narrar, pensar o detalhe: à margem de um projeto de carlo ginzburg

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Henrique Espada Lima Doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pro- fessor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador do CNPq. Autor do livro Micro-história italiana: escalas, indíci- os e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. henrique.espada@ gmail.com Narrar, pensar o detalhe: à margem de um projeto de Carlo Ginzburg Carlo Ginzburg. Ilustração: Eduardo Warpechowski.

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Page 1: Narrar, pensar o detalhe: à margem de um projeto de Carlo Ginzburg

Henrique Espada LimaDoutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pro-fessor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC). Pesquisador do CNPq. Autor do livro Micro-história italiana: escalas, indíci-os e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. [email protected]

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A inquietude de pensamento que marca a trajetória de CarloGinzburg produz em seus leitores uma sensação de deslocamento cons-tante: esperando reencontrar o especialista na história da cultura dasclasses subalternas no início da era moderna, descobre-se o autor de umaerudita monografia sobre a obra pictórica de Piero della Francesca. Paraalém da história da arte, a discussão, às vezes críptica, com o pós-mo-dernismo. Entremeado a isso, o diálogo com a literatura e a crítica lite-rária.

O tempo que separa O queijo e os vermes, sua monografia mais co-nhecida, publicada em 1976, dos trabalhos mais recentes — e em especi-al da discussão presente em livros como Olhos de madeira, Relações deforça e Nenhuma ilha é uma ilha1 — marca uma transformação radical nostópicos de pesquisa, mas não esconde completamente a continuidade dealgumas questões de fundo cuja análise mereceria atenção. A pergunta

Narrar, pensar o detalhe:à margem de um projeto de Carlo Ginzburg

Henrique Espada Lima

RESUMO

Resumo: Este trabalho discute aspec-

tos teóricos e metodológicos da obra

do historiador italiano Carlo Ginzburg,

enfocando sobretudo suas discussões

sobre o estatuto da verdade e da pro-

va em história, assim como a relação

entre história e as diversas formas nar-

rativas. O elemento central da discus-

são é demonstrar como existe uma

coerência entre os trabalhos mais re-

centes de Ginzburg que tematizam a

narrativa e seus escritos anteriores, na

medida em que há uma constante in-

vestigação das possibilidades cogniti-

vas da narração. A polêmica com o ce-

ticismo epistemológico e com o cha-

mado pós-modernismo é revisitada à

luz desse projeto intelectual de amplo

fôlego.

PALAVRAS-CHAVE: narrativa; verdade;

Carlo Ginzburg.

ABSTRACT

This paper discusses theoretical and

methodological aspects found in the works

from the Italian historian Carlo Ginzburg.

It focuses primarily his discussions on the

statute of true and proof in History as well

as the relationships between History and

all forms of narrative. The key element here

is to show the line connecting Ginzburg’s

more recent works on narrative and his

previous historical work by a constant

inquiry on the cognitive possibilities of

narration and storytelling. His disputing

against epistemological skepticism and the

so called post-modernism is reconsidered

under the light of this long term intellectual

project.

KEYWORDS: narrative; true; Carlo

Ginzburg.

1 GINZBURG, Carlo. O queijoe os vermes: o cotidiano e asidéias de um moleiro perse-guido pela Inquisição. SãoPaulo: Companhia das Le-tras, 1986, Olhos de madeira:nove reflexões sobre a distân-cia. São Paulo: Companhiadas Letras, 2001, Relações deforça: história, retórica, prova.São Paulo: Companhia dasLetras, 2002, Nenhuma ilha éuma ilha: quatro visões da li-teratura inglesa. São Paulo:Companhia das Letras, 2004.

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gdifícil sobre a coerência possível se impõe e é sobre ela que pretendo medebruçar nas páginas seguintes.

Ouvir e narrar vozes silenciadas

O queijo e os vermes é um dos resultados de um esforço de investi-gação que Ginzburg começa ainda nos tempos de sua formação univer-sitária. Se contarmos apenas os textos publicados, ele se inicia em 1961com um artigo na revista da Scuola Normale de Pisa2 e se conclui, demodo aparentemente definitivo, trinta anos depois com História noturna.Não há dúvida que essa constitui a obra de fôlego de Ginzburg comoespecialista, isto é, como scholar da história européia no início da IdadeModerna. Trata-se de um contexto onde sua contribuição erudita foi ine-gável para o desenvolvimento de um campo de estudos em torno dahistória da feitiçaria e dos sistemas de crenças compartilhados pelo mundocamponês europeu até a Reforma. Seu trabalho propôs, além de tudo,novas hipóteses sobre a autonomia relativa e as relações que se estabele-ciam entre a “alta” e a “baixa” cultura, bem como uma interpretaçãooriginal da emergência da imagem do sabá demoníaco no interior dasconcepções eruditas dos inquisidores, em sua relação com um substratomuito antigo de crenças religiosas camponesas, largamente difundidasno tempo e no espaço, entre a Europa e a Ásia.3

Entretanto, extrapolando de longe o campo de especialização ondeos seus primeiros trabalhos se engastavam, a principal intervenção deGinzburg no debate historiográfico foi, certamente, de natureza teóricae metodológica. O modo de abordar as fontes, a forma da exposição e danarrativa, a atenção às anomalias da documentação e ao detalherevelador (com a conseqüente análise intensiva, em escala reduzida, defontes de natureza muito diversa), tanto quanto o uso experimental deuma abordagem “morfológica”, foram os aspectos mais evidentes dessacontribuição, que era acompanhada pelo esforço em pensar sistematica-mente as conseqüências cognitivas dessas escolhas de método.4

O lugar do livro sobre Domenico Scandella nesse contexto é co-nhecido: o caso do moleiro friulano perseguido pelo Santo Ofício é utili-zado não para ilustrar um argumento anterior ou exemplificar uma hi-pótese construída em outro lugar: é a própria análise minuciosa dos pro-cessos inquisitoriais que tinham o moleiro como objeto que permitiu aGinzburg reconstruir o contexto em que o “caso Menocchio” poderia sercompreendido. A análise detalhada dos depoimentos inscritos nos pro-cessos lançava mão de recursos pouco usuais, como a análise filológica eo confronto intertextual, para explorar a grade de leitura a partir daqual o moleiro construía sua cosmologia. Ao interpretar as idéias e oslivros que lhe chegavam às mãos, lidos através do filtro de um mundo dereferências culturais que ele compartilhava com o mundo camponêsiletrado do qual também fazia parte, Ginzburg procurava explicitamen-te reconstruir as características essenciais de uma cultura que não haviadeixado muitos traços. A idéia de fazer ouvir vozes silenciadas que nãodeixaram registros diretos, pela via indireta do estudo sobre uma histó-ria individual, era uma das questões centrais da obra.

As conseqüências epistemológicas desse modo de fazer históriaforam exploradas por Ginzburg em um artigo publicado pouco tempo

2 Idem . Stregoneria e pietàpopolare. Note a proposito diun processo modenese del1519. Annali della Scuola Nor-male Superiore di Pisa. Lettere,storia, filosofia, s. II, XXX, 1961(agora em GINZBURG, Carlo.Mitos, emblemas, sinais: morfo-logia e história. São Paulo:Companhia das Letras, 1989).

3 Ver idem, História noturna:uma decifração do sabá. SãoPaulo: Companhia das Le-tras, 1991, e Feiticeiras e xa-mãs. In: O fio e os rastros: ver-dadeiro, falso, fictício. SãoPaulo: Companhia das Le-tras, 2007, cap. 15. É impor-tante notar, entretanto, que oescopo de História noturna ocoloca em uma posição mui-to diferente dos trabalhos an-teriores de Ginzburg sobre afeitiçaria, pois é uma obra quese situa muito além do âmbi-to de especialização da histó-ria européia moderna.

4 Sobre essas questões em par-ticular e sobre a trajetória deGinzburg em sua relação coma micro-história italiana, verLIMA, Henrique Espada. Amicro-história italiana: escalas,indícios e singularidades. Riode Janeiro: Civilização Brasi-leira, 2006, especialmente oterceiro capítulo da segundaparte.

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depois, chamado “Sinais, raízes de um paradigma indiciário”, que, en-tre outras coisas, pode ser lido como uma reflexão a posteriori sobre al-guns dos aspectos centrais da abordagem escolhida por ele em O queijo eos vermes5. Um desses aspectos, em especial, é desenvolvido em “Sinais”(mas, como veremos, não completamente): o problema da exposição edas conseqüências implicadas nas escolhas narrativas feitas pelo histori-ador.

Sem discutir isso diretamente no corpo do texto, não havia dúvidaque uma das dimensões implícitas de O queijo e os vermes era a sua preo-cupação com a forma da exposição. Como disse Ginzburg anos depois, olivro não apenas reconstruía uma história individual: contava-a6. Umaafirmação que, para alguém como ele, oriundo de um ambiente familiarmarcado pela criação e a reflexão literária, nada tinha de banal: implica-va uma consciência clara de que uma história como a de Menocchiopoderia ser narrada de muitas formas distintas, com resultados diversos.Uma consciência tornada mais aguda, no sentido da experimentação,pela leitura, durante a redação de O queijo e os vermes, dos Exercícios deestilo de Raymond Queneau.7

O livro de Ginzburg compunha-se então como um quebra-cabe-ças, um jogo de montar: o narrador acompanha as vicissitudes deMenocchio, tentando compreender como a sua cosmologia peculiar ha-via sido possível. Cada peça é analisada e testada — será o moleiroanabatista ou suas idéias correspondem a um genérico luteranismo? — eaproveitada ou descartada conforme sua relação com as outras peçasadjacentes. O resultado que emerge daí, mesmo depois de montado di-ante do leitor, revela-se menos armado do que se poderia esperar: algu-mas perguntas e hipóteses permaneciam convivendo com respostas maisseguras. O resultado final se assemelhava a um vaso cerâmico escavadopor um arqueólogo, cujos fragmentos sobreviventes tivessem sido junta-dos cuidadosamente, mas cujas alças, ou o fundo, tivessem sido comple-tados com outra argamassa, deixada aparente pelo restaurador. Nenhumartifício a esconder os remendos que ajudavam, de um modo ou de ou-tro, a manter o vaso em pé. O narrador reluta, expõe suas dúvidas, argu-menta, conjectura, ora se colocando sobre os ombros do seu persona-gem, ora sobre os de seus acusadores. Em termos narrativos, tanto alinearidade quanto a onisciência do narrador saem do livro abaladas. Oganho interpretativo, entretanto, é inegável.

A legibilidade do livro, que conversava em diferentes níveis tantocom o especialista quanto com o leitor menos armado, permitiu que elefosse identificado como um exemplo de “história narrativa”8, a despeitodo pouco gosto do seu autor por este termo genérico.

Narrativa e saber indiciário

Os nexos entre história e narração faziam parte do argumento de-senvolvido em “Sinais”, no qual Ginzburg ligava diretamente a históriaa outras formas de inteligibilidade da realidade: o historiador, como ocaçador primitivo, aprendia a capturar — a partir de pistas, rastros muitasvezes fugidios — os fios de uma narrativa9. Narrativa e conhecimento apartir dos indícios estavam, então, intimamente conectados numa liga-ção que se perdia no tempo, na origem comum da história e da literatura.

5 Mas é igualmente verdadei-ro que ele também antecipaquestões metodológicas queGinzburg irá desenvolver emseguida em seu livro sobrePiero della Francesca: GINZ-BURG, Carlo. Indagações sobrePiero: o batismo, o ciclo de A-rezzo, a flagelação. São Pau-lo: Paz e Terra, 1989. O artigosobre “Sinais”, intitulado ini-cialmente “Spie. Radici de unparadima scientifico”, apare-ceu em 1978 na Rivista di storiacontemporânea, VII, 1978, e,posteriormente ampliado, emSpie. Radici di un paradigmaindiziario, publicado pela pri-meira vez na coletânea orga-nizada por GARGANI, Aldo.Crisi della ragione: nuovi mo-delli nel rapporto tra sapere eattività umane. Turim: Einau-di, 1979. Em português: Sinais:raízes de um paradigma indi-ciário. In: GINZBURG, Carlo.Mitos, emblemas, sinais, op. cit.6 Cf. idem. Micro-história: duasou três coisas que sei a respei-to. In: O fio e os traços, op. cit.,p. 264. Tal balanço da micro-história foi originalmente pu-blicado em Quaderni Storici, n.86, em 1994.7 A respeito das influências fa-miliares sobre os interesses in-telectuais de Ginzburg, ver LI-MA, Henrique. A micro-histó-ria italiana, op. cit., p. 282-284.Para a referência a Queneau,ver GINZBURG, Carlo. Micro-história..., op. cit., p. 265. O li-vro de Queneau, uma suces-são de noventa e nove narrati-vas breves que recontam, demodo sempre inteiramente di-verso, um acidente banal queacontece em um ônibus lotadoem Paris, foi publicado pelaprimeira vez pelas edições Ga-llimard em 1947. Ginzburg háde ter lido o livro na edição fran-cesa, já que a edição italiana,em tradução de Umberto Eco,é da Einaudi (Turim, 1983).A tradução em português éde João Almeida Flor: QUE-NEAU, Raymond. Exercícios deestilo. Lisboa: Colibri, 2000.8 O primeiro a apontar — aomenos em chave crítica — o“retorno da narrativa” à escri-ta histórica foi STONE, Law-rence, The revival of narrative:reflections on a new old his-tory. Past and Present, n. 85,nov. 1979. Neste artigo, Stonearrola o livro de Ginzburg so-bre Menocchio, ao lado de ou-tros exemplos famosos publi-cados durante a década de1970 como exemplos de uma

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Retrospectivamente, Ginzburg aponta uma ausência na argumen-tação que levantava em “Sinais”, que era exatamente a antecipação doargumento que interpretava a relação entre a história e a literatura emuma chave diametralmente oposta, hiperconstrutivista, que enfatizavao caráter fabuloso das formas de exposição adotadas pela historiografiae que dizia não haver fronteira estável entre os textos produzidos peloshistoriadores e os textos ficcionais11. Uma chave de leitura que vinhasendo elaborada em paralelo por críticos literários, filósofos e mesmohistoriadores naqueles anos.12

Ora, “Sinais” polemizava com o racionalismo e com a pretensãoda história em moldar seus modos de conhecimento no paradigma inte-lectual que, na ciência moderna, apontava para a necessidade de elimi-nar o conhecimento do individual em nome das regularidades — umapretensão presente nos modelos “fortes” da história social, da históriaeconômica e da demografia. Assim, o problema complementar de pen-sar o rigor de um paradigma indiciário levantava-se naquele contextoantes de tudo contra o argumento “cientificista” de que esse rigor eraimpossível. A afirmação — provisória — de que era preciso “renegociar”os termos dessa “cientificidade sui generis” aceitava de saída o princípiode que, além de possível, o rigor era uma condição necessária para oconhecimento a partir dos indícios.

A tentativa de pensar o uso “objetivamente controlável” de méto-dos de tipo indiciário havia sido, na verdade, muito precoce nas discus-sões teóricas de Ginzburg e era um dos tópicos principais do balanço quefez, em 1966, sobre o método warburguiano de Aby Warburg, F. Saxl,Erwin Panofsky e E. H. Gombrich13. Por outro lado, a afirmação categó-rica — inspirada em Marc Bloch — de que era possível “extrair de umpassado relutante” os “testemunhos involuntários de ‘mentalidades’ eestados de espírito”, lendo seus documentos contra as próprias inten-ções de seus autores, continha também a clara consciência de que o risco(evitável) de construir argumentos circulares era uma constante.14

Retrospectivamente, quando da redação de “Sinais”, o que pareceter escapado à argumentação de Ginzburg é que a sua defesa do pa-radigma indiciário não enfrentava um, mas dois ceticismos de naturezamuito diversa. O primeiro deles, reconhecido no texto, era o ceticismoque o modelo galileano poderia lançar sobre um modelo de conhecimen-to que se assumia logo de saída como conjectural. O outro ceticismo,entretanto, colocava em dúvida não apenas o conhecimento indiciário,mas o acesso cognitivo à realidade tout court.

De certo modo, esse último argumento participava, a contragostodo autor, da forma como o livro sobre Menocchio e, especialmente, oensaio sobre os “Sinais” foi recebido por parte do público15. Em conso-

“nova história” que se moviaem direção à narrativa, de ummodo distinto das históriasnarrativas do passado. Ummovimento que marcaria, dealgum modo, “o fim de umaera: o fim da tentativa de pro-duzir uma explicação cientí-fica coerente da mudança nopassado” (p. 19). Apesar dereconhecer o mérito intelec-tual da tentativa, não era umdiagnóstico otimista.9 Ver GINZBURG, Carlo. Si-nais, raízes de um paradigmaindiciário, op. cit., p. 152.10 Idem, ibidem, p. 178. PROUST,Marcel. A la recherche du tempsperdu foi publicado em 7 to-mos, saídos entre 1913 e 1927(a primeira edição de Du côtéde chez Swann, primeiro tomo,saiu pela editora parisienseGrasset; a segunda edição re-vista do mesmo tomo, data-da de 1919, e Gallimard, queeditou todos os outros).11 Cf. GINZBURG, Carlo. In-trodução. In: O fio e os rastros,op. cit., p. 8.12 Uma lista completa seriaimpossível, mas nela não fal-tariam: BARTHES, Roland. Orumor da língua. São Paulo:Brasiliense, 1988, DE CER-TEAU, Michel. A escrita da his-tória. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1982, FOUCAULT,Michel. As palavras e as coisas.São Paulo: Martins Fontes,1992, VEYNE, Paul. Como seescreve a história. Lisboa: Edi-ções 70, 1987, e WHITE, Hay-den. Trópicos do discurso: en-saios sobre a crítica da cultu-ra. 2. ed. São Paulo: Edusp,2001.13 Ver GINZBURG, Carlo. DeA. Warburg a E. H. Gombrich:notas sobre um problema demétodo. In: Mitos, emblemas,sinais, op. cit..14 Idem, ibidem, p. 63. A críticaaos riscos da interpretação“selvagem” também estavapresente nas próprias páginasde O queijo e os vermes. No pre-fácio à edição italiana do li-vro, Ginzburg afirmava a pos-sibilidade de investigar as idéi-as e crenças populares na “ima-gem mais ou menos deforma-da” que dava delas a docu-mentação produzida pela cul-tura erudita, e mesmo pelosdocumentos judiciários, de-fendendo-se de um argumen-to semelhante àquele contidona crítica de Jacques Derridaà História da loucura de MichelFoucault: “Não se pode falar

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da loucura numa linguagemhistoricamente participanteda razão ocidental e, portan-to, do processo que levou àrepressão da própria loucu-ra. O ponto em que se apóia apesquisa de Foucault — dis-se Derrida, em poucas pala-vras — não existe, não podeexistir. A essas alturas, o am-bicioso projeto foucaultianode uma ‘arqueologia do silên-cio’ transformou-se em silên-cio puro e simples — por ve-zes acompanhado de umamuda contemplaçãoestetizante”. GINZBURG,Carlo. O queijo e os vermes, op.cit., p. 22 e 23. Contra essacrítica paralisante, que haviasido de algum modo absorvi-da pelo próprio Foucault,Ginzburg afirmava a possibi-lidade de ler, mesmo um do-cumento profundamente con-taminado como um processoinquisitorial, a contrapelo, istoé, contra as intenções e os de-sejos de quem o produziu.15 Isso está implícito nos argu-mentos levantados por Ginz-burg na sua intervenção nodebate acontecido em 14/03/1980 na Casa da Cultura deMilão, publicados em Para-digma indiziario e conoscenzastorica. Dibattito su ‘Spie’ diCarlo Ginzburg. Quaderni diStoria, n. 12, jul.-dez. 1980. Háuma tradução em espanholda intervenção de Ginzburgem Intervención sobre el ‘pa-radigma indiciario’. In: GINZ-BURG, Carlo. Tentativas. Ro-sario: Prohistoria, 2004, Con-siderar também o comentáriode Ginzburg sobre o pós-mo-dernismo em Micro-história:duas ou três coisas que sei arespeito, op. cit., p. 274 e nota71, p. 422 e 423.16 Ver, por exemplo, a mençãode Eric Hobsbawm em suaautobiografia (HOBSBAWM,Eric. Tempos interessantes: umavida no século XX. São Paulo:Companhia das Letras, 2002,p. 324), bem como o comen-tário de GINZBURG, Carlo.No rastro de Israël Bertuccio.In: O fio e os rastros, op. cit.17 Uma tendência que Ginz-burg, no prefácio de seu Mi-tos, emblemas, sinais, identifi-cava retrospectivamente co-mo um ponto de partida doseu interesse pela literatura eos estudos literários, já nosanos 1950, quando dizia pen-sar que “gostaria de me dedi-car a textos literários, subtra-indo-me à aridez do raciona-

nância com um clima intelectual novo em confronto com aquele sob oqual Ginzburg iniciou as pesquisas e discussões que deram origem aoseu trabalho (isto é, por exemplo, em oposição a uma história serial queignorava o individual em nome de um modelo de cientificidade maispróximo ao das ciências naturais), os argumentos de Ginzburg foramconsiderados uma espécie de confirmação de uma postura relativista e asua obra — incluindo O queijo e os vermes — como co-responsável porlevar mais água ao moinho do pós-modernismo.16

Contra o ceticismo epistemológico

Podemos entender alguns dos desdobramentos do trabalho deGinzburg a partir de “Sinais” como um esforço de se desembaraçar dasarmadilhas dos dois ceticismos que o seu trabalho enfrentava, constru-indo em positivo um esforço de investigação sobre as possibilidadescognitivas da narrativa, em contraposição explícita ao ceticismoepistemológico.17

É o próprio Ginzburg que sugere a cronologia desse novo projetono qual se engaja no início dos anos 1980 (durante e depois, portanto, daescrita de Indagações sobre Piero e História noturna18): em primeiro lugar,a reação ao artigo de Arnaldo Momigliano sobre Hayden White, escritoem 198119, que Ginzburg comenta pela primeira vez no posfácio ao livrode Natalie Zemon Davis, O retorno de Martin Guerre, publicado em itali-ano em 198420. Esse texto é, aliás, considerado por Ginzburg o esboço do“programa de pesquisa” que orienta suas investigações no quadro dacontenda com o que ele chamava de “ceticismo pós-moderno”.21

O livro da historiadora americana era um tipo de experimentohistoriográfico que mobilizava de uma forma modelar as questões teóri-cas que Ginzburg vinha pensando sobre o seu próprio trabalho. Davisconseguia ilustrar dois diálogos disciplinares que engajavam diretamen-te o historiador: por um lado, com a investigação judiciária (O retorno deMartin Guerre se debruçava, a propósito, sobre um julgamento de impos-tura e explorava exatamente a “parcial” e às vezes “embaraçosa conti-güidade” entre as perspectivas do juiz e do historiador, bem como suadivergência de métodos e objetivos22); por outro lado, o diálogo e o con-fronto com a narrativa ficcional, literária ou cinematográfica. O primei-ro eixo colocava em evidência o problema do estatuto da prova na inves-tigação histórica (e, como contraponto e complemento, o estatuto da in-certeza e do contexto)23; o segundo articulava a dependência do traba-lho histórico do uso da linguagem e de formas de exposição, apontandopara as “implicações cognitivas dos vários tipos de narração” utilizadospelos historiadores.24

O posfácio a O retorno de Martin Guerre identificava diretamenteas posições do hiperconstrutivismo e do relativismo epistemológico coma atitude a combater. Ginzburg encontrava essas posições abundante-mente nos argumentos do crítico americano Hayden White, publicadosem Meta-história. No livro, White propunha-se explicitamente a tratar o“trabalho histórico como ele manifestamente é: uma estrutura verbal naforma de um discurso narrativo em prosa”, um pensamento que perma-neceria por isso irremediavelmente dependente das formas lingüísticas eestilísticas que o condicionam e que definem não apenas a forma daquilo

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A inspirar esse combate estava o ensaio de Arnaldo Momiglianosobre a “retórica da história”, citado antes, que examinava com cuidadoos argumentos de White e que, de acordo com Ginzburg, o fez perceberas “implicações morais e políticas, além de cognitivas, da tese que na suaessência suprimia a distinção entre narrações históricas e narraçõesficcionais”26.

Momigliano de fato expunha as razões do seu desacordo com White(que vinha elegantemente reconhecido na primeira página como “umamigo que admiro, e com o qual sempre aprendo muito”) de modo con-tundente: a falta de familiaridade de White com os meandros e os desa-fios enfrentados pelos praticantes da disciplina que pretendia analisartornava seu pretenso estudo de historiografia um empreendimento inte-lectualmente insustentável27. Por outro lado, Momigliano não deixavade reconhecer que os historiadores utilizavam “categorias retóricas” paracomunicar suas descobertas, porém isso era um aspecto subordinado aofato mais importante: “Aos historiadores se pede serem descobridoresda verdade. Não há dúvida que, para poderem ser chamados historia-dores, eles devem organizar a sua pesquisa em alguma forma de histó-ria. Mas as suas histórias devem ser histórias verdadeiras”.28

Esta afirmação direta marcava uma linha divisória clara entre duasposições inconciliáveis. Entretanto, poderia implicar uma atitude umpouco simplificadora, não apenas com relação às implicações cognitivasdas opções narrativas, mas, como reconhecia Ginzburg, também sobreas relações ambíguas entre as escolhas ideológicas feitas pelos historia-dores e o confronto com as suas fontes.

“O próprio Momigliano mostrou melhor do que qualquer outro”,diz Ginzburg, “que princípio de realidade e ideologia, controle filológicoe projeção no passado dos problemas do presente se entrelaçam,condicionando-se reciprocamente, em todos os momentos do trabalhohistoriográfico — da identificação do objeto à seleção dos documentos,aos métodos de pesquisa, aos critérios de prova, à apresentação literá-ria”29. A despeito disso, a resposta de Momigliano acabava não levandoa sério o desafio que a posição de White representava: a de que as esco-lhas narrativas dos historiadores não eram pacíficas e sem conseqüên-cia. O problema do entrelaçamento, na narrativa do historiador, de ele-mentos literários — atestado não apenas nos recursos narrativos eretóricos, como também no uso (pelo menos controlado) da invenção, doapelo ao provável e ao verossímil para a construção do seu argumento— era, por outro lado, central no argumento de Ginzburg em sua pró-pria resposta não só a White, mas a Michel de Certeau e François Hartog,que haviam discutido questões semelhantes em seus trabalhos.

Dilemas da representação

A posição extrema de White comportava, de todo modo, um as-pecto adicional que tornava o debate proposto por Ginzburg, no míni-mo, historiograficamente mais interessante. White reivindicava explici-tamente, na origem do argumento e do instrumental intelectual de seulivro, a precedência de dois autores e duas obras fundamentais: Mimesis:a representação da realidade na literatura ocidental, de Eric Auerbach,

lismo e aos pântanos do irra-cionalismo”. A despeito detambém considerar (de manei-ra igualmente retrospectiva) o“projeto”, “ingenuamente am-bicioso”, afirmava então acontinuidade da sua dívidapara com ele. Idem, Mitos, em-blemas, sinais, op. cit., p. 7.18 Tentei mostrar a concordân-cia intelectual desses dois li-vros com uma exploração daspossibilidades cognitivas do“paradigma indiciário” emLIMA, Henrique Espada. Amicro-história italiana, op. cit.,especialmente p. 344-363.19 MOMIGLIANO, Arnaldo sechama The rhetoric of historyand the history of rhetoric: onHayden White’s tropes, Com-parative Criticism, 3, 1981. Aversão italiana é La retoricadella storia e la storia della re-torica: sui tropi di HaydenWhite. In: MOMIGLIANO,Arnaldo. Sui fondamenti dellastoria antica. Turim: Einaudi,1984.20 GINZBURG, Carlo. Prove epossibilità. In: DAVIS, Nata-lie Zemon. Il ritorno di MartinGuerre. Turim: Einaudi, 1984.A primeira tradução em por-tuguês desse artigo se acha emGINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Rio deJaneiro/Lisboa: Bertrand/Difel, 1991. Também estápublicado no último livro deGINZBUG, Carlo. O fio e osrastros, op. cit.21 V. idem, O fio e os rastros, op.cit., p. 9.22 Idem. Apêndice: provas epossibilidades. In: O fio e osrastros, op. cit., p. 313.23 O tema da incerteza, emparticular, revelava “a diver-gência entre a ótica do juiz e aótica do historiador”. “Para oprimeiro”, continua Ginzburg,“a margem de incerteza temum significado puramentenegativo e pode desembocarnum non liquet — em termosmodernos, numa absolviçãopor falta de provas. Para osegundo, ela deflagra umaprofundamento da investi-gação, que liga o caso especí-fico ao contexto, entendidoaqui como lugar de possibili-dades historicamente deter-minadas.” Idem, ibidem, p. 315e 316.

24 Idem, ibidem, p. 320.

25 WHITE, Hayden. Meta-his-tória: a imaginação histórica

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e Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica, docrítico e historiador da arte alemão E. H. Gombrich30. Mais propriamen-te, White reconhecia que os argumentos dos dois autores — a análiseque Auerbach fazia do realismo literário e a de Gombrich sobre a repre-sentação realista na arte ocidental — não apenas eram muito diferentesentre si, como tinham objetivos diferentes do seu próprio argumento.Além de abordar o “conceito crucial de representação histórica”, Whitereconhecia ter “invertido a formulação” de ambos: “Eles perguntam:quais são os componentes ‘históricos’ de uma arte realista? Eu pergunto[diz White]: quais são os elementos ‘artísticos’ de uma historiografia ‘re-alista’?”31

De modos distintos e com objetivos diferentes, tanto Auerbachquanto Gombrich exploravam os modos pelos quais os estilos narrativose pictóricos moldavam os modos de ver e de interpretar a realidade quea literatura e a pintura forneciam ao seu próprio tempo. O uso da pala-vra representação, presente no título e no argumento dos dois livros, nãoimplicava de modo algum, nos dois casos, uma atitude, como a de White,epistemologicamente cética sobre a possibilidade de conhecer a realida-de, ainda que a tornasse, de todo modo, muito mais complicada.

A “inversão” operada por White sobre esses argumentos não dei-xava de ter conseqüências: na verdade, sacrificava, como lembrouGinzburg, algo fundamental nos dois livros, já que ambos eram “funda-dos na convicção de que é possível decidir, após verificação da realidadehistórica ou natural, se um romance ou um quadro são mais ou menosadequados, do ponto de vista da representação, do que outro romanceou outro quadro”. “A recusa” — continuava Ginzburg — “essencial-mente relativista, de descer a esse terreno, faz da categoria ‘realismo’,usada por White, uma fórmula carente de conteúdo.”32

Essa observação de Ginzburg em particular deve ser lida tendo nohorizonte a importância crucial que haviam tido, para o desenvolvimen-to das suas próprias ferramentas de análise, a obra de Gombrich e, espe-cialmente, a de Auerbach.33

A reflexão de Auerbach em Mimesis atravessava os modos de re-presentação literária no cânone ocidental, partindo da Odisséia deHomero, passando por Rabelais, Cervantes, Shakespeare, Balzac,Stendhal, chegando a Marcel Proust e Virginia Woolf. É sobretudo aanálise do realismo do século XIX que constituía o tema e o conceito deque se havia apropriado White para analisar a historiografia realista domesmo período: Michelet, Ranke, Tocqueville, Buckhardt.

Para Ginzburg, entretanto, o método de Auerbach tinha um cará-ter particularmente sugestivo, por motivos muito diferentes. É certo quea interpretação do romance do século XIX o interessava — e a forma,por exemplo, com que o crítico havia analisado como o estilo de Stendhalem O vermelho e o negro revelava nas suas entrelinhas as sutilezas psico-lógicas da sociedade francesa após a Restauração34. Mas, mais do queisso, interessava-o também as reflexões de método que Auerbach retira-va da literatura moderna do século XX — tão distante das pretensõesrealistas do XIX. A leitura de To the lighthouse (Rumo ao farol) de VirginiaWoolf, feita no último capítulo de Mimesis, era eloqüente35.

Auerbach se debruçava sobre um breve trecho do livro, que retratauma cena familiar banal, em que Mrs. Ramsay, ao mesmo tempo em que

do século XIX. São Paulo:Edusp, 1992, p. 11 [publica-do originalmente em 1973].

26 GINZBURG, Carlo. Introdu-ção. O fio e os rastros, op. cit., p.8. Sobre isso, ver tambémLIMA, Henrique Espada. A‘crise’ da história e os dilemasda representação. Humanitas,v. 18, n. 2, Belém: 2002.

27 MOMIGLIANO, Arnaldo.La retorica della storia e lastoria della retorica, op. cit., p.465 e seguintes. Na introdu-ção à coletânea, ele afirmava:“me encontro empenhado emum fronte novo, o da defesada objetividade da pesquisahistórica, contra a tendência,que se difunde cada vez maisde modo proteiforme, de re-duzir os historiadores a ideó-logos, ou pior, a retóricos” (p.vii).

28 Idem, ibidem, p. 466.

29 GINZBURG, Carlo. Provase possibilidades, op. cit., p.328.

30 AUERBACH, Eric. Mimesis:a representação da realidadena literatura ocidental (1947).São Paulo: Perspectiva, 2. ed.1987; GOMBRICH, Eric. H.Arte e ilusão: um estudo dapsicologia da representaçãopictórica (1959). São Paulo:Martins Fontes, 1986.

31 WHITE, Hayden, Meta-his-tória, op. cit., p. 19 (nota 4).

32 GINZBURG, Carlo. Provase possibilidades, op. cit., p.327.

33 A leitura atenta feita porGinzburg de Arte e ilusão deGombrich — que testemunhasua interpretação diametral-mente oposta à de White —está documentada em De A.Warburg a E.H Gombrich, op.cit., p. 71-93.

34 Esse interesse fica claro, porexemplo, em GINZBURG,Carlo. A áspera verdade: umdesafio de Stendhal aos his-toriadores. In: Os fio e os ras-tros, op. cit., p. 170-188.

35 WOOLF, Virginia. To thelighthouse é publicado em Lon-dres pela Hogarth Press, em1927. O artigo de Auerbachintitula-se A meia marrom,publicado em AUERBACH,Eric, Mimesis, op. cit., p. 471-498.

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gse preocupa em dar a medida certa a uma meia que tricotava para ofilho do guarda do farol, protagoniza uma seqüência errática de ima-gens subjetivas. O tempo da cena se amplia na narrativa, todo o movi-mento que se vê nela é interior, realiza-se “na consciência das persona-gens”, presentes ou não à cena. Os pontos de vista se multiplicam, anarrativa se desdobra, o “escritor, como narrador de fatos objetivos, de-saparece quase completamente”. O texto parece cancelar a existência dequalquer realidade objetiva controlável pelo narrador que, por sua vez,coloca-se a si próprio no texto “por vezes, como quem duvida, interrogae procura”36. Auerbach deriva daí uma conclusão sobre a natureza dainvestigação proposta pela obra de Woolf:

Da pluralidade dos sujeitos pode-se concluir que, apesar de tudo, trata-se da intençãode pesquisar uma realidade objetiva, ou seja, neste caso concreto, de pesquisar a‘verdadeira’ Mrs. Ramsay. Embora seja um enigma, e assim se mantenha fundamen-talmente, é como que circunscrita pelos diferentes conteúdos de consciência dirigidospara ela (inclusive o dela mesma); tenta-se uma aproximação a ela de muitos lados atéatingir a menor distância ao alcance das possibilidades humanas de conhecimento ede expressão. A intenção da aproximação da realidade autêntica e objetiva mediantemuitas impressões subjetivas, obtidas por diferentes pessoas, em diferentes instantes,é essencial para o processo moderno que estamos considerando.37

No livro de Woolf, bem como na Recherche de Proust, Auerbachencontrava mais do que uma marca estilística do romance moderno —muito diferente daquela do romance dos séculos XVIII e XIX, de Goethe,Dickens, Balzac ou Zola, que “nos comunicavam, partindo de um co-nhecimento seguro, o que as suas personagens faziam, o que pensaramou sentiam ao agirem, de que forma deveriam ser interpretadas as suasações ou pensamentos”, que “estavam perfeitamente informados acercade seus caracteres”38. Tratava-se de um modo diverso da literatura inter-rogar uma experiência histórica também diversa, marcada por uma dú-vida crescente sobre a homogeneidade e a coerência do mundo, umaconsciência profundamente modificada e violentamente acelerada apartir do início do século XX, que tornava cada vez mais difícil interpre-tar o mundo a partir de balizas simples ou critérios de ordenação darealidade que fossem dignos de confiança39. Os recursos desse romancemoderno — “a representação consciente pluripessoal, a estratificaçãotemporal, o relaxamento da conexão com os acontecimentos externos, amudança de posição da qual se relata”40 — eram sintomas de uma cons-ciência do próprio tempo.

Durante e após a Primeira Guerra Mundial, numa Europa demasiado rica em massasde pensamentos e em formas de vida descompensadas, insegura e grávida de desas-tre, escritores distinguidos pelo instinto e pela inteligência encontram um processomediante o qual a realidade é dissolvida em múltiplos e multívocos reflexos daconsciência. O surgimento do processo nesse momento do tempo não é difícil deentender.41

A operação de Woolf e Proust, que se dedicavam a examinar àexaustão um acontecimento quotidiano, uma situação corriqueira e apa-rentemente desimportante, e extrair daí uma realidade mais profun-

36 AUBERBACH, Eric. Mime-sis, op. cit., p. 477, 481 e 482.

37 Idem, ibidem, p. 483.

38 Idem, ibidem, p. 482.

39 Idem, ibidem, p. 496.

40 Idem, ibidem, p. 492.

41 Idem, ibidem, p. 496.

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da, era o procedimento que o próprio Auerbach reivindicava colocar emoperação em Mimesis:

o método de me deixar dirigir por alguns motivos de forma paulatina e desproposi-tada e de pô-los à prova mediante uma série de textos que se me tornaram conhecidose vivos durante a minha atividade filológica, parece-me fecundo e factível; pois estouconvencido de que aqueles motivos fundamentais da história da representação darealidade, se os vi corretamente, devem poder ser encontrados em qualquer textorealista escolhido ao acaso.42

A inspiração do método “indiciário” que Auerbach havia apren-dido da leitura de Woolf e Proust foi reconhecida por Ginzburg sempreque comentou sobre suas leituras universitárias e sobre suas influênciasmais precoces na direção do que iria chamar mais tarde “micro-histó-ria”43. A reivindicação da intuição metodológica de Auerbach carrega-va, de todo modo, duas dimensões complementares: aquela queenfatizava o potencial cognitivo da leitura da realidade a partir dos frag-mentos e a ênfase na capacidade da literatura em se apropriar e repre-sentar seu próprio tempo. Duas questões que se tornaram cada vez maisarticuladas nos ensaios de Ginzburg dede o início da década de 1990,acrescidas, por outro lado, com uma preocupação enfática em marcardiferenças claras com o que ele identificava como “ceticismo episte-mológico”.

Verdade, prova e narrativa

A articulação entre essas preocupações colocou no centro das dis-cussões de Ginzburg a reflexão sobre algumas das categorias presentes evárias outras que estavam ausentes no debate sobre as relações entrehistória e literatura naqueles anos. A mais importante delas: prova, umanoção que havia sido deixada em desuso, abandonada como uma sortede relíquia positivista, sobretudo à luz da crítica filosófica às idéias deverdade e realidade.

A noção de prova — que o próprio Ginzburg reconhecera haverdeixado fora das suas considerações sobre o paradigma indiciário —aparece como eixo central de uma longa discussão que colocava, maisuma vez, as dimensões políticas e cognitivas do trabalho do historiadorem evidência.

Um episódio muito distante do mundo dos enfrentamentos teóri-cos dos historiadores acabou colocando em causa de um modo eloqüen-te o entrelaçamento entre os desafios teóricos que mobilizavam Ginzburge os riscos políticos de uma postura intelectual que subestimasse os te-mas da prova, da verdade e da realidade. Trata-se das circunstânciasque deram origem ao ensaio publicado pelo historiador italiano em 1991,à margem de um outro processo judiciário, desta vez muito mais próxi-mo, tanto no plano temporal quanto afetivo: Il giudice e lo storico (O juize o historiador).44

Neste livro, Ginzburg se dedica a analisar em detalhe o inquéritoque instruiu o processo contra seu amigo de longa data, o militanteAdriano Sofri — do grupo de esquerda radical Lotta Continua, ativo naItália dos anos 1970 — acusado, com dois outros companheiros (Ovidio

42 Idem, ibidem, p. 494.

43 Entretanto, foi apenas maisrecentemente que esta reivin-dicação se tornou de fato en-fática, em parte, talvez, pararealçar o contraste com a lei-tura “cética” (e, deste pontode vista, equivocada) que aobra de Auerbach poderiaproduzir. Ver, por exemplo,GINZBURG, Carlo. Latitude,slaves, and the Bible: an ex-periment in microhistory. In:CREAGER, Angela N. H. et al.Science without laws: modelsystems, cases, exemplarynarratives. Durham/Londres:Duke University Press, 2007,p. 243, 255 e 256.

44 GINZBURG, Carlo. Il giudicee lo storico: considerazioni inmargine al processo Sofri. Tu-rim: Einaudi, 1991.

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gBompressi e Giorgio Pietrostefani} de haver sido o mandante do assassi-nato do comissário de polícia de Milão em 1972, Luigi Calabresi.45

A dupla motivação de Ginzburg, por outro lado, ajuda a compre-ender o lugar do livro no argumento deste texto: Il giudice e lo storico nãoé um testemunho de um amigo que pretenda usar seu prestígio intelec-tual (e a autoridade moral daí advinda) para convencer os juízes dainocência de Sofri: “Da inocência de Sofri”, dizia Ginzburg no livro, “es-tou absolutamente certo. Mas a certeza moral não tem valor de pro-va”.46

A forma adquirida pela sua intervenção é outra: o confronto nocampo metodológico com a própria construção do processo judicial. Umconfronto que serve como oportunidade para discutir as “relações,intrincadas e ambíguas”, entre o ofício do historiador e os desafios que otrabalho do juiz instrutor — encarregado, no processo penal italiano, deconstruir o inquérito e levantar as provas — implica: enfrentar a necessi-dade de rever “indícios, provas, testemunhos”47. O exame das conseqü-ências epistemológicas e políticas da distância relativa que separa e apro-xima o juiz do historiador torna-se o eixo do livro, dedicado a demons-trar que a peça judiciária construída contra Sofri e seus companheiros— valendo-se de testemunhos indiretos, de indícios prováveis, informa-ções não documentadas e de provas circunstanciais em abundância —acabava transigindo aquelas diferenças fundamentais que existiam en-tre as exigências que historiadores, por um lado, e juízes/promotores,por outro, deveriam ter diante dos casos que investigavam. O ponto fulcraldo argumento pode ser resumido na discussão que Ginzburg faz sobre olugar do erro na investigação:

Errar, sabe-se, é humano. Mas, para um juiz, como para qualquer um que estejaenvolvido profissionalmente na busca da verdade, o erro não é apenas um risco: éuma dimensão na qual se está continuamente imerso. O conhecimento humano não éapenas intrinsecamente falível: progride através do erro, tentando, equivocando-se,se autocorrigindo. Erro e verdade se implicam reciprocamente, como sombra e luz.Ora, nem todos os erros têm as mesmas conseqüências. Existem erros catastróficos,erros inócuos, erros fecundos. Mas em âmbito judiciário, esta última possibilidadenão subsiste. O erro judiciário, mesmo quando é revogável, traduz-se sempre em umaperda fatal para a justiça.48

Essa divergência tinha um papel fundamental. Para Ginzburg, quehavia se ocupado largamente dos “erros fecundos” que podiam dirigir apesquisa histórica49, reconhecer que o trabalho do historiador implicavalidar todo o tempo com o erro significava também reconhecer que a suabusca por eliminá-lo estava profundamente conectada com os próprioslimites da investigação histórica. Uma das conquistas da história no sé-culo XX havia sido a possibilidade de investigar as dimensões escondi-das do passado (porque insuficientemente documentadas), utilizando-se, de modo controlado, do entrelaçamento entre as lacunas documen-tais e os elementos tirados do contexto. Uma operação (ou um conjuntodelas) onde o plausível e o provável tinham um lugar quase inevitável50.O caráter intrinsecamente conjectural de parte do conhecimento indire-to sobre o passado (um dos temas da sua discussão em “Sinais”) revela-va também a diferença fundamental entre o historiador e o juiz: para o

45 Os detalhes do processo nãoserão explorados aqui. O pro-cesso estendeu-se por váriosanos, com contestação públi-ca dentro e fora da Itália. So-fri foi condenado pela justiçaitaliana. As tentativas de re-visão do processo e da conde-nação de Sofri não tiveramsucesso e a pena foi suspensaem 2005 por motivos de saú-de. Para mais informaçõessobre o caso, a internet é a fon-te mais facilmente disponível:para os documentos sobre ocaso, ver <http://www.sofri.org>.

46 GINZBURG, Carlo. Il giudicee lo storico, op. cit., p. 110.

47 Idem, ibidem, p. VIII.

48 Idem, ibidem, p. 93 e 94.

49 Um tema constante, porexemplo, em GINZBURG,Carlo e PROSPERI, Adriano.Giochi di pazienza: un semi-nario sul ‘Beneficio di Cristo’.Turim: Einaudi, 1975. Esse étambém o tema de GINZ-BURG, Carlo. Conversar comOrion. Esboços, v. 12, n.14,Florianópolis, 2005, p. 163-170.

50 Cf. GINZBURG, Carlo. Ilgiudice e lo storico, op. cit., ca-pítulo XVIII (p. 101-110).Esse é também o eixo da dis-cussão de GINZBURG, Carlo.Provas e possibilidades, op.cit.

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último, confundir os limites entre as provas e as possibilidades, aceitar aplausibilidade como argumento judiciário significava colocar em xequea própria possibilidade da justiça. “As estradas do juiz e do historia-dor”, afirmava Ginzburg, “coincidentes até certo ponto, divergem emseguida inevitavelmente. Quem tenta reduzir o historiador a juiz, sim-plifica e empobrece o conhecimento historiográfico; mas quem tenta re-duzir o juiz a historiador, envenena irremediavelmente o exercício dajustiça”.51

Os riscos do erro judiciário lançavam luz sobre a dimensão funda-mental que a noção de verdade e prova carregava não apenas para ajustiça, mas a toda forma de investigação da realidade. O argumentoepistemologicamente cético — esgrimido sem conseqüências no campoda especulação teórica — mostrava bem seu limite ao ser confrontadocom os seus efeitos práticos.52

Entre o fim dos anos 1980 e os dez anos seguintes, a atenção sobreo problema da prova acompanhou outras discussões que vão montando— em um quadro que se tornou mais claro ao longo dos anos53 — u mentrelaçado de reflexões sobre cada um dos aspectos que ponteavam odebate sobre a implicação mútua entre o recurso à narrativa e as exigên-cias da prova e da verdade. Em Olhos de madeira (1998) e Relações deforça (2000), as duas coletâneas que reúnem quase todos estes artigos,Ginzburg revisita alguns conceitos-chave desse debate — como repre-sentação e retórica — com a intenção explícita de mostrar como o usopouco refletido dessas categorias acabava por esconder algumas das suasdimensões mais importantes.54

Em especial o caso da retórica — palavra-chave freqüentementeutilizada para desqualificar as pretensões do discurso histórico em cons-truir afirmações verdadeiras sobre o passado — vinha retomado em umdiálogo com Aristóteles e Nietzsche. A Nietzsche, como se sabe, remontaa interpretação da retórica como a forma do discurso eficaz, não apenasseparada, mas oposta à prova — daí ter se tornado, não por acaso, umadas referências fundamentais do debate55. Ginzburg, por outro lado,montava um contra-argumento à luz da longa tradição da retórica —que remetia a Aristóteles, passando, entre outros, por Lorenzo Valla —,demonstrando como, em seu sentido original, a retórica carregava umaforte carga cognitiva que a entrelaçava de modo claro com a idéia de“prova”. Para Ginzburg, “as provas, longe de serem incompatíveis coma retórica”, constituíam “seu núcleo fundamental”.56

A reflexão sobre formas que tinham uma grande dívida com a re-tórica clássica, como a demonstratio, a ekhfrasis e as fictiones lógico-jurídi-cas, explorava intensamente — e, com freqüência, com um cuidadofilológico e erudição difíceis de acompanhar — o mútuo entrelaçamentoentre a narrativa e as formas de demonstração baseadas na prova57. Domesmo modo, Ginzburg se dedicou a explorar alguns dos recursos pro-duzidos no âmbito da narrativa: a perspectiva como uma poderosa me-táfora cognitiva, as implicações cognitivas (bem como morais e políticas)da distância no tempo e no espaço, e por fim, mas não menos importan-te, o estranhamento.

A longa história do estranhamento, em especial, é tomada comouma oportunidade para discutir em detalhe — com base na tradição queremonta às reflexões escritas pelo imperador Marco Aurélio, passando

51 Cf. GINZBURG, Carlo. Ilgiudice e lo storico, op. cit., p.109 e 110.52 Ginzburg retorna ao proble-ma central das conseqüênciaspolíticas e humanas de se le-var a sério o ceticismo episte-mológico em GINZBURG,Carlo. Unus testis: o extermí-nio dos judeus e o princípioda realidade. In: O fio e os tra-ços, op. cit., p. 210-230, ondeconfronta diretamente os ar-gumentos de Hayden White.Em uma estrada paralela,Ginzburg escreveu igualmen-te sobre os usos políticos damentira, o discurso falso e omito em Mito: distância emen-tira. In: GINZBURG,Carlo. Olhos de madeira, op.cit., p. 42-84 (o artigo, contu-do, foi publicado primeira-mente em 1994).53 A recepção às vezes antipá-tica destes livros, em especialo primeiro, mostra algo dessadificuldade em reconhecer deimediato o empreendimentointelectual que estava por trásdeles. Um exemplo disso parao Brasil está na resenha publi-cada por Mary Del Priore quan-do da publicação da tradu-ção brasileira (O Globo, Rio deJaneiro, 22 de setembro de2001), onde Olhos de Madeiravinha classificado como o tra-balho de um “diletante que secompraz em complicadas ela-borações interdisciplinares”.54 GINZBURG, Carlo. Olhos demadeira, (editado na Itália em1998); GINZBURG, Carlo. Re-lações de força (editado na Itá-lia em 2000). Os outros arti-gos mais importantes, quetratam destes temas nesseperíodo, foram publicadosjuntos em italiano apenas emO fio e os rastros, editado naItália em 2006.55 Cf. GINZBURG, Carlo. In-trodução a Relações de força, op.cit., p. 15. O mesmo argumen-to é desenvolvido em Sobre ahistória e Aristóteles, maisuma vez. Idem, ibidem, p. 48.56 GINZBURG, Carlo. Sobre ahistória e Aristóteles..., Idem,ibidem, p. 63. Ver tambémGINZBURG, Carlo. LorenzoValla e a doação de Constan-tino, in: Relações de força, op. cit.,p. 64-79.57 Ver GINZBURG, Carlo. Des-crição e citação. In: O fio e osrastros, op. cit., p. 17-40 (pu-blicado pela primeira vez em1988); GINZBURG, Carlo.Sobre a história e Aristóte-les..., op. cit.

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gpelos textos de Maquiavel, os Ensaios de Montaigne e de Voltaire, Guerrae paz de Tolstoi e a Recherche de Proust — como a escolha de um recursoestilístico poderia potencializar a capacidade de explorar narrativamen-te a própria realidade em que se vive. Aqui, mais uma vez, Ginzburgreencontra Auerbach — mesmo que indiretamente: mostrando as dife-renças entre os usos do estranhamento entre o século XIX e o século XX,entre Tolstoi e Proust, ele investiga o modo pelo qual tal recurso foi utili-zado pelo escritor francês de Em busca do tempo perdido — e, nesse ponto,o estranhamento serve para marcar a ambigüidade da voz daquele quenarra, ao tratar de seu personagens fragmentados, cujas razões e moti-vações são ocultas ao próprio narrador. Uma técnica literária marcanteda literatura proustiana (e moderna) que, utilizada como um instrumentode cognição, tentava capturar, através do texto, uma realidade que eratambém opaca e contraditória.58

Espaço para a imaginação histórica

Estranhamento, distância, perspectiva. Recursos intelectuais e nar-rativos que marcam a longa história dos entrelaçamentos mútuos entrehistória e literatura. Poderíamos ainda acrescentar a pintura, a fotogra-fia e o cinema nessa lista. O ponto de união é a necessidade ineliminávelde pensar e representar a realidade, com todos os equívocos e ambigüi-dades que isso comporta.

Seguindo de perto seu projeto original de explorar “o núcleocognitivo” das formas narrativas e da própria literatura — na trilha,como vimos, de Auerbach, mas também de Gombrich, Leo Spitzer emesmo de Marc Bloch —, Ginzburg afirma com suas investigações oexato oposto daqueles que gostariam de diluir a história na literatura,abolindo de ambas qualquer relação com a realidade: ao contrário, elereivindica que “uma maior consciência da dimensão narrativa não im-plica uma ‘atenuação’ das possibilidades cognitivas da historiografia,mas, ao contrário, a sua intensificação”59. Essa preocupação filia-se, en-tretanto, a um projeto mais ambicioso, que está no coração de suas pre-ocupações como historiador desde os tempos de O queijo e os vermes:uma crítica da linguagem historiográfica que seja capaz de incorporaraos recursos dos historiadores as lições contidas no desafio que a litera-tura moderna e o cinema — as conquistas narrativas do século XX —fizeram e fazem às formas de raciocinar e comunicar que forjam os tra-balhos dos historiadores hoje. Acredito que, a despeito de sua ambição edificuldade (ou por causa delas), não há dúvida que um projeto comoesse tem uma enorme capacidade de mobilizar a imaginação históricano sentido amplo do termo.

Artigo recebido e aprovado em novembro de 2007.

58 Cf. GINZBURG, Carlo. Es-tranhamento: pré-história deum procedimento literário. In:Olhos de madeira, op. cit., espe-cialmente p. 35-41. Ginzburgvolta ao tema do estranha-mento em outras ocasiões.Ver, por exemplo, GINZ-BURG, Carlo. Tolerância e co-mércio: Auerbach lê Voltaire.In: O fio e os rastros, op. cit.,p. 112-138.

59 Cf. GINZBURG, Carlo. Pro-vas e possibilidades, op. cit.,p. 329. É importante notaraqui, entretanto, que há umequívoco de tradução na ver-são brasileira, que traduz apalavra attenuazione (no origi-nal italiano) por acentuação(que corrijo para atenuação,entre aspas na passagem ci-tada).