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Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher
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São Paulo, 30 de setembro de 2019
Assunto: Manifestação Técnica em relação ao P.L. 2.538/2019
O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos
Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
(NUDEM), por meio de sua Coordenação, nos termos do artigo 5º e 53 da Lei
Complementar nº 988/2006 e do artigo 7º inciso IV da Deliberação CSDP nº
127/2006, vem apresentar PARECER TÉCNICO, após analisar o projeto de Lei
nº 2538/2019.
I – OBJETO DO PROJETO DE LEI
O Projeto de Lei em referência tem por objetivo alterar
a Lei Federal nº 10.778/2003 para dispor sobre a notificação compulsória, nos
casos de indícios ou confirmação de violência contra a mulher, em serviços de
saúde públicos ou privados, impondo, ainda, a obrigatoriedade de
comunicação à autoridade policial, no prazo de 24 horas, para adoção de
medidas cabíveis.
Sendo sua redação final a seguir exposta:
REDAÇÃO FINAL
PROJETO DE LEI Nº 2.538-C DE 2019
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Altera a Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003, para dispor sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de violência contra a mulher.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º O art. 1º da Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 1º Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados. ...................................................
§ 4º Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher referidos no caput deste artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos.”(NR)
Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação oficial.
Sala das Sessões, em 12 de setembro de 2019.
Deputada MARA ROCHA Relatora.
II- DO PARECER DO NUDEM
a) DO DIREITO À INTIMIDADE, VIDA PRIVADA E SIGILO MÉDICO.
Inicialmente, deve-se destacar que a proteção à
intimidade e vida privada se efetiva em nível internacional, perante os
Sistemas de Proteção Global- ONU- e Regional-OEA- de proteção, bem como
em um nível nacional, sendo os direitos à intimidade e vida privada, direitos
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assegurados constitucionalmente, e o sigilo médico uma decorrência lógica
destes direitos.
Nesse esteio, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) traz a seguinte previsão de proteção à privacidade:
“Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no
seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda
pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.
No âmbito da Organização dos Estados Americanos
(OEA), o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos
(CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que, no
tocante à privacidade, também proíbe a prática de qualquer ingerência
arbitrária ou abusiva na vida privada (artigo 11).
No âmbito nacional, a Constituição da República de
1988, sagrou o direito à intimidade (artigo 5º, inciso X) de forma autônoma
dentre os direitos da personalidade, concedendo a este direito valor
significativo dentre os direitos subjetivos, que possibilitam o desenvolvimento
da identidade individual e estão ligados ao exercício da liberdade individual.
Ao definir este direito Gilmar Ferreira mendes, em seu
livro Curso de Direito Constitucional, pág., 282 destaca que “ de modo geral, há
consenso em que o direito à privacidade tem por característica básica a pretensão de
estar separado de grupos, mantendo-se o indivíduo livre da observação de outras
pessoas. Confunde-se com o direito ao anonimato- que será respeitado quando o
indivíduo estiver livre de identificação e fiscalização. ”
A partir dessas diretrizes se desenvolve juridicamente o
sigilo profissional. No âmbito do sigilo profissional convergem disposições
de direito material e processual, v.g. artigos 388, II e 448, II do Código de
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Processo Civil, artigo 154 do Código Penal e artigo 207 do Código de Processo
Penal.
Dentre todas as hipóteses do sigilo profissional, talvez a
mais enraizada e relevante à sociedade seja a do segredo médico. Presente
desde o juramento de Hipócrates e equiparado ao segredo do confessionário
pelo Direito Canônico, o sigilo médico foi abraçado pelo ordenamento jurídico
como um dos pilares de eficiência e dignidade do exercício desta profissão de
interesse público.
Tal instituto transferiu-se do campo moral e ético para
ganhar status de direito individual, ligado aos direitos fundamentais à
intimidade, à vida privada e à dignidade da pessoa humana. O direito ao
segredo médico, garante o livre e amplo desenvolvimento da personalidade
individual – o que, por si só, já carrega forte relevância social –, além de
funcionar como um imprescindível instrumento de garantia do interesse
público, em especial interesse na vida e na saúde pública.
O médico se encaixa dentre as categorias profissionais
que ostentam natureza de confidentes necessários, constituindo o segredo
médico matéria de ordem pública. Nas palavras de Jorge Alcibíades Perrone de
Oliveira, que foi Desembargador do TJRS e consultor jurídico do CREMERS:
“Embora, sem sombra de dúvida, o segredo seja um
direito do paciente, integrando o seu patrimônio ético-
jurídico, do qual o médico é apenas o depositário, o
segredo não tem caráter puramente privado. Ao
contrário, corresponde também a um patrimônio ou
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interesse público, pois interessa igualmente à
coletividade que o indivíduo possa confiar sua vida
privada a alguém e não a veja exposta à publicidade. A
prova do interesse do Estado é a proteção penal dada ao
segredo, que define como crime sua violação – art. 154 do
Código Penal”1.
Novamente valem as palavras do autor referido acima:
“Embora, sem sombra de dúvida, o segredo seja um
direito do paciente, integrando o seu patrimônio ético-
jurídico, do qual o médico é apenas o depositário, o
segredo não tem caráter puramente privado. Ao
contrário, corresponde também a um patrimônio ou
interesse público, pois interessa igualmente à
coletividade que o indivíduo possa confiar sua vida
privada a alguém e não a veja exposta à publicidade. A
prova do interesse do Estado é a proteção penal dada ao
segredo, que define como crime sua violação – art. 154 do
Código Penal”2.
Luiz Francisco Torquato Avolio igualmente enxerga
valores constitucionais na proteção ao sigilo profissional:
1 Sigilo ou segredo médico – A Ética e o Direito. Revista Bioética, n. 2, v. 9, 2001, p. 142. 2 Idem, ibidem.
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“Tamanha é a relevância do instituto do sigilo, que de há
muito enseja tutela penal, ora alcançando relevo
constitucional, por indissociavelmente ligado à tutela da
intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das
pessoas, assim como da indevassabilidade de suas
comunicações e dados (CF, art. 5º, incisos X e XII)”3.
Qual é a sociedade que deseja viver perante um Estado
sem freios na invasão à intimidade dos indivíduos? Cabendo ainda outra
pergunta quando se trata de segredo médico: qual sociedade colocaria em
risco a vida e a saúde de seus indivíduos, cedendo a garantia da relação de
confiança entre médico e paciente em nome da perseguição criminal?4
Evidentemente, os direitos fundamentais,
constitucionalmente assegurados, são passiveis de limitações e que estas
limitações encontram freios, ante a necessidade de preservação do núcleo
essencial dos direitos fundamentais, sob pena de esvaziamento dos direitos
assegurados constitucionalmente por ação do legislador ordinário.
3 Anotações sobre o sigilo médico na esfera do processo judicial e do procedimento administrativo
e suas consequências processuais: provas ilegítimas e ilícitas. Revista EPD - Escola Paulista de
Direito, São Paulo, v. 2, n. 3, out./nov. 2006, p. 356.
4 Abordando o sigilo que envolve os prontuários dos pacientes, inclusive perante requisições
judiciais, Jorge Alcibiades Perrone de Oliveira sublinha os riscos sociais que derivariam da
flexibilização excessiva do dever de sigilo: “Nisso há também um aspecto social de todo
importante, especialmente nos dias que correm, além da questão do direito individual. É que se
tornar rotineiro que por requisição judicial possa ser requisitado o prontuário médico de alguém,
o paciente; este, sabedor disso, poderá deixar de revelar a seu médico assistente aspectos
importantes de sua vida (certas patologias), ante o receio de vê-los revelados. Isto causa, na
verdade, situações de risco, pois a omissão de certos pormenores de saúde podem se transformar
em grave perigo social (ex. o paciente pode não revelar ser portador de HIV, de tuberculose, etc.,
quando estiver sendo tratado de outra doença). Ob. cit., p. 145.
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Assim, a alteração legislativa que impõe a
obrigatoriedade dos/as profissionais de saúde notificarem autoridades
policiais, em se tratando de violência contra a mulher, viola as garantias da
intimidade, vida privada e do sigilo médico- paciente, uma vez que impõe o
compartilhamento de informações de caráter pessoal para destinatários
diversos dos escolhidos pela mulher.
b)- DO ENFRENTAMENTO À VIOLENCIA DE GÊNERO. DO RESPEITO À
AUTONOMIA DA MULHER. DA NÃO OBJETIFICAÇÃO DA MULHER EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA.
Não se pretende aqui reduzir a importância da
responsabilização criminal de autores de violência, como estratégia para
erradicação da violência contra as mulheres no Brasil. Obviamente, a redução
da impunidade possui importância significativa para o enfrentamento à
violência contra a mulher, na medida em que se confere significação social ao
fenômeno da violência que vitima milhares de mulheres por ano no Brasil.
Nada obstante, não se pode ignorar que a violência
sofrida por mulheres ou dito de outra forma, a violência de gênero, possui
especificidades, dentre as quais se pode destacar: a) centra-se no desvalor da
figura feminina, ou seja, na existência de relações assimétricas entre homens e
mulheres, no contexto de uma sociedade fundamentada sobre as bases de uma
ideologia sexista5; b) o local mais inseguro para as mulheres é a própria
5 Em sua Recomendação Geral n. 19 (1992) sobre a violência contra as mulheres, adotada em sua
décima primeira sessão,1 o Comitê CEDAW esclarece que a discriminação contra as mulheres,
como definido no artigo 1.º da Convenção, inclui a violência de gênero, ou seja, a “violência que é
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casa/família, na medida em que a violência de gênero sofrida possui o traço da
domesticidade/afetividade6. Em razão destes fatores é desafiador o
enfrentamento a violência contra a mulher.
O fenômeno da violência contra a mulher é
multifacetado. Nesse esteio, é correto afirmar que existem diversos obstáculos,
de ordem interna e externa, que impedem as mulheres em situação de
violência de romperem o ciclo de violência que, eventualmente, podem se
encontrar inseridas.
O Projeto de Lei, que é objeto de análise, simplifica o
fenômeno da violência contra a mulher, ao reduzir ao “medo”, como único fator
que impede a mulher de formular denúncias. Em relação ao tema Maria
Claudia Girotto do Couto, em dissertação intitulada “Lei maria da Penha e
Principio da Subsidiariedade: dialogo entre um direito penal mínimo e as
demandas de proteção contra a violência de gênero no Brasil” ressalta o
seguinte:
“ (...) a culpa, vergonha, dependência financeira,
existência de laços afetivos com agressor, falta de
credibilidade às denúncias, acesso dificultado às
instâncias de ajuda, entre tantos outros- interagem entre
dirigida contra uma mulher porque ela é mulher ou que afeta as mulheres desproporcionalmente”,
e que se constitui violação de seus direitos humanos.
6 O Atlas de Violência de 2019, publicado recentemente, pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública revela que em 51% dos casos de feminicidio analisados, conseguiu-se estabelecer a
existência de relação intima de afeto entre autor e vitima em 88,8% destes casos. No mesmo
sentido, a pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, 2º edição” destaca que
quando se observa o perfil do agressor, permanece o padrão de pessoas conhecidas da vítima em
sua grande maioria (76,4%).
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si fazendo com que a mulher permaneça em uma relação
abusiva. 7”
Destacando outros fatores que influem na decisão da
mulher em efetuar ou manter denúncias relativas a situação de violência
Saffioti assevera o seguinte:
“i) Em primeiro lugar, trata-se de uma relação afetiva,
com múltiplas dependências recíprocas. ii) Em segundo
lugar, raras são as mulheres que constroem sua própria
independência ou que pertencem a grupos dominantes.
Seguramente, o gênero feminino não constitui uma
categoria social dominante. Independência é diferente de
autonomia. As pessoas, sobretudo vinculadas por laços
afetivos, dependem umas das outras. Não há, pois, para
ninguém, total independência. (...) iii) Em terceiro lugar,
na maioria das vezes, o homem é o único provedor do
grupo domiciliar. Uma vez preso, deixa de sê-lo,
configurando-se um problema sem solução, quando a
mulher tem muitos filhos pequenos, ficando impedida de
trabalhar fora. Iv) Entre outras muitas razões, cabe
mencionar, em quarto lugar, a pressão que fazem a
família extensa, os amigos, a Igreja etc., no sentido da
preservação da sagrada família. Importa menos o que se
passa em seu seio do que sua preservação como
7 Disponível em:
file:///C:/Users/nmonte/Downloads/MariaClaudiaGirottodoCouto_LeiMariadaPenhaePrincipioda
Subsidiariedade.pdf, acesso em 01/10/2019.
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instituição. Há, pois, razões suficientes para justificar a
ambiguidade da mulher, que num dia apresentava a
queixa e, no seguinte, solicitava sua retirada. Isto para
não mencionar as ameaças de novas agressões e até de
morte que as mulheres recebiam de companheiros
violentos8”.
Conforme se observa pela argumentação acima
expendida, não se pode concluir que o fator preponderante ou que impede a
mulher de formular de denúncias contra o agressor é o “medo” como o Projeto
de Lei ressalta em sua justificação. A decisão da mulher em manter ou não uma
denúncia em relação ao agressor pressupõe a prestação de vários serviços
públicos para a mulher em situação e violência, que lhe permitam o
fortalecimento de sua autonomia e exercício de sua cidadania.
Não se pode olvidar, ainda, o contexto de violência
institucional a que as mulheres se encontram submetidas, como fator
desencorajador para efetivação de denúncias. Assim, a violência institucional-
entendida como aquela praticada, por ação e/ou omissão, nas instituições
prestadoras de serviços públicos - mulheres em situação de violência são, por
vezes, ‘revitimizadas’ nos serviços quando: são julgadas; não têm sua
autonomia respeitada; são forçadas a contar a história de violência inúmeras
vezes; são discriminadas em função de questões de raça/etnia, de classe e
geracionais de prisão, que são privadas de seus direitos humanos, em especial
de seus direitos sexuais e reprodutivos- ainda é uma realidade9.
8 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2004.
9 http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2011/politica-nacional
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No ponto, deve-se destacar que dentre os principais
resultados divulgados pela Comissão Mista Parlamentar de Inquérito,
instaurada pelo Congresso Nacional, no ano de 2012 estão a conclusão de que:
i) outros equipamentos atendem de forma mais adequada o fenômeno da
violência contra as mulheres, ou seja, para além a perspectiva repressiva; ii) as
delegacias estão sucateadas e as mulheres estão submetidas a procedimentos
demorados e agendamentos para registro de ocorrência; iii) os inquéritos
policiais não são concluídos. A seguir segue as conclusões da CPMI:
“Paralelamente ao fortalecimento do polo repressivo, foram sendo
criados novos serviços, como casas-abrigo e centros de referência,
com atendimento psicológico e social, bem como foi trabalhada a
reforma da legislação penal. Esses novos serviços atendiam à
perspectiva complexa do fenômeno da violência contra as
mulheres, constatando que em alguns casos a punição não era
o desejo das mulheres ou nem sempre a medida mais eficaz.
Embora seja representativo o crescimento, as delegacias em
todo o país estão em processo de sucateamento, conforme
constatou a CPMI nas diligências realizadas.( ) A situação de
abandono vivida pelas DEAMs não é privilégio destas, pois se
estende a todo o sistema de segurança pública.( )
A falta de estrutura das DEAMs reflete-se na ausência de servidores,
na estrutura física inadequada, na ausência de plantões 24 horas,
nas licenças médicas em excesso, na existência de profissionais
desmotivados/as, dentre outros problemas.
Não bastasse isso, foi identificado que, em alguns estados, os
boletins de ocorrência não possuem campo específico para crimes
da lei Maria da Penha e, em outros, praticam o "agendamento", isto
é, a oitiva completa do depoimento da vítima, em outro momento.
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A inexistência de campo específico compromete a obtenção de
dados estatísticos confiáveis. No entanto, esse não é o único
problema. A CPMI também constatou que nem todos os estados
possuem um sistema informatizado, especialmente no interior,
onde o registro é feito manualmente.
Além disto, observou-se demora na investigação policial devido a
despachos burocráticos nos inquéritos policiais que não atendem
aos requisitos de uma ágil investigação. Na DEAM de Manaus, a
CPMI constatou a existência de 4.500 inquéritos parados desde
2006, fato que estava sendo apurado pela Corregedoria da
Polícia.”10
Perceba-se, portanto, que um dos fatores que podem
fazer com que a mulher não procure as delegacias de polícia é a violência
institucional que é reproduzida nestes ambientes, de forma que a alteração
legislativa que ora se analisa, não vai ser suficiente para altera este cenário.
Por este motivo, a Recomendação nº 33/2015 do
Comitê sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres (CEDAW), referente ao acesso à justiça das mulheres, adverte acerca
da não efetividade de remédios jurídicos para grupos específicos de mulheres,
destacando-se mulheres negras e imigrantes, que “não reportam violações de
seus direitos às autoridades pelo temor de serem humilhadas, estigmatizadas,
presas, deportadas, torturadas ou submetidas a outras formas de violência,
inclusive por agentes encarregados de fazer cumprir a lei”11.
10 Disponivel em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2015000200519, acesso em 01/10/2019.
11Disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-
content/uploads/2016/02/Recomendacao-Geral-n33-Comite-CEDAW.pdf
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Não bastasse isso, pode-se, ainda, afirmar que o registro
da ocorrência, por si só, não é garantia de responsabilização do agressor e este
motivo- descrença no sistema de justiça- também contribui para que a mulher
não procure a segurança pública quando sofre violação de direitos.
Não por outro motivo, o Conselho Nacional de Justiça, ao
traçar um Panorama da Política Judiciária de Enfrentamento à Violência
Doméstica contra a Mulher, revelou que tramitaram na Justiça estadual 1,2
milhão de processos referentes à violência doméstica e familiar, o que
corresponde, em média, a 11 processos a cada mil mulheres brasileiras e que
foram concedidas, no ano de 2016, 195.038 medidas protetivas de urgência12.
A despeito disso, a Pesquisa do Senado Sobre o Poder
Judiciário na Lei Maria da Penha, concluiu que em 2016 para cada 10
inquéritos policiais relacionados a violência doméstica e familiar, mais de 7
foram arquivados sem ensejar o início de processos de conhecimento
criminais e que no mesmo ano, em todo Brasil, para cada 100 sentenças
proferidas em casos de violência doméstica, apenas 7 estipularam a
condenação do agressor. A mesma pesquisa demonstra que para cada grupo
de cem mil mulheres foram concedidas 184 medidas protetivas de urgência e
para este mesmo grupo somente foram iniciados 13 processos de execução
penal13, demonstrando que o Sistema de Justiça falha e não proporciona às
mulheres em situação de violência um efetivo acesso à justiça. Ademais, não
12 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85640-cnj-publica-dados-sobre-violencia-
contra-a-mulher-no-judiciario acesso em 18/06/2019.
13 Disponível em:
http://www.senado.gov.br/institucional/datasenado/omv/indicadores/relatorios/BR-2018.pdf acesso
em 06/06/2019
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há mecanismos que sejam capazes de garantir a efetividade das medidas
protetivas concedidas e a Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica é
insuficiente para as mulheres que a buscam.
O que se pretende demonstrar com a argumentação
acima exposta é que o rompimento do sigilo médico e o desrespeito a
intimidade, vida privada e autonomia da mulher não serão garantias de que o
enfrentamento à violência de gênero ocorrerá de forma satisfatória.
Trata-se, portanto, de uma opção legislativa
desproporcional para atingir os fins pretendidos.
Nesse sentido, no âmbito do exercício do poder
normativo é preciso considerar que “ os meios utilizados pelo legislador devem
ser adequados e necessários à consecução dos fins visados. O meio é adequado se,
com sua utilização, o evento pretendido pode ser alcançado; é necessário se o
legislador não dispõe de outro meio eficaz, menos restritivo aos direitos
fundamentais. 14” Nesse caso, o princípio da adequação pressupõe que a
medida adotada seja apta para atingir o fim pretendido. Já em relação a
necessidade, deve-se observar se há meios menos gravosos, para a garantia da
finalidade pretendida. Dessa forma, para que o poder regulamentador seja
exercido, legitimamente, deve-se considerar as desvantagens para os/as
cidadãos/ãs dos meios empregados com as vantagens a serem alcançadas ante
a finalidade pretendida.
No caso que se analisa, a normativa não se mostra
adequada para alcançar a finalidade pretendida, ou seja, o enfrentamento à
14 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. -12 ed. São Paulo, Saraiva,2017.
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violência de gênero, na medida em que são diversos os fatores internos e
externos que impedem as mulheres de realizarem denúncias, conforme já
demonstrado acima.
Afirmar que a mulher deixa de efetuar a denúncia
somente por “medo” é tratar o fenômeno da violência de gênero de forma
simplória e unidimensional. Nesse sentido, ao vincular o oferecimento de
serviços de saúde aos serviços de segurança pública ou a persecução penal do
autor das agressões, a nova legislação pode contribuir para que mulheres
deixem de acessar os serviços de saúde. Da mesma forma, a legislação que se
analisa não é necessária, uma vez que a lei Federal 10.778/2003 e Portaria
GM/MS nº 1271/2014- que estabelece a obrigatoriedade da notificação
compulsória para casos de violência contra a mulher atendidas no sistema
público ou privado de saúde- já cumpre a função de tornar obrigatória a
notificação de violência contra as mulheres para fins de controle
epidemiológico. Em se tratando da ocorrência de violência contra a mulher o
Ministério da Saúde orienta acerca da necessidade dos/as médicos/as
aconselharem à vítima a procurar a Delegacia de Mulheres ou a outros
serviços de atendimento15. Dessa forma, já havia normativas que eram
capazes de atingir a finalidade pretendida com a modificação legislativa.
Imperioso destacar, ainda, que o Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres e a Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres possuem como princípios a
serem respeitados autonomia das mulheres16, universalidade das políticas e
15 Disponivel em: http://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/acidentes-e-violencias/notificacao-de-
violencia-interpessoal, acesso em 30/09/2019.
16 Na casa-abrigo, a mulher encontra-se sob proteção do Estado. É importante diferenciar proteção
(que implica autonomia, liberdade de escolha e garantia do direito de ir e vir) de tutela que diz
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participação e controle social. Nesse esteio, a autonomia das mulheres e gestão
democrática são princípios ou diretrizes orientadoras do atendimento à
mulher em situação de violência. Isso significa que a mulher deve ser encarada
como sujeito de direitos, de modo que a mulher deve fazer parte da construção
do seu plano de atendimento. Todas as decisões de caráter processual ou
extraprocessual devem ser construídas de forma conjunta com a mulher a ser
atendida. A mulher deve ter em mente que tem poder de decisão sobre sua
vida e destino.
Por fim, e não menos importante, se a violência contra
a mulher pode ser entendida como forma de objetificação extrema da mulher,
de retirada de sua humanidade, de privação de sua autonomia e do seu
direito de autodeterminação, é correto afirmar que o projeto de lei é
igualmente violento, na medida em que reduz a capacidade da mulher vítima
de violência, uma vez que a impede de tomar suas próprias decisões. Neste
processo de “tutela” da mulher em situação de violência, o Estado, da mesma
forma que o homem agressor, ignora a condição da mulher de sujeito de
direitos e a reduz a condição de objeto de intervenção.
Não se pode perder de vista que as mulheres devem ser
compreendias como protagonistas de suas histórias.
II) DO PARECER
respeito ao “encargo ou autoridade que se confere a alguém, por lei ou por testamento, para
administrar os bens e dirigir e proteger a pessoa de um menor que se acha fora do pátrio poder,
bem como para representá-lo ou assistir-lhe nos atos da vida civil; defesa, amparo, proteção;
tutoria; dependência ou sujeição vexatória”(http://www. notadez.com.br/content/
dicionario_juridico. asp). Assim, a proteção à mulher em situação de violência deve ter por base o
princípio da “autonomia das mulheres”, previsto nos I e II Planos Nacionais de Políticas para as
Mulheres e na Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.
Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher
Rua Boa Vista, 103 – 10º andar – São Paulo/SP – CEP: 01014-000 – Tel: (11) 3101-0155 ramais 233 e 238
Email: [email protected]
Desse modo, o Núcleo Especializado de Promoção e
Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São
Paulo, vem apresentar PARECER PELA NÃO APROVAÇÃO do Projeto de Lei
da 2.538/2019, considerando que:
a) a alteração legislativa que impõe a
obrigatoriedade dos/as profissionais de saúde notificarem autoridades
policiais, em se tratando de violência contra a mulher, viola as garantias da
intimidade, vida privada e do sigilo médico- paciente, uma vez que impõe o
compartilhamento de informações de caráter pessoal para destinatários/as
diversos/as dos/as escolhidos/as pela mulher;
b) a normativa não se mostra adequada para
alcançar a finalidade pretendida, ou seja, o enfrentamento à violência de
gênero, na medida em que são diversos os fatores internos e externos que
impedem as mulheres de realizarem denúncias;
Sem mais, enviamos nossos protestos de estima e
consideração.
PAULA SANT’ANNA MACHADO DE SOUZA
Defensora Pública do Estado de São Paulo
Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos
das Mulheres
Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher
Rua Boa Vista, 103 – 10º andar – São Paulo/SP – CEP: 01014-000 – Tel: (11) 3101-0155 ramais 233 e 238
Email: [email protected]
NALIDA COELHO MONTE
Defensora Pública do Estado de São Paulo
Coordenadora Auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos
Direitos das Mulheres