nanã - moacir santos

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ALEXANDRE LUÍS VICENTE ANÁLISE DA COMPOSIÇÃO E ARRANJO DE UMA COISA: “NANÔ, DE MOACIR SANTOS. FLORIANÓPOLIS – SC 2008

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Análise da Composição de Moacir Santos,Nanã

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  • ALEXANDRE LUS VICENTE

    ANLISE DA COMPOSIO E ARRANJO DE UMA COISA: NAN, DE MOACIR SANTOS.

    FLORIANPOLIS SC 2008

  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC CENTRO DE ARTES CEART

    DEPARTAMENTO DE MSICA

    ALEXANDRE LUS VICENTE

    ANLISE DA COMPOSIO E ARRANJO DE UMA COISA: NAN, DE MOACIR SANTOS.

    Trabalho de concluso de curso apresentado ao Curso de Educao Artstica: Habilitao em Msica do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial obteno do ttulo de licenciado em msica sob orientao do Professor Mestre Paulo Demetre Gekas.

    FLORIANPOLIS SC 2008

  • ALEXANDRE LUS VICENTE

    ANLISE DA COMPOSIO E ARRANJO DE UMA COISA:

    NAN, DE MOACIR SANTOS.

    Trabalho de concluso de curso aprovado como requisito parcial para obteno do grau de licenciado na graduao em Educao Artstica - Habilitao em Msica da Universidade do

    Estado de Santa Catarina.

    Banca examinadora:

    Orientador: _________________________________________________

    Professor Mestre Paulo Demetre Gekas UDESC

    Membros: ________________________________________________

    Professor Doutor Accio Tadeu Piedade UDESC

    _______________________________________________

    Professor Leonardo Corra Garcia UDESC

    FLORIANPOLIS, SC Trinta de junho de dois mil e oito

  • AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar minha famlia, pelo amor, apoio e incentivo msica

    Ao maestro Moacir Santos

    Ao professor Paulo Demetre Gekas, pela orientao e amizade

    Aos membros da banca, professor Accio Tadeu Piedade e professor Leonardo Corra Garcia, pela ateno e disponibilidade dedicada a este trabalho

    Ao professor e amigo Srgio Paulo Ribeiro de Freitas, pela grande influncia em minha formao musical e acadmica

    professora Tereza Franzoni, pela orientao na elaborao do projeto deste trabalho

    Ao Gabriel Muniz Improta Frana, pela generosidade em partilhar sua dissertao

    A todos meus parceiros musicais, que com certeza influenciaram esta pesquisa

    queles que por ventura venham a ler este trabalho e dele tirem algo para si

  • RESUMO

    O objetivo deste trabalho de concluso de curso analisar a obra de Moacir Santos, levantando e problematizando aspectos concernentes prtica de composio e arranjo. Para isso, focamos nossa pesquisa em sua Coisa n 5, presente no LP Coisas, de 1965. A anlise privilegiar os elementos forma, harmonia, melodia e contraponto. As referncias so as teorias da anlise harmnica tonal, anlise funcional, processo temtico, anlise motvica, e tcnica de arranjo linear. Para apoiar nossa anlise, contextualizaremos a trajetria do compositor, e o lanamento do disco Coisas, alm de promover discusses sobre os termos arranjo e composio e os conceitos de popular e erudito na formao de Moacir Santos.

    Palavras-chave: Moacir Santos. Composio. Arranjo. Anlise. Motivo. Melodia em Bloco.

  • SUMRIO

    INTRODUO.........................................................................................................................10

    1 BIOGRAFIA..........................................................................................................................12 2 CONTEXTUALIZAO DAS COISAS............................................................................16

    2.1 LP COISAS...........................................................................................................................16 2.2 COISA N 5..........................................................................................................................18

    3 COMPOSIO E ARRANJO.............................................................................................21

    3.1 CONSIDERAES SOBRE OS CONCEITOS..................................................................21 3.2 O POPULAR E O ERUDITO EM MOACIR SANTOS......................................................24

    4 PROCEDIMENTOS DE ANLISE....................................................................................29

    4.1 ESCOLHA DO REPERTRIO............................................................................................29 4.2 CONSIDERAES SOBRE O MTODO.........................................................................29 4.3 REFERNCIAS PARA ANLISE......................................................................................31

    5 ANLISE DO PARMETRO ALTURA EM COISA N 5..............................................38

    5.1 FORMA................................................................................................................................38

    5.2 HARMONIA.........................................................................................................................40 5.2.1 Anlise harmnica e funcional...........................................................................................40 5.2.2 Consideraes sobre o tom................................................................................................42 5.2.3 Interpretaes dos acordes.................................................................................................42 5.2.4 Sobreposio entre naipes..................................................................................................47 5.2.5 Aberturas dos acordes (drops)...........................................................................................49

    5.3 MELODIA:ANLISE MOTVICA E PROCESSO TEMTICO.......................................54 5.3.1 Sees A e A.....................................................................................................................54 5.3.2 Seo B..............................................................................................................................61 5.3.3 Soli de flauta e sax bartono...............................................................................................63 5.3.4 Seo C (Coda)..................................................................................................................71

  • 5.4 CONTRAPONTO................................................................................................................75 5.4.1. Melodia em bloco.............................................................................................................75

    CONSIDERAES FINAIS...................................................................................................79

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS....................................................................................83 PGINAS CONSULTADAS NA INTERNET.......................................................................86 REFERNCIAS FONOGRFICAS E AUDIOVISUAIS....................................................87

    ANEXOS....................................................................................................................................88

  • LISTA DAS ILUSTRAES

    Figura 1 cifra e partitura dos acordes para guitarra.................................................................40

    Figura 2 esquema de anlise harmnica e funcional...............................................................41

    Figura 3 modo blues completo.................................................................................................43

    Figura 4 escala de l dominante diminuta................................................................................44

    Figura 5 escalas de sol ldio b7, frgio maior e alterada..........................................................45

    Figura 6 reduo da harmonia da base introdutria.................................................................47

    Figura 7 reduo da harmonia da introduo...........................................................................48

    Figura 8 reduo da harmonia da repetio da introduo......................................................48

    Figura 9 reduo do bicorde final da introduo.....................................................................49

    Figura 10 drop do acorde D7(#9).............................................................................................50

    Figura 11 drop do acorde A7 (b9, 13)......................................................................................50

    Figura 12 drop dos acordes G7(9,13) e G7(#9, b13)...............................................................50

    Figura 13 drop do acorde C7(#9).............................................................................................51

    Figura 14 drop do acorde Gm7................................................................................................51

    Figura 15 drop do acorde Fm7.................................................................................................51

    Figura 16 drop do acorde Bb7sus4..........................................................................................52

    Figura 17 drop do acorde A7(b5).............................................................................................52

    Figura 18 drop do acorde Eb7(#9)...........................................................................................52

    Figura 19 drop do acorde Ab7(13)...........................................................................................53

  • Figura 20 drop do acorde Db7(9).............................................................................................53

    Figura 21 drop do acorde final.................................................................................................53

    Figura 22 antecedente tema 1 e conseqente tema 1B............................................................55

    Figura 23 diviso do tema 1 em inciso1 e inciso 2..................................................................55

    Figura 24 alturas do tema 1 em clave de sol............................................................................56

    Figura 25 comparao entre tema 1 e tema 1B e 1B casa 2....................................................56

    Figura 26 anlise intervalar do tema 1.....................................................................................56

    Figura 27 tema 1 em movimento contrrio..............................................................................57

    Figura 28 comparao entre tema 1B e inciso 1 em movimento contrrio.............................57

    Figura 29 comparao entre o tema 1B casa 1 e inciso 2 em movimento contrrio...............58

    Figura 30 comparao entre o tema 1B casa 2 e inciso 2 em movimento contrrio................59

    Figura 31 comparao entre inciso 2 em movimento contrrio e sobreposio da casa 1 e casa

    2 do tema 1B...............................................................................................................................60

    Figura 32 concluso do processo temtico na seo A............................................................61

    Figura 33 origem do tema B....................................................................................................61

    Figura 34 tema da seo B.......................................................................................................62

    Figura 35 alturas e fragmentos do tema da seo B.................................................................62

    Figura 36 comparao entre tema da seo B e tema B..........................................................62

    Figura 37 comparao entre trecho do tema da seo A em Gm e Dm com o tema da seo

    B..................................................................................................................................................63

    Figura 38 nossa transcrio do solo de flauta em A e A........................................................64

  • Figura 39 Nossa transcrio do solo de flauta em A e A analisada atravs de smbolos da

    legenda........................................................................................................................................66

    Figura 40 Legenda da anlise motvica do soli........................................................................66

    Figura 41 comparao entre contorno meldico do solo de flauta e tema 1 e tema 1B casa

    2...................................................................................................................................................67

    Figura 42 aumentaes do motivo no solo de flauta................................................................68

    Figura 43 elaboraes motvicas do prprio solo de flauta.....................................................68

    Figura 44 elaborao motvica do prprio solo de flauta........................................................68

    Figura 45 referncias motvicas harmonia no solo de flauta.................................................69

    Figura 46 transcrio original do solo de sax bartono............................................................70

    Figura 47 nossa transcrio da melodia em bloco e anlise motvica.....................................71

    Figura 48 comparao entre trecho do tema 1B e tema C.......................................................71

    Figura 49 anlise motvica da introduo................................................................................73

    Figura 50 origem das partculas da introduo no tema 1B.....................................................73

    Figura 51 comparao entre o trecho do tema 1B e introduo..............................................73

    Figura 52 sobreposio do incio da introduo, tema 1B casa 2 e tema da seo B originando

    trecho da introduo....................................................................................................................74

    Figura 53 anlise da melodia em bloco com base na tcnica linear........................................76

    Figura 54 tabela da classificao dos intervalos pela dissonncia...........................................77

  • 10

    INTRODUO

    Dois fatores principais foram responsveis por dar impulso a esta pesquisa. Em primeiro lugar, a admirao pela msica de Moacir Santos, da qual compartilho diversos ideais. Segundo, o desejo de aprofundar meus estudos na rea de arranjo e composio.

    A partir disso, na fase de projeto deste trabalho de concluso de curso, nos questionamos se existiria um mtodo de anlise que contemplasse arranjo e composio em um mesmo plano. A princpio isto surgiu pela necessidade de uma direo, pois estes conceitos esto intimamente ligados na concepo musical de Moacir. Percebemos atravs da pesquisa, que a literatura sobre msica popular brasileira ainda limitada, e visamos contribuir neste campo, iniciando por este trabalho.

    Uma parcela bastante ampla da experincia musical abarcada no ato de compor e arranjar. Inicia por um embrio no processo compositivo, que sofre intensa elaborao at chegar ao arranjo em sua forma final. Este processo entrelaa a msica a aspectos histricos, estticos, socioculturais, econmicos, antropolgicos, psicolgicos, ticos e tantas outras

    variveis. Tal amplitude gera uma infinidade de aspectos que podem ser includos numa tentativa de compreenso da composio e arranjo de uma obra atravs da anlise musical.

    Disto nos veio a idia de analisar a Coisa N 5, ou Nan de Moacir Santos com a inteno de explicitar seu processo criativo como compositor e suas ferramentas como arranjador, levantando algumas destas variveis no percurso da anlise.

    Para tal, no primeiro captulo iniciamos com uma biografia, que visa cobrir de forma concisa sua iniciao musical, carreira profissional e formao.

    O segundo captulo busca contextualizar o lanamento do LP Coisas em 1965, onde est inserido nosso objeto de estudo, a Coisa n 5.

    No terceiro captulo, promovemos uma discusso sobre os termos composio e arranjo, e o hibridismo da msica de Moacir Santos em relao aos conceitos de popular e erudito.

  • 11

    J no quarto captulo, mencionamos as razes sobre a escolha do repertrio, e fazemos consideraes sobre o mtodo de anlise empregado e nossas referncias.

    O quinto captulo traz a anlise propriamente dita dos elementos harmonia, melodia e contraponto.

    Por fim, fazemos consideraes finais sobre nossa anlise, levando em conta os resultados e particularidades do mtodo que adotamos, e levantamos o que percebemos dos processos de composio e arranjo de Moacir Santos. Tambm trazemos sugestes de uma continuao deste trabalho, tanto na anlise relacionada ao campo da composio e arranjo, quanto pesquisa sobre o maestro.

  • 12

    1.BIOGRAFIA

    Moacir Santos1 um compositor e arranjador nascido em 26 de julho de 1926, em So Jos do Belmonte, no interior do estado de Pernambuco. Teve uma infncia pobre, e iniciao musical precoce, atravs da atividade como msico e diretor de bandas de msica, o que

    proporcionou uma intensa peregrinao pelas cidades nordestinas durante sua adolescncia, assim

    como seu contato com grande variedade de instrumentos. Podemos visualizar um pouco deste perodo atravs de suas prprias palavras:

    Eu fui criado em Flores at os quatorze anos. Eu tinha trs aninhos quando minha

    me faleceu e deixou cinco filhos. Lembro-me que eu estava batendo latas no

    quintal e algum falou: Moacir venha c para ver sua me. Eu fui para parede e

    pus-me a chorar porque eu percebi que estava faltando algo na mame, eu acho que ainda no sabia o que era morte. Tinha umas quatro ou cinco crianas assistindo o

    meu choro ou talvez chorando por mim tambm. Essas crianas tomavam parte da

    minha banda, por que a gente imitava banda de msica e eu era maestro. Todos nuzinhos, porque no tinha dinheiro para comprar roupa e tambm porque l era

    muito quente.[...] Quando mame morreu, eu fui tomado por uma famlia em Flores. Flores tinha somente mais ou menos cinco ruas principais s. [...] S sei que fui morar perto do ensaio da banda, muito pertinho. Ento eu mexia nos instrumentos e ouvia me dizerem: no mexe a no, moleque. Eu me lembro de ter

    sido repreendido. Mas no prximo ensaio eu estava l de novo. Algum me elegeu

    eu j tinha cinco anos para tomar conta dos instrumentos. Me disseram: no mexe a no moleque. Mas eu no fui vaidoso a ponto de ficar dolorido. [...] Voltei

    1 As informaes contidas nesta biografia tiveram como fonte:

    ADNET, Mrio e NOGUEIRA, Z. Coisas: cancioneiro Moacir Santos. Rio de Janeiro, Jobim Music, 2005. FRANA, Gabriel Muniz Improta Coisas: Moacir Santos e a composio para seo rtmica na dcada de 1960. 2007. Dissertao (Mestrado em Msica) - Programa de Ps-Graduao em Msica, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. http://www.dicionariompb.com.br http://www.marioadnet.com/ http://jc.uol.com.br/2006/08/07/not_116938.php

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    e os rapazes da banda tanto fizeram que elegeram Moacir para tomar conta dos

    instrumentos. Ento eu aprendi a tocar todos os instrumentos, porque j podia mexer e tocar e tal.[...]Eu no tinha nada. Eu nunca tinha passado mais do que um ms em cada cidade: Paraba, Bahia, Pernambuco...Eu sa fugido de casa com

    catorze anos. A lei da libertao dos escravos ainda no tinha muito tempo. Nas

    escolas, no banco, as pessoas no estavam acostumadas a um negro. Em Flores, na escola, eu tinha sido aprovado com distino e louvor. Ento eu era um danadinho,

    mas eu no sei... eu no sou gnio, no. (SANTOS apud FRANA, 2007 p. 146-147)

    Moacir comea a atuar profissionalmente em 1944, na banda da polcia militar de Joo Pessoa, Paraba, como sax-tenorista. Em 1945, desliga-se da banda e ingressa na jazz band PRI 4 Rdio Tabajara como solista da jazz, e ainda clarinetista do conjunto regional desta emissora. J em 1947 foi nomeado maestro diretor musical da PRI 4.

    A atividade profissional de Moacir Santos foi muito intensa a partir de sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1948. Na ento capital da Repblica, ingressara na Rdio Nacional no mesmo ano de chegada, atuando como instrumentista. Em 1951 foi contratado como arranjador e regente desta emissora, que era a mais popular e poderosa da poca, e que tinha em seu quadro importantes maestros, como Radams Gnattali, Lrio Panicalli e Lo Peracchi.

    A partir de 1949 estuda Harmonia, Contraponto, Fuga e Composio com os professores mais renomados da poca: Paulo Silva, Jos Siqueira, Virgnia Fiusa, Cludio Santoro, Joo Batista Siqueira, Nilton Pdua, Guerra Peixe, e ainda H.J. Koellreutter, do qual se tornou assistente e substituto.

    Em 1951 torna-se um dos maestros arranjadores da PRE 8, Rdio Nacional. No ano seguinte, estuda a tcnica dodecafnica com o compositor Ernest Krenek, que havia vindo ministrar um curso de frias, em Terespolis (RJ). O professor ministrou, na primeira aula os preceitos e regras da Tcnica dos 12 Sons, sistema criado por Arnold Schoenberg. Como no falava ingls nessa poca, Koellreutter, diretor artstico do curso, serviu de intrprete para a comunicao entre professor e aluno, que foram surpreendidos por Moacir, ao compor, de imediato, uma msica no novo mtodo(ALBIN, 2008).

  • 14

    Em 1956, aps dois anos trabalhando como maestro da TV Record de So Paulo, retomou suas atividades na Rdio Nacional, no Rio de Janeiro. Ainda neste ano, trabalhou como assistente do compositor Ary Barroso, na gravadora Rosemblit, e como condutor de orquestras em gravaes da Copacabana Discos.

    Os esforos de Moacir Santos o transformariam em um dos mais requisitados compositores/arranjadores do Brasil na primeira metade da dcada de 1960, compondo, arranjando e conduzindo orquestras para gravadoras, teatros de revistas, televiso e filmes para o cinema. Durante toda dcada de 60 Moacir Santos ministrou aulas particulares a inmeros msicos, muitos deles ligados bossa nova, a ponto de ter sido considerado o patrono da bossa nova (FRANA,2007, p.141). Dentre seus alunos podemos destacar: Baden Powell, Srgio Mendes, Nelson Gonalves, Pery Ribeiro, Nara Leo, Dori Caymmi, Darcy da Cruz, Carlos Lyra, Paulo Moura, Roberto Menescal, Maurcio Einhorn, Oscar Castro Neves, Geraldo Vespar, Chiquito Braga, Maral, Bola Sete, Dom Um Romo, Joo Donato, Airto Moreira, Flora Purim, Raul de Souza e Chico Batera.

    Em 1965 no Rio de Janeiro, compe a trilha de Ganga Zumba, filme de Carlos Diegues, que dar origem ao LP Coisas, onde est inserido o objeto de estudo deste trabalho, a msica Coisa n5. Ainda neste ano, compe trilha para seu primeiro filme americano, Amor no Pacfico, de Zygmunt Sulistrowski. Seu xito lhe valeu uma passagem area do Itamaraty para assistir a pr-estria do filme nos Estados Unidos da Amrica. Neste pas se estabelece, alegando os contratos musicais serem bem melhores que no Brasil, e l residiu a partir de 1967 at o ano de sua morte, em 2006, onde exerceu tambm intensa atividade musical, trabalhando em trilhas para cinema, inclusive na equipe de Henry Mancini (em 1968) e Lalo Schifrin (em 1970). Por l lanou trs lbuns pelo selo Blue Note, o primeiro deles indicado ao Grammy Award, e um pelo selo Discovery Records. Moacir Santos prosseguiu com a atividade regular de professor nos EUA, tendo se tornado membro da MTAC (Music Teachers Association of Califrnia) em 1977.

    A partir de ento obtm maior reconhecimento no Brasil, recebendo diversos diplomas e homenagens, de 1985 a 1999.

    Volta ao Brasil em 2001, para acompanhar o projeto dos msicos Mario Adnet e Z Nogueira, que iniciam um processo de reconhecimento do trabalho do maestro no Brasil e

  • 15

    exterior, que iniciou com a gravao de uma coletnea, o cd duplo Ouro Negro. Retorna em 2005, quando gravado o cd Choros & Alegria, com msicas inditas, o DVD Ouro Negro e o lanamento de trs songbooks, Coisas, onde Adnet e Nogueira transcreveram todos os arranjos originais, que haviam sido perdidos em 1970, Ouro Negro e Choros & Alegria. Os dois pesquisadores tambm foram responsveis pelo relanamento e remasterizao do disco Coisas de 1965, depois de 39 anos fora de catlogo no Brasil.

    Menos de um ms depois vencer o Prmio Shell de Msica, fruto dos recentes lanamentos, vem a falecer em 6 de junho de 2006, em Los Angeles, Califrnia.

  • 16

    2. CONTEXTUALIZAO DAS COISAS

    2.1. LP COISAS

    Coisas o nome do primeiro lbum de Moacir Santos, lanado em 1965 pelo extinto selo Forma. Foi o nico LP lanado no Brasil sob sua direo integral e anterior ao derrame cerebral que sofreu.

    Coisas tem parte de sua gnese no longa-metragem Ganga Zumba, de Carlos Diegues, filme de 1964, de temtica afro-brasileira, sob direo musical de Santos. Nesta obra, ouvem-se pela primeira vez gravaes de trechos das Coisas n 5, 4 e 9.

    O ttulo abstrato das Coisas, numeradas de 1 a 10 fazem referncia ao opus das composies eruditas, refletindo intenes de dilogo com este campo. A este respeito, Moacir declarou:

    [...]eu, quando na minha vida de estudos, fiquei muito entusiasmado com a erudio, o clssico... eu fiquei agarrado com a palavra opus. Quando eu cheguei na gravao (do lbum Swings with Jimmy Pratt, de Baden Powell), a convite do Baden, no estdio, o moo desceu da tcnica e disse: maestro, qual o nome dessa (composio)? Eu disse: isso uma coisa. Porqu? Porque eu gostaria de dizer opus 5, number tal, mas uma coisa muito elevada para mim. Pelo menos naquela ocasio, naquela poca...mas eu sei que eu estou muito mais maduro, em vez de opus qualquer, no popular, jazz. Mas eu ainda no posso dizer opus, no, porque eu sempre fui admirador do clssico tambm, a msica erudita, quer dizer, desenvolvimento e etc... ento uma coisa: Coisa n 1, Coisa n 2...(SANTOS apud FRANA, 2007, p. 142- 143)

    Quando o vanguardista selo Forma foi vendido para a antiga Philips, atual Universal, no incio dos anos 70, Coisas saiu de catlogo, e assim permaneceu por 39 anos, at seu relanamento em 2005. O ba entregue gravadora continha a fita da gravao, que estava intacta e as partituras originais que foram perdidas.

    Aqui, mencionaremos a recepo por parte de dois crticos renomados, Rui Castro e Hugo Sukman, respectivamente, ao lbum de Moacir Santos: (O lbum Coisas possui uma)

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    originalidade e uma beleza que, se disser que foi gravado ontem, ningum ter razo para duvidar (CASTRO apud FRANA, 2007, p10).

    Na verdade, mais do que os temas em si, a importncia deCoisas ter inventado uma lngua prpria para a orquestra brasileira.[...] se a lngua de Pixinguinha curiosamente embranquecia as idias musicais negras de sambas e batucadas, adaptando-as aos formatos orquestrais europeus, a de Moacir ia na direo oposta, tornava a msica brasileira ainda mais negra. (SUKMAN apud ADNET e NOGUEIRA, 2005 p.19)

    Segundo Zuza Homem de Melo, no prefcio do cancioneiro Coisas, o LP foi surpreendente para a poca:

    A obra musical e orquestral do Maestro tem uma personalidade to forte um perfil to original que, rigorosamente no se encaixa em nenhum perodo da msica popular brasileira de sua poca. Nem de qualquer outra. Enquanto em 1960 a msica brasileira que atraa o mundo era a Bossa Nova, o Maestro se dedicava a trilhas de cinema com sotaque afro que culminaram em 10 temas instrumentais dos mais intrigantes no cenrio musical de ento. (MELO apud ADNET e NOGUEIRA, 2005, pg.13)

    Para uma contextualizao da importncia do lanamento de Coisas para a msica brasileira e cenrio musical da poca, no podemos deixar de incluir aqui trechos do contundente texto(ANEXO A) escrito em 1965 pelo dono do selo Forma Roberto Quartin, para o encarte original de Coisas:

    Ao reunir suas composies, Moacir Santos criou, mais que um disco, um documento histrico autntico dentro do mapa da msica popular brasileira. Autntico, pois, trata-se de um msico negro fazendo msica negra. E no de um garoto de Ipanema contando as tristezas da favela, ou de um carioca que nunca foi alm de Petrpolis a enriquecer o cancioneiro nordestino. Histrico, em primeiro lugar, por conter uma sntese completa e expressiva do formidvel papel que o negro desempenhou em toda nossa msica popular.[...] Tambm histrico, porque Moacir mostra [...] que se pode dar um sentido social msica, sem que para isso se precise mediocriz-la.[...] Moacir esperou muitos anos, e s o fato de conseguir dizer o que queria num momento em que o panorama brasileiro anda conturbado, onde as maiores aberraes so aceitas e aplaudidas, o coloca definitivamente num pedestal de importncia histrica de dimenses incalculveis.[...] Esse seu disco pode ser um grito de desespero contra tudo isso que est errado, contra tudo isso que impediu que fosse ele reconhecido mais cedo.

  • 18

    Percebemos que o disco Coisas carrega em si um expressivo e relevante posto dentro da histria da msica e cultura brasileiras.

    impressionante e lastimoso perceber que a pesada crtica de Quartin ao cenrio musical e indstria cultural do Brasil, revela-se atualssima 43 anos depois, e que uma parcela do digno reconhecimento do maestro, ansiado por ele j na poca, foi adiado pelo esquecimento por parte da indstria fonogrfica, que fez ressurgir Moacir em nosso pas somente em 2005, apenas um ano antes da sua morte.

    2.2. COISA n5

    Coisa n 5 a terceira das dez faixas do LP Coisas, e certamente a composio mais difundida de Moacir Santos. Tem seu primeiro registro na trilha sonora de Ganga Zumba (1964), filme de Carlos Diegues, voltado temtica da escravido e cultura afro-brasileira. O longa-metragem, que chegou a ser exibido na Semana da crtica do Festival de Cinema de Cannes, no mesmo ano, apresenta duas verses da composio. A primeira a mesma contida no LP Nara, da cantora Nara Leo, onde a autoria creditada a Moacir Santos e Vincius de Moraes, e a segunda verso, ouve-se somente a introduo, com arranjo praticamente idntico ao de Coisas (FRANA, 2007, p.99).

    muito conhecida sob o ttulo de Nan, letrada (ANEXO B) pelo compositor Mario Telles, em seu primeiro e nico LP. Vincius de Moraes, poeta j renomado na poca, e co-autor de algumas msicas de Moacir, escreveu uma letra anterior, que foi rejeitada pelo compositor, por no corresponder sua imagem da entidade religiosa.2 O quadro no era

    2 Nn,[sic] composio de Moacyr Santos,[sic] evoca uma divindade presente no panteo sincrtico Iorub-

    Islmico, pelo que pudemos apurar no texto de Reis. Os mals esto tambm presentes no sistema divinatrio dos dezesseis bzios, mais simples que o If e talvez por isso mais divulgado. Um dos versos do jogo com dez bzios explica nada menos do que a origem do Ramad. Conta que Nn, a velha me-dgua, me de todos os mals segundo uma tradio iorub, havia adoecido gravemente. O jogo de bzios indicava que seus filhos deveriam fazer sacrifcios aos orixs, mas em vez disso eles alimentaram a me diariamente com mingau de milho. Ao final de trinta dias Nn estava acabada e prestes a morrer chamou seus filhos. Disse ela: De hoje em diante quando cada ano se completar vocs devem passar fome por trinta dias. No devam comer durante o dia, nem beber gua. Assim comeou o jejum, os imle, no devem quebrar o jejum. Esta a origem doJejum.

  • 19

    aquele com gente espiando um banho de Nan, explica o compositor. Nan uma mistura de sons onomatopaicos e, ao mesmo tempo, o nome de uma divindade africana que pode ser a me de Nossa Senhora ou a deusa do mar, dependendo da religio (SANTOS apud SEVERIANO e MELO, 1998 p. 76).

    Foram registradas centenas de gravaes de Nan, no Brasil e exterior. Tenho em casa mais de cem Nans, sendo umas cinqenta, americanas (SANTOS apud SEVERIANO e MELO, 1998 p. 76). Destas verses, grande parte foi gravada em levada de samba, no compasso 2/4, como na transcrio de Almir Chediak (ANEXO C), que foi muito difundida.

    A Coisa n 5 foi composta originalmente no compasso ternrio 3/4, durante as caminhadas do compositor pelo Parque Guinle, no Rio de Janeiro (SEVERIANO e MELO, 1998, p. 79), quando imaginou uma procisso de negros (DVD OuroNegro, 2005). Estamos em desacordo com a transcrio3 de Adnet e Nogueira no cancioneiro Coisas, em relao mtrica, pois traz a msica inteira transcrita no compasso 6/8(ANEXO D). O carter binrio composto coerente apenas na seo introdutria, de contexto fortemente africano. O restante da composio sentido em ternrio simples, com inteno afro-brasileira. Na constituio da msica de carter religioso no Brasil, os ritmos, ou toques presentes no candombl afro-religioso brasileiro estruturam-se, em grande parte sobre compasso ternrio. Um processo rtmico comum a que foram provavelmente submetidos dois gneros da msica brasileira tomados de emprstimo a culturas estrangeiras: a polca paraguaia e toques de candombl que transcorrem em base rtmica ternria (LACERDA, 2008, p. 208):

    Nossa inteno ao relacionar sua levada (sobre Coisa n5) ao jongo foi apenas mostrar a proximidade entre um ritmo considerado de origem negra e sua msica, explicitando suas tcnicas e estratgias de composio de msica afro-brasileira. Enfatizamos ainda que a utilizao da levada em 6/8 por si s vai neste mesmo sentido. Acontece que dentre as levadas consideradas brasileiras, e no, afro-brasileiras, como o caso, raramente listam-se levadas ternrias ou em 6/8. (FRANA, 2007 p. 117)

    In REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil.A histria do levante dos mals em 1835.So Paulo: Companhia das Letras, 2003.Edio revista e ampliada. Pgs 241-242. (CARVALHO, 2003 p.66)

    3 Esta transcrio de Adnet e Nogueira presente no ANEXO D a referncia para a anlise feita neste trabalho.

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    Ressaltamos aqui que nosso trabalho ser focado na anlise musical, e no temos pretenses de investigar as razes de aspectos histricos e etnomusicolgicos na msica de Moacir Santos. Para ns, o relevante so suas intenes como compositor e arranjador. Porm, no intuito de enriquecer nosso trabalho, consideramos estes aspectos em vrios momentos, visando proporcionar um ponto de vista mais amplo, e sem o qual a anlise ficaria comprometida.

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    3. COMPOSIO E ARRANJO

    3.1. CONSIDERAES SOBRE OS CONCEITOS

    Pelo fato deste trabalho ter a inteno de analisar e compreender uma criao de Moacir Santos, torna-se imprescindvel primeiramente conceituar os termos composio e arranjo, para que possamos fundamentar sobre o que se estrutura sua concepo musical.

    As palavras composio e arranjo permitem imensa flexibilidade de significados, e as sutilezas entre os limites que permeiam as diferentes aes que os termos abrangem, provocam freqente indefinio conceitual na literatura. Em termos prticos, a clareza destes termos no uma exigncia, torna-se natural e inerente ao processos de composio e arranjo, que se entrelaam. No entanto, para o estudo acadmico, torna-se essencial definir o que podemos entender sobre estes termos, e qual sua abrangncia dentro do objeto de pesquisa.

    No que se refere definio de arranjo propriamente dita, Paulo Arago chama ateno para o fato de que:

    A procura por fontes que pudessem auxiliar e alicerar as discusses promovidas aqui [artigo Consideraes sobre o conceito de arranjo na msica popular] mostrou o quo limitada , ainda, a literatura especfica sobre msica popular; especialmente a que se refere msica popular brasileira, e apesar de o arranjo ser um tema absolutamente fundamental dentro dessa modalidade de msica. A grande maioria dos dicionrios a que recorremos traz definies de arranjo a partir do ponto de vista da msica clssica. (ARAGO, 2001 p. 94)

    Tendo isso em vista, julgamos importante considerar a acepo do termo arranjo dentro das esferas erudita e popular, motivados pelo hibridismo da msica de Moacir Santos. Assim, teremos como referncia, os verbetes do New Grove Dictionary e do New Grove Dictionary of Jazz, para traarmos paralelos e particularidades.

    A definio que o New Grove Dictionary dedica quase todo verbete, seria a transferncia de uma composio de um meio para outro ou a elaborao (ou simplificao) de uma pea, com ou sem mudana de meio (apud ARAGO, 2001 p.95). Esta concepo

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    de arranjo se aproxima do cotidiano erudito, explicitada pelas palavras transferncia e elaborao, num sentido de no interferir no material original da composio.

    Na prtica erudita, ocorrem basicamente quatro categorias de arranjo (ARAGO, 2001 p.96). Primeiro, so comuns arranjos comerciais, ou seja, partituras elaboradas com objetivo de fazer uma composio alcanar um pblico consumidor sempre maior. Tanto no sentido de diversas formaes, quanto arranjos de clssicos popularizados. Tambm poderiam ser includos arranjos que no trazem mudana de meio, como simplificaes de peas virtuossticas visando atingir instrumentistas amadores. Segundo, os arranjos prticos, que seriam representados pelas redues de partes orquestrais ou corais para piano, por exemplo. Terceiro, arranjos elaborados com a inteno de expandir o repertrio de instrumentos que, por alguma razo, tenham um corpo de peas originais limitado. E quarto, arranjos representados por reorquestraes motivadas pela necessidade de melhor aproveitamento de instrumentos modernos.

    O Grove indica um parmetro de comparao entre o arranjo meramente prtico, no qual h pouco ou nenhum envolvimento artstico por parte do arranjador (apud ARAGO, 2001 p.96), ponto de vista que se assemelha s quatro modalidades propostas acima por Arago, do arranjo mais criativo, no qual a composio original filtrada atravs da imaginao musical do arranjador (apud ARAGO, 2001 p.96), que sinaliza claramente uma maior interveno no material bsico de uma composio por parte do arranjador.

    Vejamos, sob um cunho mais jazzstico, e popular, a descrio do verbete arranjo, encontrado no New Grove Dictionary of Jazz: a reelaborao ou recomposio de uma obra musical ou de parte dela (como a melodia) para um meio ou conjunto diferente do original; tambm a verso resultante da pea (apud ARAGO, 2001 p.96). Aqui, apesar de sutilmente modificada da definio anterior, torna-se fundamental a perspectiva da reelaborao e recomposio. Por este motivo, percebemos um tratamento mais malevel estrutura da composio popular, que concede maior liberdade e expresso figura do arranjador. Ainda, considera a verso resultante da pea, ou seja, o momento da execuo e seu produto final, passveis de originar um novo arranjo. Frisando este pensamento, menciona que toda a performance de jazz, mesmo que improvisada e completamente renovada, constitui uma

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    forma de arranjo, uma vez que os executantes rearranjam o material bsico a cada nova variao (apud ARAGO, 2001 p.97).

    Aqui, somos obrigados a perceber diferenciaes bsicas entre os dois universos em relao ao material original de uma composio e a figura do arranjador.

    Na criao musical erudita, temos uma dinmica que compreende basicamente duas etapas. A partir de um universo sonoro disponvel, o compositor organiza o material de acordo com sua imaginao musical, numa etapa de composio que contempla alm do material original, todas suas exigncias do que vir a ser executado por parte dos instrumentistas. Ou seja, aps a primeira etapa, torna-se possvel diretamente a segunda etapa, a execuo, pois geralmente o material original chega completo e totalmente discriminado s mos dos instrumentistas.

    A grande diferena encontra-se sob a forma do material original da msica popular. Pela sua maior liberdade de interpretao, praticamente impossvel definir os limites originais de uma msica. O original seria a partitura, a primeira execuo ou a primeira gravao? Todos estes aspectos esto sujeitos a modificaes, se levarmos em conta que toda a performance de jazz, (ou no caso, msica popular) mesmo que improvisada e completamente renovada, constitui uma forma de arranjo. Constantemente, no cotidiano popular, o material bruto de uma composio resumido no par melodia e cifra, como vemos nos Songbooks e Real Books de jazz. A partir deste bruto surge a necessidade da etapa de arranjo, anterior execuo. Vemos ento, a obra tomando forma a partir de trs agentes, que podem, ou no se fundirem em um: o compositor, o arranjador e o intrprete. Portanto, na msica popular possvel perceber mais claramente a distino entre as etapas de composio e arranjo, fundamentais para viabilizar a terceira.

    Entendemos que, de forma generalizante, (pois invivel cobrir aqui todas as gradaes e ramificaes quase infinitas dos conceitos) o popular prescinde do arranjo, indiferente do nvel de formalizao desta etapa, situada entre a composio e a execuo. J no meio erudito comumente, composio e arranjo so gerados num mesmo plano, sob tutela do compositor.

    Por estas questes, a figura do arranjador no meio erudito carrega menor expresso, onde geralmente detm pouco ou nenhum envolvimento artstico. No est aqui em questo

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    o julgamento de valores como criatividade ou liberdade neste segmento de msica, e sim que o momento onde a composio , filtrada atravs da imaginao musical do arranjador existe, porm torna-se funo geralmente delegada ao prprio compositor.

    3.2. O POPULAR E O ERUDITO EM MOACIR SANTOS

    Baseados na discusso promovida sobre os conceitos, podemos tentar situar a composio e arranjo em nosso objeto de pesquisa, a msica de Moacir Santos. Percebemos que atravs da trajetria, influncias, gravaes e concepo, Moacir compe e arranja de forma a aproximar-se do universo erudito. Detm, sob sua responsabilidade, o papel de compositor e arranjador. Sua obra tem o rigor da composio erudita, atravs do uso da escrita tradicional, inclusive para os instrumentos da seo rtmica, utilizando tcnicas oriundas desta prtica, assimiladas atravs de anos de estudos com msicos eruditos como Guerra-Peixe, E. Krenek e H. J. Koellreutter, chegando a substituir este ltimo como professor em diversas ocasies. Se comparado a vrios compositores identificados com a msica popular brasileira, suas msicas no podem ser reduzidas ao par melodia e cifra sem que se perca parte substancial da composio, que se revela nos contracantos, seo rtmica, timbres e instrumentao.

    Apesar disso, Moacir no identificado e nem reconhecido como um compositor do meio erudito, e pertence ao segmento da msica popular, o que denota o hibridismo de sua obra, constante na cultura brasileira. Esta peculiaridade no exclusiva de Moacir na histria da nossa msica popular, que encontra antecedentes expressivos, como Pixinguinha, Radams Gnatalli, e at Villa-Lobos, que comumente escalado no time dos eruditos.

    A msica destes compositores reconhecida justamente por se originar da justaposio e frico entre o universo popular e erudito, tradio brasileira que se manteve com Antnio Carlos Jobim, e atualmente Egberto Gismonti e Guinga, para citar alguns exemplos. Na valorizao do popular por parte de Moacir, deve ter sido preponderante a influncia de seu professor Guerra-Peixe, mestre do nacionalismo e defensor das idias modernistas.

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    A influncia da msica erudita pode ser verificada tambm nas composies e arranjos de alguns jazzistas norte-americanos, alm de uma referncia concepo de composio de Duke Ellington, que tido como o maior compositor e arranjador negro do jazz. Segundo Eric J. Hobsbawm em A Histria Social do Jazz, Ellington deu ao blues sua forma orquestral (1990, p.119). Esta afirmao revela que uma das maiores influncias de Moacir j fazia em sua obra o intercmbio entre conceitos e tcnicas eruditas e populares, na relao da orquestra com a msica negra das classes baixas dos Estados Unidos.

    Somente ao longo de algumas dcadas, atravs do trabalho de arranjadores como Don Redman, Duke Ellington e John Nesbitt, que se constatou que arranjo e improvisao no so procedimentos contraditrios, muito pelo contrrio, o que de fato contribuiu para a consolidao do arranjo como uma necessidade no jazz. (ARAGO, 2001 p.98)

    Quando questionado sobre a influncia de Duke Ellington, Moacir comenta:

    Eu ouvi muito. Eu acho que ouvi as orquestras de jazz americano em Joo Pessoa, Paraba. Eu ouvi bem a msica americana [...] Pelo rdio. Ento eu pensei que a musica americana era msica de outro planeta, mais elevado. Ento eu fiz a msica de um filme americano e ganhei uma passagem [...] pensava que o msico americano era de um planeta mais elevado, quando eu ouvi o jazz na Paraba. Mas, quando eu cheguei l eu notei, bem mesmo, que o melhor msico do mundo est l. Mas o pior do mundo est l tambm. E trabalhando! Ento, eu pensei, tem lugar para mim. (risos). (FRANA, p.149)

    Esta resposta revela uma grande admirao de Moacir pela msica americana, alm do desejo e necessidade de se inserir neste ambiente, deixando claro que a influncia das orquestras de jazz foi decisiva na formao de sua concepo musical.

    A msica de Santos caracteriza-se muito pela presena de elementos populares, ligados a cultura afro-americana. Podemos ouvir constantemente em sua obra referncias claras ao samba, afox, candombl, jazz e blues de forma direta, nos planos harmnicos, meldicos e rtmicos. Uma das possveis razes da identificao e busca de Moacir pela cultura afro-americana sendo um brasileiro, afro-descendente pode ser entendida atravs do conceito da transversalidade, onde podemos sentir o jazz e o blues como elementos de um

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    legado cultural comum, compartilhado e sentido como autntico e legtimo pelos descendentes da dispora africana em todo continente americano. Para exemplificar brevemente este conceito citaremos a obra de Paul Gilroy,:

    Essas significaes podem ser condensadas no processo da apresentao musical, embora, naturalmente no as monopolize. No contexto do Atlntico negro, elas produzem o efeito imaginrio de um ncleo ou essncia racial interna, por agir sobre o corpo por meio dos mecanismos especficos de identificao e reconhecimento, que so produzidos na interao ntima entre artista e multido. Esta relao recproca pode servir como uma situao comunicativa ideal mesmo quando os compositores originais da msica e seus eventuais consumidores esto separados no tempo e no espao ou divididos pelas tecnologias de reproduo sonora e pela forma de mercadoria a que sua arte tem procurado resistir.(GILROY apud CARVALHO, 2003, p.68).

    A dcada de sessenta, e o fim da dcada anterior, representaram uma poca em que houve grande exposio e valorizao de elementos da cultura negra tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. Na msica brasileira, este processo aconteceu numa espcie de resgate ao samba e renovao da Bossa Nova. Podemos mencionar como exemplos, o espetculo Orfeu da Conceio (1956), transposio da mitologia grega para o contexto das favelas, macumbas, clubes e festejos negros (CABRAL, 1997, p.100) do Rio de Janeiro, incio da parceria Moraes e Jobim, em 1965; o show Elizeth sobe o morro, onde a cantora interpretava sambas de morro, acompanhada por Nelson Cavaquinho ao violo; o LP onde Nara Leo grava sambas de Z Kti e Cartola, este ltimo encontrado e resgatado, aps anos de ausncia nos meios musicais, lavando carros como meio de subsistncia; a descoberta da cantora negra Clementina de Jesus por Hermnio Bello de Carvalho; e o lanamento de Os Afro-sambas de Baden Powell e Vincius de Moares, um ano depois, em 1966, que deram continuidade ao movimento da Bossa Nova.

    Sobre o LP Os Afro-sambas, responsvel por gerar um movimento relevante dentro da msica popular brasileira, importante frisar que foi fortemente influenciado por Moacir, de acordo com declarao do ento seu aluno Baden Powell:

    Moacir me passava os exerccios de composio em cima dos sete modos gregos, os modos litrgicos do canto gregoriano. Foram esses exerccios que viriam a se tornar, mais tarde, os afro-sambas (Baden Powell em depoimento ao jornal O Globo, Segundo caderno, de 24 de maro de 2000). (POWELL apud FRANA, p. 5)

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    Podemos perceber que a valorizao de elementos negros, em conjunto com elementos da msica erudita na formulao da composio e arranjos da MPB foi vital neste momento da msica brasileira:

    O cenrio bossanovista pontua fortemente um momento de transio na msica popular, um momento em que informaes da cultura erudita penetram o campo do popular, tensionando esse domnio. Os compositores do final dos anos 1950, no Brasil, vivenciaram [...] a prtica de experimentaes formais condizentes com um mundo marcado pela transitoriedade e pelo excesso de informaes (NAVES, 2004, p.84).

    Por outro lado, tal transio tem como conseqncia promover o surgimento e confirmao de uma msica com uma esttica hbrida e de grande valor artstico, situada entre os dois universos.

    A bossa nova foi talvez o primeiro momento da chamada msica brasileira no qual a artificialidade da discusso popular versus erudito foi revelada e desmoralizada. A falsa questo foi, por seu intermdio, superada. A bossa nova jamais se transformou em forma popular. No toca nos bailes, o povo no a compe nem a repete. Tampouco se fez msica chamada erudita. Nem popular, nem erudita: gnero prprio, original, indefinvel, por isso rico (TVOLA, 2002, p.55).

    Portanto, tal hibridismo no privilgio de Moacir Santos, est no mago da prpria msica brasileira deste perodo, que parece estar situada entre classes altas e baixas, entre o erudito e o popular.

    Podemos aqui, traar um paralelo desta situao com personagens que evidenciam tal dualidade em nossa msica popular. Tom Jobim o expoente de msico oriundo de uma famlia da classe alta e rica do bairro da Tijuca, que atravs de sua formao, influncia, poderes e viso, dialogou com a classe baixa, com o povo, o morro, o samba, e a pobreza, gerando a profundidade de sua obra. O extremo oposto a obra de Moacir, negro, nascido no interior de Pernambuco, rfo, pauprrimo, que atravs de um esforo brutal buscou a erudio e conhecimento, lutando pela excelncia em sua msica. Curiosamente, neste contrastante paralelo autenticamente brasileiro, de alguma forma ambos se interseccionam

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    como alunos de Koellreutter, e Moacir tornando-se seu assistente e professor de inmeros compositores da Bossa Nova.

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    4. PROCEDIMENTOS DE ANLISE

    4.1. ESCOLHA DO REPERTRIO

    A escolha de Coisa n5 como objeto de anlise para este trabalho deve-se ao motivo de ser a msica mais difundida de Moacir, e, portanto mais representativa de sua obra.

    Outro fator preponderante ao selecionar uma msica do LP Coisas, que nossa inteno foi analisar uma msica englobando as esferas do arranjo e composio. Dos trs cancioneiros editados pela dupla Adnet e Nogueira, este o nico que traz os arranjos completos, com todos os instrumentos na grade. Nos songbooks Choros & Alegria e Ouro Negro, optaram por partituras reduzidas a piano e melodia, o que elimina a possibilidade de uma observao de suas tcnicas como arranjador.

    Alm disso, este foi o nico LP lanado no Brasil sob sua direo integral e anterior ao derrame cerebral que sofreu, o que garante que os arranjos do LP Coisas traduzem exclusivamente a concepo musical de Moacir, em uma fase de completa integridade mental.

    4.2. CONSIDERAES SOBRE O MTODO

    A proposta inicial deste trabalho partiu da inteno de compor uma anlise musical capaz de cercar a multiplicidade de aspectos concernentes a um arranjo, atravs da justaposio de diversas teorias, com o objetivo de compreend-lo de forma integral. Para isso, deveramos considerar aspectos rtmicos, meldicos e harmnicos no mesmo estudo, numa tentativa de perceber amplamente a concepo de Moacir Santos. Devido complexidade da proposta, consideramos sensato limitar a anlise somente uma msica, pelos fatores condicionantes de um trabalho de concluso de curso.

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    Na composio deste mtodo, procuramos uma fonte que fosse capaz de abranger tantas particularidades. Encontramos nas definies dos campos de anlise de Dante Grela4 a proposta da anlise paramtrica, que foi de encontro aos nossos propsitos. Os parmetros para a anlise so as propriedades do som: altura, durao, intensidade e timbre. Por sua vez, cada parmetro dividido em elementos a serem analisados: altura divide-se em melodia, harmonia e contraponto; durao divide-se em tempo, mtrica e rtmica intensidade divide-se em dinmica e acentuao; e por fim, timbre divide-se em orquestrao, textura e articulao. Por considerar como princpios as propriedades bsicas do som, que se subdividem em elementos musicais, julgamos bastante completa a proposta de Grela como ponto de partida e guia formal para a anlise.

    O prximo passo foi situar como estes elementos ocorrem em Coisa n5, e a partir disto, definir autores e teorias especficas que apoiassem a anlise dos parmetros. Tendo isto determinado, partimos para a anlise propriamente dita, que foi realizada em todos os parmetros. Percebemos, com a coleta de dados em mos, que tornar-se-ia invivel, num esforo desproporcional, descrever neste trabalho a composio e o arranjo de Moacir num ponto de vista to amplo. A anlise mostrou-se demasiado extensa, densa e at mesmo pretensiosa para as finalidades deste trabalho e momento da carreira acadmica. No entanto, isto sinaliza uma real possibilidade de estudo no futuro.

    Tendo isto claro, julgamos de bom senso para este trabalho focarmos apenas no parmetro altura, que consideramos como o mais apropriado dentro da proposta de revelar aspectos da concepo musical deste compositor e arranjador. Cabe mencionar aqui que de acordo com nossa anlise, Moacir Santos destina uma parcela extremamente significativa em sua maneira de arranjar ao parmetro durao, valorizando e explorando profundamente elementos como mtrica e rtmica. Para um entendimento ainda mais completo do autor em questo, sugerimos ateno a este aspecto.

    4 Compositor argentino, natural de Rosrio, professor de Composio, Orquestrao, Acstica Musical e Anlise

    na Escola de Msica da Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade Nacional de Rosrio e no Instituto Superior de Msica da Universidade Nacional do Litoral.

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    4.3. REFERNCIAS PARA ANLISE

    Ao compor nossa proposta de anlise, fomos compelidos a propor procedimentos que contemplassem tanto aspectos da composio quanto do arranjo no mesmo trabalho, pois entendemos que o processo compositivo de Moacir abarca estas duas prticas num mesmo plano, e este nosso objetivo aqui. Devemos, para tanto, delimitar os processos relativos composio dos relacionados ao arranjo. Tendo isto claro, tornou-se necessrio empregar mtodos de anlise especficos, munidos de ferramentas capazes de traduzir estas duas instncias.

    Para isso, recorremos ao pensamento de Nattiez, que divide o fato musical5 em trs dimenses analticas:

    a) nvel poitico (do grego: poietiks, que produz, que cria; poesis, ao de fazer algo) este nvel concernente ao processo de composio, em que so considerados todos os aspectos que colaboram para o entendimento do ato de criao, tais como sociologia e histria da msica, biografia do compositor, aspectos antropolgicos, etc.; b) nvel neutro a prpria obra musical (neutro porque no existe por si mesmo, mas somente na medida em que h quem a realiza compe e/ou toca e quem a percebe), so considerados todos os aspectos que colaboram para o entendimento da obra (independentemente de como foi concebida ou de como percebida), tais como anlise morfolgica, anlise harmnica, etc.; c) nvel estsico (do grego: aisthetiks, sensvel; asthesis, ato de perceber) este o processo de recepo da obra musical por parte dos ouvintes, em que so considerados os aspectos que fazem parte da recepo da obra, tais como psicologia da audio, acstica musical, esttica musical, etc. (MATTOS apud FREITAS, 2005, p 1-2)

    Este modelo tripartido representado por Nattiez da seguinte forma:

    5 Por fato musical, os semioticistas entendem a totalidade da experincia musical, em todas as suas nuanas e

    caractersticas, desde a primeira idia construtiva do compositor at a audio por parte do pblico, passando por aspectos socioculturais, econmicos, histricos, estticos, interpretativos, ticos, antropolgicos, psicolgicos, etc.

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    Ao compreender a autonomia entre os trs nveis, consideramos fundamental para o nosso trabalho levar em conta mtodos de anlise no nvel poitico, relativas ao processo de composio, e teorias relacionadas ao nvel neutro, visando descrever ferramentas utilizadas na produo do arranjo.

    A partir da tripartio, Nattiez apresenta outro quadro, em que distingue seis diferentes famlias da anlise musical, compreendidas da seguinte maneira:

    a) Anlise Imanente esta uma famlia de anlise que, trabalhando com uma metodologia explcita ou implcita, aborda somente as configuraes imanentes da obra, sem tomar parte na pertinncia poitica ou estsica das estruturas assim discernidas. Em outras palavras, so as anlises que somente consideram o texto musical e no os processos e condies de criao, execuo ou recepo. Nattiez exemplifica esta famlia com a anlise rtmica de Boulez da Sagrao da Primavera (1966), a anlise da msica atonal com base na Teoria dos Conjuntos de Allen Forte, ou as anlises com base na informtica. b) Anlise Poitica Indutiva nesta famlia analtica procede a partir da observao da pea (o trao, ou nvel neutro) chegando a concluses sobre o processo compositivo. Esta , segundo Nattiez, uma das situaes mais freqentemente encontradas na anlise musical. O analista observa diversos procedimentos recorrentes em uma obra, ou conjunto de obras, e chega concluso: difcil de crer que o compositor no tenha pensado sobre isto. Esta famlia exemplificada com a anlise motvico-temtica de Schoenberg e Rti. c) Anlise Poitica Externa neste caso, a situao o reverso da anterior, o musiclogo toma documentos deixados pelo compositor cartas, projetos, esboos como ponto de partida e analisa a obra com base nestas informaes. O caso mais destacado deste tipo de anlise a obra de Paul Mies (1929) em que so descobertas caractersticas estilsticas da obra de Beethoven com base nos seus esboos. d) Anlise Estsica Indutiva pratica-se uma anlise estsica indutiva quando se procura predizer como a obra ser percebida pelo ouvinte com base nas estruturas musicais observadas pela anlise no nvel neutro (partitura). Esta projeo da audio pode ser tanto por meio da ampliao da prpria experincia pessoal do analista (hipostasiada em conscincia universal), quanto tendo em conta as leis perceptivas gerais desenvolvidas por pesquisas no campo da psicologia. Para Nattiez, este o caso mais comum na anlise musical, em primeiro lugar porque diversas anlises desejam se colocar como sendo relevantes do ponto de vista da audio e, em segundo lugar, porque muitos analistas colocam a si mesmos como uma espcie de conscincia coletiva de ouvintes, chegando deduo isto o que se ouve, porque desta maneira que eles prprios ouvem. e) Anlise Estsica Externa esta famlia procede de pesquisas experimentais em que grupos de ouvintes so incentivados a dar respostas sobre aquilo que esto ouvindo. Desta forma, a anlise fundamenta-se no sobre as obras, mas sobre as respostas de sujeitos que as percebem em situaes experimentais. Assim, o processo analtico principia com as informaes coletadas dos ouvintes dirigindo-se, posteriormente, compreenso de como a obra (ou conjunto de obras) percebida. Esta famlia amplamente estudada nas pesquisas em psicologia da

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    msica, tendo ganhado considervel impulso nos ltimos anos com as pesquisas cognitivas. f) Anlise Holista esta a situao analtica mais complexa, na qual a anlise imanente (do nvel neutro) tomada como sendo igualmente relevante tanto para o entendimento dos processos poiticos quanto para os processos estsicos. Em outras palavras, o analista considera que as observaes realizadas no campo da anlise imanente correspondem tanto aos processos de composio e execuo, quanto aos processos de recepo da obra (em todas as peculiaridades possveis). A anlise schenkeriana seria o exemplo mais conhecido desta famlia analtica, pois Schenker acreditava que o seu procedimento analtico iria revelar, por um lado, os passos da composio e, por outro lado, as estruturas que deveriam ser explicitadas pelo intrprete, pois, assim, seriam percebidas pelo ouvinte. (MATTOS apud FREITAS, 2005 p.3):

    Baseados em Nattiez, definimos uma abordagem poitica indutiva no parmetro melodia, assim poderemos perceber o processo de composio. Os parmetros harmonia e contraponto foram tratados basicamente sob um ponto de vista da anlise imanente, no nvel neutro, com o objetivo de descrever tcnicas de arranjo. Basicamente, porque em momentos oportunos so feitas consideraes no nvel poitico, onde considerarmos enriquecedor e significativo para nossa anlise.

    Tendo esta abordagem em mente, a partir das categorias harmonia, melodia e contraponto definidas no parmetro altura de Dante Grela, estabelecemos elementos a serem analisados em Coisa n5. Harmonia: anlise harmnica e funcional, sobreposies entre naipes, drops. Melodia: anlise motvica e processo temtico. Contraponto: tcnica de arranjo linear.

    No elemento harmonia, a base para a anlise harmnica e funcional foi a dissertao de mestrado do professor da UDESC Srgio Paulo Ribeiro de Freitas, Teoria da harmonia na msica popular: uma definio das relaes de combinao entre os acordes na harmonia tonal. Seu trabalho prope um conjunto de teorias para a compreenso da harmonia tonal, popular e contempornea. Segundo o resumo de sua dissertao:

    Essa dissertao um programa expositivo circunstanciado e minudente de um tipo de raciocnio teortico que se tem sobre a prtica atual da harmonia tonal na msica popular. Limita-se a descrever uma razo sistmica para as principais relaes de combinao entre os acordes, averiguando a hiptese principal de que possvel um controle destas relaes independente das questes de escritura da conduo de vozes. A razo terica do presente texto funda-se no iderio funcional, e se

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    pretende como uma avaliao crtica formalizada sobre essa classe de entendimento que se tem sobre os eventos harmnicos. (FREITAS,1995)6

    Para viabilizar a realizao da anlise descrita acima, foi necessrio compreender o que acontece no plano harmnico quando os naipes se sobrepem. Para isso, realizamos uma reduo da partitura a um sistema de pauta dupla, incluindo todos os instrumentos da grade, efetuando as transposies necessrias e excluindo os unssonos. Compreendidos os acordes, analisamos a disposio das vozes atravs da tcnica de drops, fundamentados por Ian Guest em seus trs livros: Arranjo: mtodo prtico.

    O elemento melodia foi analisado atravs do processo temtico, com base na teoria da anlise motvica de Rudolph Rti que exposta em seu The Thematic Process in Music (1951)7.

    Rudolph Rti (1885-1957). Reti foi escritor (sobre msica), pianista e compositor. Estudou em Viena, piano e teoria na Academia de Msica e musicologia na universidade. Como pianista de concerto, realizou a primeira execuo do opus 11, peas para piano de Schoenberg. Reti participou da criao do Salzburg Music Festival em 1922 e posteriormente, entre 1930 e 1938, tornou-se o principal crtico de msica do jornal Das Echo em Viena. Nesta mesma dcada, emigrou para os Estados Unidos e foi editor do Musical Digest. Entre 1944 e 1948 Reti realizou anlises das Sonatas de Beethoven com o intuito de compreender o como se dava o processo de composio em Beethoven. A sua teoria sobre composio foi baseada nestas anlises algumas das quais encontram-se em Thematic Patterns in Sonatas of Beethoven, obra publicada dez anos aps a sua morte, em 1967. No livro The Thematic Process in Music (1951) Reti sugeriu que os compositores desde o sculo XVIII basearam suas composies na evoluo consciente de clulas motvicas dentro de um padro temtico e no no desenvolvimento estrutural da obra. O desenvolvimento de clulas motvicas dentro de um padro temtico determina a modulao, os acordes, as pontes, a carga emocional e a forma da msica. A composio para Rti comea sem um esquema terico, mas nasce a partir de um motivo. Este se desenvolve atravs da transposio, inverso, reiterao, parfrase e variao.(MATTOS, apud FREITAS, 2006, p. 118)

    6 Como a paginao da dissertao no inclua o resumo e folhas anteriores a ele, a indicao da pgina no se

    faz aqui possvel. 7 Devemos esclarecer aqui que este livro no foi editado em portugus. Como no tivemos acesso ao original,

    todas as citaes deste livro fazem referncia ao professor Srgio Freitas, que incluiu em sua coletnea de textos da disciplina Anlise musical II uma traduo integral do captulo Various categories of transformation, realizada pelo professor Fernando Lewis de Mattos, da UFRGS. A paginao, portanto, refere-se a esta compilao.

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    A escolha de Rudolph Rti se deve ao fato de que percebemos que Moacir Santos e de forma geral, a msica popular brasileira herdou muitos procedimentos composicionais da tcnica temtica. Apesar de ter sido teorizada por Rti a partir dos clssicos, e em especial Beethoven, vemos que seus conceitos se adaptam perfeitamente ao repertrio popular. Rti afirma que a tcnica temtica tenha se tornado a base para todo o esforo compositivo de nossa poca. Vale lembrar que Moacir teve formao erudita, e estreita ligao com o alemo Koellreutter, alm de ser assumidamente admirador da msica clssica. Portanto, no difcil imaginar que a tcnica da transformao temtica tenha sido incorporada subjetivamente, atravs da audio, ou diretamente, atravs das aulas com Guerra-Peixe, Ernest Krenek , Koellreutter, e Cludio Santoro. Vale mencionar que Krenek era um divulgador dos preceitos e idias de Schenberg, que em seu Fundamentals of Musical Composition considera (no captulo O motivo, p. 25-42) que a ferramenta bsica do compositor o trabalho motvico.

    No final da dcada de 70, Epstein (1979, p. 17-29) faz uma avaliao criteriosa do papel desempenhado por Schenberg com relao ao desenvolvimento do conceito de Grundgestalt. Essa avaliao parte de uma crtica rigorosa s proposies de Rudolph Rti (1951), que apresenta a idia do tematicismo sem maiores referncias contribuio de Schenberg, embora tenha sido aluno do prprio. Para Epstein, Schenberg foi, de fato, a matriz dos conceitos fundamentais que levaram ao desenvolvimento de duas correntes analticas importantssimas no Sculo XX, o tematicismo e a teoria dos conjuntos.(LIMA, 2004, p. 36)

    O elemento contraponto em Coisa n 5 surge sob a forma de uma melodia em bloco. A textura da msica polifnica, porm com um carter de melodia acompanhada, e por este motivo, o arranjo de Moacir no privilegia aspectos contrapontsticos.

    Abordamos esta melodia com base nos conceitos expostos por Ian Guest e Joel Barbosa de Oliveira, que de acordo com nossa pesquisa, so as nicas publicaes brasileiras que teorizam a tcnica de arranjo linear.

    A tal melodia de Moacir vai de encontro definio de Ian Guest sobre a tcnica linear em bloco:

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    A tcnica linear em bloco descarta todos esses conceitos (sobre som do acorde, nitidez da harmonia e funes harmnicas). Em vez de se preocupar com o som do acorde, representa o som da escala do acorde, onde a 3 e a 7 no so mais importantes do que as outras notas. Na msica tonal, feita de preparaes e resolues, isso produzir uma sonoridade no-bvia, sem explicitar cada acorde. (GUEST, 1996, p. 41)

    Oliveira, em sua dissertao de mestrado, Arranjo Linear: uma alternativa s tcnicas tradicionais de arranjo em bloco, afirma que importante citar que as anotaes dos alunos de Pomeroy, assim como um captulo do livroARRANJO: Mtodo Prtico volume 3, de Ian Guest, so as nicas fontes especficas de referncia sobre o assunto.

    provvel que a tcnica de arranjo linear seja, entre as tcnicas de arranjo, a menos utilizada pelos arranjadores em seus trabalhos para formaes instrumentais que utilizam as tcnicas de arranjo em bloco. Dois motivos, pelo menos, explicam a sua pouca utilizao na confeco de arranjos: o desconhecimento da tcnica por parte de muitos arranjadores, e a falta de domnio dos seus procedimentos por aqueles que j tiveram algum contato com ela mas no desenvolveram sua prtica.[...] Nessa tcnica, desenvolvida por Herb Pomeroy, no permitido que o resultado meldico de uma voz seja conseqncia de um procedimento baseado na conduo vertical simultnea das vozes, ou seja, da conduo de acordes.[...] Enquanto as tcnicas verticais utilizam basicamente as notas dos acordes, a tcnica de arranjo linear utiliza as notas da escala.[...] Enquanto as tcnicas verticais evitam os choques provocados pelo uso das notas evitadas, as linhas da tcnica de arranjo linear desconhecem qualquer nota evitada na escala.[...] possvel que algumas das prticas de Duke Ellington tenham sido to contrastantes com o senso comum de sua poca quanto para muitos de ns a prioridade horizontal da tcnica linear comparada ao pensamento vertical das tcnicas em bloco.[...]Herb Pomeroy conseguiu fazer o que talvez poucos tenham feito. Analisar e sistematizar tcnicas utilizadas por Duke Ellington em sua arte de orquestrar. E foram nos procedimentos tcnicos desenvolvidos por Duke Ellington para a sua banda que Herb Pomeroy encontrou os elementos que, organizados, resultaram na tcnica de arranjo linear.[...]Todo o material relacionado tcnica de arranjo linear uma compilao de anotaes detalhadas que, feitas em pocas distintas por trs alunos de Herb Pomeroy, foram confrontadas para a verificao da imutabilidade dos contedos. (OLIVEIRA, 2004 p.19-25)

    Como j mencionado anteriormente, os arranjos para big bands de Duke Ellington exerceram forte influncia sobre Moacir. Portanto, os conceitos da tcnica de arranjo linear serviro para fundamentar o trecho de carter contrapontstico de Coisa n5.

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    Tendo estes autores como principais referncias, e citando eventuais contribuies de outras fontes, analisamos a seguir os elementos harmonia, melodia e contraponto na Coisa n 5 de Moacir Santos.

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    5. ANLISE DO PARMETRO ALTURA EM COISA N 5

    5.1 FORMA

    Primeiramente, vamos mapear a Coisa n 5, compreendendo sua forma por sees: Forma geral do arranjo: I - Introduo A A B A - Tema

    A A B A - Soli8 M - Modulao A A B A - Tema

    C - Coda Forma da geral da composio9: A A B A C Passemos, agora, a mapear as sees:

    I Introduo: Total de 25 compassos Base introdutria: compassos 1 a 2 Introduo: compassos 3 a 10 Repetio da introduo: compassos 11 a 18 (orquestrao diferente) Prolongamento do acorde final: compasso 19 Introduo de A10: compassos 20 a 25 (2 de percusso e 4 seo rtmico-harmnica11)

    8 Soli, no jargo do jazz um termo que designa um trecho do arranjo escrito para dois ou mais instrumentos,

    que simula uma improvisao criada espontaneamente. Ver captulo Soli Writing, do livro Arranging for large jazz ensemble, de Dick Lowell e Ken Pullig. 9 Diferenciamos aqui a forma da composio considerando apenas suas partes fundamentais, excluindo

    introduo, repeties e modulao. Para comparao, trazemos a partitura de Almir Chediak no Songbook Bossa Nova 4 (ANEXO C), que apresenta tambm somente as sees A A B A C. 10

    Este trecho inicia ao fim da introduo, e por sua vez e introduz o tema A. 11

    Seo rtmica abrange no caso desta instrumentao, contrabaixo, violo e percusso. Veremos adiante, que Moacir utiliza timbres mistos. Desta forma, o trombone baixo dobra em todo arranjo a linha de contrabaixo, e trompete, sax alto, trompa e sax tenor so em vrios momentos, dobrados pela guitarra, portanto, estes instrumentos agrupam-se formando uma grande seo rtmico-harmnica.

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    Tema A A B A

    Total de 16 compassos A: compassos 26 a 28 A compassos 30 a 33 (repetio de A com final casa dois) B: compassos 34 a 37 A12: compassos 38 a 41

    Soli

    Total de 17 compassos O solo, sobre a forma A A B A antecedida pela anacruse de 1 compasso de flauta.

    Dos compassos 42 a 58.

    M Modulao Total de 2 compassos, do 59 ao 60. Esta modulao sbita de meio tom prepara a reexposio da msica, que de r menor

    segue em mi bemol menor at o fim, incluindo a parte C da composio.

    A A B A

    Total de 16 compassos Reexposio do tema no tom de mi bemol menor, dos compassos 62 a 76

    C - Coda Total de 9 compassos Seo final da composio, dos compassos 77 a 85.

    12 Esta seo A difere da primeira apenas pela sua ltima nota sol que substituda por um r. Por ser uma

    mudana sutil, no julgamos necessrio simboliz-la de outra maneira.

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    5.2 HARMONIA

    5.2.1 Anlise harmnica e funcional

    Realizaremos a anlise harmnica e funcional tomando como referncia os instrumentos da base, que so violo13, e contrabaixo. A figura abaixo traz os acordes para guitarra e cifra como na partitura:

    Figura 1 cifra e partitura dos acordes para guitarra

    Exceto pela introduo, o violo soa em toda msica. A transcrio de Adnet e Nogueira traz os acordes escritos apenas nas sees A e A, onde o violo dobra em unssono as vozes do naipe composto por trompete, sax alto, trompa e sax tenor, sempre a quatro vozes, deixando as fundamentais por conta do contrabaixo e trombone baixo. No restante, optaram por escrever apenas convenes14 na grade de guitarra no quarto compasso das sees B, e no primeiro e quinto compassos da seo C.

    O fato de escreverem os acordes em cifra nestas sees sinaliza, a princpio, uma maior flexibilidade na interpretao, o que d margem livre escolha das aberturas pelo violonista. Na seo B nota-se que Geraldo Vespar toca de maneira fixa, e sempre dedilhada, da mesma forma, ento sem tal liberdade. J na seo C, apesar de trazer somente cifra, o violo toca a mesma rtmica e dobra as alturas do naipe que realiza a harmonia. Fica claro que em A, A e C Moacir buscou propositadamente a integrao da guitarra ao naipe, na inteno de ouvir um timbre misto.

    13 A partitura anexa do arranjo traz uma guitarra na grade, que foi gravada por Ricardo Silveira no cd Ouro

    Negro. O arranjo original de Nan foi gravado pelo violo de Geraldo Vespar. 14

    Termo corrente na msica popular significando um desenho rtmico, sem alturas definidas, que deve ser executado por toda a seo rtmica, e que muitas vezes tem o objetivo de interromper a continuidade da levada.

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    Por no termos acesso partitura original, no h como saber se Moacir discriminou todas as notas do violo, contudo fica claro que nesta msica este instrumento completamente integrado ao arranjo, diferentemente da relao comum entre harmonia e cifra em msica popular, onde a abertura e rtmica dos acordes no so consideradas.

    O contrabaixo acstico responsvel por sempre tocar as tnicas dos acordes em A e A. J em B, tem uma atividade um pouco maior, utilizando tnicas e quintas. Em C, alm das tnicas executa um intervalo de quinta sobre o acorde de Eb7(#9).

    A prxima figura traz um esquema de anlise harmnica e funcional de Coisa n5, inspirado no livro Harmonia e Improvisao, de Almir Chediak:

    Figura 2 esquema de anlise harmnica e funcional

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    5.2.2 Consideraes sobre o tom

    De acordo com a anlise, estamos em concordncia com os autores da transcrio, no fato de que Coisa n5 foi composta sobre a tonalidade de r menor, um bemol na armadura, diferentemente do autor do Songbook Bossa Nova vol.4, que interpreta a msica na tonalidade de d maior ou l menor. Isto levaria a uma interpretao totalmente diferente das funes harmnicas dos acordes, anulando, teoricamente, a ambigidade existente no acorde de D7(#9), que certamente foi proposital no processo de composio de Moacir.

    5.2.3 Interpretaes dos acordes

    Seo A e A

    D7(#9) Acorde de funo tnica, primeiro grau, simbolizado pela cifra I7. Traz duas teras em

    sua formao, portanto um acorde maior e menor ao mesmo tempo, o que revela tal ambigidade. Ocupa a posio do primeiro grau, originalmente r menor com stima. A este acorde, adicionada a tera maior, f sustenido, que lhe confere a sonoridade blues, presente na harmonia de toda seo A.

    O historiador Eric Hobsbawm cita algumas peculiaridades do jazz dentre as quais a combinao de escalas africanas com harmonias europias. A expresso mais conhecida dessas peculiaridades a combinao da escala blue a escala maior comum com a tera e a stima abemoladas (1990, p.42). Esta informao sobre a origem sincrtica da ambigidade na utilizao da teras na msica negra, verdadeira ou falsa15, pode ter chegado a Moacir Santos via EUA, pas no qual bastante difundida, e que sobre ele exerceu grande influncia musical. Segundo as palavras do prprio compositor, chegou atravs do contato com Guerra-Peixe, que instrumentava um negro, com aparato tcnico para que sua msica soasse negra:

    15 Verdadeira ou falsa, porque no o foco deste trabalho investigar razes etnomusicolgicas para a validao

    de nossas afirmaes. Nos limitaremos aqui, a interpretar as intenes de Moacir Santos como compositor e arranjador.

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    M: Isso uma outra coisa [quando questionado sobre tera maior e menor]. Boa pergunta, que eu tenho o prazer de explicar: eu nas minhas aulas, na seo de aprendizagem do Moacir, eu fui formado pelo (compositor Csar) Guerra-Peixe, o finado Guerra-Peixe. Ele me ensinou uma coisa que, por exemplo... Guerra-Peixe era muito pesquisador. Ento ele me disse em uma ocasio que h coisas que... (canta o arpejo de um acorde maior com stima menor e nona aumentada) o negro nunca alcanou... (canta novamente, provavelmente referindo-se tera menor/nona aumentada). E: O Sr. est dizendo que isto um arpejo de um acorde maior com stima menor com a tera menor oitava acima, que tem carter negro? M: isso, mas o Guerra-Peixe me falou que o negro no alcanou... isso coisa dele, ele era muito pesquisador, ento no sei aonde ele arranjou isto. Pode ser uma inveno dele, eu no sei. (FRANA, p 143)

    Fica claro que para Moacir, a utilizao ambgua das teras uma referncia direta cultura negra. No conseguimos, por outro lado, interpretar o que Guerra-Peixe afirmava exatamente ao dizer que o negro nunca alcanou pelas palavras de Moacir, pois a linha de raciocnio interrompida. Moacir afirma no saber a origem da teoria de Guerra-Peixe sobre o que o negro no alcanou, que se refere s teras, pois diz que ele era muito pesquisador, ento no sei aonde ele arranjou isto. Pode ser uma inveno dele, eu no sei.

    Ian Guest prope uma escala relativa ao som deste acorde, e que fundamenta as escolhas de Moacir na melodia de Coisa n 5, em questo utilizao dos intervalos de nona maior, nona aumentada e tera maior, que descaracteriza uma sonoridade puramente pentatnica. o modo blues completo, que rene as pentatnicas maior e menor e suas respectivas blues notes16. Tal escala concebida para a utilizao em toda seqncia harmnica de 12 compassos de blues tradicional, como alternativa de rearmonizao modal (1996, p.111):

    Figura 3 modo blues completo

    16 O historiador Eric Hobsbawm cita algumas peculiaridades do jazz ,dentre as quais a combinao de escalas africanas com harmonias europias. A expresso mais conhecida dessas peculiaridades a combinao da escala blue a escala maior comum com a tera e a stima abemoladas (1990, p.42).

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    A7(b9,13) Acorde de funo dominante, que resolve no primeiro grau sinalizado por uma seta.

    Quinto grau da tonalidade, traz a tenso b9 relativa a escala de r menor, e a tenso 13, tomada por emprstimo modal da escala de r maior, o que causa uma sonoridade mista entre os tons maior e menor. Relaciona-se escala dominante diminuta, comum no contexto Jazz/Blues17.

    Figura 4 escala de l dominante diminuta

    G7(9,13) e G7(#9,b13) Acordes de funo subdominante, quarto grau da escala de r menor meldica.

    Novamente a sonoridade blues presente, e este acorde entendido como um IV7blues. Segundo Srgio Freitas, Todo acorde perfeito pode se fazer acompanhar por um IV7 grau a ele relacionado, coloquialmente chamado de IV7blues, em respeito a sua origem especfica nesta forma de arte, mas que hoje se v em uso nos mais diferentes contextos (2002, p. 156).

    Suas tenses so, no primeiro tempo do compasso, 9 e 13, relacionadas escala de r menor meldica, ou ao modo correspondente, sol ldiob7. No segundo tempo, suas tenses #9 e b13 so originadas do tratamento deste acorde como sendo do tipo dominante, (no da funo) que d margem utilizao da escala alterada18, proveniente do modo do stimo grau

    17 Segundo Dave Pozzi, em seu livro An approach to Jazz improvisation, a escala diminuta uma escala

    simtrica constituda por intervalos consecutivos de tom e semitom. [...] A terminologia para esta escala varia. Pelo fato da escala ser diminuta e posicionada sobre um acorde dominante com stima, o termo mais comum escala dominante diminuta. No original: The diminished scale is a symmetrical scale consisting of consecutive whole and half-step intervals.[...] Because the scale is diminished and positioned against a dominant seventh chord, the most common term is the dominant-diminished scale(1997, p.22) 18

    A escala alterada outra escolha escalar para complementar um tipo particular de acorde dominante com stima. A escala alterada o stimo modo da escala menor meldica.[...] esta escala perfeitamente construda para complementar um acorde dominante com stima, nona menor e quinta aumentada. No original: The altered scale is another scale choice to complement a particular dominant seventh chords design. The altered

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    do tom de l bemol menor meldico, ou escala frgia maior sobre um acorde de sol maior com stima menor que teoricamente prepararia d menor, procedimento tambm freqente no meio Jazz/Blues. Sobre substituies e re-harmonizaes estilsticas da msica popular do sculo XX, Freitas afirma que:

    Do ponto de vista da Harmonia, o Blues muito importante como uma espcie de formato laboratorial onde os msicos experimentaram os mais diversificados procedimentos de re-harmonizao, de substituio e de teste das equivalncias acrdico-funcionais, longnquas, e extremamente elaboradas. Foi sobre a forma rgida e fixa do Blues que a generalizao radical dos preceitos funcionais encontrou campo restrito para as mais audaciosas, descompromissadas e irrestritas experincias harmnicas.(FREITAS, 1995 p. 155)

    Figura 5 escalas de sol ldio b7, frgio maior e alterada

    C7(#9) O acorde de d com stima encontrado no stimo grau da escala de r menor, e tem

    funo subdominante. Aqui, o interpretaremos como um dominante de f maior, terceiro grau da escala de r menor.

    Tem a sensao de dominante secundria19 numa cadncia de engano20, pois prepara uma funo tnica, acorde de f maior, e resolve num acorde de mesma funo, primeiro

    scale is the seventh mode of the melodic minor scale. [...] this scale is perfectly constructed to complement a dominant seven flat-nine sharp-five chord. (POZZI, 1996 p.22) 19

    Dominante secundria, pois segundo Freitas o secundrio aponta para um acorde que na hierarquia funcional do campo harmnico, no o principal (no o primeiro grau) e sim, um acorde encontrado a partir do estabelecimento deste principal.(1995 p.75) 20

    O princpio da cadncia de engano estabelece que quaisquer(sic) processo cadencial preparatrio individualizado para um determinado acorde/grau, poder preparar qualquer outro dos acordes/graus pertencentes ao mesmo conjunto funcional do acorde meta que originou esta preparao(FREITAS, 1995 p.160)

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    grau. O ritmo harmnico tambm lhe confere esta funo dominante, est no segundo tempo do compasso, tempo fraco, posio de preparao e aproximao do repouso, ao contrrio de uma funo subdominante, que sentida atravs do afastamento do repouso. Freitas diz que essa posio, (mtrica mais fraca) caracterstica da funo de dominante, em quaisquer das suas manifestaes, desempenha sempre o papel de anunciar o prximo termo funcional (2002 p. 80).

    Sua tenso #9 explicada por este motivo: ela disponvel por emprstimo modal do dominante de f menor. A sonoridade da nota r sustenido sobre este acorde proveniente da nota enarmnica mi bemol, stima do tom de f menor, que mantida em conjunto com a tera maior adicionada pela escala de f menor harmnica, o que gera um dominante com as duas teras. Este procedimento produz a sonoridade da escala frgia maior, ou alterada, como j comentado anteriormente.

    Seo B

    Gm7: Acorde de funo subdominante, quarto grau da escala de r menor. Fm7, Bb7sus4 Estes acordes esto simbolizando com um colchete uma cadncia II V, e est tracejado

    porque substitui a cadncia Bm7(b5) E7 que prepara o quinto grau. Configura-se aqui uma cadncia substituta, simbolizada por subII e subV. Freitas (1995, p.116) prope que:

    Essa uma generalizao do conceito de substituio por trtono que introduz na Harmonia acordes no diatnicos, mas funcionalmente estabelecidos e disponveis para o uso nas estruturas cadenciais de [IIm7 V7] I que, a partir deste novo conceito, passam a poder se manifestar tambm como [SubIIm7 SubV7] I.

    Esta cadncia resolve no dominante da tonalidade que por sua vez resolve no primeiro grau, repetindo a seo A.

    Quanto modulao para mi bemol, e seo C, os acordes explicam-se com base nos mesmos argumentos, salvo que tudo acontece meio tom acima, na tonalidade de mi bemol menor.

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    5.2.4 Sobreposio entre naipes

    A partitura apresenta uma grade que conta com sete instrumentos no A e A e seis no B e C realizando a harmonia. Cinco so transpositores - trompete em si bemol, sax alto em mi bemol, sax tenor em si bemol, trompa em f. Os outros, trombone, trombone baixo, guitarra e contrabaixo lem em d. Esto agrupados por naipes, e no por tessitura, ento sax bartono e sax tenor esto acima da trompa. Tudo isto dificulta muito a visualizao e compreenso de como acontece o plano harmnico.

    Visando analisar a harmonia quando os naipes se sobrepem, reduzimos todos os instrumentos a um sistema com de pauta dupla. Este sistema conta com todas as notas da harmonia em d, sem transposio e sem repetir os unssonos. Os instrumentos que dobram a mesma nota foram colocados prximos em nossa reduo. Notas da melodia soando com valor acima de um tempo, ou seja, o valor da mnima pontuada, foram consideradas atuantes na harmonia, e sero analisadas como notas de acorde.

    Primeiramente, na base introdutria, contrabaixo e trombone baixo dobram a tnica,e o sax bartono faz o intervalo de quinta, conforme figura abaixo:

    Figura 6 reduo da harmonia da base introdutria

    Com a entrada da melodia, ouvimos sax alto e tenor dobrando em unssono a tera maior (c.4)21. Na continuao, a melodia toca tera menor e nona maior (c.5 e 6). Isto contribui para uma sonoridade dbia na harmonia, a utilizao, na melodia, de tera maior,

    21 Simbolizaremos a palavra compasso daqui em diante como (c.)

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    tera menor e nona maior, que remetem sonoridade afro, modal e no tonal. fato que no soam simultaneamente, poderamos considerar que a harmonia produz um r maior e a seguir um acorde de r menor que logo substitui sua tera pela nona.

    Figura 7 reduo da harmonia da introduo

    Consideramos este argumento desconexo com o carter afro desta introduo. A escala proposta por Ian Guest como o modo blues completo, caracteriza a sonoridade modal do momento, relativa a msica negra22, que gera a dubiedade pretendida por Moacir.

    Na repetio, a variao da orquestrao adiciona trompete dobrando a tera uma oitava acima dos saxes e flauta dobrando novamente a tera uma oitava acima do trompete (c.12). O mesmo ocorre com a tera menor e nona logo adiante (c.14), enfatizando as notas que geram a ambigidade do momento:

    22 A grande matriz africana, expresso pura da msica rtmica, cujo primado est no pulso, movimentando-se

    exclusivamente no campo modal, at seu encontro com as prticas musicais europias. (MIRANDA, apud CARVALHO, 2003 p. 103)

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    Figura 8 reduo da harmonia da repetio da introduo

    No acorde final, (c.18 e 19) ouvimos um grande bicorde23 de r tocado por nove instrumentos, onde sax bartono toca a quinta e todos os instrumentos tocam tnica em cinco oitavas diferentes, com trompa, sax tenor e sax alto dobrando.

    Figura 9 reduo do bicorde final da introduo

    5.2.5 Aberturas dos acordes (drops):

    Analisando a seo A, percebemos que os acordes so formados por cinco sons. A harmonia ouvida pelo trompete, sax alto, trompa e sax tenor, que so sempre dobrados em unssono pela guitarra. Contrabaixo trombone baixo dobram em unssono