não se brinca com o amor

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ALFRED DE MUSSET Não se briNca com o amor seguido de os caprichos da mariaNNe TEATRO

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Peça de teatro de Musset

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Page 1: Não se brinca com o amor

ALFRED DE MUSSET

Não se briNcacom o amor

seguido de

os caprichosda mariaNNe

TEATRO

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LIVROS COTOVIA

Capa - Não se brinca com o amor:Layout 1 23-08-2011 10:36 Page 1

Page 2: Não se brinca com o amor

Alfred de Musset (Paris, 1810-1857), poeta, dra-maturgo, ficcionista. Estreia-se em 1829 com o livro depoemas Contes d’Espagne et d’Italie. Quatro anos depois,partiu para a Itália com George Sand — a dramáticaexperiência amorosa que iria estar na origem da sua ex-traordinária Confissão de um filho do século (1836). A suapoesia combinava a clareza clássica com a expressão deuma melancolia muito particular. O clamoroso insu-cesso da sua primeira incursão no teatro, A Noite Vene-ziana (1830), não o impediu de continuar a escrever peçascomo André del Sarto (1833), Fantasio (1834), Lorenzac-cio (1834), e a série de comédias e provérbios onde se in-cluem Os Caprichos da Marianne (1833), Não se PodePensar em Tudo (1834), Não se Brinca com o Amor (1836),Nunca se deve Jurar (1836) Uma Porta ou está aberta oufechada (1845). Em vida do autor, o desafio poético doseu teatro heterodoxo quase não conhece a experiênciacénica. Também por isso, Musset, que o vai publicandona prestigiada Revue des Deux Mondes, irá compilá-loem livro com o insolente título Teatro numa Poltrona.

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Um sentimento de inexplicável mal-estar começoua fermentar em todos os corações jovens. Condenadosao repouso pelos soberanos do mundo, entregues a be-déis de toda a espécie, à ociosidade e ao enfado, os jovensviam distanciar-se as vagas escumantes contra as quaishaviam preparado os seus braços. Todos esses gladiadoresuntados de azeite sentiam no fundo da alma uma misé-ria insuportável. Os mais ricos tornaram-se libertinos;os de fortuna medíocre arranjaram um emprego e re-signaram-se à beca ou à farda; os mais pobres laçaram--se friamente no entusiasmo, nas grandes palavras, nomedonho mar de acção sem fim. Como a fraqueza hu-mana procura a associação e os homens são rebanhos pornatureza, a política interveio. Ia-se combater com os guar-das do rei nos degraus da Câmara legislativa, corria-se auma peça de teatro em que Talma trazia uma peruca queo fazia parecer-se com César, acompanhava-se o enterrode um deputado liberal. Mas, dos membros dos dois par-tidos opostos, não havia um que, ao chegar a casa, nãosentisse amargamente o vazio da sua existência e a po-breza de suas mãos.

Ao mesmo tempo que a vida ambiente era tão pá-lida e mesquinha, a vida interior da sociedade tomava umaspecto sombrio e silencioso. A hipocrisia mais severa rei-nava nos costumes. As ideias inglesas juntaram-se à devo-ção e a alegria desapareceu. Talvez a providência estivessepreparando novos rumos e o anjo anunciado das socieda-des futuras semeando no coração das mulheres os germesda independência humana que um dia hão-de reclamar.

Alfred de Musset, Confissão de um filho do século

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NÃO SE BRINCA COM O AMOR

seguido de

OS CAPRICHOS DA MARIANNE

Page 5: Não se brinca com o amor

Título original: On ne badine pas avec l’amour / Les caprices de Marianne

© Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2011

ISBN 978-972-795-323-3

Page 6: Não se brinca com o amor

Alfred de Musset

Não se brinca com o amor

seguido de

Os caprichos da Marianne

Tradução de

Ana Campos

Cotovia

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Page 8: Não se brinca com o amor

Índice

NÃO SE BRINCA COM O AMOR 9

OS CAPRICHOS DA MARIANNE 73

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Não se brinca com o amor

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Não se brinca com o amor, Elmano Sancho e Catarina Wallensteinfoto © Jorge Gonçalves

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Elenco da estreiade

NÃO SE BRINCA COM O AMOR

Esta tradução foi estreada em co-produção com o Tea-tro Viriato, em Viseu, em 16 de Setembro de 2011, pe-los Artistas Unidos, com cenografia e figurinos de RitaLopes Alves, luz de Pedro Domingos, assistência deAndreia Bento e Joana Barros, encenação de Jorge SilvaMelo, com a seguinte distribuição (por ordem de en-trada em cena):

O CORO — Pedro CarracaMESTRE BLAZIUS — João MeirelesDONA PLUCHE — Alexandra ViveirosO BARÃO — Américo SilvaMESTRE BRIDAINE — António SimãoPERDICAN — Elmano SanchoCAMILLE — Catarina WallensteinROSETTE — Vânia RodriguesAldeões, criados — Joana Barros, Diogo Cão e Tiago Nogueira

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Não se brinca com o amor, Elmano Sancho,foto © Jorge Gonçalves

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Não se brinca com o amor, Catarina Wallenstein,foto © Jorge Gonçalves

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Personagens

O BARÃO.PERDICAN, seu filho. MESTRE BLAZIUS, preceptor de Perdican.MESTRE BRIDAINE, pároco.CAMILLE, sobrinha do barão. DONA PLUCHE, preceptora de Camille.ROSETTE, irmã de leite de Camille.O CORO de aldeões.

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ACTO PRIMEIRO

CENA I

Uma praça em frente do palácio.

Mestre Blazius, Dona Pluche, O Coro.

O CORO Suavemente embalado sobre a sua mula fogosa,o senhor Blazius avança por entre as centáureas azuis,com o seu fato novo e o seu estojo de escrita. Como umbebé em cima do travesseiro, balança sobre o seu ven-tre roliço e, de olhos semicerrados, murmura um PaiNosso para dentro do seu triplo queixo. Olá, MestreBlazius, o senhor chega no tempo das vindimas, comouma ânfora antiga.

MESTRE BLAZIUS Os que quiserem saber uma importantenotícia tragam-me aqui primeiro um copo de vinho bemfresco.

O CORO Aqui está a maior gamela que temos; beba, Mes-tre Blazius; o vinho é bom; falará depois.

MESTRE BLAZIUS Saibam, meus filhos, que o jovem Perdi-can, filho do nosso amo, acaba de atingir a maioridade,e que se doutorou em Paris. Regressa hoje mesmo aopalácio, com a boca cheia de maneiras de falar tão be-las e tão floridas que ninguém sabe o que lhe há-de res-

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ponder três em cada quatro vezes. Toda a sua graciosapessoa é um livro de oiro; não vê uma ervinha no chãoque não nos diga como aquilo se chama em latim; e,quando há vento ou quando chove, diz-nos muito cla-ramente porquê. Vocês ficariam com os olhos tão es-cancarados como aquela porta que ali está, se o vissemdesenrolar um dos pergaminhos que coloriu com tintasde todas as cores, com as suas próprias mãos e sem di-zer nada a ninguém. Enfim, é um fino diamante da ca-beça aos pés, e é o que eu venho anunciar ao senhorbarão. Estão a perceber que isto também me honra amim, que sou o seu preceptor desde os quatro anos deidade; portanto, meus bons amigos, tragam-me uma ca-deira, para eu descer desta mula sem partir o pescoço;o animal é um bocadinho rebelde, e não me importariade beber mais um trago antes de entrar.

O CORO Beba, Mestre Blazius, e reanime-se. Nós vimosnascer o pequeno Perdican, e, como ele está a chegar,não era preciso dizer-nos tantas coisas. Possamos nósreencontrar a criança no coração do homem!

MESTRE BLAZIUS Que esquisito, a gamela está vazia; jul-gava que não tinha bebido tudo. Adeus; preparei, en-quanto vinha trotando pela estrada, duas ou três frasessem pretensão que agradarão ao senhor barão; vou pu-xar a sineta. (Sai.)

O CORO Duramente sacudida sobre o seu burro ofegante,a Dona Pluche sobe a colina; o seu escudeiro transidodesanca o pobre animal, que abana a cabeça, com umcardo entre os dentes. Com as suas pernas compridase magras, sapateia de raiva, enquanto as suas mãos os-sudas arranham o terço. Bom dia, Dona Pluche; a se-

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nhora chega como a febre, com o vento que amareleceos bosques.

DONA PLUCHE Um copo de água, labregos, que é o quevocês são! um copo de água e um pouco de vinagre!

O CORO De onde vem, amiga Pluche? Tem a peruca co-berta de pó; lá se foi um topete, e o seu casto vestidoestá arregaçado até às suas veneráveis ligas.

DONA PLUCHE Saibam, campónios, que a bela Camille,a sobrinha do vosso amo, chega hoje ao palácio. Saiudo convento por ordem expressa do senhor barão, paravir em devido tempo e lugar receber, como é de di-reito, o que herdou de sua mãe. A sua educação, Deusseja louvado, está terminada, e os que a virem terãoa alegria de aspirar uma gloriosa flor de sabedoria edevoção. Nunca houve nada tão puro, tão anjo, tão cor-deiro e tão pomba como esta querida irmã; que o Se-nhor Deus do Céu a guie! Assim seja. Afastem-se, labre-gos; parece-me que tenho as pernas inchadas.

O CORO Componha-se, virtuosa Pluche; e quando rezara Deus, peça chuva; os nossos campos de trigo estãosecos como as suas tíbias.

DONA PLUCHE Vocês trouxeram-me água numa gamelaque cheira a cozinhado; dêem-me a mão para eu des-cer; são uns grosseirões e uns malcriados. (Sai.)

O CORO Vamos pôr os nossos fatos de domingo, e ficar àespera que o barão nos mande chamar. Ou muito meengano, ou vai haver hoje um alegre banquete. (Saem.)

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CENA II

O salão do Barão.

O Barão, Mestre Blazius, Mestre Bridaine, Dona Plu-che, Perdican, Camille.

Entram o Barão, Mestre Bridaine e Mestre Blazius.

O BARÃO Mestre Bridaine, o senhor é meu amigo; apre-sento-lhe o Mestre Blazius, preceptor do meu filho.O meu filho fez ontem de manhã, ao meio-dia e oitominutos, vinte e um anos completos; é doutor comquatro bolas brancas. Mestre Blazius, apresento-lhe oMestre Bridaine, pároco; é meu amigo.

MESTRE BLAZIUS (cumprimentando) Com quatro bolasbrancas, meu senhor! literatura, botânica, direito ro-mano e direito canónico.

O BARÃO Vá até ao seu quarto, meu caro Blazius, o meufilho não tardará a chegar; arranje-se um pouco, e voltequando ouvir a sineta.

Mestre Blazius sai.

MESTRE BRIDAINE Dir-lhe-ei o que penso, meu senhor?o preceptor do seu filho cheira muito a vinho.

O BARÃO Isso é impossível.MESTRE BRIDAINE Estou tão certo disso como de estar

vivo; falou-me de perto há bocado; cheirava aflitiva-mente a vinho.

O BARÃO Fiquemos por aqui; repito-lhe que isso é impos-sível. (Entra Dona Pluche.) Já chegou, boa Dona Plu-che! A minha sobrinha está certamente consigo?

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DONA PLUCHE Vem atrás de mim, meu senhor; distanciei--me dela alguns passos.

O BARÃO Mestre Bridaine, o senhor é meu amigo. Apre-sento-lhe a Dona Pluche, preceptora da minha sobri-nha. A minha sobrinha tem desde ontem, às sete ho-ras da noite, dezoito anos de idade; acaba de sair domelhor convento de França. Dona Pluche, apresento--lhe o Mestre Bridaine, pároco; é meu amigo.

DONA PLUCHE (cumprimentando) Do melhor conventode França, senhor, e posso acrescentar: a melhor cristãdo convento.

O BARÃO Dona Pluche, vá reparar a desordem em que seencontra; a minha sobrinha vai chegar em breve, es-pero; esteja pronta à hora do jantar.

Dona Pluche sai.

MESTRE BRIDAINE Esta solteirona parece completamentecheia de unção.

O BARÃO Cheia de unção e de compunção, Mestre Bri-daine; a sua virtude é inatacável.

MESTRE BRIDAINE Mas o preceptor cheira a vinho; tenho acerteza.

O BARÃO Mestre Bridaine! Há momentos em que duvidoda sua amizade. Está apostado em contradizer-me?Nem mais uma palavra sobre o assunto. Formei o de-sígnio de casar o meu filho com a minha sobrinha; fa-zem um par harmonioso: a educação deles custa-meseis mil escudos.

MESTRE BRIDAINE Será necessário obter algumas dispen-sas.

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O BARÃO Já as tenho, Bridaine; estão em cima da minhamesa, no meu escritório. Oh meu amigo, participo-lheagora que estou muito contente. Sabe que tive sempreo mais profundo horror à solidão. Contudo, o lugar queocupo e a importância das minhas funções obrigam--me a permanecer neste palácio três meses no invernoe três meses no verão. É impossível fazer a felicidadedos homens em geral, e dos seus vassalos em particular,sem dar por vezes ao seu criado de quarto a ordem ri-gorosa de não deixar entrar ninguém. Como é austeroe difícil o recolhimento do homem de Estado! e queprazer não encontrarei eu em moderar, pela presençados meus dois filhos reunidos, a sombria tristeza quepor força tem de me atormentar desde que o rei menomeou administrador dos impostos!

MESTRE BRIDAINE Esse casamento far-se-á aqui ou emParis?

O BARÃO Já estava à espera, Bridaine; tinha a certeza deque o senhor me iria fazer essa pergunta. Pois bem, quediria o meu amigo se essas mãos que aí estão, sim, Bri-daine, as suas próprias mãos, — não olhe para elas comesse ar tão infeliz — estivessem destinadas a abençoarsolenemente a feliz confirmação dos meus sonhos maisqueridos? Hem?

MESTRE BRIDAINE Calo-me; o reconhecimento tira-meas palavras.

O BARÃO Olhe através desta janela; não vê que a minhagente se dirige em multidão para os portões? Os meusdois filhos chegam ao mesmo tempo; esta é a mais fe-liz combinação. Dispus as coisas de maneira a prevertudo. A minha sobrinha será introduzida por esta portaà esquerda, e o meu filho por esta porta à direita. Que

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lhe parece? Sinto-me muito feliz por ir ver como elesse vão abordar, o que vão dizer um ao outro; seis milescudos não é uma ninharia, não se iluda. Estas crian-ças amavam-se muito, aliás, desde o berço. — Bridaine,tenho uma ideia.

MESTRE BRIDAINE Qual?O BARÃO Durante o jantar, como quem não quer a coisa,

está a compreender, meu amigo, — enquanto for es-vaziando algumas taças festivas... — o senhor sabe la-tim, Bridaine.

MESTRE BRIDAINE Ita edepol1, com os diabos, está claroque sei!

O BARÃO Gostaria muito de o ver interpelar o rapaz, —discretamente, é óbvio — diante da prima; não podedeixar de produzir uma boa impressão; — ponha-o a fa-lar latim um bocadinho, — não exactamente duranteo jantar, tornar-se-ia fastidioso, e eu cá não compreendonada, mas à sobremesa, — está a perceber?

MESTRE BRIDAINE Se o senhor barão não compreendenada, é provável que o mesmo aconteça com a sua so-brinha.

O BARÃO Mais uma razão; quer que uma mulher admireaquilo que compreende? De onde vem o senhor, Bri-daine? Essa objecção mete dó.

MESTRE BRIDAINE Eu conheço mal as mulheres; mas pa-rece-me que é difícil admirar aquilo que não se com-preende.

O BARÃO Eu conheço-as, Bridaine; conheço esses seresencantadores e indefiníveis. Convença-se disto: elasgostam que lhes atirem areia para os olhos, e quanta

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1 Expressão latina que significa “sim, por Pólux”.

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mais lhes atiramos mais elas os abrem, para apanharemmais. (Perdican entra por um lado, Camille pelo outro.)Bom dia, meus filhos; bom dia, minha querida Camille,meu querido Perdican! dêem-me um beijo, e dêem umbeijo um ao outro.

PERDICAN Bom dia, meu pai, minha querida irmã! Quefelicidade! como estou feliz!

CAMILLE Saúdo-os, meu pai e meu primo.PERDICAN Como tu estás crescida, Camille! e tão bela

como o sol! O BARÃO Quando saíste de Paris, Perdican?PERDICAN Na quarta-feira, creio eu, ou na terça. Como

tu te transformaste numa mulher! Sou então um ho-mem, eu! Parece-me que ainda ontem te vi deste ta-manho.

O BARÃO Devem estar cansados; a estrada é longa, e estácalor.

PERDICAN Oh! meu Deus, não. Veja, meu pai, que bo-nita que é a Camille!

O BARÃO Vá lá, Camille, dá um beijo ao teu primo.CAMILLE Peço desculpa.O BARÃO Um elogio paga-se com um beijo; dá-lhe um

beijo, Perdican.PERDICAN Se a minha prima recua quando eu lhe estendo

a mão, digo-lhe também eu: Peço desculpa; o amor po-de roubar um beijo, mas a amizade não.

CAMILLE A amizade e o amor só devem receber o quepodem dar.

O BARÃO (para Mestre Bridaine) Que começo de mauagouro, hem?

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MESTRE BRIDAINE (para o Barão) O pudor excessivo é, semdúvida, um defeito; mas o casamento remove muitosescrúpulos.

O BARÃO (para Mestre Bridaine) Estou chocado, — ma-goado. — Aquela resposta desagradou-me. — Peçodesculpa! Viu que ela fez menção de se benzer? —Venha aqui, para eu lhe falar. — Isto é-me extrema-mente doloroso. Este momento, que devia ser tão docepara mim, está completamente estragado. — Estou ir-ritado, melindrado. — Que diabo! isto é muito mau.

MESTRE BRIDAINE Diga-lhes algumas palavras; viraramas costas um ao outro.

O BARÃO Então, meus filhos, o que se passa? Que fazesaí, Camille, diante dessa tapeçaria?

CAMILLE (observando um quadro) Que belo retrato, meutio! Não é uma nossa tia-avó?

O BARÃO Sim, minha filha, é a tua bisavó, — ou pelo me-nos a irmã do teu bisavô, — pois a querida senhoranunca contribuiu, — pela sua parte, creio eu, a não sercom orações, — para o crescimento da família. — Erarealmente uma santa mulher.

CAMILLE Oh! sim, uma santa! é a minha tia-avó Isabelle.Como o hábito lhe fica bem!

O BARÃO E tu, Perdican, que fazes aí diante desse vaso deflores?

PERDICAN Está aqui uma flor encantadora, meu pai. É umheliotrópio.

O BARÃO Estás a brincar? é do tamanho de uma mosca.PERDICAN Esta pequena flor do tamanho de uma mosca

tem o seu valor.MESTRE BRIDAINE Sem dúvida! o doutor tem razão. Per-

gunte-lhe a que sexo, a que classe ela pertence, que ele-

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mentos a constituem, de onde lhe vêm a seiva e a cor;e levá-lo-á ao êxtase enumerando os fenómenos destaervinha, desde a raiz até à flor.

PERDICAN Não sei tanto sobre ela, meu reverendo. Achoque cheira bem, mais nada.

CENA III

Em frente do palácio.

O Coro, o Barão, Dona Pluche, Perdican, Camille.

Entra o Coro.

O CORO Várias coisas me divertem e excitam a minha cu-riosidade. Venham, meus amigos, e sentemo-nos à som-bra desta nogueira. Dois formidáveis comensais estãoneste momento frente a frente, no palácio, o Mestre Bri-daine e o Mestre Blazius. Nunca repararam nisto? quan-do dois homens mais ou menos idênticos, igualmentegordos, igualmente tolos, com os mesmos vícios e asmesmas paixões, por acaso se encontram, é forçosoque se adorem ou se detestem. Pela mesma razão porque os contrários se atraem, um homem alto e secogosta de um homem baixo e redondo, e os loiros pro-curam os morenos e reciprocamente, eu prevejo umaluta secreta entre o preceptor e o pároco. Ambos es-tão armados de igual grosseria; ambos têm por barrigaum tonel; são não apenas glutões como apreciadoresde bons petiscos; ambos disputarão entre si, ao jantar,não só a quantidade como a qualidade. Se o peixe for

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pequeno, que fazer? e nem sempre uma língua de carpapode ser partilhada, e uma carpa não pode ter duaslínguas. Item2, ambos são tagarelas; mas, se for pre-ciso, podem conversar sem se escutarem um ao outro.O Mestre Bridaine já quis fazer várias perguntas pe-dantes ao jovem Perdican, e o preceptor franziu o so-brolho. Não lhe agrada que outro que não ele pareçapôr à prova o seu aluno. Item, são tão ignorantes umcomo o outro. Item, ambos são padres; um gabar-se-áda sua paróquia, o outro empertigar-se-á no seu cargode preceptor. O Mestre Blazius confessa o filho, e oMestre Bridaine o pai. Já os vejo com os cotovelos pou-sados na mesa, as faces afogueadas, os olhos fora das ór-bitas, a sacudirem cheios de ódio os seus triplos quei-xos. Miram-se da cabeça aos pés, começam por levesescaramuças; mas logo se declara a guerra; cruzam-see trocam-se pedantices de todo o tipo, e, para cúmuloda desgraça, entre os dois bêbados agita-se a Dona Plu-che, que os repele a ambos com os seus cotovelos pon-tiagudos. Agora que o jantar terminou, abrem-se os por-tões do palácio. As visitas saem, afastemo-nos. (Saem.Entram o Barão e Dona Pluche.)

O BARÃO Estou pesaroso, venerável Pluche.DONA PLUCHE Será possível, meu senhor?O BARÃO É, Pluche, é possível. Há muito que eu tinha por

certo, — tinha até escrito, anotado, nas minhas ta-buinhas de bolso, — que este dia devia ser o mais agra-dável dos meus dias, — sim, minha boa senhora, o maisagradável. — Não ignora que o meu desígnio era casaro meu filho com a minha sobrinha; — estava decidido,

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2 Expressão latina que significa “do mesmo modo”.

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— combinado, — tinha falado do assunto ao Bridaine,— e vejo agora, julgo ver, que estes jovens se falam comfrieza; não trocaram nem uma palavra.

DONA PLUCHE Aí vêm eles, meu senhor. Estão informa-dos dos seus planos?

O BARÃO Disse-lhes umas palavrinhas em privado sobreo assunto. Creio que será bom, uma vez que estão reu-nidos, que nos sentemos sob esta ramagem propícia, eos deixemos juntos por uns momentos. (Retira-se comDona Pluche. Entram Camille e Perdican.)

PERDICAN Sabes que não foi nada bonito teres-me recu-sado um beijo, Camille?

CAMILLE Eu sou assim; é o meu feitio.PERDICAN Aceitas o meu braço para irmos dar um pas-

seio pela aldeia?CAMILLE Não, estou cansada.PERDICAN Não gostarias de voltar a ver o prado? Lembras-

-te dos nossos passeios de barco? Vem, vamos desceraté aos moinhos; eu remo, e tu seguras no leme.

CAMILLE Não me apetece.PERDICAN Tu partes-me o coração. O quê! nem uma lem-

brança, Camille? o teu coração não bate nem uma únicavez pela nossa infância, por todo o pobre tempo pas-sado, tão bom, tão doce, tão cheio de tolices deliciosas?Não queres ir ver o caminho por onde íamos à quinta?

CAMILLE Não, esta tarde não.PERDICAN Esta tarde não! e então quando? A nossa vida

está toda aqui.CAMILLE Não sou tão nova que me divirta com as minhas

bonecas, nem tão velha que tenha amor ao passado.PERDICAN Que queres dizer com isso?

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CAMILLE Quero dizer que as lembranças da infância nãosão do meu agrado.

PERDICAN Aborrecem-te?CAMILLE Sim, aborrecem-me.PERDICAN Pobre criança! Tenho sinceramente pena de ti.

(Saem cada um pelo seu lado.)O BARÃO (entrando outra vez com Dona Pluche) Está a ver,

e está a ouvir, excelente Pluche; eu contava com a maissuave harmonia, e parece-me estar a assistir a um con-certo em que o violino toca Voi che sapete, enquanto aflauta toca Vive Henri IV. Imagine a medonha dissonân-cia que tal combinação produziria. É, no entanto, o quese passa no meu coração.

DONA PLUCHE Confesso que me é impossível censurar aCamille, e os passeios de barco, a meu ver, não são nadade bom tom.

O BARÃO Está a falar a sério?DONA PLUCHE Senhor, uma menina que se respeita não

se aventura em passeios de barco. O BARÃO Mas considere, Dona Pluche, que o primo vai

casar-se com ela, e que por isso...DONA PLUCHE As conveniências proíbem que se segure

num leme, e não é próprio abandonar a terra firme so-zinha com um rapaz.

O BARÃO Mas repito... digo-lhe...DONA PLUCHE É esta a minha opinião.O BARÃO Está louca? Na verdade, quase me faria dizer...

Há certas expressões que eu não quero... que me re-pugnam... A senhora dá-me vontade... A verdade é que,se eu não me refreasse... A senhora é uma delambida,Pluche! Não sei o que pensar de si. (Sai.)

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