nasci de novo

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Débora Anício REPÓRTER Choro, risadas e muita emoção. Essa cena aconteceu em um consultório de fonoau- diologia em Ipatinga, quando Tiara Fagundes, de 28 anos, ouviu sua voz pela primeira vez. Resultado de uma cirur- gia inédita no Vale do Aço realizada no dia 15 de janei- ro, no Hospital São Camilo em Timóteo. A conquista de Tiara foi possível pelo esfor- ço de sua mãe, Elça de Souza Coelho, que desde que des- cobriu a deficiência da filha não mediu esforços para bus- car tratamento. Depois de 30 dias da rea- lização do implante coclear, realizado pelo otorrinolarin- gologista Rodrigo Magalhães, o dispositivo implantado foi ativado no dia 18 de feverei- ro. "Fiquei muito emociona- da quando ouvi minha voz pela primeira vez, pois esse era meu sonho", contou Tiara. "Tremi, chorei, e depois comecei a ouvir barulhos, a fala da minha mãe e a risada da fonoaudióloga. Foi muita emoção! Eu sempre lutei pra chegar a esse momento, que foi a melhor coisa da minha vida. Eu nasci de novo", falou emocionada. Tiara nasceu com deficiên- cia auditiva, que foi detecta- da aos nove meses de idade. Ela sempre usou aparelhos auditivos e teve acompanha- mento fonoaudiólogo. "Cirur- gia não é milagre. Ela vai entrar em processo de reabi- litação auditiva para desen- volver suas novas habilida- des", explicou a fonoaudiólo- ga Priscila Machado, que faz o acompanhamento da pacien- te. "Hoje ela consegue ouvir palavras e perceber a dife- rença de entonação de vozes sem ajuda da leitura labial. Mas isso também acontece porque ela é uma boa pacien- te. A evolução da Tiara é acima do esperado", ressal- tou a profissional. INFÂNCIA A mãe de Tiara percebeu que a filha não respondia a alguns estímulos quando ainda era um bebê. "Os médicos falaram que eu era mãe de primeira viagem e que não fazia sentido o que eu falava. Diziam que minha filha tinha outros transtornos, mas não surdez", lembrou Elça. As dúvidas acabaram com a rea- lização de uma audiometria do tronco cerebral em Belo Horizonte, quando foi detec- tado que Tiara tinha uma defi- ciência auditiva severa. Logo após o diagnóstico, Elça fez de tudo para ajudar a filha. "Não existiam mui- tos fonoaudiólogos na região. Procurei um médico em Timóteo e só depois come- cei o tratamento em Ipatin- ga. Desde bebê a Tiara usa aparelhos auditivos. Na déca- da de 80 chegou a usar um dispositivo do tamanho de um walkman, que ela tinha que carregar numa bolsi- nha", lembrou a mãe. "A Tiara era uma criança que não conseguia escutar o som de uma conversa, e sons como a batida de uma porta", esclareceu a fonoaudióloga. CIRURGIA A tentativa de realização de uma operação que ao menos abrandasse a deficiência audi- tiva de Tiara começou há mais de 20 anos. "Levei minha filha a São Paulo quando ela tinha quatro anos de idade porque vi uma reportagem sobre implante coclear nos Estados Unidos", falou a mãe, que sempre se manteve informada sobre essa área médica. "Na época o médico disse que não podia fazer a cirurgia porque ela respondia muito bem ao aparelho. Penso que o motivo da recusa foi o alto preço da cirurgia, já que o plano de saúde não era obrigado a cobrir a operação na época". A possibilidade de operar surgiu no ano passado, quan- do Tiara mudou de emprego. "A audiometria realizada no exame de admissão apontou que ela estava perdendo a audição. Levei esse resultado ao médico, que indicou a cirur- gia". A operação tem o custo de cerca de R$ 90 mil e foi coberta pelo plano de saúde. A fonoaudióloga explicou que o tratamento contínuo de Tiara foi vital para a realiza- ção da cirurgia. "Cada cen- tro médico tem seus critérios de seleção de pacientes. Se a Tiara nunca tivesse feito fono e nunca tivesse usado apare- lhos auditivos ela não entra- ria nos critérios em nenhum lugar", explicou Priscila. "Hoje ela ouve em grau mode- rado, de 40 a 50 decibéis. O que representa a intensidade da nossa fala". A cirurgia a qual Tiara foi submetida consiste na implantação de um apare- lho que pode restabelecer a audição. "Com a operação ela saiu do grau de perda severa profunda para o grau de perda moderada", apon- tou a fonoaudióloga. ESTÍMULO E PRECONCEITO Muitos dos atuais avanços de Tiara são frutos do esforço contínuo da mãe. "Na minha casa tudo era posto à disposi- ção dela, a família sempre ajudou. Sempre estimulei a fala e conversava olho no olho para ajudar na leitura labial", assegurou Elça, que sempre brigou para que a filha fre- quentasse escolas regulares. "A Tiara foi para a escola aos dois anos de idade porque pre- cisava se socializar. Ela bri- gava muito e necessitava con- viver com outras crianças", falou. "Em certa ocasião, um colégio mandou que eu a matri- culasse na Apae, mas eu me recusei. Respeito muito a Apae, mas não achei que fosse ideal para minha filha". Uma das pioneiras da inclu- são escolar de deficientes, Elça sofreu com o preconcei- to por onde passou. "As mães queriam tirar o filho da esco- la por causa da Tiara. Num colégio houve uma reunião de pais para expulsar minha filha", lembrou Elça, que sempre venceu todos os obs- táculos. "As crianças me imi- tavam, batiam, arrancavam meu aparelho e falavam que eu era doida", recordou Tiara. Os problemas escolares continuaram quando Tiara entrou para a faculdade, oca- sião em que um dos profes- sores não respeitou o pedido médico da então estudante. "Ele não falava devagar para a minha filha entender a maté- ria e se recusou a repetir uma prova para ela. A Tiara teve uma crise nervosa e jogou a prova na cara do professor", relatou Elça. Depois desse episódio, Tiara mudou de universidade. "Esse é apenas um dos problemas das insti- tuições de ensino. As univer- sidades fazem rampas de aces- so para os cadeirantes, mas não há um preparo para rece- ber pessoas com outras defi- ciências". VITÓRIA Depois do sucesso da ope- ração, Elça relembra a tra- jetória da família e a força da filha. "Hoje ela conhece o tom de voz de todo mundo, coisa que eu não achava que seria possível. Agora ela entende o que é uma buzi- na, como é o som da chuva, o choro de uma criança, a voz do sobrinho", contou a orgulhosa mãe. "Quem me dera que ela tivesse conse- guido fazer a cirurgia ainda criança". Por conta do esforço da família e principalmente da mãe, a deficiência auditiva não foi um obstáculo na vida de Tiara, que se formou em Administração de empresas e sempre trabalhou. "Agradeço tudo à minha mãe, que sem- pre buscou o melhor pra mim", falou Tiara. "Eu sempre tra- balhei para dar conta do tra- tamento dela e educar meus outros filhos", salientou Elça, que outros três filhos. "Eu demorei 28 anos, mas consegui que minha filha ouvisse. Quem sabe outras mães não consigam isso para os filhos quando eles ainda são crianças? Peço que as pessoas estu- dem para compreender mais sobre a deficiência auditi- va e sobre a operação. Às vezes é a ignorância que faz a pessoa dizer não ao tratamento", pediu Elça. "A pessoa precisa estar pre- parada para enfrentar a cirurgia, porque muda muito seu psicológico. Mas estou tão feliz que gostaria de ter feito a operação bem antes", finalizou Tiara. "A história de superação dela é muito bonita. A mãe sempre lutou para que ela tivesse acesso a tecnologias que recuperassem a audibili- dade que todo ser humano tem. Sons que pra nós são normais, para ela é uma des- coberta", comentou Priscila. V ALE DO AÇO 4 Ipatinga, DOMINGO, 13 de abril de 2014 CIDADES FAMÍLIA > O apoio incondicional da mãe e do marido foi vital para o desenvolvimento de Tiara ao longo da vida MÉTODO > A operação consistiu na implantação de um aparelho que pode restabelecer a audição DESENVOLVIMENTO > A fonoaudióloga Priscila Machado explicou que a evolução de Tiara é surpreendente, e que ela não precisa mais do aparelho auditivo que sempre usou Depois de cirurgia inédita no Vale do Aço, mulher de Ipatinga ouve o som da própria voz pela primeira vez, aos 28 anos "NASCI DE NOVO" FOTOS: FERNANDO MAGESKI

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Depois de cirurgia inédita no Vale do Aço, mulher de Ipatinga ouve o som da própria voz pela primeira vez, aos 28 anos

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Page 1: Nasci de novo

Débora Anício

RREEPPÓÓRRTTEERR

Choro, risadas e muitaemoção. Essa cena aconteceuem um consultório de fonoau-diologia em Ipatinga, quandoTiara Fagundes, de 28 anos,ouviu sua voz pela primeiravez. Resultado de uma cirur-gia inédita no Vale do Açorealizada no dia 15 de janei-ro, no Hospital São Camiloem Timóteo. A conquista deTiara foi possível pelo esfor-ço de sua mãe, Elça de SouzaCoelho, que desde que des-cobriu a deficiência da filhanão mediu esforços para bus-car tratamento.

Depois de 30 dias da rea-lização do implante coclear,realizado pelo otorrinolarin-gologista Rodrigo Magalhães,o dispositivo implantado foiativado no dia 18 de feverei-ro. "Fiquei muito emociona-da quando ouvi minha vozpela primeira vez, pois esseera meu sonho", contou Tiara."Tremi, chorei, e depoiscomecei a ouvir barulhos, afala da minha mãe e a risadada fonoaudióloga. Foi muitaemoção! Eu sempre lutei prachegar a esse momento, quefoi a melhor coisa da minhavida. Eu nasci de novo", falouemocionada.

Tiara nasceu com deficiên-cia auditiva, que foi detecta-da aos nove meses de idade.Ela sempre usou aparelhosauditivos e teve acompanha-mento fonoaudiólogo. "Cirur-gia não é milagre. Ela vaientrar em processo de reabi-litação auditiva para desen-volver suas novas habilida-des", explicou a fonoaudiólo-ga Priscila Machado, que fazo acompanhamento da pacien-te. "Hoje ela consegue ouvirpalavras e perceber a dife-rença de entonação de vozessem ajuda da leitura labial.Mas isso também aconteceporque ela é uma boa pacien-te. A evolução da Tiara éacima do esperado", ressal-tou a profissional.

INFÂNCIAA mãe de Tiara percebeu

que a filha não respondia aalguns estímulos quando aindaera um bebê. "Os médicosfalaram que eu era mãe deprimeira viagem e que nãofazia sentido o que eu falava.Diziam que minha filha tinhaoutros transtornos, mas nãosurdez", lembrou Elça. Asdúvidas acabaram com a rea-lização de uma audiometriado tronco cerebral em BeloHorizonte, quando foi detec-tado que Tiara tinha uma defi-ciência auditiva severa.

Logo após o diagnóstico,Elça fez de tudo para ajudara filha. "Não existiam mui-tos fonoaudiólogos na região.Procurei um médico emTimóteo e só depois come-cei o tratamento em Ipatin-ga. Desde bebê a Tiara usaaparelhos auditivos. Na déca-da de 80 chegou a usar umdispositivo do tamanho deum walkman, que ela tinhaque carregar numa bolsi-nha", lembrou a mãe. "ATiara era uma criança quenão conseguia escutar o somde uma conversa, e sons

como a batida de uma porta",esclareceu a fonoaudióloga.

CIRURGIAA tentativa de realização

de uma operação que ao menosabrandasse a deficiência audi-tiva de Tiara começou há maisde 20 anos. "Levei minha filhaa São Paulo quando ela tinhaquatro anos de idade porquevi uma reportagem sobreimplante coclear nos Estados

Unidos", falou a mãe, quesempre se manteve informadasobre essa área médica. "Naépoca o médico disse que nãopodia fazer a cirurgia porqueela respondia muito bem aoaparelho. Penso que o motivoda recusa foi o alto preço dacirurgia, já que o plano desaúde não era obrigado a cobrira operação na época".

A possibilidade de operarsurgiu no ano passado, quan-

do Tiara mudou de emprego."A audiometria realizada noexame de admissão apontouque ela estava perdendo aaudição. Levei esse resultadoao médico, que indicou a cirur-gia". A operação tem o custode cerca de R$ 90 mil e foicoberta pelo plano de saúde.

A fonoaudióloga explicouque o tratamento contínuo deTiara foi vital para a realiza-ção da cirurgia. "Cada cen-tro médico tem seus critériosde seleção de pacientes. Se aTiara nunca tivesse feito fonoe nunca tivesse usado apare-lhos auditivos ela não entra-ria nos critérios em nenhumlugar", explicou Priscila."Hoje ela ouve em grau mode-rado, de 40 a 50 decibéis. Oque representa a intensidadeda nossa fala".

A cirurgia a qual Tiarafoi submetida consiste naimplantação de um apare-lho que pode restabelecer aaudição. "Com a operaçãoela saiu do grau de perdasevera profunda para o graude perda moderada", apon-tou a fonoaudióloga.

ESTÍMULO E PRECONCEITOMuitos dos atuais avanços

de Tiara são frutos do esforçocontínuo da mãe. "Na minhacasa tudo era posto à disposi-ção dela, a família sempreajudou. Sempre estimulei afala e conversava olho no olhopara ajudar na leitura labial",assegurou Elça, que semprebrigou para que a filha fre-quentasse escolas regulares."A Tiara foi para a escola aosdois anos de idade porque pre-cisava se socializar. Ela bri-gava muito e necessitava con-viver com outras crianças",falou. "Em certa ocasião, umcolégio mandou que eu a matri-culasse na Apae, mas eu merecusei. Respeito muito aApae, mas não achei que fosseideal para minha filha".

Uma das pioneiras da inclu-são escolar de deficientes,Elça sofreu com o preconcei-to por onde passou. "As mãesqueriam tirar o filho da esco-la por causa da Tiara. Numcolégio houve uma reuniãode pais para expulsar minhafilha", lembrou Elça, quesempre venceu todos os obs-táculos. "As crianças me imi-tavam, batiam, arrancavammeu aparelho e falavam queeu era doida", recordou Tiara.

Os problemas escolarescontinuaram quando Tiaraentrou para a faculdade, oca-sião em que um dos profes-sores não respeitou o pedidomédico da então estudante."Ele não falava devagar paraa minha filha entender a maté-

ria e se recusou a repetir umaprova para ela. A Tiara teveuma crise nervosa e jogou aprova na cara do professor",relatou Elça. Depois desseepisódio, Tiara mudou deuniversidade. "Esse é apenasum dos problemas das insti-tuições de ensino. As univer-sidades fazem rampas de aces-so para os cadeirantes, masnão há um preparo para rece-ber pessoas com outras defi-ciências".

VITÓRIADepois do sucesso da ope-

ração, Elça relembra a tra-jetória da família e a forçada filha. "Hoje ela conheceo tom de voz de todo mundo,coisa que eu não achava queseria possível. Agora elaentende o que é uma buzi-na, como é o som da chuva,o choro de uma criança, avoz do sobrinho", contou aorgulhosa mãe. "Quem medera que ela tivesse conse-guido fazer a cirurgia aindacriança".

Por conta do esforço dafamília e principalmente damãe, a deficiência auditivanão foi um obstáculo na vidade Tiara, que se formou emAdministração de empresas e

sempre trabalhou. "Agradeçotudo à minha mãe, que sem-pre buscou o melhor pra mim",falou Tiara. "Eu sempre tra-balhei para dar conta do tra-tamento dela e educar meusoutros filhos", salientou Elça,que outros três filhos.

"Eu demore i 28 anos,mas consegui que minhafilha ouvisse. Quem sabeoutras mães não consigamisso para os filhos quandoeles a inda são cr ianças?Peço que as pessoas estu-dem para compreender maissobre a deficiência auditi-va e sobre a operação. Àsvezes é a ignorância quefaz a pessoa dizer não aotratamento", pediu Elça."A pessoa precisa estar pre-parada para enfren tar ac i rurg ia, porque mudamuito seu psicológico. Masestou tão feliz que gostariade ter feito a operação bemantes", finalizou Tiara.

"A história de superaçãodela é muito bonita. A mãesempre lutou para que elativesse acesso a tecnologiasque recuperassem a audibili-dade que todo ser humanotem. Sons que pra nós sãonormais, para ela é uma des-coberta", comentou Priscila.

VALE DO AÇO4 Ipatinga, DOMINGO, 13 de abril de 2014

CIDADES

FAMÍLIA > O apoio incondicional da mãe e do marido foi vital para o desenvolvimento de Tiara ao longo da vidaMÉTODO > A operação consistiu na implantação de

um aparelho que pode restabelecer a audição

DESENVOLVIMENTO > A fonoaudióloga Priscila Machado explicou que a evolução de Tiara ésurpreendente, e que ela não precisa mais do aparelho auditivo que sempre usou

Depois de cirurgia inédita no Vale do Aço, mulher de Ipatinga ouve o som da própria voz pela primeira vez, aos 28 anos

"NASCI DE NOVO"FOTOS: FERNANDO MAGESKI