e liberdade. A destruic;ao de toda auronomia do politico e a afirma<;ao da hegemonia e da autonomia das necessidades coletivas das massas: nisto consiste a extraor­dinaria modernidade spinozista cia constitui<;ao politica do real.

3. CONSTITUI<;AO, CRISE, PROjETO

o Tratado politico e uma obra inacabada. Na Carta LXXXIV "a urn amigo,,68, Spinoza assim exp6e 0 plano da obra: "Agrade~o cordialmen­te 0 afetuoso cui dado que tendes por mim. Nao perderia a oportunidade ... se nao estivesse tao ocupado com uma coisa que considero mais util e que, penso, vos agradani, ou seja, com a prepara<;ao do Tratado po[{tico, que iniciei ha algum tempo atras por vossa sugestao. Ja fiz seis capitulos. 0 primeiro contem como que a introdu<;ao da obra; 0 segundo trata do di­reito natural; 0 terceiro, do direito do poder supremo; 0 quarto, dos ne­g6cios politicos que dependem do poder supremo; 0 quinto, do bern der­radeiro e mais alto que a sociedade possa ter em considera<;ao; e 0 sexto, da maneira como se deve instituir urn regime monarquico para que nao degenere em tirania. Estou agora trabalhando no capitulo setimo, no qual demonstro metodicamente todas as partes do capitulo sexto anterior, re-

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fcrentes ao ordenamento de uma monarquia bern constituida. Passarei entao ao Governo aristocrdtico e popular; finalmente as leis e as outras questoes particulares referentes a polftica. " Esta carta foi posta pelos organizadores da Opera posthuma como prefacio do Tratado, com a seguinte nota: "Aqui esta exposto 0 plano do Autor. Mas, impedido pela doenc;a e levado pela marte, ele nao pode executa-Io senao ate 0 fim da Aristocracia, como 0 proprio Leitor podera ver. "69 0 Tratado politico e entao uma obra incon­clusa - inconclusa justamente naqueie ponto central ao qual as paginas ja redigidas do proprio Tratado, mas sobretudo todo 0 desenvolvimento do pensamento spinozista, deviam conduzir como a urn termo necessario: a analise do regime democratico, ou meihor, 0 projeto da Republica. Mas o Tratado politico nao Ii apenas urn livro inacabado. E tambem urn traba­Iho em curso. A reda<;ao das partes que nos ficaram deixa muito a dese­jar. Depois dos capitulos I a V, que ja apresentam alguns desvios internos de argumentac;ao que nao se podem reduzir apenas Ii versatilidade do me­todo fenomenologico, as ambigiiidades do texto se tornam muito freqiien­tes. A exemplifica<;ao historica e incerta. A tipologia estrutural da forma­Estado e da forma-governo e determinada demais, as vezes decididamen­te "provinciana" , ligada a contingencias caracteristicas do desenvolvimento politico dos Paises Baixos70. Urn trabalho mais completo teria eertamente melhorado 0 texto tambem em sua parte ja redigida. Mas a morte alcan­<;a Spinoza: no apice do trabalho, no momento rna is alto de uma ativida­de engajada no testemunho do real historico, da liberdade e de sua cons­titui<;ao. Exatamente 0 contrario da imagem frouxa e vulgar, digna de al­guma novelinha filosofica romantica, dada por Hegel da morte do judeu maldito: "morreu de uma tfsica de que sofrera durante muito tempo -em concordancia com seu sistema no qual tambem toda particularidade, toda singularidade desaparece na unidade da substancia".?l

o conjunto de incompletude e ambigiiidade que caracteriza as capi­tulos VI e XI do Tratado politico, entretanto, nao impede que uma leitura crftica possa percorrer 0 texto e reconstruir seu eixo geral. Pelo contrario, assim fazendo, teremos algumas vantagens nao irrelevantes. As proprias ambigiiidades e limites do texto, com efeito, podem se apresentar a nos­sos olhos, nao so como episodio de uma dificuldade de exposic;iio que a urgencia e a doen<;a fazem existir, mas como forma de uma nova luta, logica e politica, que se desenrola no texto. 0 Tratado politico e de 75-77. A crise de 1672, a qual varias vezes voltamos, e a conversa~ao monarquica e de­magogica - com formas de consenso plebiscitario - do regime holandes estao agora realizadas e estabilizadas72• Ainda que com urn atraso de cin­qiienta anos - se nao de urn seculo - em rela~ao aos fatos polfticos dos outros Estados europeus, tam bern nos Paises Baixos a revolu~ao human is­rica esta terminada, tam bern suas figuras institucionais mais exteriores e

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as vezes mistificadas - e no entanto efetivas - estao eliminadas. Com 0 assassinato dos De Witt, a anomalia holandesa come<;a a ser recuperada para 0 trajeto principal e para os tempos continentais da acumula~ao capita­lista e do Estado absolutista. Neste quadro, a luta 16gica que sempre se desenrola no sistema spinozista, visando a recupera~ao das condi~oes reais da constitui~ao, se torna luta politica, visando a reconstru~ao das condi­~6es hist6ricas da revolu~a073. Mas voltemos ao texto.

Os capitulos VI e VII tratam da forma monarquica de gov<:xno. A divisao entre os dois eapftulos e insegura; no sexto a analise toea novamen­te os principios estruturais da constitui<;ao, para depois descer a uma des

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cri~ao do regime monarquico; no setimo capitulo, Spinoza tenta uma de­monstra~ao das afirma<;6es feitas. 0 conjunto e bastante confuso, trata-se evidentemente de uma parte do trabalho nao conclufda. Mas mesmo assim e importante, pois mostra uma nova avalia~ao da forma de governo mo­narquico depois dos anaremas lan~ados nessa dire~ao no Tratado teol6gi­co-politico

74. Agora, entao, assistimos rna is uma vez ao desenvolvimento

constitutivo cia multitudo: 0 movel antagonico espedfico que opera para 0 deslocamento e 0 "medo da solidao,,75. 0 estado de natureza e aspirado pela situa~ao de medo e solidao: mas 0 medo de solidao e algo mais que apenas medo, e "desejo" da multitudo, da seguran~a como multitudo, da a bsolutez da multitudo. A passagem para a sociedade nao e representada em nenhum ato de cessao de direito como acontece no pensamento absolu­tisra contemporaneo, mas em urn saito a frente, integrativo do ser, da soli­dao para a multitudo, para a socialidade que, em si e por si, elimina 0 medo. Estamos, novamente, no centro do deslocametno polftico do ser que fun­damenta a fenomenologia spinozista da pratica coletiva. E a linha mestra. A genealogia das formas polfticas deveria se desenvolver inteiramente, e sem momentos posteriores de reflexao, nesse sentido. "Mas, ao contra rio, a experiencia pareee ensinar que, para fins de paz e concordia, convern con­ferir todos os poderes a urn so homem. "76 Se consegufssemos compreender a natureza de "ao contrario", dessa disjun~ao, entenderfamos a rela~ao entre ontologia e historia em Spinoza! Na realidade nao 0 entendemos: mas na~ se afirma que isso aconte~a por incapacidade nossa. Pode acontecer, antes, porque estamos diante de urna confusao de Spinoza, numa rela~ao confusa entre ordens de real ida des diversas que na~ se conseguem colocar na coe­rencia de urn horizonte constitutivo - 0 governo de urn so, a monarquia e urn fato, urn dado historico, efetivamente contraditorio com a linha mes­tra da fenomenologia constitutiva do projeto politico.

A coerencia do dispositivo sistematico e imediatamente depois pro­eurada. Ern outras palavras, logo depois de registrar a contradi<;ao do real, Spinoza tenta racionaliza-lo. A forma preferfvel do regime rnonarquico e a "moderada". Aquilo que no Tratado teol6gico-polftico tinha sido conside-

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rado como forma de governo absolutamente negativa e dado aqui agora como aceitavel, contanto que suas modalidades sejam moderadas, contan­to que 0 absolutismo monarquico nao seja considerado em si mesmo, mas como funC;ao de born governo77. Mas 0 born govemo nao e imaginavel senao como expressao de uma rela<;ao com a multitudo, senao dentro da poten­cia do consenso. "De tudo isto se segue que 0 rei tern uma autoridade tanto menor e que a condir;ao dos suditos e tanto mais penosa quanto mais abso­luto e 0 poder que lhe foi conferido; e assim, para instituir urn born gover­no monarquico e necessario the dar solidos fundamentos, a fim de que fi­quem asseguradas tanto a segurans:a do monarca quanta a paz do povo, ou seja, a fim de que 0 monarca esteja em plena posse de seu proprio direito justamente quando prove mais eficazmente ao bem-estar do povo.,,78 As­sim, por tras da definir;ao efetiva da forma de governo monarquica, reapa­rece 0 eixo central do processo politico spinozista: "nao e absolutamente contrario a pratica que se constituam direitos tao solidos que nem mesmo o rei possa aboli-Ios". 79 E se 0 rnonarca ordena a seus rninistros coisas con­trarias as leis fundamentais do Estado, estes tern clever de recusar-se a exe­cutar as ordens80• "Os reis, na verdacle, nao sao deuses, mas homens, que rnuitas vezes se deixam fascinar pelo canto das sereias. E se tudo dependes­se da inconstante vontade de urn so, nada haveria de estavel. Por isso 0

governo monarquico, para que seja solido, cleve ser institufdo de modo a que tudo aconter;a por exclusivo decreto real, isto e, que todo direito seja a expressa vontade do rei, mas na~ de modo que toda vontade do rei seja direito. ,,81 A defini,ao da forma do regime monarquico s6 pode ser repor­tada a logica constitutiva quando se insiste em seus limites.

Uma monarquia constitucional? E diffcil aceitar terminologias defi­nitorias, consolidadas por urn uso sucessivo e heterogeneo, para fixar 0

carater dessa mediar;ao constitucional da monarquia que encontramos no Tratado politico. E nao s6 por razoes de corre,ao filol6gica. 0 fato e que em Spinoza existe uma recusa profunda de uma considera<;ao formal do processo constitucional: os limites sao forr;as, os pontos de imputa<;ao de poder sao potencias. Isto para dizer que os limites da funC;ao monarquica so sao limites juridicos enquanto sao limites fisicos, so sao determinac;6es formais enquanto estao inscritos materialmente na constituic;ao e em seu desenvolvimento. Se examinarmos a casuistica citada por Spinoza em apoio as suas teses, percebemos que todas as formas politicas so valem enquan­to explicitadas como processos constitutivos82• 0 governo monarquico (de 'puro fato historico) torna-se urn elernento racional quanto retirado da abs­tra,ao da defini,ao juridica e colocado num quadro de reia,6es de poder e de contrapoder: 0 absolutismo fica moderado, a moderaC;ao e uma rela­c;ao dinamica, a relar;ao envolve todos os sujeitos na operar;ao constitutiva. o equilibrio constirucional e urn encontro-media<;ao-confronto entre po-

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tencias. E esse processo e 0 proprio desenvolvimento da multt'tudo como essencia coletiva humana. "Esta nossa doutrina talvez seja recebida com urn sorriso por patte daqueles que, reservando a massa do povo os vfcios proprios de todos os mortais, dizem que 0 vulgo e inteiramente desmedi­do, que e temivel quando nao teme, que a plebe ou serve de escrava ou domina com arrogancia, que nao e feita para a verdade, nao tern juizo, etc. Pelo contrario, a natureza e uma s6 e e comum a todos ... e identica em todos: todos ficam arrogantes com 0 poder; todos sao temfveis quando nao temem, e em toda patte a verdade e mais ou menos maltratada por todos aqueles que ela irrita ou condena, especialmente onde 0 poder esta nas maos de urn ou de alguns que, ao instruir os processos, na~ tern em mira a jus­tic;a ou a verda de, mas a importancia dos patrimonios. ,,83 0 limite efeti­vo da considerac;ao historica da monarquia e entao amplamente forc;ado, se nao mesmo rom pi do, pelo pensamento spinozista. As equivocidades do processo, a ambigiiidade inscrita na propria recep~ao (realista?) da mo­narquia como forma de governo aceitavel sao entao submetidas a uma analise que privilegia 0 eixo da critica constitutiva. A potencia desmistifi­cadora da flsica politica nao desaparece no Tratado politico. A monarquia e dada como condi,ao de fato: a analise a toma enquanto condi,ao de fato, mas come~a por negar toda absolutez, depois a define no horizonte da modera,ao, depois a desarticula na rela,ao constitucional do poder, final­mente a submete ao movimento constitutivo da multitudo84•

Se 0 processo constitutivo encontra algumas dificuldades para apare­cer em primeiro plano quando Spinoza enfrenta a forma de governo mo­narquico, muito mais tenues sao as resistencias a expressao do eixo funda­mental do discurso quando se passa a analise do regime aristocratico. Aqui, com efeito, 0 discurso patte dos resultados da escava<;ao operada nos con­frontos do conceito de monarquia e de sua desarticulac;ao diante do movi­mento constitutivo que encontra como sujeito a multitudo. De modo que assistimos, numa primeirissima abordagem, a urn movimento - por assim dizer - exemplar do metodo constitutivo. Sujeito: "se existe urn poder absoluto, este e na verdade aquele que se encontra nas maos de toda uma coletividade (integra multitudo)" .85 M6vel antagonico: "0 motivo pelo qual, na pra.tica, 0 governo nao e absoluto nao pode ser outro senao 0 seguinte, que os governantes tern medo do povo, 0 qual, por Isso, mantem uma cetta liberdade, que, se nao e concedida por uma lei explicita, Ihe e entretanto tacitamente reconhecida. ,,86 Opera<;ao constitutiva: "a condic;ao desse go­verno sera. otima se ele for constituido de modo a aproximar-se ao maximo do governo absoluto". 87 A determinac;ao dessa aproximaC;ao com 0 abso­luto e dada pelos mecanismos de sele<;ao dos governantes e peia forma da assembleia. 0 aristocratico e urn regime em forma de assembleia: "se os reis sao mortais, as assembleias sao eternas". Em comparac;ao com a forma

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momirquica, a forma aristocra.tica de governo e entao excelente, na medi­da em que mais se aproxima da absolutez do governo. Mas absolutez do governo significa coparticipa.;ao efetiva do social no politico: os prindpios estruturais do regime aristocnitico devem entao ser construidos a partir da analise do social, a partir da fenomenologia determinada da multitudo: tais procuram ser justamente as exemplos recolhidos por Spinoza88. Mas nao e 0 bastante. Ate aqui estamos no terreno da produ,ao do poder: para ser completa, a analise dos prindpios estruturais do governo (no caso 0 aristo­cratico, como em geral a analise das formas de governo) deve cobrir tam­bern 0 processo de reprodu.;ao interna do poder89. Finalmente, deve-se con­jugar a analise esritica dos principios de produ,ao do poder com ados prindpios de gestao do poder: e teremos uma serie de regras para a repro­du,ao social da domina,a09o. 0 quadro e completado por duas digressoes extremamente importantes, embora apenas anotadas, a primeira sobre a forma federativa do governo aristocratic091 e a segunda sobre as formas degenerativas do governo aristoeratic092. Que se fique atento: a analise e elegante e tenta dar urn quadro adequado dos fenomenos estudados, em toda a sua complexidade - quadro, de qualquer modo, adequado ao nivel de pesquisa da epoca. Mas a elegancia da analise refere-se sobretudo aos prin­dpios, aos esquemas de pesquisa, as propostas metodol6gicas. Quando a linha de pesquisa se confronta com a realidade, e tende para a exemplifica.;ao, entao a casuistica proposta e muitas vezes de segunda ordem.

o que retirar dessa fenoI1}enoiogia analitica? Inutil eseonder que 0

carater de incompletude do texto e muito importante. Inclusive no que se refere aos capftulos sobre a aristocracia (como ja fora 0 caso para aqueles sobre a monarquia) encontramo-nos diante de uma serie de fortissimos desvios metodologicos. 0 pensamento do "governo absoluto" , a ideia guia e constitutiva da multitudo desempenham urn papel metaffsico que difi­cilmente consegue ser proporcional aos conteudos anallticos e estruturais da analise das formas de governo. Pouca diferen,a faz quando se parte do principio metaffsico, como no caso do regime aristocratico, ou quando se chega a ele, como no easo da analise do regime monarquico. De qualquer modo a despropor.;ao age no sentido de tornar inteiramente casual a eon­tingencia historica dos prindpios estruturais do governo. A avalia~ao, en­tretanto, deve mudar quando se considera, nao tanto 0 conteudo deter­minado da analise quanto 0 metodo que a rege e a dirige: 0 esquema cons­titutivo, com efeito, esta presente com absoluta perfei.;ao. Seja em termos de escava~ao, ou em termos eoostrutivos, seja como opera~ao eritica, ou como opera~ao projetual. Talvez a coincidencia entre os diversos movi­meotos da hipotese tivesse podido oeorrer com a analise do regime demo­cnitico _ "Passo finalmente a terceira forma de governo, ou seja, aquele completamente absoluto que se chama democratico,,93 - mas, como se

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sabe, 0 texto para aqui. Sera entao que e superfluo estudar essa segunda parte do Tratado politico (para que fique claro, aquela que come,a no capitulo VI)? Realmente nao penso assim. A crise do projeto expositivo e na verdade tao importante (e dramatica) do ponto de vista tearico quanto sua funda,ao. E ja vimos por que sua funda,ao (capitulos I a V) 0 e. Aqui o desequilibrio entre as condi~6es teoricas do sistema, sua matura~ao cons­titutiva e, por outro lado, ao contrario, as condi~6es historico-politicas da obra, torna-se maxim094. E importante ver a luta politica no intetior do sistema: e ela pode ser apontada na descontinuidade absoluta da casuistica diante do principio constitutivo. A guerra e evidentemente logica, mas sua importancia politica e fora de duvida. 0 existente politico e absolutamente contraditorio com a necessidade constitutiva. Por isso e casual. E nega<;ao do ser. A casuistica nunca consegue dar sentido ou simplesmente respon­der de maneira propria as interroga<;oes que 0 principio constitutivo or­ganiza em esquemas de analise fenomenologica. 0 principio constitutivo lan~a suas redes, mas a pesca e quase nula. Na realidade, tanto no que se refere a casuistica estrutural relativa ao regime monarquico quanta a re­lativa ao regime aristocnhico, Spinoza recolhe elementos da literatura con­tempora.nea sua95 - material freqiientemente improdutivo, ou mesmo com­pletamente vazio de qualquer relevancia cientifica. E muitas vezes essa casuistica e desorientadora, pois - se, por exemplo, se toma 0 problema da dinamica dos contrapoderes como proprio do desenvolvimento cons­titutivo - oferece-nos uma exemplifica.;ao que se pode dizer, no minimo, ambigua: de urn lade exaltando os privilegios municipais ou regionais como autentica autonomia popular (e a referencia e aos ordenamentos do reino de Aragao)96, de outro, ao contrario, negando como corporativos e infe­riores os privilegios das cidades renanas e hanseaticas (e a referencia e aos ordenamentos das Gilden)97, 0 mesmo se aplica a outros assuntos nao menos importantes, onde nao e impossivel ver conviverem 0 direito e 0

avesso, 0 direito e 0 esquerdo. Os unicos momentos em que 0 discurso se eleva sao aqueles em que novamente e citado "0 penetrantissimo escritor florentino,,98 - e justamente a analise passa logo da casuistica para a afir­ma~ao dos principios definitorios da constitui~ao, no caso, a reafirma~ao da necessidade de que "0 Estado seja levado de volta a seu principio, so­bre 0 qual come~ou a se constituir", Inutil entao pretender - como fa­zem muitas vezes com suas interven~6es os organizadores da Opera pos­thuma99 - orientar 0 Tratado politico para uma batalha politica deter­minada. Alem de tudo nao se consegue nem mesmo chegar a urn acordo quanto a dire~ao, as op~6es que orientariam essa batalha - que para al­guns e liberal e aristocratica, para outras monarquica e constitucional, para outros, finalmente, democratica (quando 0 capitulo nao esta sequer escri­to) e ... rousseauniana! A luta, ao contrario, e interna ao sistema. E a luta

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entre 0 principio que 0 move e a realidade da reflexao absolutista e bur­guesa do seculo que 0 impede de se tornar historicamente operativo.

o projeto esta, assim, exposto num limite real. Nao esta derrotado, esta suspenso. 0 principio materialista e radical da constitui~ao vive seu isolamento conspirativo e revolucionario. Nao pode amadurecer para alem de contradi~6es que nao pode compreender, mas pode crescer sobre si mesmo: quanto as contradi~6es, essas participam do nao ser, estao mor­tas. A teoria do positivo e do pleno da potencia esta suspensa sobre 0 va­zio do negativo e do poder. 0 Tratado politico s6 e uma obra falida se niio se entende isto: que sua falencia politka imediata e 0 efeito necessario do triunfo do mundo, da multitudo, do homem. 0 projeto constitutivo esta agora bloqueado na prop0f<;iio adequada a potencia crftica que havia de­senvolvido. A filosofia politica se tornou pela primeira vez - depois da experiencia maquiavelica que 0 antecipa - uma teoria das massas. A cri­se do Renascimento deixa como heran~a seu significado laico e democra­tico, mostrando a dimensao de massa como problema historico da revo­lu~ao. Estes significados sao anotados por Spinola na constituic;ao do rnovimento estrutural da multitudo. Representam urn desejo desta: do governo absoluto, da absolutez da liberdade. A absolutez racional de uma rela\ao material das massas com elas mesmas. A suspensao da obra, devi­da a morte de Spinoza, coincide com urn bloqueio real seu, interno, posi­tivo. Mas 0 projeto vive: est3 aI, presente, tenso, pronto para ser recolhi­do como mensagem. A dirnensao temporal, futura, a conceito de porvir, se forma - antecipa\ao que 0 desejo e a imagina\ao contem, a borda de urn bloco historico determinado. Mas contingente. A necessidade do ser, submetida a essa tensao, nao pode fingir nenhuma parada. Continua a crescer sobre si mesma, a espera da revolu~ao, da forc;osa reabertura da possibilidade filosofica. Spinola nao antecipa 0 iluminismo - ele 0 vive e o desdobra integralmente. Para ser compreendido, porem, Spinola preci­sa que se deem novas condic;6es reais: s6 a revolU(;ao coloca essas condi­,,6es. 0 complemento do Tratado politico, 0 desenvolvimento do capitu­lo sobre a democracia, ou melhor, sobre a forma absoluta, intelectual e corporea, do governo das massas, s6 se torn a problema real dentro e de­pois da revoluC;ao. A potencia do pensamento spinozista tern a medida universal de seu florescimento dentro dessa atualidade da revoluC;ao.

NOTAS

1 Do lade protestante, essa acusa~ao ja havia sido formulada na carta de Velthuy­sen (Carta XLII, analisada acima). Do lado cat6lico, ver as Cartas LXVII e LXVII his, respectivamente escritas por Albert Burgh e Nicolas Stenon. A Burgh, anteriormente aluno

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de Spinoza, membra de uma familia holandesa influente, e agora convertido ao catoli­cismo, este responde com a Carta LXXVI. Sobre tudo isto, ver Correspondencia (G., IV, pp. 280-291, 292-298 e 316-324; P., pp. 1265-1274 e 1288-1293).

2 Carta LXVII bis (G., IV, p. 292). (Brevemente resumida na p. 1274, esta carta nao esta traduzida na edi~ao da Pleiade. )

3 Carta LXI de Oldenburg a Spinoza (G., IV, p. 272; P., p. 1258). 4 Carta LXII de Oldenburg a Spinoza (G., IV, p. 273; P., p. 1259). Sobre as difi­

culdades politicas encontradas por Spinoza quando este tenta publicar a Etica, ver a Carta LXVIII de Spinoza a Oldenburg, onde estao longamente expostas (G., IV", p. 299; P., pp. 1275-1276).

5 Carta LXXI de Oldenburg a Spinoza (G., IV, p. 304; P., pp. 1279-1280). 6 Carta LXXIV de Oldenburg. Spinoz. (G., Iv, pp. 309-310; P., pp. 1283.1284). 7 Carta LXXIII de Spinoza a Oldenburg (G., IV, p. 306-309; P., p. 1282-1283). 8 Sobre as rela~6es entre libertinismo, ceticismo e defsmo, refiro-me sobretudo

aos trabalhos de Popkin. Sobre esta problematica, e para uma discussao critica da bi­bliografia, permito-me remeter tam bern a meu Descartes politico.

9 Carta LXXV de Spinoza a Oldenburg (particularmente G., IV, pp. 311-313; P., pp. 1285-1286).

10 Tal e 0 sentido da resposta de Spinoza a Burgh na Carta LXXVI perfeitamen­te a altura do assunto: trata-se de uma das mais altas reivindica<;6es a favor da liberda­de de pensamento e da liberdade religiosa.

J J Para a historia da forma<;ao do texto do Tratado politico refiro-me sobretudo aos trabalhos de L. Strauss e de A. DROETIO ja evocados, e em particular (no que toea a este) a sua Introdu~ao a tradu~ao italiana do Tratado politico, Turim, 1958. Alem disso, serao consultados tambem os livros ja citados dedicados ao pensamento politico de Spinoza, e muito particularmente 0 de Mugnier-Pollet.

12 Sera citado por nos sob a forma abreviada TP. 13 TP, cap. I, par. 1 (G., III, p. 273; P., p. 918). 14 Cf., sobretudo, L. STRAUSS, Spinoza's critique of Religion, cit., p. 224. 15 TP, cap. I, par. 2 (G., III, pp. 273-274; P., pp. 918-919). 16 TP, cap. I, par. 3 (G., III, p. 274; P., p. 919). 17 TP, cap. I, par. 4 (G., III, pp. 274-275; P., pp. 919-920). 18 TP, cap. I, par. 5 (G., III, p. 275; P., pp. 920-921). 19 TP, cap. I, par. 6 (G., III, p. 275; P., p. 921). 20 TP, cap. I, par. 7 (G., III, pp. 275-276; P., pp. 921-922).

21 Os comentadores nao deixaram de ver eSSas afternativas, imediatamente pre­sentes no trabalho polftico de Spinoza. Ver particularmente 0 livro de Mugnier-Pollet, cujas observa~6es sao, entretanto, bastante banais. A abordagem de A. Matheran e bern melhor.

22 Cartas LVII e LVIII, entre 1674 e 1675 (G., IV, pp. 262-264 e 265-268; P., pp. 1248·1250 e 1251-1254).

23 Carta LX (G., IV, p. 270; P., pp. 1256-1257).

24 Cf. principalmente as Cartas LXIII, LXIV, LXVe LXVI (G., IV, pp. 274-289; P., pp. 1259-1265). Essas cartas, entretanto, ainda contem muitas ambigiiidades a res­peito da teoria do atributo. Ha Como que uma fidelidade de Spinoza a totalidade de seu sistema "escrito", a totalidade de sua obra, que persiste mesmo quando ele esta se en­caminhando para solu~6es inteiramente diversas.

25 Carta LXXXI (G., IV, p. 332; P., p. 1299). Mas ver tambem a Carta LXXXIII de Spinoza a Tschirnhaus, de 15 de iulho de 1676 (G., IV, p. 334; P., p. 1301), na qual

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Spinoza declara que "se (lhe) for dado viver 0 suficiente, ele voltad a enfrentar 0 pro­blema da extensao e do atributo", e sua critica a Descartes.

26 t.tica I, Proposi'jao XXXIV (G., II, p. 76; P., p. 345). 27 Etica I, Proposi.,ao XXXV (G., II, p. 77; P., p. 345). 28 M. GUEROULT, op. cit., t. I, p. 387-389. Posi'jao identica de A. IGOIN. Da

elipse da teoria politica de Spinoza no jovem Marx, in Cahiers Spinoza, I, Paris, 1977, p. 213 sq. Mas sabre tudo isso ver supra, cap. III, Y parte. Nao esquecer, alem disso, que esses temas tambem sao levantados por M. FRANCES, art. cit., e isto de maneira

bastante expHcita. 29 t.tica I, Proposi'jao XXXVI (G., II, p. 77; P., p. 346). 30 Cf. supra, cap. III, segunda parte, onde justamente sao comentadas as Propo-

si'joes em questiio. 31 Para a coloca'jao desses problemas, d. supra, cap. V, segunda parte. 32 Particularmente no TIP, cap. XVI, e t.tiea IV, Proposi'jao XXXVII, Escotio 2. 33 TP, cap. II, par. 1 (G., III, p. 276; P., p. 922). 34 TP, cap. II, par. 3 (G., III, pp. 276-277; P., p. 923). 35 A. DROETIO cita aqui 0 livro de I. P. RAZUMOVSKI, Spinoza and the State,

escrito em 1917, tornado por ele a fonte da interpreta'jao materialista de Spinoza de­senvolvida mais tarde na filosofia sovietica. As fontes da leitura de Spinoza como pen­sad~r materialista sao, naturalmente, bern mais antigas, inclusive na tradi'jao do mate­rialismo historico. Mas talvez seja interessante estudar mais profundamente do que 0

faz KLINE, op. cit., a genese do desenvolvimento "escolastico" da leitura materialista de Spinoza na filosofia sovietica. Seja como for, talleitura se apoia essencialmente nas

passagens do TP analisadas aqui. 36 TP, cap. II, par. 5 (G., III, p. 277; P., pp. 923-924). 37 TP, cap. II, par. 6 (G., III, p. 277; P., p. 924). 38 TP, cap. II, par. 8 (G., III, p. 279; P., p. 926). 39 TP, cap. II, par. 7 (G., III, p. 279; P., pp. 925-926). 40 TP, cap. II, par. 8 (G., III, p. 279; P., p. 926). 41 Numa interven'jao apresentada no coloquio Spinoza, nouvelles approches textuel­

les (Paris, 25 de maio de 1977), retomada in Raison presente, 43, Paris, 1978, P.F. MO­REAU exp6e os resultados de uma pesquisa informatica sobre as recorrencias das palavras jus e lex no TP. Inutil assinalar que essa analise da um resultado extremamente favoravel a jus. Nas tradu~6es de Spinoza, e principalmente em ingles, da-se, ao contdrio, vanta­gem a lex (law). Sobre toda essa questao, d. Cahiers Spinoza, II, Paris 1978, p. 327 sq.

42 TP, cap. II, par. 9 (G., III, p. 280; P., p. 927). 43 Essa remissao se refere sobretudo aos trechos da Etica citados supra, cap. VII,

nota 90. 44 TP, cap. II par. 13 (G., III, p. 281; P., p. 928). 45 Sobre 0 dispositivo tearico dessa fisica do corpo politico, d. principalmente

TP, c,ap. II, par. 14 e 15 (G., III, p. 281; P., pp. 929-930). Ver tambem as indica~6es ja evocadas de A. LECRIVAIN, Spinoza et fa physique cartesienne, cit., particularmente II, p. 204 sq., onde ele insiste fortemente na centralidade do modelo fisico na elabora­

~ao da pohtica spinozista. 46 TP, cap. II, par. 17 (G., Ill, p. 282; P., p. 930). 47 TP, cap. II, par. 19 (G., Ill, pp. 282-283; P., p. 931). 48 TP, cap. II, par. 23 (G., Ill, p. 284; P., p. 933). 49 A tenta~ao positivista continua a grassar na interpreta~ao do pensamento juri­

dico e politico de Spinoza; e principalmente na Iralia, apesar das "interpreta~6es fundamen-

268 Antonio Negri

tais" de Rava e de Solari que, ao concluirem por uma impossibilidade de reduzir 0 spino­zismo a um pensamento positivista, haviam certamente colocado 0 problema corretamente.

50 Sabre 0 positivismo e sobre 0 legalismo, sabre as caracteristicas teoricas e as fun'rOes de ambos, permito-me remeter a meu Aile origini del formalismo giuridico, padua, 1962.

51 A. Matheron captou com muita inteligencia esses caracteres dialetico-trans­~endentais da politica de Spinoza. Seu aprofundamento dessa tematica, entretanto, pa­rece~me pecar por excesso de dialetismo, isto e, por uma aten~ao excessiva a determina­~ao concreta dos exemplos estudados. 0 que produz, como veremos na terce ira parte deste capitulo, curiosos efeitos de retrodata'rao na obra de Spinoza - que pareceria quase

. dedicada a uma critica da forma-Estado pre-burguesa. 52 TP, cap. III, par. 1 (G., III, p. 284; P., p. 934). 53 TP, cap. III, par. 2 (G., II, pp. 284-285; P., p. 934). 54 TP, cap. III, par. 3 (G., III, p. 285; P., p. 935). 55 TP, cap. III, par. 4, 5, 6 (G., III, pp. 285-287; P., pp. 935-937). 56 TP, cap. III, par. 7 (G., III, p. 287; P., p. 937). 57 TP, cap. III, par. 18 (G., III, p. 291; P., p. 944). 58 TP, cap. III, par. 9 (G., III, p. 288; P., p. 939). 59 Os estudos de W. Dilthey e de sua escola nao estao isentos de tendencias vitalistas

(mais que organicistas). Permitimo-nos aqui remeter a nosso Studi sullo storicismo tedesco, Milao, 1959.

60 TP, cap. IV, par. 4 (G., III, p. 293; P., pp. 926-927). 61 TP, cap. IV, par. 5 (G., III, pp. 293-294; P., p. 947). 62 Sobre esta tematica em seu conjunro, d. supra, cap. V, terceira parte. 63 TP, cap. V, par. 1 (G., III, p. 295; P., p. 949). 64 TP, cap, V, par. 2 (G., III, p. 295; P., pp. 949-950). 65 TP, cap, V, par. 4 (G., III, p. 296; P., p. 950). 66 TP, cap. V, par. 7 (G., III, pp. 296-297; P., pp. 951-952). Sobre as rela~6es

Maquiavel-Spinoza, ver 0 que A. DROETIO diz a respeito em nota, assim como em sua Introdu~ao. Mas e evidente que sera preciso voltar longamente a tratar essas rela­~oes, absolutamente fundamentais para a hist6ria da filosofia polftica moderna: trata­se, com efeito, da alternativa (Maquiavel-Spinoza-Marx) que se coloca diante do filao "sublime" (Hobbes-Rousseau-Hegel).

67 Parece-me dificil dar referencia, na medida em que se trata, nessas afirma~oes, de urn resumo relativamente geral do que foi dito ate aqui. E fora de duvida, no entan­to, que se deve levar na mais alta considera'1ao 0 Althusius de GIERKE. Poderiamos retomar aqui 0 que foi dito a respeito da interpreta~ao do "contrato social" em Spino­za, em referencia principalmente as interpreta~oes de Vaughan, Solari e Eckstein (d. supra, cap. V, segunda parte).

68 Carta LXXXIV (G., III, pp. 335-336; P., pp. 1302-1303). 69 TP, Prefacio (G., III, p. 272; P., p. 918). 70 Para uma analise atenta dos conteudos especificos do TP, ver, alem da Intra­

du~ao de Droetto, a op. cit, de MUGNIER-POLLET, eJean PREPOSIET, Spinoza et la liberte des hommes, Paris 1967. Ambos enfatizam a correspondencia entre os textos de Spinoza e a evolu~ao das institui<;oes nos Paises Baixos.

71 G.W.F. Hegel, Le~ons sur l'histoire de fa phifosophie (d. supra, p. 228). 72 Apesar de todos as seus defeitos, apesar de seus aspectos escolasticos e deter­

ministas, 0 artigo varias vezes citado de Thalheimer me parece uma referencia bastante boa para falar das transforma~6es do regime politico da Holanda no seculo XVII.

73 Matheron, em sua importante obra "sobre a comunidade" no pensamento de

A Anomalia ·Selvagem 269

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Spinoza, varias vezes evocada, chega a urn julgamento proximo ao nosSO. A importancia do livro de Matheron vern do fato de que de se libera dos entraves das velhas interpreta­Ijoes academicas da filosofia politica de Spinoza, que rejeita a tentativa tradicional de explicar Spinoza no ambito de uma tipologia que arrole as ideologias e as fonnas de governo correspondentes. Hoje em dia, esse perigo me parece definitivamente afastado: mas Ma­theron nao tern nada com isso. No fundo, 0 fato de pensar separadamente a metafi"sica e a politica de Spinoza era apenas urn dos aspectos dessa paixao pela historia das formas de governo. Pura e simples classificaljao de "suas" formas de governo, uma historia da ideologia e da politica comO essa nao podia deixar de agradar a burguesia do seculo XIX.

74 Cf. supra, cap. V, terceira parte. 75 TP, cap. VI, p". I (G., III, p. 297; P., p. 952). 76 TP, cap. VI, par. 4 (G., Ill, p. 298; P., p. 953). 77 TP, cap. VI, par. 5-7 (G., Ill, pp. 298-299; P., pp. 954-955).

78 TP, cap. VI, par. 8 (G., III, p. 299; P., p. 955). 79 TP, cap. VII, par. I (G., III, p. 307; P., p. 967). sO TP, cap. VII, par. I (G., III, p. 307; P., p. 967). 81 TP, cap. VII, par. I (G., Ill, p. 308; P., p. 968). 82 TP, cap. VI, par. 9-40 e cap. VII, par. 3-31(G., Ill, pp. 299-307 e 308-323; P.,

pp. 955-967 e 969-990). S3 TP, cap. VII, par. 27 (G., Ill, pp. 319-320; P., pp. 985-986). 8. TP, cap. VII, par. 31 (G., Ill, p. 323; P., p. 990). S5 TP, cap. VIIl, par. 3 (G., III, p. 325; P., p. 993). 86 TP, cap. VIII, par. 4 (G., III, pp. 325-326; P., pp. 992-993).

87 TP, cap. VIII, par. 5 (G., III, p. 326; P., p. 994). 8S TP, cap. VIII, par. 8 (G., III, p. 327 sq; P., p. 995 sq). 89 TP, cap. VIII, par. 12 (G., III, p. 329; P., pp. 998-999). '0 TP, cap. VIII, par. 13 por exemplo (G., Ill, pp. 329-330; P., p. 999-1000). 91 TP, cap. IX, sobre a republica federativa. De maneira geral, sobre as relaljoes

internacionais, d. TP, cap. III, par. 11. 92 TP,cap. X. 93 TP, cap. XI, par. I (G., Ill, p. 358; P., p. 1031). 94 Remeto novamente as obras historicas varias vezes citadas neste livro. Racio­

cinando em termos deterministas, a interpretaljao marxista dassica, de Thalheimer a Desanti, ao mesmo tempo em que percebe a transformaljao interna da problematica spinozista, insiste no lugar que the caberia no desenvolvimento da ideologia burguesa. Parece-me, ao contrario, que a ruptura efetiva da continuidade do sistema nao pode em

caso algum ser conduzida as dimensoes ideologicas da epoca. 95 A documentaljao e fornecida por A. DROETIO em sua Introduljiio e em suas

notas a ediljao italiana do TP. Mas d. sobretudo M. FRANCES, Notas e Apresentaljao de La Balance politique dos irmaos J. e P. de LA COURT, que oferece uma ampla do­cumentaljao sobre 0 debate politico e constitucional proprio a epoca de Spinoza.

96 TP, cap. VII, par. 30 (G., III, pp. 321-323; P., pp. 987-989).

97 TP, cap. VIIl, par. 5 (G., III, p. 326; P., p. 994). 98 TP, cap. X, par. I (G., III, p. 353; P., p. 1033). 99 Notar particularmente a intervenljao dos editores, seguramente de filialjao aris­

tocratica, no texto do frontispicio do TP, onde a palavra "aristocrata" esra, com toda certeza, acrescentada; assim tambeID no inicio do cap. VIII onde, muito provavelmen­te, os organizadores acrescentaram uma especie de premissa-sumario sobre a "superio· ridade do regime aristocratico" (G., III, p. 271 e 323; P., p. 917 e 990).

Antonio Negri 270

Capitulo IX DIFEREN<;:A E PORVIR

1. PENSAMENTO NEGATlVO E PENSAMENTO CONSTITUllVO

Na filosofia do s<culo XVII, Spinoza realiza 0 milagre de subordi­nar a crise aD projeto. Sozinho, figura anomala e irredutfvel, ele rom3 a crise da utopia do Renascimento como realidade a ser dominada. A do­mina~ao teorica tern de tee 0 mesma potencial de absolutez da utopia em crise. A anomalia filos6fica de Spinoza consiste nisto: na irredutibilidade de seu pensamento aD desenvolvimento do racionalismo e do empirismo modernos, que sao filosofias subordinadas a crise, filosofias sempre dua­

listas e irresolutas, voltadas para a transcendencia como territorio exclu­sivo de replica ideal e de domina,ao pratica do mundo - e portanto filo­sofias funcionais para a definirrao da burguesia, para seu definitivo auto­reconhecimento como classe da crise e da mediar;ao. Contra Descartes, Spinoza se reapropria da crise como elemento da ontologia; contra Hobbes, Spinoza funcionaliza a crise dentra do construtivismo da ontologia 1.

A partir dessa ruptura substancial se desenvolve a hist6ria filos6fica spinozista. Existem "dois" Spinoza? - perguntamo-nos, iniciando este trabalho2. Sim, existem dois Spinoza. Hi 0 Spinoza que puxa pela utopia do Renascimento ate a crise e que a faz desenrolar-se em paradoxo do mundo, ha 0 Spinoza que intervem no paradoxo do rnundo e 0 investe em uma estrategia de reconstrw;;,:ao etica. Estes dois Spinoza sao duas fases de urn projeto especulativo unitario, dois momentos de solu~ao de urn mes­mo problema. Do pensamento negativo para 0 pensamento constitutivo, podemos dizer utilizando uma terminologia contemporanea. Efetivamen­te, Spinoza opera uma crftica destrutiva do esquema de homologia do absoluto, partindo do interior do absoluto, conduzindo as condi~6es or­ganizativas deste dentro de antinomias insohiveis enquanto as condi~6es da organiza~ao nao forem revolucionadas: e este e 0 momento negativo da teoria. Com muita freqiiencia, neste limite de crise teorica guiada, 0

pensarnento para. As condi~6es de vida do organismo teo rico criticado parecem representar, apesar de tudo, as condi~6es absolutas do filosofar. o pensamento negativo conclui entao - nesse limite - por uma concep­~ao cinica do ser, por urn puro pragrnatisrno projetual que e indiferente a qualquer conteiido ontologico - com isto hipostasiando formalmente a ordem logica do sistema criticado3• Depois de Wittgenstein vern Heidegger. Spinoza e uma alternativa a essa corrente filosofica. E a refunda~ao das

A Anomalia -5e1vagem 271

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condi,oes de pensabilidade do mundo. Nao uma filosofia do come<;o, nem mesma urn novo comec;o: recomec;ar, aqui, naD e selecionar, discriminar, fixar nOVDS pontos de apoio, mas tomar a dimensao inteira do ser como horizonte da constituic;ao, da possibilidade, racionalmente dirigida, de li­bera,ao. 0 espa,o da crise e a condi,ao ontol6gica de urn projeto de trans­formac;ao,o limite e inerente aD infinito como conclic;ao de Iiberac;ao. Esta insen;ao do pensamento constitutivo no pensamento cdticD e negativo representa a solu,ao dos enigmas te6ricos colocados pela filosofia burguesa na base de sua especffica mistificac;ao do mundo, au seja, de sua ideologia e da figura de sua atividade apropriadora.

as pontos aos quais 0 pensamento spinozista, enquanto filosofia nega­tiva, se prende, sao substancialmente todos aqueles que definem homologia e finalismo da multiplicidade. Uma concep,ao do ser unfvoco e colocada contra toda homologia espacial, a favor da versatilidade plural do ser e novamente contra toda finaliz3c;ao temporal de seu desenvolvimento. 0 mecanicismo spinozista nega toda possibilidade de concep,ao do mundo que naD se represente como emergencia singular, plana"e superficial do ser. Deus e a coisa. Deus e a multiplicidade. Urn e multiplo sao for,as equipolentes e indiscerniveis: no terreno do absoluto a sequencia numerica nao e dada senao como assunC;ao da totalidade dos eventos. Cada urn absoluto em si4•

Os pontos sabre os quais se desenvolve 0 pensamento constitutivo sao aqueles que resultam do processo crftico: pontos, emergencias, eventos que - na rela,iio de abertura metaffsica definida - sao novamente submetidos a tensao, a potencia da totalidade do ser. A roconstruc;ao do mundo e assim o proprio processo da continua composic;ao e recomposic;ao ffsica das coi­sas - com absoluta continuidade, nessa natureza fisica se inserem os me­canismos constitutivos da natureza historica, pratica, etico-politica.

Esse processo e essas passagens nao sao dialeticos: a dialetica nao en­contra lugar em Spinoza porque 0 processo constitutivo da ontologia nao conhece 0 negativo e 0 vazio senao na forma do paradoxo e da revolw;ao teorica5. 0 processo constitutivo acumula 0 ser qualitativa e quantitativa­mente, ocupa sempre novos espac;os, constroL A logica spinozista nao co­nhece a hipotese, so conhece 0 trac;o, 0 indki06 . A versatilidade do ser contada por ela esta dentro de uma tessitura de atos materiais que, tendo diversas combinac;6es e figuras, vivem mesmo assim urn processo de combinac;ao e de autoformac;ao. A etica mostra esse dinamismo finalmente desdobrado. DaProposi,ao XIII do livro II da Erica aos livros III e IV (verdadeiro cerne do pensamento spinozista) a passagem da fisicidade a eticidade se desenro­la fora de qualquer finalismo, em termos, ao contrario, axiomaticos e fenome­nologicos. Em sua complexa figura e composic;ao, a Etica e sobretudo uma axiomatica para uma fenomenologia da pratica constitutiva. A Etica e uma obra metodica, nao porque seu prolixo metodo geometrico seja urn para-

272 Antonio Negri

digma de pesquisa, mas porque e uma obra aberta, defini<;ao de urn primeiro tra,ado da obra humana de apropria,ao e constru,ao do mundo. Vma serie de condic;oes absolutamente modernas funcionam assim como termos ele­mentares do discurso spinozista: nao s6 urn espfrito indutivo que se desdo­bra ate 0 prazer do saber indiciario, mas urn ceno materialisrno e urn cole­tivisrno segura que funcionam como pressupOstos do processo de consti­tui,iio. Na medida em que a filosofia da emana,iio (recomposta em termos de Renascimento), a teoria dos atributos e a do paralelismo se atenuam e perdem forc;a sob os golpes do pensamento negativo, 0 mundo reaparece em seu frescor material e a sociedade em Sua determina<;ao coletiva. Mate­rialisrno e coletivismo sao aspectos fundamentais do pensamento constitutivo. Nao h<f constituic;ao ontologica que nao seja apropria~ao e acumula~ao de elementos materiais, tanto ffsicos quanto sociais. Novamente, aqui, a dia­letica nao encontra lugar: 0 pensamento spinozista, assim como nao conhece o negativo, nao conhece a verticalidade dos mecanismos de sublima~ao e de supera~ao (ou melhor, conhece-os como tenta<;ao de que tern de Se libe­rar). 0 novo, oqualitativamente diverso, e em Spinoza assinalado pela com­plexidade dos processosconstitutivos, na determina,ao dinamica (inercial) deles sobre 0 plano fisico, na determina~ao que eles imp6em, "appetitus" e "cupiditas", sobre 0 plano etico e hist6rico. 0 dinamismo constitutivo, fisico e etico, conclui entao eSsa primeira postura rigorosamente materia­lista do pensamento moderno.

A relac;ao entre pensamento negativo e pensamento constitutivo, tal como resulta da filosofia de Spinoza, e decisiva tam bern no terreno da teo­ria da ciencia. Em Spinoza a ciencia se reconhece como construtividade, liberdade e inova,iio. Nao e, em sentido algum, teleol6gica ou teologica­mente condicionada. 0 modelo cientffico que 0 capitaIismo produz para seu proprio desenvolvimento fica envolvido na critica do pensamento ne­gativo. Se 0 capitalismo e for~a historica absoluta, que produz organizac;ao e hierarquia, que imp6e a produc;ao na forma do Iucro, entao Sua ciencia nao pode ser senao teleologica. Aqui a poiemica do pensamento negativo volta-se diretamente Contra e1e? E verdade que a ciencia pode ser conside­rada somente como for~a pratica e por isso a ciencia esta em todos os casos vinculada aos mecanismos da domina\=ao: mas a ciencia moderna e trama do poder absoluto. Assim como Sua vigencia e teleologica, sua autoridade absoluta so pode se basear no dualismo, na base transcendental do lucro e do comando. Onde colocar a crftica? Exatamente no cruzamento entre ciencia e poder, na absolutez que a determina~ao cientffica concede ao poder. Como coman do, como hierarquia, como riqueza. A diferen~a essencial que 0 pen­samento spinozista coloca diante do desenvolvimento do pensamento moder­no se fundamenta na critica da homologia entre ciencia e poder, em qual­quer sentido em que aquela se apresente, estrutural ou formal, hobbesiana

A Anomalia-Selvagem

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Oll cartesiana. Os pressupostos dessa crftica empurram 0 pensamento spi­nozista para 0 terreno de uma filosofia do porvir: de uma antecipa~ao que prospectivamente coloca, na radicalidade do impacto poiemico, a crise de epoca da ciencia e do sistema do capitalism08. Diante disso, 0 pensamento constitutivo. Isto e, a necessidade e a possibilidade para a ciencia de se exercer como maquina de libera~ao. Este e 0 ponto fundamental. 0 cruzamenro entre pensamenro negativo e pensamento constitutivo determina 0 rransborda­mento, por assonancia, da totalidade criticada sobre 0 projeto da libera~ao. A vastidao do projeto de libera~ao integra a radicalidade do projeto nega­tivo da critica. A ciencia, com isso, e reportada a dimensao etico-politica, e preenchida com esperan~a. Ji a recordamos: a dima cultural holandes, em sua relativa autonomia e anomalia historica, nao ve a dissolu~ao do con­texto civil dentro do qual uniraria e solidariamente a ciencia se desenvolve _ as Academias do poder absoluto nao se impuseram, a unidade cultural permanece e se representa como convivencia de virtu des eticas e cognos­citivas. Nao e entao urn projero antigo aquele proposro pela conce~ao spino­zista da ciencia. E, ao contrario, urn aspecto essencial da opera~ao de supe­raC;ao e deslocamento que 0 tempo projetual de sua filosofia opera em re­la~ao ao tempo historico de sua existencia: e urn momento de prefigura~ao, de criatividade, de libera~ao. 0 projeto constitutivo deve entao colocar a ciencia como essencia nao finalizada, como acumula~ao de atos de libera­~ao. Coloca a ciencia nao como natureza, mas como segunda natureza, nao como conhecimento, mas como apropria~ao, nao como apropriac;ao indi­vidual, mas como apropriac;ao coletiva, nao como poder, mas como potencia. A «Ethica ordine' geometrico demonstrata" e ciencia ela mesma - ciencia de urn ser objetivo que sabe a libera~ao como sua propria natureza como

sua propria tensa09• o que e fascinante, neste quadro de reconstruc;ao, e a enormidade

do projeto spinozista. Nos mesmos so poderiamos historicamente motiva-10 como transferencia de urn fundac;ao religiosa e metaffsica para urn pro­jeto humanista e revolucionario. Esclarecendo que os elementos histori­cos da transferencia sao incidentais: em sua absolutez, elas tern antes urn tal ritmo interno expansivo que a critica metamorfoseia sua origem, nao porque esta diminua a potencia deles, mas porque a ajusta e a reorganiza. A sintese dos componentes filosoficos tradicionais se realiza em Spinoza no sentido de rompimento: imitil seguir os pressupostos da filosofia spino­zista se nao se percebe 0 saIto qualitativo que ela determina. A continui­dade do pensamento spinozista em rela~ao ao curso anterior da historia da metaffsica consiste numa descontinuidade radical, que exalta a utopia da consciencia e da liberdade - patrimonio do pensamento ocidental -em projeto de libera~ao. A perspectiva do mundo nao e utopia, 0 imanen­tismo nao e estetico, a libera~ao nao e mais artesanal: mas tudo isto e pres-

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suposto, e basilar. Spinoza requalifica 0 problema da filosofia moderna, que e a conquista do mundo e a liberac;ao do homem, e destroi suas mul­tiplas antinomias e a sempre renascente separa~ao (dualista, transcenden­talista ... ) na teoria do conhecimento e da historia, do mesmo modo como desde sempre a critica tern destruido 0 sofisma de Zenao: caminhando, pando em movimento a realidade. A filosofia de Spinoza nasce levando ao extremo 0 paradoxo ontologico do ser: reconhecendo que a hipostase, a unica hipostase possivel, e a do mundo e do desenrolar de sua necessi­dade entre a fisica e a prarica. Uma concep~ao do mundo que produz ime­diatamente, como a partir de sua propria base, uma concep~ao da ciencia e do saber mundano inteiramente moderna: tecnica e liberatoria. Uma concepc;ao radicalmente materialista do ser e do mundo.

Em nossa opiniao essa diferenc;a, representada peIo pensamento spino­zista na historia da metafisica ocidental, represenra urn altissimo ponto para o desenvolvimento teorico do pensamento moderno. Em outros term os, 0 pens'amento spinozista para nos representa uma estrategia de superac;ao das antinomias da ideologia burguesa. Mas ja que a ideologia burguesa e essencialmente anrinomica, esta supera~ao e supera~ao tout court da ideo­logia. Spinoza nos restituiu 0 ser em sua imediatez. Spinoza destroi a ho­mologia entre mediac;ao e articulac;ao do ser e media~ao e articulac;ao do poder burgues. Spinoza nos restitui 0 mundo como territorio de uma ale­gre construc;ao das necessidades imediatamente humanas 10• A diferenc;a spinozista imp6e uma reviravolta materialista da filosofia que talvez so ao nivel da pesquisa amadurecida pela crise de capitalismo tardio tenha ad­quirido urn sentido definido: aquela estrategia e atual, aquele germe desenvolveu sua potencialidade. A historia da filosofia do materialismo11 nos mostra uma corrente fundamentalmente subordinada, as vezes ate mesmo parasitaria, pelo menos no ambito do pensamento moderno e con­tempoJ;'aneo: agora, diante do pensamento spinozista e integrada por este, aquela tradi~ao fica potentemente renovada. 0 espirito inovador provem da fundamentac;ao humanista e pratica do pensamento constitutivo spino­zista 12. 0 pensamento spinozista e perfeitamente idealista quando se apre­senta como pensamento negativo, quando desenvolve a utopia burguesa vivendo-a ate as extremas conseqliencias abstratas de sua valsa espiritual; em compensa~ao, e perfeitamente materialista assim que se recomp6e de maneira construtiva, reverte a impossibilidade de urn mundo ideal em ten­sao rnaterialista de seus componentes e os engloba num projeto pratico, num dinamismo violento de liberac;ao mundana. "Benedictus maledictus": nunca foi urn fil6sofo com tanta justic;a odiado por sua epoca, burguesa e capitalista. Nunca uma filosofia foi sentida como tao diferente. Efetiva~ mente, ela atacava aquilo que a ideologia e 0 sentir comum, pi lorado pelo poder, viviam, naquele tempo, como Ihes sendo rna is proprio e substan-

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cial. Leo Strauss anota: "Se e verdade que toda cultura que se respeita co­loca necessariamente alguma coisa da qual e absolutamente proibido rir, pode-se dizer que a vontade de transgredir eSsa proibi~ao faz parte intima da inten~ao de Maquiavel.,,13 E de Spinoza. Ele rompe de maneira mais decidida com 0 tempo hist6rico de sua filosofla. Projeta no sentido ade­quado a ruptura em dire~ao ao futuro, em dire~ao a condi~6es de pensa­mento que permitam a hegemonia do projeto de libera~ao.

E entao: como essa diferen~a spinozista e construtiva, como essa nega­tividade e constitutiva! 0 entrela~amento organico desses dois motivos, na hist6ria da filosofia europeia, e fundamental. Spinoza e 0 primeiro a plas­mar esse mecanismo 16gico que a filosofia burguesa tentara, em seu desen­volvimento posterior, anular com constancia e continuidade. No kantismo, comO no idealismo classico, 0 termo de confronto e polemica permanece constantemente sendo Spinoza 14: 0 que deve ser destrufdo e justamente 0

entrela~amento da nega~ao da ideologia e da constru~ao do mundo, a ine­rencia do limite, da materialidade, ao infinito. Para todas as tradi~6es e posi~6es idealistas, 0 pensamento negativo s6 pode existir como skepsis, como pars destruens _ cuidado para nao confundi-lo com 0 projeto! 0 pensa­mento idealista quer a ingenuidade e a pureza da funda~ao: nao pode acei­tar a potente, complexa, espuria territorialidade e circula~ao e versatilida­de do ser construidas pdo pensamento negativo spinozista. 0 arnor pe1a ver­dade se dissocia no idealismo da paixao peio ser real. 0 efeito dessa opera­<;ao e com toda certeza a mistifica<;ao. Em Spinoza verdade e ser encontram uma exc1usividade de efeito reciproco que so a pnitica constitutiva, mate­rial e coletiva, interpreta, articula e produz: em Spinoza 0 esquematism

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transcendental e so pratico, material. 0 mundo so exalta a propria absolutez reconhecendo-se em seu proprio ser-dado. E absoluto em sua particulari­dade. E racional no processo da libera~ao. Finito e infinito produzem a tensao da libera~ao. Nao se pode dizer do mundo outra coisa que sua absolutez, e esta vive do que e real. A teoria metafisica e a teoria da ciencia encontram em Spinoza, na origem do mundo moderno, uma primeira e total concor­dancia. Elas representam a altemativa fundamental a toda a corrente da me­tafisica e da teoria burguesa da ciencia que vern depois. Spinoza vive comO alternativa: hoje essa alternativa < real e atual. A analitica spinozista do espa~o pleno e do tempo abeno esti 50 tornando <tica da liberac;ao em todas as

dimensoes que esse discurso constr6i e disp6e.

2. ETlCA E POLiTlCA DA DESUTOPIA

A verdadeira politica de Spinoza e a metafisica. Contra as potencia­lidades desta se descarregam a polemica do pensamento burgues e todas

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as tentativas de mistifica<;ao que correm sob a etiqueta de "spinozismo". Mas a metafisica spinozista se articula em discurso politico e neste campo desenvolve especificamente algumas de suas potencialidades. Procurare­mos aqui identifica-Ias.

A metaffsica nos apresenta 0 ser como for<;a produtiva e a etica como necessidade, au melhor, como articula<;ao fenomenologica das necessida­des produtivas. 0 problema da produ~ao e da apropria~ao do mundo se torna, neste quadro, fundamental. Mas isto nao e especffico de Spinoza: 0

seculo XVII apresenta este mesmo problema e 0 apresenta resolvido de acordo com urn eixo fundamental, 0 da hipostase do comando, 0 da hie­rarquia da ordem e dos graus de apropria~ao. Na filosofia do ,<culo, po­demos acentuar duas figuras ideologicas fundamentais, destinadas a fun­damentar e a representar, com a ordem burguesa, a ideologia do ancien regime: de urn lado as varias reformula~6es do neoplatonismo, de Henry More ao espiritualismo cristao,15 do outro 0 pensamento do mecanicis­mo16• Ambas as teorias sao funcionais para a representac;ao do novo fe­nomeno decisivo que intervem: 0 mercado. Ambas explicam nele a arti­cula~ao de trabalho e valor, a circulac;ao da produ~ao para a acumulac;ao do lucro, para a fundamenta<;30 do comando. 0 esquema neoplatonico introduz a hierarquia no sistema fluido do mercado, 0 esquema mecani­cista exalta a comando como tenscio dualfstica pedida, exigida, encomen­dada peio mercado. Entre uma e outra destas ideologias (a neoplatonica < antes chamada pos-renascentista que propriamente do seculo XVII) carre a grande crise da primeira metade do seculo: 0 mecanicismo e a filosofia burguesa da crise, a forma ideal da reestrutura<;ao do mercado e da ideo­logia, a tecnologia nova do poder absoluto!7. Nesse quadro a utopia da for~a produtiva, que e a heran<;a indestrutivel da revolu<;ao humanista, e despedac;ada e reproduzida: despedac;ada na ilusao (que the era pr6pria) de uma continuidade social e coletiva de urn processo de apropria<;ao da natureza e da riqueza; reproduzida, em primeira instancia, como ideia do comando, em segundo lugar e sucessivamente, como hipotese de uma apro­pria<;ao redundante e progressiva na forma de lucr~. A ideia de mercado e isto: duplicac;ao (misteriosa e sublime) do trabalho e do valor; otimismo progressivo, dire¢o racional e resultado de otimiza<;ao, abertos na rela­<;ao explorac;ao-Iucro18• A metaffsica da for<;a produtiva, rompida pela crise, < reorganizada peio mercado: a filosofia do s<culo XVII < a representa~ao dela. Este e 0 pensamento fundamental em torno do qual se assenta a cul­tura barroca da burguesia: interioriza<;ao dos efeitos materiais da crise e reprodu~ao utopica e nostalgica da totalidade como cobertura dos meca­nismos de mercado. Muita atenC;ao: a hegemonia desse dispositivo fun­cional, que atravessa quase todas as filosofias do seculo, entre Hobbes, Descartes e Leibniz19, e tao forte que impoe, no proprio seculo e imedia-

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tamente depois, uma leitura hom61oga tambem do pensamento spinozista - e este 0 "spinozismo"! A for~osa redu~ao da metaflsica de Spinoza a uma ideologia neoplatonizante, emanacionista, reprodu~ao da imagem do esquema social burgues feita pelo Renascimento tardio. Spinoza barroco? Nao, mas se for 0 caso, neste quadro, uma figura espuria e fatigada, que refuta a crise, que repete a utopia na forma renascentista ingenua: e este 0

spinozismo20. Quando 0 idealismo chlssico retoma Spinoza, na verdade retorna (inventa?) so 0 spinozismo, uma filosofia renascentista da revolu­~ao burguesa do mercado capitalista21 !

o pensamento maduro de Spinoza e metansica da for~a produtiva que recusa a ruptura critica do mercado como episodio misrerioso e trans­cendental, que, ao contnirio, interpreta - imediatamente - a rela~ao entre tensao apropriativa e for~a produtiva como tecido de libera~ao. Materia­lista, social, coletivo. A recusa spinozista nao nega a realidade da ruptura crfrica do mercado, ate intervem na solw;ao determinada que tern ela no seculo XVII. Toma a crise como elemento do desenvolvimento da essen­cia humana, nega a utopia do mercado e afirma a desutopia do desenvol­vimento. 0 can iter coletivo da apropria~ao e primario e imediato, e ime­diatamente luta - nao separa~ao, mas sim constitui~ao. Em suma, recusa determinada da organiza~ao capitalista e burguesa da rela~ao entre for~a produtiva e apropria~ao. Mas veremos isto mais adiante, mais detalha­damente. Aqui vale mais a pena pararmos na espessura da ruptura spino­zista, na importancia teorica da centralidade da desutopia. Pois e este 0

ponto em tarno do qual se fixa uma alternativa radical e originaria do pen­samento burgues. Alternativa entre descoberta e exalta~ao teo rica da for­~a produtiva e, do outro lado, sua organiza~ao burguesa. A historia do pensamento moderno deve ser vista como problematica da nova for~a produtiva. 0 filiio ideologicamente hegemonico e aquele que e funcional para 0 desenvolvimento da burguesia: ele se dobra sobre a ideologia do mercado, na forma determinada imposta peIo novo modo de produ~ao. o problema e, como demonstramos amplamente22, a hipostase do dualismo do mercado no sistema metaflsico: de Hobbes a Rousseau, de Kant a Hegel. Este e entao a filao central da filosofia moderna: a mistifica~ao do merca­do se torna utopia do desenvolvimento. Diante dela, a ruptura spinozista - mas ja, primeiramente, a feita por Maquiavel, depois, a consagrada por Marx. A desutopia do mercado se torna neste caso afirma~ao da forr;a produtiva como terreno de liberar;ao. Nunca se insistira 0 suficiente nesta alternativa imanente e possfvel na hist6ria do pensamento ocidental: e si­nal de digniciade, tanto quanta a outra leva 0 selo da infamia. A ruptura spinozista atinge 0 cerne da mistificar;ao, toma a primeira realidade do mecanismo critico do mercado como sintoma e demonstra~ao de sua in­famia. 0 mercado e superstir;ao. Mas superstir;ao instalada para destruir

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a criatividade do homem, para criar medo COntra a fors:a produtiva, en­trave e bloqueio a liberar;ao. A espessura da ruptura spinozista nao pode­ria ser maior e mais significativa.

Voltemos entao ao contetido da desutopia spinozista. Uma metafisica do ser como fisica da potencia e etica da constituir;ao. 0 trabalho de Spi­noza no desenvolvimento dessa hip6tese de pesquisa, no processo mesmo da realizar;ao de sua definir;ao, isso ja vimos. Trata-se agora de retomar a especificidade polftica desse desenvolvimento. Desutopia: ou s"eja, entre­la~amento da tendencia constitutiva e do limite determinado, crftico. Este entrelar;amento e visto por Spinoza num horizonte de absoluta imanencia. Nenhum desnivel transcendente esta anexo ao conceito de constitui~ao. Qualquer articular;ao do processo esta, entao, entregue unica e exclusiva­mente a projetualidade etica: reside numa tensao que corre Sem solu~ao de continuidade, da dimensao da fisicidade a dimensao etica. E e uma tensao construtiva de ser. Ser e nao ser se afirmam e se negam simples, discreta, imediatamente. Nao ha dialetica. 0 ser e 0 ser, 0 nao-ser e nada. Nada: famasma, superstir;a.o, fundo. Oposis:ao. Bloqueio do projeto constitutivo. Diante dele, a metaffsica do ser passa diretamente a etica e a politica. Ela tambem vive a tentar;a.o e 0 perigo do nada. Mas, justamente, para domina-10 de maneira absoluta. Na desutopia de Spinoza a centralidade do polfti­co e afirma~ao da absoluta positividade do ser. Diante de uma teoria politica hegemonica que quer 0 politico como reino da astucia e da domina~ao, Spinoza afirma 0 polftico Como "poder moderado", isto e, como cons­titui~ao determinada de consenso e organizar;ao para a liberdade coletiva. Diante de uma filosofia politica que se pretende como teoria absoluta da obrigar;a.o, Spinoza coloca no processo da imaginar;ao toda base de norma­tividade. Diante de uma ideologia que quer a organizar;ao da sociedade COmo simula~ao do mercado, Spinoza contra poe a constituir;ao da socie­dade Como trama de desenvolvimento da forr;a produtiva. A "potentia", a apropria~ao sao em Spinoza os elementos constitutivos da coletividade humana e as condir;6es de sua progressiva libera~ao. Contra 0 individua­lismo possessivo que e a marca hegemonica da filosofia do seculo XVII, Spinoza afirma a alternativa de urn processo constitutivo, nao linear, mas atual, nao teleol6gico, mas determinado e efetivo. Liberdade cujo desen­rolar constitui ser, ser cuja constitui~ao determina liberdade. Atualidade que s6 pode ser prefigurada na medida de Sua efetividade, necessidade que se coloea como efeito e medida da liberdade ..

Ha quem tenha falado de urn Spinoza liberal, outros de urn Spinoza democratico. Do meSmo modo se poderia entretanto falar _ e foi feito - de urn Spinoza aristocratico ou momirquico constitucional. Ou anar­quista? Ninguem nunca 0 disse. Entretanto e de tal maneira vao tentar atribuir a figura politica de Spinoza as varias determinar;6es da teoria das

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formas de governo e de Estado, que ate se poderia dizer Spinoza "anar­quista"! Por outro lado, nao e justamente esta a acusa~ao, "ateu" e "anar­quista", que Ihe imputam os seculos do ancien regime? Mas insensatamen­teo 0 problema da verdade nao e de formas de governo, mas de formas de libera,ao. 0 problema politico de Spinoza e 0 de dar a liberdade e a razao a imediatez das necessidades e a sua transcri~ao social e coletiva, a absolutez da potencialidade do ser. Qualquer defini,ao das formas de governo tern de se haver com a tematica da potencia do ser: mas, com isso mesmo, se dissolve. A polltica e fun~ao primaria da experiencia e do saber enquanto fixa'tao de uma rela'rao entre tensao de libera~ao e limite determinado. Mas esta rela~ao e incessantemente ultrapassada, nao por urn sistema de nega­\oes, nao por uma serie de comandos, mas por projetos de apropria\ao posteriores, plenos, materia is. A unica acumula~ao que Spinoza conhece

e a da obra coletiva de libera,ao. o politico esta no cerne da metafisica spinozista e evidencia sua pro­

posta alternativa em rela~ao a corrente do pensamento ocidental moder­no. Exemplifica essa alternativa metafisica do ponto de vista teorico. Mas, sobretudo, a explicita e demonstra do ponto de vista pratico. Seculos de luta das minorias oprimidas, do proletariado explorado, e de busca da Ii­berdade - e os grandes levantamentos socia is que visavam a subversao do novo sistema de domina\ao imposto pela burguesia, e 0 amadurecimento e a explosao dos antagonismos que 0 novo modo de produ~ao desenca­deou _, tudo isso pode ser reconduzido ao pensamento spinozista como a urn apice altamente expressivo. 0 politico spinozista, como fun~ao de alternativa metafisica, e uma verdadeira e propria antftese historica ao de­senvolvimento do modo de produ,ao capitalista. 0 fato de que a apropria­~ao seja aqui uma chave constitutiva, e nao a base de legitima~ao de uma norma de domina~ao, demonstra e prefigura a rela\ao real, que se consti­tui pelos seculos da historia europeia, entre experiencia teorica do huma­nismo e experiencia concreta de libera\ao. A filosofia e grande e bela, nesses caminhos da subversao do real e da sua miseria: Spinoza e seu elogi0

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Voltemos entretanto a desutopia. Esta nao deve ser concebida como momento residual, ou apenas relevante dialeticamente, mesmo quando em confronto com as correntes hegemonicas e dominantes do pensamento moderno e contemporaneo! A desutopia spinozista so e revolta, rebeliao, enquanto e, antes de rna is nada, riqueza. A tensao entre limite e tendencia que a constitui, 0 impulso metafisicamente apropriativo e constitutivo que a forma, tudo isso e riqueza, e libera~ao da for~a produtiva. Poder-se-ia dizer, certamente exasperando os termos do discurso, mas desdobrando-0, mesmo assim, em sua intima racionalidade, que a for~a da desutopia se coloca para alem da propria exposi~ao da etica e da poHtica, que ela e efetivamente uma filosofia da transi~ao para uma sociedade inteiramen-

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te, radicalmente constitufda sobre a liberdade! Reconhecer urn conteudo utopico na desutopia ? Muitos comentadores24 acharam que deveriam, sob varias formas, tirar essa conseqiiencia definit6ria. Quando se Ie Spinoza, a alma realmente fica inclinada para essa conclusao. Mas a inteligencia crftica nao pode aceitar a sugestao. No proprio livro V da Etica, e com efeito sempre a tensao constitutiva que leva a melhor, ainda quando a utopia ressurge de maneira vigorosa2S• Com efeito, 0 impulso emancipativo do pensamento da desutopia nunca se coloca num horizonte de dispositivo hipostasiante: em caso algum. A emancipa~ao e transi~ao, nao porque intua o futuro, mas porque se enraiza no presente e 0 percorre. A emancipa~ao e uma necessidade, urn sistema ontologico de necessidades que se fazem atuais e determinam uma nova composi~ao e uma nova atualidade atra­vessando 0 real, estruturando 0 presente, constituindo aquele paradoxal e efetivo ponto de coincidencia de necessidade e possibilidade que e 0 si­nal metaffsico do ser spinozista. Potentia-appetitus-cupiditas-mens: uma pratica constitutiva forma a desutopia. A desutopia e a configura\ao teo­rica da determinidade, da fenomenologia, da pratica. Desutopia como de­termina~ao, como atualidade determinada. A emancipa~ao e a desutopia. Em outras palavras, a exuberancia e a formidaveI produtividade do ser sao pressupostos do processo emancipativo e a desutopia mostra sua poten­cia sobre esta base. 0 ser esti maduro para a liberdade. A liberdade e a felicidade, portanto, se constroem como manifesta\oes do ser. Mas esta defini~ao tam bern tern 0 perigo de ser enganosa: pois sempre, em Spino­za, a rela~ao entre expressao e dado, entre tendencia e limite, entre cria. ~ao e criatura, e tao estreita e tao vinculada as determina~6es concretas do ser que 0 simples fato de se falar ou se referir a potencia do ser enquanto tal tern 0 perigo de reintroduzir inaceitaveis dualismos ou aparencia de urn ser formal. Nao, 0 fato de que e plano e integro e 0 que demonstra a po­tencia do ser, 0 fato de que e dado e 0 que mede sua atualidade! Emanci­pa~ao e entao a conjuga~ao da atividade humana como dado e determi­na\ao. Emancipa~ao e entao organiza~ao do infinito, declara~ao da po­tencia humana como expressao determinada do indefinido. A desutopia e a forma especffica da organiza~ao do infinito.

A anomalia do pensamento de Spinoza em rela\ao a sua epoca se torna entao anomalia selvagem. Selvagem porque articulada com a densi­dade e a multiplicidade de afirma,oes que surgem da extensa afabilidade do infinito. Ha em Spinoza 0 prazer de ser infinito. Que e prazer do mun­do. Quando 0 paradoxo do mundo, a ten sao nele aberta entre infinidade positiva e infinidade das determina~oes, se desenvolve em atividade e se reconhece no processo constitutivo, enta~ 0 prazer do mundo come~a a se tornar central e a anomalia se faz selvagem. Selvagem porque vincula­da a multiplicidade inexaurfvel do ser, as suas florescencias, tao vastas

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quanto cheias de movimento. 0 ser de Spinoza e selvagem e sombreado e multiplo em suas expressoes. E versatil e selvagem. Ha sempre algo de novo na ontologia spinozista. Nao so na ontologia historica que tern a ver com o desenvolvimento, mas sobretudo na ontologia essencial que, do corte longitudinal do ser, de sua profundidade, promana. Na passagem da po­tencia fisica para a cupiditas moral, para a mens. E, entao, anomalia sel­vagem como qualidade da organiza~ao do infin"ito. Como caracteristica principal daquela tensao entre infinito e determina~ao, entre tendencia e limite que constitui 0 modo de apresenta~ao da potencia do infinito. A ano­malia selvagem entao nao e apenas urn carater da colocar;ao historica do pensamento de Spinoza em sua epoca e no desenvolvimento da filosofia ocidental, nao e apenas uma qualificar;ao da riqueza de seu pensamento e de sua abertura para 0 porvir: e tambem urn momento fundamental e urn modo proprio de expressao do ser. A desutopia spinozista e prazer da ano­malia selvagem do ser. E entao muitos dos fios que tecem a filosofia de Spinoza voltam a se mostrar na superficie. Como componentes historicos, eles so formam 0 sistema de Spinoza enquanto se qualificam na atrac;ao da complexidade selvagem do sistema. Como todos os produtos de alta industria, 0 pensamento spinozista contem a complexidade de sua apare­lhagem dentro da potencia da forc;a produtiva e, sobretudo, expoe essa complexidade comO singularidade irredutivel. A desutopia e ao mesmo tempo critic~ do existente, dos componentes, e positiva, singular, constru­<;:'io do presente. Complexidade dos componentes e simplicidade da com­posic;ao. Singularidade de expressao de superficie, ate se tornar prazer e doc;ura do mundo. A irredutibilidade desta conclusao spinozista e total. Em termos muito elementares, talvez urn tanto extremados mas certamente intensos, podemos dizer: em Spinoza a forc;a produtiva nao se sujeita a nada que nao seja a si mesma, e em particular se subtrai a dominac;ao das rela­c;oes de produc;ao. Quanto a estas, ela quer, ao contrario, dominar, a par­tir de seu proprio ponto de vista, de sua propria potencia. E esta concep­c;ao da forc;a produtiva - com seu referente material, ontologico - que da a filosofia de Spinoza e a sua concepc;ao do ser uma inesgot<lvel rique­

za, uma selva gem determinac;ao.

3. CONSTlTUI<;:Ao E PRODU<;:AO

Forc;a produtiva e relac;oes de produc;ao: a contradiC;ao nao e metaff­sica, mas material, determinada. 0 pensamento de Spinoza, em seu signi­ficado universal, pode ser reduzido a esta simples afirmac;ao. A forc;a pro­dutiva emana da infinidade do ser e so sua organiza~ao e dada no movi­mento do infinito. Toda subordina~ao e ordenamento da forc;a produtiva

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que nao seja 0 proprio movimento autonomo de sua forc;a constitutiva e negatividade, antagonismo, vazio. A expressao da forc;a produtiva ocorre materialmente, sempre em equilibrio instavel na borda do ser, onde a cons­titui~ao se apoia e se debruc;a, como "potentia" do porvir. A expressao da forc;a produtiva ocorre cumulativamente no plano fisico e coletivamente no plano etico, sempre como resultante de urn processo teorico e p!<1tico que e 0 proprio formar-se de ser que e. A for~a produtiva, a produ!;ao e entao imediatamente constituic;ao - e a constituic;ao e a forma na qual a forc;a produtiva revela 0 ser. Produc;ao material, organizac;ao politica, liberac;ao etica e cognoscitiva se colocam no cruzamento entre forc;a produtiva e cons­titui~ao positivado mundo. A rela~ao produc;ao-constituic;ao e entao a chave da articulac;ao do ser, urn processo unitario que pode ser avaliado a partir de varios pontos de vista, mas que permanece, em sua essencia, unitario.

Assim, e possivel considera-Io, no quadro do pensamento e das di­namicas metafisicas como tais, no lugar onde se trata do ser que se cons­troi, entre primeira e segunda natureza, entre fisicidade e eticidade: e 0

terrenO da apropria~ao da natureza e da constitui~ao do mundo. Por anto­nomasia. Em segundo lugar, a relac;ao produc;ao-constituic;ao e avaliavel no plano politico, onde a ligac;ao fundamental se expressa na redu~ao da multiplicidade a unidade do coletivo e na defini<;:'io constitutiva do coleti­vo como potencia pratica, como "potentia" de formac;ao de civilidade e de normatividade nas relac;oes sociais dos hom ens. Finalmente, a relac;ao pode ser considerada no plano etico em sentido proprio, ou no da cons­ciencia da liberac;ao: aqui, ontologia e poIitica se dobram ao desejo da felicidade, articulam-se na busca, individual e coletiva, da expressao de urn pleno ser, de uma emancipa~ao integral em rela~ao a miseria da vida, de uma felicidade que seja alegria, prazer, exa1ta~ao do ser que se e.

Produc;ao como ontologia constitutiva. Spinoza fundamenta esta pos­sibilidade da filosofia, ou da destrui<;:'io da filosofia, com absoluta coeren­cia. A ontologia constitutiva reconhece a produc;ao no interior da estrutu­ra do ser. Nao e possivel dizer 0 ser senao em termos de produc;ao. A crftica do ser e a critica da produc;ao. Em seu constituir-se, 0 ser produtivo vai avan­c;ando ao longo de urn caminho que, cumulativamente (isto e, segundo uma logica rigorosamente quantitativa e mecanica), forma camadas e graus do mundo. Cada evento singular da natureza fisica e uma condensac;ao deter­minada do processo cumulativo do ser. A metaffsica spinozista descobre uma fisica que, por sua vez, a produz. A fisica, ou seja, a negac;ao especifica da filosofia enquanto ciencia generica do ser, torna-se embasamento do siste­ma spinozista. Urn embasamento forte, para uma dinamica aumentada e articulada. Da natureza para a segunda natureza. 0 fazer humane alonga a potencia da natureza. A articulac;ao da natureza amadurece e se recicla na atividade da mente. A reIa~ao entre natureza e segunda natureza, esse

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ponto de articula~ao fundamental da ontologia constitutiva, e organizado pela inteligencia humana. Esta e articula~ao da natureza. Da natureza ela recolhe e desenvolve a potencialidade construtiva. Quase que indistintamente, nasce a razao. A imagina~iio, essa potencia fundamental do sistema spino­zista! Esse ponto discreto e potentissimo, no qual 0 problema da filosofia do s<culo XVII, a ambigiiidade dualista da indistin<;ao psicol6gica (sobre 0

qual se mantem a barroca liquida~iio da unidade da natureza no seculo XVII, no proprio momento em que a teoria das paixoes lhe lan~a olhares) -, bern, este e 0 ponto de inversiio da problematica do seculo: po is, com efeito, Spi­noza coloca aqui, na imagina~ao, a alavanca da constru~ao do mundo. A imagina~iio e fisicidade que acede a inteligencia, 0 corpo que se constitui em mente. A imagina~iio e ao mesmO tempo a declara~iio da incidentalidade da teoria do paralelismo e seu substituto: a mente vem-se formando orde­nadamente - pelo menos segundo aquela ordem constitutiva determina­da pela versatilidade selvagem do ser. Nao ha descontinuidade no pensa· mento de Spinoza, mas infinitas catastrofes que reformulam a continuida­de do ser sobre 0 fio da imagina~ao, de uma profundidade de imputa~iio produtiva que, como a agua na terra enos corpos, circula em toda parte. Onipresente. Como urn motor que ordenadamente poe em movimento cor­reias de transmissiio em todos os sentidos e regula a perfei~iio de motores que 0 sucedem. A imaginac;iio esta no cora~ao da ontologia constitutiva por­que esta no centro e e 0 selo da continuidade, da univocidade absoluta da ordem do ser. Porque e, deste, 0 motor dinamico. Mostra 0 ser como pro­du~ao. A segunda natureza e 0 mundo feito pelos homens. Porem 0 sentido spinozista da unidade do ser, de sua densa compacta realidade, e tal, que as vezes 0 mundo feito pelos homens parece se esmagar sobre a natureza metaffsica como sobre urn fundo tao luminoso que nao da relevo. Mas isto e pura e simples aparencia. Na realidade, se e verdade que Spinoza sofre a relativa irrelevancia que 0 mundo da industria ainda mostra, na aurora do capitalismo, em compara~ao com 0 mundo da produ~ao natural, mesmo essa irrelevancia e apenas il usoria. Porque 0 conceito de produ~ao nao e so­mente, em Spinoza, 0 fundamento dinamico do ser, mas principalmente a chave de sua complexidade, de sua articula~ao, de sua exp'l!l~ividade. A se­gunda natureza nasce da imagina~ao coletiva da humanidade, porque a cien­cia e isto: a resultante produtiva do espirito apropriativo da natureza que a comunidade humana possui e desenvolve. 0 processo de civiliza~ao e uma acumulac;ao de capacidade prod uti va. E destrui~ao de uma necessidade nao liberada, portanto destruic;ao da contingencia, portanto destruic;ao do nao ser. Tocamos assim 0 paradoxo do pensamento spinozista e de seu huma­nismo: nao ha mais natureza, em Spinoza, mas somente segunda natureza, o mundo nao e natureza, mas produ~ao. A continuidade do ser nao se for­ma no processo que conduz de urn prindpio para urn resultado, de uma causa

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para urn efeito (com esta liga~ao e nesta dire~ao), mas se revela, ao contra­rio, como dado, como produto, como conclusao. 0 resultado e 0 princi­pio. 0 ser produzido, constituido, e 0 principio da produc;ao e da constitui~ao. Toda articulac;ao produtiva deve ser reconduzida a produc;ao como a seu proprio prindpio: mas 0 principio e a atualidade, e a atual riqueza do mo­vimento do ser. E seu presente constituido. Esta reversao da produ~ao em principio de uma ontologia constitutiva e 0 simbolo da liberas:ao das for­~as produtivas no que toca as reIa~oes de produ~ao, embora estas sejam dadas e consistentes. E 0 principio da revolu~ao na base da filosofia moderna.

A omologia constitutiva se faz politi ca. A passagem i politica em Spinoza e tao necessaria quanto pode e deve ser a fixa~ao da articula~ao subjetiva do desenvolvimento do ser. A teoria politica de Spinoza e uma teoria da composic;ao polftica da subjetividade. A passagem da natureza para a segunda natureza, da ffsica para 0 fazer do homem, deve ser mediada pela subjetividade. E inteiramente abstrato perguntar-se que influencia sofre a politica de Spinoza sem se colocar, antes de rna is nada, 0 problema do lugar da politica no sistema, e desde sua necessaria colocac;ao de uma ar­ticula~ao tea rica. A politica spinozista e entao a teo ria da continuidade "subjetiva" do ser. 0 sujeito e produto da acumula~ao fisica dos movi­mentos. 0 sujeito coletivo so pode ser avaliado como fisica dos compor­tamentos coletivos. A subjetividade e composi~ao - primeiro fisica e de­pois historica. A teo ria do sujeito e uma teoria da composic;ao. E agora acompanhemos esta teoria constitutiva, em toda a sua formidavel produ­tividade! Produ~ao e constitui~ao sao dadas aqui a urn nivel de e1abora­~ao que ja produziu resultado: a produc;ao e tanto mais eficaz quanta mais complexa e a constitui~ao. 0 sujeito coletivo procura na politica a razao de seu dinamismo. E e urn dinamismo ao mesmo tempo produtivo e cons­titutivo. Tambem neste caso a relac;ao produtiva esta subordinada a forc;a produtiva - 0 poder a potencia. A constitui~ao politica e sempre movida pela resistencia ao poder, e uma fisica da resisrencia: nao ha complexida­de de constitui<;ao que nao seja complexidade de declara<;6es de potencia, de expressao de produ~ao. A constitui~ao politica e uma rna quina de pro­duc;ao da segunda natureza, de apropria~ao transformadora da natureza, e portanto de elisao ou de destrui~ao do poder. 0 poder e contingencia. o processo do ser, a afirma~ao cada vez mais complexa da potencia sub­jetiva, a constru~ao da necessidade do ser, escavam na base do poder, para demoli-Io. 0 poder e supersti~ao, organiza~ao do medo, nao ser: a poten­cia se opoe a ele constituindo-se coletivamente. A apropria~ao da nature­za, aqui, reverteu-se completamente em produc;ao das condic;oes da poten­cia: novamente 0 paradoxo do resultado, da potencia atual, da plenitude do serl Na composi~ao da subjetividade acumulam-se cada vez mais aquela sociabilidade, aque1a inteligencia coletiva que erguem a potencia contra 0

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poder, que tornam 0 poder forma cada vez mais subordinada e transito­ria diante da produtividade humana, intersubjetiva, da composi~ao ma­dura da subjetividade. E na critica da teologia que a filosofia spinozista com~a a escava~ao do desenvolvimento da subjetividade como potencia do ser, como processo de composi~6es cada vez rna is desenvolvidas. A teologia e uma teoria da aliena~ao, funcional para 0 poder: dualismo sempre como fun~ao do poder, como linha de legitima\=ao do comando, como separa,iio da rela,iio de produ,iio e da for,a produtiva. A critica teol6gi­ca (e a exegese critica da tradi~ao religiosa) dissolve as formas mistifica­das e mostra sua contingencia, sua residualidade hist6rica. Tudo 0 que e funcional para 0 poder e aos poucos dissolvido: 0 desenvolvimento da potencia subjetiva recolhe aquilo que se acumulou sobre 0 ser, aquilo que o ser produziu, historicamente, atraves e contra a mistifica\=ao, no sentido de uma maior sociabilidade humana e se reapropria disso e se requalifica na destrui\=ao da ilusao teologica. Este processo, entretanto, s6 tern urn fim quando a potencia insiste completamente sobre si mesma, sobre a propria e absoluta autonomia e produtividade. 0 tempo da apropria,iio da pri­meira e da segunda natureza s6 tern existencia real como forma da pleni­tude do ser: se tern urn antes, este e concluido no ser; se tern urn depois, este e novamente medido simplesmente pela potencia e por sua tensao. Fora de qualquer quadro finalista.

Este desenrolar da produtividade natural, assim como da subjetivi­dade, em dire~ao a perfei~ao da composi~ao induz a ultima camada da problematica spinozista: a perfei\=ao, a etica da libera\=ao, seus pressupos­tos, sua potencia, suas conclusoes. Parece no entanto emergir uma contra­di\=ao aqui: a partir do horizonte ontologico e antifinalista a filosofia spino­zista, efetivamente, empurra essa problem:itica para a interioridade e a intensidade do ser. Por que? Por que uma filosofia completamente aberta no processo em dire~ao a totalidade do ser, na tensao do micro para 0

macrocosmo, ordena sua conclusao sobre a perfei\=ao subjetiva? Se a per­gunta e legftima, a resposta nao e menos clara, e exclui toda contradi\=ao. Se ha limite, este e antes historico que teorico. A subjetividade em dire~ao a qual se volta a medita~ao spinozista e na verdade 0 limite atual da desu­topia etica e politica. Nao h:i nela nada de intimista, de individual, de mistico. Nao h:i nada nela que derrogue a continuidade do ser e sua expan­sividade. 0 sujeito e 0 ponto sobre 0 qual, na figura individual ou coleti­va, a for~a produtiva do ser se mostra como identidade com a constitui­,ao das figuras do ser. 0 sujeito e 0 lugar ontol6gico da determina,iio. E portanto da emancipa~ao. 0 quadro metafisico inteiro se realiza nesta intensidade. 1:i que nao h:i nada de imovel nessa sintese final: ha antes a atua~ao da libera~ao - que se faz densa, pesacia, e no entanto sempre aberta, cada vez mais perfeita. E no fio da subjetividade realizada que

286 Antonio Negri

....

colhemos a mais alta perfei~ao metafisica. Colhemo-Ia como satisfa\=ao de uma produ<;ao que ve a perfei<;ao da propria composi~ao. Em uma cadeia do ser tecida de infinitos presentes, cuja conclusao e 0 preseme, de novo, sua alegria, todo 0 ser. E preciso insistir nisso: 0 limite, essa apari~ao de­terminada do sujeito, a este nivel de Sua composi,<;ao, sao a totalidade do ser dado. A perfei\=ao esta nisto, nao em qualql~er transcendencia presen­te ao ser. A ten sao e a supera\=ao sao necessidades, nao idea is, assim como a perfei~ao e ontologica, nao utopica. A propria utopia esta comMa no ser e sua dignidade consiste em ser materialmente composta no desejo subje­tivo. Assim se fecha a etica spinozista.

Para se reabrir a todo momento do ser. A problematica spinozista do ser espacial, da constitui\=ao espacial, da produ\=ao espacial, quando se fecha, e uma proposta de metaffsica do tempo. Nao do tempo como devir, como quis a filosofia moderna mais tardia: pois a perspectiva spinozista exclui toda filosofia de devir fora da determina\=ao da constitui\=ao. Mas proposta, justamente, de uma metafisica do tempo como constitui\=ao. 0 tempo da constitui~ao ulterior, 0 tempo que se estende para alem da atua­lidade do ser, 0 ser que constr6i e escolhe seu porvir. Uma filosofia do porvir. Se ate agora temos insistido freqiientemente na abertura do pen­samento spinozista para 0 porvir, como correlato de sua anomala pOten­cia ideologica e colocar;ao historica, agora 0 sinal da temporalidade, no pensamento spinozista, deve ser procurado bern mais profundamente: ou seja, na superficie da ontologia. Aqui, a inscri~ao da potencia no ser abre o ser para 0 futuro. A tensao essencial quer a existencia. 0 processo Cumu­lativo que constr6i 0 mundo quer urn tempo ulterior, urn porvir. A com­posi<;ao do sujeito so acumula 0 passado para estende-Io para 0 porvir. 0 ser e tensao temporal. Se a diferen\=a funda 0 porvir, aqui 0 porvir funda ontologicamente a diferan\=a. Essa rela\=ao, reciproca, e 0 tecido da cons­tituir;ao. E entao, qualitativamente, 0 ser e emancipa<;ao, ou seja, nova­mente, perfeir;ao estendida para 0 tempo futuro. Infinitamente estendida para a infinita perfei~ao. Transi~ao continua para uma perfei~ao cada vez maior. 0 ser se produz. A rela<;ao entre ser, produ\=ao e constituir;ao e a dimensao do porvir. 0 saber nao e outra coisa senao continua analftica dessa progressao, dessa tessitura, dessa acumula~ao, continuas, do ser. 0 ser e tanto mais tensao para 0 provir quanta maior e 0 grau de sua densi­dade presente. 0 porvir nao e uma procissao de atos, mas urn deslocamento operado pela massa infinita do ser intensivo: urn deslocamento linear, es­pacial. 0 tempo e ser. 0 tempo e 0 ser da totalidade. Da transforma\=ao, da riqueza, da liberdade. Mas tudo isso caminha junto. 0 ser que se des­loca de urn ponto a outro do espa\=o, em sua infinidade, em sua totalida­de, realiza uma passagem na ordem da perfei\=ao, isto e, em sua constru­~ao. Nao em rela\=ao a outro, mas so a si mesmo. E portanto libera\=ao,

A Anomalia SeJvagem 287

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emancipa~ao, transi~ao. 0 tempo e ontologia. Constitui~ao interna a pro­

dw;ao, prodw;ao como liberdade. A metafisica spinozista da prodw;ao define no terreno teo rico as

condi<;5es de possibilidade de uma fenomenologia da pr:itica coletiva. Li­berando-se da rela~ao de prodw;:ao e mostrando-se comO imediatamente constitutiva, a forma produtiva exp6e a possibilidade de que 0 mundo seja desemaranhado e analisado e transformado segundo 0 desejo. 0 parado­xo spinozista consiste na absoluta determina~ao material desse projeto. A pratica coletiva e determinada. Suas figuras constituidas. 0 eonteudo de­las e a libera<;ao. A forma e material e coletiva. 0 desejo e produzido ao nivel da eomposi~ao do sujeito. Essa articulacrao subjetiva da complexi­dade objetiva do ser constitui 0 que ha de mais especifieo e determinado na situacrao historiea do pensamento spinozista - e em sua proposta me­tafisiea. Aqui, a rela~ao producrao-constitui~ao representa, eonsiderada nesse sentido, 0 fulcro da projetualidade spinozista. E a supera<;ao de toda possibilidade de logica, ao mesmo tempo, classica e dialetica. E e talvez, ate agora, 0 significado atual de seu pensamento. E e por isso que, ao con­cluirmos esta primeira explora~ao do pensamento de Spinoza, vale a pena insistir com extrema clareza nessa dimensao oferecida por ele a nossa eon­sidera~ao. Spinoza, ao levar para a identidade prodw;ao e eonstituicrao, rompe _ na origem da Civilisation capitalista - a possibilidade de uma dial€:tica do poder e abre a perspectiva da potencia. Cientificamente, essa ruptura exprime a necessidade e mostra a for~a de uma fenomenologia da pratica coletiva. Hoje, em uma epoca caracterizada pela crise do capita­lismo, essa ruptura entre rela<;ao de produ<;ao (capitalista) e for<;a produ­tiva (proletaria) chegou novamente a urn ponto de tensao maxima. Poder e potencia se apresentam como anragonismo absoluto. A independencia da for~a produtiva pade entao encontrar em Spinoza uma fonte importante a que se referir, pode encontrar no desenvolvimento de sua hip6tese uma linha na qual se organizar historicamente. Evidentemente a partir da base de uma hipotese: a de reconhecer que 0 desenvolvimento da cultura bur­guesa nao tenha deturpado completamente a historia de suas origens. "Sera ainda possivel isolar, do processo de desagregacrao da sociedade democra­tica, os elementos que - ligados as suas origens e ao seu sonho - nao renegam a solidariedade com uma sociedade futura, com a propria huma­nidade? Os pesquisadores alemaes que abandonaram seu pais teriam sal­vo muita coisa e teriam muito poueo a perder se a resposta a essa pergun­ta nao fosse urn 'sim'. A tentativa de le-Io nos iabios da historia nao e uma

tentativa academica . .,26

Antonio Negri 288 .....

NOTAS

1 Permito-me remeter mais uma vez a meu Descartes politico, varias vezes cita­do. Assim como ao livro de Macpherson sobre 0 individualismo possessivo, tam bern varias vezes citado. A distancia que separa Spinoza de Descartes e de Hobbes e 0 verda­deiro emblema da anomalia spinozista no pensamento moderno. Seria interessante no'!' perguntarmos por que, e 0 minimo que se possa dizer, nao se insistiu suficientemente nesse carater de anomalia nos anos seguintes (a nao ser para as necessidades da polemi­ca, em rermos de demoniza~ao). Voltaremos a este ponto na segunda p~rte deste capi­tulo. Gosraria apenas de assinalar aqui a for~a muito parricular da persegui~ao politica movida contra 0 pensamento de Spinoza, da repressao ideologica que visava a adultera-10 e desonnl-lo. 0 que me leva aqui a uma observa~ao de ordem geraI: na historia do pensamento, e principalmente ao nivel politico que a filosofia de Spinoza e perseguida. Fa~o quesrao de insistir nisso: esse fantastico dispositivo metafisico e logo percebido po­liricamente, faz-se dele imediatamente urn pensamento revolucionario. 0 que confirma minhas hipoteses! a verdadeira politica de Spinoza e sua metafisica.

2 Cf. supra, cap. I. 3 Para algumas observa~6es sobre a crise do pensamento negativo e sobre uma

tentativa de definir seus Iimires teoricos, permito-me remeter a minha recensao do livro de M. CACCIARI, Krisis {Milao, 1976),publicada na revistaAut-Aut, n° 155-156, 1976. Comentando 0 bela esfor~o realizado por Cacciari para recuperar em termos de positi­vidade a eficacia do pensamento negarivo, acentuo os limites de uma tentativa dessas, e de qualquer outra do mesmo genero, enquanto ela nao alcan~a 0 pensamento constiturivo.

4 E claro que retorno aqui, como fiz amplamente no decorrer do texto, as teses de G. DELEUZE (op. cit.). Como ja desracamos varias vezes, 0 grande merito da abor­dagem de Deleuze e captar a dimensao da singularidade e da superficie no pensamento de Spinoza, atingir aquilo que chamamos 0 "paradoxo do mundo". Mas, em minha opi­niao, e preciso alargar essa intui~o e essa demonstra~o, para mostrar como se consti­tui nao apenas a base, mas tambem 0 desdobramento de uma "segunda" parte: aquela na qual 0 pensamento da singularidade se abre como pensamento construrivo e consti­tutivo. Deleuze nao esra muito longe de tal concep~ao quanto insiste no "segundo Spi· noza", 0 Spinoza dos Escolios, das argumenta~6es eticas desdobradas. Mas ele rende a manter essa figura reservada ao terreno da ciencia etica como tal e da grande retorica moral, mais do que no terreno de uma nova apreensao do ser. Seja como for, e fa~o questao de dize-Io, meu trabalho nao reria sido possivel sem 0 de Deleuze.

5 P. MACHEREY, op. cit., desracou melhor que qualquer urn a disrancia que se­para Spinoza do pensamento dia1i~tico. Entreranto, considerando suas preocupa~6es teo­ricas, ele tam bern nao leva sua inrui<;ao ate 0 nivel de explicira~ao que ela mereceria. 0 dispositivo, nitidamente althusseriano, do livro de Macherey 0 impede de passar de uma defini~ao critica da dialerica, de urn aprofundamento do estudo dos eixos analiticos do pensamento spinozista a uma defini~ao do horizonte constitutivo que Ihe e proprio.

6 Ver 0 artigo de C. GINZBURG na coletanea coletiva La crisi della ragione, Turim, 1979. Nao me parece estar for~ando excessivamente 0 sentidodado por Ginzburg a sua defini<;ao do "saber indiciario" ao referi-Io a minha visao de Spinoza: nao preten­do que haja identidade, apenas vejo em Spinoza urn incita~ao a essa sintese concreta de saber que e 0 saber indiciario, saber nao "menor", mas cerra mente metafisico.

7 Sobre 0 desenvolvimento da ciencia moderna e seu carater perfeitamente funcio­nal em rela<;ao ao desenvoivimenro do capitalismo, ou melhor, a teologia, vista como agenre interno da ciencia, d. FEYERABEND, Contre fa methode, rra. fr., Paris, 1975.

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E claro que, quando se atribui a Spinoza uma atividade especulativa implicando uma atitude polemica contra a ciencia moderna, efetua-se uma reflexao de segundo grau sobre seu pensamento. Mas e importante faze-Io, se for verdade que urn dos objetivos essen­ciais de uma renovao;ao dos trabalhos sobre a historia do pensamento moderno e de aca­bar com a ideia de desenvolvimento univoco, para captar as alternativas possiveis nele inscritos. Nessa obra, assim como anteriormente em nosso Descartes politico, procura­mos por essa ideia em pritica a proposito do desenvolvimento do pensamento politico da modernidade: seria preciso fazer a mesma coisa para 0 pensamento cientifico como tal. Para uma pesquisa desse tipo, Feyerabend e urn autor extremamente estimulante.

8 Seria necessario rever inteiramente todo 0 pensamento moderno, 0 pensamento da genese do capitalismo, do ponto de vista da crise do capitalismo. 0 trabalho de iden­tificao;ao da sintese particular imposta pelo desenvolvimento capitalista a seus componentes geneticos nao conseguiria reduzir tudo a urn puro esquema funcional (como, por exem­plo, no livro, por outro lade muito importante, de Borkenau sobre a genese do pensa­mento da manufatura). 0 desenvolvimento esta hoje completado, a crise do capitalismo esra madura: nao estamos mais no meio das nuvens, verno-las a disrancia, na diversidade de suas formas. t preciso reunir a alternativa posslvel, pelo menos na medida em que ela se apresentava como revolucionaria, e 0 pensamento teorico emitido do ponto de vista da crise. Penso que A. SOHN-RETHEL, Geistige und koperliche Arbeit. Zur Theorie der gesellschaftlichen Synthesis, Frandorte, 1970, as vezes 0 consegue. tum modele util.

9 Permito-me destacar aqui a importancia de tal modelo de pensamento filosOfi­co na historia do pensamento revolucionario, remetendo para mais detalhes a meu Marx au-dela de Marx, trad. fr., Paris 1979.

10 Autores como S. Zac e G. Deleuze, em perspectivas diversas, remetem explici­tamente a essa ideia de filosofia das necessidades como tecido de uma parte, ao menos (e na~ desprezlvel), do pensamento de Spinoza. 0 que esra diretamente no sentido do pensamento de H. Marcuse e A. Heller.

11 So posso remeter aqui a velha obra de LANGE, Geschichte der Materialismus, nos limites de sua sintese de positivismo e de neokantismo. tum fato, nao existe Histo­ria do materialismo! Donde talvez seu duplo carater de subordinao;ao nos Tempos Mo­dernos: ao desenvolvimento da grande e sublime filosofia, por urn lado, a hist6ria das ciencias por outr~. Enquanto dispomos agora de grandes trabalhos sobre as grandes fi­guras do materialismo antigo (Dem6crito, Epicuro ... ), na~ se pode dizer 0 mesmo para a modernidade.

12 Sobre a origem pratica do humanismo e suas metamorfoses no quadro do spinozismo (e sobre a dimensao transformadora que recebe dele), d. M. RUBEL, Marx a la rencontre de Spinoza, cit. Mas ver tam bern as belas intuio;6es de R. MONDOLFO, "II concetto marxistico della 'umwalsende Praxis' e suoi germi in Bruno e Spinoza", in Fetschrisft fuer Carl Grinberg, Leipzig, 1932.

13 L. STRAUSS, Pensees sur Machiavel, Paris, 1979. 14 Sobre as relao;6es Spinoza-idealismo classico, d. os Texte zur Entwicklung des

Spinozismus, org. de N. ALTWICKER, cit. 15 Apesar das muitas obras sobre este ou aquele autor, a literatura referente a esse

momento extremamente importante da filosofia moderna nao e, que eu saiba, bastante esclarecedora, bastante precisa. Na verdade, a significao;ao historica global do Renas­cimento neoplatonico foi mais percebida na hist6ria das ciencias (Koyre, etc.) que na historia da teoria poHtica e da ciencia econ6mica. Lacuna que deve ser rapidamente sa­nada, e evidente. Sobre More, sobre suas relao;6es com Descartes e, de maneira mais geral, com a filosofia continental, d. meu Descartes politico. Urn eventual trabalho sobre 0

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neoplatonismo nas origens cia civiliza~ao industrial deveria, naturalmente, cuidar tam. bern das filosofias pos-cartesianas, de tendencia fortemente espiritualista.

J6 0 pensamento mecanicista foi muiro estudado. De urn lado a obra importantfssi­rna de Borkenau, de outro a de Lenoble. Embora seus respectivos POntos de partida e meto­dologias sejam inreiramente divergentes, eles chegam a conclusOes singularmente univocas.

17 Ver meu artigo "Problemi dello Stato moderno" in Rivista critica di storia della filosofia, 1967, no qual apresento as teses essenciais referentes a reorganizao;ao absolu­tista do Estado e suas ligao;6es Com os diversos aspectos da filosofia do se.culo XVII.

18 Sobre a ideia de mercado, permito·me remeter mais urn vez ao Adam Smith, de Carlo BENETTI, Milao, Isedi, 1979. E nesse quadro que se deve entender a tentativa exacerbada de reintroduzir 0 dualismo no conjunto do pensamento spinozista. 0 melhor exemplo de tal abordagem e 0 de F. Alquie, que quer ler 0 tema "idea" _ "idea idearum" em termos idealistas e espiritualistas, como duplicao;ao entre gnoseologia e ontologia.

19 Cf. Jon ELSTER, Leibniz et fa formation de l'esprit capitafiste, Paris, 1979. 20 T entemos, por exemplo, imaginar a reao;ao de Descartes diante da filosofia de

Spinoza. Em minha opiniao, ele teria visro nela urn ressurgimento das teorias que ele mesmo havia combatido sem tregua (d. Gouhier), as dos pensadores do Renascimento. E rna is do que provavel que tivesse aplainado Spinoza sobre Lulie ou sobre More. Na historia das interpreta~6es de Spinoza, tais leituras sao corriqueiras.

21 Nao ha duvida de que 0 spinozismo visto por Hegel e uma filosofia ut6pica do capitalismo. Objetivismo do ser e inicio da dialetica da negao;ao: Spinoza IE definido Como 0 fil6sofo da utopia da produ~ao e como 0 primeiro autor capaz de pensar 0 rit­mo critico do desenvolvimento da produo;ao. Hegel se prepara para completar filosofi­camente, para levar ao absoluto esse primeiro esbo<;o. 0 spinozismo, entao, e previa­mente reduzido a uma filosofia das rela~6es entre foro;a produtiva e relaO;6es de produ­<;ao. Mas 0 pensamento de Spinoza nao tern nada a ver com isso tudo!

22 Cf. supra, cap. IV e VI.

23 Sobre esse aspecto de luta pela liberdade que faz sua dignidade, que a marca organicamente e a define como grande filosofia, permito-me remeter a Leo STRAUSS, Persecution and the Art of Writing, Glencoe, Ill., 1952.

24 Autores tao diferentes como Zac, Corsi e Alquie chegam a essa conclusao. 25 Cf. supra, cap. VIII, par. 3.

26 Walter BENJAMIN, Gesam. Schriften. Werhausgabe Suhrkamp, B. III, t. 9, Francforte, 1972, p. 526.

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POSFAcIO PARA A EDI<;:AO BRASILEIRA

A lembranc;a de Felix Guattari

DEMOCRACIA E ETERNIDADE

No castro de minha comunica\=ao no Coloquio "Spinoza: patencia e ontologia", no Cologio Internacional de Filosofia (maio de 1993), apro­veito a edi<;ao brasileira de A anomalia selvagem para elaborar uma ma­neira de autocrftica. Uma autocritica que, embora parcial, nao deixa por isso de ser profunda e que toea algumas das orienta<;oes interpretativas que eu adotara quando de minha leitura anterior cia Parte V cia Etica.

1. A fim de recordar e de definir do que se trata, procederei a urn exame das posi<;6es de onrem e a uma apresenta<;ao das retifica<;6es que proponho haje. Eu afirmava, entao, que coexistiam na Parte V cia Etica duas linhas tearkas incompativeis e essencialmente contradit6rias - em primeiro lugar uma linha mfstica, proveniente de uma primeira funda~ao do pensamento spinozista e que se distinguia cia orienta~ao profunciamente materialista da segunda funda,ao (elaborada e desenvolvida entre 0 TTP e a reda,ao das Partes III e IV da Etica). A segunda linha de pensamento (da Parte V da Etica), a que ehamei asd~tica, eu a via se desenvolver e se refor~ar principalmente no TP, em outras palavras, eu a via se apresentar no TP numa forma totalmente ciesdobrada, enquanto filosofia da consti­tui~ao do real e teoria da expressao democratica da "multitudo".

Hoje em dia, continuo eonvencido de que na Parte V cia Etica real­mente coexistiam duas estruturas diferentes de pensamento e penso ainda que elas provavelmente remetem a urn corte no desenvolvimento do pensa­mento spinozista e portanto a uma diferen~a de temporalidade na elabora­~ao da Etica. Minha releitura me convenceu, entretanto, de que, longe de se opor frontalmente, essas duas linhas tendem a se alimentar reciprocamente e a passagem para 0 TP nos mostra justamente essa convergeneia. Na cons­titui~ao do real, na transforma~ao da moral em polftica, essas duas funda­~oes e essas duas estruturas, lange de se separarem, se unem.

A ideia de democracia e a de eternidade se tocam, medem uma a outra, seja como for elas se cruzam na metamorfose dos corpos e da "multitudo". o materialismo se experimenta em torno de urn tema incomum: a expe­riencia de se tornar eterno. Sera enta~ este 0 tema de minha interven<;ao.

Para conduir este preambulo, gostaria de acrescentar que, seguindo a linha, pareceu-me entao poder-me juntar a certas interpreta~oes das quais

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eu par vezes havia me distanciado - como por exemplo as que se refe­rem ao cap. 14 do Individu et communaute de A. Matheron au diversos trechos cia interpreta~ao spinozista de G. Deleuze. Mais uma vez essas lei­turas se revelam insupef<iveis e apenas numa certa cumplicidade com elas e que podemos construir urn conhecimento de Spinoza.

2. Voltemos entao a defini~ao spinozista de democracia como "omni­no absolutum imperium" (TP XII) antes de voltar it Parte V da Etica.

Como sabemos, essa defini<;ao do "democratium imperium" e prece­dida, tanto no TIP quanta no TP, por defini<;6es analogas que servem para delimitar 0 sentido da qualifica<;ao "absoluta" do conceito. Numa primei­ra leitura esse sentido aparece duplo.

Em primeiro lugar, ele tern valor quantitativo: isso significa que ele traz a multidao, a totalidade dos cidadaos para a defini,ao do vinculo politico. "Quando esse cuidado (a soberania) pertence a uma assembleia que se com­poe da "multitudo" em sua totalidade, entao 0 regime se chama uma de­mocracia" (TP II 17). "Democratia", ou seja, "integra multitudo". "Omnino absolutum": "omnino" entao serve aqui para aeentuar fortemente a quan­tidade, ou melhor, a totalidade. "Omnino" da "Omnes".

Em segundo lugar, a defini<;ao da democracia como "omnino abso­lutum imperium" e qualitativa, ontologicamente determinada. Sabe-se qual e, no TTP, a condusao dada pela discussao sobre os fundamentos do Es­tado: "Partamos dos princfpios de qualquer organiza~ao em sociedade, demonstrados acima: deles se segue, com a maior evidencia, que 0 objeti­vo final da instaura~ao de urn regime politico nao e a domina<;ao nem a repressao dos homens, nem a submissao deles ao juga de outro. 0 que e visa do em tal sistema e liberar 0 indivfduo do receio - de maneira que eada urn viva, tanto quanta possivel, em seguran~a; em Dutros termos, conserve ao mais alto nivel seu direito natural de viver e de realizar uma a~ao. Nao, repito, 0 objetivo perseguido nao poderia ser 0 de transformar homens razo<iveis em animais ou em automatos! 0 que se quis dar a eles, ames, foi exatamente a completa largueza de cumprir em perfeita seguran~a fun~oes de seus corpos e de seu espirito. Depois disso, eles estarao em condi~oes de raciocinar mais livrememe, nao se enfrentarao mais com as armas do odio, da colera e da esperteza, e se tratarao mutuamente sem injusti<;a. Enfim, 0 objetivo da organiza~ao em sociedade e a liberdade!" (TTP cap. XX). Podemos deduzir dai que a democracia e a propria estru­tura da Republica. As outras Eormas de Estado nao apenas fieam enfra­quecidas diante da forma democratica, mas para existir, para fazer valer o criterio de legitima<;ao, tern, de certo modo, que esconder a democracia em seu seio. "Omnino absolutum", desse ponto de vista, significa "omnino absolutum imperium".

A Anomalia SeIvagem 293

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Essa dire~ao de pesquisa esta clara no TP. Eis alguns exemplos disso, entre outros. Nos primeiros capitulos do TP Spinoza insiste no conceito de uma "multitudo que e conduzida como que por uma so alma". 0 que e ao mesmo tempo fundamento do politico e da democracia. No cap. V 0 poder politico, criado por uma "multitudo livre", e 0 tempo todo considerado como condi~ao ou efeito do melhor regime. No TP VI 4, a paz e a conc6rdia, objetivos de qualquer Republica, sao concebidas como expressao da uni­dade das almas: quando, ao contrario, a paz se da sob forma de servidao, portanto fora da democracia, ela ja nao e urn bern que se pode usufruir. No cap. VII 5, a superioridade do regime democratico e mostrada pelo fato de que I'sua virtude e maior em tempo de paz", ou seja, como tensao de socia­liza,ao e de civiliza,ao simplesmente. No VIII 5 0 direito a democracia e considerado "de certo modo inato". Em VIII 12 (como em VIII 14), final­mente 0 carater radicalmente estrutural e originario da democracia e afir­mado contra todo desenvolvimento e prevarica~ao (seja ela aristocratica ou monarquica) como a propria chave de uma defini~ao do politico.

3. Temos enta~ dois sentidos de "omnino absolutum". No entanto, assim que voltamos a dinamica metaHsica que rege as defini~6es anterio­res do termo, podemos perceber urn terceiro. DentrO desse quadro, "abso­lutum" e definido como algo que se recusa a ficar separado, a se definir com "imperium in imperio" (na polemica contra os Estoicos do TP cap. VI, ou melhor, e definido como algo que se recusa a ser 0 produto de "von­tade liberada de qualquer lei" na tomada de posi~ao contra a oligarquia do TP XI 2). Nem separado nem liberado, "absolutum", ao contrario, e uma totalidade dinamica, urn tarnar-se livre - portanto 0 alargamento da potencia do ser atraves da existencia politi ca. A defini,ao de "abso­lutum" (e a acentua~ao "omnino") torna-se aqui positiva porque ela de­senvolv'e e interpreta, no coletivo, a rela~ao potentia-cupiditas, voluntas­mens, necessidade-liberdade. "Agir por virtude absolutamente nao e Ou­tra coisa em nos senao agir, viver, conservar seu ser (essas tres palavras significam a mesma coisa) sob a condu~ao da Razao, segundo 0 prindpio de que devemos precurar 0 util que nos e proprio" (Etica IV 24). "A 'vir­tude' entao e absoluta". "Omnino absoluta" e a virtude coletiva, a demo­cracia. Temos assim uma imagem extraordinaria da democracia, como forma de governo suprema, capaz de exprimir a potencia e a virtude des­teo Quando 0 politico e levado a dinamica da potentia e da virtus, e os regimes politicos sao interpretados na base do carater metafisico radical que interpretam, a democracia e a forma mais perfeita de socializa<;ao polftica e 0 produto da 'figura' da virtude coletiva.

Mas 0 que e absoluto e eterno. Assumir 0 carater absoluto do con­ceito de democracia, nos termos em que 0 apresentamos, significa inevi-

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tavelmente, no contexto spinozista, perguntar-se se e possivel pensar a de­mocracia, esse absoluto "sub quadam aeternitatis specie".

Spinoza nao hesita em nos introduzir a essa questao. No cap. VI do TIP ele nos diz, por exemplo, que "naturae leges (aquelas mesmas que a democracia interpreta de maneira tao abundante) sub quadam specie aeter­nitatis a nobis concipiuntur. et ... Dei infinitatem aeternitatem et immu­tabilitatem aliquo modo indicant". Mas trata~se af de uma debil indica­~ao. Ela poderia nos empurrar para 0 palido Spinoza da polemica hegeliana. E mesmo quando assumimos 0 texto principal para a integra~ao do con­ceito e da eternidade, a coisa nao fica rna is satisfatoria. "Esra na natureza da Razao perceber as coisas sob uma certa especie de eternidade"; Etica IV 44 Corol<irio 11- ou seja, a luz da natureza eterna de Deus, de sua ne­cessidade e sem nenhuma rela~ao COm 0 tempo. A eternidade e aqui uma garantia epistemologica do conceito. Mas nosso absoluto democratico, como vimos, e uma praxis do absoluto, - como apreende-lo de maneira adequada "sub quadam aeterniatis specie"? Sera possivel identificar urn terreno no qual a eternidade nao fosse 0 reflexo transcendental que garante atraves da "divine potestas" 0 conceito, mas 0 proprio quadro no qual se afirma a potencia da democracia?

Para responder a essas perguntas, teremos que fazer urn certo cami­nho, assim COmo alguns desvios: nao sera em vao, entretanta, pois, alem da resposta as perguntas propostas, teremos provavelmente Oportunidade de enriquecer nossa compreensao do conceito de democracia em Spinoza.

4. Retomemos entao 0 caminho das ultimas Proposi~6es da Parte IV da Etica. Spinoza constroi aqui 0 conceito de uma "Cupiditas" que "nao pode ser excessivo" (Etica IV 61). Na demonstra~ao da Proposi~ao 62, esse desejo esta colocado numa certa dimensao de eternidade. No 'Icrescendo" das Proposi~6es seguintes, e ate a concIusao da Parte IV, essa "CuPiditas que nao tern excesso" e empurrada ate a refunda~ao da vida em comum no Estado. Urn conceito de estado ("civitas") concebido como recusa da solidao e equilfbrio de uma vida "ex communi decreto". A defini~ao da democracia COmo vida coletiva livre sob as ordens da razao e entao colo­cada "sub quadam aeternitatis specie". A eternidade surge numa forma diversa daquela em que surgiu, nao como garantia epistemol6gica do con­ceito, mas como horizonte que define a pesquisa, ou antes a praxis, do absoluto. De que modo?

o reconhecimento de urn novo campo de pesquisa e 0 que devera per­mitir essa passagem. Nesse grupo de Proposi~6es, com efeito, no proprio momento em que ela se abre para a eternidade, a "Cupiditas'" esbarra com a morte. Esse enfrentamento desloca os termos do debate. A eternidade ja nao e apenas 0 horizonte de valida~ao das no~6es comuns. Ela esta im-

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plicada no terreno da praxis. A experiencia da morte e decisiva na determi­nar;ao de urn deslocamento de ordem ontologica da argumentar;ao. Quando a eternidade se opee a morte, a liberdade e mostrada como a experiencia de "tarnar-se eterno". Etica IV 67: "0 homem livre nao pensa em coisa alguma menos do que na morte, e sua sabedoria e uma meditar;ao, nao da morte, mas da vida". "Ha uma oposir;ao da eternidade e da morte que se tarna urn processo, uma tensao, urn desejo que se desenvolve". "Se os homens nascessem livres, eles nao formariam nenhum conceito do bern e do mal, todo 0 tempo em que fossem livres" (Etica VI 68). A experiencia da morte desloca a existencia para alem da regra antagonista que ate aqui animara 0 mecanisme das paixoes. 0 movirnenta anunciado pela Propo­si"ao 41 da Parte IV da Etica, quando a alegria e definida diretamente como boa e a tristeza diretamente como rna, numa argumentar;ao que (como veremos adiante) ja inclui 0 tema da morte (IV 39) e da sociedade (IV 40), encontra aqui sua afirmar;ao definitiva. As condir;oes metafisicas estao assim dadas para a experiencia de tarnar-se eterno. E na perspectiva da eterni­dade que ultrapassamos as resistencias e os obsraculos (a morte os rcpresen­ta) que a potencia e a virtude, portanto 0 desejo, encontram pela frente.

Notarnos portanto aqui - e e conveniente insistir nisso - urn entre­lar;amenta singular. Tres temas organizam a maquina ontologica e deslo­cam seu nivel de produr;ao: a experiencia crftica da morte; a "Cupiditas" que introduz, sern nenhurn excesso, a uma certa especie de eternidade; e a ideia da socializar;ao politica (ou antes da democracia). Os tres temas se entrelar;am estreitamente: a experiencia cia morte, como experiencia de urn limite absoluto negativo, realr;a da eternidade 0 movimento do desejo; e essa luz da eternidade se reflete sobre a socializar;ao politica, sobre a democra­cia como horizonte de "multitudo", contra 0 conjunta das resisrencias e obs­taculos que a solidao, a guerra e 0 poder colocarn para 0 desejo de comu­nidade. Assim ocorre na Parte IV da Etica. Na Parte V 0 mesmo movimen­ta ontologico se repete e se intensifica. Da Proposi~ao 38 a Proposir;ao 41 (Etica V) podemos acompanhar 0 entrela"amen\o dos tres mesmos temas e a progressao das conseqiiencias ontologicas que disso resultam.

No Escolio da Proposir;ao 38 pretende-se que a morte seja "tanto menos nociva quanto maior seja 0 conhecimento claro e distinto que tern o espirito, e conseqiientemente quanta mais 0 espirito arne a Deus" .

Na Proposi~ao 39 "quem tern urn corpo apto para 0 maior numero de a~oes, tern urn espirito cuja maior parte e eterna".

o Corolario da proposi~ao 40 e 0 Escolio da mesma Proposi~ao in­sistem no fato de que a atividade e a perfei~ao da Alma a arrancam a morte e a tomam eterna. Na Proposi~ao 41 a adequa~ao da atividade gnoseologica e da capacidade fisica para a eternidade e projetada no terreno socio-po­litico _ segundo a argumenta~ao tipica de Spinoza, que faz com que a

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atividade e a perfei"iio do existente (corpo e espirito) se multipliquem quando se desenvolvem na pluralidade, na sociedade.

Aqui "Pietas" e Religiao nao sao mais do que 0 vinculo social de uma conduta pratica racional e a Coragem (Animositas) e a Generosidade sao as virtudes que interpretam 0 amor no social.

Mas tudo isso nao e suficiente. Ate aqui apreendemos a causa for­mal da experiencia de "tornar-se eterno" na democracia, sua causa mate­rial ainda nao. Para nos aproximarrnos desse momento, temoS'de anali­sar as Proposi~oes que acabamos de estudar em outra ordem. Voltemos entao a Proposir;ao 39 da Parte V. A experiencia da morte, diz-nos Spino­za, deu-se sob 0 signo da contradi~ao extrema em relac;ao a formar;ao da "Cupiditas" que nao tern excesso, em relar;ao a Alegria diretamente boa, e a constitui~ao democrarica do politico. Ora, essa contradi~ao determi­na efeitos ontologicos. A contradi~ao determina uma mutar;ao, uma me­tamorfose. A morte portanto nos e dada aqui como metamorfose, numa perfeita coerencia com 0 que ele disse no conjunto da Etica a respeito da "mutatio": ver especialmente I, 33, Escolio II; Lema 4, 5, 6, 7; III, Postu­lado 7; III, II, Esc6lio; IV,"4 e Demonstra"ao; VI 39 Esc6lio; IV, Apendice cap. 7, Axioma. A morte consiste numa metamorfose que termina pela destrui~ao da proporr;ao na qual se comp6em os diversos movimentos que constituem 0 corpo. Ora, a morte e uma rna meramorfose: ela destroi a harmonia das partes do corpo, inscreve-se nos movimentos de uma ma­neira rna, e negatividade -limite de negatividade. Mas 0 real tambem com­preende outra coisa; no Escolio IV 39 e perguntado se existem boas meta­morfoses, muta~6es tao radicais quanto as trazidas pela morte, mas desti­nadas a determinar estados superiores da relar;ao entre movimentos, me­tamorfoses da conservar;ao do corpo e de maturar;ao da Cupiditas. A res­posta nao nos e dada. Spinoza nao desenvolve inteiramente 0 argumento para nao incentivar as superstir;oes. Promete que voltara aD assunto na Parte V. A remissao a Parte V nao elimina 0 fato de que a problematica vai-se encorpando em torno da alternativa entre uma metamorfose/destruir;ao e uma metamorfose/constituir;ao.

Imediatamente, na Proposic;ao seguinte (IV 40), por exemplo, 0 con­ceito de corpo e reconsiderado numa projer;ao politica: 0 corpo social, como o individual, conhece a vida da concordia e a morte da discordia, a posi­tivo e 0 negativo da mutac;ao.

Na Proposi"ao que se segue (IV 41) explode finalmente a ruptura da dialetica naturalista das paixoes. "A aIegria nao e diretamente rna, porem boa; a tristeza, ao contrario, e diretamente rna". A servidao human a ma­terialmente superada, materialmente porque a metamorfose que rege a li­berdade e diretamente boa. A perspectiva da liberar;ao se abre, a partir dai, sem ter que acertar contas com uma dialetica das paixoes que se tornou

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rna. A "Cupiditas·· que nao tern excesso (da Proposi,ao 61 da Parte IV) esta aqui pre-constitufda. Assim como estao pre-constitufdas as condi<;6es de seu desenvolvimento social. 0 Escolio do III Corolario da Proposi,ao IV 45 ("0 odic nunca pode ser born) caloca uma "praxis comum" que esta em acorde com 0 prindpio cia defini~ao cia vida como afirma<;ao, como alegria sem excesso, como constru<;ao generosa, enquanto no mesrna Coro­Lirio vida individual e vida social estao de novo estreitamente ligadas: "tudo aquilo que desejamos peIo fato de estarmos afetados pelo odio e vergonhoso e, no Estado, injusto". 0 vinculo entre vida individual e vida social, domi­nado pele desejo que nao rem excesso, e mais uma vez muito acentuado.

Ora, a partir cia Proposi<;:io 61 ate 0 fim da Parte IV, 0 tema cia meta­morfose positiva, constitutiva, e retomado e desenvolvido. Trata-se sem­pre de uma introdw;ao, de urn discurso limitado pela necessidade de nao incentivar a supersti'rao .... mas que potencial E urn discurso agora mate­rialmente dentro da metamorfose positiva, dentro do processo constitutivo. Nele a "Cupiditas" se torna potencia absolutamente afirmativa (Etica IV 61); a eternidade e a qualifica,ao dessa afirma,ao (IV 62); e 0 Medo e a Morte e que sao assumidos como negatividade absoluta. A ideia de uma metamorfose positiva, unicamente expressa pela alegria que nao tern ex­cesso, ja se afirma sob sua forma definitiva (embora a demonstra'rao te­nha side remetida para a Parte V) na Proposi<;ao IV 68. 0 homem nao nasce livre, ele assim se torna. Ele se torna livre atraves de uma metamorfose na qual seu corpo e seu espirito, agindo concertadamente, reconhecem na razao o amor. A eternidade portanto e vivida na praxis constitutiva, a praxis nos constitui no eterno.

Vamos entao resumir. Ate aqui ja avan'ramos em algumas interpre­ta'roes, a saber:

- a constitui'rao naturalista e antagonista do real se que bra na Par­te IV da Etica. Entre a Proposi,ao 41 e a 61. Em compensa,ao aqui se determina urn processo afirmativo que pretende ser tendencia do real. A positividade absoluta da "Cupiditas" que nao tern excesso e que portanto mOSlra 0 mal como ideia inadequada (IV 64) esta ligada a ideia da morte como oposto absoluto e, portanto, a ideia de eternidade como perfil das metamorfoses positivas possiveis.

- 0 vinculo social conhece as mesmas dinamicas, as mesmas ruptu­ras e alternativas da existencia individual: ele e apenas mais potente.

- a ruptura da dialetica das paix6es e coextensiva (mesmo se gene­ticamente anterior) a dialt~tica das metamorfoses e a sua ruptura (IV 39). Ora, quando deixa de se haver boa dialetica das metamorfoses. Quando a experiencia da morte se coloca como Figura limite das metamorfoses mas, entao 0 problema das metamorfoses boas, positivas, se desdobra em toda a sua amplitude. Spinoza remete implicitamente (nas Proposi'roes 41 e 61

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Et. IV), mas tambem explicitamente (na Proposi,ao 39 IV) a discussao do problema a Parte V da Etica.

5. Deveremos entao acompanhar tambem os desenvolvimentos das anaiises constitutivas da boa metamorfose na Parte V da Etica. No entan­to, antes de avan'rarmos por esse novo caminho, uma observa'rao, urn parentese. 0 Esc6lio da PropOSi'rao 54 da Parte IV da Etica, em Outras palavras, na parte mais interna do processo argumentativo sobre a "Cupi­ditas" que nao tern excesso, encontramos uma afirma'rao que parece por em xeque 0 conjunto de nosso raciodnio. "A muitidao e de meter medo, a menos que ela esteja com medo".

Isso significa, segundo a interpreta'rao de alguns, que a ideia da morte poderia ter efeitos socialmente uteis. Em outros termos, ela significa tam bern que a possibilidade de estender a ideia de "Cupiditas" sem excesso do indi­viduo a "multitudo" seria minada pela dificuldade de considerar com rea­lismo e de captar conceitualmente a rela'rao dos indivfduos e da "multitudo".

Mas essa interpreta'rao e ao mesmo tempo errada e estranha, pois a frase em questao deve ser interpretada em seu contexto, e principaimente, deve ser relacionada com a Proposi'rao 68 da Parte IV da Etica. Ora, em seu contexto, a afirmac;ao sobre a multidao nao e uma exclama'rao pura­mente maquiaveliana: pelo contrario, em seu contexto (IV 54) ela esta submetida a critica da imaginac;ao e a tendencia da razao. Os profetas, aqui charnados a.interpretar e a prover a utili dade comum, sao testemunhas da possibilidade de uma metamorfose positiva. Como 0 individuo da Propo­sic;ao 68 p. IV, a "multitudo" nasce vulgar e quer se comportar Como urn conjunto de feras, mas de qualquer maneira esta sempre investida pela metamorfose do ser. au antes por uma metamorfose que 0 homem reali­za na plenitude coletiva do gen~ro. Spinoza nunca contestara tanto a filo­sofia de Hobbes quanto este quer programar 0 estado de natureza para fins de pre-constituic;ao da dominac;ao. A potencia da comunidade, 0 co­nhecimento de Deus, a forc;a do desejo e sua tendencia afirmativa elimi­nam todos os Iimites da miseria politica.

Antonio Negri

maio de 1993

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