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NÃO AMARÁS Era para ser um filme sobre a vingança de uma mulher contra um adolescente, mas acabou recebido como uma grande história de amor. Em 1998, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski, então completamente desconhecido, venceu a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com Não Amarás, filme concebido para ser uma vingança de uma mulher mais velha contra um adolescente voyeur que lhe atazanava a vida, mas acabou recebido, no Brasil e em todo o mundo, como uma grande história de amor (atriz e diretor nunca entenderam o porquê). Kieslowski é mais conhecido do grande público pela Trilogia das Cores (A Fraternidade É Azul, A Igualdade É Branca e A Fraternidade É Vermelha), que ele realizou na França nos anos 90, filmes deliciosos e irresistivelmente cafonas. Para muitos, seu melhor ele fez na sua Polônia natal, nos anos 80: Não Amarás e Não Matarás, além do estranho e enigmático A Dupla Vida de Véronique. Não Amarás, esse pequeno filme sobre o amor, seu título americano, conta a história, tristíssima, de um rapaz de 19 anos que se apaixona por sua vizinha do prédio em frente e passava as noites lhe vigiando por meio de uma luneta. Ele trabalhava numa agência do correio e lhe mandava avisos falsos de correspondência só para que ela comparecesse à agência e pudesse vê-la pessoalmente por alguns minutos. Quando ela recebe uma visita íntima, digamos assim, ele liga para a companhia de gás alertando de um vazamento falso para que os funcionários interrompessem o momento do sexo. É comovente. Acabará em tragédia. O rapaz acaba se empregando de leiteiro (estamos nos anos 80, na Polônia comunista ainda havia entrega de leite em garrafas de vidro de porta em porta) para poder ter mais um tipo de contato com a amada e Kieslowski da início a uma sucessão de metáforas sobre o leite, em especial o derramado, que pode representar desde os significados tradicionais, mulher, amamentação, vida, saciedade, como alguns inusitados. Ele ficava no quarto só

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Page 1: NÃO AMARÁS

NÃO AMARÁS

Era para ser um filme sobre a vingança de uma mulher contra um adolescente, mas acabou recebido como uma grande história de amor.

Em 1998, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski, então completamente desconhecido, venceu a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com Não Amarás, filme concebido para ser uma vingança de uma mulher mais velha contra um adolescente voyeur que lhe atazanava a vida, mas acabou recebido, no Brasil e em todo o mundo, como uma grande história de amor (atriz e diretor nunca entenderam o porquê).

Kieslowski é mais conhecido do grande público pela Trilogia das Cores (A Fraternidade É Azul, A Igualdade É Branca e A Fraternidade É Vermelha), que ele realizou na França nos anos 90, filmes deliciosos e irresistivelmente cafonas. Para muitos, seu melhor ele fez na sua Polônia natal, nos anos 80: Não Amarás e Não Matarás, além do estranho e enigmático A Dupla Vida de Véronique.

Não Amarás, esse pequeno filme sobre o amor, seu título americano, conta a história, tristíssima, de um rapaz de 19 anos que se apaixona por sua vizinha do prédio em frente e passava as noites lhe vigiando por meio de uma luneta. Ele trabalhava numa agência do correio e lhe mandava avisos falsos de correspondência só para que ela comparecesse à agência e pudesse vê-la pessoalmente por alguns minutos. Quando ela recebe uma visita íntima, digamos assim, ele liga para a companhia de gás alertando de um vazamento falso para que os funcionários interrompessem o momento do sexo. É comovente. Acabará em tragédia.

O rapaz acaba se empregando de leiteiro (estamos nos anos 80, na Polônia comunista ainda havia entrega de leite em garrafas de vidro de porta em porta) para poder ter mais um tipo de contato com a amada e Kieslowski da início a uma sucessão de metáforas sobre o leite, em especial o derramado, que pode representar desde os significados tradicionais, mulher, amamentação, vida, saciedade, como alguns inusitados. Ele ficava no quarto só tomando chá enquanto no quarto em frente tinha o suculento leite, sinônimo de fartura, desejo, assim como, em outras cenas, a própria solidão da mulher, o esperma do rapaz, lágrimas e, por fim, no belo final, um possível entendimento.

Tanto Não Amarás como Não Matarás são duas obras tiradas de dois episódios de O Decálogo, série em dez episódios, como diz o nome, baseado em cada um dos dez mandamentos da Bíblia - Não Amarás se ressente disso e parece mesmo um episódio espichado. Kieslowski, católico praticante, usava a religião, então proibida pelo comunismo na Polônia, para criticar o regime, que acabou ruindo, deixando a Polonia destruída. Kielslowski foi ardoroso defensor do sindicalista Lech Walessa, que promoveu as reformas e a abertura do país ao mundo, um governo bastante controverso e criticado.

Kieslowski filma a mulher com os olhos de um conservador católico que ele era. Ela é ''liberada'', independente, faz sexo com varios homens, mora sozinha. A posição do diretor para esse tipo de comportamento é crítica, mas nunca o conservadorismo católico teve em suas hordas um artista tão delicado e refinado, vendo seus personagens com tanto carinho

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que, mesmo lhes criticando, jamais lhe nega seu esplendor humano. O filme é, assim, universal. Mesmo para quem não acredita nos dogmas católicos, é possível acompanhar a beleza do filme, uma vez que o interlocutor tenha idéias bem diferentes do espectador, mas ele é tão bem articulado e tem um olhar tão original e caridoso, que a experiência se torna instigante.

Muito se falou, na época, do caráter hitchcockiano do filme, que remete à Janela Indiscreta. Mas Hitchcock, protestante, filmou a culpa, como a curiosidade e a bisbilhotagem podiam mostrar o lado mesquinho nos homens, de ambos os lados, tanto de quem olha quanto o vigiado. Kieslowski, católico, filma a solidão, a tristeza, a falta de comunicação, a incompreensão e o isolamento do homem moderno. Não poderia ser mais diferente, tanto na forma quanto no conteúdo.

O final, tão belo, foi um pedido da atriz ao diretor, que queria no cinema um desfecho um pouco mais feliz do que o episódio original, que termina com o suicídio do rapaz. Kieslowski a faz entrar no quarto do voyeur e ela vê, pela luneta, a si mesma, justamente na cena do leite derramado. É quando as duas melodias criadas pelo musico Zgibnew Preisner para a trilha do filme se misturam e a trilha dela vai se tornando, lentamente, a dele: voyeur e solitária trocam de lugar e podem, enfim, compreender um ao outro.

Krzysztof Kieslowski marcou sua obra pelo pessimismo e pela amargura nos registros da vida e das pessoas. Isso é nítido em algumas de suas obras, como Não Matarás e a trilogia das cores da bandeira francesa. Aqui, com Não Amarás, mais um filme extraído de um episódio série Decálogo, Kieslowski passeia por suas linhas mestras e demonstra como o amor pode destruir um ser humano.

Mas esta é apenas uma das visões que podemos ter ao longo da projeção. De outro lado, pode-se compreender Não Amarás como um filme de amor muito belo, que passeia pelas emoções mais intrínsecas ao ser humano, assim como a descoberta do amor e da paixão.

A história é simples: Tomek é um jovem de 19 anos, órfão, que vive com a mãe de um amigo seu em um prédio de Varsóvia. Ele trabalha em uma agência dos Correios e espiona uma mulher em um prédio vizinho, a bela Magda. Com o passar do tempo, ele acaba se apaixonando por ela e faz de tudo para se aproximar de sua amada, desde deixar avisos postais falsos em sua caixa de correio ou tornar-se leiteiro, para ir todas as manhãs à casa de Magda entregar-lhe o leite. Tomek acaba por revelar sua paixão e Magda acaba conhecendo mais da vida deste jovem, o que terá consequências desgradáveis.

O belíssimo roteiro de Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz transita entre o horror do sofrimento amoroso e as descobertas do amor e do sexo. Para isso, o roteiro vale-se de cenas singelas e marcantes, como quando Tomek acaba por tocar as pernas de Magda e, dada a sua inexperiência e retração, acaba por ejacular. Todo o desenrolar da trama após a tragédia que se abate sobre a vida de Magda e Tomek é recheado de emoção. Difícil não deixar uma lágrima escorrer diante da beleza e força das cenas.

Isso é reforçado pelas atuações poderosas de Grazyna Szapolowska, como Magda, a mulher fatal que acaba por seduzir um jovem rapaz, e Olaf Lubaszenko, como Tomek, o rapaz que

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sofre de uma arrasadora paixão platônica. O retrato desse amor percorre um caminho interessante: seria a fotografia clara do quanto as relações mudaram naquele tempo. Magda é a representação da revolução sexual, da libido, da mulher fatal, do poder que o sexo tomou após 1970. Já Tomek é a resistência, representa as tradições de um país católico e muito firme na posição do sexo como fim de procriação e como algo imoral, dadas as circunstâncias em que ocorrem. O choque dessas representações resulta em fins trágicos, o que se esperaria de um bom católico como é Kieslowski.

Tecnicamente, é um belo filme, bem fotografado, com impecável direção de arte e maquiagem.

Não Amarás é o melhor dos dois filmes extraídos da série Decálogo e é também um dos melhores filmes da obra do diretor polonês. Você pode vê-lo como um filme triste, seco e amargo. Ou pode vê-lo como uma linda história de amor. Faça sua escolha e aproveite esse belo filme.

Que o perfil simbólico e sutil do cineasta polonês, Krzysztof Kieslowski, gerou certa surpresa nos espectadores quando ele filmou Decálogo para a TV polonesa em fins da década de 80 é fato, pois para quem era acostumado a testemunhar seus filmes que permeiam o cotidiano, a política e a sociedade em uma Polônia comunista, foi surpreendido ao conhecer o lado místico de Kieslowski, quando ele resolveu unir essas temáticas a preceitos cristãos. Decálogo, porém, que seriam os Dez Mandamentos Cristãos, foi encaminhado de outra maneira pelo diretor polonês, o que resultou na desmistificação do propósito temático do qual era esperado nos curtas, pois em nenhum dos filmes há a presença de Deus nem como redentor e tampouco como condenador das ações praticadas pelos personagens, sendo essas ações certas ou erradas. Não são filmes com intuito de doutrinar e sim uma fantástica obra cinematográfica que emerge sobre os conceitos centrados nas relações humanas e seus aparatos. Entre os dez filmes que englobam o Decálogo, Não Amarás (em polonês Krótki film o milosci), o sexto episódio, consolida-se como o mais poético, silencioso e sensível dos filmes, pois a narrativa lenta com que Kieslowski encaminha o filme nos leva a adentrar ao psicológico dos personagens e, de certa maneira, a formar uma opinião relevante a respeito de suas atitudes, vinculando aos conceitos do certo e do errado. O espaço da narrativa fílmica é urbano sob a estação do outono, deixando assim um cenário sombrio e de abandono e que de certa forma se atribui às expectativas dos personagens, pois no filme há a presença do individualismo do personagem que vive em um mundo solitário e melancólico e que serve justamente como uma fuga da realidade. Ainda assim, há os que digam que esse filme não busca atrelagem no romantismo como escola literária, mas algumas cenas nos colocam na eminência de uma bonita história de amor.

O personagem principal do filme é Tomek (Olaf Lubaszenko), um rapaz solitário de 19 anos que ocupa seu tempo espionando com sua luneta a vizinha que mora no mesmo complexo habitual

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que ele, porém no prédio em frente. Durante o dia ele trabalha nos correios e à noite passa horas a se divertir, espiando inclusive a vida sexual de Magda (Grazyna Szapolowska), por quem se apaixona. Quando se vê obcecado por ela, Tomek arquiteta planos para fazer com que seus destinos se aproximem. Durante o expediente nos correios, Tomek envia avisos falsos para que Magda compareça à agência e assim possa vê-la. Assistindo a essas cenas de invasão de privacidade e de jogos sujos dos quais Tomek é o sujeito, Kieslowski nos induz, em primeira instância, julgar o comportamento do rapaz, pois toda a história se desenvolve através da visão desse personagem, por isso somos encaminhados a assistir o filme através da luneta que o rapaz usa para espionar o apartamento da amada e desta forma nos coloca como uma espécie de testemunha das ações praticadas por ele. Certo dia, após um mal entendido na agência dos correios, Tomek se declara para Magda e assume não somente o seu amor como também o uso da luneta que faz de seu apartamento a fim de espioná-la. A partir dessa confissão, Magda inicia um jogo sujo com Tomek no intuito de feri-lo e é neste momento que Kieslowski, de certa forma, inverte as posições dos personagens. Após saber da espionagem do rapaz, Magda faz sexo com o namorado em seu apartamento para que Tomek a veja. Nesse momento começamos a perceber que as atitudes de Tomek não eram tão recriminatórias, pois de certa forma se igualam às atitudes das quais Magda agora é o sujeito.

Mais para o meio da narrativa, Tomek, no desespero de estar perto da amada, emprega-se como entregador de leite (na Polônia comunista nos anos 80 havia entregas de leite de porta em porta). Em certo momento os dois se encontram no corredor do apartamento dela e conversam. Tomek outra vez diz que a ama e Magda, como uma mulher madura, coloca-se a disposição do rapaz, porém ele rejeita, o que de certa forma surpreende não só a ela como também ao espectador que esperava um desfecho caloroso. O que se nota nesse diálogo entre os dois é a presença da expectativa do amor que não necessita de concretizações para satisfazer o amante, pois este se sente feliz em amar sem precisar ter a amada para si, caracterizando, dessa forma, o amor delicadamente romântico.

As oposições entre os dois acontecem desde o início do filme, porém de forma muito sutil. Na primeira cena de espionagem do personagem principal, acontece um pequeno movimento em zoom in e podemos perceber essa oposição entre eles, pois Tomek está no escuro do seu quarto bebendo café e Magda está sob a luz de seu apartamento bebendo leite, ou seja, o café e o leite se opõem,mas também se relacionam em uma mistura homogênea. Esse interesse do diretor em colocar os personagens de forma inversa na maioria dos momentos da narrativa fílmica evidencia a ideia de que pessoas diferentes também sejam capazes de se compreenderem. Assim sendo, fica claro que da mesma forma que Tomek e Magda são opostos, como o claro e o escuro, eles também se correlacionam como o café que tem sua propriedade homogênea com o leite. Na enigmática cena em que Magda chora sob o leite derramado fazendo com que Tomek se comova, Kieslowski nos deixa nítido que também trabalhou com o sentimento de solidão entre os dois personagens, envolvendo duas pessoas de mundos opostos em uma narrativa parcialmente muda, onde as ações, e principalmente as expressões sentimentais, substituem os diálogos, pois através desse silêncio proposital podemos perceber os contrastes sombrios e enigmáticos dos personagens e do espaço em que o enredo da trama nos envolve.

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Não Amarás é um filme poético, delicado, silencioso e por vezes sensual. Kieslowski usou os recursos no jogo de câmeras para expandir o romantismo e o sentimentalismo. Neste filme, o diretor polonês desconstrói a expectativa de um final que seria trágico, conforme as características românticas que ocorrem no andamento da narrativa fílmica, pois Tomek tenta o suicídio por amor, mas sobrevive à tentativa e conquista Magda. Ela, por sua vez, tenta compreender Tomek na lógica do amor e os dois finalmente têm a possibilidade de se encontrarem um no outro.

Olhando Kieslowski e Hitchcock: Questões do olhar e da representação no cinema

Gustavo Aguiar*

O prazer proporcionado pelo cinema advém de questões relativas ao olhar. O espectador de cinema, que

se posiciona como um voyeur, espreitando da sala escura as vidas privadas das personagens, é,

obviamente, o ponto central da discussão deste prazer visual. Tomando como base o texto “Prazer visual

e cinema narrativo”, de Laura Mulvey, e o capítulo “A janela do voyeur” do livro O sujeito na tela, de

Arlindo Machado, proponho discutir as questões levantadas e explicadas por ambos, tentando

compreendê-las dentro do contexto do episódio VI – o qual ainda seria reeditado e transformado no

longa-metragem Não Amarás (1988) – da série televisiva de médias-metragensDecálogo (1988), de

Krzysztof Kieslowski, e do filme Um Corpo que Cai (1958), de Alfred Hitchcock. A análise, todavia, recaíra

de forma mais intensa no episódio VI do Decálogo, tendo Um Corpo que Cai como aparelho comparativo

para a discussão das questões propostas (A outra versão do episódio VI, o longa-metragem Não Amarás,

não será tão abordada, salvo alguns pontos, pois a questão do olhar não é trabalhada de forma tão

analítica.).

A forma como o espectador se relaciona com as imagens na tela se pauta por dois elementos que se

complementam: a escopofilia e o narcisismo.  A escopofilia compreende o prazer em olhar para um

objeto, sem que ele saiba que está sendo visto; é o prazer de se estar sentado na poltrona de cinema,

observando a vida dos outros, sem que eles percebam que estão sendo espreitados. Mas não é um ponto

assim tão simples. A escopofilia está também relacionada ao olhar controlador de um protagonista

masculino, que assume um papel ativo dentro da narrativa, direcionando os rumos dela e tendo ainda

uma figura feminina como contraponto, a qual será o lado passivo – o outro objetificado para o qual o

sujeito ativo estará olhando. Segundo Laura Mulvey, todo este processo do olhar está ligado a uma

sociedade patriarcal, que incutiu no cinema códigos de representação que regem a forma como as figuras

masculina e feminina são abordadas; esse modelo de representação, para a teórica, é dominante no

cinema comercial hollywoodiano. Entretanto, o prazer visual do cinema não está ligado somente à

escopofilia; deve haver um contraponto a ela, função assumida pelo narcisismo. O narcisismo está

envolto em inúmeras questões psicanalíticas complexas, mas, de forma simplificada, representa o fato de

que o espectador necessita ser olhado, percebido, para que o seu prazer visual seja completo; porém,

este “sentir-se olhado” não é necessariamente o desejo que o espectador tem de que o olhar de alguma

personagem seja direcionado a ele – mesmo porque isto quebraria as regras da obliqüidade e do

distanciamento exigido entre público e tela –, mas quer dizer que o espectador quer se identificar com

alguém. Este processo de identificação (advindo da psicanálise lacaniana) se dá entre o espectador e o

protagonista masculino, sendo que o primeiro se reconhece ao ver a imagem do segundo.

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Episódio VI do Decálogo

Explicados os importantes termos elencados por Laura Mulvey, agora passarei à análise do episódio VI

doDecálogo, tentando inserir a discussão da teórica ao filme, ligando alguns aspectos que estão de

acordo com os seus estudos e outros que, de alguma forma, podem servir para desconstruí-los. O

episódio em questão trata de um garoto, Tomek, que, apaixonado por uma mulher mais velha, Magda,

começa a espioná-la, exaltando-a como a sua imagem do ideal – ambos vivem no mesmo complexo de

apartamentos, o que possibilita ao garoto vigiá-la.

A primeira imagem que aparece aos olhos do espectador é um close de Magda, quando ela vai ao correio

onde Tomek trabalha, para pegar o pagamento referente a uma notificação que lhe foi enviada –

posteriormente, ficamos sabendo que foi o garoto quem enviou a falsa notificação, a fim de ver a mulher

pessoalmente em seu local de trabalho. Esta cena é seguida de uma montagem paralela com Magda

sendo observada – não vemos quem a observa, mas podemos depreender este fato, já que apenas

conseguimos ver a janela do apartamento da mulher e o que lá dentro ocorre de forma distanciada – e

Tomek roubando uma luneta; no entanto, aqui Kieslowski quebra a regra do paralelismo no tipo de

montagem citado, pois seria impossível que o garoto já a estivesse observando e, simultaneamente,

roubando a luneta.

Na próxima cena, Tomek já é mostrado observando a mulher com sua luneta. Ele faz aproximações com

a lente do instrumento, movimenta-o, e os movimentos de câmera – panorâmicas e zooms in e out –

seguem representando a forma como o garoto está observando Magda. Dessa forma, o espectador passa

a se identificar com o garoto, pois vê através de seus olhos – ou do aparelho que simula sua visão – e

também ouve apenas o que ele consegue ouvir – isto é, a câmera sempre permanece no ângulo de visão

que Tomek tem em seu quarto, sempre vemos o quarto de Magda à distância; o garoto, então, ao

observá-la falando ao telefone, consegue apenas vê-la, mas não a ouve; se ouvíssemos o som advindo

do apartamento dela, esses elementos sonoros se configurariam como extradiegéticos, mas não é este o

conceito de Kieslowski. Através desta primeira cena de observação já se pode sintetizar o prazer visual

do cinema: metaforizando Tomek como o espectador que está sentado na sala de cinema, espreitando a

vida de um alguém que não sabe estar sendo observado, evidencia-se o prazer escopofólico

dovoyeur (Tomek/espectador). Já o fato de o garoto observar a mulher mostra que ele representa o

protagonista ativo, que dá os rumos à narrativa, podendo o espectador se guiar pelo olhar de Tomek,

assim como se reconhecer na imagem dele – o processo de identificação no qual o narcisismo está

compreendido. Esta análise precípua é apenas uma tentativa de exemplificar o prazer visual do cinema

por meio das relações dos personagens, já que Kieslowski complica a leitura destes códigos durante a

narrativa, sendo impossível mantê-los unívocos até o final.

Tomek observa Magda de seu apartamento. O prazer escopofílico está presente no ato de observá-la, sem que

ela tenha conhecimento de que esteja sendo observada.

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Magda é, para Tomek, uma visão idealizada. Ele, como protagonista, observa-a como um objeto erótico.

Mas, em certo momento, ele resolve começar a influir na vida dela, ligando para o seu telefone – aqui a

mulher ainda não sabe que está sendo espionada, então o silêncio de Tomek ao telefone não denuncia o

fato de ele a observar; ela, então, ainda não pode ser considerada como um objeto exibicionista.

Passando novamente ao campo das analogias, se considerarmos Tomek como o espectador e o

apartamento de Magda – e sua vida também – como a tela de cinema, podemos dizer que ele está

começando a pedir à personagem na tela que note a sua presença, ele quer ser olhado de volta. Quando

Magda volta ao correio, reclamando da segunda falsa notificação que recebeu em seu apartamento, o

garoto resolve revelar a sua posição de voyeur. E é a partir deste momento que ela, ao saber que está

sendo observada, passa a ser um objeto erótico dotado de exibicionismo. O prazer escopofílico do

protagonista termina aqui, pois seu posicionamento de espreitador é descoberto. A mulher passa, agora,

a tomar gradativamente as rédeas da narrativa, primeiramente brincando com Tomek e manipulando-o,

para depois fazer com que a câmera a siga, tornando-se uma espécie de segunda protagonista – neste

momento, Kieslowski inicia o processo de desconstrução da impossibilidade, conforme afirma Laura

Mulvey, de a mulher poder guiar a narrativa através do seu olhar.

Continuando a explicar os aspectos narrativos do filme, após saber que está sendo espionada, Magda

pede a Tomek, através de gestos, que ligue para ela; durante a chamada telefônica, ela pergunta se ele a

está espionando e se percebeu que ela mudou a cama de posição; o garoto afirma que sim e ela diz a ele

que aproveite. Logo depois, vemos um amante chegar ao apartamento dela e eles começam a fazer sexo;

ela deixa todas as luzes acesas, para que o garoto possa ver o que acontece. No entanto, o sexo é

interrompido, quando ela conta ao amante que estão sendo observados. Ele olha na direção de Tomek,

sai apressado do apartamento e vai ao pátio do complexo de edifícios. Exclama, gritando, que o garoto

desça até lá embaixo, e os dois acabam se encontrando. O homem esmurra Tomek, que fica com o nariz

todo ensangüentado.

No dia seguinte, o garoto vai entregar leite – em um ponto anterior da narrativa, Tomek está em uma

mercearia e vê Magda reclamando do atraso na entrega de seu leite; a fim de aproximar-se dela, acaba

se empregando como entregador de leite – no apartamento da mulher e ela acaba perguntando a ele o

motivo de ele a espionar. O garoto diz que a ama. Ela, então, pergunta se ele não a quer beijar ou fazer

amor com ela. Tomek afirma que não quernada, mas esta asserção acaba sendo bastante explicativa.

Esse nada significa que ele não a quer possuir, mas sim, continuar a observá-la como seu objeto erótico.

Magda é o seu fetiche, a materialização do que consiste, para ele, ser o ideal. No entanto, ele não

consegue progredir do fetiche para a obtenção do verdadeiro objeto; isto é, a imagem do fetiche já está

tão cristalizada para Tomek, que ele teme chegar perto dela. Após toda a conversa, o garoto acaba

criando coragem e resolve chamar a mulher para ir com ele a um café. Ela aceita e, posteriormente,

vemos Tomek correndo entusiasticamente pelo pátio do conglomerado de prédios de um ponto de vista

distanciado do dele – é como se Magda o estivesse observando de seu apartamento –, sendo a primeira

vez em que a câmera não o segue de forma tão próxima.

Após irem ao café e Magda expor toda a sua desilusão frente ao amor, ambos acabam indo ao

apartamento dela e, pela primeira vez, a câmera adentra no apartamento da mulher, aquele lugar antes

tido como o distanciado local habitado pela imagem da mulher perfeita. No entanto, neste momento há

uma confusão, senão reformulação, dos olhares presentes na cena. A princípio, vemos Tomek e Magda

dentro do apartamento dela; neste momento, como já dito, a câmera adentra o lar da mulher pela primeira

vez, mas o que é bastante regular, haja vista que a câmera estava seguindo o garoto o tempo inteiro. O

aspecto complicador reside no fato de que a senhora com que o garoto mora passa a observar com a

luneta, do quarto de Tomek, o que acontece entre ambos no apartamento da mulher. Dessa forma, ao

mesmo tempo em que a câmera permanece junto do garoto na casa de Magda – fato recorrente até aqui

–, ela também o abandona e assume o ponto de vista da senhora. Tomek, o protagonista, passa de

espreitador a observado. O instrumento que antes promovia a sua identificação com o espectador – por

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meio da luneta o garoto se tornava o ponto de identificação do espectador, já que este segundo olhava

através dos olhos daquele –, já não é mais controlado por ele. Todavia, ainda não podemos afirmar que a

escolha de Kieslowski em mostrar o ponto de vista da senhora quebre definitivamente o processo de

identificação firmado entre o espectador e Tomek; o período de observação da senhora é demasiado

pequeno, para conseguir interromper uma estrutura engendrada durante o decorrer de todo o filme até

aqui – e, além disso, não há tempo para que seja originada uma relação do espectador com a senhora,

não há tempo para que o processo de identificação se cristalize. Esta cena marca o ponto de

transmutação da narrativa. Todas as relações de olhares e de identificação espectador/personagem serão

modificadas a partir desse momento de transição. Mas esta é uma questão que será aprofundada mais

abaixo.

Ainda na cena do apartamento de Magda, ela se insinua para o rapaz, fazendo com que ele a toque.

Tomek paulatinamente vai passando suas mãos pelas coxas da mulher, porém, sua ansiedade perante a

possibilidade de possuir seu objeto erótico o impede de prosseguir, e ele acaba tendo uma ejaculação

precoce. Ele não pode/consegue possuí-la. Aqui podemos inserir mais um importante ponto da teoria de

Laura Mulvey envolvendo a mulher: a castração.

O olhar, então, agradável na forma, pode ser ameaçador no conteúdo, e é a mulher, enquanto

representação/imagem, que cristaliza este paradoxo.**

A castração está ligada ao fato de o homem perceber a ameaça e o perigo que a mulher pode lhe causar,

devido à ausência real de pênis desta segunda. Simplificando, o homem se depara com a mulher e

percebe o diferente, um gênero distinto do seu; ele, então, realiza que é verdadeira a possibilidade de um

ser sem pênis, tornando-se apreensivo perante essa ausência e temendo que ele mesmo possa ser

castrado. Laura Mulvey afirma que há duas formas de o inconsciente masculino conseguir fugir à

castração: 1) tentando desmistificar todo o mistério no qual a imagem da mulher está envolta, mas

contrabalançando essa tentativa através da “desvalorização, punição ou redenção do objeto culpado” ***;

ou 2) criando um objeto fetiche ou transformando a mulher objeto ela própria em um fetiche, a fim de

substituir a imagem ameaçadora da mulher, tranqüilizando-a, sendo que este processo resultaria em uma

negação da castração.

Mas o inconsciente de Tomek consegue fugir à castração? A princípio, ele transforma a mulher que

acarreta nele a ameaça da castração em um fetiche; a imagem que ele tem dela não é realista, mas

totalmente idealizada. A Magda que vemos através do olhar do garoto metaforiza a perfeição; atrelando-a

a uma imagem tranqüilizadora, ele mascara a faceta nociva dela. Esta é a primeira tentativa inconsciente

de Tomek frente ao perigo da castração. Mas podemos pensar que sua ida ao apartamento de Magda

simbolize o passo segundo de sua tentativa de fuga: conhecendo o local onde o objeto de seu olhar fixo

habita, o garoto tem um contato com a individualidade da mulher, com suas especificidades; ele passa a

conhecê-la, a tentar desvendar o lugar onde ela vive, e aí ele empreende o processo de desmistificação

da figura feminina – o que não significa que ele terá sucesso completo. O momento em que Magda se

aproxima de Tomek e faz com que o garoto a toque nas coxas, representa o terceiro passo inconsciente

dele a fim de desmistificá-la. Acariciando-a, ele fomentará ainda mais a tentativa de desnudar todos os

seus segredos, sendo que este momento simboliza uma busca mais profunda do desconstruir da figura

ameaçadora de Magda. Mas o garoto falha, e a castração o vence. A ejaculação precoce que ele tem é a

prova metaforizada de sua derrota – no entanto, não é uma derrota total, já que, posteriormente, o garoto

desvalorizará Magda, alcançando parcialmente a vitória.

Magda, após a ejaculação de Tomek, afirma de forma cética que aquilo é o amor. O garoto, frustrado,

foge do apartamento da mulher e corre de volta para sua casa. Agora a reviravolta na questão dos

olhares enfim se cristaliza. A câmera mostra o garoto no pátio do complexo de prédios novamente de um

ponto de vista de alguém que observa de uma janela, ao alto; no entanto, neste momento, a presença de

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Magda é evidenciada, e percebemos que é ela quem o observa. Ela percebe que cometeu um erro ao

tratá-lo daquela forma tão ríspida e, portanto, tenta entrar em contato com ele através de sinais e de

escritos em papéis – os quais ela mostra pela janela. Tomek fecha a cortina de seu quarto e não mais a

observa. A mulher, que já estava acostumada a ser observada, sente falta do olhar fixo do garoto

direcionado a ela. Frente a esta ausência, ela pega um par de binóculos e lança o seu olhar – agora o

olhar está sendo redefinido, passando a ser pautado pelo ponto de vista de Magda – ao apartamento do

garoto, evidenciando o ápice de seu exibicionismo – isto é, o fato de ela querer saber, de qualquer forma,

se um olhar está sendo a ela direcionado, revela explicitamente o seu exibicionismo.

Quando Tomek chega ao seu apartamento, após fugir do de Magda, a câmera ainda o acompanha por

algum tempo – há uma montagem paralela entre as ações do garoto em seu apartamento e da mulher

tentando se comunicar com ele. Tomek, após a desilusão com Magda, após tentar possuir o seu objeto

erótico e falhar, decide se suicidar. A cena da tentativa de suicídio é a última em que a câmera segue

Tomek; deste momento em diante, o olhar da câmera passa a ser controlado pela mulher. Aqui ocorre um

rompimento com a teorização de Laura Mulvey. Para a teórica, a estrutura do cinema dominante definia a

posição da mulher na narrativa sempre como o objeto passivo da situação, como o objeto a ser olhado, e

que isso acontecia, já que ela era a única que conseguia suportar o peso da objetificação sexual. Todavia,

Kieslowski empreende uma importante mudança, pois Magda assume a função de espreitadora no lugar

do garoto – uma espécie de personagem que se transforma emprotagonista feminina –, passando a

persegui-lo, a querer saber se ele já voltou do hospital – já que ele foi internado após a tentativa de

suicídio. Tomek vira a sua obsessão e, desta forma, as posições se invertem. Magda é agora a dona do

olhar, ela passa a ser o ativo da narrativa, conduzindo-a; o espectador também passa a se identificar com

o drama da mulher, começando a estabelecer para com ela um processo de identificação e realmente

aceitando-a como protagonista. Além disso, devido à recente obsessão da mulher, o garoto se torna

objeto sexual dela; a objetificação sexual da figura masculina torna-se possível, devido à fragilidade e à

vulnerabilidade do garoto – os heróis masculinos do cinema hollywoodiano eram corajosos e destemidos,

então não suportavam a objetificação –, além de proporcionar também uma mudança no olhar. O que era

impossível em um filme clássico fica, agora, palpável; o lugar e a significação da mulher na narrativa são

questionados e, enfim, transmutados.

Ao final do filme, Tomek volta ao trabalho – ainda com ataduras nos dois pulsos – e Magda finalmente o

encontra – a última cena compreende o reencontro de ambos. Ela vai até a cabine do correio onde ele

está e ele apenas diz: “Eu já não espio mais você”. Esse espiar poderia ser trocado pelo verbo amar, já

que o espionar dele era tão intenso que se aproximava de uma forma de amor – ele realmente amava

Magda, mesmo que ela fosse para ele a imagem idealizada da perfeição, apenas algo inalcançável,

intangível. Concomitantemente, também podemos considerar que esta frase simbolize a destruição do

fetiche de Tomek e a sua parcial vitória frente à ameaça da castração; parcial, já que ele consegue

desvalorizar a imagem de seu fetiche, mas, para isso, teve que passar pela experiência da tentativa de

suicídio.

Não Amarás

Quanto ao longa-metragem Não Amarás, que foi reeditado a partir do episódio VI do Decálogo, as

mudanças na narrativa não são tão substanciais dentro de uma abordagem analítica do discurso.

Entretanto, há três pontos cuja enumeração é importante: 1) a relação entre Tomek com a senhora com

quem mora e também com Magda; 2) o adiantamento de uma informação ao espectador; e 3) o final mais

metafísico desta versão.

No episódio do Decálogo, as relações entre os personagens são bem mais frias, cruas. Tomek parece

apaixonado por Magda, mas parece que não há aprofundamento suficiente para que o espectador

realmente perceba o que ele sente; da mesma forma se dão as relações entre o garoto e a senhora, que

Page 10: NÃO AMARÁS

são bastante distanciadas, sendo que o espectador não consegue saber que grau de intimidade eles têm

– salvo na cena em que ela conversa com ele, dizendo que ele poderia levar alguma garota para casa,

caso estivesse namorando. No longa, as relações são bem mais trabalhadas, devido à inserção de cenas

adicionais entre o garoto e a senhora e de uma trilha sonora extradiegética, que pontua certos pontos da

narrativa, intensificando a relação de Tomek e de Magda – ambos os elementos tornam o filme mais tenro

e sensível. Há duas cenas que evidenciam bastante a ligação entre o rapaz e a senhora: aquela em que

ela o chama para que eles assistam juntos o concurso de Miss Polônia, assim como a cena em que ela

cuida dele após o soco que ele leva no rosto. Da mesma forma, os momentos em que ele a observa são

muito mais delicados, parecem permeados por um carinho especial que ele tem por ela – o que é

reiterado pela utilização da trilha sonora. A abordagem aqui é totalmente diferente, modificando o

resultado alcançado pelo filme. Mas acredito que o desejo de Kieslowski era realmente fazer versões

diferentes de um mesmo filme, possibilitando finais distintos, um mais cético e outro mais sensível e

metafísico.

O segundo ponto que considero importante destacar não tem tanta importância dentro da análise a que

me proponho fazer do filme, mas é um elemento interessante de posicionamento do espectador à frente

da personagem, isto é, quando o espectador sabe mais que a personagem por alguns momentos. Este

fato aproxima Kieslowski de Janela Indiscreta (1954), de Hitchcock, não apenas pela temática mais

evidente do voyeurismo, como também da cena mais específica que pontuarei logo em seguida.

Em Não Amarás há algumas mudanças na narrativa; a partir do momento em que Magda começa a

perseguir Tomek, a senhora que mora com ele começa a enganá-la, passando-lhe informações erradas

sobre o garoto e chegando ao ponto de mentir para ela, ao dizer que ele ainda não recebeu alta do

hospital.  Agora a narrativa está completamente permeada pelo olhar da mulher, então o espectador já

está identificado com o drama dela. A câmera permanece sempre revelando a sua angústia, nunca se

distanciando dela. Mas há uma ocasião em que Magda está dormindo e a câmera mostra, a partir da

visão que se tem do apartamento dela, Tomek chegando com a senhora do hospital. Como ela está

dormindo, quem vê a cena é o espectador, ou seja, ele possui uma informação adicional, que ela não

possui. Isto ocorre, também, em Janela Indiscreta, quando o vizinho de Jeff sai de seu apartamento

carregando algo que não sabemos de que se trata, já que a câmera permanece revelando apenas o

ângulo de visão de Jeff; no entanto, assim como Magda, Jeff também está dormindo, então aquela

informação é entregue somente ao espectador, a fim de posicioná-lo a um passo à frente das

personagens.

Quanto ao final de Não Amarás, mesmo Kieslowski não sendo tão rígido quanto à questão do olhar como

o é no episódio do Decálogo, aqui ele coloca questionamentos bastante interessantes. O reencontro de

Magda e Tomek se dá de forma diferente: ao invés de ela o encontrar no seu local de trabalho, ela o

encontra no quarto dele, enquanto o garoto dorme – a senhora também está presente no quarto. Ela tenta

tocar nas ataduras de seus punhos, mas a senhora a impede. Logo depois, a mulher vai em direção à

luneta e começa a observar por intermédio dela. E é deste momento que surge todo o interessante

questionamento sobre o final. Ela não vê os acontecimentos presentes e reais, que estariam ocorrendo no

mesmo momento em que ela começou a observar através do aparelho. Ela vê, na verdade, ela mesma,

em um acontecimento já passado e que pudemos presenciar ao decorrer do filme: trata-se do momento

em que ela chega em casa e derruba leite sobre a mesa; ela senta na cadeira e desaba, chorando. No

acontecimento real, ela estava sozinha em seu apartamento, mas, no que ela vê, Tomek a consola.

Através do olhar de Magda percebemos que há uma esperança antes inexistente naquela visão; ela

abandona o seu ceticismo em relação ao amor e se lança em uma aceitação deste sentimento antes por

ela negado.

Page 11: NÃO AMARÁS

Cena final de Não Amarás: Magda, agora a portadora do olhar do espectador, observa Tomek, a quem

objetificou sexualmente. O final metafísico – ou apenas simbólico – se mostra através dos frames: Magda, de

alguma forma, consegue observar a si mesma e “imagina” uma situação na qual o garoto a consola,

diferentemente do real acontecimento.

No entanto, o fato de ela ver acontecimentos passados é um elemento bastante metafísico, típico da

filmografia de Kieslowski, sendo que podemos interpretar aquelas imagens como sendo uma idealização

ou uma espécie de devaneio onírico de Magda. O que Kieslowski quis dizer com este final? Realmente

não sei dizer com precisão. As implicações filosóficas embutidas a essa cena provavelmente

transcendem os meus conhecimentos. Prefiro apreendê-la como uma poesia visual, como tantas outras

cunhadas por Kieslowski.

Um Corpo que Cai

As observações em relação ao filme de Hitchcock servirão como um aparelho comparativo para analisar a

teoria de Laura Mulvey, contrapondo a forma como as questões postas pela teórica são abordadas

em Um Corpo que Cai e no episódio VI do Decálogo. O filme do inglês é sobre um detetive, Scottie, que é

contratado por um velho amigo, a fim de que ele vigie e siga os passos da esposa – Madeleine – deste

segundo, a qual supostamente sofre de distúrbios que a fazem ser atormentada por uma mulher morta há

muito tempo. No entanto, o objetivo da análise deste filme não é esmiuçá-lo – como ocorreu com o média-

metragem de Kieslowski –, mas capturar alguns pontos importantes que possam servir para a

compreensão dos assuntos em pauta.

Assim como em Kieslowski – em que a câmera sempre segue Tomek, mas não considerando aqui, ainda,

a reviravolta da mudança de olhar –, em Hitchcock a câmera fica à espreita de Scottie, o detetive que

sofre de acrofobia – medo de altura. No entanto, há algumas poucas exceções em que a câmera se

desvencilha do protagonista, mas estas separações têm importantes motivações, não sendo meramente

aleatórias. O primeiro momento de distanciamento ocorre quando o detetive vai a um restaurante para

poder conhecer, mesmo que de longe, Madeleine; a câmera começa mostrando Scottie, mas se afasta

dele em um movimento que explicitamente não segue a sua linha de olhar. A este movimento de câmera

é possível conferir uma característica de ambientação. No entanto, esta motivação da câmera parece ter

outro sentido intrínseco. Quando ela deixa o detetive, a movimentação da câmera é bastante suave,

sendo que ela vai percorrendo o ambiente, até que algo capta a sua atenção: este algo é Madeleine. A

partir do momento em que a câmera a encontra, ela vagarosamente se aproxima da mulher, como um

observador à espreita. Dessa forma, a câmera se desvencilha do detetive, mas ainda assim compartilha

com ele a fascinação por Madeleine – a câmera parece buscar aquela imagem da perfeição.

Page 12: NÃO AMARÁS

A câmera se desliga do ponto de vista de Scottie e vai ambientando o espaço, até se encantar com Madeleine,

ao centro do quarto, com uma espécie de echarpe/capa verde.

Aqui já podemos constatar várias questões elencadas por Laura Mulvey. O prazer escopofílico de Scottie,

que permanece como um voyeur, sempre observando a mulher, sem que ela saiba que esteja sendo

observada; o narcisismo que acomete o espectador, já que este acaba por se identificar com o detetive,

pois ele representa uma figura da lei, distinta; e o processo de fetichização que se inicia – a imagem de

Madeleine começa a se configurar como uma imagem idealizada; quando a vemos com aquela espécie

de echarpe/capa verde (contrastando com o vermelho gritante das paredes do restaurante) caminhando

em direção à câmera e depois nos deparamos com seu perfil, temos a mesma certeza de Scottie de que

ela simboliza a beleza máxima.

Na cena do museu, em que o detetive espia Madeleine sentada, observando o quadro da mulher por

quem ela acredita ser atormentada, ele presta atenção na forma como o cabelo da figura no quadro e o

buquê que ela segura se assemelham com a maneira como o cabelo da mulher perseguida está

arranjado e com o buquê que ela carrega. A câmera, então, realiza movimentos – zooms in e out – que

materializam o deslocamento do olhar de Scottie para os diferentes pontos de atenção. A identificação

protagonista/espectador, antes somente no âmbito do reconhecimento de uma figura de autoridade que

deve ser respeitada e seguida, agora se expande e explicita o olhar ativo do protagonista masculino que

guiará toda a narrativa.

Page 13: NÃO AMARÁS

Aqui percebemos o enganoso prazer escopofílico de Scottie. Ele espreita Madeleine, achando que ela não sabe

que está sendo espionada. Mas ele não tem o controle total do olhar, já que ela sabe que o detetive a observa,

direcionando o olhar dele apenas para o que ela deseja que ele perceba

Após perseguir Madeleine à espreita, sem se identificar, Scottie acaba tendo que mudar sua estratégia,

ao salvá-la de uma tentativa de suicídio, que supostamente havia sido acarretada pelo espírito que a

atormenta. Ela se joga no mar e o detetive a salva; carrega-a no colo até o carro e a ajeita com bastante

cuidado, o que denota claramente um certo tipo de interesse – aqui o interesse sexual de Scottie se

desmascara. Após este acontecimento, ele leva a mulher desacordada para a casa dele, onde a vemos

desnuda debaixo de um cobertor. Esta imagem é símbolo da mulher perigosa, da mulher nociva que

representa a ameaça da castração. Nessa ocasião, o detetive, inconscientemente, já procura uma fuga à

castração, fazendo uma série de perguntas à mulher, numa primeira tentativa de desvendar os mistérios

que a envolvem – uma das formas de se escapar à ameaça da mulher. Madeleine aqui já aparece

totalmente objetificada, como imagem erótica, e, além disso, também como foco da obsessão sexual de

Scottie.

Traçados os mais importantes termos elencados por Laura Mulvey, agora podemos estabelecer uma

pequena comparação entre os respectivos protagonistas de Kieslowski e de Hitchcock. Tanto Tomek

quanto Scottie são incessantemente seguidos pela câmera, salvo alguns mínimos momentos; ambos são

protagonistas masculinos das narrativas, assumindo o papel ativo de possuidores do olhar do espectador;

os dois espreitam mulheres que eles não conhecem e que acabam se tornando foco de seus olhares fixos

e centralizadores; edificam um processo de identificação entre protagonista/espectador; e se posicionam

como voyeurs, experimentando o prazer escopofílico.

Todavia, assim como no episódio VI do Decálogo, Hitchcock também engendra uma reviravolta em sua

narrativa. Durante todo o processo de loucura de Madeleine, Scottie a acompanha, chegando ao ponto de

presenciar o seu suicídio. Ele estava apaixonado por ela – melhor dizendo, obcecado – e não consegue

superar a sua perda. Após receber alta do hospital em que havia sido internado, a fim de se recuperar do

trauma, o detetive passa a tentar encontrar a imagem de Madeleine ou resquícios que se ligassem a ela –

como roupas parecidas que outras mulheres utilizavam – em todo e qualquer lugar. Até que um dia ele se

depara com uma mulher demasiadamente parecida com Madeleine; ela se veste de forma diferente, é

mais simples, mas as feições de ambas são muito parecidas. Ela se chama Judy, e Scottie passa a segui-

la, até quando consegue falar com ela à porta do quarto de hotel, onde ela mora. Após explicar o motivo

Page 14: NÃO AMARÁS

de persegui-la e discorrer superficialmente sobre sua perda, o detetive a convida para jantar, sendo que

ela aceita.

Scottie, então, sai do quarto sem se despedir. Mas a câmera, aqui, permanece no quarto, ficando à

espreita de Judy, ao invés de continuar seguindo o detetive. Primeiro, vemos ser revelada a expressão de

dúvida da mulher, para, posteriormente, acompanharmos um flashback em que ela se lembrará de

importantes acontecimentos ainda não contados da trama – Judy era amante do homem que pediu a

Scottie para vigiar sua mulher; o homem, querendo se livrar de sua mulher, elaborou um plano para

substituir a verdadeira Madeleine por Judy; isto é, Judy interpretava Madeleine, mas, o suicídio que

vemos anteriormente na narrativa foi forjado, para encobrir o real assassinato da esposa. Esta escolha de

deixar de seguir o detetive é uma forma de ceder um momento para que a instância narrativa explique

determinados fatos da história. Mas, neste momento, ocorre uma reviravolta: percebemos – e aqui o uso

dessa forma verbal evidencia o ponto de Hitchcock, já que quem se depara com toda a trama envolvendo

a morte de Madeleine somos apenas nós, os espectadores; o detetive permanece desconhecendo os

reais fatos – que quem estava controlando o olhar de Scottie, desde o início, era Judy. A noção de

escopofilia do protagonista é totalmente quebrada. Ele espreitava, pensando que sua posição

de voyeur era secreta, mas Judy/Madeleine sabia de sua presença o tempo inteiro. O espectador,

reconhecendo-se na imagem do detetive através do olhar ativo desse protagonista, também acreditava

que tinha a concessão para observar juntamente a ele aquela misteriosa mulher, porém era tudo uma

conspiração, a fim de levar o detetive a testemunhar o suposto suicídio de Madeleine.

Depois de sair com Judy algumas vezes, Scottie começa a deixar transparecer o seu comportamento

obsessivo frente à possibilidade de restituir a imagem de seu fetiche original. Ele a leva para comprar

novas roupas, para arrumar os cabelos. Mas é ele quem escolhe as roupas, é ele quem decide com

exatidão como tem de ser o corte de cabelo dela: tudo para deixá-la pontualmente à imagem de

Madeleine. Após a transformação, há uma cena muito importante no quarto de hotel de Judy. O detetive

está esperando no quarto, enquanto Judy está arrumando os cabelos, para ficar totalmente parecida com

Madeleine. Há uma iluminação verde trabalhada dentro do quarto, a qual é explicada – ao menos dentro

da estruturação diegética – pelo letreiro com verde de um prédio à frente. Então, quando a mulher termina

de se arrumar e sai do quarto, vemo-na envolta por uma aura verde: ela é uma manifestação

fantasmagórica materializada por aqueles raios verdes incidindo sobre ela, Judy/Madeleine. Scottie se

levanta, eles se encontram e se beijam, sendo que a câmera vai executando um movimento circular

envolta dos dois, tentando investigar aquele acontecimento.

Não lhe interessava despi-la, nem possuí-la; o que ele queria era transformar Judy na imagem ideal que

sua obsessão fixou, para ficar olhando-a indefinidamente.****

Dessa forma, através das palavras de Arlindo Machado, é possível compreender a fetichização

empreendida por Scottie: ele deseja reconstruir a imagem para ele perfeita de Madeleine, a fim de ter o

seu objeto erótico indefinidamente, assim como para aceitar a condição traumática que a experiência da

perda lhe acarretou. Aqui é possível estabelecer um rápido paralelo com o filme Solaris (1972), de Andrei

Tarkovski, que trata também da perda. Em um contexto totalmente diferente – porém alegórico –, a

história do cineasta russo é sobre um planeta em que estranhos acontecimentos ocorrem; as pessoas

que vão pra lá têm de enfrentar a materialização de seus pensamentos, o que ocorre através de

inexplicáveis forças.  O protagonista enviado para o tal planeta é viúvo, mas a imagem de sua mulher é

materializada de alguma forma. Esta é a similaridade com Um Corpo que Cai: assim como Scottie, o

protagonista de Solaris também passou pela experiência traumática da perda. Toda a situação que ocorre

neste enigmático planeta é apenas uma forma alegórica de demonstrar o desejo do protagonista de

reconstruir a imagem de sua mulher falecida, de criar um fetiche para substituir a perda de seu objeto do

olhar.

Page 15: NÃO AMARÁS

Ao final do filme, Scottie acaba descobrindo que as duas mulheres realmente são a mesma pessoa. Ele

percebe a culpabilidade de Judy e todo o seu envolvimento com o assassinato da verdadeira Madeleine,

e a leva ao local onde presenciou o suposto suicídio de Madeleine. O detetive consegue enfrentar e

superar o seu medo de altura; Judy assume a sua culpa e acaba se jogando da torre.

Episódio VI do Decálogo e Um Corpo que Cai

As comparações a serem feitas entre ambos os filmes são várias, mas a forma de tratar temas parecidos

é bastante diferente entre Kieslowski e Hitchcock. Começarei pela escopofilia. Tomek, durante o decorrer

da primeira metade do filme possui o controle total e inquestionável do olhar e realmente não é olhado de

volta pelo seu objeto do olhar. No centro da narrativa, há o início de uma transição da posse do olhar,

quando a senhora olha através da luneta do garoto; o câmbio da instância do olhar se cristaliza, quando

Magda objetifica sexualmente Tomek e passa a persegui-lo, invertendo sua posição de personagem

para protagonista feminina e se tornando o ponto ativo das ações. Há todo esse conceito que visa a

desconstruir a concepção de Laura Mulvey de que apenas a mulher suporta o peso da objetificação,

assim como é ela quem tem que ser sempre o ponto passivo da narrativa. Magda não é de maneira

alguma submissa e, mesmo quando ainda não centraliza o olhar para ela, já manipula Tomek através de

seu exibicionismo.

A questão do olhar em Hitchcock se dá de outra maneira, mas ele também questiona a escopofilia.

Scottie pensa, durante toda a narrativa, que tem o controle do olhar. Ele observa Madeleine à espreita,

sempre escondido e acreditando que não está sendo observado de volta. No entanto, o que ele olha é

direcionado pelo que Madeleine/Judy quer que ele veja. Contrariamente a Kieslowski, em que Magda

apenas assume o controle do olhar na parte final da narrativa, o olhar de Scottie é todo moldado, desde o

início, por Judy – a qual é uma personagem exibicionista todo o tempo; Magda apenas se torna

exibicionista, quando o garoto avisa que a espiona. Tomek realmente tem o controle do olhar na narrativa,

mas Scottie não tem. Kieslowski questiona a escopofilia empreendendo uma mudança bastante analítica

– já que a transmutação de olhares passa até mesmo por um período de transição, antes de se cristalizar

– da instância do olhar e evidenciando o quão intercambiável pode ser tal questão, ao passo que

Hitchcock questiona o conceito propriamente dito de escopofilia, já que o voyeurismo daquele que

espiona pode ser totalmente enganoso.

As implicações acarretadas pela ameaça da castração também possuem visões distintas e os

personagens encontram formas diversas de combatê-la. A estrutura narrativa do episódio VI

do Decálogo evidencia como a mulher se apresenta primeiro como um elemento nocivo e,

posteriormente, vencida – parcialmente – após o embate do protagonista masculino frente ao perigo da

castração. A primeira imagem que vemos no filme é umclose de Magda; ela aparece como uma mulher

venerada, o objeto erótico de Tomek. A última cena do filme também capta o rosto da mulher em close,

só que de maneira diferente; agora, após todo o processo de transmutação do olhar, Magda é dona do

olhar do espectador, mas também teve sua imagem de perfeição e idolatria destruída. O rosto da mulher

nesse close, destituído de todo o brilho que possuía no close inicial, simboliza a vitória de Tomek frente à

castração – ele consegue fugir à ameaça por meio da desmistificação de seu fetiche, de seu objeto

sexual. No entanto, não podemos afirmar que a vitória do garoto é completa. É parcial, contrariamente,

haja vista que em sua primeira tentativa de desmistificar a mulher, ele acaba ejaculando precocemente só

pelo fato de encostar suas mãos nas coxas dela; a ejaculação precoce metaforiza a sua derrota na

primeira batalha contra a castração. Ele vence a segunda batalha, mas também após um embate árduo;

após se desiludir com Magda, ele resolve atentar contra a sua própria vida; o suicídio falha, mas ele

consegue exterminar a imagem idealizada que tinha da mulher, vencendo, portanto, a ameaça da

castração.

Page 16: NÃO AMARÁS

Quanto ao Scottie de Um Corpo que Cai, também podemos dizer que sua vitória não é de todo completa,

hajam vista as complicações surgidas em sua vida pelo embate entre ele e o fetiche por ele formado a

partir de seu olhar fixo e centralizador. O fato de ele se envolver com a mulher que ele perseguia fomenta

nele um comportamento obsessivo. Ele tenta desmistificar a imagem de Madeleine através de inúmeras

perguntas, tenta esmiuçar a personalidade daquela misteriosa mulher, mas falha – e ainda presencia o

suposto suicídio da mulher. Todavia, quando o detetive descobre toda a conspiração envolta na morte de

Madeleine, ele se dispõe a destruir inexoravelmente a imagem de seu fetiche – no momento, era Judy

quem simbolizada o seu fetiche, vestida e arrumada da maneira como Madeleine costumava estar.

Scottie enfrenta e vence o seu medo de altura, levando Judy ao alto da torre, onde o assassinato ocorreu.

Enquanto eles conversam, a mulher se assusta com a imagem na penumbra de uma freira e acaba se

jogando da torre. A ameaça da castração foi vencida, neste caso, através da punição – com a morte – da

mulher objeto.

As maneiras como a teoria de Laura Mulvey se inserem nestes dois filmes exemplificam como é possível

questionar códigos intrínsecos ao cinema dominante, no qual predominam, segundo a teórica, formas de

representação da mulher pautadas por valores de uma sociedade com base patriarcal. Alfred Hitchcock,

com Um Corpo que Cai, de 1958, já subvertia e questionava alguns dos códigos do cinema

hollywoodiano, mesmo sendo um diretor comercial de Hollywood. Krzysztof Kieslowski, situado em um

contexto totalmente diferente, em uma Polônia ainda comunista, mas em vias de abertura política e

econômica, realizou um grande filme sobre a representação da mulher no cinema e a questão do olhar.

As teorias têm como intuito analisar certos códigos do cinema – e também da sociedade e da política – e

os questionar, formulando e definindo parâmetros analíticos. Todavia, sempre haverá algum iconoclasta

desejando quebrar representações, simplesmente discutindo-as ou até mesmo criando novas formas de

representação.

* Gustavo Aguiar é graduando em Imagem e Som pela UFSCar e participa colaborativamente como

editor da seção Panorama, da Revista Universitária do Audiovisual (RUA).

** MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in XAVIER, Ismail (org.), A experiência do cinema.

Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 443.

*** MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in XAVIER, Ismail (org.), A experiência do cinema.

Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 447.

**** MACHADO, Arlindo. “A janela do voyeur” in O sujeito na tela. São Paulo: Paulus, 2007, p. 47.

Referências Bibliográficas

MACHADO, Arlindo. “A janela do voyeur” in O sujeito na tela. São Paulo: Paulus, 2007, pp. 41-55.

MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in XAVIER, Ismail (org.), A experiência do cinema.

Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp. 435-453.

Referências Filmográficas

Dekalog / Decálogo – episódio VI (Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1988, 55min, cor, som).

Krótki film o milosci / Não Amarás (Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1988, 82min, cor, som).

Rear Window / Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock, EUA, 1954, 114min, cor, som).

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Solyaris / Solaris (Andrei Tarkovski, União Soviética, 1972, 166min, cor, som).

Vertigo / Um Corpo que Cai (Alfred Hitchcock, EUA, 1958, 129min, cor, som).