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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Programa de pós-graduação em Filosofia NARRATIVA E SENTIDO DA VIDA: UMA APROXIMAÇÃO ENTRE VIKTOR FRANKL E PAUL RICOEUR Jefferson da Silva São Paulo 2011

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Page 1: NARRATIVA E SENTIDO DA VIDA: UMA … · JEFFERSON DA SILVA NARRATIVA E SENTIDO DA VIDA: UMA APROXIMAÇÃO ENTRE VIKTOR FRANKL E PAUL RICOEUR Dissertação apresentada ao Programa

UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Programa de pós-graduação em Filosofia

NARRATIVA E SENTIDO DA VIDA:

UMA APROXIMAÇÃO ENTRE VIKTOR FRANKL E

PAUL RICOEUR

Jefferson da Silva

São Paulo

2011

Page 2: NARRATIVA E SENTIDO DA VIDA: UMA … · JEFFERSON DA SILVA NARRATIVA E SENTIDO DA VIDA: UMA APROXIMAÇÃO ENTRE VIKTOR FRANKL E PAUL RICOEUR Dissertação apresentada ao Programa

JEFFERSON DA SILVA

NARRATIVA E SENTIDO DA VIDA:

UMA APROXIMAÇÃO ENTRE VIKTOR FRANKL E

PAUL RICOEUR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Filosofia da Universidade São Judas

Tadeu, como exigência parcial para a obtenção do

título de mestre em filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Hélio Salles Gentil

São Paulo

2011

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Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878

Silva, Jefferson da

Narrativa e sentido da vida : uma aproximação entre Viktor Frankl e Paul

Ricoeur / Jefferson da Silva. - São Paulo, 2011.

123 f. ; 30 cm.

Orientador: Hélio Salles Gentil

Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2011.

1. Frankl, Viktor Emil 2. Ricoeur, Paul 3. Narrativa 4. Filosofia da vida I.

Gentil, Hélio Salles II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título

CDD – 113.8

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DEDICATÓRIA

Às pessoas que lutam por um sentido em suas vidas,

principalmente àquelas que são vitimadas pelas próprias

circunstâncias, como desestrutura familiar e falta de recursos.

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AGRADECIMENTOS

A meu orientador, Prof. Dr. Hélio Salles Gentil, que

acompanhou cuidadosamente e acreditou ser possível a

realização deste trabalho. Aos amigos que contribuíram para

o seu desenvolvimento.

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RESUMO

O trabalho busca desenvolver uma reflexão sobre a questão do sentido da vida a partir

da perspectiva de Viktor Frankl, fazendo uma aproximação à noção de narrativa desenvolvida

por Paul Ricoeur. Para Frankl a busca de um sentido para vida é a maior de todas as

necessidades humanas, mesmo que, em nossos dias, muitas pessoas vivam com um profundo

sentimento de vazio. É o que o autor chama de vazio existencial; as pessoas encontram-se

desorientadas, sem rumo, falta-lhes um sentido para suas vidas e elas precisam buscá-lo.

Acompanhando o surgimento e desenvolvimento agudo dessa problemática que, como

apontam vários autores, é uma característica da modernidade ocidental, levantamos as

questões que seguem: O que é este sentido da vida? Como podemos encontrar um sentido

para vida em nossos dias? Para Frankl, o sentido para a vida identifica-se com as motivações

que encontramos na existência, motivações que vamos encontrando no dia-a-dia conforme

nos relacionamos com as diversas circunstâncias do cotidiano. Porém, as circunstâncias do

cotidiano são instáveis, “ligeiras”, mudam constantemente. Como então poderíamos encontrar

um sentido para a vida, vivendo em meio ao turbilhão de constantes mudanças?

Encontramos na noção de narrativa elaborada pelo filósofo francês Paul Ricoeur, em

particular na idéia da composição narrativa, a possibilidade de articulação de um sentido para

essa vida desdobrada em situações que mudam constantemente. Para o autor, a composição

narrativa, através da estruturação que realiza, consegue articular as ações dos homens e

sustentar-lhes uma identidade dentro da mudança. Ações e circunstâncias heterogêneas, uma

vez postas em composição narrativa, ganham inteligibilidade e sentido. Segundo Ricoeur,

tanto o sujeito que narra sua história quanto o leitor que se apropria da composição narrativa,

têm a oportunidade de compreender sua própria ação no mundo, dando-lhe um certo sentido

em seu desdobramento temporal e refigurando seu mundo.

Fizemos, assim, uma releitura da noção de sentido da vida em Viktor Frankl,

apontando as dificuldades e os limites de sua elaboração. E, ao mesmo tempo, tomando como

ponto de partida a problemática colocada por Frankl, mostramos como a noção de narrativa

elaborada por Paul Ricoeur leva a uma noção mais delimitada de sentido e mostra ser a

narrativa um caminho para articulações de sentido na vida humana.

Palavras-chave: Ricoeur, Frankl, sentido da vida, narrativa.

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ABSTRACT

This work intends to develop a reflection about the question of the meaning of life

from the perspective of Viktor Frankl, approaching with the notion of narrative developed by

Paul Ricoeur. According to Frankl, the search of the meaning of life is the greatest need of all

human necessities even that today many people live in a deep empty feeling. The author calls,

it existential vacuum: people are disoriented, without direction in their lives they lack a

meaning of life and need to search for it.

Following the onset and acute development of this problem which, as indicated by

several authors, is a characteristic of western modernity, we raise the following questions:

What is this meaning of life? How can we find the meaning for life nowadays? To Frankl, the

meaning of life identifies itself with the motivation that we find in our existence, with the

motivation that we find in everyday life, as we relate to the various daily circumstances.

However, the circumstances of daily life are unstable, fast and are, constantly changing. How

can we, then, find the meaning of life in a whirlwind of a constant change?

We find notion of narrative developed by the French philosopher Paul Ricoeur, in

particular the idea of narrative composition, the possibility of articulating a meaning to this

deployed life in situations that are constantly changing. For him, the narrative composition, by

structuring it holds, can articulate the actions of men and sustain him in an identity inside the

change. Heterogeneous actions and circumstances that once, put in narrative composition,

become intelligible and make meaning. According to Ricoeur, as the subject who narrates as

the reader that appropriates the narrative composition, has the opportunity to understand their

own action in the world, giving it a meaning as it unfolds in time and refiguring its world.

Thus, we do a new approach to the notion of meaning in life in Viktor Frankl, pointing

out the difficulties and limitations in its design. At the same time, taking as its starting point

the issues raised by Frankl, we show how the notion of narrative elaborated by Paul Ricoeur

leads to a more circumscribed notion of meaning and narrative turns out to be a way to

articulations of meaning in human life.

Keywords: Ricoeur, Frankl, meaning of life, narrative.

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SUMÁRIO

DEDICATÓRIA.................................................................................................................02

AGRADECIMENTOS.....................................................................................................03

RESUMO..............................................................................................................................04

ABSTRACT.........................................................................................................................05

SUMÁRIO............................................................................................................................06

INTRODUÇÃO..................................................................................................................08

I CAPITULO – A questão do sentido da vida em Viktor Frankl............................................10

1.1 O vazio existencial............................................................................................................10

1.2 O conceito de pessoa.........................................................................................................30

1.1 O homem como unidade múltipla...............................................................................32

1.2 O homem como ser espiritual......................................................................................35

1.3 O homem livre e responsável......................................................................................38

1.3 A vontade de sentido..........................................................................................................44

II CAPITULO - A noção de narrativa em Paul Ricoeur ........................................................51

2.1 Do discurso oral ao texto...................................................................................................52

2.2 O mundo do texto...............................................................................................................56

2.3 Da discordância à concordância ........................................................................................62

III CAPÍTULO - O desdobramento de mimesis .....................................................................80

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3.1 Mimesis I – prefiguração....................................................................................................81

3.2 Mimesis II – configuração..................................................................................................85

3.3 Mimesis III – refiguração...................................................................................................90

IV CAPÍTULO – A relação da noção de narrativa com a questão do sentido da vida...........95

4.1 Aproximando a noção de narrativa à questão do sentido da vida.......................................99

4.2 A busca do sentido da vida e o livro Em busca de sentido – um psicólogo no campo de

concentração.........................................................................................................................102

4.3 A narrativa de Viktor Frankl no campo de concentração.................................................103

CONCLUSÃO...................................................................................................................111

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................119

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INTRODUÇÃO

O homem é um ser envolto em questionamentos que o levam a uma constante busca

de resposta. Dentre os diversos questionamentos e possíveis temas para reflexão na

contemporaneidade, o sentido da vida pode ocupar um lugar privilegiado. Qual é o sentido da

vida do ser humano? Como se manifesta? O que é sentido da vida? É em meio a essas e outras

perguntas que se pode inserir o trabalho do filósofo e psiquiatra Viktor Frankl que, a partir da

própria vida, de investigações intelectuais e atendimentos a pacientes, desenvolve a questão

do sentido da vida.

O outro filósofo sobre o qual refletiremos em nosso trabalho é Paul Ricoeur, que

desenvolve com propriedade a questão da narrativa. É através da narrativa de Ricoeur que

buscaremos “...decifrar o sentido oculto no sentido aparente, (...) desdobrar os níveis de

significação implicados na significação literal...”(RICOEUR, 1978, p. 15). Tentaremos,

através da hermenêutica de Paul Ricoeur, encontrar caminhos de desvelamento do sentido da

vida. Vamos nos aventurar no mundo da narração e, unindo-o à questão do sentido da vida de

Viktor Frankl, poderemos encontrar fundamentações para pensar a questão do sentido da

existência, vislumbrando luzes a partir do cotidiano, a partir das pequenas situações do dia-a-

dia. Essa é, portanto, a nossa hipótese de trabalho. E a partir daí elaboramos a proposta de

nosso trabalho: a aproximação da noção de narrativa de Paul Ricoeur à questão do sentido da

vida em Viktor Frankl.

No desenvolvimento desta pesquisa, primeiramente procuramos pontuar o período em

que estamos vivendo e, a partir daí, apresentamos a opinião de Viktor Frankl e de alguns

outros autores. Em seguida procuramos definir o significado da palavra “sentido” a partir da

perspectiva de Viktor Frankl.

O trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, buscamos

apresentar o conceito de sentido da vida a partir da perspectiva de Viktor Frankl.

Consideramos primeiramente o conceito de vazio existencial, que, segundo Frankl, é a própria

falta de perspectiva em que muitas pessoas se encontram hoje, em seguida definimos o que é

o sentido da vida para Frankl e o seu conceito de pessoa. Nesse capítulo abordamos outros

autores que nos ajudaram a compreender melhor o pensamento de Viktor Frankl como: Izar

Aparecida de Moraes Xausa, Ricardo Peter e uma grande colaborada de Viktor Frankl,

Elisabeth Lukas, que através de várias obras publicadas nos ajuda a penetrar no pensamento

do autor.

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No segundo capítulo examinamos parte da teoria de Paul Ricoeur e o acompanhamos

na passagem do discurso oral para o discurso do texto. Partindo do discurso como texto,

aprofundamo-nos para chegar à noção de “mundo do texto”. Conhecemos como se dá sua

formação e em seguida refletimos sobre suas implicações na questão do sentido da vida que

buscamos aprofundar neste trabalho. Nesse capítulo examinamos também o trabalho que Paul

Ricoeur realizou, confrontando Confissões de Agostinho, de um modo especial o livro XI, que

fala sobre o tempo, e o conceito de mythos retirado da Poética de Aristóteles. Com isso

pretendemos discutir a teoria da temporalidade narrativa de Paul Ricoeur, que relaciona a

natureza do tempo em Agostinho ao conceito de mythos de Aristóteles. Analisamos a forma

como uma composição narrativa estabelece a preponderância da concordância sobre a

discordância e como o autor relaciona a composição narrativa com as ações dos homens. É

nesse ponto que vemos como a narrativa se articula com o tempo e como o tempo se torna

tempo humano à medida que se articula com a narrativa. Todo esse processo pode ser

relacionado com a busca de um sentido para vida do homem; essa busca é o que discutimos

em nosso trabalho.

No terceiro capítulo continuamos nossas reflexões sobre a composição narrativa

proposta por Ricoeur, buscando ligar ainda mais a noção de narrativa ao mundo dos homens.

É nessa busca que examinamos como acontece o desdobramento mimético, passando pela

mimesis I, mundo da ação onde nasce o texto, mimesis II, onde se configura o mundo do texto

e mimesis III, onde se retorna ao mundo da ação através do leitor que recebe a composição

narrativa. É na relação entre o leitor e a composição que acontece a refiguração, a partir da

qual o leitor refigura sua própria ação no mundo. É em todo esse processo do desdobramento

mimético que buscamos possibilidades para que o sujeito da narração bem como o leitor

encontrem respostas para a questão do sentido da vida.

No quarto capítulo, já tendo discutido a questão do sentido da vida de Viktor Frankl e

a noção de narrativa de Ricoeur, aproximamos esses dois autores, tendo em vista analisar a

possibilidade de encontrar um sentido para a vida através da narração de uma história.

Conhecemos, também nesse capítulo, um pouco da narrativa de Viktor Frankl sobre o campo

de concentração e tentamos mostrar como sua obra pode nos ajudar a encontrar um sentido

para nossas vidas.

Por fim, é preciso pensar até que ponto Viktor Frankl e Paul Ricoeur conseguiram dar-

nos respostas para a pergunta sobre o sentido da vida. Discutimos, assim, na conclusão o

alcance da pergunta sobre o sentido da vida no mundo moderno e contemporâneo, a resposta

explícita de Frankl e a contribuição indireta de Ricoeur.

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I CAPÍTULO – A questão do sentido da vida em Viktor Frankl.

1.1 O vazio existencial.

Vivemos em constantes mudanças, tudo é muito corrido e rápido, são tecnologias

avançadas, metas a atingir no trabalho, informações rápidas que nos chegam a todo instante.

Vivemos em meio aos avançados meios de comunicação que rompem a distância entre as

culturas e as pessoas. O filósofo americano Berman, em seu livro Tudo que é sólido

desmancha no ar (1986), observa que vivemos em meio a um turbilhão de mudanças

caracterizado por:

“...grandes descobertas das ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do

universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que

transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e

destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera nova explosão demográfica,

que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as

pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes

catastrófico crescimento urbano, sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em

seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais

variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos,

burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir

seu poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes

políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim,

dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista

mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão...” (p. 16).

Segundo Berman, essa maneira de viver em meio a constantes mudanças é

característica de nossa era, da chamada modernidade. É um tipo de maneira de viver, em que

experiência de tempo e espaço de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida,

são compartilhadas por todos os homens e mulheres. “Ser moderno é encontrar-se em um

ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e

transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos,

tudo o que sabemos, tudo o que somos.”(BERMAN, 1986, p. 15). Vivemos em tempos onde

tudo se transforma, tudo muda a todo instante, em tempos em que conhecemos outras

culturas, outros povos; são tempos em que podemos nos comunicar em poucos instantes com

pessoas de outros países, de outras raças, línguas e religiões. Como diz Berman, “...a

modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de

religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie

humana.”(BERMAN, 1986, p. 15). Podemos dizer, portanto, que viver em nossa era é poder

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expandir nossa mentalidade e maneira de ver o mundo, é abrir-se para a diversidade de outras

culturas, pensamentos e idéias, é descobrir e enriquecer a nossa maneira de ser no mundo, a

nossa ação no mundo.

Porém, ao mesmo tempo em que nos abrimos a outras culturas e que as fronteiras

geográficas são anuladas, graças aos avançados meios de comunicação, vemos que esse

enriquecimento, essas constantes mudanças que unem a espécie humana, também

desencadeiam um conjunto de transformações, que temos dúvidas se o homem moderno anda

conseguindo acompanhar. Está havendo, sem dúvida, enormes transformações na ciência, na

tecnologia, no mundo em si e em nossa maneira de ver o mundo. O rápido crescimento

urbano e o capitalismo selvagem acabam exigindo do homem moderno uma produção cada

vez maior para que a economia cresça. Como afirma Berman, ao mesmo tempo em que a

modernidade unifica a espécie humana, ela também desconstrói, trata-se, portanto, de uma

unidade paradoxal, pois é uma unidade de desunidade: “...ela nos despeja a todos num

turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e

angústia.”(BERMAN, 1986, p. 15). Vivemos em meio a esse devir, que, ao mesmo tempo em

que transforma e enriquece nossa própria identidade, também pode destruir o que temos, o

que sabemos e o que somos. Berman, citando Marx, diz: “... „Tudo que é sólido desmancha no

ar‟...”(BERMAN, 1986, p. 15). Tudo é muito flutuante e em permanente expansão, temos

sido alimentados por grandes descobertas e grandes mudanças. O que, em séculos anteriores

era mantido pelas tradições e pelos conjuntos de regras estabelecidas pelas religiões e pelos

feudos, principalmente no período medieval, com a modernidade transforma-se em uma nova

mentalidade. No livro Itinerário de uma crise da modernidade João Francisco Duarte Junior

(1997) afirma:

“...a modernidade refere-se a um período histórico: aquele que se inicia por volta do

século XV e se estende até os nossos dias. Nesse período, um conjunto de mudanças

na maneira de pensar a realidade e se relacionar com ela passa a distinguir o humano

de seus antepassados de séculos anteriores, séculos esses agrupados genericamente

sob denominação de Idade Média. A modernidade, desse modo, significa não

arbitrária, notadamente, um certo tipo de mentalidade, que século após século, veio

se instalando e se desenvolvendo entre os homens...”(p. 9).

Segundo Duarte o homem da Idade Média olhava para trás e para cima, olhava um

mundo já pronto e acabado, fruto da criação divina, mas para o homem moderno, com o

rompimento do mundo medieval, nasce a idéia de progresso, nasce a esperança de novos

tempos, nasce a idéia de expansões e mudanças.

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Ao pontuarmos nossos dias com os séculos anteriores, não estamos querendo fazer

apologia do que passou, não estamos querendo um retorno ao período medieval, queremos

apenas mostrar que há quase quinhentos anos estamos vivendo em meio a esse turbilhão de

constantes mudanças que têm como riqueza a abertura às diversas culturas, às grandes

descobertas, aos avanços tecnológicos e às variedades de tradições que conhecemos dia após

dia. Apesar enaltecermos a modernidade pela sua diversidade e abertura ao novo, existem

autores como Lima Vaz, Duarte Junior, Rouanet e outros que afirmam que a modernidade

vive em uma crise de sentido.

Segundo Lima Vaz, a modernidade vive em crise porque rompeu o seu vínculo com o

ser e vive sob a primazia da aparência do ser. Diz ele que para compreendermos a crise da

modernidade temos que descobrir sua lógica inelutável “...que transforma a produção humana

do sentido em fábrica da aparência e do não-sentido, no momento em que, tendo rompido seu

vínculo essencial com o ser, passa a constituir-se paradoxalmente em matriz do não-

ser...”(VAZ, 1994, p.10). Vê-se assim a primazia da aparência do ser em relação ao ser. É a

partir dessas coordenadas que o homem moderno refaz sua morada simbólica, situando-se

dentro das coordenadas das perspectivas do espaço da representação, invocando a si o intento

demiúrgico de edificar um mundo submetido a um sistema de medidas imanentes a si próprio

(cf. p.6). Afirma Lima Vaz (1997) que a teoria moderna da representação é o resultado da

“...supressão, pelo menos virtual, da distinção aristotélica entre três grandes formas

de conhecimento, o teorético, o prático, e o poético. As formas do conhecimento

teorético e prático têm como objeto, respectivamente, o ser (ousia) das coisas

investigado e contemplado na sua verdade, e o agir virtuoso (héxis, aréte) segundo o

costume (ethos), descrito e compreendido na sua bondade. Já o conhecimento

poético dirige o fazer (poíesis) de objetos segundo a sua utilidade. Ora, a primazia

da representação na concepção do conhecimento como sendo o objeto imediato da

intenção cognoscitiva abre para o sujeito um campo ilimitado da possibilidades de

referir-se ao objeto – na sua verdade, bondade ou utilidade – como sendo ergon, um

produto da atividade poética do sujeito...” (p.163).

Segundo Lima Vaz, a modernidade encontra-se mergulhada no modelo poético do

conhecimento, um conhecimento que se dirige para o fazer e, dentro desse fazer, existe a

preocupação com o que é útil. Na dinâmica do fazer, o grande protagonista é o sujeito, que

passa a organizar tudo a partir do fazer e do que é útil. Logo, o que se torna importante é a

utilidade e o funcionalismo das coisas, enquanto que as coisas investigadas e contempladas na

sua verdade, no seu ser (ousia), ou ainda no agir virtuoso são deixadas de lado e dão lugar ao

que é apenas útil, caindo na valorização da aparência ou da representação.

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Segundo Vaz, para que possa existir produção de sentido na vida do homem, é necessário

ter como objeto de conhecimento o ser das coisas, as coisas contempladas na sua verdade e

não naquilo que representam ou aparentam ser a partir do critério decodificador do próprio

sujeito. Afirma o filósofo que a modernidade vive uma crise, pois o homem está parado na

representação, naquilo que as coisas aparentam ser, na sua superficialidade. É a partir daí que

o filósofo afirma que a modernidade vive a crise do sentido. Para ele a modernidade está em

crise, pois o homem em nossos dias dá primazia à representação em detrimento do ser,

invocando a si próprio a organização do mundo, e tudo passa a ser organizado a partir do seu

próprio ego. O importante não é mais o ser das coisas, mas o que elas aparentam ser ao

sujeito. O sujeito é o protagonista, a medida de todas as coisas.

Assim, como Lima Vaz faz críticas à modernidade, Duarte Junior, que já citamos neste

trabalho, também fazendo suas críticas, afirma que o homem moderno, que colocou toda sua

esperança no progresso, acabou frustrado. Afirma ele que com a crença no progresso

acreditava-se no “...utopismo tecnocientífico, dada a enorme esperança depositada, mesmo

pelo cidadão comum, num ilimitado progresso, impulsionado pelas descobertas e criações no

âmbito científico e tecnológico.”(DUARTE JUNIOR, 1997, p. 26). Colocando-se toda

esperança no progresso, acreditava-se que a humanidade iria viver sua plena felicidade, pois o

homem com o uso de sua razão não viveria mais na ignorância com idéias de aldeias ou

medievais, pelo contrário viveria o tempo das luzes.

“Acredita-se, que, o progresso técnico conduzirá a humanidade para um futuro em

que os homens não precisarão mais despender sua energia e saúde na execução de

atividades brutas e pesadas, a serem realizadas por máquinas constantemente

aperfeiçoadas, as quais um dia virão a libertá-los também das pequenas, porém

maçantes, tarefas práticas do di-a-dia.”(DUARTE JUNIOR, 1997, p. 27).

Com o sonho de crescer dia após dia, a mentalidade moderna desde o século XIX não

parou de avançar, não parou de crescer. “A ciência avança em suas descobertas. As máquinas

seduzem, encurtam distâncias, promovem o aumento da velocidade.”(DUARTE JUNIOR,

1997, p. 27). Mas a mentalidade moderna, acreditando estar chegando à plena maturidade, à

idade da razão com todo seu potencial de progresso, começou a desmoronar no século XX

com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914).

“O imenso acervo técnico e científico que se veio acumulando, num instante passa a

ser usado não para emancipação do ser humano, e sim para sua destruição. Começa

a instalar um mal-estar e a descrença na tão propalada racionalidade progressiva da

humanidade, que assiste ao surgimento de novas máquinas, agora, porém,

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mortíferas, ou adaptadas para o extermínio, como o avião, que desde há pouco vinha

deslumbrando multidões.”(DUARTE JUNIOR, 1997, p. 28).

Esperava-se a maturidade humana, porém surgem irracionalidades e começa o uso

indevido do progresso e da tecnologia. O “...irracionalismo parece tomar conta de nações,

líderes e populações inteiras.”(DUARTE JUNIOR, 1997, p. 28).

As guerras mundiais, com seus grandes arsenais bélicos e tecnológicos, utilizam o

desenvolvimento para dominar o outro pela força, fazendo dele um objeto, um meio para o

crescimento, para expansão. Por isso podemos dizer que, após as grandes guerras, tomou-se

consciência do fracasso dos grandes ideais humanitários calcados no progresso, derrubando a

previsão do positivismo que esperava do conhecimento científico a “maturidade humana”.

No livro As razões do iluminismo, Sergio Paulo Rouanet (1987) afirma:

“...depois da experiência de duas guerras mundiais, depois de Auschwitz, depois de

Hiroshima, vivendo num mundo ameaçado pela aniquilação atômica, pela

ressurreição dos velhos fanatismos políticos e religiosos e pela degradação dos

ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da modernidade...”(p. 268).

A busca do crescimento na modernidade, principalmente do XIX para o século XX,

foi em uma velocidade tão grande que o progresso e a maturidade humana esperada pela

mentalidade moderna, fizeram com que com nações inteiras discriminassem outros povos e

ainda cometessem atrocidades a outras raças e grupos de pessoas, como ocorreu nos campos

de concentração nazistas e ainda no Japão com as bombas atômicas lançadas pelos Estados

Unidos sobre Hiroshima e Nagasaki, que mataram milhões de pessoas. Esses exemplos

demonstram que a maturidade humana não chegou como se esperava. Muitas nações

acreditavam-se “raça superior” e desejavam crescer, desenvolver-se, mas através da desgraça

de outras pessoas, de outros povos. No período das luzes esperava-se afastar os

“obscurantismos” do período medieval, esperava-se dar ao homem a plena felicidade através

do triunfo da razão, no entanto, após as guerras mundiais, o que restou foram nações

destruídas, fome, miséria, desconfiança da razão, do progresso e medo da fabricação de novas

bombas atômicas.

Afirma Duarte Junior:

“...dia a dia aumenta a decepção, por verificarmos à nossa volta praticamente o

inverso daquilo em que chegamos a acreditar, num processo de crescente

infelicidade e incerteza quanto ao amanhã que vem sendo forjado. E nem é preciso

listar aqui todos os medos e ameaças que nos circundam: acidentes nucleares, guerra

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atômica, venenos empestando o ambiente, efeito estufa, hordas de famintos e

desabrigados, fanatismos, assaltos, seqüestros, violência gratuita, novas doenças

letais e incuráveis, etc (DUARTE JUNIOR, 1997, p. 8).

Vê-se assim que o progresso, o avanço da ciência e da tecnologia trouxeram várias

possibilidades, mas, ao mesmo tempo, o homem mergulhado nesse universo acabou se

perdendo em meio às transformações.

Aqui mais uma vez afirmamos que não estamos querendo fazer apologia de épocas

anteriores, porém não podemos deixar de perceber e pontuar que, mesmo a modernidade

avançando, mesmo havendo enormes mudanças para o bem do homem, parece que não

conseguimos dar conta desse turbilhão de constantes mudanças. Vemos assim que existem

autores que criticam a modernidade, como Lima Vaz, que afirma que modernidade perdeu o

sentido porque deixou de contemplar o ser das coisas, “o ser na sua verdade”, dando primazia

à representação, à aparência do ser, tendo como conseqüência a posição do homem como o

organizador de tudo a partir do seu próprio ego. A crítica aparece também em Duarte Junior,

que coloca a modernidade como uma decepção, como uma mentalidade que fracassou por

acreditar desproporcionadamente na razão e no progresso da ciência, chegando a causar até

mesmo destruição; esperava-se a emancipação, porém veio a destruição. E Rouanet afirma

mesmo que, após as guerras mundiais, o homem contemporâneo está cansado da

modernidade.

Os autores citados, cada qual a seu modo, fazem críticas à modernidade. Lima Vaz

reivindica o retorno ao ser à semelhança do ser platônico, dizendo que fora do ser na sua

verdade só existe aparência; Duarte Junior é cético em relação ao progresso, afirmando que

esse foi uma decepção; e Rouanet afirma que estamos entrando em um outro período

histórico.

Sem desconsiderar as críticas levantadas, podemos perceber que algo vem

acontecendo em nossos dias, em nossa modernidade. Vemos que as grandes guerras mundiais

foram catastróficas, verdadeiras atrocidades, porém afirmar que modernidade vive uma crise

porque deixou de considerar o ser das coisas, o ser na sua verdade, como afirma Lima Vaz, ou

criticar o progresso por não ter dado ao homem sua plena felicidade, seria desconsiderar todos

os grandes avanços que vemos em nossos dias. Não podemos deixar de constatar os grandes

benefícios existentes hoje em relação aos séculos anteriores, como o avanço da tecnologia

evidente nos computadores, nos aparelhos de áudio, na TV, na telefonia. São avanços que nos

trouxeram vários benefícios, pois se hoje muitas pessoas conhecem outras culturas, seu modo

de vida, sua maneira de pensar, é graças ao avanço tecnológico, que nos permite atingir o

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outro lado do mundo sem mesmo estar lá, através dos sistemas áudio-visuais. Não podemos

esquecer que, com o avanço da ciência, foram criados medicamentos, tratamentos para muitas

doenças que antes não tinham cura. É exatamente por todos os avanços que vemos em nossos

dias, pela ampla liberdade de escolha que temos hoje, diante das várias formas de situações

que conhecemos e que se apresentam a nós, pelas mudanças científicas, tecnológicas,

mudanças urbanas, mudanças familiares e outras, que podemos dizer que vivemos em um

período marcado sobretudo por grandes mudanças. Porém, esse período não precisa

necessariamente ser chamado de crise nem o progresso deve ser uma decepção.

Como disse Berman, parafraseando Marx, vivemos em um período onde tudo que é

muito sólido se desmancha no ar. Podemos dizer que, em nossos dias, tudo é muito instável,

tudo muda, a todo instante conhecemos novas coisas, redescobrimos coisas antigas,

reavaliamos nossas posições. “Ser moderno, (...) é experimentar a existência pessoal e social

como um torvelinho, ver o mundo e a si próprio em perpétua desintegração e renovação,

agitação e angústia, ambigüidade e contradição: é ser parte de um universo em que tudo o que

é sólido desmancha no ar”(BERMAN, 1986, p. 328). Fazemos parte desse contexto que muda

a todo instante, desse redemoinho de construção e desconstrução, de abertura a novas formas

de realidade e abandono de formas antigas. O que Lima Vaz chama de crise da modernidade

preferimos assumir como transformações constantes, a que precisamos aprender a nos adaptar

todos os dias ou, pelo menos, situar-nos em meio ao torvelinho. É dentro desse contexto,

dentro desse torvelinho que levantamos o questionamento que norteia nosso trabalho: É

possível encontrar um sentido nossa vida em meio a essas constantes mudanças? O que é

sentido da vida? Como se manifesta o sentido da vida?

É em meio a essas perguntas que se encontra o filósofo e psiquiatra Viktor Frankl que,

a partir da própria vida, de investigações intelectuais e do atendimento aos seus pacientes,

desenvolve uma reflexão sobre o sentido da vida. Frankl afirma que o sentido da vida

constitui “... a mais humana de todas as necessidades humanas...” (FRANKL, 1992, p. 78).

Qual é esse sentido afirmado por Frankl? Qual o significado da palavra “sentido” na

expressão “sentido da vida” no pensamento do autor? Antes de respondermos a tais questões,

apresentaremos um pouco a visão do autor sobre os nossos dias, pois, assim como os outros

autores citados, Viktor Frankl também faz suas críticas aos nossos dias afirmando que

vivemos em meio ao vazio existencial. Cabe aqui uma observação: é a partir do pós-guerra

que situamos as críticas do autor, pois foi após sua libertação do campo de concentração que

suas obras e teorias desenvolveram e, juntamente com elas, as críticas aos nossos dias, críticas

que ele sintetiza com a expressão vazio existencial.

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Para Frankl, a frustração existencial ou vazio existencial é “...um profundo sentimento

de que a vida não tem sentido.” (XAUSA, 1986, p. 149). Vivemos um período onde as

pessoas estão desorientadas, sem sentido para suas vidas. Afirma o autor: “...mais e mais

pacientes nos procuram por sofrerem um vazio interior que tenho descrito sob a designação de

vazio existencial. Padecem eles com a sensação de abissal ausência de sentido em sua

existência.”(FRANKL, 1991, p. 14). Diz Frankl: “Vivemos numa época em que predomina

um sentimento difuso de que a vida carece de sentido.”(FRANKL, 1978, p. 20).

Elisabeth Lukas (1992), colaboradora e discípula de Frankl, ao escrever sobre os

nossos dias em seu livro Assistência Logoterapêutica, afirma que vivemos em uma “geração

sem futuro” onde a “...juventude se revoltou contra o tradicional, buscando impetuosamente

novas direções; porém, nunca esteve a juventude tão impregnada de pressentimentos sombrios

como no presente...”(p. 15). Reflete a autora, seguindo os passos de Frankl, que muitas

pessoas de nossa geração, não sabendo como lidar com seu dia-a-dia, com as situações que se

apresentam a elas, sem rumo a seguir, vivem sem orientação, sem motivação, vivem sem

sentido. Afirma ela: “...o que realmente caracteriza a „geração sem futuro‟ é uma sensação de

falta de sentido no seu grau máximo, uma perda continuada de sentido, ocorrendo aqui e

agora, e solapando as forças para encarar o dia de amanhã.”(LUKAS, 1992, p. 15).

No livro A psicologia do sentido da vida, Xausa, abordando a questão da manifestação

do vazio existencial, afirma:

“alguns homens levados pelo horror vacui (...), refugiam-se num estado de

embriaguez qualquer, seja sob a forma de divertimento ou de trabalho, causador de

um sentimento de tedium vitae. É o vazio espiritual que conduz à neurose dominical

em permanência, e podemos encontrá-la atrás de uma laboriosidade profissional

excessiva, no refúgio de atividade desportiva, na fuga neurótica para o mundo dos

romances ou televisão, nos fenômenos psicológicos de massa, no decaimento

psicofísico dos aposentados, na necessidade de nunca se deixar descansar ou na

febre de novas ações e novas experiências, especialmente na agressividade, na

adicção e no alcoolismo...”(XAUSA, 1986, p. 149).

Frankl observa que muitas pessoas, em nossos dias, vivem em um profundo vazio

existencial, desorientadas, sem sentido em suas vidas, vivem mergulhadas no tédio, não

conseguindo captar o sentido de uma determinada situação. “O homem de hoje pode adoecer

(...) em razão do sentimento de carência de sentido, em razão da frustração de sua necessidade

de sentido diante da existência...”(FRANKL, 1995, p. 118).

Diz Frankl:

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“...devesse denunciar as causas determinantes do vazio existencial, diria que elas são

redutíveis a uma dupla realidade: a perda da capacidade instintiva e a perda da

tradição. Contrariamente ao que sucede com relação ao animal, nenhum instinto

revela ao homem o que precisa (muss) fazer. E ao homem de hoje nenhuma

tradição diz o que deve (soll) fazer. E não raro parece desconhecer o que

efetivamente quer (will)...”(FRANKL, 1991, p. 15)

Segundo Frankl os sistemas totalmente liberais e os sistemas totalitários tendem a

causar no homem o vazio existencial. O homem, tendo rompido com as tradições que

orientavam sua vida, parece não saber o que tem que fazer, ou seja, o homem de antigamente

pautava sua vida pelos valores oriundos das comunidades de aldeias e das tradições religiosas,

porém, em nossos dias, a modernidade, tendo abolido a tradição, não sabe mais o que dizer ao

homem, e o homem não sabe mais o que tem que fazer. Diz Frankl, “...atribuímos, em boa

parte, o vazio existencial à perda da tradição.”(FRANKL, 1978, p. 19). A conseqüência de

não saber mais o que fazer, de não saber que rumo seguir é o conformismo e o totalitarismo.

Afirma Frankl:

“Em virtude disso nele se manifesta com redobrado vigor a tendência de querer

apenas aquilo que os outros fazem ou de fazer apenas aquilo que os outros querem.

No primeiro caso nos deparamos com o conformismo. No segundo com a

totalitarismo. O primeiro predomina no hemisfério ocidental: o segundo no

hemisfério oriental.”(FRANKL, 1991, p. 15).

Em ambos os casos o ser humano acaba caindo na impessoalidade. Pois no primeiro

caso, predominante do hemisfério ocidental, o homem buscando sua realização através do

consumismo desenfreado, buscando satisfazer suas próprias necessidades, passou a ser

dominado pelo mercado de consumo, pelo mercado da compra que a cada momento cria

novos produtos para serem consumidos, cria novas necessidades para o homem. Daí vem os

conformistas desejam que apenas os que os outros fazem. No segundo caso, que predomina

do hemisfério oriental, o homem passa a realizar suas ações a partir daquilo que os outros

(ditadores) desejam que faça, perdendo totalmente a liberdade.

Nos dois casos o homem tende a cair no vazio existencial, pois já não se sabe como

viver a vida e muito menos como encontrar motivações para existência. O homem, diferente

dos animais, não possui instintos que lhe ditem o que tem que fazer, ao contrário, ele precisa a

cada momento fazer escolhas, precisa aprender a lidar com as situações que se apresentam

para que possa encontrar sentido em sua vida e escapar do vazio existencial. Assim, numa

“...época em que os Dez Mandamentos parecem ter perdido o valor para muita gente, o

homem deve estar apto a aprender os Dez Mil Mandamentos que estão inscritos em código

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nas dez mil situações que ele enfrenta...”(FRANKL, 1978, p. 20). Em outras palavras, o

homem de hoje deve aprender a ficar atento às situações que se apresentam a ele, aprender a

cumprir tarefas que tenham significado para sua vida, tarefas que tenham sentido naquele

momento de sua vida.

Para Frankl, não se esgotam no conformismo e no totalitarismo as conseqüências do

vazio existencial. Temos ainda, no plano das idéias, os reducionismos como o fisiologismo, o

psicologismo e o sociologismo, que acabam reduzindo o homem a apenas uma dimensão,

deixando de lado a pluralidade do ser humano. O reducionismo é “...um processo pseudo-

científico mediante o qual os fenômenos especificamente humanos são reduzidos a fenômenos

sub-humanos ou destes se deduzem...”(FRANKL, 2003, p. 37). Em outras palavras, é capturar

uma parte específica do ser humano e aplicá-la a toda a sua pessoa. Por exemplo, especializo-

me na parte fisiológica do ser humano e, após a especialização, passo a explicar o ser humano

sempre a partir desse ponto de vista, como se pudesse explicar todo o homem, e

conseqüentemente o homem será sempre representado no plano biológico. O erro do

reducionismo está na afirmação “nada mais é....” Exemplo de Frankl:

“...Em The Modes and Morals of Psychotherapy nos é proposta esta definição (...):

O homem nada mais é do que um mecanismo bioquímico, governado por um

sistema de combustão, que aciona e dinamiza computadores. Ora, como neurologista

daria meu aval à legitimidade de se considerar o computador como um modelo, por

mim assim dizer, do sistema nervoso central. O erro se localiza nesse “nothing but”.

Consiste na assertiva de que o homem nada mais é do que um computador. De fato o

homem é um computador. Porém, ao mesmo tempo, é infinitamente mais do que um

computador.”(FRANKL, 1991, p. 17).

Outro exemplo muito criticado por Frankl é o de Freud e Adler. Ele nos afirma que:

“Freud ensinou a todos nós a ver no homem um ser basicamente interessado na

busca do prazer. Em última instância, foi ele quem introduziu o „principio de

prazer‟, (...) e, como ele mesmo afirmou repetidas vezes, o princípio de realidade

não é outra coisa que uma extensão do princípio do prazer, e sempre a serviço do

princípio do prazer, cujo objetivo continua sendo: prazer „e nada mais que prazer‟.”

(FRANKL, 1995, p. 264).

A crítica do autor ao pensamento freudiano é a redução do homem à mera busca de

prazer, o ser humano visto em seu princípio e suas ações como ser dirigido pelo prazer. Já

Adler vê no homem a vontade de poder, ou seja, a busca do homem não é pelo prazer, mas

pelo poder. Ele “... vê o homem sobretudo como um ser que luta para superar uma certa

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condição inferior, qual seja, seu sentimento de inferioridade, do qual ele tenta se desvencilhar

encetando a busca competitiva de superioridade...”(cf. FRANKL, 1995, p. 264).

Para Frankl o homem não é movido ou impulsionado pelo prazer nem pelo poder, mas

“...está sempre se movendo em busca de um sentido de seu viver; em outras palavras (...)

chamo a „vontade de sentido‟ como um „interesse primário do homem‟...” (FRANKL, 1989,

p. 23).

A vontade de sentido pode ser frustrada quando se reduz o homem a um único aspecto,

universalizando uma única dimensão humana, esquecendo-se de que o ser humano vai além

do biológico, psicológico e sociológico. “... O homem não é apenas um ser que reage e ab-

reage mas também que auto-transcende ...”(FRANKL, 1990, p. 29). A auto-transcendência

significa que o ser humano pode ir além, pode ultrapassar seus limites. “Ser homem

necessariamente implica uma ultrapassagem. Transcender a si próprio é a essência mesma do

existir humano.”(FRANKL, 1991, p. 1991). Para Frankl, o que constitui o ser humano, o que

dá possibilidade de o ser humano encontrar um sentido em cada situação, ultrapassando seus

próprios limites é que este é “... constituído e ordenado para algo que não é simplesmente ele

próprio, direciona-se para um sentido a ser realizado, ou para outro ser humano, que

encontra.”(FRANKL, 1991, p. 11). O homem se encontra quando busca um sentido, à medida

que se lança para “fora”, para o mundo em que vive, não se deixando delimitar pelos

determinismos, mas sendo aberto ao mundo. Para Frankl, é nessa abertura ao outro e ao

mundo que o ser humano pode encontrar possibilidades de sentido para vida. Para sabermos

como se dá essa abertura do ser humano, vamos definir o sentido da vida que Frankl

menciona, porém antes faremos algumas ressalvas em relação ao vazio existencial afirmado

pelo o autor.

Como refletimos no início deste trabalho, existem vários autores, entre eles Viktor

Frankl, que criticam os nossos dias e mais especificamente a modernidade, afirmando que a

modernidade vive em uma crise de sentido. Observa Frankl que as pessoas em nossos dias

encontram-se desorientadas, sem rumo a seguir, padecem de um sentimento profundo de que

a vida não tem sentido, de que a vida é vazia.

Refletimos sobre a questão do sentido sobretudo a partir da proposta de Frankl e

concordamos com seu ponto de vista em muitos aspectos, principalmente quando afirma que

uma pessoa pode encontrar um sentido para sua vida e que temos que olhar a pessoa sob todos

os seus aspectos. Porém, ao desenvolvermos a questão sobre o vazio existencial, queremos

dizer que, embora hoje muitas pessoas não valorizem os “dez mandamentos” que orientavam

a vida de seus antepassados, temos hoje em dia muitas situações e circunstâncias que podem

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ser exploradas e descobertas por qualquer pessoa na busca de um sentido para sua vida.

Temos conhecimento de uma diversidade de situações, culturas e tradições a que antes não

tínhamos acesso, temos maiores informações e conhecimento sobre o mundo e sobre as coisas

do mundo que nossos pais e todas as gerações passadas tiveram.

Graças ao novo, próprio dos nossos tempos, cada pessoa pode encontrar um sentido

para vida que realmente tenha sido despertado de um livre relacionamento seu com o mundo

em que vive. As pessoas em nossos dias, sem tantas pressões familiares, religiosas e culturais,

são mais livres para dar sinceras respostas para situações que se apresentam a elas, podendo

encontrar aí verdadeiramente um sentido para vida. Nos dias de hoje temos várias

informações, reflexões e situações que ampliam nosso horizonte e nossa maneira de ver o

mundo, proporcionando-nos maiores possibilidades de encontrar um sentido para vida,

maiores possibilidades de encontrar o que motiva nossas vidas. Por isso, podemos dizer que,

muito mais que supervalorizar e tentar diagnosticar algo macro-cósmico tentando achar um

“vilão” para nossas constantes mudanças e para nossas correrias, deveríamos ao contrário

observar as milhares de situações que a vida proporciona para encontrar algo que realmente

motive nossas vidas. Não resta dúvida de que passamos por grandes mudanças, mas elas não

precisam necessariamente ser chamadas de crise ou de um vazio existencial. Embora existam

pessoas que padeçam de falta de sentido para sua vida e existam pessoas desorientadas,

universalizar o particular seria um exagero. Em meio a tantas mudanças, transformações,

acelerações, informações e conhecimentos, corremos sim o risco de desestruturar tudo aquilo

que aprendemos e somos, mas ao mesmo tempo temos maiores possibilidades de descobrir

aquilo que verdadeiramente somos e que amamos fazer, algo que realmente oriente nossas

vidas, e não só o que dizem a nosso respeito ou aquilo que aprendemos como verdade.

As perguntas que deveríamos fazer e que estamos tentando responder neste trabalho é:

Como podemos encontrar um sentido para nossas vidas em meio a essas constantes

mudanças? É possível encontrar um sentido que dê rumo para nossas vidas? Colocamos essas

perguntas que deveríamos fazer, não como uma norma moral, que deve ser obrigatoriamente

seguida por todos, mas como uma possibilidade de encontrar algo que motive as nossas vidas

sem precisarmos “demonizar” os nossos dias, ou as várias mudanças que vivemos.

Embora Frankl faça severas críticas aos dias em que vivemos, críticas essas que

consideramos de uma certa forma exageradas, ele não deixa de ser otimista, pois afirma que

uma pessoa sob qualquer circunstância pode encontrar um sentido para sua vida.

Viktor Frankl, que vivenciou o limite da existência humana no campo de concentração,

afirma que o homem é capaz de autotranscender ou superar a si próprio em função de um

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sentido. O homem é “...incondicionado na medida em que „não se deixa absorver‟ na sua

condicionalidade.”(FRANKL, 1978, p. 69). Assim o homem, mesmo em condições

subumanas, permanece homem em si mesmo e ainda consegue transcender seus próprios

sofrimentos; e mesmo tendo sofrido as torturas do nazismo em Auschwitz, a “... existência

humana sempre vai além de si mesmo, já está sempre indicando um sentido ...”(FRANKL,

1992, p. 61). A constatação do filósofo e psiquiatra é atestada pela experiência pessoal e

também pelo desenvolvimento de sua teoria ao longo de sua vida, é uma teoria que nasce da

sua experiência, da existência humana, do cotidiano da vida. Porém continuam as perguntas:

Que sentido é este ao qual o autor se refere? Como encontrá-lo em nossos dias?

Para compreender a palavra “sentido” em Viktor Frankl, apresentamos a seguinte

afirmação do mesmo: a “...logoterapia acaba por estabelecer um confronto entre a existência e

o logos. Em teoria, não faz mais do que tomar o logos por motivação da

existência.”(FRANKL, 2003, p. 97). Para Frankl “o termo logos é uma palavra grega e

significa sentido!”(FRANKL, 2008, p. 124). Logo, o sentido é o que motiva a existência

humana, é o que dá razão de ser à existência. Diz Frankl, “...o homem realmente quer, em

derradeira instância, não a felicidade em si mesma, mas antes um motivo para ser

feliz.”(FRANKL, 1991, p. 11). Assim, o sentido nas obras de Frankl identifica-se com

encontrar motivos na existência, na vida.

Elisabeth Lukas, colaboradora de Viktor Frankl, em seu livro Assistência logoterapêutica

(1992), explicando as motivações mencionadas pelo autor afirma: “...Por esse „motivo para

ser feliz‟, Frankl entende qualquer conteúdo de sentido „autotranscendente‟.”(p. 54). A

palavra autotranscendência para Frankl é capacidade do homem de transcender a si mesmo, é

a capacidade de ir para além de si mesmo. (cf. FRANKL, 1991, p. 11). Destarte, o sentido

para vida mencionado por Frankl é o que dá razão de ser para o homem, é o que motiva a vida

de uma pessoa. Segundo o autor, para uma pessoa encontrar motivações para sua vida, é

necessário que esta transcenda a si próprio em favor de algo ou alguém. “Significa estar

direcionado para algo que não é o próprio sujeito, ou, dito com mais precisão, para alguma

coisa ou alguém fora do sujeito, pelo menos de forma prioritária.”(FRANKL, 1990, p. 15).

Daí podemos entender que temos a possibilidade de encontrar motivações para vida conforme

nos relacionamos com as várias situações que se apresentam a nós no dia-a-dia, pois podemos

encontrar um sentido para nossas vidas quando saímos de nós mesmos, quando nos

relacionamos com o mundo que nos circunda.

Dessa forma é possível compreender as palavras de Frankl quando diz que é a própria

vida que faz perguntas ao homem. (cf. FRANKL, 2008, p. 133). O homem sendo no mundo,

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com a vida, dá respostas, „suas‟ respostas. O homem sendo no mundo é questionado pelas

situações e também questiona as situações e desse acontecimento surge a necessidade da

busca de motivações, de significados e de metas. Por isso podemos vislumbrar, em relação ao

sentido proposto por Frankl, não uma resposta precisa como desejaríamos, como se fosse uma

„coisa‟, ou „algo‟ mas, pelo contrário, o sentido está sempre „aí‟, interpelando o homem com

sua história para despertar nele o que é mais original e único em sua existência, e o homem

por sua vez também interpela sua própria história e situações.

Aqui surge uma nova questão a respeito do sentido da vida: O sentido é despertado,

construído ou é encontrado?

Frankl afirma:

“...ser humano é antes de mais nada um ser essencialmente histórico, está inserto

num espaço histórico concreto, a cujo sistema de coordenadas não logra arrancar-se.

E este sistema de relações está determinado, em cada caso, por um sentido, se não

inconfessado, talvez em geral inexprimível.”(FRANKL, 2003, p. 57).

Para Frankl o homem é um ser histórico, um ser que possui raízes, que nasce e se

desenvolve ligado a um espaço histórico, concreto e, devido a isso, suas ações são situadas

dentro desse espaço histórico que é determinado por um sentido. O espaço histórico, no qual

uma pessoa nasce, possui sua constituição, seu sentido, e é dentro das coordenadas desse

espaço que a pessoa deve encontrar o sentido de sua vida. É procurando o sentido dentro

desse espaço que a pessoa vai despertando para “aquilo” que mais motiva sua vida. É nesse

sentido que o autor afirma que cada pessoa tem sua missão específica na vida, pois somente a

pessoa, que é única e que nasceu em espaço determinado, poderá despertar para o que é mais

original e único em sua existência. Diz Frankl, cada pessoa “...tem sua própria vocação ou

missão específica na vida; cada um precisa executar uma tarefa concreta, que está a exigir

realização...”(FRANKL, 2008, p. 133). Cabe a cada pessoa relacionar-se com seu espaço

concreto, procurando em cada situação o sentido para sua vida. Diz Frankl: “o que chamo de

procura de sentido equivale à apreensão de determinadas características do real (...) caráter

objetivo das exigências inerentes a cada situação que se apresentam na vida...”(FRANKL,

1978, p. 19). Assim, para que uma pessoa possa encontrar sentido em sua vida, é necessário

relacionar-se com sua história, com sua vida, com seu espaço concreto, é nesse

relacionamento que o homem tem a possibilidade de despertar para aquilo que motiva sua

vida, para aquilo que dá razão de ser à sua existência.

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Frankl, seguindo os passos de Max Scheler, afirma que o homem é um ser aberto ao

mundo (cf. FRANKL, 2003, p. 45). A abertura do homem para o mundo é um conceito

importante para Frankl, que o retira da antropologia de Scheler, e que nos ajuda a

compreender melhor a questão do sentido e seu conceito de pessoa. Segundo Max Scheler

(2003), a essência do homem, isto é, sua posição peculiar, o que o torna pessoa, está muito

além das funções psíquicas e aptidões, como, por exemplo, a inteligência. A característica

decisiva da essência do homem é o espírito. (cf. SCHELER, 2003, p. 35). Pessoa é “...o centro

ativo no qual o espírito aparece no interior das esferas finitas do ser...”(SCHELER, 2003, p.

36). Entre as funções biológicas e psíquicas, que o autor chama de esferas finitas, temos no

interior o espírito; para Scheler o espiritual do homem não está vinculado a pulsões e ao meio

ambiente. “Ao contrário, ele está muito mais „livre do meio ambiente‟, e, como gostaríamos

de denominá-lo, „aberto para o mundo‟...”(SCHELER, 2003, p. 36). Segundo Scheler é graças

à força do espírito do homem, que este pode abrir-se para o mundo, o homem pode ir além de

si mesmo e transformar seu próprio mundo. Podemos dizer que a abertura do homem ao

mundo é a sua característica peculiar que lhe dá a possibilidade de relacionar-se com as

diversas circunstâncias e com seus diversos espaços, a possibilidade de ir além de si mesmo,

descobrindo o novo de cada momento. É neste sentido que o homem a cada momento pode

despertar para o sentido da vida. E esse sentido encontrado a cada momento não precisa ser

um sentido para uma vida toda, mas pode ser único daquele instante. Diz o autor que o que

“....importa, por conseguinte, não é o sentido da vida de um modo geral, mas antes o sentido

específico da vida de uma pessoa em dado momento...”(FRANKL, 2008, p. 133) e afirma

mesmo que não se deveria procurar um sentido abstrato da vida. O autor observa que o

homem deve descobrir o sentido conforme as situações se apresentarem. Diz, “...cada situação

na vida constitui um desafio para a pessoa e lhe apresenta um problema para resolver (...),

cada pessoa é questionada pela vida; e ela somente pode responder à vida respondendo por

sua própria vida...”(FRANKL, 2008, p. 133).

O homem, que vive no mundo, é questionado pelas situações e também questiona as

situações e dessa relação, segundo Frankl, nasce o amor pela vida, a paixão pela existência. O

homem, como ser aberto, está sempre aí para se relacionar com os diversos momentos,

encontrando em cada hora e em cada situação um desafio, uma questão a que deve responder.

“Realmente, qualquer situação faz uma exigência (...) a nós, coloca-nos uma pergunta, à qual

damos uma resposta através de algo que fazemos, como se fosse um desafio...”(FRANKL,

1992, p. 80). O homem é um ser no mundo, é parte desse mundo e, conforme se “relaciona”

ou vai sendo no mundo, encontra diante si, no cotidiano da vida, desafios e questões a serem

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respondidas, é neste relacionamento do homem com o mundo e do mundo com o homem que

é possível encontrar o sentido da vida. Portanto, o sentido da vida pode ser encontrado em

cada situação da vida e a cada instante em que estamos nos relacionando com as situações da

vida. Em outras palavras, a cada momento temos a possibilidade de encontrar algo que possa

dar sentido a nossas vidas, pois estamos no mundo e fazemos parte dele e por causa disso

sempre teremos que responder a alguma situação. Assim, como afirma o autor, o sentido

“...não significa algo abstrato; ao contrário, é um sentido totalmente concreto, o sentido

concreto de uma situação com a qual uma pessoa também concreta se vê

confrontada...”(FRANKL, 1992, p. 79). Cada pessoa que é única, concreta, encontra em cada

situação algo único que não se repete, pois a situação também é única e concreta. Diz Frankl:

“...a possibilidade de sentido é respectivamente única e original. Da sua

singularidade segue-se, porém, que a possibilidade de satisfação do sentido é

transitória, que ela é fugidia. Ela tem „kairós‟ – caráter! Quando nós não realizamos

uma tal possibilidade, então ela nos escapa para sempre. Se porém, nós a realizamos

uma vez, então nós a realizamos de uma vez por todas.”( FRANKL, 1990, p. 46).

Cada situação se apresenta de forma única, irrepetível de forma que, se a pessoa

„aproveita‟ o que se apresenta, a oportunidade daquele momento único, ela estará realizando

algo único e de forma original, devido à sua marca de irrepetibilidade. Em outras palavras,

cada pessoa tem a possibilidade de encontrar a cada momento, um sentido, que é próprio

àquele momento, mas, ao mesmo tempo, quando procura realizar o sentido único daquele

momento, estará realizando “o” sentido da sua vida, estará experimentando a unicidade

daquele instante, estará experimentando o sentido que encontrou naquele momento ao se

relacionar com “aquela” situação concreta.

Afirma Frankl que, quando encontramos aquele momento único, “...nós salvamos no

passado a realidade da qual fizemos uma possibilidade. Pois ela é guardada no passado. Lá ela

é preservada contra a transitoriedade.”(FRANKL, 1990, p. 46). Assim, se aproveitamos

aquele momento único para encontrar o sentido e o conseguimos, então a experiência daquele

momento é selada em nossa própria vida de modo que o sentido encontrado naquele instante

não pode ser perdido, é como um eco que ressoa ao longo da vida. Daí podemos dizer que, ao

encontrarmos um sentido, nós o encontramos de uma vez por todas, pois o sentido vivido

naquele momento é selado na pessoa que o experimentou, fazendo com que aquele sentido

encontrado seja não “um” sentido qualquer, mas “o” sentido, uma experiência única e

irrepetível.

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A cada instante temos a oportunidade de encontrar sentido para nossas vidas, pois “...cada

hora proporciona um novo sentido, e um sentido especial espera cada pessoa.”(FRANKL,

1990, p. 46). Porém, como afirma Frankl, cada pessoa deve fazer sua própria caminhada, deve

aprender a buscar o sentido para sua vida, pois o sentido é algo que não pode ser dado por

outra pessoa. (cf. FRANKL, 1995, p.267). Cada qual deve aprender a “aproveitar” o momento

único de cada situação para encontrar o sentido. “Pois não há pessoa para qual a vida não

prepararia uma tarefa, e não há situação na qual a vida pararia de nos oferecer uma

possibilidade de sentido.”(FRANKL, 1990, p. 46). Embora não possamos dizer qual o sentido

para a outra pessoa, podemos mostrar que em cada momento e em cada situação pode-se

encontrar um sentido.

Podemos perguntar: Sendo a pessoa que encontra o sentido, em cada situação, onde está o

sentido, no sujeito ou na situação? O sentido é objetivo ou subjetivo? Para responder a tais

questões, diríamos que é na vida que a pessoa vai descobrindo as diversas situações a serem

realizadas, e na relação da pessoa com o mundo que se descobrem as motivações da

existência. Frankl afirma que:

“... objetividade não exclui a subjetividade. Explico-me: o sentido é subjetivo na

medida em que não há um sentido para todos, mas sim um sentido para cada um dos

outros; entretanto, no caso concreto de que se trata, o sentido não pode ser

puramente subjetivo: não pode ser mera expressão, o puro reflexo do meu ser, nos

termos em que o subjetivismo e o relativismo o entendem e no-lo pretendem fazer

crer. Assim quando dizemos que o sentido é não só subjetivo, mas também relativo,

apenas queremos salientar que está numa determinada relação com a pessoa, - e com

a situação em que precisamente essa pessoa se realiza e se insere. Sob este prisma, é

claro que o sentido de uma situação é realmente relativo; é-o, assim, em relação a

uma situação tomada, no caso concreto, como irrepetível e única. A pessoa tem que

atingir e captar o sentido, tem que apreendê-lo e efetivá-lo isto é, realizá-lo. O

sentido, portanto, em virtude da sua relação com a situação, é também por seu termo

irrepetível e único...” (FRANKL, 2003, p. 76).

O sentido é subjetivo à medida em que é a pessoa que deve encontrar, mas isso não

significa „dar‟ um sentido qualquer arbitrariamente à vida, pois o sentido se encontra também

relacionado com as diversas situações que a vida nos apresenta. A pessoa inserida em uma

situação concreta, é chamada a responder a cada circunstância, tentando responder de maneira

significativa a essa determinada situação. O importante é encontrar “o” sentido de cada

situação concreta, que é particular daquele momento, mesmo que as situações mudem

constantemente. O sentido é despertado na situação em que a pessoa se encontra, por isso a

pessoa deve captar o sentido de cada situação. O sentido não é, portanto, só subjetivo, mas é

também objetivo, uma vez que é definido a partir das diversas situações que se apresentam na

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vida. Portanto, o sentido se encontra na relação entre a pessoa e as diversas circunstâncias,

entre a pessoa e o mundo e o mundo e a pessoa. E como observa Lukas, “A realização do

„sentido do momento‟ constitui, assim, a fusão completa entre subjetividade e objetividade do

sentido...”(LUKAS, 1992, p. 28).

Desejamos ressaltar aqui que não existe a pessoa e o mundo, como a separação entre

sujeito e objeto, mas existe a pessoa no mundo, a pessoa constitui o mundo, faz parte do

mundo e o mundo constitui a pessoa, faz parte da pessoa. Logo, quando uma pessoa busca o

sentido para sua vida, é necessário, a partir de sua abertura, deixar que o mundo também lhe

indique o caminho, também lhe revele o sentido para vida. É por isso que o sentido “...deve

ser encontrado e não produzido. Aquilo que pode ser produzido (...) é sentido

subjetivo...”(FRANKL, 1991, p. 18). A pessoa vai sendo no mundo e o mundo vai sendo nela;

é uma relação. O sentido não pode ser definido, é isto ou aquilo, como despertado ou

construído, mas o sentido “é” algo existencial que envolve relacionamento e vivência com o

mundo; é “relacionamento” que envolve o movimento do homem para o mundo e do mundo

para o homem. Observa Frankl sobre o relacionamento do homem com o mundo ou o homem

sendo no mundo:

“Só na medida em que nos entregamos, nos sacrificamos e nos abandonamos ao

mundo e aos conteúdos e exigências que a partir dele se introduzem em nossa vida,

só na medida em que nos importa o mundo de aí fora e os objetos, mas não nós

mesmos ou nossas próprias necessidades, só na medida que cumprimos com

obrigações e exigências e realizamos sentido e valores, nessa medida nos realizamos

a nós mesmos...”(FRANKL, 1995, p. 105).

É da relação do homem com o mundo que o homem desperta para o sentido e vai

descobrindo as diversas circunstâncias a serem realizadas. Dessa forma, o sentido não é só

subjetivo nem só objetivo, pois envolve relação do homem para com o mundo e do mundo

para com o homem. O homem vai sendo no mundo e mundo vai sendo no homem, é nesse

envolvimento que surgem as motivações para vida. O homem não está pronto no mundo, mas

vai construindo-se, descobrindo-se e encontrando-se no mundo.

“...O homem jamais „é‟, „sempre chegará a ser‟. Nunca alguém poderá dizer de si

mesmo „sou aquele que sou‟ „apenas aquele que chegarei a ser‟ ou „serei o que sou‟

- serei actu, segundo a realidade, o que sou potentia, segundo a possibilidade.

Somente Deus pode afirmar de si mesmo „sou o que sou‟. Pode fazê-lo porque é

actus purus, potência atuada, possibilidade realizada. Deus é congruência de ser e

ser-assim, de existentia e essentia. No homem, porém, há sempre uma discrepância

entre, de uma parte, o ser e , de outra, o poder e o dever. Esta discrepância, esta

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distância entre existência e essência são inerentes à vida humana como

tal.”(FRANKL, 1978, p. 232).

O sentido da existência humana está na tentativa de diminuir a distância entre o ser e

o dever-ser, entre a existência e a essência. Aqui cabe salientar que o poder e o dever-ser

mencionados pelo autor não significam normas comportamentais ou prescrições, mas

movimentos, “...o homem realize sua essência na existência...”(FRANKL, 1978, p.232). Para

o autor, cada pessoa com sua unicidade e particularidade vai encontrando-se e tornando-se ela

mesma à medida que sabe responder às situações concretas que se apresentam a ela. Diz

Frankl: „Chega a ser o que és‟ não significa somente „chega a ser o que podes e deves ser‟,

mas também „chega a ser o que só tu podes e deves ser‟.”(FRANKL, 1978, p. 232). É nesse

sentido que a pessoa realiza sua essência, pois a cada resposta que dá à “vida”, tem a

possibilidade de se descobrir, se perceber e se conhecer, mas, para que a pessoa possa se

descobrir, é necessário estar envolvida com a existência, com as situações concretas da vida.

O “...homem como ser inserido no mundo, tornando-se humano somente à medida em

que entra em contato com esse mundo.”(LUKAS, 1992, p. 28). Assim o homem realiza sua

essência, aquilo que ele é na existência. Por isso afirmamos mais uma vez que é no

relacionamento da pessoa com o mundo e do mundo com a pessoa que se encontra o sentido

para vida. Diz Frankl, “...nunca se trata de considerar „a‟ essência, mas a essência „do‟

homem, que cabe ao homem realizar e representar, a „sua‟ essência.”(FRANKL, 1978, p.

232). Trata-se aqui da pessoa em particular que busca se encontrar, que busca a realização de

sentido conforme as situações se apresentam a ela. Afirma o autor: “...o interesse

preponderante do homem não é por quaisquer condições internas dele próprio, sejam elas

prazer ou equilíbrio interior, mas ele é para o mundo lá fora, e neste mundo procura um

sentido que pudesse realizar...”(FRANKL, 1992, p. 78).

O homem envolvido com o mundo faz sempre o movimento de realizar sua essência

na existência, por isso vive na tensão entre o ser e o dever-ser, visando o sentido da vida (cf.

FRANKL, 2003, p. 98). Por isso poder e dever-ser estão ligados às possibilidades que o ser

humano tem para realizar em relação às diversas situações que se apresentam. Frankl afirma:

“A busca por sentido certamente pode causar tensão em vez de equilíbrio interior. Entretanto,

justamente essa tensão é um pré-requisito indispensável para saúde mental...” (FRANKL,

2008, p.129).

O ser humano traz consigo o desejo de encontrar motivações em sua vida e vive uma

tensão entre o “já” e o “ainda não”; o “já” por estar vivendo a cada momento tendo a

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possibilidade de despertar o sentido e o “ainda não” por não saber se “o momento” é este ou

aquele outro. O ser humano vive dentro dessa tensão, afirma o autor: “...O que o ser humano

realmente precisa não é um estado livre de tensões, mas antes a busca e a luta por um objetivo

que valha a pena, uma tarefa escolhida livremente...”(FRANKL, 2008, p. 130). Segundo o

autor, o ser humano não precisa de um estado “equilibrado” ou de um ambiente interno

estável ou ainda de uma homeostase para encontrar sentido em sua vida; o que realmente um

ser humano precisa é de um objetivo pelo qual valha a pena viver. Podemos dizer que estamos

na vida e somos envolvidos por ela e nesse envolvimento temos várias circunstâncias,

possibilidades, vidas, podendo encontrar nesses relacionamentos sentido para vida, ao

estabelecer para nós um objetivo, uma meta a alcançar, uma finalidade. Podemos encontrar,

em cada possibilidade da vida, aquilo que é único e original, algo que valha a pena.

Aqui surgem algumas perguntas: Como é possível encontrar o sentido de cada

situação? Se o sentido não pode ser dado, alguém pode nos ajudar a encontrar? Como

podemos pontuar o sentido da vida, vivendo com a discrepância entre o ser e o dever-ser?

Como encontrarmos as motivações para vida dentro do movimento da própria vida?

Na busca de respostas a essas questões seguimos a nossa pesquisa. Frankl diz que a

busca pelo sentido “...é a consciência que orienta a pessoa. Em síntese, a consciência é um

órgão de sentido. Ela poderia ser definida como a capacidade de procurar e descobrir o

sentido único e exclusivo oculto em cada situação.” (FRANKL, 1992, p. 68). Uma pessoa

envolvida em uma situação determinada vai descobrindo através de sua consciência, por

reflexão e relacionamento, o sentido de cada situação. Mas, e se a pessoa for condicionada por

fatores internos como, por exemplo, problemas psíquicos ou externos como, por exemplo,

fatores sociais, como pobreza, fome? Se o sentido não pode ser dado e é a própria pessoa que

deve descobrir, como a pessoa envolvida na vida, nas diversas situações concretas, diante dos

diversos conflitos que a própria vida nos coloca, conseguirá orientar sua consciência para a

descoberta do sentido?

Frankl é categórico em dizer os “...sentidos, do mesmo modo como são únicos, são

também mutáveis. Mas não faltam nunca. A vida não deixa jamais de ter sentido...”

(FRANKL, 1989, p.33). Cabe a cada pessoa, como já afirmamos ao longo deste trabalho,

procurar, a cada instante e em cada situação, estar aberta ao mundo, procurando ir além a cada

instante e a cada momento. Para Frankl, a consciência pode levar ao engano, como veremos

adiante, mas se a pessoa se lançar para “fora”, para o mundo em que vive, pode encontrar um

sentido para sua vida. O homem, sendo aberto ao mundo, terá várias possibilidades de

encontrar sentido.

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O homem não tem uma natureza determinada, pois é um ser aberto a várias

possibilidades. Afirma Figueiredo (1992) em seu artigo intitulado a Desnatureza humana:

“O homem, como pura negatividade e possibilidade de escolha, que nasce sem

natureza certa e habita um mundo infinitamente aberto ao seu engenho e arte, deve

se preocupar, desde o momento em que nasce, sobretudo com isso: sua liberdade e

sua destinação; deve depender mais de sua „consciência do que do juízo dos outros‟,

mas deve ser capaz de estabelecer contato com os outros para neste confronto

construir sua própria identidade.” (p. 24)

O ser humano não tem uma natureza definida que possa lhe dizer que é isto ou aquilo,

mas é um ser de relação que, fazendo uso de liberdade, pode responder às várias situações que

se apresentam a ele. Tanto para Frankl quanto para Figueiredo, o homem é um ser aberto e

habita em um mundo com infinitas possibilidades, podendo a partir dessas possibilidades

encontrar-se como homem. Diz Frankl que o ser humano é „unitas multiplex‟ (cf. FRANKL,

2003, p. 42). É unidade na multiplicidade e não pode ser reduzido a um único aspecto. O que

é esta unidade na multiplicidade do homem? Qual a visão antropológica de Frankl?

Apresentaremos a seguir a visão do homem de Viktor Frankl.

1.2 O conceito de pessoa.

Viktor Frankl, que vivenciou os limites da existência humana no campo de

concentração, que sofreu torturas em Auschwitz, afirma-nos que apesar de todo sofrimento a

“...existência humana sempre vai além de si mesma...”(FRANKL, 1992, p. 61). Com essa

afirmação, o autor oferece ao ser humano a possibilidade de encontrar sentido para a vida,

mesmo em face do absurdo, percebe que há uma dimensão no ser humano que, embora

ignorada, pode ajudar a curá-lo. Essa dimensão é o espírito. Há algo no ser humano que

transcende seus aspectos psico-físicos, é justamente a dimensão espiritual; é aí que residem os

fenômenos especificamente humanos.

Poderíamos perguntar: De onde vem a fundamentação de Frankl? Quais suas raízes

filosóficas? Que “espírito” é esse mencionado?

Como afirmamos no início deste trabalho, muitas correntes filosóficas já discutiram

mas não conseguiram resolver questões existenciais do homem; o homem não chegou à

maturidade tão esperada pelo positivismo. Dentre os filósofos que discutiam a existência, a

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vida humana, Viktor Frankl, partindo da teoria antropológica de Max Scheler e da ontologia

de Nicolai Hartmann, escreve sua visão de homem.

Segundo Max Scheler, o homem possui uma essência que o torna peculiar, diferente

de todos os animais, uma essência que está muito além da inteligência e da capacidade de

escolha. É algo que abrange toda a razão, as idéias e a intuição, é algo profundo que ele

denomina “espírito”. (cf. SCHELER, 2003, p. 35). Para ele, o homem por ser espiritual é

pessoa. Afirma: “... designamos „pessoa‟ o centro ativo no qual o espírito aparece no interior

das esferas finitas do ser...” (SCHELER, 2003, p. 36). A pessoa é o centro do cosmos, é o

centro do qual nascem os atos espirituais; ela é constituída pela dimensão corpórea, psíquica

pela a dimensão espiritual.

É a partir daí que entendemos a afirmação de Frankl a respeito da pessoa: “... a pessoa,

aquela da qual se originam os atos espirituais, ela também constitui o centro espiritual em

torno do qual se agrupa o psicofísico...” (FRANKL, 1992, p. 20).

Assim como Scheler, Nicolai Hartmann concebe o ser humano com três dimensões

corpórea, psíquica e espiritual. Segundo Peter, “... Hartmann concebia o homem como

estrutura à maneira de escalas ou gradações constituídas pelas dimensões corporal, psíquica e

espiritual...”(PETER, 1999, p. 34). Peter, ao explicar a concepção de homem de Hartmann,

deixa claro que tanto este quanto Scheler admitiam a multiplicidade de dimensões do ser

humano, porém não explicavam suficientemente como se dá a unidade do ser humano, caindo

no dualismo corpo e alma. (cf. PETER, 1999, p. 35). É a partir dessas teorias que Frankl

afirma:

“Para salvar o humano, em vista das aspirações reducionistas a uma ciência

pluralista, não pouparam esforços, entre outros, Nicolai Hartmann, com a sua

ontologia, e Max Scheler, com a sua antropologia. Distinguiram estes autores

diversos graus ou camadas como corporal, o anímico e o espiritual. Correspondente

a cada qual uma ciência: o corporal, a biologia; ao anímico, a psicologia, etc. Assim,

à diversidade dos graus ou camadas corresponde precisamente o pluralismo das

ciências. Mas é de perguntar: onde fica a unidade do homem? (...) Pois eu gostaria

de definir agora o homem como unidade apesar da pluralidade...” (FRANKL, 2003,

p. 42)

Frankl elabora sua antropologia usando as palavras de Tomás de Aquino, o homem é

“... unitas multiplex...” (FRANKL, 2003, p. 42)

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1.1 O homem como unidade múltipla.

Segundo Frankl, o ser humano possui várias dimensões: a corpórea, a psíquica e a

espiritual que, embora diversas, são inseparáveis. Há unidade no homem apesar da

diversidade. “... Existe uma unidade antropológica apesar das diferenças ontológicas, apesar

das diferenças entre as várias maneiras de ser...” (FRANKL, 1978, p. 138). O autor enfatiza a

unidade do ser humano para não o reduzirmos apenas a uma de suas dimensões como a

somática, a psíquica ou a espiritual. Daí vem o termo cunhado por ele, “ontologia

dimensional”, que significa que o ser humano possui uma unidade antropológica, embora

existam diferenças ontológicas. Afirma que a “... característica da existência humana é a

coexistência entre a unidade antropológica e as diferenças ontológicas, entre o modo de ser

unitário da realidade e as modalidades diversas em que ela se divide...” (FRANKL, 1978, p.

139). Partindo da ontologia dimensional, podemos dizer que o homem traz em si mesmo uma

unidade que coexiste com diversas modalidades de ser.

Elizabeth Lukas (1989), no seu livro Logoterapia „A força desafiadora do espírito‟,

referindo-se à ontologia dimensional afirma: “... em cada parte do ser humano tocam-se uma

na outra todas as três dimensões...” (p.28). Considera assim que existe unidade no ser

humano apesar das diversas dimensões. “O homem é um ser tridimensional...” (LUKAS,

1989, 28). Como já afirmamos acima, as dimensões somática, psíquica e espiritual, embora

distintas, relacionam-se entre si num único e mesmo homem. Frankl, para explicar a unidade

do homem, relacionada às três dimensões utiliza-se de figuras geométricas, formulando duas

leis e aplicando-as ao homem. Na primeira lei afirma:

“Se tomamos uma e a mesma coisa numa dada dimensão e a projetamos em várias

dimensões inferiores àquela que lhe é própria, a coisa em questão representa-se de

tal modo que as figuras obtidas se opõem umas às outras. Tomemos por exemplo,

um copo, representado geometricamente sob a forma de cilindro, em um espaço

tridimensional. Projetamo-lo em seguida nos planos horizontal e longitudinal; e

teremos: num caso, um círculo; no outro, um retângulo. Observa-se, entretanto, que

as figuras obtidas só se opõem enquanto se trata de um quadro fechado, ao passo que

o copo é recinto aberto.” (FRANKL, 2003, p. 43).

Na segunda lei diz:

“... tomamos agora várias coisas, em lugar de uma só. Projetamo-las, não em várias,

mas numa mesma e única dimensão, (...) aquela que lhes é própria. O resultado

obtido apresenta-se de tal modo que as figuras respectivas, em vez de se oporem

claramente, são suscetíveis de vários sentidos. No exemplo acima, tomamos um

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cilindro, um cone e uma esfera, num espaço tridimensional, e projetamo-los no

plano horizontal, resultando, como se vê, em qualquer dos três casos, um círculo.

Convenhamos em que se trata das sombras que o cilindro, o cone e a esfera

projetam; e, realmente, as sombras são suscetíveis de vários sentidos (equívocas),

pois eu não posso concluir, partindo das três sombras certamente iguais, se o que as

projeta é um cilindro, um cone ou um esfera.” (FRANKL, 2003, p. 44).

Na primeira lei verificamos que um mesmo objeto aberto, projetado ou visto por

diferentes pontos, reproduz diferentes figuras fechadas que não representam o objeto na sua

totalidade. Aplicando essa primeira lei ao ser humano, observamos que o homem, ser aberto

ao mundo (cf. SCHELER, 2003, p. 36), traz em si mesmo uma infinidade de possibilidades

que não podem ser reduzidas a uma única dimensão. Assim, se o homem é visto apenas por

uma das dimensões, acaba chegando-se a sistemas fechados, reducionistas, ou seja, a redução

a dimensões específicas projeta figuras que se contradizem como no exemplo, figuras que são

retangulares e circulares, e que não projetam o que o ser humano de fato é.

Da mesma forma, na segunda lei, se pegarmos figuras distintas e projetarmos em uma

única e mesma dimensão, teremos sombras idênticas, embora as figuras sejam distintas. Ou

seja, se olharmos figuras distintas sob uma única e mesma ótica, veremos sombras idênticas

que não dizem o que de fato são as figuras, podendo-se cair novamente no reducionismo.

Aplicando esta segunda lei ao ser humano, podemos dizer que, se olharmos o ser humano por

um único prisma, estaremos reduzindo-o a um único aspecto ou uma única dimensão,

descartando todas as outras possibilidades de ser. Diz Frankl:

“A projeção no plano biológico produz fenômenos somáticos, enquanto a projeção

no plano psicológico, fenômenos psíquicos. À luz da ontologia dimensional, a

contradição não diz respeito à unidade do homem. Tanto quanto a contradição entre

o círculo e o retângulo abrange o fato de que se trata da projeção de um mesmo

cilindro. Não percamos, porém, de vista que a unidade do ser-assim do homem lança

uma ponte sobre a diversidade das modalidades de ser em que se divide; assim, a

superação de opostos como soma e psique (...) não deve ser buscada no plano em

que o homem é projetado. Pelo contrário, é exclusivamente numa dimensão superior

que pode ser encontrada, na dimensão do especificamente humano.”(FRANKL,

1978, p. 141).

Segundo Frankl, o fato de o ser humano poder ser projetado ou visto por várias

dimensões, como a somática e a psíquica, não contradiz a unidade do homem, pois as

projeções dessas dimensões dizem respeito a um mesmo e único ser humano, que possui

vários modos de ser. A unidade do homem, segundo o autor, não pode ser buscada em

dimensões que se projetam ou em dimensões específicas, pois podemos cair no reducionismo,

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mas deve ser buscada na dimensão especificamente humana. E a dimensão especificamente

humana, como já afirmamos acima, é que o homem é um ser aberto ao mundo. O “...ser

humano é profundamente caracterizado como ser aberto à realidade externa, como foi

demonstrado por Max Scheler (...). Ou ainda, como disse Martin Heidegger, o ser humano é

„um ser-no-mundo‟.”(FRANKL, 1989, p. 41). A unidade antropológica do ser humano não se

encontra em uma dimensão limitada, fechada; ao contrário, o ser humano é mais humano

quanto mais aberto for ao mundo em que vive, por isso, se desejamos “apreender” o ser

humano na sua “totalidade”, não podemos olhar para dimensões específicas, mas para sua

abertura ao mundo. Diz Frankl: “...o fato fundamental que ser homem significa estar em

relação com alguma coisa ou com alguém diferente de si, seja isto um significado a ser

realizado ou outros seres humanos a encontrar.”(FRAN KL, 1989, p. 41). O ser humano,

quanto mais aberto for, mais humano será, mais unidade terá, sem desconsiderar as

diversidades do ser. O ser humano é “... unitax multiplex, como foi definido por Tomás de

Aquino...”(FRANKL, 1989, p. 41). É unidade apesar da diversidade.

Segundo Frankl, para que o ser humano possa ser realmente aberto ao mundo, ser ele

mesmo, é necessário considerar todas as diversidades de ser do homem, para que, a partir daí,

possamos de fato reconhecer a unidade do homem apesar da diversidade no modo de ser. E,

para abordamos todas as diversidades de ser do homem, não podemos descartar a dimensão

espiritual. Diz Elisabeth Lukas citando Frankl:

“Em nosso esquema dimensional resulta da tridimensionalidade do homem que o

que é propriamente humano só pode manifestar-se quando ousamos entrar na

dimensão do espiritual. O homem só é visível como tal, na medida em que

incluirmos esta terceira dimensão na meditação sobre o mesmo: só então deparamos

com o homem como tal...”(FRANKL apud LUKAS, 1989, p.30).

Segundo Frankl, o ser humano somente pode ser reconhecido como de fato é, se

também considerarmos a dimensão espiritual, que é uma característica específica, própria do

homem. Se não considerarmos a dimensão espiritual do homem, não podemos compreendê-lo

em sua totalidade. Diz Frankl: “...ao homem total, pertence o espiritual, e lhe pertence como a

sua característica mais específica...”(FRANKL, 1992, p. 21). Explica Lukas:

“De acordo com a concepção de Frankl, o homem realmente possui corpo,

comparável ao dos outros organismos, e uma dimensão psíquica, que abrange as

emoções humanas diferentes, com base nos instintos. Porém, acima destas

dimensões, possui ainda uma dimensão espiritual, que constitui a dimensão

verdadeiramente humana, a dimensão que realmente eleva o homem acima do

animal, não apenas quantitativa, qualitativamente...”(LUKAS, 1992, p. 20).

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Frankl não desconsidera a dimensão somática e a dimensão psíquica do ser humano,

porém para ele o que dá especificidade ao homem é a dimensão espiritual. Daí, a importância

de adentrarmos com mais precisão na dimensão espiritual.

Ricardo Peter (1999), autor do livro Viktor Frankl - a antropologia como terapia

reproduzindo Frankl afirma que o “...homem aparece „centrado‟, integrado em torno de uma

realidade pessoal, fonte de todas as atividades especificamente humanas...”(p. 39). Frankl

considera que o homem possui um núcleo pessoal, do qual nascem todas as atividades

humanas e esse núcleo pessoal, no qual estão agrupadas as dimensões somática e psíquica, é a

dimensão espiritual, como veremos adiante.

1. 2 O homem como ser espiritual.

Quando observamos o homem somente a partir da dimensão somática, psíquica ou

social, podemos cair no reducionismo, que restringe o homem a apenas um aspecto, deixando

de lado as outras dimensões, inclusive a espiritual.

Segundo Frankl não podemos reduzir o ser humano somente à dimensão física,

psíquica ou social, mas devemos olhar o ser humano de modo integral, com sua dimensão

espiritual. Diz ele que o ser humano “...está sempre centrado, centrado em torno de um meio,

em torno de seu próprio centro...”(FRANKL, 1992, p.20). O homem aparece centrado,

integrado em torno de uma realidade pessoal, que podemos chamar de núcleo ou dimensão

espiritual. (cf. PETER, 1999, p.39). Afirma Frankl:

“Pelo fato de o ser humano estar centrado como indivíduo em pessoa determinada

(como centro espiritual existencial), e somente por isso, o ser humano é também um

ser integrado: somente a pessoa espiritual estabelece a unidade e totalidade do ente

humano. Ela forma esta totalidade como sendo bio-psico-espiritual. Não será demais

enfatizar que somente esta totalidade tripla torna o homem completo.”(FRANKL,

1992, p. 21).

Para Frankl a dimensão espiritual é a dimensão específica do ser humano, que nos dá

possibilidade de compreender o mesmo, na sua totalidade ou integralidade. Se afirmamos que

a totalidade do homem é somente dotada de corpo-mente, estaremos desconsiderando a

dimensão espiritual, pois a totalidade não é somente psicofísica, mas também espiritual.

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Frankl, explicando como acontece a relação entre as três dimensões do ser humano ou

sua tridimensionalidade, afirma:“... o núcleo pessoal, aquele centro espiritual-existencial, ao

redor do qual estão agrupados o psíquico e o físico em estratos periféricos, seja dotado de um

prolongamento.”(FRANKL, 1992, p. 21). O núcleo pessoal do ser humano para Frankl é

também a dimensão espiritual, o seu centro espiritual, em torno do qual estão agrupados os

estratos psicofísicos, que atravessam o consciente, o pré-consciente e o inconsciente. (cf.

FRANKL, 1992, p. 21). Para ele, o núcleo central e os estratos psicofísicos estão

extremamente ligados de modo que qualquer atitude, física, psíquica ou espiritual, é uma

atitude do homem inteiro, na sua totalidade, ou seja, quando alguém realiza uma ação, quem

realiza é a pessoa com toda a sua dimensão bio-psico-espiritual.

O centro espiritual-existencial é de onde nascem todas as atividades especificamente

humanas, é a realidade pessoal do homem, que para Frankl é a dimensão profunda chamada

espiritual-existencial; é existencial porque é dessa dimensão que parte a existência do homem,

é espiritual porque é dessa dimensão que surgem os atos espirituais, que se prolongam para o

psíquico e para o somático. Para ele o espiritual-existencial é o núcleo mais profundo do

homem, é onde se encontra o que é mais específico do homem. O psíquico e o somático

agrupam-se em torno dessa realidade pessoal.

“A relação entre a pessoa espiritual e o organismo somático é instrumental. O

espírito instrumenta o psicofísico – a pessoa organiza o organismo psicofísico – sim,

ela o forma „para si‟, na medida em que o faz utensílio, órgão, instrumentum. A

pessoa espiritual comporta-se, em relação ao seu organismo, de modo análogo ao

músico em relação ao seu instrumento.”(FRANKL, 1978, p. 117).

Para o autor o que constitui o homem pessoa é o espiritual, e é a partir dessa dimensão

que se organizam o psíquico e o físico.

Frankl, ao se referir à pessoa, na sua dimensão mais profunda, diz que o termo „pessoa

profunda‟ refere-se “...a esta pessoa espiritual-existencial, à sua profundeza

inconsciente...”(FRANKL, 1992, p. 22). Para ele a pessoa profunda na sua existência

profunda é inconsciente, ou seja, a pessoa espiritual na sua realidade mais profunda não é

passível de esclarecimento.

“Resumindo, podemos dizer que a pessoa profunda, a saber, a pessoa profunda

espiritual, aquela que merece ser chamada assim, no verdadeiro sentido da palavra, é

irreflexível por não ser passível de reflexão e, neste sentido, pode ser chamada

também de inconsciente. (...) Em outras palavras, na sua profundeza, „no fundo‟, o

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espiritual é necessário, por ser essencialmente inconsciente.”(FRANKL, 1992, p.

24).

O espiritual não é passível de ser observado, ou melhor, o espiritual encontra-se no

nível ontológico da pessoa e não pode ser reduzido ao nível ôntico. Daí a afirmação de Frankl

que a pessoa profunda espiritual é uma realidade irrefletida, é uma realidade inconsciente.

“Da mesma forma que no local de origem da retina, ou seja, no ponto de entrada do nervo

ótico, a retina tem seu „ponto cego‟, assim também o espírito, precisamente na sua origem, é

cego a toda auto-observação e auto-reflexão...”(FRANKL, 1992, p. 24). Em outras palavras, a

realidade espiritual da pessoa é uma realidade ontológica, é uma realidade essencialmente

invisível.

Aqui podemos levantar as perguntas: Como podemos apreender o que não pode ser

apreendido? Como podemos falar da pessoa espiritual, sendo que esta permanece no nível

ontológico? Diz Frankl: “...a existência espiritual, ou seja, o próprio eu, o eu „em si mesmo‟ é

irreflexível e, assim somente executável, „existe‟ somente em suas execuções, somente como

„realidade de execuções‟. (FRANKL, 1992, p. 23). Assim, embora não possamos apreender a

dimensão espiritual na sua essência, na especificidade da pessoa, podemos captar sua

existência na execução. Sendo a pessoa aberta ao mundo e relacionando-se com as diversas

situações que se apresentam ela, tentando encontrar respostas que dêem sentido à vida, há

possibilidades de captar a dimensão espiritual. O que captamos ou percebemos é o ser-assim,

como se apresenta diante dos olhos, e não a coisa-em-si, no mais profundo, na sua raiz, pois

esta só se dá a conhecer na execução, na realidade de execuções. (cf. FRANKL, 1978, p. 90).

Segundo Frankl, como já afirmamos acima, é na realidade das execuções que temos a

oportunidade de captar o eu espiritual-existencial, e isso só pode acontecer quando a pessoa,

abrindo-se para realidade em que se encontra, depara-se com ser conhecido, „explorado‟ e

experimentado. É nessa relação que temos a oportunidade de nomear e experimentar a pessoa

espiritual. Dizemos “experimentar”, porque é algo que se dá na relação do homem com o

mundo, na sua abertura para o mundo, e isso não pode ser calculado, medido, colocado em

um espaço ou até mesmo visto, mas simplesmente realiza-se na abertura do homem para o

mundo.

Frankl falando do eu espiritual na sua dimensão profunda, do ponto de vista

ontológico, diz: “...o ente espiritual „é‟ o outro „ente‟; este ente, por sua vez, não é

evidentemente nem „fora‟ nem „dentro‟ do ente espiritual.(...)Este ente é simplesmente „aí‟.”(

FRANKL, 1978, p. 95). No sentido ontológico, sujeito e objeto se entrelaçam existindo entre

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eles uma reciprocidade. Não é somente o sujeito que está no objeto, mas o objeto também está

no sujeito. Em outras palavras, como já afirmamos, o homem constitui o mundo e o mundo

constitui o homem. A essência do ser espiritual é estar em relação ou estar aberto a algo ou

alguém, ao outro; é na relação do homem com o mundo, que encontramos a possibilidade de

experimentar a essência do ser espiritual. Pois é quando o sujeito e o objeto se entrelaçam que

podemos conhecer um e outro; o ente espiritual é “de qualquer modo” em outro ente. O “estar

em” não é algo estático, mas dinâmico, um movimento em que um se direciona para o outro

para poder conhecê-lo, apreendê-lo. (cf. FRANKL, 1978, p. 97). O autor, a partir da

ontologia diz: o “... „ser (estar) em‟ outro ente nunca está fora, mas simplesmente

„aí‟...”(FRANKL, 1978, p. 97). Em outras palavras podemos dizer que o ser espiritual só toma

“consciência” de si, está “em si” na medida em que se relaciona como o outro, na medida em

que é aberto. Afirma Frankl: “...o ente espiritual é ente espiritual, é ser-consciente, é “em si”,

na medida em que “é” (está) em outro ente, na medida em que “tem” consciência de outro

ente.(FRANKL, 1978, p. 97).

Frankl explica que o “ser-aí”, o ente em outro ente, quando passa para “...posição

reflexiva que se presta à psicologia é que se rompe este simples „ser aí‟ e se divide em sujeito

e objeto...”( FRANKL, 1978, p. 93). O “ser-aí” passando do campo ontológico para o ôntico,

passa a ser analisado, compreendido e interpretado, tornando-se relação entre coisas, com a

separação entre sujeito e objeto. (cf. FRANKL, 1978, p. 95)

O ente espiritual é ou se dá na medida em que é em outro ente, é “...ser-consciente é

„em-si‟ na medida em que „é‟ (está) em outro ente, na medida em que „tem‟ consciência de

outro ente...”( FRANKL, 1978, p. 97). Assim, o ser espiritual é inconsciente e manifestado na

execução. A manifestação não pode ser calculada, mas experimentada na vivência do dia-a-

dia, na descoberta do sentido de cada situação. E essa descoberta do sentido só pode começar

a se dar a conhecer à medida que o homem tiver abertura às circunstâncias que o rodeiam;

pois o homem, mesmo sendo um ser espiritual, pode se fechar para a relação com outro e

dessa forma estaria inibindo a sua própria essência. O mesmo acontece com a questão da

liberdade, que é um atributo da existência humana.

1.3 O homem livre e responsável

Frankl, além de nos esclarecer que o homem é ser espiritual, também afirma que

liberdade e a responsabilidade constituem parte da existência humana. Para ele, o homem é

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ser livre, porém a “...liberdade humana é liberdade limitada. O homem não é livre de certas

condições. Mas é livre para tomar posições diante delas. As condições não o condicionam

inteiramente. (...) Ele pode até superar as condições e, assim fazendo, abrir-se um caminho a

penetrar na dimensão humana...”(FRANKL, 1989, p. 42). O homem pode se autodeterminar

nas situações que a existência apresenta, respondendo a seu modo a cada uma delas. No livro

Em busca de sentido - um psicólogo no campo de concentração, Frankl fazendo uma

promessa a si mesmo demonstra, através do testemunho pessoal, como foi conquistando a

liberdade dia após dia, perante os sofrimentos por que passava na prisão.

“...na primeira noite em Auschwitz, pouco antes de adormecer, fiz a mim mesmo a

promessa, uma mão apertando a outra, de não „ir para o fio‟. Esta expressão,

corrente no campo, designava o método usual de suicídio: tocar no arame farpado,

eletrificado em alta tensão...”(FRANKL, 2008, p. 33).

Embora as condições no campo de concentração pudessem levá-lo ao suicídio, ao

desespero, Frankl, fazendo uma promessa a si mesmo, decidiu conservar a própria vida

resistindo às piores humilhações e sofrimentos. Foi fazendo uso da sua liberdade “limitada”,

pois estava preso, que ele percebeu que tinha autonomia para decidir se iria ou não se matar. É

exatamente nesse sentido, na autonomia sobre si mesmo, que o homem se torna livre perante

os condicionamentos, como no caso do exemplo acima, livre perante a prisão.

“A experiência da vida no campo de concentração mostrou-nos que a pessoa pode

muito bem agir „fora do esquema‟. Há suficientes exemplos, muitos deles heróicos,

que demonstraram ser possível superar a apatia e reprimir a irritação; e que continua

existindo, portanto, resquício de liberdade do espírito humano, de atitude livre do eu

frente ao meio ambiente, mesmo nessa situação de coação aparentemente absoluta

prisão, tanto exterior como interior...” (FRANKL, 2008, p.88).

Frankl, a partir de sua promessa, testemunha que, embora estivesse condicionado

como prisioneiro no campo de concentração e estivesse passando pelos piores tormentos,

decidiu a partir do seu íntimo agir “fora do esquema” na prisão, lutando contra apatia, a

irritação e todas as outras formas de desânimo. Frankl afirma que o homem pode se colocar

acima das circunstâncias, pode decidir se transcende ou não perante as situações internas

(pessoais) ou externas (sociais) que se apresentam a ele. Transcender aqui, como já afirmamos

durante o trabalho, é a capacidade do homem de ir além de si mesmo, de poder ter autonomia,

mesmo que as circunstâncias sejam adversas.

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“Em princípio, portanto, toda pessoa, mesmo sob aquelas circunstâncias, pode

decidir de alguma maneira no que ela acabará sendo, em sentido espiritual: um

típico prisioneiro de campo de concentração, ou então uma pessoa humana, que

também ali permanece sendo ser humano e conserva a sua dignidade...”(FRANKL,

2008, p. 89).

O homem pode ser livre perante os condicionamentos biológicos, psíquicos e sociais.

Com isso não queremos dizer que o homem possa não ter esses condicionamentos biológicos,

psíquicos ou sociais; para Frankl, é o homem que possui os instintos, as heranças e os

condicionamentos e não estes que possuem o homem, ou seja, o homem é senhor de seu

“destino”. Podemos viver os piores condicionamentos, como no caso de Frankl, como

prisioneiro no campo de concentração, mas ainda assim, a “...liberdade espiritual do ser

humano, a qual não lhe pode tirar, permite-lhe, até o último suspiro, configurar a sua vida de

modo que tenha sentido.”(FRANKL, 2008, p. 90). É o homem, até o último momento, que

tem a possibilidade de configurar o sentido da sua existência, mudando de atitude perante a

restrição forçada que atua de fora sobre o seu ser. Em outras palavras, o homem, mesmo

caminhando para morte, como muitos caminharam do campo de concentração para câmara de

gás, pode ainda aí ser livre para morrer com hombridade ou não, mesmo não desejando

morrer, mesmo sofrendo. A liberdade não nasce das circunstâncias externas, mas da dimensão

espiritual, do interior. Diz Frankl:

“...o homem, como ser espiritual, não sé se encontra confrontado com o mundo –

tanto com o meio ambiente como com seu mundo interior – como também toma

posição diante dele, sempre pode „dispor-se‟ e „comportar-se‟ de alguma forma

diante dele, e esse comportamento é precisamente um comportamento livre. Em

qualquer momento de sua existência, o homem toma posição tanto em relação ao

meio ambiente natural e social, o entorno externo, como diante do mundo interior

psicofísico vital, o entorno interno.”(FRANKL, 1995, p. 95).

Segundo Frankl, é a partir do seu núcleo mais íntimo que o homem, como ser

espiritual, pode agir livremente. É como pessoa que pode se comportar livremente, sejam

quais forem as circunstâncias...”(FRANKL, 1995, p. 96). É aprendendo a responder às mais

variadas circunstâncias que podemos cada vez ser mais pessoa e cada vez mais ser livres.

Cada pessoa tem sempre a última palavra, e ninguém pode entrar em sua intimidade, no seu

ser mais profundo, para dizer como tem que responder perante as circunstâncias. A pessoa,

mesmo sofrendo diversos condicionamentos, pode agir livremente a esses.

Segundo Frankl, quando nascemos, nascemos com nosso “destino”, ou seja, nascemos

com nossas circunstâncias, com nossos limites, nascemos dentro de um espaço histórico

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determinado, com hereditariedade determinada, mas nascemos também com capacidade para

superar o que pode nos determinar, pois podemos superar nossas próprias limitações. Diz

Frankl:

“...o homem é livre; mas isto não significa que esteja flutuando, por assim dizer,

num espaço sem ar, pois, ao contrário, acha-se envolvido por uma série de vínculos.

Estes vínculos, contudo, são os pontos de arranque para a sua liberdade. A liberdade

pressupõe vínculos, refere-se a vínculos. Mas tal referência não significa submissão

nenhuma...”(FRANKL, 2003, p. 120).

Embora o homem nasça e cresça com uma série de circunstâncias que dizem quem ele

é, que dizem da pessoa dele, é a partir dessas mesmas circunstâncias que ele também pode

decidir o que ele quer ser, pois, a cada passo de sua vida, pode ir se libertando daquilo que o

determina. O homem tem a liberdade “...para transformar-se em algo diferente...”(FRANKL,

1995, p. 96). O homem, fazendo uso de sua liberdade, pode configurar sua própria existência,

pode decidir-se a cada instante. Porém podemos levantar uma questão: Se somos livres,

podemos fazer o que queremos? Segundo o autor, “...o homem não pode fazer tudo o que quer

fazer: a liberdade humana, por conseguinte, não se identifica com a onipotência.”(FRANKL,

1995, p. 99). Para Frankl, a liberdade humana é limitada, mesmo não havendo

condicionamentos, pois só somos livres para sermos nós mesmos, ou melhor, o homem é livre

para ser ele mesmo.

E o que significa ser si mesmo? Para Frankl, significa ser um homem em busca de

sentido. E para se buscar o sentido da vida, como já afirmamos anteriormente, é necessário

abertura da parte do homem às várias circunstâncias, é necessário aprender a se relacionar e

saber responder às várias situações que se apresentam a ele no dia-a-dia. É nessa busca e

abertura por parte do homem que este tem a oportunidade de ir se encontrando e se

percebendo como de fato é. Por isso a liberdade humana não pode ser absoluta, no sentido de

querer fazer o que se quer e como se quer, pensando somente em si próprio, no próprio ego e

nas próprias satisfações; para que o homem seja livre é necessário ser aberto ao mundo e, ao

mesmo tempo, saber responder a esse mundo que também se abre a ele. É nessa abertura que

o homem pode ser ele mesmo. “Se o homem quer chegar a seu eu, a seu si-mesmo, o caminho

passa pelo mundo.”(FRANKL, 1995, p. 105). Assim, vemos que a liberdade, para o autor, é

uma liberdade conquistada, pois é necessário que se esteja envolvido com o mundo e

responder a este mundo. Daí vem a afirmação de Frankl, “...a liberdade não é tudo: na

liberdade está pressuposta a responsabilidade. A liberdade, em outras palavras, não é

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realmente tal se prescinde da responsabilidade.” (PETER, 1999, p.77). Para o homem ser

livre é necessário saber responder à vida. E para Frankl “...somente pode responder sendo

responsável.”(FRANKL, 2008, p. 133).

O que significa ser responsável, para Frankl? Escreve o autor, “ser responsável é ser

seletivo, possuir capacidade para escolher.”(FRANKL, 1991, p. 19). Como já afirmamos

muitas vezes neste trabalho, a pessoa questiona a vida e a vida questiona a pessoa, e é

somente neste entrelaçamento que a pessoa pode responder à vida, respondendo por sua

própria vida ou fazendo escolhas para sua própria vida. Para Frankl responsabilidade ou o ser

responsável remete à capacidade que o homem tem de poder responder às várias

circunstâncias que se apresentam a ele de maneira significativa. Logo, podemos dizer que ser

responsável é saber responder às situações da vida, tendo sempre em vista que o homem é

sempre orientado para um sentido e para os valores.

“Ser livre é apenas o aspecto negativo do fenômeno completo, no qual o aspecto

positivo é ser responsável. A liberdade pode degenerar em mera arbitrariedade, a

menos que seja vivida em termos de responsabilidade.”(FRANKL, 1989, p. 54).

Portanto, a pessoa para ser livre precisa aprender a responder à vida, às diversas

situações, precisa ser responsável, pois sem responsabilidade a pessoa poderia fazer o que

quisesse sem medir seus atos e suas conseqüências, e dessa forma estaria se desviando do que

lhe é mais próprio, de si próprio, que significa ser um homem que busca o sentido, a partir de

sua abertura ao mundo. A resposta que a pessoa vai dando, ao longo da vida, deve estar

sempre ligada à busca de sentido que tenta encontrar para sua própria vida, pois, como afirma

Frankl, “...a busca do indivíduo por um sentido é a motivação em sua vida.”(FRANKL, 2008,

p. 124).

Porém, quem julgaria a responsabilidade ou as respostas que vamos dando às

situações? Podemos dizer que a “...primeira instância com relação à qual o homem se sente

responsável é a própria consciência...”(PETER, 1999, p. 80). Para Frankl, a consciência “...é

um órgão de sentido. Ela poderia ser definida como a capacidade de procurar e descobrir o

sentido único e exclusivo oculto em cada situação.”(FRANKL, 1992, 68). Logo, é a

consciência que orienta a pessoa nas diversas respostas que deve dar diante da vida. Assim

levanta-se outra pergunta: A consciência ou o órgão de sentido não pode cair em uma ilusão

na busca do sentido, ou em um sentido errado?

Frankl afirma que:

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“A consciência também pode enganar a pessoa. Mais ainda: até o último instante,

até o último suspiro a pessoa não sabe se ela realmente cumpriu o sentido de sua

vida ou se ela apenas se enganou: Ignoramus et ignorabimus, não sabemos nem

agora, nem mais tarde. O fato de que nem em nosso leito de morte saberemos se o

órgão de sentido, nossa consciência, em última análise não foi vítima de uma ilusão

de sentido, também implica que uma pessoa não sabe se não é a consciência do

outro que tinha razão. Isso não quer dizer que não exista verdade. Somente pode

haver uma verdade; mas ninguém pode saber se é ele e não o outro que

possui.”(FRANKL, 1992, 68).

Segundo Frankl, uma pessoa seguindo sua consciência pode passar uma vida inteira

realizando ações, como se tivessem o sentido buscado e, ao chegar ao final de sua vida, pode

perceber que as ações realizadas, que o sentido que estava seguindo não era o que realmente

motivava sua vida. Neste caso a consciência da pessoa levou-a ao erro.

Porém, embora exista a possibilidade de respondermos de maneira errada à própria

consciência, Frankl nos dá algo objetivo para não cairmos no erro ou no subjetivismo,

orientando-nos que o sentido é algo para “fora”, para além do próprio sujeito. As respostas

que vamos dando ao longo da vida devem estar relacionadas com algo além de nós mesmos.

Segundo o autor, o homem é abertura para o outro e por isso afirma:

“... o interesse preponderante do homem não é por quaisquer condições internas dele

próprio, sejam elas prazer ou equilíbrio interior, mas ele é orientado para o mundo lá

fora, e neste mundo procura um sentido que pudesse realizar ou uma pessoa que

pudesse amar.”(FRANKL, 1992, p. 78).

Portanto, para Frankl, o homem se realiza à medida em que se esquece de si próprio,

dedicando-se a uma causa, a um sentido objetivo ou a uma pessoa que ama. Esse movimento

para fora, para os outros, buscando sempre metas a realizar, é um movimento que leva o

homem a se tornar mais humano, mais ele mesmo, pois está sendo aberto ao mundo, está

sendo aberto aos outros.

Para Frankl, como já vimos, uma pessoa pode transcender (ultrapassar, ir além de si

mesmo), superar seus próprios limites conforme ela se abre ao mundo. Porém, o movimento

de abertura do homem não pode ser calculado e medido; nem a própria pessoa pode dizer a si

própria o quanto deve abrir-se e nem ninguém pode dizer para ela até que ponto ela deve ser

aberta ao mundo, às coisas e ao outros; o importante é ir sendo no mundo; é envolvendo-se

com o mundo que o sentido “se deixa” descobrir. É no “despojamento do próprio eu” em

direção ao mundo que se realiza e se encontra o sentido para sua vida.

A existência torna-se autêntica, ou seja, o homem realiza sua existência como é,

quando tende para o logos, na medida em que se torna ser-para-os-outros. É sendo com os

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outros, ou relacionando-se com os outros que o homem vai se tornando livre e responsável,

pois aprende a decidir e responder conforme as situações se apresentam a ele, em vista de

encontrar um sentido para sua vida.

Em nossos dias observamos que muitas pessoas aprenderam a se decidir, a se

autodeterminar, tornando-se “livres” perante as imposições culturais, sociais e religiosas.

Porém, regozijando-se da “liberdade”, fazendo o que querem e como querem, acabam

esquecendo-se da responsabilidade pelos outros e exatamente aí as pessoas não conseguem

iniciar sua transcendência, pois sua existência carece de sentido, já que a existência autêntica

não é somente para si, mas especialmente ser-para-outros, ser em relação com os outros.

Logo, a transcendência tem início quando a pessoa começa a abrir-se ao outro.

1.3. A vontade de sentido.

Como já afirmamos, para Frankl a experiência do sujeito humano está orientada

essencialmente para além de si mesmo, para os outros, e é desse modo que o homem torna-se

transcendente (que pode ir além de si-mesmo). Podemos perguntar então de onde vem a força

propulsora que leva o homem para além de si mesmo.

Com o desenvolvimento do conceito de pessoa, percebe-se que para Frankl o homem

possui em si mesmo a dimensão espiritual, como uma estrutura concêntrica que congrega em

torno de si o psíquico e o somático, e também que é livre e responsável, sendo capaz de

superar as limitações e os condicionamentos. Assim, o homem possui um corpo, uma psiquê e

juntamente com eles um espírito, que constitui a dimensão verdadeiramente humana.

“O Espírito não busca o prazer; busca o sentido. O Espírito não procura satisfação

de suas necessidades; procura no mundo tarefas e objetivos que tenham

sentido...”(LUKAS, 1992, p. 21).

Por isso podemos afirmar que o homem, como ser essencialmente espiritual, é um ser

que tem como motivação primária, o sentido. É um ser orientado para o sentido da vida, e

mesmo não tenha consciência disso, está sempre buscando esse sentido.

“Para a logoterapia, a busca de sentido na vida da pessoa é a principal força

motivadora no ser humano. Por esta razão costumo falar de uma vontade de sentido,

a constratar com o princípio do prazer (ou, como também poderíamos chamá-lo, a

vontade de prazer) no qual repousa a psicanálise freudiana, e contrastando ainda

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com a vontade de poder, enfatizada pela psicologia adleriana através do uso do

termo „busca de superioridade ”(FRANKL, 2008, p. 124).

A vontade de sentido é, nessa perspectiva, o motor da vida humana, é a inquietação da

existência, é a força de superação perante as dificuldades e os desencontros. O que

“...realmente impulsiona o homem não é a vontade de poder, nem a vontade de prazer, mas

sim a vontade de sentido, que é a razão para ser feliz. O homem não é impelido pelo impulso,

mas puxado pelos valores.”(XAUSA, 1986, p. 145).

O que move a vida do homem, para Frankl, não é o prazer ou os instintos à

semelhança dos animais ou ainda o poder, mas sim a vontade de encontrar um sentido em sua

vida. O homem encontra em si mesmo a vontade de buscar e realizar um sentido, e à medida

que procura realizar essa vontade, vai realizando sua própria existência.

É da dimensão espiritual que partem todos os movimentos especificamente humanos, é

de onde nasce a vontade de sentido. “...Portanto, as autênticas decisões existenciais (...)

provêm daquilo que constitui a parte mais humana do homem, o Eu-espiritual.”(PETER,

1999, p. 90). É dessa dimensão que nascem as realizações éticas, amorosas e religiosas.

Podemos dizer que é da dimensão espiritual ou do inconsciente espiritual que surge a

necessidade que o homem sente de se ligar ao outro, a alguma comunidade e a Deus. E assim

o homem torna-se capaz de sair de si e de orientar-se para algo diverso de si, como afirmamos

anteriormente. O movimento de sair de si em direção a algo ou a alguém é o que Frankl

chama de transcendência.

O movimento de abertura do homem levado até as últimas possibilidades, segundo

Frankl, desemboca no sentido último que é, para a pessoa religiosa, Deus. O movimento de

abertura para o sentido último é também chamado de transcendência vertical. Aqui “...está se

referindo à transcendência completa que se verifica na relação do homem com o „Ultimate

Meaning‟...”, o sobre-significado.”(PETER, 1999, p. 25). O sobre-significado ao qual Peter se

refere é o supra-sentido mencionado na obra de Viktor Frankl, que discutiremos nos próximos

parágrafos.

Segundo Frankl, como temos acompanhado ao longo deste trabalho, a existência

humana torna-se autêntica à medida em que está orientada para além de si mesmo, para algo

ou alguém e também para um sentido último. Desse modo a existência humana estará vivendo

a autotranscendência, ultrapassando-se pois sai de si mesma e vai em direção ao outro.

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Frankl criou o conceito de supra-sentido que é o sentido último que excede e

ultrapassa a capacidade de conhecimento finita do ser humano. (cf. FRANKL, 2008, p. 142).

A suposição de um “supra-sentido” abre-nos a possibilidade de compreender aspectos do

mundo que nossa razão considera sem sentido, como por exemplo, a existência do mal, o

sofrimento das pessoas inocentes, a morte, mas que podem ter sentido em uma dimensão

superior (cf. LUKAS, 1992, p. 25). É lógico que para o homem que se direciona para o supra-

sentido, é necessária a fé. Segundo Frankl,

“...o que é in-compreensível (...), não precisa ser in-acreditável (...). De fato, é

impossível descobrir apenas pelo intelecto se, em última análise, tudo é desprovido

de sentido, ou se existe um sentido encoberto por detrás de tudo. Embora não haja

resposta intelectual a esta pergunta, é possível assumir diante dela uma decisão

existencial. Diante do fato de que é igualmente concebível que tudo tenha um

sentido, e que tudo seja desprovido de sentido, ou seja, que os argumentos pró ou

contra um último sentido se mantenham equilibrados nos pratos da balança,

podemos jogar o peso de nosso próprio ser no prato a favor do sentido, decidindo-

nos por uma das possibilidades de pensamento, o homem que crê num sentido diz o

seu fiat ou „amém‟: „Assim seja, faço a opção por agir „como se‟ a vida tivesse um

sentido infinito, além de nossa capacidade finita de compreensão, enfim, um „supra-

sentido‟.‟ E com isto acaba se cristalizando uma verdadeira definição: „A fé não é

uma maneira de pensar da qual se subtraiu a realidade, mas uma maneira de pensar à

qual se acrescentou a existencialidade do pensador.” (FRANKL, 1992, p. 84).

Segundo Frankl, até nas últimas possibilidades, nas circunstâncias mais

incompreensíveis, podemos optar por viver como se existisse um sentido para além da

compreensão, podemos fazer a opção de acreditar que exista um sentido maior. É nessas

situações incompreensíveis para a razão, que é possível assumir ou decidir perante a

existência, que possa existir, “aí onde não compreendemos”, um sentido, podemos até mesmo

assumir a crença num supra-sentido. As situações podem não mudar, mas podemos mudar-

nos perante as situações, procurando encontrar um sentido até mesmo para o que não

conseguimos compreender através da razão.

É diante das situações difíceis e incompreensíveis que muitas pessoas, não sabendo o

que fazer, criam símbolos, com a finalidade de projetar para algo ou alguém o nada em que se

encontram. (cf. FRANKL, 1992, p. 84). É nessa projeção que o homem cria a possibilidade

do supra-sentido, cria a possibilidade de haver um sentido último para toda existência.

Podemos dizer que é daí que nascem muitas religiosidades, pois a pessoa, ao projetar um

sentido último para sua vida, criará também conjunto simbólico que diz para si da sua crença,

mas pode não dizer nada para uma outra pessoa, também crente, que por sua vez, terá um

outro e seu próprio conjunto simbólico e assim vai sucessivamente de uma pessoa para outra,

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dessa forma nascem muitas religiosidades e religiões. Diz Frankl, “...a religião poderia muito

bem ser definida como um sistema de símbolos; seriam símbolos para algo que não pode mais

ser apreendido mediante conceitos e depois em palavras.” (FRANKL, 1992, p. 86).

Frankl afirma que, quando falamos em profundidade com nós mesmos em verdadeiros

diálogos, fazemos verdadeiras preces que brotam de nosso íntimo. “...Deus é o parceiro dos

nossos mais íntimos diálogos conosco mesmos...”(FRANKL, 1992, p. 87).

Viktor Frankl deixa claro que a logoterapia é uma psicoterapia orientada para o

sentido da vida e não uma teologia, embora a admita em sua teoria. Frankl vê na “...religião a

realização de uma „vontade de sentido último‟.”(FRANKL, 1992, p. 89). Temos a

possibilidade de encontrar sentido em um supra-sentido, principalmente quando passamos por

situações que não conseguimos suportar, como a morte, a doença repentina e outras limitações

do homem. É importante salientar que Frankl não entra na questão da objetividade da

presença de Deus. Diz ele, se “...Deus realmente existe, estou convicto de que Ele não levaria

a mal se alguém o confundisse com o próprio eu e o chamasse por nome errado”(FRANKL,

1992, p. 88). A verdadeira religiosidade, para ele, brota do centro do homem, tem sua origem

na pessoa espiritual que, diante das situações existenciais, busca dar respostas e sentido até

mesmo para situações ilógicas.

Enfim, com Viktor Frankl podemos refletir sobre o sentido da vida. Vimos que, para

ele, o ser humano pode ir além de si mesmo, pode transcender e também vimos que do seu ser

mais profundo brota a força motivadora de perspectiva para vida. Essa força motivadora

“cresce” ou se desenvolve à medida em que o homem, ser situado no mundo e aberto a ele,

torna-se ser-para-os-outros. Vimos que o sentido nasce do interior (como vontade de sentido)

e ao mesmo tempo de um movimento de abertura ao mundo e de um modo especial ao outro.

Podemos entender que, para Frankl, trata-se de um devir do homem existente, o homem do

cotidiano que vive em eterno movimento de abertura à vida e à construção de possibilidades.

Por isso podemos compreender que, para ele, o sentido não “...significa algo abstrato, ao

contrário, é um sentido totalmente concreto de uma situação com a qual uma pessoa também

concreta se vê confrontada...”( FRANKL, 1992, p. 79)

Segundo Frankl, o homem pode encontrar o sentido através de três caminhos.

Primeiramente através de:

“...uma ação que pratica ou uma obra que cria, em segundo lugar, vivenciando algo

ou encontrando alguém, em outras palavras, pode encontrar um sentido não apenas

no trabalho, mas também no amor. Além disso, parece saber que há um terceiro

caminho para o sentido: sempre que estivermos diante de uma situação que não

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podemos modificar, existe ainda a possibilidade de mudar nossa atitude diante de

uma situação que não podemos modificar...”(FRANKL, 1992, p. 80).

Para Frankl, podemos encontrar sentido para nossas vidas até mesmo no sofrimento

inevitável, mas para isso é necessário mudar nossa atitude diante da situação, mudar a nós

mesmos, crescendo para além de nós. Diante de uma situação que não se pode modificar,

como, por exemplo, uma doença física, a pessoa pode modificar-se a si mesma, modificar sua

atitude frente ao não modificável.

Frankl, em seu livro A questão do sentido em psicoterapia, apresenta três exemplos

para explicar melhor os três caminhos para se encontrar o sentido da vida. Primeiro exemplo:

“Primeiro pode minha vida tornar-se plena de sentido porque eu realizo uma ação,

crio uma obra. Não precisa de forma alguma, sabe lá Deus, tratar-se de „uma obra‟.

Georg Moser falou certa vez de um „lixeiro que recebeu há alguns anos a cruz do

mérito federal. Ele procurava nos tonéis e depósitos de lixo os brinquedos jogados

fora, consertava-os à noite e presenteava crianças necessitadas. Dotado de

habilidade, ele conquistou para sua metódica profissão já plena de sentido, um

segundo e ainda mais brilhante sentido‟...”(FRANKL, 1990, p. 47)

Segundo exemplo:

“Sentido também pode-se encontrar através do que eu vivencio – vivencio algo ou

alguém, e vivenciar alguém em sua total originalidade e singularidade significa amá-

lo. De novo vale, sabe Deus, que não é para ser entendido de forma grandiloqüente,

mas inteiramente „down to earth‟ [aqui na terra]. À minha frente está uma carta da

qual gostaria de citar algumas passagens: „Em 14 dias estarei com 87 anos. Para

mim cada dia é um presente. Eu posso olhar para o céu, para o agradável parque,

posso falar com as árvores, receber amigos à tarde. Eu sou surdo, mas meu íntimo

fala, eu quase não posso andar, mas posso pensar – meu agradecimento em relação a

isto é verdadeiramente sem limites‟...”(FRANKL, 1990, p. 47).

No exemplo acima, a pessoa idosa à qual se refere a carta, poderia se sentir

desanimada com a vida, por causa do peso da idade ou poderia estar reclamando das

limitações de sua vida, como a surdez e o não poder andar, porém o que estamos lendo na

carta é uma pessoa acolhendo a vida, experimentando o mundo, a beleza das árvores, do céu e

acolhendo os amigos. O idoso do exemplo encontra sentido para sua vida vivenciando cada

instante do presente e, nessa vivência, deixa-se penetrar pelo belo do mundo, podendo

agradecer de forma ilimitada a vivência do momento ou a experiência que estava vivendo

naquele instante.

Diz Frankl: “A segunda maneira de encontrar um sentido na vida é experimentando

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algo – como a bondade, a verdade e a beleza – experimentando a natureza e a cultura ou,

ainda, experimentando outro ser humano em sua originalidade única – amando-o.”(FRANKL,

2008, p. 100).

Terceiro exemplo:

“Por fim mostra-se que lá onde somos confrontados com um destino que não se

deixa mudar, especialmente não se deixa mudar por enquanto – digamos uma

doença incurável, com um câncer inoperável –, que, portanto, também lá onde

somos vítimas sem ajuda, lá a vida pode ainda sempre se transformar numa vida

plena de sentido; pois então nós podemos realizar até o mais humano no homem e

simultaneamente dar testemunho das mais humanas capacidades humanas:

transformar uma tragédia em triunfo, um sofrimento em uma realização humana:

Georg Moser reproduz uma história contada por um médico: poucos anos após a

Segunda Guerra Mundial. Um médico encontra uma mulher judia que usava uma

pulseira com os dentes de leite de seus filhos moldados em ouro. „Uma bela

pulseira‟, notou o médico. „Sim‟, respondeu a mulher; „este dentinho é de Mirian,

este de Esther e este de Samuel...‟Ela falou de seus filhos por ordem de idade. „Nove

filhos‟, completou, „ e todos foram arrastados para a câmara de gás‟. Consternado, o

médico perguntou: „Como a senhora pode viver com tal pulseira?‟ Com domínio de

si a mulher respondeu: „Em Israel assumi a direção de uma casa de

órfãos‟...”(FRANKL, 1990, p. 48).

No exemplo acima, temos uma mãe que perdeu todos os seus filhos inocentes em

virtude da tirania dos nazistas. Para essa mãe não existe mais esperança de trazer os filhos de

volta, pois morreram na câmara de gás, o que existe para ela é o sofrimento da perda dos

filhos e o sofrimento de tamanha injustiça. Porém a mãe transformou sua tragédia pessoal em

triunfo, converteu seu sofrimento em ajuda a outras crianças. Embora não pudesse mudar a

situação que estava vivendo, que é morte dos filhos, ela mudou a si própria, não parando no

sofrimento, mas indo em direção a outras pessoas que precisavam de ajuda. É isso que

consiste o terceiro caminho proposto por Frankl para se encontrar o sentido da vida “...a

possibilidade de transfigurar o sofrimento pessoal em uma realização humana, a vida é

potencialmente plena de sentido até o fim...”(FRANKL, 1990, p. 48). Até nos momentos mais

difíceis ou irreversíveis podemos ampliar nosso raio de possibilidades, encontrando até

mesmo nesses momentos sentido para vida.

Frankl insiste que o homem deve ampliar sua visão para além do seu ego, para

encontrar o sentido, dedicando-se a um trabalho que possa ajudar a outras pessoas,

vivenciando algo ou amando alguém. Pode encontrar o sentido mesmo nas situações de

sofrimento, como as doenças irreversíveis, não deixando essas situações limites controlarem

sua vida, mas encontrando possibilidades de vida mesmo aí onde existe o sofrimento

inevitável.

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O homem é um ser que tem a possibilidade de ir além de si mesmo, ultrapassando-se a

cada passo, é um ser que tem a possibilidade de ir libertando-se daquilo que o determina, pode

ultrapassar sua condicionalidade na medida em que se torna ser-para-os-outros. O homem,

sendo aberto para o mundo e aproveitando cada situação que se apresenta a ele, tem a

possibilidade de encontrar o sentido para sua vida. Cada situação se mostra de forma única,

irrepetível, de forma que, se a pessoa “aproveita” o que se apresenta a ela, vai estar realizando

algo único e de forma original, o sentido para sua vida. Por isso o sentido é também algo que

não pode ser dado, é a própria pessoa que deve descobrir o sentido da vida, que deve aprender

a responder à vida, conforme esta lhe faça perguntas.

Enfim, ao terminar este capítulo, percebemos que o sentido identifica-se com as

motivações que encontramos na vida, e essas motivações podem ser encontradas nas diversas

situações a que nos vemos confrontados. É a partir daí que percebemos que o sentido da vida

é encontrado na maneira como nos relacionamos com o mundo. Podemos relembrar as

palavras usadas no início deste capítulo: “o homem que vive no mundo é questionado pelas

situações e também questiona as situações; é dessa relação que temos possibilidade de

encontrar o sentido para vida.”

O próprio Frankl, ao apresentar sua visão antropológica e os três caminhos de

descoberta de sentido da vida, deixa entrever que o sentido só pode ser encontrado quando

nos abrimos ao outro e ao mundo. Daí, como já vimos no início deste capítulo, o sentido para

vida não é algo ou uma coisa, mas envolve o movimento do homem para o mundo e do

mundo para o homem, e é dessa relação que se descobrem as diversas circunstâncias a se

cumprirem na vida. Porém retornam as questões levantadas no início deste capítulo. Em

nossos dias somos envolvidos por um turbilhão de informações e novidades, pela correria do

dia-a-dia. Como uma pessoa envolvida com o mundo e respondendo às diversas

circunstâncias pode saber o sentido de sua vida? Como podemos apreender o sentido da vida

vivendo dentro do movimento da própria vida? Como podemos saber qual é o sentido para

nossa vida, envolvidos com as situações que mudam constantemente?

É na tentativa de encontrar respostas para essas questões que examinaremos, no

próximo capítulo, as noções de mimesis e narrativa, segundo Paul Ricoeur. Desenvolvendo

essas questões tentaremos encontrar caminhos para refletir sobre a questão do sentido da vida

em nossos dias.

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II Capítulo – A noção de narrativa em Paul Ricoeur.

Tendo percorrido a questão do sentido da vida em Viktor Frankl, descobrimos três vias

que oferecem possibilidades de encontrar o sentido da vida, mencionadas no capítulo anterior.

Esse sentido pode ser encontrado dedicando-se a uma obra, amando alguém ou mudando de

atitude perante algum sofrimento inevitável. Porém, mesmo Viktor Frankl definindo esses

caminhos, a descoberta do sentido da vida ainda fica aberta. É a partir daí que levantamos

mais uma vez as questões: Como uma pessoa envolvida com o mundo pode saber qual é o

sentido de sua vida? Como podemos saber qual o sentido para nossa vida, envolvidos com as

diversas situações do cotidiano, que mudam constantemente?

Frankl é categórico em dizer que não podemos receitar o sentido que uma situação

deveria ter para uma outra pessoa; não é possível obter esse sentido através de uma

prescrição. É a própria pessoa que deve descobrir o sentido da sua vida a cada instante. Aqui

levantamos outras perguntas a partir da leitura de Ricoeur: O ser humano não poderia

construir um sentido narrando a própria vida, sua história? Como a narrativa ajudaria o

homem a construir um sentido para a vida?A narrativa poderia nos ajudar a apreender o

sentido para nossas vidas?

Paul Ricoeur nos introduz numa noção de mimesis que nos permitirá responder às

nossas perguntas, esclarecendo o lugar que as narrativas têm na vida humana. Segundo

Ricoeur, a narrativa é importante para nós porque faz a mediação entre uma experiência

anterior à sua configuração e uma experiência posterior a que se dirige, onde ela se completa e

se realiza. (cf. GENTIL, 2004, p.109). No percurso da discussão da noção de narrativa de

Ricoeur, refletiremos sobre a composição narrativa que tem o papel de mediação entre uma

experiência anterior à sua configuração e uma experiência posterior a quem se dirige.

Examinaremos que experiências são essas mencionadas no parágrafo acima e ainda

tentaremos aproximar a questão do sentido da vida a partir de Frankl com a noção de narrativa

de Ricoeur.

Ricoeur escreveu muitas obras importantes, dentre as quais três nos ajudarão de modo

especial no desenvolvimento deste capítulo: a coletânea de ensaios hermenêuticos sob o título

Do texto à ação: ensaios de hermenêutica II (1986), a Teoria da interpretação e Tempo e

Narrativa I. A partir dessas obras tentaremos compreender a noção de texto, a de composição

narrativa e a sua relação com o tempo e com isso tentaremos fazer a ligação da narrativa com

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a vida humana e com o sentido da vida. É relacionando a narrativa com a vida humana que

tentaremos encontrar possibilidades para descobrir um sentido para a vida.

Pode-se perguntar por que entrar na questão do texto para tentar aí encontrar

possibilidades para o sentido da vida. Segundo Ricoeur não há dúvida de que as histórias são

contadas e de que a vida é vivida, mas através do processo de composição narrativa é possível

refigurar a vida. (cf. RICOEUR, 1991, p. 26). Se podemos refigurar a vida pela narrativa,

temos a possibilidade de articular o sentido da vida pela narração, essa é nossa hipótese.

Mas, antes de compreendermos como se dá uma refiguração e uma composição

narrativa, é necessário conhecermos a noção de texto e, dentro dessa noção, a passagem do

discurso oral para o discurso como obra. Essa passagem torna-se importante para

compreendermos o que é um texto e como acontece uma composição narrativa e, o mais

importante, como podemos encontrar possibilidades de sentido para vida.

É com a coletânea de ensaios hermenêuticos Do texto à ação que daremos os nossos

primeiros passos na elaboração das noções de texto, mundo do texto e narrativa. Um texto nos

dá a possibilidade de encontrar histórias já vividas, histórias passadas e histórias que podem

ser atualizadas no ato de leitura; é a partir dessas histórias que tentaremos encontrar

possibilidades de sentido para vida. É importante conhecermos os critérios de textualidade,

pois esses nos ajudam a entender o que é um texto e aí, podemos encontrar pistas para o

sentido da vida.

Segundo Ricoeur são cinco os pontos para a compreensão de um texto: a realização da

linguagem como discurso, o discurso como obra, a relação da fala com a escrita no discurso e

nas obras de discurso, a obra como projeção de um mundo (o mundo do texto) e mediação

para compreensão de si. (cf. RICOEUR, 1989, p. 110). Com o desenvolvimento desses

pontos, faremos a passagem do discurso oral para o discurso como texto, lembrando que é no

texto como composição narrativa que pretendemos encontrar possibilidades de elaboração de

sentido para vida.

2.1 Do discurso oral ao texto.

Antes de conhecermos o discurso escrito como texto, cabe pensar o discurso que é

realizado oralmente. Para conhecermos bem o discurso escrito devemos conhecer a passagem

da língua para o discurso.

Segundo Ricoeur significado ou “...o logos da linguagem requer, pelo menos, um

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nome e um verbo e é o entrelaçamento destas duas palavras que constitui a primeira unidade

da linguagem e do pensamento...”(RICOEUR, 2000, p.13). Para esclarecer melhor este

primeiro enunciado podemos fazer uma proposição, o cachorro é.... A partir deste exemplo

temos um discurso sem mesmo precisar terminar a frase, pois temos o nome (cachorro) e um

verbo ( é ). Dessa união abre-se um mundo de possibilidades, ou seja, o cachorro pode ser

tudo, feio, gordo, amarelo, preto, não importa a predicação que possa ter, o importante é que

no discurso temos o nome, que tem um significado e um verbo, que tem uma indicação do

tempo. É com a união do nome com o verbo que acontece o discurso. Pois, segundo Ricoeur,

o discurso “...exige dois signos básicos – um nome e um verbo que se conectam numa síntese

que vai além das palavras...”(RICOEUR, 2000, p.13). O nome e o verbo não são apenas

estrutura de uma língua, pois tanto no nome como no verbo encontramos significações e

indicação do tempo, que permitem a um discurso de ir para além das próprias palavras, além

da estrutura da língua, da langue. Mas, para compreendermos melhor como se realiza o

discurso, vamos continuar aprofundando nosso percurso.

O discurso, afirma Ricoeur, “...oferece-se como acontecimento: alguma coisa acontece

quando alguém fala.”(RICOEUR, 1989, p.111). Quando alguém está enunciando algo,

algo acontece e este acontecimento, segundo o autor, primeiramente “...se realiza

temporalmente e no presente...”(RICOEUR, 1989, p. 111). Para explicar essa afirmação

podemos novamente fazer uso do exemplo anterior O cachorro é.... Uma vez feito este

enunciado ou uma vez expresso este discurso – o cachorro é... – é necessário que haja alguém

que tenha enunciado esse discurso. Por isso podemos dizer que uma vez feito o enunciado,

que indica que alguém está falando ou expressando esse discurso, esse alguém está situado

em algum lugar, está situado no tempo, por isso o discurso se realiza no tempo e se utiliza de

verbos. O “...acontecimento consiste em que alguém fala, alguém se exprime ao

falar...”(RICOEUR, 1989, p. 112). Assim, tomar essa dimensão de linguagem como

acontecimento indica que o discurso se realiza temporalmente, no presente e que existe

alguém que está falando, existe uma pessoa que fala.

O discurso também é um acontecimento porque, quando o falante se expressa, seu

discurso está ligado a alguma coisa, é sempre sobre alguma coisa, refere-se a alguma coisa.

Diz Ricoeur: “...o discurso é sempre sobre alguma coisa: ele refere-se a um mundo que

pretende descrever, exprimir ou representar (...) é a chegada à linguagem de um mundo por

intermédio do discurso...”(RICOEUR, 1989, p. 112). Aqui o discurso é acontecimento, é a

chegada à linguagem de um mundo que pretende descrever, expressar. Nesse sentido o

discurso não é só uma condição prévia de comunicação à qual fornece os seus códigos, é no

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discurso que também se trocam as mensagens. No discurso exprime-se um mundo, que se

pretende descrever ao outro, a outra pessoa. O discurso “...não tem apenas um mundo, mas

tem um outro, uma pessoa, um interlocutor ao qual ele se dirige; o acontecimento, (...) é o

fenômeno temporal da troca, o estabelecimento do diálogo...”(RICOEUR, 1989, p. 112).

Enfim, sintetizando os traços que transformam o discurso em acontecimento, podemos

dizer que o discurso é acontecimento porque acontece no tempo, no presente, ele indica que

existe alguém ao falar e, quando esse alguém se exprime, expressa um mundo que pretende

descrever, dirigindo-se a uma outra pessoa. Segundo Ricoeur, quando o falante expressa o

mundo que pretende descrever, estará expressando aquilo que ele entende do mundo, seus

significados; podemos dizer que uma vez que alguém esteja dizendo algo, transmite um

conjunto de significações. Assim o discurso, além de ser efetuado como acontecimento,

também “...é compreendido como significação...”(RICOEUR, 1989, p. 112). Significação

aqui é “...o que o falante quer dizer, isto é, o que intenta dizer e o que a frase

denota...”(RICOEUR, 2000, p. 24).

Portanto, na realização da linguagem como discurso, a partir de Ricoeur, vemos que

existe alguém que se expressa ao falar, e esse alguém está situado no tempo e num lugar

determinado. Se esse alguém está situado no tempo e em um lugar determinado, ele tem uma

história, tem sua maneira de compreender e ver o mundo. Uma vez que esse alguém fala, seu

discurso se refere a alguma coisa, a um mundo que pretende descrever, e é na descrição desse

mundo que o falante transmite a outra pessoa ou outras pessoas um conjunto de significações

que quer transmitir.

Podemos dizer que no discurso encontramos uma estrutura gramatical, fonemas,

tempos verbais, mas também por trás dessa estrutura, existe alguém que se exprime ao falar.

Esse alguém (locutor) ao falar descreve um mundo, transmite um mundo, é nessa descrição

que o locutor emite o seu entendimento daquilo sobre o que se expressou, emite o que quer

dizer, seus significados. Como já afirmamos acima, os significados que o locutor transmite

são dirigidos para um ouvinte. O discurso “...é dirigido a alguém. Há outro falante que é o

endereçado do discurso. A presença do par, locutor e ouvinte, constitui a linguagem como

comunicação...”(RICOEUR, 2000, p. 26). Nesse acontecimento entre o locutor e o ouvinte,

em que o significado da experiência pessoal do locutor pode ser transmitido, comunicado, ele

pode tornar público o sentido ou a significação de sua experiência pessoal. “...A experiência

experienciada, como vivida, permanece privada, mas o seu sentido, a sua significação torna-se

pública...”(RICOEUR, 2000, p. 28). Uma vez que a significação da minha experiência

ultrapassa o domínio privado, tornando-se pública, a significação tem a possibilidade de ir

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além do diálogo intersubjetivo, pois pode se dirigir a uma infinidade de ouvintes. Porém, o

significado da experiência pessoal do locutor, ao ser transmitido oralmente a uma infinidades

de ouvintes, tende a desvanecer. Segundo Ricoeur, o discurso se dá como „evento‟,

acontecimento singular, imediato, relativo a uma situação presente entre o locutor e o ouvinte,

porém as significações transmitidas oralmente tendem a desaparecer, e somente através da

escrita é possível tornar duráveis as significações do discurso.

Ricoeur afirma: o “...discurso (...) pode desvanecer enquanto fala ou fixar-se como

escrita...”(RICOEUR, 2000, p. 38). Neste sentido, “...a escrita pode salvar a instância do

discurso porque o que ela efectivamente fixa não é o evento da fala, mas o „dito‟ da fala, isto

é, a exteriorização intencional constitutiva do par „evento-significação‟...”(RIOCEUR, 2000,

p. 39). Assim, a permanência de significações para além do imediato (entre locutor e ouvinte)

torna-se possível através da escrita. Mas, com a escrita, a situação dialógica entre locutor e

ouvinte desaparece, e são as significações ou o “dito da fala” do autor que fica fixado. É

exatamente aí que vemos possibilidades de articulação de um sentido da vida e são essas

possibilidades que pretendemos desenvolver ao longo deste trabalho.

Quando se passa da fala para a escrita, ocorre o distanciamento do significado do texto

em relação à intenção do autor, pois já não existe um diálogo imediato entre interlocutores

que compartilham uma mesma situação. Afirma Ricoeur que a “...escrita torna o texto

autônomo em relação à intenção do autor. O que o texto significa já não coincide com aquilo

que o autor quis dizer...”(RICOEUR, 1989, p. 118). Em outras palavras, o texto agora possui

um significado próprio, desligado da significação do seu autor.

“...com o discurso escrito, a intenção do autor e o significado do texto deixam de

coincidir. A dissociação da significação verbal do texto e da intenção mental do

autor dá ao conceito da inscrição o seu significado decisivo, para além da mera

fixação do discurso oral prévio. A inscrição torna-se sinônimo de autonomia

semântica do texto, que resulta da desconexão da intenção mental do autor

relativamente ao significado verbal do texto. Em relação ao que o autor quis dizer e

ao que o texto significa. A carreira do texto subtrai-se ao horizonte finito vivido pelo

seu autor. O que o texto significa interessa agora mais do que o autor quis dizer,

quando o escreveu.”(RICOEUR, 2000, p.41)

O discurso escrito, distanciando-se de seu autor, ganha autonomia tendo agora várias

significações fixadas, que podem ser apropriadas por um ou vários leitores. É apropriando-nos

de um texto que temos a possibilidade de encontramos um „mundo‟ próprio, o mundo texto. É

o mundo do texto que pretendemos examinar no próximo ponto.

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2.2 O mundo do texto

Como já afirmamos acima, o discurso, ao se fixar como escrita, começa a separar-se

da intenção do seu autor. Podemos dizer que, em um discurso oral, o sentido de referência

pode ser resolvido dentro do diálogo, através da função de referência ostensiva do discurso,

assim denominado pelo autor; A“...referência resolve-se no poder de mostrar uma realidade

comum aos interlocutores (...) Pode-se situá-la em relação à única rede espácio-temporal à

qual pertencem os interlocutores...”(RICOEUR, 1989, p. 121). Assim, no discurso oral, é

possível mostrar a coisa referida, é possível esclarecer a que se refere o locutor através de

algum gesto, de alguma informação a mais, através de descrições bem definidas e ainda

através de identificações singulares que ocorrem dentro do aqui e agora situacional. (cf.

RICOEUR, 2000, p. 46). As referências do discurso oral estão na situação que é comum ao

locutor e ao ouvinte.

No discurso escrito, não temos a situação comum como a que existe entre o locutor e o

ouvinte. Afirma Ricoeur:

“A ausência de uma situação comum gerada pela distância espacial e temporal entre

o escritor e o leitor; o cancelamento do aqui e agora absoluto pela substituição das

marcas externas materiais para a voz, a face e o corpo do locutor como a origem

absoluta de todos os lugares no espaço e no tempo; e a autonomia semântica do

texto que o separa do presente do escritor e o abre a um âmbito indefinido de leitores

potenciais num tempo indeterminado – todas estas alterações da constituição

temporal se reflectem em alterações paralelas do carácter ostensivo da referência.”

(RICOEUR, 2000, p. 47)

Segundo Ricoeur o discurso passa por dois níveis; o primeiro nível é quando existe

uma situação comum entre os interlocutores, quando o caráter ostensivo é possível numa

“...rede única do espaço e do tempo...”(RICOEUR, 2000, p. 48). Neste nível encontram-se o

discurso oral e os textos descritivos. Falar de textos descritivos é como entrar em uma linha

tênue entre o discurso descritivo e o discurso como obra, pois ambos são textos, são

delimitados, possuem uma totalidade, porém o discurso descritivo são textos que

“...reestruturam simplesmente para seus leitores as condições da referência

ostensiva. Cartas, relatos de viagens, descrições geográficas, diários, monografias

históricas e, em geral, todas o equivalente da referência ostensiva no modo de „como

se‟ („como se lá estivesses‟), graças aos procedimentos ordinários da identificação

singular...”(RICOEUR, 2000, p. 47).

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Através da escrita descritiva é possível manter não uma referência ostensiva à

situação, mas demonstrar as referências através de relatos descritos da realidade. É nesse

sentido que é possível identificar várias referências de fatos históricos em relatos históricos.

O segundo nível é quando a referência situacional ou não-situacional não é mais

possível; é quando a função ostensiva do discurso é abolida, pois já não é possível o locutor

explicar suas intenções, não existe mais uma “...situação comum ao escritor e ao leitor; ao

mesmo tempo, as condições concretas do acto de mostrar já não existem...”(RICOEUR, 1989,

p. 121). O autor desaparece e o discurso escrito ganha autonomia, passa a fazer referência a

um mundo próprio. É esse mundo do discurso escrito que pretendemos conhecer e procurar aí

possibilidades de um sentido para vida.

O texto ganha autonomia em relação ao seu autor, tem significações próprias e, ao

receber uma codificação própria, uma composição original, torna-se obra.

“...obra é uma seqüencia mais longa que a frase, e que suscita um problema novo de

compreensão relativo à totalidade finita e fechada, que a obra como tal constitui. (...)

a obra é submetida a uma forma de codificação que se aplica à própria composição e

que faz do discurso ou uma narração, ou um poema, ou um ensaio, etc.; é esta

codificação que é conhecida pelo nome de gênero literário por outras palavras,

pertence a uma obra filiar-se num gênero literário. Finalmente, uma obra recebe uma

configuração única, que a liga a um indivíduo e a que se chama o

estilo.”(RICOEUR, 1989, p. 115).

Na obra a linguagem foi moldada, trabalhada como que por um escultor, tornando-se

única, com significações próprias. É pelo seu estilo próprio que a obra individua seu autor

dentre diversos autores e também demonstra sua individualidade enquanto obra que foi

produzida por seu autor, ou seja, a “...configuração singular da obra e a configuração singular

do autor são estritamente correlativas. A assinatura é a marca desta relação.”(RICOEUR,

1989, p. 117). Desta maneira a obra está ligada ao seu autor, porém a obra molda, organiza a

linguagem, dando a esta uma totalidade finita, onde é abolido o caráter ostensivo da referência

do discurso; a obra com sua originalidade abole a referência ao autor, tornando possível o que

Ricoeur chama de literatura (cf. RICOEUR, 1989, p. 121). Trata-se da linguagem que foi

moldada, trabalhada como que por um escultor, tornando-se gênero literário, com

significações próprias.

“Mas, é essencialmente com o aparecimento de certos gêneros literários, geralmente

ligados à escrita, mas não necessariamente tributários da escrita, que esta abolição

da referência ao mundo dado é levada às suas condições mais externas. O papel da

maior parte da nossa literatura, parece, é destruir o mundo. Isso é verdade para a

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literatura de ficção – conto, novela, romance, teatro, mas também para toda literatura

que podemos dizer poética, em que a linguagem parece glorificada para si mesma, à

custa da função referencial do discurso vulgar.”(RICOEUR, 1989, p. 121).

A obra, uma vez libertada da tutela da referência ostensiva do discurso, traz consigo

significações próprias originais, nascendo assim as literaturas. Segundo Ricoeur, é com a

abolição do caráter ostensivo do discurso que torna possível o fenômeno chamado literatura.

É aqui que a abolição da referência ostensiva do discurso é levada ao extremo, nascendo as

literaturas de ficção como: os contos, as novelas, os romances, as peças teatrais, enfim toda a

literatura poética.

Segundo Ricoeur, o fato de o texto abolir completamente a referência ostensiva do

discurso, tornando-se literatura, não significa que este não venha a cair na realidade ou não

leve à realidade, pelo contrário, o texto atinge aí um nível mais fundamental, mais profundo.

Afirma ele:

“Aqui, a minha tese é a de que a abolição de uma referência de primeira categoria,

abolição operada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade para que

seja libertada uma referência de segunda categoria que atinge o mundo, não apenas

ao nível dos objectos manipuláveis, mas ao nível que Husserl designava pela

expressão Lebenswelt e Heidegger pela de ser-no-mundo.” (RICOEUR, 1989, p.

121).

Os textos literários, poéticos falam de um mundo próprio, que não é manipulável,

como acorre com os textos descritivos, trata-se um mundo que escapa da referência imediata,

atingindo outro nível da realidade, que se lança para fora do próprio texto com a apropriação

do leitor.

É um mundo “...tal que eu possa habitar e nele projectar um de meus possíveis mais

próprios...”(RICOEUR, 1989, p. 122). O mundo que o autor afirma que podemos habitar, é a

proposta de mundo que nasce a partir da apropriação do texto por meio da leitura, onde

podemos encontrar várias possibilidades para nossas próprias vidas. Esse mundo é chamado

de mundo do texto; o mundo do texto se distancia da linguagem cotidiana, introduz através da

ficção novas possibilidades de ser-no-mundo, projeta novo modo de estar-no-mundo. (cf.

RICOEUR, 2000, p. 122).

Podemos perguntar: Não seria no mundo do texto que encontraríamos um sentido para

vida que estamos à procura? Podemos ter a ousadia de dizer que sim, pois a obra traz um

mundo próprio em que podemos entrar ao nos debruçar sobre ela, a obra traz uma realidade

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própria com a qual podemos nos relacionar e encontrar possibilidades que podem motivar

nossas vidas, ou pelo menos situar-nos na busca de um sentido para nossas vidas. Recordando

o primeiro capítulo, quando vimos que Frankl diz que o sentido da vida é encontrado no

confronto com as diversas situações, aqui a obra é uma situação que serve de experimento

para encontrarmos possibilidades de sentido para a vida, nesta situação temos um universo de

significações a serem encontradas.

Para habitar a obra e encontrar aquilo que nos é próprio, é necessária a leitura. Sem um

“...leitor que a acompanhe, não há ato configurante em ação no texto; e sem leitor que se

aproprie dele, não há mundo diante do texto...”(RICOEUR, 1997, p. 283). É através da

apropriação do texto, que lhe apresenta um mundo próprio, que o leitor torna-se capaz de

conhecer a si mesmo, “...nós apenas nos compreendemos pela grande digressão dos signos de

humanidade depositados nas obras de cultura...”(RICOEUR, 1989, p. 123). Pela apropriação

do texto temos a oportunidade de encontrar significações para nossas próprias vidas.

Lembramos que o mundo do texto, como já afirmamos acima, é uma totalidade delimitada,

dotada de significação que não se refere mais ao seu autor; apresenta um mundo próprio, é

algo objetivo, passível de ser apropriado por qualquer leitor, em qualquer lugar e, por isso,

quando nos aproximamos de uma obra por meio da leitura, apropriamo-nos de uma proposta

de mundo, como afirma Ricoeur:

“Aquilo de que eu, finalmente, me aproprio, é uma proposta do mundo; esta não está

atrás do texto, como estaria uma intenção encoberta, mas diante dele como aquilo

que a obra desenvolve, descobre, revela. A partir daí, compreender é compreender-

se diante do texto. Não impor ao texto a sua própria capacidade finita de

compreender, mas expor-se ao texto e receber dele um si mais vasto que seria a

proposta de existência, respondendo da maneira mais apropriada à proposta do

mundo...”(RICOEUR, 1989, p.124).

Temos a possibilidade de compreender-nos, não através de um ego inflado ou fixado,

pronto e acabado, mas mediante uma abertura que Ricoeur nos propõe, a abertura ao texto. É

na relação do leitor com o texto que nasce o mundo do texto, e é nesse mundo que podemos

encontrar possibilidades de um sentido para vida. É importante ressaltar que o leitor, ao se

relacionar com o texto, deve estar aberto para receber do texto novas propostas de mundo e

não querer impor a “...sua própria capacidade finita de compreender (...). Leitor, eu só me

encontro quando me perco...”(RICOEUR, 1989, p. 124).

A cada leitura e releitura, tanto do próprio autor quanto de uma pessoa qualquer que

saiba ler, nasce do texto um mundo como um reino de possibilidades. Assim podemos

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novamente recordar que Viktor Frankl afirma que o sentido “...não significa algo abstrato; ao

contrário, é um sentido totalmente concreto, o sentido concreto de uma situação com a qual

uma pessoa também concreta se vê confrontada...”(FRANKL, 1992, p. 79). É da relação da

pessoa com a situação concreta que se desperta o sentido; a pessoa com sua história, com seu

cotidiano relaciona-se com as diversas situações que são objetivas, e assim constrõem-se

possibilidades. Da mesma forma, o leitor, com seu mundo próprio e sua abertura ao novo,

relacionando-se com o texto, tem a possibilidade de encontrar várias significações, e até

podemos dizer que os mundos se abrem criando novos mundos possíveis pela “fusão de

horizontes”.

Ricoeur nos afirma que o mundo que o leitor conhecerá por meio da leitura é a

proposta de um mundo que nasce a partir da apropriação do texto. O mundo do texto não é o

do discurso vulgar da linguagem cotidiana, é um mundo nascido a partir das obras de

literárias. Como já afirmamos acima, o caráter ostensivo da referência do discurso é abolido,

moldando a linguagem e dando a esta, originalidade e significações próprias, elevando-a à

literatura que “...podemos dizer poética, em que a linguagem parece glorificada para si

mesma, à custa da função referencial do discurso vulgar.”(RICOEUR, 1989, p. 121). É na

literatura de ficção que temos a possibilidade de apreender o real por meio da imaginação, ou

melhor, por meio de variações imaginativas (cf. RICOEUR, 1995, p. 41).

É através da imaginação encontrada nas literaturas de ficção que o leitor torna-se

capaz de refigurar seu mundo, poderíamos até mesmo dizer, torna-se capaz de encontrar um

sentido para a sua vida; pois pela imaginação acontece um “...jogo livre com possibilidades,

num estado de não-compromisso em relação ao mundo da percepção. É neste estado de não

compromisso que ensaiamos idéias novas, valores novos, novos modos de estar no

mundo...”(RICOEUR, 1989, p. 220). Podemos dizer que o leitor, ao fazer a leitura de uma

obra de ficção, mergulhando no mundo proposto da composição, fazendo uso de sua

imaginação pessoal e das variações imaginativas encontradas na obra de ficção, encontra a si

próprio, podendo encontrar um sentido para sua vida, pois a cada ato de leitura, refaz sua

própria vida, relacionando a si mesmo com a proposta de mundo que nasce das obras de

ficção. Daí podemos afirmar que o leitor, ao “mergulhar” em uma obra de ficção, pode

encontrar um sentido para sua própria vida a partir da relação com a obra. Assim, seguindo as

palavras de Ricoeur, afirmamos: “...o trabalho de configuração que a ficção persegue no plano

imaginário não deixa de contribuir para a refiguração do mundo do leitor...”(RICOEUR,

1995, p. 41).

Por fim, vemos que, no processo de leitura e releitura, temos a possibilidade de ir além

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do imediato graças à distanciação feita pela literatura de ficção, representada pelos contos,

novelas, romances, peças teatrais e todas as narrativas que podemos chamar de poéticas. (cf.

RICOEUR, 1989, p. 121). O próprio Ricoeur afirma:

“...a ficção é o caminho privilegiado de redescrição da realidade e que a linguagem

poética é aquela que, por excelência, opera aquilo a que Aristóteles, ao reflectir

sobre a tragédia, chamava de a mimesis da realidade; a tragédia, na verdade, apenas

imita a realidade porque a recria por meio de um muthos, de uma „fábula‟, que

atinge sua essência mais profunda.” (RICOEUR, 1989, p. 122).

A partir desta afirmação podemos dizer que as obras de ficção, como as narrativas de

ficção, os contos, as novelas, os poemas, através de construções imaginárias, através da

linguagem poética, têm a capacidade de apresentar-nos uma nova proposta de mundo,

podendo redescrever a realidade, pois a literatura imita a realidade. Afirma Ricoeur, “...a

primeira forma pela qual o homem tenta compreender e dominar o “diverso” do campo

prático é oferecer-se uma representação fictícia desse campo prático...”(RICOEUR, 1989, p.

222).

Por meio de representações fictícias temos a possibilidade de dominar e compreender

o diverso que são as ações humanas. Assim, através das obras de ficção, que têm a capacidade

de imitar a realidade, como mimesis, por meio das construções imaginárias, podemos imitar o

real e criar novas possibilidades, podemos encontrar caminhos para vida e, dentro desses

caminhos, podemos encontrar um sentido para vida. A ficção nos dá possibilidades, através de

variações imaginativas, de encontrarmos um mundo significativo.

Através da leitura das obras de ficção, podemos refigurar nossa própria vida. Porém,

para as obras de ficção poderem redescrever as ações humanas, precisam ser organizadas,

articuladas com começo, meio e fim; a estrutura narrativa fornece à ficção as técnicas de

abreviação, de articulação e de condensação pelas quais se obtém o efeito icônico das ações

humanas (cf. RICOEUR, 1989, p. 222). Uma obra de ficção consegue imitar uma ação

humana porque recria as ações, através de uma composição lingüística bem organizada e

articulada, a estrutura narrativa.

É da narração que procede a capacidade de abrir e desenvolver novas dimensões da

realidade, pois uma narração, além de apresentar uma estrutura bem organizada, está ligada ao

tempo, à história dos homens e à vida, como mostraremos a seguir.

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2.3 Da discordância à concordância.

Segundo Ricoeur a narrativa está ligada ao tempo, como já nos referimos no início

deste capítulo, o “...mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo

temporal...”(RICOEUR, 1994, p. 15). De que maneira a narrativa está ligada ao tempo? Qual

a sua implicação dessa ligação para a vida? É na resposta a essas perguntas que encontramos

possibilidades de articular um sentido da vida através das narrativas.

Não podemos nos esquecer de que estamos no tempo e somos parte dele. Assim,

quando contamos ou acompanhamos uma história, o contar e o acompanhar acontecem no

tempo, acontecem em nossas vidas. Como diz Ricoeur, falamos de uma “história de vida”

para caracterizar o intervalo entre o nascimento e a morte (cf. RICOEUR, 1991, p. 20). Nesse

intervalo temos uma história que pode ser narrada, contada. Um sujeito pode se sentir

pertencente a uma história, como personagem ou herói de sua própria história (cf. GENTIL,

2008, p. 159). O sujeito, contando sua história de vida, lança-se para além de sua existência

meramente biológica, meramente corporal ganhando uma história. Por isso, quando falamos

de narração, podemos também falar de vida, vida contada por meio da narrativa. (cf.

GENTIL, 2008, p. 159).

Para entendermos melhor a relação da narrativa com a vida, acompanharemos

primeiramente como Ricoeur aborda a questão do tempo nas Confissões de Agostinho e como

ele relaciona esta obra com a narrativa, tomando como referência a Poética de Aristóteles, em

seguida mostraremos qual a implicação com a vida.

Agostinho desenvolve a questão sobre a natureza do tempo sem se preocupar com a

questão narrativa, e Aristóteles por sua vez desenvolve a questão da narrativa sem se

preocupar com a questão do tempo. É a partir dessas duas teorias independentes que Ricoeur

fará uma ponte, estabelecendo uma ligação entre narrativa e tempo (cf. RICOEUR, 1994,

p.16). É explorando a ligação entre a narrativa e o tempo que desenvolveremos a ligação da

narrativa com a vida. Lembramos que, no decorrer deste capítulo, assinalamos que os diversos

gêneros literários como a narrativa já trazem significações e possibilidades de sentido para

vida. As composições lingüísticas encontradas nas estruturas narrativas dão possibilidade de

refigurar o mundo do leitor no ato de leitura, relacionando suas idéias com as idéias das obras,

e podem dessa forma levar o leitor a rever sua própria vida. Porém, para mostrarmos como as

narrativas são capazes de refigurar o mundo do leitor, possibilitando um sentido para vida, é

necessário conhecer como Ricoeur faz a leitura do tempo em Agostinho e como a relaciona

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com a Poética de Aristóteles.

Segundo Ricoeur, em Agostinho encontramos confrontados dois movimentos da alma

chamados de intentio e de distentio. São esses movimentos da alma que o filósofo aproximará

do mythos e da peripeteia de Aristóteles. (cf. RICOEUR, 1994, p. 19). Agostinho, convertido

ao Cristianismo, relata sua experiência com Deus e ao mesmo tempo mostra uma alma

angustiada que busca saciar sua sede de verdade em Deus. Afirma: “...esse homem,

particulazinha da criação, deseja louvar-vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos

louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa

em Vós.”(AGOSTINHO, 1999, p. 37). Este trecho é parte da longa narração biográfica de

Agostinho que, além de abordar questões filosóficas, expressa uma busca pessoal, mostra-se

como uma pessoa que também busca suas significações, busca motivos para sua vida. É a

partir dessa busca que Agostinho começa a levantar suas questões sobre o tempo.

“SENDO VOSSA a eternidade, ignorais porventura, Senhor, o que eu Vos digo, ou

não vedes no tempo o que se passa no tempo? Por que razão Vos narro, pois, tantos

acontecimentos? Não é, certamente, para que os conheçais por mim, mas para

excitar o meu afeto para convosco e o daqueles que lêem estas páginas, a fim de

todos exclamarmos: „Deus é grande e digno de todo louvor‟. Já disse e torno a

repetir: Narro estas coisas pelo desejo de Vos amar...”(AGOSTINHO, 1999, p. 310)

Com o trecho acima Agostinho inicia o Livro XI, questionando se Deus conhece o que

se passa no tempo e, ao mesmo tempo, expressa o desejo de amá-lo mais e fazer com que

outros o amem. Agostinho mostra que a questão levantada em sua autobiografia, assim como

a questão do tempo, é uma questão que passa pela sua vida, pela sua busca pessoal. Pensar o

tempo a partir da reflexão de Agostinho é pensar a própria existência, o próprio tempo, a

própria vida. Podemos dizer que o tempo em Agostinho é algo que passa pela narração e por

sua autobiografia, pois o autor, ao mesmo tempo em que procura responder a questão do

tempo, narra sua experiência com Deus, sua busca de compreender a Deus.

Agostinho, ao questionar o tempo, o faz a partir de sua própria vida, a partir de sua

própria história, mostrando um homem em busca de respostas para sua existência e um

homem que usa de argumentos para responder a questões levantadas em seu tempo.

Agostinho levanta a questão:

“Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá

apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu

conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas de que o

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tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos

também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo?

Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já

não sei...”(AGOSTINHO, 1999, p. 322).

Em nosso dia-a-dia falamos do tempo, porém, se formos explicar o tempo, nada

conseguimos dizer. Nossa experiência do tempo é frágil, pois, ao mesmo tempo em que

vivemos no tempo e somos envolvidos por ele, quando tentamos expressá-lo, não

conseguimos. Como falar de um passado que não existe mais, de um futuro que está por vir e

de um presente que não é sempre, que passa?(cf. AGOSTINHO, 1999, p. 322).

Diante dessa questão Ricoeur afirma:

“...o estilo inquisitivo de Agostinho impõe-se: de um lado, a argumentação cética

pende para o não-ser, enquanto uma confiança comedida no uso cotidiano da

linguagem força a dizer, de um modo que não sabemos ainda explicar, que o tempo

é. O argumento cético é bem conhecido: o tempo não tem ser, posto que o futuro

ainda não é, que o passado não é mais e que o presente não permanece.”(RICOEUR,

1994, p. 22).

Agostinho, com seu estilo questionador, não deixa de lado as questões dos céticos que

afirmam o não-ser do tempo, afirmam que o tempo não é. Porém, Agostinho, na busca de

respostas para a argumentação cética, afirma que o tempo é, afirma o ser do tempo fazendo

uso da linguagem. Escreve Agostinho: “Quando dele falamos, compreendemos o que

dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam.”(AGOSTINHO,

1999, p. 322). É declarando-se a favor do ser do tempo, afirmando que o tempo é, que

Agostinho faz uso da linguagem para sustentar a realidade do tempo, pois, se o tempo não

existisse, não poderíamos dizer e nem ouvir sobre ele. Diz Agostinho: “...atrevo-me a

declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se

agora nada houvesse, não existiria o tempo presente.”(AGOSTINHO, 1999, p. 322).

Paul Ricoeur, observando a argumentação de Agostinho, afirma: “...É notável que seja

o uso da linguagem que sustente, por provisão, a resistência à tese do não ser...”(RICOEUR,

1994, p. 22). Ricoeur admira que o uso da linguagem sustente a existência do tempo ainda

que provisoriamente, pois quando falamos que o tempo será, foi, e é, entendemos.

Agostinho, não deixando de lado a argumentação cética, que tende para o não-ser,

questiona:

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“De que modo existem aqueles dois tempos - o passado e o futuro -, se o passado já

não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e

não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente,

para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretérito, como podemos

afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de

existir?...” (AGOSTINHO, 1999, p. 322).

A partir da citação acima, vemos que Agostinho, questionando a natureza do passado,

do futuro e do presente, conclui que o passado já não existe, pois já aconteceu, o futuro não é,

pois ainda não aconteceu, e quanto ao presente, a única coisa que se poderia dizer sobre ele é

que, se se pudesse dividi-lo em pequeninas partes, só a estas poderíamos chamar de presente,

mas estas pequeninas partes passariam tão rapidamente do futuro para o passado que não

poderíamos apreendê-las. Logo, o tempo presente tende também ao não-ser.

Diante da dificuldade em resolver o ser do tempo, é interessante notar a posição de

Agostinho. Embora observe que a argumentação cética tende para não-ser, continua a afirmar

o ser do tempo, fazendo o uso da linguagem, pois, embora perceba que a existência do tempo

tende para o não-ser, percebe também que no nosso cotidiano falamos do tempo, falamos do

passado, do futuro e do presente e ainda falamos de tempo longo e tempo breve. Assim,

embora a argumentação cética possa levar para o não-ser, no dia-a-dia sabemos e falamos do

tempo. Diz Agostinho a respeito do tempo: “Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser

explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”(AGOSTINHO, 1999, p. 322).

No livro Sete aulas sobre linguagem, memória e história, Gagnebin (2005) escreve a

respeito do uso da linguagem na argumentação do filósofo cristão sobre a existência do

tempo:

“...Agostinho diferencia entre a tentativa aporética de explicar a natureza do tempo

e, em contraposição, a nossa fala comum que utiliza sempre essa noção do tempo,

como se soubéssemos, de maneira intuitiva, inconsciente, mas prática, (...) distingue,

portanto, uma prática explicativa, analítica e uma prática comum, cotidiana, mais

fundamental que a primeira, que permite resistir aos sofismas do pensamento

entregue a si mesmo. Com efeito, é essa prática comum que refuta a demonstração

da inexistência do tempo pelos céticos.”(p. 72).

É exatamente por isso que, seguindo a reflexão de Ricoeur sobre a questão do tempo,

afirmamos que Agostinho faz uso da linguagem para sustentar o ser do tempo. Afirma

Agostinho, fazendo uso da linguagem, que dizemos que o tempo pode ser longo ou breve.

Porém, como afirmar que o passado ou o futuro pode ser longo ou breve, sendo que ele não é?

(cf. AGOSTINHO, 1999, p. 325). Diante deste questionamento, que tende para o não-ser do

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tempo como afirmam os céticos, o filósofo levanta a questão: Quem se atreveria a dizer que

não existe o passado, o presente e o futuro como aprendeu desde criança?

É insistindo no ser do tempo que Agostinho afirma que existem fatos futuros e

passados, pois, do contrário, os profetas não poderiam ver o que não existe ainda e os que

narram não poderiam contar veridicamente os fatos passados se não os vissem com a alma.

(cf. AGOSTINHO, 1999, p. 325).

Paul Ricoeur, acompanhando a discussão sobre a natureza do tempo em Agostinho

para que mais adiante possa relacioná-la com a narrativa, percebe que é sempre pelo uso da

linguagem que o filósofo não cai nas malhas do ceticismo. E é através do uso da linguagem

que Agostinho pretende ir mais longe em suas investigações. “Permiti, Senhor, minha

Esperança, que eu leve mais além as minhas investigações...”(AGOSTINHO, 1999, p. 326).

Ricoeur chama a atenção para a pausa que o filósofo faz em reflexões dizendo: “...Isso não é

uma simples habilidade retórica, nem uma invocação piedosa. A essa pausa, com efeito,

segue-se um passo audacioso, que conduzirá (...) à tese tríplice presente...”(RICOEUR, 1994,

p. 26).

Agostinho busca ir mais longe a respeito da natureza do tempo levantando a questão:

Se existem coisas futuras e passadas, como afirmou acima, onde elas se encontram?

Respondendo a esta questão, o filósofo afirma que, apesar de acreditar na existência de coisas

futuras e passadas, ainda não as compreende, mas tentará saber do local onde se encontram,

onde estão. Diz ele,“...Pois, se também aí são futuras, ainda lá estão; e se, nesse lugar são

pretéritas, já lá não estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que

elas sejam, não podem existir senão no presente...”(AGOSTINHO, 1999, p. 326).

Argumentando a favor do futuro, que ainda lá está, e a favor do passado, que já não está aqui,

deseja saber onde eles (futuro e passado) estão sendo, já que o futuro não é e o passado já foi.

Diante da dificuldade em esclarecer a natureza do futuro e do passado, ele afirma que ambos

os tempos não podem existir a não ser no presente. As coisas futuras e passadas, aí não são

futuras nem passadas, mas presentes. É no presente que coisas passadas e futuras existem,

mas como existem elas no presente?

Afirma Agostinho a “...memória relata (...) as palavras concebidas pelas imagens

daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de

vestígio...”(AGOSTINHO, 1999, p. 326). É pela memória do presente que narramos as coisas

passadas, ou seja, pela memória presente voltamos ao passado, porque a memória grava na

alma os acontecimentos que já passaram. Já o futuro “...equivale ao fenômeno de se

apresentarem ao espírito as imagens já existentes das coisas que ainda não

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existem...”(AGOSTINHO, 1999, p. 326). Se esperamos algo, esperamos no presente, mas se

esperamos, ainda não aconteceu ou não existe, porque é futuro. É pela espera do presente que

prevemos as coisas futuras. Quando afirmamos que vemos os acontecimentos futuros, não

vemos propriamente os acontecimentos, pois o futuro ainda não é, senão seria presente, o que

vemos são as “...causas, ou talvez os seus prognósticos já dotados de existência. Portanto,

com relação aos que os vêem, esses acontecimentos não são futuros, mas sim presentes.”

(AGOSTINHO, 1999, p. 326). Se podemos esperar coisas do futuro, é porque já temos

impressões deixadas das coisas na alma, vestígios gravados na alma, imagens do passado

deixadas na alma, que nos ajudam a ter uma pré-percepção das coisas que possam vir a

acontecer. Segundo Ricoeur temos das coisas futuras “...uma pré-percepção que nos permite

„anunciá-las antecipadamente‟...”(RICOEUR, 1994, p. 27). A pré-percepção é o que nos

permite anunciar por antecipação as coisas futuras, o que ainda não é, mas que é antecipado

no presente. Podemos afirmar que é no presente que prevemos ou esperamos o futuro.

Após todo o percurso sobre o passado e o futuro que estão no presente, vemos que

através da memória, recordamos as impressões passadas, que estão na alma e prevemos as

coisas futuras antecipadamente. Segundo Ricoeur, Agostinho nos dá uma solução elegante

para a natureza do tempo, pois, “...confiando na memória o destino das coisas passadas e à

espera o das coisas futuras, pode-se incluir memória e espera num presente ampliado e

dialetizado...(RICOEUR, 1994, p. 28).

É com a memória e a espera, ampliadas e dialetizadas no presente, que Agostinho

afirma a fórmula do tríplice presente:

“...talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas,

presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na

minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas,

visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é

lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são

três.”(AGOSTINHO, 1999, p. 328).

Assim vemos que o tempo, na teoria agostiniana, é algo que se passa na alma, como o

próprio filósofo afirma na citação acima. Resta uma questão a ser resolvida a respeito da

natureza do tempo. Se o tempo nasce daquilo que já não existe, atravessa aquilo que carece de

dimensão, para ir para aquilo que ainda não existe, como afirma Agostinho, como se mede o

tempo?

Segundo o próprio filósofo, o tempo não é cosmológico, mas psíquico, pois acontece

no interior do próprio homem. E é no interior do homem que se mede o tempo: “Em ti, ó meu

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espírito, meço os tempos! Não queiras atormentar-me, pois assim é. Não te perturbes com os tumultos

das tuas emoções. Em ti, repito, meço os tempos. (AGOSTINHO, 1999, p. 336). É a partir do

presente que falamos do passado e do futuro. Na alma medimos as impressões que ficam na

memória, as impressões que permanecem no presente após a passagem, e também falamos do

futuro que está por vir pela expectativa no presente.

“É, pois, na alma, a título de impressão, que a espera e a memória têm extensão. Mas a

impressão só está na alma enquanto o espírito age, isto é, espera, está atento e recorda-

se...”(RICOEUR, 1994, p. 39). A alma estende-se entre expectação, atenção e memória. Está

na alma a memória das coisas passadas, as impressões presentes, a atenção e as expectativas

estendidas a partir da memória e da atenção. (cf. AGOSTINHO, 1999, p. 337).

Agostinho nomeia a extensão da alma que passa entre expectação, atenção e memória

como distentio animi, distensão da alma.

“A distentio não é senão a falha, a não coincidência entre as três modalidades da

ação: „e as forças vivas de minha atividade são distendidas em direção à memória,

por causa do que eu disse, e em direção à expectativa, que causa do que vou

dizer‟.”(RICOEUR, 1994, p. 40).

Na alma ocorre o presente do passado, o presente do presente e o presente das coisas

futuras. Porém, estes três momentos não coincidem, havendo a distensão da alma. O tempo é

essa distensão da alma. Agostinho, para esclarecer essa distensão da alma, apresenta o

exemplo do que se dá quando uma pessoa recita um poema.

“Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar, a minha expectação

estende-se a todo ele. Porém, logo que o começar a minha memória dilata-se,

colhendo tudo o que passa de expectação para o pretérito. A vida deste meu ato

divide-se em memória, por causa do que já recitei, e em expectação, por causa do

que hei de recitar. A minha atenção está presente e por ela passa o que era futuro

para se tornar pretérito. Quando mais o hino se aproxima de fim tanto mais a

memória se alonga e a expectação se abrevia, até que esta fica totalmente

consumida, quando a ação já toda acabada, passar inteiramente para o domínio da

memória.”(AGOSTINHO, 1999, p. 337)

Agostinho mostra assim como ocorre a distensão da alma. No exemplo acima, a

pessoa, ao recitar um poema, antes mesmo de o recitar, tem atenção que se estende sobre ele,

e ao começar recitar, essa atenção se distende projetando-se para o futuro (expectativas) e

para o passado (memória). É interessante notar que, à medida que se recita o poema, o que se

espera ou antecipa, passando pelo presente, diminui mais e mais, aumentando as impressões

gravadas na alma (memória). Afirma Ricoeur:

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“...é preciso dizer que os três desígnios temporais dissociam-se na medida em que a

atividade intencional tem como contrapartida a passividade engendrada por essa

própria atividade e que, na falta de termo melhor, designa-se como imagem-

impressão ou imagem signo. Não somente três atos que não se recobrem, mas é a

atividade e a passividade que se contrariam, para não dizer nada da discordância

entre as duas passividades, vinculadas uma à expectativa, a outra à memória. Mais o

espírito se faz intentio, mais ele sofre distentio.” (RICOEUR, 1994, p. 40).

A alma atenta (intentio) se dilata ou se dissocia da expectativa, passando para a

memória. É a atividade e a passividade que se contrariam, ou seja, na alma (atenta) a

passagem do tempo é dinâmica, distendendo-se entre a espera, a memória e a expectativa. Na

alma existe uma intentio, uma tensão, uma intensidade e ao mesmo uma distentio, que se

dilatam constantemente das expectativas do futuro para as lembranças do passado.

É interessante observar que, para Agostinho, não experimentamos o tempo nem

podemos saber de sua extensão a partir de uma objetividade, algo espacial, fora do homem,

pois o tempo, como afirmamos acima, não é cosmológico, mas experimentado na alma. A

alma experimenta a dialética entre a distentio e intentio. Diz Ricoeur:

“...é no interior da alma que se desenvolve a famosa dialética entre distentio e

intentio: distensão entre as três orientações do mesmo presente, presente do passado

na memória, presente do futuro na antecipação, presente do presente na intuição (ou,

como prefiro dizer, na iniciativa); mas intenção que atravessa as fases da recitação

do futuro para o passado através do presente.”(RICOEUR, 2006, p. 132).

A experiência temporal em Agostinho é caracterizada pelo dilaceramento da alma que

passa das expectativas do futuro para a memória através da intenção presente. A experiência

temporal, para ele, é dinâmica, é uma dialética entre “...distentio – a tensão como o

dilaceramento doloroso – e intentio ou attentio - a tensão como intensidade, força,

concentração.”(GAGNEBIN, 2005, p. 76).

Assim, os três atos do tempo: presente do passado, presente do futuro e presente do

presente, são atividades da alma que se contrariam, que não coincidem. (cf. RICOUER, 1994,

p. 40). A tensão entre as três atividades alma, a não coincidência entre a expectativa, a

lembrança e a espera, que é dinâmica, faz nascer a discordância a partir da concordância. Daí

a “...discordância nascer e renascer da própria concordância entre os desígnios da expectativa,

da atenção e da memória...”(RICOEUR, 1994, p. 41). A concordância, a intenção presente,

sofre uma não-coincidência consigo mesma que, passando do futuro para o passado, sofre a

discordância.

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Para Agostinho, na alma ocorre essa distensão, como já afirmamos, o dilaceramento do

ser humano no tempo, e só em Deus se encontra a unidade do ser. Em Deus se encontram a

eternidade e a unidade, já o homem é dividido; o homem experimenta em si mesmo a

distentio. Diz Gagnebin, uma “...não incessante e dolorosa não-coincidência

consigo...”(GAGNEBIN, 2005, p. 76).

O homem vê nascer e renascer em si a discordância da própria concordância, ou seja,

alma que tem intentio sofre constantemente a distentio, a discordância se impõe sobre a

concordância.

Paul Ricoeur sabe que Agostinho não tem intenção de esgotar a reflexão sobre a

natureza do tempo, “...para ele, a questão em relação à qual todas as preocupações se devem

direccionar é a relação entre o tempo da alma e o eterno presente de Deus...”(RICOEUR,

1995, p. 118). Ricoeur não deixa de elogiar a resolução de Agostinho como preciosa ao

reduzir a extensão do tempo à distensão da alma, é um tempo não se deixa apreender, pois é,

em última instância, o dilaceramento da alma, é um enigma da dialética entre distentio e

intentio. Diz Ricoeur, é “...a esse enigma da especulação sobre o tempo que responde o ato

poético da tessitura da intriga (...) produzindo uma representação invertida da discordância e

da concordância.”(RICOEUR, 1994, p. 41).

É exatamente neste ponto que Ricoeur faz a articulação entre a experiência aporética do

tempo de Agostinho com a inteligibilidade da narração segundo a Poética de Aristóteles.

Ricoeur vai aproximar a discordância que prevalece sobre a concordância a um modelo de

concordância-discordante “...onde a concordância estabelecida pelo mythos prevalece sobre

discordância da peripeteia da ação trágica.”(RICOEUR, 1995, p. 117).

Afirma Ricoeur:

“Aristóteles discerne no ato poético por excelência – a composição do poema trágico

– o triunfo da concordância sobre a discordância. É evidente que sou eu, leitor de

Agostinho e de Aristóteles, quem estabeleço essa relação entre uma experiência

viva, em que a discordância dilacera a concordância, e uma atividade eminentemente

verbal, em que a concordância repara a discordância.” (RICOEUR, 1994, p.55).

Ricoeur estabelecerá a ligação entre a experiência viva do tempo encontrada nas

Confissões de Agostinho e a expressão lingüística do mythos na Poética de Aristóteles,

reconhecendo que a reflexão de Aristóteles sobre a composição da tragédia não está

diretamente ligada à questão do tempo, é ele quem unirá a discordância-concordância da alma

em Agostinho com a concordância discordante de Aristóteles. Qual é a importância dessa

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articulação? O próprio Ricoeur nos dá a resposta dizendo:

“Tive (...) uma espécie de lampejo a saber, a intuição de uma relação de paralelismo

invertido entre a teoria agostiniana do tempo e a noção de mythos em Aristóteles, na

Poética. Foi essa súbita cumplicidade entre a distentio animi do Livro XI das

Confissões e o mythos aristotélico que foi, mais tarde, não só determinante mas

seminal; a idéia, para parafrasear quem há pouco referíamos, de que o tempo é

estruturado como uma narrativa...”(RICOEUR, 1995, p. 115).

Ricoeur percebe que, fazendo a relação entre a experiência do tempo de Agostinho

com o mythos encontrado na Poética de Aristóteles, é possível pensar uma estrutura do

tempo. É por meio da narrativa que Ricoeur verá que se estrutura o tempo, que há uma

ordenação do tempo, pois, se em Agostinho o tempo é distensão da alma, as narrativas

“...ajudam-nos a configurar a nossa experiência temporal...”(RICOEUR, 1989, p. 29). Pela

narrativa articulam-se passado, presente e futuro.

Segundo Gagnebin, retomando Ricoeur, é na relação entre a experiência temporal e a

disposição ou ordenação narrativa (mythos) que nos é permitido pensar a temporalidade e as

ações humanas (cf. GAGNEBIN, 2006, p. 172). É nessa articulação das ações humanas que

mais adiante tentaremos encontrar possibilidades de articular o sentido da vida com a

narrativa.

Como a narrativa articula o tempo e as ações humanas? Para responder a tal pergunta,

devemos conhecer como Ricoeur fez a leitura da Poética de Aristóteles. Diz ele:

“...eu retive da Poética de Aristóteles, o conceito emplotment (construção da trama),

que em grego é o mythos, que significa tanto fábula ( no sentido de uma história

imaginária) e intriga (no sentido de uma história bem construída). É este segundo

aspecto de Aristóteles do mythos que estou tomando como meu guia; é deste

conceito que eu quero extrair todos os elementos capazes de ajudar-me depois a

reformular a relação entre vida e a narrativa...”(RICOEUR, 1991, p.21).1

Ricoeur centrará seus estudos em torno de dois conceitos, o mythos e a mimesis. “Os

dois juntos constituem os focos da leitura que Ricoeur empreende da Poética de Aristóteles

no contexto dessa investigação sobre o tempo e narrativa.”(GENTIL, 2004, p.87). Embora

esses conceitos não estejam ligados à questão do tempo, é a partir deles que Ricoeur buscará o

1 “…For my part, I have retained from Aristotle's Poetics the central concept of emplotment, which in Greek

is muthos and which signifies both fable (in the sense of an imaginary story) and plot (in the sense of a well

constructed story). It is this second aspect of Aristotle's muthos that I am taking as my guide; and it is out of

this concept of plot that I hope to draw all of the elements capable of helping me later to reformulate the

relation between life and narrative.”

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elemento configurador da experiência temporal.

O termo mythos pode ter várias traduções, porém Ricoeur opta por traduzi-lo como

“intriga” no sentido de uma história bem construída, ou o tecer da intriga, que significa a arte

de compor um poema, sua operação, a disposição dos fatos ou das ações. (cf. GENTIL, 2004,

p. 89). Diz Ricoeur, mythos “...é „a disposição dos fatos em sistema‟ (...) a disposição (se se

quiser, em sistema) dos fatos, com a finalidade de marcar o caráter operatório de todos os

conceitos da Poética...”(RICOEUR, 1994, p. 53). O mythos realiza o agenciamento dos fatos,

organiza os fatos dentro da composição, não apenas de forma seqüencial ou cronológica, mas

de uma forma lógica.

“Lógica no sentido de que a organização da sucessão dos elementos que compõem a

narrativa obedece mais às necessidades internas da narrativa, às leis de necessidade e

verossimilhança que regem a poesia, às exigências postas por esta: no mythos não há

acaso, há encadeamento necessário. Não se trata apenas de um evento depois do

outro, mas de um evento articulado ao outro, com sentido, através do sentido, ou

estabelecendo um sentido nessa articulação.”(GENTIL, 2004, p. 93).

Assim, o mythos faz a articulação da composição, dos atos dos personagens, seu

caráter, suas qualidades, faz a tessitura da intriga que, segundo Ricoeur, “...não é uma

estrutura estática, mas uma operação, um processo de integração...”(RICOEUR, 1991, p. 21)2

. O mythos opera de forma dinâmica a concordância entre os discordantes pela arte de

“...compor as intrigas...”(RICOEUR, 1994, p. 58). É um processo de composição lingüística

que vai tecendo a estruturação da intriga.

O termo mimesis vem do grego e significa imitação ou representação. Segundo

Ricoeur, ao se traduzir o termo mimesis “...quer se diga imitação, quer representação (...), o

que é preciso entender é a atividade mimética, o processo de imitar ou de

representar.”(RICOEUR, 1994, p. 58). Segundo o filósofo, é preciso entender que a mimesis

imita ou representa, no sentido dinâmico de produzir, ou seja, a mimesis imita criativamente

transpondo-se em obras representativas. Podemos perguntar: O que se mimetiza numa

narrativa? Afirma Ricoeur: “...com Aristóteles, a atividade mimética tem agora como campo

de exercício a práxis humana, o que a aproxima, (...) da ética. Como aqueles que imitam

representam homens em ação...”(RICOEUR, 1996, p. 331). Ricoeur, de acordo com a leitura

que faz da Poética de Aristóteles, traduz a mimesis não apenas como imitação, mas também

como uma representação da ação dos homens, algo que imita as ações dos homens ou os

2 “…plot is not a static structure but an operation, an integrating process…”

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homens em ação. Mimetizando criativamente as ações dos homens, marca-se a “...ruptura

com a concepção metafísica de mimesis(...). Ruptura com a mimesis de Platão...”(RICOEUR,

1996, p. 330). A mimesis não é uma imitação como uma cópia direta da realidade ou um

decalque de um real preexistente, a exemplo da mimesis encontrada em Platão, mas é uma

imitação criadora através da intriga. Diz Ricoeur:

“...deve-se entender totalmente o contrário do decalque de um real preexistente e

falar de imitação criadora. E, se traduzirmos mimese por representação, não se deve

entender, por esta palavra, alguma duplicação de presença, como se poderia ainda

entendê-lo na mimese platônica, mas o corte que abre o espaço de ficção. O artesão

de palavras não produz coisas, mas somente quase-coisas, inventa o como-

se...”(RICOEUR, 1994, p. 76)

Podemos dizer que a mimesis é a imitação criativa das ações dos homens, criação que

ocorre através da tessitura da intriga, um processo criativo que imita as ações dos homens

através da composição lingüística. A mimesis é produzida pela disposição lingüística dos fatos

(principalmente das ações dos homens nas narrativas) pela tessitura da intriga. (cf. GENTIL,

2004, p. 90). É como o artesão que não copia as coisas, mas constrói um objeto com seu estilo

próprio, introduzindo algo novo no mundo.

Ricoeur encontra em Aristóteles uma equivalência entre mimesis e mythos, pois é o

tecer da intriga que, ao organizar os fatos ou as ações humanas numa certa ordem, “mimetiza”

a realidade dando-lhe coerência, lógica. Diz Ricoeur: “...A imitação ou representação é uma

atividade mimética enquanto produz algo, a saber, precisamente a disposição dos fatos pela

tessitura da intriga...”(RICOEUR, 1994, p. 60). A tessitura da intriga é a imitação das ações

dos homens, ações que são imitadas criativamente e são ordenadas de uma determinada forma

lógica, uma lógica narrativa, ganhando assim inteligibilidade. É a partir daí que podemos

dizer que a narrativa nos permite pensar significativamente as ações dos homens, pois agencia

os fatos em forma de sistema, articulando de modo inteligível essas ações. Diz Ricoeur:

“...a trama (intriga, enredo) tem a virtude de obter uma história a partir dos eventos

diversos ou se preferir de transformar os múltiplos eventos em uma história. Neste

sentido um acontecimento é muito mais que uma ocorrência, algo que simplesmente

acontece, o acontecimento é o que contribui para o desenvolvimento da narrativa,

bem como para seu início e até ao seu fim...”(RICOEUR, 1991, p. 21)3

3 “…the plot serves to make one story out of the multiple incidents or, if you prefer, transforms the many

incidents into one story. In this respect, an event is more than an occurrence, I mean more than something that

just happens; it is what contributes to the progress of the narrative as well as to its beginning and to its end…”

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A narrativa é mais que uma enumeração de fatos que apenas coloca os vários

acontecimentos um após o outro, ela agencia os fatos dando a estes uma certa articulação,

organiza de modo articulado vários acontecimentos, estabelecendo uma “síntese do

heterogêneo”.

A síntese do heterogêneo é aqui a reunião organizada da variedade de acontecimentos

e episódios da vida dos personagens (ou das pessoas) em uma única história, de modo que os

vários acontecimentos se estruturam numa única configuração narrativa, ganhando com isso

um certo sentido, uma inteligibilidade. Segundo Ricoeur, a tessitura da intriga realiza a

síntese do heterogêneo. A “...síntese entre os acontecimentos ou incidentes, os múltiplos

eventos da história completa e singular.” (RICOEUR, 1991, p. 21)4. Assim, a narrativa ordena

incidentes variados da vida colocando-os em histórias, colocando-os em narrativas.

É importante salientar que, uma vez que esses elementos heterogêneos são postos em

histórias, eles se tornam relevantes, dotados de significação por estarem concatenados de uma

forma lógica, ainda que seja, como já dissemos, a lógica da narrativa. Assim, fragmentos de

vida, muitas vezes sem “importância” ou significação, tais como pequenas ações ou gestos,

sofrimentos, alegrias, agradecimentos, realizações pouco destacadas, a que pouco se prestou

atenção, podem ser dotados de significação por seu encadeamento, quando esses fragmentos

são organizados em uma composição narrativa.

É a partir deste ponto que podemos entender a grande importância da tessitura da

intriga em relação à distentio animi de Agostinho, pois com a narrativa podemos unificar essa

distensão ou ao menos articulá-la, manter uma certa unidade no fio da narrativa. Vimos em

Agostinho que a alma sofre constantemente a contradição entre intentio e distentio, ela se

concentra e se distende ou se dilacera entre os três tempos, experimenta essa distensão ou o

dilaceramento do ser humano no tempo. Daí vem a instabilidade da vida humana, sua

dissociação contínua. O que é instável em Agostinho, com a narrativa, tem a oportunidade de

ganhar alguma estabilidade, através da experiência da ordenação do tempo realizada pela

narrativa. A composição narrativa articula os três tempos, o passado, o presente e o futuro.

Segundo Ricoeur, em uma história narrada existem duas classes de tempo. Na primeira

classe, o tempo acontece com uma sucessão discreta, aberta e teoricamente indefinida de uma

série de incidentes. É com esta primeira classe de tempo que nos é possível perguntar a todo o

momento o que vai acontecer com a história narrada, por exemplo: e depois? e então?

Na segunda classe de tempo, a história narrada apresenta um outro aspecto temporal

4 “…synthesis between the events or incidents which are multiple and the story which is unified and complete.”

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que é caracterizado pela integração, culminância e encerramento devido ao qual a história

recebe uma configuração específica. É neste sentido que compor uma história é, do ponto de

vista temporal, obter uma configuração específica fora da sucessão. (cf. RICOEUR, 1991, p.

22).

Assim, em uma história narrada, temos o tempo que acontece discretamente, um

tempo que vai acontecendo em uma sucessão discreta e indefinida ao longo da história e

temos o tempo que articula, ordena e integra em uma unidade temporal os vários

acontecimentos da história, dando-lhe uma configuração específica. É a configuração

narrativa que transforma uma série de acontecimentos em uma totalidade temporal articulando

passado, presente e futuro; é graças à articulação temporal que os vários acontecimentos são

ordenados e passíveis de serem acompanhados na narrativa. Diz Ricoeur, “se podemos falar

da identidade temporal de uma história, ela deve ser caracterizada como algo que resiste e

permanece através do que passa e escapa.”(RICOEUR, 1991, p. 22)5. É neste sentido que

a narrativa é considerada como “guardiã do tempo”, pois articula e ordena as diferentes

dimensões do tempo em uma única história; por isso, a narrativa opera a concordância entre

as discordâncias.

Ricoeur, relacionando o tempo e a narrativa, consegue por meio da reflexão sobre a

composição narrativa reconhecer a preponderância da concordância em relação à

discordância; por meio da narrativa articulamos os vários acontecimentos que acontecem no

tempo. Diz Ricoeur: “...por concordância entendo o princípio da ordem que preside ao que

Aristóteles chama „agenciamento dos fatos‟. Por discordância entendo as reviradas de fortuna

que fazem da intriga uma transformação regulada desde uma situação inicial até o

fim...”(RICOEUR, 1991, p. 169). A concordância ordena de forma lógica os vários

acontecimentos fazendo da intriga uma composição com começo, meio e fim, o que nos

permite compreender a narrativa em sua totalidade. Dessa forma, as ações dos homens ou os

elementos heterogêneos postos na narrativa de forma lógica operam a concordância sobre a

discordância, dando-nos a inteligibilidade da obra e uma certa inteligibilidade às ações.

“Este é exatamente um dos elementos que tornam a obra um tipo de saber, um dos

meios através dos quais ela produz conhecimento, recortando da realidade ampla

seus elementos mais significativos e encadeando-os numa seqüência significativa,

oferecendo deles uma certa inteligibilidade, estabelecendo uma certa relação

específica entre eles...”(GENTIL, 2004, p. 94).

5 “If we may speak of the temporal identity of a story, it must be characterized as something that endures and

remains across that which passes and flows away.”

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Assim, vemos que a narrativa torna-se um tipo de saber porque consegue combinar,

pela tessitura da intriga, elementos heterogêneos, dando a estes uma ordenação lógica, dando

uma certa inteligibilidade de obra. Daí, como afirma Ricoeur: “...compor uma intriga já é

fazer surgir o inteligível do acidental, o universal do singular, o necessário ou verossímil do

episódico...”(RICOEUR, 1994, p. 70). A composição narrativa consegue fazer ir juntos

elementos discordantes dando a estes, significações e inteligibilidade; por meio de uma

composição narrativa, temos a possibilidade de estabelecer uma concordância a partir da

discordância.

É com a relação entre “discordância concordante” e “concordância discordante” que

Ricoeur entende a relação entre a narrativa e o tempo, pois na composição narrativa acontece

a preponderância da concordância em relação à discordância. Com a narrativa podemos

articular os vários acontecimentos em uma ordem temporal, articulando as dimensões do

passado, do presente e do futuro. Podemos perguntar: Qual a importância da articulação

temporal que a narrativa nos proporciona? A narrativa nos ajuda a resolver o contraste da

alma entre intentio e distentio, o dilaceramento constante do tempo, em que o homem como

ser temporal vive em permanente transformação. É aí que se encontra a importância da

narrativa, pois, com sua capacidade de compor juntos os vários acontecimentos das ações dos

homens, articulando-os em um ordem temporal, proporciona-nos uma “Identidade Narrativa”.

Por meio da narrativa articulamos nossa experiência temporal, nossa experiência do passado,

do presente e do futuro, articulamos nossa história com uma certa inteligibilidade, é aí que

podemos encontrar várias significações que podem nos proporcionar um sentido para a vida.

Assim, a narrativa mimetiza as ações dos homens, ações que se desdobram no tempo,

e, quando falamos de tempo, estamos pensando no tempo humano, a exemplo do tempo

encontrado nas Confissões de Agostinho. Podemos dizer que a narrativa, por conseguir

articular o tempo logicamente, também articula a vida dos homens.

“Não é sem razão que as pessoas narram histórias o tempo todo, das mais banais e

curtas às mais importantes e longas: são elas que sustentam o fio de sua

permanência, para além das transformações. Constituem, assim, os seus projetos de

vida, articulando as experiências passadas e lançando-as em prospecção para o

futuro.”(GENTIL, 2008, p. 162).

Através da narrativa, graças à articulação temporal, podemos nos conhecer e

reconhecer, pois a narrativa, que ordena o tempo, sustenta nossa identidade em meio aos

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vários acontecimentos que se transformam a todo instante. “...Ricoeur cunhou a noção de

identidade narrativa para dar conta dessa permanência no tempo de um sujeito que age no

mundo, transforma-se, mas se reconhece – e é reconhecido – sendo ele mesmo, ainda que

diferente.”(GENTIL, 2008, p. 158). É esta identidade do sujeito que permanece ao longo da

articulação temporal na história narrada, que é chamada por Ricoeur de identidade narrativa.

Afirma Ricoeur: “...Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é responder à

questão: Quem fez tal ação? Quem é o seu agente, seu autor?...”(RICOEUR, 1997, p. 424).

Ricoeur, tomando como referência Hannah Arendt, afirma que responder à questão:

quem fez tal ação, “...é contar a história de uma vida. A história narrada diz o quem da ação.

A identidade do quem é (...), portanto, uma identidade narrativa...”(RICOEUR, 1997, p. 424).

Através da narrativa temos a oportunidade de conhecer as ações humanas, de reconhecer uma

identidade pessoal. A narrativa tem um papel de mediação em relação às ações do homem e

também o papel de mediação para conhecimento que o homem tem de si próprio. Como

sujeitos, podemos nos conhecer e reconhecer por meio da composição narrativa.

“...O sujeito se lança para além de sua existência puramente biológica, meramente

corporal, e ganha „representação‟, inserindo-se numa história, ganhando uma

história. Constitui-se sujeito propriamente dito, um „si mesmo‟, justamente por seu

pertencimento a uma história, por sua inserção em uma história, por reconhecer-se

„personagem‟, para não dizer „herói‟, de uma história, a „sua‟ própria história. Uma

história que não é meramente vivida, mas é também narrada...”(GENTIL, 2008, p.

159).

Com a narrativa a pessoa se lança para além de sua existência biológica e corporal

articulando seu passado, presente e futuro na história narrada. É aí que ela pode se conhecer e

reconhecer, pois as ações mimetizadas, quando narradas, ganham a possibilidade de

inteligibilidade pela ordenação dos fatos, ganhando várias significações tanto para aquele que

narra sua história, quanto para aquele que se apropria da história como leitor. Podemos dizer

que só damos conta de nosso existir a partir das mediações da linguagem, e, no caso de nosso

trabalho, através das mediações da linguagem em forma de composição narrativa. O contrário

disso é a cegueira de um egocentrismo desligado da vida, pois somos pertencentes à história

que nos contam e que narramos. O sujeito pertence à história e não consegue se retirar desse

devir histórico. (cf. GENTIL, 2004, p. 43). Podemos nos conhecer à medida que nos

relacionamos com as obras, com a vida. O “...„eu não pode apropriar-se senão nas expressões

da vida que o objetivam...”(RICOEUR, 1978, p. 19). O eu não pode se reconhecer de modo

imediato, é necessário as mediações das obras, é saindo de si mesmo que a pessoa se conhece

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e reconhece.

“Conhecemos a nós mesmos – e nos constituímos – através da mediação dos textos

da cultura que lemos e amamos, afirma Ricoeur. Apropriamo-nos deles, eles se

apropriam de nós. Reconhecemo-nos neles, somos formados por eles. Quem sou eu?

ou Quem é você?; essa pergunta fundamental em sua teoria do sujeito é respondida

na prática e na consciência de si com a linguagem que recebemos de nossos

antecessores, de nossa tradição, da tradição lingüística a que pertencemos, com as

palavras que aprendemos não só nos diálogos com nossos interlocutores diretos,

imediatos, mas também nas obras de literatura que lemos, às quais nos entregamos,

pelas quais nos deixamos levar.”(GENTIL, 2009, p. 36).

Podemos dizer que todas as nossas relações passam pela linguagem, linguagem que

recebemos e que aprendemos, e é também por meio da linguagem que podemos nos conhecer

e reconhecer; e essa linguagem pode ser realizada não somente no diálogo como também

enquanto obra. É pela linguagem enquanto obra ou como composição narrativa que se

estabelece o agenciamento dos fatos, que se encadeiam segundo uma lógica da própria

composição, conseguindo-se fazer a articulação temporal e ordenar os incidentes variados da

vida, colocando-os em histórias. A narrativa ordena de forma lógica elementos heterogêneos

que, uma vez postos em histórias, tornam-se relevantes e cheios de significação, podendo ser

apropriados pelo leitor.

Podemos perguntar: Qual é a relação da composição narrativa, que estabelece a

preponderância da concordância sobre a discordância, abordada neste segundo capítulo, com a

questão do sentido da vida, abordado no primeiro capítulo? Para responder a tal pergunta,

devemos recordar que, ao desenvolver a questão do sentido da vida em Viktor Frankl, no

primeiro capítulo, refletimos que o sentido da vida não é uma coisa ou algo que se possa

apreender. É no movimento do homem para o mundo e do mundo para o homem que se pode

conhecer o sentido da vida. O homem vivendo no mundo deixa-se questionar pelas situações e

também questiona as situações e, dessa relação, podem nascer várias possibilidades de se

descobrir o sentido da vida. Cada situação da vida se apresenta de forma única, irrepetível, de

forma que, se a pessoa „aproveita‟ o que se apresenta, „o‟ tempo oportuno, ela poderá realizar

algo único e de forma original, poderá encontrar “aí”, nesse momento, um sentido para sua

vida.

O sentido, segundo Frankl, é encontrado conforme nos relacionamos com as diversas

situações do dia-a-dia. Porém vemos que as situações mudam a cada instante, ainda mais em

nossos dias, onde tudo é muito rápido e instantâneo. É exatamente aqui que procuramos

aproximar a questão do sentido da vida com noção de narrativa de Paul Ricoeur, pois, no

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percurso do segundo capítulo, refletimos com Ricoeur que a composição narrativa consegue

considerar juntos vários fatores heterogêneos, colocando-os ou ordenando-os segundo uma

lógica própria que faça sentido. É nesse ponto, que a narrativa consegue fazer a articulação da

experiência temporal e ordenar incidentes variados da vida, colocando-os em histórias. A

narrativa consegue ordenar elementos heterogêneos de forma lógica e esses elementos, uma

vez postos em histórias, tornam-se relevantes e cheios de significação, podendo ser

apropriados por um leitor, como já falamos acima.

Aproximando a noção narrativa de Ricoeur à questão do sentido, primeiramente

podemos dizer que, se em Viktor Frankl não podemos apreender qual possa ser o sentido para

nossas vidas, pois as situações mudam constantemente e não conseguimos saber qual é “o

momento o oportuno” para atingir o sentido, já em Ricoeur, através da sua noção de narrativa,

temos a possibilidade ordenar as várias situações da vida. A composição narrativa consegue

ordenar vários acontecimentos em uma única história, mimetizando as ações dos homens ao

colocá-los em uma história. A composição narrativa, como já mencionamos, estabelece a

preponderância da concordância sobre a discordância.

Em segundo lugar, podemos aproximar a questão do sentido da vida à noção de

narrativa de Ricoeur, porque, através da composição narrativa, podemos encontrar várias

significações que podem despertar um sentido para nossas vidas; porém é necessário haver

um leitor que se aproprie dessas várias possibilidades que podem ser encontradas na

composição narrativa. Podemos perguntar: Como encontrar, em uma composição narrativa,

sentido para nossas vidas? Para responder a tal pergunta devemos continuar aprofundando a

compreensão da relação entre a composição narrativa e a vida.

O próprio Ricoeur nos indica o caminho ao dizer que “...minha tese aqui é que o

processo de composição, de configuração, não se acaba no texto, mas no leitor e, sob essa

condição, torna possível a refiguração da vida pela narrativa...”(RICOEUR, 1991, p. 26)6. A

composição narrativa não se esgota com a configuração, é necessário um leitor que

acompanhe a composição e dê a ela seu pleno sentido; para que uma obra tenha plena

inteligibilidade é necessário um leitor que a acompanhe. Para compreender como o processo

de composição narrativa desemboca no leitor, é necessário conhecer o desdobramento

mimético proposto por Ricoeur. Em nosso próximo capítulo vamos examinar o

desdobramento da mimesis e em seguida discutiremos como uma narrativa pode ajudar-nos a

articular o sentido da vida proposto por Viktor Frankl.

6 “…My thesis is here that the process of composition, of configuration, is not completed in the text but in the

reader and, under this condition, makes possible the reconfiguration of life by narrative…”

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III CAPÍTULO – O desdobramento de mimesis.

Em nosso primeiro capítulo investigamos a questão do sentido da vida a partir da

perspectiva de Viktor Frankl. Vimos que o homem busca constantemente um sentido para sua

vida. Segundo Frankl, o sentido da vida só pode ser descoberto mediante a abertura do

homem para mundo. É nessa abertura que, deixando-se questionar pelo o mundo e

questionando o mundo, o homem tem possibilidade de encontrar um sentido para sua vida. O

homem, que vive no mundo, é questionado pelas situações e também questiona as situações e

dessa relação surge a busca de motivações, de significados e de metas. É por meio dessa

busca que o homem pode encontrar um sentido para sua vida.

Frankl destacou caminhos para “descoberta” do sentido, como: o ser humano deve

sempre estar sempre voltado para o outro, deve sempre apontar para algo ou alguém diverso

dele próprio, ou seja, para um objetivo a realizar ou para outro ser humano, mas também pode

encontrar sentido para sua vida não se deixando abater perante um sofrimento inevitável. (cf.

FRANKL, 1989, p. 29). Porém o autor afirma que não se pode receitar o sentido que uma

situação concreta deva ter para uma pessoa. Esse sentido não pode ser obtido através de uma

prescrição; é a própria pessoa que deve descobrir o sentido de sua vida.

Aqui surge a questão que estamos discutindo neste trabalho: Se é a pessoa que deve

descobrir o sentido para sua vida envolvida nas várias situações do dia-a-dia, e se essas

situações mudam constantemente, como uma pessoa, envolvida nesse devir do mundo, pode

saber qual é o sentido de sua vida?

Na noção de narrativa de Paul Ricoeur, encontramos possibilidades de refletir sobre a

ordenação das situações que mudam constantemente e a partir daí constituir um sentido para

vida. Vimos, no segundo capítulo, que as composições narrativas conseguem imitar as ações

dos homens sintetizando elementos heterogêneos por meio de histórias. A composição

narrativa de uma história de vida consegue estabelecer ordem para aspectos discordantes

encontrados no mundo da ação. A nossa hipótese é que, na ordenação e articulação do mundo

da ação através da narrativa, o sujeito humano tem a possibilidade de encontrar o sentido da

vida, pois uma pessoa, ao contar sua história, ao organizar os elementos heterogêneos e

variados do mundo da ação, tem a possibilidade de dar um certo sentido às suas ações e aos

acontecimentos de sua vida.

A composição narrativa, como estabelecemos no segundo capítulo, consegue dar

significação a vários fragmentos de uma vida, até então sem nenhuma significação,

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colocando-os em histórias. Consegue articular de forma narrativa as várias situações da vida,

dando a essas situações uma certa inteligibilidade, podendo situar aí ou pontuar um sentido

para sua vida. Vimos que uma composição narrativa como tessitura da intriga é mimesis das

ações dos homens. Veremos, neste capítulo, que, para que uma composição narrativa, que

imita as ações dos homens, seja completa e se realize com toda sua significação, é necessário

um leitor que a acompanhe. É na relação do leitor com a composição que pretendemos

mostrar como acontece a refiguração, pois é com o ato refigurante que pretendemos saber se é

possível uma pessoa encontrar um sentido para sua vida. Já vimos que, através da arte de

compor, temos a possibilidade de dar um certo sentido às ações e ordenar os vários

acontecimentos que mudam constantemente. Resta-nos saber se, pela refiguração, uma pessoa

conseguirá também articular o sentido da própria vida; mas, para sabermos isso, é necessário

abordar a refiguração, o terceiro momento da mimesis. Examinemos como acontece o

processo todo da mimesis.

3.1 Mimesis I – prefiguração

Segundo Paul Ricoeur, a narrativa articula as ações dos homens como atividade

mimética dividida em três momentos, denominadas de mimesis I, prefiguração, mimesis II,

configuração e mimesis III, refiguração. Com essa atividade da narrativa o homem tem a

oportunidade de articular sua própria vida, articular sua própria história, como já

apresentamos.

O ponto de partida ou a mimesis I é uma “....pré-composição do mundo e da ação: de

suas estruturas inteligíveis, de suas fontes simbólicas e seu caráter temporal...”(RICOEUR,

1994, p. 88). Antes que uma obra de discurso nasça, ela parte de histórias anteriores, de

mediações simbólicas do mundo da ação, pois, “...antes mesmo dessa elaboração reflexiva

sistematicamente organizada, há uma outra reflexividade em ação, no caso, no ato de narrar

histórias, prática comum, ordinária e cotidianamente compartilhada pelos homens, prática por

meio da qual tomam consciência de suas vidas, de suas circunstâncias...”(GENTIL, 2004, p.

115). É partindo da pré-figuração do mundo que o autor construirá uma imitação do mundo da

ação, não como cópia ao modo da mimese platônica, como se fosse um real preexistente, mas

como uma imitação criadora.

Segundo Ricoeur, para compreendermos como acontece a imitação criadora, é

importante compreendermos os três traços da mimesis I que são: os estruturais, os simbólicos

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e os temporais. O primeiro traço de uma composição narrativa é que a parte do mundo da

ação e tem como objeto principal o agir humano. Neste ponto a narrativa, segundo Ricoeur,

parte de uma rede conceitual que distingue o campo de ação do movimento físico. (cf.

RICOEUR, 1994, p. 88). A palavra ação não parte do movimento físico, mas da ação

“...tomado no sentido estrito daquilo que alguém faz...”(RICOEUR, 1994, p. 88). O narrador

parte de uma rede conceitual ligada ao mundo da ação que implica fins, motivos, agentes,

interações e possibilidades. (cf. RICOEUR, 1994, p. 89). Partindo de um mundo já figurado,

onde existe alguém agindo e sofrendo ações de outros, ao identificarmos esse alguém, temos a

oportunidade de descobrir suas motivações e as circunstâncias em que agiu e sofreu as ações.

(cf. RICOEUR, 1994, 89). É dessas circunstâncias de agir e receber ações do mundo, da

história, da vida que o autor faz uma síntese, também chamada síntese do heterogêneo. (cf.

RICOUER, 1991, p. 28). É nessa síntese que o autor articula e organiza os elementos tão

diversos de uma vida, colocando-os numa única composição narrativa, numa história narrada.

Assim, para compreendemos bem uma composição narrativa, não podemos nos

esquecer de que esta nasce de uma rede conceitual do mundo da ação, relacionada com as

normas ou regras de uma composição, ou melhor, ela procede de uma tradição cultural. Além

de saber que uma composição narrativa parte de estruturas previamente estabelecidas, é

preciso saber também que a ação humana é simbolicamente mediatizada por um conjunto de

signos, normas e regras, isto é, se uma “...ação pode ser narrada, é porque ela já está

articulada em signos, regras, normas: é desde sempre, simbolicamente

mediatizada...”(RICOEUR, 1994, p. 91). A ação é mediatizada por uma rede de referência

simbolicamente dada pela cultura, pela história, pela localidade ou pelo grupo em que se vive.

“Antes de ser texto, a mediação simbólica tem uma textura. Compreender um rito é situá-lo

num ritual, este num culto e pouco a pouco, no conjunto das convenções, das crenças e das

instituições que formam a trama da cultura.”(RICOEUR, 1994, p. 92). A mediação simbólica,

antes de se tornar texto tem uma textura, tem um contexto de descrição das ações particulares.

É em função de tal convenção simbólica que podemos interpretar tal ação como significando

isto ou aquilo. (cf. RICOEUR, 1994, p. 93). É em referência a esta rede simbólica que é

possível compreender que cada composição narrativa possui o simbolismo implícito das

ações, pelo qual podemos interpretar um gesto particular como significando isto ou aquilo,

dentro do contexto em que nasceu a composição narrativa. Daí podemos dizer que uma

composição narrativa, além de ter traços estruturais, também traz consigo uma rede de

significações, de símbolos, de regras, de normas retiradas do mundo da ação. É interessante

notar que a composição narrativa articula em si uma rede de significação, que não nasceu do

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nada, pelo contrário, nasceu de uma rede simbólica previamente orquestrada, articulada, de

uma rede que tem seu sentido próprio, que tem seu contexto e isso nos permite decodificar, na

composição, significações que podem fazer sentido para nossas vidas. Podemos dizer que a

composição traz um conjunto de regras e normas simbolicamente mediatizado, que tem

possibilidades de trazer significados para aquele que a aborda.

O terceiro traço da pré-compreensão da ação, que vai inserir ou dar dinamicidade à

configuração, é o traço temporal. Afirma Ricoeur que

“...a compreensão da ação não se limita, com efeito, a uma familiaridade com a

trama conceitual da ação, e com suas mediações simbólicas; chega a reconhecer, na

ação, estruturas temporais que exigem a narração...”(RICOEUR, 1994, p. 95).

A pré-compreensão da ação vai além dos traços estruturais e do conjunto de

mediações simbólicas, pois a ação também possui traços temporais que articulam a ação na

composição narrativa. Segundo o filósofo, esses traços temporais podem ser considerados

como indutores da narrativa, pois são eles que ordenam as diferentes dimensões do tempo da

ação. Diz Ricoeur: “limito-me aqui ao exame dos traços temporais que permanecem

implícitos às mediações simbólicas da ação e que se pode considerar indutores de

narrativa.”(RICOEUR, 1994, p. 95). Segundo Ricoeur, na compreensão do mundo da ação,

podemos até reconhecer que existem os traços temporais que exigem a narração, porém neste

nível a equação entre narrativa e tempo permanece implícita. O mais importante aqui é que

ação efetiva articula as diferentes dimensões do tempo.

Ricoeur faz referência à noção clássica de Agostinho marcando que, ao dizer:

“...não há um tempo futuro, um tempo passado e um tempo presente, mas um

tríplice presente, um presente das coisas futuras, um presente das coisas passadas e

um presente das coisas presentes, Agostinho pô-nos no caminho de uma

investigação sobre a estrutura temporal mais primitiva da ação...”(RICOEUR, 1994,

p. 96)

No momento da pré-compreensão da ação, não importam as estruturas temporais da

ação em termos de tríplice presente, onde Agostinho vê o tempo como distensão da alma. O

importante, nos traços temporais da pré-compreensão da ação, é “...o intercâmbio que a ação

efetiva faz aparecer entre as dimensões temporais...”(RICOEUR, 1994, p. 96). O mais

importante aqui para o filósofo francês é a articulação das dimensões temporais no momento

em que a ação se realiza. Os traços temporais são importantes porque toda ação se desdobra

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no tempo, é no tempo que as histórias acontecem, que as histórias de uma vida crescem, é no

tempo que nos envolvemos com as histórias. E é no tempo que articulamos nossas ações em

passado, presente e futuro.

Paul Ricoeur, através de um exemplo, mostra que uma série de fragmentos dispersos

de uma vida, uma vez ordenados de modo inteligível, podem tornar-se histórias, narrativas

com significações, porque conseguimos trazer à linguagem o que experimentamos e

articulamos no mundo da ação. Diz Ricoeur:

“...O paciente que aborda o psicanalista traz os fragmentos dispersos de histórias

vividas, sonhos, "cenas primordiais", episódios conflituais. Pode-se legitimamente

dizer com relação às sessões de análise, que o seu objetivo e o seu efeito é permitir

que o analisando para extrair desses fragmentos de uma história-narrativa, que seria

ao mesmo tempo mais suportável e mais inteligível...” (RICOEUR, 1991, p. 30)7

Fragmentos de uma vida, de que muitas das vezes nem nos damos conta, e que às

vezes não têm nenhuma significação alguma em um primeiro momento, uma vez trazidos à

linguagem como por exemplo em sessões de análise, podem tornar-se histórias articuladas

com significação, pois a partir do presente da ação, temos a possibilidade de ordenar e

organizar o que experimentamos e vivenciamos do mundo, articulando passado, presente e

futuro. É no cotidiano da vida (presente) que os traços temporais se articulam, um em relação

ao outro, o presente do futuro, o presente do passado, o presente do presente. Essa forma de

articulação prática, segundo Ricoeur, é o que constitui o indutor mais elementar da narrativa.

(cf. RICOEUR, 1994, p. 96). Portanto, é na própria ação que se articulam passado, presente e

futuro, e é nessa articulação mais elementar que se baseia a narrativa; da articulação dos

traços temporais em uma narrativa nasce a configuração.

Assim, vemos que, para que nasça uma composição narrativa, é necessário que esta

parta de uma pré-figuração do mundo da ação, chamada aqui de mimesis I, que recupera as

ações dos homens no mundo. Afirma Ricoeur, esclarecendo essa pré-condição:

“...imitar ou representar a ação, é primeiro, pré-compreender o que ocorre com o

agir humano: com a semântica, com sua ação simbólica, com sua temporalidade. É

sobre essa pré-compreensão, comum ao poeta e a seu leitor, que se ergue a tessitura

da intriga e, com ela, a mimética textual e literária.”(RICOEUR, 1994, p. 101).

7“…The patient who addresses the psychoanalyst brings him the scattered fragments of lived stories, dreams,

'primal scenes', conflitual episodes. One can legitimately say with respect to analytical sessions that their aim and

their effect is to allow the analysand to draw out of these story-fragments a narrative which would be at once

more bearable and more intelligible…”

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É a partir dessa pré-compreensão do mundo da ação que as ações dos homens serão

articuladas de modo narrativo, como configuração da ação na composição narrativa, chamada

mimesis II.

3.2 Mimesis II – configuração

Segundo Ricoeur com a mimesis II abre-se o reino do como-se ou o reino da ficção; é

onde o narrador, à semelhança de um artesão, imita o real como se fosse o próprio real, porém

com peculiaridade própria, com estilo próprio. Imita criativamente o real. O narrador fará a

imitação do mundo da ação, em forma de composição narrativa; e uma série de experiências e

vivências, pela maestria do narrador, tornam-se uma composição narrativa. É nesse momento

que acontece a passagem da prefiguração da ação, do vivido, para a configuração ou mimesis

II.

Com o objetivo de identificar melhor esse momento mimético, Ricoeur opta por

trabalhar com o conceito do mythos aristotélico, retirado da Poética, que significa, como já

vimos no segundo capítulo, o tecer da intriga ou tessitura da intriga. “...Tecer uma intriga é

configurar a ação humana e dar-lhe uma certa inteligibilidade, na medida em que o ato

configurante coloca juntos, de modo organizado, elementos díspares (...) formando uma

totalidade significante.”(GENTIL, 2004, p. 118). A mimesis II consegue dar inteligibilidade a

uma série de elementos díspares, tendo como função fazer a mediação entre o mundo da ação

e o mundo do leitor. É uma “...operação de configuração...”(RICOEUR, 1994, p. 102). A

operação aqui denota que mimesis II não é algo estático, mas é algo dinâmico que tem a

função de mediação entre a prefiguração e a refiguração do mundo do leitor. A respeito desse

caráter dinâmico diz Ricoeur:

“...Esse dinamismo consiste em que a intriga já exerce, no seu próprio campo

textual, uma função de integração e, nesse sentido, de mediação, que lhe permite

operar, fora desse próprio campo, uma mediação de maior amplitude entre a pré-

compreensão e, se ouso dizer, a pós-compreensão da ordem da ação e de seus traços

temporais...”(RICOEUR, 1994, p. 103).

Como vemos na citação acima, a mimesis II tem esse caráter dinâmico por dois

motivos: primeiramente, porque ela tem a função de integração, ou seja, ela consegue integrar

ou operar juntos elementos variados em uma única história. A intriga opera dinamicamente

no seu próprio campo textual, exerce a função intermediária entre a pré-compreensão e pós-

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compreensão do mundo da ação, faz a mediação entre o momento anterior à sua configuração

e uma experiência posterior a que se dirige.

Segundo Ricoeur a tessitura da intriga é mediadora por três motivos: primeiro, porque

ela faz mediação entre os acontecimentos ou incidentes individuais e uma história considerada

como um todo; segundo, porque ela compõe juntos fatores heterogêneos; e terceiro, porque

estabelece uma mediação por causa do seu caráter temporal, o que nos permite articular uma

série de acontecimentos em uma totalidade temporal. Vamos desenvolver cada um desses

motivos.

Primeiro, a mimesis II promove a mediação entre os acontecimentos individuais e a

história como um todo. Ela faz a mediação pois “...extrai uma história sensata de – uma

pluralidade de acontecimentos ou de incidentes (...); ou que transforma os acontecimentos ou

incidentes em – uma história.”(RICOEUR, 1994, p. 103). Transforma uma série de incidentes

da vida em uma única história e essa transformação não é uma mera enumeração de eventos

ou de episódios sucessivos, mas é uma operação articuladora, em que os eventos são

organizados de modo que a composição narrativa torna-se uma totalidade inteligível, de modo

que possamos acompanhar o desenrolar da história. A mimesis II dá sentido aos vários

acontecimentos; uma série de eventos da vida tornam-se agora uma história bem articulada,

produzem significação para aquele que faz a leitura. É importante observar aqui que a mimesis

II articula, em forma de narrativa, as ações dos homens, ou seja, a mimesis II articula

fragmentos da vida, gestos, sofrimentos, alegrias, agradecimentos “copiados” das ações dos

homens e esses fragmentos, uma vez articulados, ganham significação dentro da configuração

narrativa. Assim, a configuração é caracterizada como mediação entre uma história anterior, a

prefiguração, e uma história posterior, a refiguração, porque a composição narrativa

transforma uma série de acontecimentos em uma única história. Articula de forma lógica os

vários acontecimentos, de modo que podemos sempre indagar qual o tema da história.

A mimesis II é mediadora por uma segunda razão, ela “...compõe juntos fatores tão

heterogêneos quanto agentes, fins, meios, interações, circunstâncias, resultados inesperados

etc...”(RICOEUR, 1994, p. 103). De uma série de elementos diversos nasce uma única

história, ocorrendo o que Ricoeur chama de síntese do heterogêneo.

“A narrativa reúne e organiza, articulando-os numa totalidade dotada de

significação, elementos tão diversos quanto sujeitos que agem e que sofrem a ação

de outros, circunstâncias, motivos, intenções, interações, ações, meios, resultados

esperados e inesperados. Transforma-se assim uma multiplicidade de eventos ou

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incidentes dispersos em uma história, uma única história, extraindo da mera

sucessão temporal uma configuração, dando ao acontecimentos e feitos uma certa

inteligibilidade...”(GENTIL, 2008, p. 161).

A tessitura da intriga configura vários elementos retirados das ações dos homens,

fazendo a síntese de elementos heterogêneos. Transforma uma multiplicidade de eventos

diversos em uma história obtendo uma certa inteligibilidade das ações dos homens. Diz

Ricoeur: “...a narrativa faz aparecer numa ordem sintagmática todos os componentes

suscetíveis de figurar no quadro paradigmático estabelecido pela semântica da

ação...”(RICOEUR, 1994, p. 103). No momento em que a tessitura da intriga dá sentido aos

diversos acontecimentos, ocorre a passagem da mimesis I para mimesis II; através da

composição lingüística ocorre a passagem da ordem sintagmática para a ordem paradigmática.

Segundo Ricoeur, na organização dos elementos heterogêneos em uma composição

única, uma história, estão presentes duas dimensões do tempo, uma cronológica e outra não

cronológica.

“A primeira constitui a dimensão episódica da narrativa: caracteriza a história

enquanto constituída por acontecimentos. A segunda é a dimensão configurante

propriamente dita, graças à qual a intriga transforma os acontecimentos em história.

Esse ato configurante consiste em “considerar junto” as ações de detalhe ou o que

chamamos de os incidentes da história; dessa diversidade de acontecimentos, extrai

a unidade de uma totalidade temporal...”(RICOEUR, 1994, p. 104).

A terceira razão pela qual a tessitura da intriga possui a função de mediação é pelos

caracteres temporais que lhe são próprios, e que se articulam em uma ordem temporal,

considerando em conjunto os vários elementos heterogêneos. Diz Ricoeur, como vemos na

citação acima, que existem duas classes de tempo, a dimensão episódica (cronológica) e a

dimensão configurante (não cronológica). A primeira dimensão caracteriza que uma narração

é realizada em episódios, ou seja, uma série de episódios, postos em história de forma

sucessiva, ganhando linearidade no tempo narrativo. É com essa linearidade do tempo

narrativo que podemos perceber como os episódios se sucedem um após o outro. É com esta

primeira classe de tempo que nos é possível perguntar, a todo o momento, o que vai acontecer

com a história narrada, “e depois?” “e então?”. Os episódios acontecem em uma série de

sucessões abertas, acontecimentos que nos permitem acrescentar “então-e-então”, um assim

por diante. (cf. RICOEUR, 1994, p. 105). A dimensão configurante (não cronológica)

apresenta os traços temporais de maneira inversa da dimensão episódica, pois a dimensão

configurante “...tranforma a sucessão de acontecimentos numa totalidade

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significante...”(RICOEUR, 1994, p. 105). A partir de vários acontecimentos, a dimensão

configurante forma uma única história, diferente da dimensão episódica, que considera os

vários acontecimentos dentro da história. Com a dimensão configurante, a história narrada

apresenta um aspecto temporal, que é caracterizado pela integração, culminância e

encerramento, recebendo então uma configuração específica. É nesse sentido que compor uma

história é, do ponto de vista temporal, obter uma configuração específica fora da sucessão. (cf.

RICOEUR, 1991, p. 22). Assim em uma história narrada temos o tempo que acontece

discretamente, o tempo que vai acontecendo em uma série de sucessões lineares e temos o

tempo que articula, em uma unidade temporal, os vários acontecimentos da história, dando-

lhe uma configuração específica.

A dimensão configurante do tempo extrai de uma diversidade de acontecimentos uma

única história dotada de significação. É graças a esse ato configurante que podemos

acompanhar uma história, seguir a narrativa com seu assunto e seu tema. (cf. RICOUER,

1994, p. 105). De uma série de incidentes podemos retirar um pensamento, um sentido através

da articulação do tempo na narrativa. Assim, a dimensão configurante transforma uma série

de acontecimentos em uma totalidade temporal. “...A narrativa articula (...), de modo

inteligível, a passagem do tempo, reunindo passado, presente e futuro numa única e mesma

história...”(GENTIL, 2008, p. 161). Com a configuração temos uma totalidade temporal, ou

seja, a configuração narrativa consegue articular a passagem do tempo, dando uma

concordância às dimensões do passado, presente e futuro.

É nessa totalidade temporal que os acontecimentos diversos tornam-se uma totalidade

significante, que pode ser seguida ou acompanhada por aquele que faz a leitura da narrativa.

Podemos ver que os vários eventos e circunstâncias são agora ordenados, através de uma série

sucessiva, ganhando uma conclusão ou um ponto final. A totalidade temporal “...dá à história

um “ponto final”, o qual, por sua vez, fornece o ponto de vista do qual a história pode ser

percebida como formando um todo...”(RICOEUR, 1994, p. 105). É graças à articulação

temporal que os vários acontecimentos são ordenados e passíveis de serem acompanhados na

totalidade da narrativa.

Assim, com a configuração, os acontecimentos são ordenados, articulando passado,

presente e futuro e, nessa articulação, pode-se jogar com o tempo. Lendo o fim no começo e o

começo no fim, aprendemos também a ler o próprio tempo às avessas, recapitulando as

condições iniciais, o mundo da ação e ao mesmo tempo suas conseqüências. (cf. RICOEUR,

1994, p. 106). É neste ponto que a narrativa resolve o paradoxo distentio – intentio de

Agostinho, pois nesse paradoxo não conseguimos apreender o tempo. Em Agostinho, como

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vimos no segundo capítulo, acontece o contraste da alma entre intentio e distentio, o

dilaceramento constante do tempo, onde o homem como ser temporal vive em permanente

transformação. Com a narrativa, através da articulação do tempo, apreendemos o tempo e

lidamos com ele ao seguirmos uma história; de uma série de acontecimentos é possível extrair

uma unidade temporal. A narrativa passa a ser considerada como a guardiã do tempo, que

articula passado, presente e futuro em uma única história. A narrativa, como já vimos,

estabelece a preponderância da concordância sobre a discordância; agencia os vários

acontecimentos através da articulação do temporal, conseguindo uma unidade temporal ou

uma articulação entre presente do passado, presente do presente e presente do futuro. Assim,

vemos que a configuração narrativa extrai de uma série de acontecimentos uma história

coerente, fazendo uma síntese do heterogêneo; em essa síntese, a composição narrativa nos dá

uma totalidade significante, articulando o tempo ao dar ponto final à configuração.

Poderíamos terminar aqui a configuração narrativa, porém Ricoeur acrescenta à

análise do ato configurante dois traços complementares, que asseguram a continuidade do

processo que une mimesis III a mimesis II. Esses dois traços são a esquematização e o

tradicionalismo; são traços característicos do ato configurante e têm relação específica com o

tempo. (cf. RICOEUR, 1994, p. 106).

A esquematização tem função sintética, sintetiza e organiza, através da imaginação

produtora, as diversas circunstâncias. O “esquematismo (...) constitui-se numa história que

tem todas as características de uma tradição...”(RICOEUR, 1994, p. 107). Para entendermos

como acontece o esquematismo em uma história, podemos perguntar qual é a característica de

uma tradição. Afirma Ricoeur, a respeito da tradição, “...entendemos por isso não a

transmissão inerte de um depósito já morto, mas a transmissão viva de uma inovação sempre

suscetível de ser reativada por um retorno aos momentos mais criadores de fazer

poético...”(RICOEUR, 1994, p. 107). A tradição não é um depósito morto, parado no tempo e

fruto de um passado remoto, mas é um processo com inovações constantes, transmitidas

através de uma tradição viva, que temos a oportunidade de reativar sempre que retomamos

uma composição narrativa. É nesse sentido que a tradição enriquece a relação da intriga com

o tempo através de processos sempre novos; em outras palavras, a tradição, através de seu

processo sempre vivo, é capaz de atualizar uma composição narrativa com traços sempre

novos. No instante em que se retorna a uma composição, esta pode ser reativada.

É interessante notar que a tradição nos ajuda a encontrar várias significações na

composição narrativa, cada vez que a retomamos. Isso é importante para nosso trabalho

porque, em uma composição narrativa, podemos encontrar várias significações para as ações

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dos homens, que podem significar algo para aqueles que fazem ou retomam a leitura de uma

narrativa. É aqui que entra o leitor que, através do ato de leitura, colherá várias significações

da composição narrativa; é com o leitor que a composição narrativa ganha pleno sentido.

Afirma o filósofo, “...a narrativa tem seu sentido pleno quando é restituída ao tempo do

agir...”(RICOEUR, 1994, p. 110). A narrativa nasce da pré-figuração do mundo da ação e

retorna ao mundo da ação com novas significações, através do ato de leitura, graças à função

de mediação que ocupa a mimesis II. Esta opera entre o mundo da ação e o mundo do leitor.

Assim, depois de todo o percurso pela mimesis II, vemos que esta, através da tessitura

da intriga configura a ação humana dando certa inteligibilidade ao que era ininteligível. A

inteligibilidade, como vimos, vem de considerarmos juntos, de forma ordenada, vários

elementos díspares, extraindo desses uma única história dotada de sentido com começo, meio

e fim. É como configuração que a composição narrativa ganha sentido e vida própria, constrói

um mundo, um mundo próprio passível de ser habitado, um mundo que vai ao encontro do

leitor. É neste ponto que a mimesis III se une à mimesis II. A composição narrativa se dirige a

um público, a um leitor que se apropria da narrativa. O leitor ou o ouvinte, ao ler ou ouvir a

narrativa, apropria-se desta, fazendo a refiguração de sua própria realidade pela „fusão de

horizontes‟, na expressão de Gadamer, que Ricoeur explica como a fusão do horizonte do

mundo do leitor com o horizonte do mundo do texto. (cf. GENTIL, 2008, p. 161). O leitor,

pelo ato de ler, passa pela composição narrativa e refigura sua própria realidade através da

fusão de horizontes, nascendo para ele um novo horizonte.

Podemos perguntar: Não é com a refiguração que poderemos encontrar “o” sentido da

vida que estamos à procura ao longo deste trabalho? Para responder a tal pergunta, temos que

continuar o desdobramento da mimesis, que faz a ligação entre o leitor e a composição

narrativa, chamada mimesis III.

3.3 Mimesis III – refiguração.

A composição narrativa passa por diversos processos. Como vimos, ela nasce do

mundo da ação (o tempo prefigurado da ação), passa pelo mundo configurado da composição

(o tempo configurado) dirigindo-se a um leitor ou a vários leitores, que se apropriam da

composição narrativa, acontecendo aí a refiguração do mundo leitor. É a relação entre a

composição narrativa e o mundo do leitor que marca a mimesis III. O leitor, apropriando-se da

composição narrativa através do ato de leitura, refigura seu próprio mundo.

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“Eis a totalidade do círculo hermenêutico articulado com uma clareza em termos de

prefiguração, configuração e refiguração: de uma certa pré-compreensão do que seja

o mundo da ação, vai-se ao encontro do mundo do texto, passa-se por ele e dele

retorna-se ao mundo da ação com uma nova compreensão...”(GENTIL, 2008, p. 24).

O desdobramento da mimesis constitui um círculo hermenêutico, que parte do mundo

da ação e retorna ao mundo da ação, porém, para se retornar ao mundo da ação, agora

refigurado, é necessário um leitor que leia a composição. É pelo ato de leitura que a

composição ganha vida. O ato de ler atualiza a composição narrativa e sua capacidade de ser

seguida. “...Seguir uma história é atualizá-la na leitura.”(RICOEUR, 1994, p. 118). No

encontro entre a obra configurada e o leitor, a composição narrativa se atualiza ganhando

pleno sentido pelo ato de leitura. Diz Ricoeur: “Se a tessitura da intriga pode ser descrita

como um ato do juízo e da imaginação produtora, é na medida em que esse ato é a obra

conjunta do texto e de seu leitor...”(RICOEUR, 1994, p. 118). Na configuração, a composição

narrativa ganha autonomia e põe diante do leitor um mundo que pode ser habitado, um mundo

de possibilidades. À medida que o leitor se apropria da obra configurada através do ato de

leitura, a narrativa ganha seu pleno sentido, proporcionando a refiguração do mundo da ação.

“O que é comunicado (...) é, para além do sentido de uma obra, o mundo que ela projeta e que

constitui seu horizonte.”(RICOEUR, 1994, p. 119).

A obra configurada comunica ao leitor não só seu sentido, mas também um mundo de

possibilidades passível de ser apreendido pela leitura. Que mundo é este que a composição

narrativa projeta? Devemos recordar que a mimesis II sintetiza de forma inteligível vários

elementos heterogêneos do mundo da ação, configurando-os “...através de um trabalho de

linguagem, de composição de linguagem, determinadas formas de „figuras‟ desse estar no

mundo.”(GENTIL, 2009, p. 248). A composição narrativa projeta um mundo construído pela

imaginação produtora e esse mundo apresenta figuras do estar no mundo. “...Figuras que são,

antes de tudo, construções imaginárias fixadas em linguagem, materializadas pela linguagem,

inscritas no mundo pelo trabalho sobre a linguagem realizado pelo autor, trabalho que tem

como produto uma obra...” (GENTIL, 2009, p. 248). Assim, a composição narrativa em forma

de ficção refaz o mundo da ação através de uma configuração; esta, por sua vez, traz um

mundo para ser habitado, um mundo de possibilidades. O leitor, por sua vez, acolhe através

do ato de leitura o horizonte mundo da composição narrativa. A relação entre estes dois

mundos, do leitor e do texto, faz com que a inteligibilidade construída pela configuração

ganhe vida, isto é, seja “reativada”e ao mesmo tempo, o leitor, através da leitura, pode

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refigurar a própria vida. “Conhecemos a nós mesmos – e nos constituímos – através da

mediação dos textos da cultura que lemos e amamos, afirma Ricoeur. Apropriamo-nos deles,

eles se apropriam de nós.”(GENTIL, 2009, p. 36). É justamente apropriando-nos das

composições narrativas e deixando-nos ser “tomados” ou levados por ela, através do ato de

leitura, que podemos refigurar nossa própria vida. O leitor, entregando-se ao mundo do texto

através do ato de leitura, tem possibilidade de redesenhar sua própria ação no mundo.

“É aí que ganha palavras e formas para nomear sua experiência do mundo, é aí que

ele é formado, é aí que sua subjetividade é também forjada, pela mediação do texto.

Esse sujeito não apenas encontra palavras e modos de dizer sua experiência do

mundo, mas tem sua sensibilidade, sua própria maneira de experimentar o mundo,

desenhada por essa passagem pelo texto.”(GENTIL, 2009, p. 37).

A composição narrativa configurada, articulada de modo inteligível, projeta um

mundo de possibilidades com várias significações, que uma vez apropriadas pelo leitor,

redesenham sua própria ação no mundo. É pelo ato de leitura que o leitor penetra no texto,

podendo encontrar aí várias significações para sua vida. É nessa relação que acontece a

refiguração, acontece a re-significação através da narrativa do que foi pré-significado na ação

humana (cf. RICOEUR, 1994, p. 124). Uma obra nasce da pré-figuração do mundo, passa

pela composição narrativa e retorna ao mundo da ação como uma nova compreensão do

mundo, através do ato de leitura. Assim, fazendo a leitura de alguma obra narrativa, temos a

oportunidade de habitar nela e encontrar novas significações para o mundo da ação.

A composição narrativa, com seu mundo configurado pelo texto, uma vez apropriada

pelo leitor, que também possui um mundo próprio, participa de uma “fusão de horizontes”. É

no encontro desses dois horizontes que o mundo do leitor é refigurado.

“O horizonte do mundo do leitor fundiu-se com o horizonte do mundo do texto, e

um novo horizonte se apresenta agora a ele, não necessariamente de forma temática,

pensando explicitamente ou elaborado reflexivamente, mas em suas práticas,

dotadas de novas significações a partir da sua “travessia” pelas estruturas daquele

outro mundo. O seu esquema original de figuração do mundo, de seu mundo

significativo, saiu transforamado, provavelmente enriquecido, do seu

atravessamento pelo esquema de figuração da narrativa.”(GENTIL, 2008, p. 161).

O leitor, ao atravessar o mundo do texto pelo ato de leitura, transforma suas

significações porque encontra novas significações no mundo do texto. No ato de leitura o

leitor pode rever seus próprios significados, seus valores, sua maneira de ver e de se

posicionar no mundo. O “...sujeito mostra-se, então, constituído ao mesmo tempo como leitor

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e como escritor da própria vida...”(RICOEUR, 1997, p. 425). Ele interpreta, no mundo do

texto, a proposta de um mundo em que possa habitar e no qual possa projetar seus possíveis.

(cf. RICOEUR, 1994, p. 123). É neste ponto que o leitor, através do ato de leitura, consegue

refigurar o mundo da ação. É “...todo o „mundo da ação‟ do leitor que é refigurado, tem seu

horizonte redesenhado...”(GENTIL, 2009, p. 37). O que foi configuração do mundo ação,

agora através do leitor será refigurado pela leitura. O leitor, aprofundando-se na leitura, vai se

tornando capaz de compreender o texto e de compreender-se diante do texto. (cf. RICOEUR,

1989, p. 124). É neste momento que o leitor, suspenso de sua compreensão finita, vinculada

ao próprio ego, cria possibilidades de compreender a si mesmo de um modo diferente do que

fazia.

Enfim, ao longo deste capítulo, vimos que a composição narrativa configura

criativamente o mundo da ação, mundo que antes de ser configurado apresentava elementos

heterogêneos, diversos e discordantes, mas que, uma vez configurados, ganham

inteligibilidade, ganham um certo sentido lógico. Podemos dizer que o que era discordante no

mundo ação, na composição narrativa ganha concordância. Porém, para que uma composição

narrativa seja viva ou se complete, é necessário um leitor que acompanhe a narração e dê a ela

significação. É exatamente aqui, como leitor, que uma pessoa, através do ato de leitura,

refigura sua própria ação no mundo, podendo retirar da composição narrativa infinidades de

significações para sua própria vida. São significações que podem mudar sua maneira de se

colocar no mundo e sua maneira de agir no mundo.

Lembramos que as significações de que o leitor se apropria na composição narrativa,

são significações que nascem do mundo da ação e, após serem configuradas em forma de

composição narrativa, retornam ao mundo da ação, depois de apropriadas pelo leitor. Por

isso, podemos dizer que as composições narrativas, ao transmitir seu horizonte mundo ao

leitor, não estão transmitindo “algo” desconectado das ações dos homens, “algo” retirado do

nada, mas transmitem o mundo da ação que foi configurado em forma de narrativa. As ações

dos homens, que foram mimetizadas em forma de composição narrativa, uma vez

estruturadas, organizadas de uma certa maneira, transmitem ao leitor ou a vários leitores

várias significações do seu horizonte mundo, que uma vez apropriadas pelo ato de leitura,

redesenham o horizonte mundo do leitor, “...é todo o “mundo da ação” do leitor que é

refigurado...”(GENTIL, 2009, p. 37). Assim, com o ato de leitura, o leitor redesenha sua

própria maneira de agir no mundo, encontrando na narrativa várias possibilidades de sentido

para suas ações.

Podemos dizer que mimesis III marca o ponto de chegada e também um ponto de

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partida, pois o leitor, no ato de leitura, refigura seu mundo da ação iniciando uma nova

compreensão do mundo e um novo sentido para suas ações. A cada ato de leitura, acontecem

novas refigurações e novas possibilidades de re-significações do mundo da ação. É

exatamente aqui, na refiguração do mundo do leitor, que encontramos possibilidades de

encontrar um sentido para vida, como mostraremos no próximo capítulo.

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IV CAPÍTULO – A relação da noção de narrativa com a questão do sentido da vida.

No quarto capítulo vamos retomar a questão da narrativa e da temporalidade, tentando

mostrar com mais clareza como a narrativa se vincula à vida e em seguida vamos aproximar a

noção de narrativa à questão do sentido da vida apresentada por Viktor Frankl, como vimos

no primeiro capítulo.

Durante o percurso sobre a noção de narrativa de Paul Ricoeur, percebemos que o

grande desafio do filósofo é relacionar a questão do tempo com a narrativa e mostrar que o

tempo se torna humano à medida em que é narrado. Ricoeur diz, como já citamos no segundo

capítulo:

“Tive – não saberia dizer quando – uma espécie de lampejo, a saber, a intuição de

uma relação de paralelismo invertido entre a teoria agostiniana do tempo e a noção

de mythos em Aristóteles, na poética. Foi essa espécie de súbita cumplicidade entre

a distentio animi do Livro XI das Confissões e o mythos aristotélico que foi, mais

tarde, não só determinante mas seminal; a idéia, para parafrasear quem há pouco

referíamos, de que o tempo é estruturado como narrativa. Tal foi a carta que joguei

nesse livro: até onde podemos ir na pressuposição de que o tempo só se torna

humano quando é narrado?...”(RICOEUR, 1995, p. 115).

É a partir dessas duas teorias independentes que Ricoeur fará uma ponte,

estabelecendo uma ligação entre a narrativa e o tempo (cf. RICOEUR, 1994, p.16). Diz o

filósofo, o “...mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal (...) o

tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo

narrativo...”(RICOEUR, 1994, p. 15).

Ricoeur, a fim de mostrar que o tempo se torna humano à medida que narramos,

procura primeiramente, como vimos, aprofundar-se na questão do tempo em Agostinho.

Depois de percorrer toda a questão do tempo situada no livro XI das Confissões, Ricoeur

conclui que para Agostinho o tempo é distensão da alma, pois só pode ser medido no interior

do homem que sofre constantemente distentio e intentio. A alma sofre constantemente

discordância, dilaceramento. É exatamente aqui que Ricoeur procurou ir mais a fundo na

questão do tempo, relacionando-o com o conceito de mythos retirado da poética de

Aristóteles. O filósofo traduz o mythos como intriga, que significa a arte de compor uma

história bem construída. O mythos organiza os fatos em uma composição, não de forma

apenas cronológica, mas de forma lógica, construindo uma inteligibilidade narrativa. A

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composição narrativa, organizando os vários acontecimentos, dando a estes uma certa

inteligibilidade, também articula a passagem do tempo, os três tempos: passado, presente e

futuro.

Quando afirmamos que a narrativa articula o tempo, podemos dizer que a narrativa

articula o tempo humano, a distensão da alma, articula as ações dos homens que agem no

mundo, articula-as em forma de composição narrativa e, se articula o tempo humano, ela

articula a vida dos homens. Diz Ricoeur, “...devemos ressaltar que a mistura entre agir e

sofrer, entre ação e sofrimento, que constitui a própria trama de uma vida. É essa mistura que

a narrativa tenta imitar de maneira criativa.”(RICOEUR, 1991, p. 28).8 A narrativa, além de

mimetizar as ações do homens, também mimetiza e organiza a vida dos homens, homens que,

além de agir no mundo, também sofrem, alegram-se, trabalham e relacionam-se, é este

conjunto de ações e vivências dos homens que são consideradas juntas e articuladas na

composição narrativa.

Segundo Ricoeur, para conhecer a identidade de um sujeito ou de uma comunidade é

necessário saber quem fez tal ação. Quem é o agente da ação, o seu autor? E segundo ele,

essa questão primeiramente é respondida nomeando alguém, designando-o por um nome

próprio. Porém, qual é o suporte de permanência do nome próprio? O que justifica e se

considera o sujeito da ação, assim como seu nome próprio ao longo de toda uma vida? Para

responder à essa questão colocada por ele mesmo, Ricoeur afirma que é por meio da narrativa,

da história narrada que podemos descobrir a identidade de um sujeito. Citando Hannah

Arendt, Ricoeur diz que responder à questão quem? é contar a história de uma vida. (cf.

RICOEUR, 1997, p. 424). A história narrada descreve o quem da ação. Pelas histórias

narradas podemos conhecer a identidade de um sujeito e, ao mesmo tempo, podemos nos

conhecer pelas histórias que narramos e lemos. Um sujeito, quando narra sua própria história,

está mimetizando sua própria ação no mundo e ao mesmo tempo está mimetizando o que

contaram a seu respeito. E é nessa mimetização que o sujeito ordena e articula vários

acontecimentos da vida, de sua própria vida, em uma única história, dando a esses vários

acontecimentos uma certa inteligibilidade e sentido lógico. É exatamente por isso que uma

narrativa consegue proporcionar ao sujeito a identidade narrativa. Contando e recontando sua

própria história, o sujeito articula o passado, o presente e o futuro de sua história de vida e

com isso consegue dar algum sentido às suas ações.

O sujeito, constituído ao mesmo tempo como leitor e escritor de sua própria vida, ao

8 “…we must underscore the mixture of acting and suffering which constitutes the very fabric of a life. It is this

mixture which the narrative attempts to imitate in a creative way.”

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se apropriar do mundo de possibilidades da composição narrativa, encontra nessas ações que

foram articuladas e ordenadas significativamente a possibilidade de transmitir um horizonte

de significações, que podem proporcionar ao sujeito ou a outro leitor possibilidades de

encontrar um sentido para sua vida. “O sujeito se lança para além de sua existência

puramente biológica, meramente corporal, e ganha „representação‟, inserindo-se numa

história, ganhando uma história.”(GENTIL, 2008, p. 159). A vida humana ganha significação,

torna-se propriamente humana, quando o sujeito narra sua própria história e quando se

apropria da narrativa pelo ato de leitura, pois a narrativa retorna ao mundo da vida de onde

partiu através do leitor.

Embora a vida e a narrativa sejam coisas distintas, há uma imbricação entre o viver e o

narrar; contamos nossas histórias e aprendemos com as histórias do outros. São nas histórias

narradas, articuladas de um certo modo inteligível que podemos encontrar vida e, se podemos

encontrar vida na narrativa, podemos, pela apropriação das narrativas, encontrar “algo” que

possa motivar nossas vidas. Podemos então perguntar: Como podemos encontrar um sentido

para vida na composição narrativa?

Primeiramente podemos responder esta pergunta dizendo que um sujeito, ao narrar sua

própria história e percebendo-se como personagem de sua história de vida, descobre sua

identidade a partir dessa história narrada, que foi articulada e ordenada por ele. Narrando sua

história, o sujeito consegue perceber, ao longo de toda a narração, o fio que lhe dá

permanência ao longo do tempo em sua história de vida. E é exatamente aí, na descoberta

dessa permanência, dessa identidade, que um sujeito, conhecendo-se e reconhecendo-se ao

longo da narração, consegue perceber o que motiva sua vida, o que dá razão de ser à sua

existência. Porém, como o próprio Ricoeur afirma, uma narração não se encerra na

configuração narrativa, pelo contrário, ela nasce no mundo da vida e se encerra no mundo da

vida através do leitor, que pode ser o próprio escritor ou qualquer outro leitor, que através do

ato de leitura se apropria da configuração narrativa, transformando sua maneira de ver o

mundo e de se posicionar nele.

É nesse segundo ponto que acreditamos encontrar maiores possibilidades de uma

pessoa encontrar um sentido para vida, pois, ouvindo e lendo a história de outros e ao mesmo

tempo articulando-se e equiparando-a com sua própria história, ela pode encontrar um sentido

para sua vida. Podemos, ao longo das histórias que nossos pais nos contaram, das histórias

que contaram a nosso respeito, das histórias que ouvimos dos outros, das histórias que lemos

e amamos, ir descobrindo um sentido para nossas vidas, algo que dê motivação à nossa vida.

Lembramos que Viktor Frankl, ao falar sobre a pessoa que busca encontrar

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constantemente um sentido para vida, não está se referindo a um sentido para uma vida toda,

mas o sentido daquele instante, daquele momento. Diz ele, “...cada dia, cada hora proporciona

um novo sentido...”(FRANKL, 1990, p. 46). Logo, quando estamos dizendo que uma pessoa,

ao se apropriar de uma composição narrativa, pode encontrar aí um sentido para sua vida, não

estamos querendo dizer que encontrará um sentido para toda a sua vida ou algo que a motive

sua vida ao longo de toda sua história de vida. Mas dizemos que uma pessoa, ao se apropriar

de uma composição narrativa, pode encontrar naquele instante “algo” que dê um sentido para

sua vida naquele momento, e que pode durar uma hora, um dia ou até mesmo uma vida toda,

pois o sentido varia de pessoa para pessoa e de situação para situação, como afirma Frankl.

Sem fugir da resposta à pergunta de como podemos encontrar um sentido para nossas

vidas pelas composições narrativas, vamos continuar detalhando o segundo ponto, em que

acreditamos estarem as maiores possibilidades de encontrar um sentido para nossas vidas, que

é através da composição narrativa.

Segundo Ricoeur, como já afirmamos no terceiro capítulo, é na mimesis III que ocorre

o encontro entre a obra configurada com seu mundo próprio e o mundo do leitor que se

apropria da obra. É na apropriação da obra, através do ato de leitura, que se funde o horizonte

mundo do leitor e horizonte mundo do texto, ocorrendo a “fusão de horizontes” na expressão

de Gadamer ou a refiguração na expressão de Ricoeur. Com a refiguração a obra, que nasceu

no mundo da vida, retorna ao mundo da vida através do leitor que se apropria da obra através

da leitura. É no processo de apropriação da obra pelo leitor que essa ganha novos sentidos,

interpretações e ao mesmo tempo refigura o mundo do leitor, transformando sua maneira de

ver o mundo e a si próprio. É aqui, através da composição narrativa, que vemos a

possibilidade de encontrar um sentido para nossas vidas, pois tanto um sujeito, que narra sua

própria vida, quanto um leitor, ao se abrir totalmente à proposta de mundo projetada pela

composição narrativa, suspendendo sua capacidade finita de compreender e perdendo-se no

ato de leitura, podem não só redesenhar seu modo de agir, mas também encontrar na narrativa

um sentido para sua vida.

Como vimos no primeiro capítulo, o sentido da vida é encontrado conforme nos

abrimos ao mundo e nos relacionamos com as situações do mundo, é nessa abertura que nos

deixamos ser questionados pelas situações do mundo e também questionamos as situações, e é

aí que podemos descobrir o que é único e original para aquele momento, ou seja, um sentido

para a vida. Por isso podemos afirmar que uma pessoa que tem seu mundo próprio, ao se

aproximar como leitor, através do ato de leitura, abrindo-se ao mundo da composição

narrativa, pode encontrar um sentido para sua vida, diante das várias possibilidades de vida

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que se abrem aí; essa pessoa está se deixando encontrar mediante sua abertura à proposta de

mundo projetada pela composição narrativa.

4.1 Aproximando a noção de narrativa à questão do sentido da vida.

Iremos aproximar a noção de narrativa de Ricoeur à questão do sentido da vida em

Viktor Frankl, como abordamos no primeiro capítulo. Os dois autores abordam questões

distintas, pois no primeiro o que vemos é a proposta de relacionar a natureza do tempo e a

narrativa, e no segundo a atenção está centrada no ser humano que tem sede de sentido para

vida. A nossa hipótese é que é possível relacionar esses dois autores e construir uma

articulação entre a noção de narrativa e a questão do sentido da vida em Frankl.

Para realizarmos essa aproximação vamos recordar brevemente a questão do sentido

da vida em Frankl, visto que a noção de narrativa já se tornou mais clara. No primeiro

capítulo, vimos que o sentido da vida para Viktor Frankl são as motivações que encontramos

na existência. Diz ele, a “...logoterapia acaba por estabelecer um confronto entre a existência e

o logos. Em teoria, não faz mais do que tomar o logos por motivação da

existência.”(FRANKL, 2003, p. 97). Para ele “o termo logos é uma palavra grega e significa

sentido!”(FRANKL, 2008, p. 124). O sentido identifica-se com encontrar motivos para viver,

motivações para existência. “...Diria eu que o homem realmente quer, em derradeira instância,

não a felicidade em si mesma, mas antes um motivo para ser feliz.”(FRANKL, 1991, p. 11).

Segundo Frankl, “o homem (...) precisa ter um objetivo de vida, uma tarefa a cumprir

consentânea com suas aptidões, em suma, uma vida que lhe ofereça desafios

permanentes...”(FRANKL, 1991, p. 65).

O sentido que Frankl desenvolve em suas obras pode ser definido como motivações da

existência, motivações que encontramos em cada situação e ao longo da vida. Porém, para que

uma pessoa possa encontrar um sentido em sua vida, é necessário da sua parte ser aberta ao

mundo, ser aberta às diversas circunstâncias da vida. Sendo aberto e relacionando-se com as

situações concretas do dia-a-dia, como o trabalho, o estudo, a vida familiar e mesmo os

sofrimentos, o homem cria a oportunidade de encontrar o sentido por que tanto anseia. Diz o

autor, “...o sentido não significa algo abstrato; ao contrário, é um sentido totalmente concreto,

o sentido concreto de uma situação com a qual uma pessoa também concreta se vê

confrontada...”(RICOEUR, 1992, p. 79).

Podemos dizer que para Frankl o homem pode realizar um sentido para sua vida

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conforme vai se relacionando no seu dia-a-dia, conforme vai se abrindo e se deixando

questionar por cada situação. Cada “...situação na vida constitui um desafio para a pessoa e

lhe apresenta um problema para resolver (...), cada pessoa é questionada pela vida; e ela

somente pode responder à vida respondendo por sua própria vida...”(FRANKL, 2008, p. 133).

Assim, como já afirmamos no primeiro capítulo, o homem, que vive no mundo é questionado

pelas situações e também questiona as situações e dessa relação vão nascendo as motivações

que animam sua existência. Portanto, cada situação torna-se para o homem uma oportunidade

única para encontrar os motivos que podem animar sua vida. É interessante observar que o

sentido da vida não é uma “coisa” ou “algo” que possa ser apreendido, pego, mas é

experiência, que dá a razão de ser à existência do homem, é o que motiva sua vida e só pode

ser encontrado conforme ele se abre para as diversas circunstâncias da vida e se relaciona com

elas. O sentido para a vida é realizado a partir do movimento do homem para mundo e do

mundo para o homem. É nesse sentido que se pode afirmar que o homem não está pronto no

mundo, mas vai se construindo dia-a-dia, conforme se relaciona. “...O homem jamais „é‟,

„sempre chegará a ser‟...”(FRANKL, 1978, p. 232). E é sendo cada vez mais aberto ao

mundo, através dos diversos relacionamentos tanto com as coisas como com as pessoas, que o

homem pode encontrar um sentido para sua existência.

Assim, segundo Frankl, o homem só pode realizar sua essência na existência, ou

melhor, o homem só pode encontrar motivações para sua vida conforme se relaciona com a

vida. É buscando e relacionando-se que o homem pode encontrar as motivações de sua

existência ou o sentido para sua vida. Para o autor, o homem vive em uma tensão constante

entre o ser e o dever-ser; ser, pelo que é no momento (uma pessoa que anseia por realizar um

sentido para sua vida) e o dever-ser, pelo que ainda não realizou (por não ter conseguido

encontrar as motivações de sua vida). É exatamente aqui que levantamos vários

questionamentos.

Se as circunstâncias da vida mudam constantemente e se várias circunstâncias

aparecem sem mesmo esperarmos, como podemos encontrar um sentido para nossas vidas?

Como uma pessoa envolvida com as diversas circunstâncias, tantas vezes circunstâncias

difíceis de serem “decifradas”, pode encontrar um sentido para sua vida? Como a pessoa pode

pelo menos pontuar o sentido de sua vida dizendo: “vou por este caminho que talvez seja o

melhor, ou isto me dá rumo à vida”? Seguindo a reflexão de Viktor Frankl é necessário da

parte do homem procurar a cada momento e estar sempre aberto, envolvido com as diversas

situações para encontrar respostas que motivem sua vida. Para o autor não é possível

encontrar uma resposta precisa a respeito de como encontrar o que motiva sua existência. É

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necessário haver sempre abertura e relacionamento, abertura ao outro e ao mundo.

Foi na tentativa de encontrar uma resposta mais precisa ou pelo menos um ponto para

nos situarmos a respeito do sentido da vida, diante das diversas circunstâncias que mudam

constantemente, que abordamos a noção de narrativa de Paul Ricoeur. Observa Ricoeur que,

por meio da composição lingüística em forma de composição narrativa, o leitor, através do ato

de leitura, pode redesenhar sua ação no mundo. A cada ato de leitura, o leitor pode

resignificar suas ações. O que em Viktor Frankl não conseguimos “apreender” nem pelo

menos pontuar, em Paul Ricoeur, pela noção de narrativa através do processo de tessitura da

intriga e de um modo especial com a refiguração, conseguimos. É como leitor que o homem,

suspendendo sua capacidade finita de compreender, entregando-se ao ato de leitura, abre-se à

proposta de mundo projetada pela composição narrativa. Destarte conseguimos, através do

mundo do texto, encontrar várias significações que podem mudar nossa ação no mundo.

Lembramos que o mundo configurado na composição narrativa é mimesis das ações dos

homens, ações que, segundo Ricoeur, nos remetem a motivos que explicam por que alguém

faz ou fez algo, ações que têm um agente, alguém que faz algo. São essas ações que se

referem sempre a alguém, a seus atos no mundo, que são imitadas criativamente em forma de

composição narrativa e, uma vez configuradas, projetam várias significações para aquele que

faz a leitura. Por isso, como já afirmamos, as significações são projetadas da obra

configurada, não se trata de algo desligado do mundo, pelo contrário, as composições

narrativas projetam para seus leitores o mundo da ação, que nasceu da vida dos homens e que

retorna ao mundo dos homens pelo ato da leitura. Se uma pessoa que busca um sentido para

vida penetrar na composição narrativa através do ato de leitura, podemos dizer que essa

pessoa, mesmo não sabendo qual o assunto ou a história de que trata a composição narrativa,

mesmo assim, ela pode encontrar um sentido para sua vida. Afirmamos isso porque a

narrativa diz do mundo dos homens, mimetiza as ações dos homens que, às vezes, não tinham

nenhuma significação para aquele que escreveu, mas, após a configuração, ganham um certo

sentido. Podem ser assim apropriadas por qualquer leitor, que pode encontrar aí possibilidade

de sentido para vida.

Mesmo vivendo, como já afirmamos no início do trabalho, em dias de constantes

mudanças, no turbilhão de correria do dia-a-dia, em circunstâncias tão variáveis, vemos que,

pela composição narrativa, que mimetiza as ações dos homens em forma de composição,

dirigindo-se a um leitor ou a vários leitores, podemos ter possibilidade de encontrar um

sentido para vida.

A noção de narrativa de Ricoeur torna-se uma resposta para a nossa questão do sentido

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da vida, a narrativa revela-se como um meio que pode nos ajudar a viver com as mudanças

que ocorrem no nosso dia-a-dia. Embora as situações possam mudar constantemente, um

leitor, ao se apropriar de uma composição narrativa por meio da leitura, encontra aí uma

“situação” articulada com sentido, com lógica; pode assim encontrar, em uma composição

narrativa que lhe agrada, um sentido para sua vida. A narrativa “torna-se” uma situação

concreta para aquele que busca um sentido para sua vida, torna-se um terreno seguro e estável

em meio às situações que mudam constantemente.

Embora Viktor Frankl e Paul Ricoeur partam de reflexões distintas, podemos

aproximar esses dois grandes pensadores, porque ambos buscam ir além do sujeito que se

auto-intitula absoluto, de um sujeito egocêntrico. Em Frankl, para encontrar o que realmente

motive sua existência, o homem não pode ficar pensando em si mesmo, no próprio prazer ou

no poder, ao contrário, deve sair de si em direção a algo ou alguém. Já para Ricoeur, só

podemos nos conhecer e nos compreender à medida que nos relacionamos com as obras

escritas, conhecemos a nós mesmos através da mediação dos textos da cultura que lemos e

amamos. O “...„eu não pode apropriar-se de si senão nas expressões da vida que o

objetivam...”(RICOEUR, 1978, p. 19). O “eu” não pode se reconhecer de modo imediato, é

necessária a mediação das obras, é saindo de si mesmo que a pessoa se conhece e se

reconhece.

Em ambos a abertura do homem é extremamente importante, embora no primeiro a

abertura se direcione às diversas circunstâncias da vida e no segundo a abertura seja para o

texto como obra, pode-se observar que o texto como obra não deixa de ser circunstância da

vida, pois configura o mundo da ação. É somente saindo de si mesmo, sendo aberto aos outros

que o homem pode se encontrar. Tanto para Frankl quanto para Ricoeur, o que caracteriza o

existir de uma pessoa é que esta vive no mundo, está inserida na história e dentro dessa

história existe uma multiplicidade de possibilidades que podem motivar sua vida.

4.2 A busca do sentido da vida e o livro Em busca de sentido – um psicólogo no campo de

concentração.

Em nosso terceiro capítulo apresentamos o desdobramento mimético de Paul Ricoeur

e o processo de refiguração pelo qual tanto o sujeito da narração quanto o leitor conseguem

redesenhar a própria vida através da composição narrativa. Pelo ato de leitura refiguramos

nossa ação no mundo. Observamos que, pelas composições imaginárias, conseguimos retirar

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várias significações que podem mudar nossa própria realidade e através dessas várias

significações também podemos encontrar sentido para nossas vidas. Quanto mais fazemos

leituras, mais temos oportunidades de resignificar nossa própria vida e encontrar sentido para

ela. Nos pontos anteriores buscamos relacionar a questão do sentido da vida de Viktor Frankl

com a noção de narrativa de Paul Ricoeur e percebemos que para ambos os autores, para que

uma pessoa possa se conhecer, é necessária a abertura de si em direção a algo ou alguém.

Com este ponto pretendemos conhecer um pouco o livro Em busca de sentido de

Viktor Frankl, tentando pensar o quanto uma narrativa pode ajudar o leitor e o próprio autor a

buscar um sentido para vida. A fim de mostrar que a partir do livro de Frankl podemos

encontrar histórias que podem nos ajudar a encontrar um sentido para nossas vidas, citaremos

alguns exemplos de seu livro, que narram sua experiência pessoal e a de seus companheiros

de prisão. Vamos dividir a reflexão deste ponto em duas partes: primeiramente vamos mostrar

qual foi a intenção do autor ao escrever o livro e o que aconteceu após sua publicação. Em

segundo lugar pretendemos citar alguns exemplos relatados por Frankl de que é possível

encontrar um sentido para vida, mesmo em situações de sofrimento.

4.3 A narrativa de Viktor Frankl no campo concentração.

Viktor Frankl vivenciou os limites da existência humana no campo de concentração.

Frankl, sendo judeu, foi preso pelos nazistas no ano de 1942 e libertado no ano de 1945.

Durante a prisão passou fome, frio, sofrimentos e humilhações, mas não se abateu. Narra em

sua autobiografia como uma pessoa pode não se deixar absorver ou se aniquilar em sua

humanidade, mesmo passando pelos piores sofrimentos, como no caso, sendo prisioneiro em

um campo de concentração. Assim, mesmo uma pessoa passando pelos piores sofrimentos,

como por exemplo, sendo prisioneiro “sem nada ter feito”, simplesmente por causa de sua

raça, ainda assim pode ir além de si mesmo. O ser humano pode sempre ir além, superar-se

em função de um sentido para sua vida, como desenvolvemos no primeiro capítulo.

A fim de animar várias pessoas que buscam constantemente um sentido para vida e

várias pessoas que não encontram rumo em suas vidas, pessoas desesperadas e sem sentido, o

autor, no mesmo ano em que saiu da prisão, escreveu sua experiência no campo de

concentração, intitulando seu livro como: Em busca de sentido – um psicólogo no campo de

concentração. Para sua surpresa, após o lançamento do livro, seu nome tornou-se conhecido e

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sua narrativa sobre o campo de concentração tornou-se um best-seller atingindo vários

leitores de diversos lugares do mundo.

Diz em seu prefácio: “...havia querido simplesmente transmitir ao leitor, através de um

exemplo concreto, que a vida tem um sentido potencial sob quaisquer circunstâncias, mesmo

as mais miseráveis...”(FRANKL, 2008, p. 10). Ao escrever sua experiência no campo de

concentração e de um modo especial sua experiência no campo de Auschwitz, o autor não

pretendia que sua obra ou sua pessoa se tornassem famosas, pretendia simplesmente transmitir

a vários leitores que, mesmo nas situações mais miseráveis, como a situação do campo de

Auschwitz, é possível retirar uma lição para vida, é possível dar respostas positivas mesmo

que as situações sejam negativas. Embora Frankl não tivesse previsto a proporção que iria

alcançar seu livro, tinha a intenção de revelar a vários leitores que é possível buscar um

sentido para vida mesmo diante das situações mais difíceis e desesperadoras do dia-a-dia.

O livro Em busca de sentido – um psicólogo no campo de concentração, não se trata,

como o próprio autor afirma, de fatos externos, mas de suas próprias experiências e as de

milhares de prisioneiros que passaram por fome, humilhações e tortura nos campos de

concentração nazistas. É uma história contada por quem viveu por mais de dois anos os

horrores da ação de um homem sobre outro homem. Frankl, que vivenciou e presenciou

muitos sofrimentos e até mesmo muitas mortes, transmite em sua narrativa a história de

prisioneiros comuns e desconhecidos, que eram desprezados pelos capos (prisioneiros que

dispunham de privilégios – os guardas do campo de concentração). Os prisioneiros comuns

eram os que passavam fome, que lutavam por um pedaço de pão a cada dia, que sofriam

torturas, que morriam de inanição, que adquiriam doenças pelos maus tratos, pela

desumanização, pelo trabalho forçado e por todos os tipos de atrocidades. São as histórias

dessas pessoas e a sua própria história, como prisioneiro comum, que Frankl narra em seu

livro. Afirma Frankl, “...o importante não será mostrar o seu modo de vida pessoal, mas a

maneira como precisamente o prisioneiro comum experimentou a vida no campo de

concentração...”(FRANKL, 2008, p. 18). Com essa afirmação, vemos que as histórias que

narra são as histórias do dia-a-dia do campo de concentração, histórias de milhares de

prisioneiros anônimos e desconhecidos, histórias de pessoas que lutaram por sua dignidade e

de pessoas que se entregaram à morte por não resistirem a tanta pressão e a tantos

sofrimentos. Queremos levantar aqui que não estamos fazendo juízos sobre atos das pessoas

no campo de concentração, pois não podemos calcular o tamanho do sofrimento e

desumanização que tantas pessoas inocentes sofreram.

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Frankl, como já citamos acima, conta em seu livro os pequenos fatos do dia-a-dia, a

busca pela sobrevivência do prisioneiro comum. Veremos, citando um trecho de seu livro, que

durante a narração de sua história pessoal, o autor mistura suas conclusões pessoais sobre a

vida e a história de outros prisioneiros, o que para nós não é difícil de compreender, pois

como prisioneiro estava sempre envolvido com os outros prisioneiros. O autor narra a história

dos prisioneiros comuns, e ele próprio era também um prisioneiro comum, como diz sobre si

mesmo: “...não é sem orgulho que digo não ter sido mais que um prisioneiro „comum‟, nada

fui senão o simples nº 119.104...”(FRANKL, 2008, p. 18).

Tendo relatado a intenção do autor ao escrever sua autobiografia sobre o campo de

concentração e a repercussão que teve a obra após a publicação, vamos citar um trecho do

livro e tirar nossas conclusões sobre a narrativa do autor. O livro está dividido em três partes.

A primeira parte relata a chegada ao campo de concentração; o autor conta aí o horror que ele

e seus companheiros sentiram quando souberam que estavam no campo de Auschwitz, conta

que lhes retiraram tudo, até mesmo os cabelos, dando-lhes trapos para vestirem e passarem

frio. Passavam fome e sede, pois a única coisa que era oferecida no campo eram pequenos

pedaços de pão e sopa aguada com ervilhas. A segunda parte é chamada A vida no campo de

concentração; nessa parte do livro, que é a mais longa, o autor conta o que sentiam após um

tempo sobrevivendo dentro da prisão. Narra a apatia que muitos começavam sentir, a ausência

de dor, causada por tanto sofrimento, tantas pancadarias que sofriam dos guardas

constantemente. Nessa fase o autor também escreve sobre os sonhos dos prisioneiros, que na

maior parte eram sobre alimentos, pois passavam fome. Escreve ainda sobre o sentimento

religioso que crescia entre os prisioneiros, a luta pela sobrevivência de muitos de seus

companheiros, que procuravam encontrar respostas mesmo aí onde sofriam tanto. Na terceira

fase do livro, chamada Após a libertação, o autor narra o que sentiram e o quanto

desconfiavam da própria libertação, depois de tanto sofrimento. Conta que, tendo visto a

bandeira banca no portão do campo, ele e seus companheiros se arrastaram vagarosamente em

direção ao portão, com medo de serem espancados, olhavam para os lados desconfiados,

porém, desta vez não havia voz de comando, não havia bofetões ou pancadas, ao contrário os

guardas agiam como se nada estivesse acontecido, até ofereciam cigarros.

A obra – Um psicólogo no campo de concentração é um livro apaixonante e

envolvente, que nos ensina que podemos buscar um sentido para vida mesmo vivendo os

piores sofrimentos. Citando um trecho das várias histórias que existem na segunda parte do

livro, pretendemos mostrar através de um exemplo, que é semelhante a todo o resto do livro,

como Frankl escreve sua autobiografia e em seguida vamos tirar nossas próprias conclusões a

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respeito do trecho que será citado. Este trecho é chamado “Quando nada mais resta”. Assim

escreve Frankl:

“Vez por outra olho para o céu aonde vão empalidecendo as estrelas, ou para aquela

região no horizonte em que assoma a alvorada por detrás de um lúgubre grupo de

nuvens. Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com

uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal.

Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar

como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e - tanto faz se é real ou não a sua

presença - seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está nascendo.

Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a verdade

daquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da sabedoria, por

tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma, o bem último e

supremo que pode ser alcançado pela existência humana. Compreendo agora as

coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia – e em fé

humana: a redenção pelo amor e no amor! Passo a compreender que a pessoa,

mesmo que nada mais lhe reste neste mundo, pode tornar-se bem-aventurada - ainda

que somente por alguns momentos – entregando se interiormente à imagem da

pessoa amada. Na pior situação exterior que se possa imaginar, numa situação em

que a pessoa não pode realizar-se através de alguma conquista, numa situação em

que sua conquista pode consistir unicamente num sofrimento reto, num sofrimento

de cabeça erguida, nesta situação a pessoa pode realizar-se na contemplação

amorosa da imagem espiritual que ela porta dentro de si da pessoa amada.”

(FRANKL, 2008, p. 55).

Neste trecho Frankl mostra que ao narrar, além de contar suas experiências e as de

seus companheiros de trabalho no campo de concentração, também conta sua experiência

pessoal daquele momento, e ainda retira dessa experiência conclusões sobre o amor e sobre a

realização pessoal, quando se tem uma pessoa amada. Neste trecho que Frankl começa

narrando o cansaço que sentiam durante o trabalho na neve, onde ele e seus companheiros se

apoiavam mutuamente para não esmorecerem, e naquele instante não diziam nada, apenas se

arrastavam e se erguiam. De repente o autor deixa de relatar o que estava acontecendo no

momento e passa a narrar seu próprio pensamento, sua experiência; conta que vez por outra

voltava seus olhos para o céu onde as estrelas iam quase desaparecendo, olhava para o

horizonte recordando-se de sua esposa, que também estava presa em outro campo, e começa a

narrar o que estava sentindo com a recordação, conta que seu espírito era tomado pela figura

da sua esposa, e ele diz viver uma experiência única que nunca tinha antes vivido. Procurava

experimentar o máximo daquele momento, conversava com a figura de sua esposa, falava a

ela e a ouvia responder, via-a sorrindo, procurava ter um diálogo com ela. E assim vai

narrando a experiência por que estava passando ao recordar-se de sua esposa. É neste mesmo

instante que começa a escrever suas conclusões sobre a vida, começa a narrar que, mesmo

passando por sofrimento, quando nada mais lhe restava como aquele momento da prisão, pode

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uma pessoa voltar para seu interior e recordar as boas lembranças da vida, como no seu caso,

sua esposa. O autor conclui que isso ajuda a enfrentar o sofrimento com retidão e ainda

encontrar forças para continuar lutando pela vida.

Porém, de repente Frankl muda novamente sua narração e volta a escrever sua

experiência e a de seus companheiros de prisão, e conta que um de seus companheiros caiu

por terra, outros caíram juntos, e chegou o guarda chicoteando todos ao mesmo tempo. Enfim,

podemos ver neste trecho do livro que o autor ao escrever faz um misto entre suas

experiências pessoais, entre as experiências de seus companheiros e ainda vai refletindo e

tirando conclusões sobre a vida. Alguém pode nos perguntar: Qual a importância de analisar

todo este trecho do livro para o trabalho? Podemos responder que é de suma importância,

pois, a partir deste pequeno trecho, podemos compreender um pouco como Frankl escreve seu

livro. Vemos por este trecho, que é semelhante ao restante do livro, que Frankl ao escrever

seu livro – Um psicólogo no campo de concentração, não tem a preocupação de construir uma

narração imparcial, “neutra” sobre o campo de concentração, pelo contrário, o que vemos e

lemos é uma mistura entre suas experiências, suas reflexões e as experiências de seus

companheiros. Frankl não parece construir uma narrativa como uma totalidade, mas ao narrar

vai apresentando o que foi vivendo com seus companheiros e vai tirando conclusões sobre a

vida naquele instante. Frankl conta pequenas histórias e vai retirando conclusões sobre elas.

A narrativa de Frankl não é semelhante à narrativa como tessitura da intriga que

estamos analisando neste trabalho. No capítulo terceiro, vimos que a narração parte de mundo

da ação e se configura em composição narrativa, ganhando um mundo próprio. Com a

configuração da narrativa o autor desaparece e a composição ganha autonomia. É neste

instante que a composição é trabalhada, moldada com linguagem própria, sendo abolida a

referência ao seu autor. A composição narrativa ganha totalidade dotada de sentido, dirigindo-

se a várias pessoas que saibam ler.

Voltando nossos olhos para o livro de Frankl, podemos perceber que, ao narrar a

experiência do campo de concentração, a referência a si próprio continua. Podemos dizer que

o livro – Um psicólogo no campo de concentração – não é uma composição narrativa com as

características assinaladas por Ricoeur, mas sim um relato do campo de concentração, pois

fornece a nós leitores o equivalente da referência ostensiva do discurso no modo „como se‟

(„como se lá estivesse‟). Graças aos procedimentos de identificação singular, a referência ao

autor continua; encontramos um misto de relato de experiência pessoal, de reflexões sobre a

vida e de experiência dos prisioneiros, como mostra a citação acima.

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Podemos dizer mais uma vez, como afirmamos no segundo capítulo deste trabalho,

que para que um texto possa ganhar autonomia é necessário libertar-se da tutela de seu autor

ganhando configuração própria. É por isso que afirmamos que a história contada por Frankl

sobre o campo de concentração não é como uma narrativa que tem autonomia em relação ao

seu autor, mas sim um discurso descritivo, pois encontramos no livro de Frankl histórias sobre

o campo de concentração misturadas com suas próprias experiências e com suas reflexões a

respeito do sentido da vida, mantendo desta forma a referência ostensiva através relato sobre o

campo de concentração. Porém, embora o livro de Frankl não seja uma composição narrativa,

mas um relato de várias histórias que o autor viveu e presenciou, podemos reconhecer que as

histórias relatadas mostram-nos que várias pessoas no campo de concentração bem como o

próprio autor, mesmo vivendo os horrores como prisioneiros, conseguiram retirar de

experiências negativas respostas positivas. É o que Frankl nos mostra no trecho que citamos,

quando ele se recorda da esposa e diz ser uma experiência única mesmo naquele instante, e

também como mostra na próxima citação que faremos, que ele intitula como a “arte no campo

de concentração”.

“Arte no campo de concentração será possível isso? Claro, depende do que se chama

de arte. Vale dizer que vez por outra havia inclusive teatro improvisado.

Desocupava-se provisoriamente um barracão, improvisavam-se alguns bancos de

tábuas e elaborava-se um "programa". E à noite vêm aqueles que passavam

relativamente bem no campo, como por exemplo os Capos ou os que trabalhavam no

depósito e não precisavam marchar para o trabalho externo; eles vêm para rir ou

chorar um pouco, em todo o caso para esquecer. Apresentam-se algumas canções e

recitam-se poemas, contam-se ou apresentam-se cenas cômicas, ou mesmo sátiras

alusivas à vida no campo de concentração, tudo para ajudar a esquecer. E realmente

ajuda! Ajuda a tal ponto que alguns prisioneiros comuns, não privilegiados, vêm

para esse teatro mesmo exaustos da labuta do dia, e mesmo perdendo por isso a

distribuição da sopa. Quem fosse privilegiado com uma voz realmente boa, era alvo

de inveja, e não pouca. Durante a meia hora de intervalo do meio-dia, nos primeiros

tempos de nosso internamento no campo de concentração, era distribuída uma sopa

no próprio local da obra (a sopa era providenciada pela firma construtora, que não

tinha interesse em investir muito na mesma). Durante esse intervalo podíamos

reunir-nos na sala de máquinas ainda em construção; na entrada cada um recebia

uma concha de sopa rala. Enquanto a sorvíamos sequiosamente, um companheiro

subia num tonel e cantava árias italianas. Enquanto para nós isto representava um

deleite musical, ele tinha garantida uma ração dupla de sopa, "do fundo", ou seja, até

com ervilhas.”(FRANKL, 2008, p. 60).

Vemos que, passando pelos piores sofrimentos, os prisioneiros do campo de

concentração buscavam uma maneira de aliviar esses sofrimentos, buscavam maneiras de

encontrar motivações para sua vida na prisão. Mostra a citação que através do teatro, de

canções, de cenas cômicas, os prisioneiros, mesmo aqueles mais cansados, trocavam sua

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pouca comida para participarem das apresentações improvisadas, buscando motivos para

continuar lutando pela vida, ainda que esses motivos fossem por alguns instantes. É

interessante observar que Frankl vai descrevendo em seu livro, como ele e alguns de seus

companheiros buscavam meios para sobreviver, através das histórias que contavam, que

escutavam e que partilhavam, e que os ajudava a encontrar um motivo para sobreviver,

mesmo que por alguns instantes.

Assim, lendo o livro de Frankl, podemos encontrar várias histórias que podem mudar

nossa maneira de pensar e nossa atitude perante os sofrimentos, e ainda podem ajudar-nos a

procurar, dentro de nossas circunstâncias, maneiras variadas de encontrar motivações que

dêem rumo a nossas vidas. Os exemplos que citamos do livro mostram-nos que Frankl,

mesmo sofrendo, procurava ser otimista em relação à sua vida, procurava animar seus

companheiros e a si próprio, tendo em vista alcançar um sentido ou motivações para a vida,

naquele lugar que não tinha nenhum sentido. Vimos nos relatos de Frankl, nas histórias que

vivenciou e escreveu, que é possível procurar meios ou ter atitudes criativas para suportar os

sofrimentos, assim como ele fez, ao recordar de sua esposa, ao participar de teatros

improvisados, ao se deixar penetrar por canções e também por meio de outros exemplos que

narra em seu livro.

É interessante percebermos nos trechos do livro que citamos e também em todo o livro

que Frankl e alguns de seus companheiros, para encontrar um sentido para sobreviver naquele

lugar de horror que era o campo de concentração, procuravam maneiras criativas para contar

um pouco de suas histórias, para escutar as histórias dos outros e para partilharem. É aí que

recordamos Ricoeur, como já citamos no início deste capítulo, que afirma que história narrada

diz o quem da ação. Pelas histórias narradas podemos conhecer a identidade de um sujeito e

ao mesmo tempo podemos nos reconhecer como personagens das histórias que narramos, que

ouvimos, que lemos e amamos. Contando e recontando nossas próprias histórias, podemos

articular o tempo e com isso podemos encontrar algum sentido para nossas ações, assim como

ocorre com Frankl e seus companheiros de prisão.

Por fim, para concluir nossas reflexões sobre a obra de Frankl, vemos que o autor, ao

ser preso injustamente não se deixou abater por tantos sofrimentos, mas procurou a cada

instante, a cada situação que se apresentava a ele, encontrar respostas para poder suportar a

fome, a sede, as bofetadas e as humilhações que sofria. Frankl, como mostramos nos

exemplos citados de seu livro, soube encontrar um sentido para vida, para poder sobreviver

aos sofrimentos e ao terror por que passou por mais de dois anos na prisão.

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Frankl pode comprovar, a partir da própria vida, que o homem que vive no mundo é

questionado pelas situações e também questiona as situações, e dessa relação vão nascendo as

motivações que animam sua existência, ainda que seja uma animação por alguns instantes

para suportar o sofrimento. Podemos dizer ainda que Frankl, ao participar desses “eventos”

extraordinários do campo de concentração e ao relatar sua experiência para vários leitores,

lança sua vida para além de sua existência meramente biológica e meramente corporal,

inserindo-a numa história. Como nos diz Ricoeur, a vida humana ganha significação, certo

sentido lógico quando narramos nossas histórias ou quando ouvimos as histórias de vida de

outros.

Ainda que o livro de Frankl não seja uma composição narrativa na mesma textura do

desdobramento da mimesis, vemos que o autor nos relata várias histórias suas e de seus

companheiros de prisão e, a partir dessas histórias, podemos perceber que narrar nossa própria

história e também participar das histórias dos outros, através de cenas de teatrais, piadas e

outros meios, ajuda-nos a dar algum sentido às nossas ações. Através da mediação dos textos

da cultura que lemos e amamos, podemos encontrar motivos para vivermos. Podemos assim

concluir que, através das várias mediações da linguagem e de um modo especial da mediação

dos textos tanto descritivos como de composições narrativas, é possível encontrar

possibilidades de sentido para vida.

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CONCLUSÃO

Durante o percurso do nosso trabalho procuramos compreender a questão do sentido

da vida, seus significados e sua abordagem no pensamento de Viktor Frankl. Foi olhando para

os nossos dias que percebemos, no início deste trabalho, que vivemos em um tempo de

constantes mudanças, onde tudo é muito rápido, corrido, com tecnologias avançadas, metas a

serem atingidas, informações rápidas a todo instante. Vivemos em um tempo caracterizado

por Berman como modernidade que, segundo este, é um tempo de grandes descobertas nas

ciências físicas, mas também é o tempo da industrialização, da produção que transforma

conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos,

acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes,

enfim a modernidade é caracterizada pelo progresso e pela aceleração do ritmo de vida (cf.

BERMAN, 2007, p. 25). É em meio ao progresso e à aceleração do ritmo de vida que a

modernidade, além trazer benefícios para vida humana com novas descobertas, novas

tecnologias, traz também sérios perigos. Afirma Berman (2007) que, ao mesmo tempo em que

existe crescimento, surgem também caminhos fragmentados, superficialidades, as pessoas

ficam desorientadas em meio a tanta rapidez e com isso a modernidade não consegue mais

organizar e dar sentido à vida das pessoas (cf. p. 26). Outros autores como Francisco Duarte

Junior, Sérgio Paulo Rouanet, que também citamos no primeiro capítulo, afirmam que as

pessoas em nossos dias estão decepcionadas com a modernidade; diz Rouanet que o homem

contemporâneo está cansado da modernidade. Vemos assim que algo está acontecendo em

nossos tempos.

O filósofo brasileiro Lima Vaz é mais contundente que estes autores e afirma que

vivemos em tempos de crise, onde ocorre a transformação da produção humana do sentido em

fábrica da aparência e do não-sentido (cf. VAZ, 1994, p. 10). A modernidade encontra-se

mergulhada no modelo poético do conhecimento, um conhecimento que se dirige para o fazer

e dentro desse fazer existe a preocupação com o que é útil (cf. VAZ, 1997, p. 163). Nessa

dinâmica o protagonista é o sujeito, que passa a organizar tudo a partir do fazer e do que é

útil. Logo, o que se torna importante é a utilidade e o funcionalismo das coisas, ficando de

lado as coisas investigadas e contempladas na sua verdade, no ser (ousia), ou ainda no agir

virtuoso. Há lugar apenas para o que é útil, e muitas vezes caímos na aparência ou na

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representação. Segundo Vaz, para que possa existir produção de sentido na vida do homem é

necessário ter como objeto de conhecimento o ser das coisas, as coisas contempladas na sua

verdade e não naquilo que representam ou aparentam ser, tendo como critério decodificador o

próprio homem. Afirma o filósofo que a modernidade vive em uma crise de sentido, pois o

homem está parado na representação, naquilo que aparentam ser as coisas, na sua

superficialidade.

Assim, a partir desses autores vimos, no primeiro capítulo, que alguma coisa está

acontecendo em nossos dias, um diz que tudo está fragmentado e em constante mudança, o

outro, que as pessoas estão decepcionadas, o outro, que as pessoas estão cansadas da

modernidade, e o outro ainda afirma que vivemos em tempos de crise; percebemos a partir

desses autores que alguma coisa está acontecendo. Viktor Frankl, como vimos, também

escrevendo sobre os nossos dias afirma: “Vivemos numa época em que predomina um

sentimento difuso de que a vida carece de sentido.”(FRANKL, 1978, p. 20). Para ele, muitas

pessoas vivem o vazio existencial, que é um profundo sentimento de falta de sentido,

manifestado principalmente em nossos dias.

É em meio a esse contexto que levantamos a questão do sentido da vida. Como uma

pessoa pode encontrar um sentido para a vida em meio às circunstâncias que mudam

constantemente? Como uma pessoa pode encontrar sentido em nossos dias?

Segundo Viktor Frankl, o sentido da vida constitui a mais humana de todas as nossas

necessidades. O ser humano tem necessidade de encontrar um sentido, uma razão de ser para

sua existência. É em virtude dessa necessidade que a busca por um sentido, segundo Frankl, é

a motivação primária para o ser humano, é a principal força motivadora para sua existência.

(cf. FRANKL, 2008, p. 124). Porém, para Frankl, para que o ser humano possa realizar um

sentido existencial, é necessário que saia de si mesmo e vá em direção ao outro. Segundo ele

“...quanto mais uma pessoa esquecer se si mesma dedicando-se a servir a uma causa ou amar

outra pessoa, mais humana será e mais se realizará...”(FRANKL, 2008, p. 135). Frankl, ao

afirmar que a pessoa encontra sentido para sua vida, saindo de si mesmo em direção a algo ou

alguém, quer salientar que o sentido deve ser descoberto no mundo e não dentro si ou em sua

psique, como se fosse um sistema fechado. Afirma Frankl, seguindo a visão de homem de

Scheler, o homem é um ser aberto ao mundo, o homem não é como uma ostra, fechado em si

mesmo, é um ser aberto às diversas circunstâncias em que vive; e sendo aberto ao mundo, às

várias possibilidades que se apresentam a ele, tem oportunidade de encontrar o que mais

motiva sua vida.

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As situações da vida se apresentam diante do homem e o homem diante das situações;

é sendo aberto a estas diversas circunstâncias ou relacionando-se com elas que o homem pode

encontrar um sentido para sua vida. Daí vem a afirmação de que o ser humano só pode se

realizar ou encontrar o sentido para sua vida à medida que for aberto ao outro e às

circunstâncias em que vive. Diz Frankl, “...o sentido não significa algo abstrato; ao contrário,

é um sentido totalmente concreto, o sentido concreto de uma situação com a qual uma pessoa

também concreta se vê confrontada...”(FRANKL, 1992, p. 79). Cada situação que se

apresenta a nós é um desafio a ser resolvido e, conforme nos abrimos a essas situações

procurando encontrar respostas adequadas, podemos realizar um sentido para vida. Frankl,

que sofreu as torturas e as humilhações no campo de concentração como nos narra em seu

livro – Em busca de sentido – um psicólogo no campo de concentração, mostra

concretamente como encontrou um sentido para sua vida, ainda que por alguns instantes,

mesmo vivendo naquela situação insuportável. Frankl narra em seu livro que, embora ele e

seus companheiros de prisão vivessem em sofrimento constante, primeiramente por estarem

presos injustamente e depois por sofrerem humilhações, fome, sede, torturas e outros

sofrimentos, que não podemos calcular, ainda assim não se deixavam sucumbir pela situação,

mas procuravam maneiras de superar o próprio sofrimento, através da religião, do teatro

improvisado, do humor, das piadas e outros exemplos.

Frankl mostra a partir de sua própria vida que, mesmo vivendo os piores sofrimentos

ou as piores situações, é possível encontrar um sentido para viver, ainda que esse sentido seja

só por alguns momentos. É daí que afirmamos que o homem que vive no mundo é

questionado pelas situações e também questiona as situações, é nesse enlace que surgem as

oportunidades para se encontrar um sentido para vida; cada situação pode ser vista como uma

oportunidade única para realizar um sentido na vida. O homem, abrindo-se às diversas

situações, tem a oportunidade de encontrar “algo” que motive sua vida, mesmo nas situações

mais difíceis de serem resolvidas. Ao se abrir às diversas oportunidades e situações que se

apresentam, o homem passa a viver uma tensão saudável entre a sua existência presente e a

tentativa de realizar um sentido a cada instante, tentando aprender com as situações que se

apresentam a ele a cada momento. Assim, o homem se realiza conforme se abre para o mundo

e ao mesmo tempo se deixa questionar pelo mundo, é nessa relação do homem para o mundo

e do mundo para homem que é possível a realização de um sentido em sua vida.

A partir dessas premissas sobre o sentido da vida, percebemos que este não pode ser

“capturado” com um conteúdo preciso. Embora o autor defina seu conceito como motivações

que encontramos na existência, não podemos apreender seu conteúdo como se fosse uma

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receita que diz “faça isto ou aquilo” ou ainda “é isto ou aquilo”, pois é algo existencial, algo

que acontece conforme a abertura do homem às diversas situações que se apresentam. Porém

em nossos dias, como já afirmamos acima, as situações passam muito rápido, o dia é muito

ligeiro e às vezes, envolvidos com os trabalhos do dia-a-dia, com os problemas a serem

resolvidos, nem sempre nos damos conta do tempo passando, é exatamente por isso que às

vezes não conseguimos nos organizar, prestar a devida atenção à vida e às situações que se

apresentam a nós. Como então conseguiríamos realizar um sentido para vida, sendo que tantas

vezes nem nos damos conta das situações que mudam desenfreadamente? Como podemos

interpretar as situações que se apresentam a nós?

É devido a esses questionamentos que procuramos, ao longo do nosso trabalho,

encontrar uma resposta que possa nos ajudar na busca de um sentido para nossas vidas, uma

resposta que nos ajude a pelo menos nos “ancorar” nesta existência às vezes tão inconstante,

tão variável. Encontramos na noção de narrativa de Paul Ricoeur a oportunidade de ganhar

alguma estabilidade, com a experiência da ordenação do tempo promovida pela narrativa e a

partir daí encontrar um caminho “estável” para a questão do sentido diante das situações que,

em nossos dias, muitas vezes são tão instáveis. Colocamos a palavra “estável” entre aspas ao

nos referirmos à noção de narrativa porque, como já refletimos, não é uma noção estática,

pelo contrário, é um processo dinâmico onde a trama tem a virtude de obter uma história bem

construída a partir dos múltiplos eventos.

Como sujeitos de nossas próprias histórias ou como leitores, temos a oportunidade de

encontrar caminhos para realizar um sentido para nossas vidas através das histórias que

contamos, lemos e amamos. A noção de narrativa consegue, através da estruturação que

propõe, articular as ações dos homens, ações heterogêneas que, uma vez postas em

composição lingüística, ganham inteligibilidade e sentido, ficando disponíveis a um leitor ou

a vários leitores, que poderão apropriar-se da composição, através do ato de leitura,

refigurando sua própria ação no mundo. Para Ricoeur, como vimos ao longo do trabalho, é na

relação entre a experiência temporal e a ordenação narrativa que é possível permitido pensar a

temporalidade e as ações humanas. É exatamente aí que está a solução para nossa hipótese de

trabalho, pois, se é possível para um sujeito ordenar sua experiência temporal pelas narrativas,

este também pode encontrar um sentido para sua própria vida através das narrativas.

Ricoeur, ao fazer a leitura da Poética de Aristóteles, apropria-se para sua reflexão do

conceito de emplotment (construção da trama), que significa fábula e intriga. Toma como seu

guia o conceito de intriga, no sentido de história bem construída, que também pode ser

chamada de composição narrativa. Segundo o autor, a trama tem a virtude de transformar os

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múltiplos eventos em uma única história, a trama mimetiza as ações dos homens, ações que se

desdobram no tempo. Ao falarmos de tempo, estamos pensando no tempo humano, a exemplo

do tempo encontrado nas Confissões de Agostinho, que é distentio animi. A narrativa,

articulando o tempo logicamente também consegue articular a vida dos homens.

Diz Ricoeur que, para sabermos a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade,

devemos responder a pergunta: Quem fez tal ação? O filósofo, fazendo referência a Hannah

Arendt, afirma que responder a questão quem? é contar a história de uma vida. (cf.

RICOEUR, 1997, p. 424). Pelas narrativas temos a oportunidade de conhecer as ações dos

homens, temos a oportunidade de nos conhecer pelas próprias histórias que contamos a nosso

respeito e pelas histórias que ouvimos e lemos dos outros. Por isso as pessoas narram histórias

o tempo todo; e são as histórias narradas, que lemos e amamos, que sustentam nossa

permanência no tempo, que se transforma a todo instante. Somos parte desse devir histórico,

onde as pessoas contam histórias o tempo todo, histórias que aprendemos e também

transmitimos aos outros.

Segundo Ricoeur, quando narramos nossa própria história ou quando um sujeito narra

sua história, este se lança para além de sua existência puramente biológica, meramente

corporal e ganha representação, inserindo-se numa história, ganhando história. (cf. GENTIL,

2008, p. 159). O sujeito, ao narrar sua história, mimetiza suas próprias ações e as de outros

sujeitos, ordenando-as e dando-lhes inteligibilidade, construindo uma história com certo

sentido lógico. É aqui que podemos dizer que fragmentos de uma vida, muitas vezes sem

nenhuma importância, sem nenhum “significado”, uma vez narrados, contados, por exemplo,

em sessões de análise, ganham inteligibilidade e sentido. É nesse ato de contar que o sujeito

articula o tempo, articula passado, presente e futuro, podendo conhecer-se e reconhecer-se

como o próprio personagem da história. O sujeito, reconhecendo-se como personagem de sua

história de vida, identificando-se com ela e ao mesmo tempo contando e recontando sua

própria história, como em sessões de análise, vai incorporando em sua história, em sua

identidade, novos acontecimentos que redesenha a si mesmo em suas narrativas. É nesse

contar e recontar que o sujeito vai construindo e moldando sua identidade, vai moldando a si

próprio, pois, ao contarmos e recontarmos nossas histórias, vamos ordenando e articulando

nossas ações no mundo. É aqui que as narrativas feitas pelos sujeitos dão algum sentido para

suas ações, pois as narrativas sintetizam em uma única história de forma ordenada e

articulada, as experiências que sujeito já viveu, que vive e que deseja viver. Assim o sujeito,

ao narrar sua própria história, reconhece-se pertencente às histórias que disseram a seu

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respeito, às histórias que diz de si mesmo e ao mesmo tempo vai acrescentando novas

histórias, novos acontecimentos que antes não tinham importância para sua vida.

Como já afirmamos acima, é nesse movimento que o sujeito vai dando algum sentido

às suas ações, vai se reposicionando na vida. Porém cabe lembrar que para Ricoeur não basta

narrar a própria história, não basta configurar a história, é necessário que exista um leitor para

se apropriar da narrativa e este pode ser tanto o próprio narrador, que já se distanciou de sua

história, quanto um outro leitor, e ambos podem redesenhar suas próprias vidas ao se

apropriarem da composição narrativa. Segundo o filósofo, esse processo é chamado de círculo

hermenêutico: “...de uma certa pré-compreensão do que seja o mundo da ação, vai-se ao

encontro do mundo do texto, passa-se por ele e dele retorna-se ao mundo da ação com uma

nova compreensão”(GENTIL, 2008, p. 24). É aqui que entra o desdobramento mimético e

também é aqui, como apresentamos no terceiro capítulo, que Ricoeur mostra com mais

clareza como as narrativas conseguem articular e dar algum sentido às ações dos homens. O

filósofo, para esclarecer melhor o processo de mimetização das ações dos homens, sua

ordenação e articulação, usa como foco estratégico o texto narrativo, que tem significação

própria e autonomia em relação ao seu autor; trata-se do texto como obra.

É abordando uma obra trabalhada, moldada, com codificação própria que

acompanhamos, no terceiro capítulo, o desdobramento mimético. Vimos que a narrativa

consegue, através do seu processo de tessitura, chamado mimesis I, II e III, articular o tempo,

passado, presente e futuro em uma única composição. Lembramos que a reflexão sobre a

temporalidade em Agostinho mostra que o homem sofre constantemente a contradição entre

intentio e distentio, a alma sofre dissociação contínua. Em Agostinho existe uma

preponderância da discordância sobre a concordância, a instabilidade da vida humana. É

exatamente aqui que se pode abordar a noção de narrativa de Ricoeur como um meio para

unificar a distensão ou, ao menos, articular a instabilidade da vida humana. Com a narrativa

ganhamos estabilidade através da articulação temporal; ela articula vários elementos

heterogêneos em uma única história, articula a passagem do tempo na mesma história. Assim

o tempo ganha certa estabilidade, à medida que se articula com a narração, estabelecendo a

preponderância da concordância sobre a discordância, como mostrou Ricoeur no

desdobramento mimético.

É por isso que podemos afirmar que as composições narrativas, através do processo

mimético, configuram as ações dos homens e ajudam-nos a encontrar um sentido para suas

vidas, mesmo quando as situações mudam constantemente, como as situações de nossos dias

que são tão variáveis. E é também nas configurações narrativas que o sujeito que narra sua

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história, consegue dar algum sentido às suas ações, proporcionando várias significações tanto

para si próprio, quanto para aquele que se apropria da configuração como leitor. Assim,

mesmo que as situações mudem constantemente, mesmo vivendo em meio à instabilidade, as

pessoas, ao narrarem sua própria história, conseguem através do processo mimético articular

fragmentos de suas vidas em uma única história, ordenada e articulada, dando um certo

sentido a esses fragmentos de vida que, antes de serem narrados, não tinham “importância” ou

“relevância”, pois estavam fragmentados.

Assim, as composições narrativas através do desdobramento configuram as ações dos

homens, na medida em que o ato configurante organiza vários elementos “instáveis" da vida

do homem, vários elementos discordantes como eventos, acontecimentos dispersos, sujeitos,

motivos, circunstâncias, diferentes dimensões do tempo, formando assim uma totalidade

significante. O que antes da configuração era discordante, instável, variável, fragmentado,

com a configuração torna-se organizado, articulado com totalidade significante. É por isso

que as composições narrativas tornam-se uma resposta ou meio adequado para lidarmos com

a instabilidade do dia-a-dia e encontrarmos um sentido para nossas vidas. Pois, mesmo que

tudo mude muito rápido, em aceleração constante como em nossos dias, através da mediação

da linguagem e de um modo especial, através das composições narrativas, podemos, como

narradores de nossas próprias histórias, dar algum sentido às nossas ações. E também como

leitores, podemos, pelo ato de leitura, apropriar-nos do “mundo” articulado em forma de

composição, de um “mundo” com ordenação regrada.

Os vários elementos díspares, às vezes sem nenhuma significação, pela composição

narrativa através da configuração, ganham uma totalidade significante tanto para o sujeito que

narra sua própria história quanto para o leitor, a quem se dirige a composição. O leitor, que

pode ser o próprio narrador ou qualquer outro que saiba ler, apropriando-se dessa totalidade

significante pelo ato de leitura pode encontrar nessas significações, que foram articuladas e

organizadas pela configuração narrativa, um sentido para sua vida, algo que dê motivação à

sua vida.

O leitor, abrindo-se à proposta de mundo que se projeta da composição narrativa,

redesenha seu modo de agir no mundo, refigura sua própria vida. É também na apropriação da

composição narrativa que o leitor, tendo agora uma “situação” com uma certa “estabilidade”,

pode encontrar nesta um sentido para sua vida, pode encontrar uma proposta de “obra” que

goste de realizar, um perfil de pessoa que queria amar, ou até mesmo pode encontrar forças ou

coragem para mudar de atitude perante alguma coisa em sua vida. Enfim, a composição

narrativa projeta uma proposta de mundo tão vasto, e com tantas significações que tanto o

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sujeito, que consegue ordenar suas ações, quanto o leitor podem, através do ato de narrar e do

ato de ler, refigurar sua própria ação no mundo, podem transformar suas vidas.

Como observa Frankl, não podemos dizer a uma pessoa qual é o sentido para sua vida,

não podemos receitar-lhe nenhum sentido, pois é a própria pessoa que deve descobrir um

sentido para sua vida, abrindo-se e relacionando-se às várias circunstâncias do mundo que se

apresentam a ela. No entanto, essa busca do sentido da vida, que é sem dúvida individual e

subjetiva, pode ser direcionada a partir da reflexão sobre a noção de narrativa de Paul

Ricoeur. Ao refletirmos sobre a noção de narrativa de Ricoeur, percebemos que através das

narrativas temos possibilidades de dar algum sentido às nossas ações, podemos nos refigurar

constantemente pelas narrativas, transformando nossa maneira de ver o mundo e a nós

próprios. E, na refiguração de nosso mundo e de nós próprios, podemos encontrar um sentido

para nossas vidas.

Embora Paul Ricoeur, quando afirma que um sujeito ao narrar sua própria história ou

um leitor, ao se apropriar de uma composição narrativa, conseguem refigurar sua própria ação

no mundo, não esteja se referindo ao sentido da vida proposto por Frankl, podemos afirmar

que um sujeito, ordenando sua própria ação no mundo através das narrativas, lançando-se para

além de sua existência meramente biológica, inserindo-se como personagem de sua história e

ao mesmo tempo envolvendo-se nas várias narrativas, vai descobrindo sua permanência no

tempo, seu fio condutor, sua identidade. E podemos dizer que, ao descobrir através da

mediação das narrativas, a nossa própria identidade, aquilo que somos, automaticamente

também temos grandes possibilidades de descobrir aquilo que motiva nossa vida. Ao

descobrirmos nossa identidade no emaranhado de histórias que nossos pais nos contam, que

outras pessoas nos contam, nas histórias que sonhamos, que contamos, que lemos, que

desejamos e que amamos, vamos descobrindo também aquilo que pode motivar nossas vidas.

Um sujeito, narrando sua própria história, identifica-se com ela e se percebe como

personagem de sua história e esse personagem à medida que é narrado, vai ganhando corpo,

textura, sentido em suas ações. Esse sentido, encontrado na ação da narração, é apropriado

pelo próprio narrador ou por um outro leitor, transformando sua maneira de ser no mundo,

formando sua identidade e é aí que o sujeito vai descobrindo o sentido para sua vida. Assim,

se o homem é um ser em constante busca de sentido, como diz Frankl, a narrativa de Ricoeur

torna-se um meio, uma mediação para que o homem encontre um sentido em sua vida.

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