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NA MI GRUPO DE PESQUISAS EM NARRATIVAS MIDIÁTICAS UNIVERSIDADE DE SOROCABA

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NAMIGRUPO DE

PESQUISAS EM NARRATIVAS MIDIÁTICAS

UNIVERSIDADE DE SOROCABA

Organização Míriam Cristina Carlos Silva

Monica MartinezDiogo Azoubel

Capa Carlos Augusto

Projeto gráfico e diagramação Luiz Guilherme Amaral

João Paulo Hergesel

Revisão João Paulo Hergesel

Diogo Azoubel

Apoio Técnico e InstitucionalTarcyanie Cajueiro dos Santos

Paulo Celso da SilvaDaniela Rosa

Rua João Walter, nº 289, sala 3 Votorantim – São Paulo(15) 996 031 010 | (15) 3247 1010

NAMIGRUPO DE

PESQUISAS EM NARRATIVAS MIDIÁTICAS

FICHA CATALOGRÁFICA

SILVA, Míriam Cristina Carlos; MARTINEZ, Monica; AZOUBEL, Diogo (ed.). Eduardo Coutinho em nar-rativas. Votorantim (SP): Provocare, 2016. 228p.

ISBN: 978-85-62263-02-6.

1. Comunicação. 2. Cultura. 3. Narrativas Midiáticas. 4. Eduardo Coutinho.

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruí-na e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

(Walter Benjamin, Sobre o conceito da História, p. 223)

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃODiogo Azoubel

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ELIZABETH TEIXEIRA: a dama do documentário de Eduardo CoutinhoJurani O. Clementino

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BOCA DE LIXO E A ESCUTA DOS RESTOS SOB A HISTÓRIAAna Carolina Cernicchiaro

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O MÉTODO DA COMPREENSÃO NAS ENTREVISTAS DEEDUARDO COUTINHO EM EDIFÍCIO MASTER

Erica Aparecida Domingues e Tarcyanie Cajueiro Santos29

MAPEAMENTO DA PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE EDUARDO COUTINHOMíriam Cristina Carlos Silva, Monica Martinez e Tadeu Rodrigues Iuama

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SANTO FORTE OU COMO NARRAR DIANTE DO ENIGMA DO REALPedro Felipe Moura de Araújo

55

A CONSTRUÇÃO DE UM DIÁLOGO FABULADORNA NARRATIVA DE EDUARDO COUTINHO

Roberto Abib Ferreira Júnior67

CENAS DE UMA IGUALDADE TEMPORÁRIAThales Vilela Lelo

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CABRA MARCADO PARA MORRER: análise histórica, descritivae interpretativa das imagens de capa do documentário

Diogo Azoubel95

A ACOLHIDA NO LIXÃO: avizinhamento e formas de exposição

no documentário Boca de LixoDiego Baraldi de Lima

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O JOGO DA ENCENAÇÃO NO CINEMA DE EDUARDO COUTINHOFelipe Diniz

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O DISPOSITIVO DE CRIAÇÃO EM JOGO DE CENAGabriela Machado Ramos de Almeida e Augusto Ramos Bozzetti

137

O FIM E O PRINCÍPIO: dispositivo estilhaçado e vigor da oralidadeLaécio Ricardo de Aquino Rodrigues

151

O CINEMA DE EDUARDO COUTINHO COMO NARRATIVADE CONSCIENTIZAÇÃO SOCIAL: uma análise de Boca de Lixo

Thífani Postali163

AS CANÇÕES X JOGO DE CENA: análise comparativada composição imagética dos documentários

Diogo Azoubel e Maria Thereza Gomes de Figueiredo Soares173

O CANTO AMADOR NO DOCUMENTÁRIO DE EDUARDO COUTINHOCristiane da Silveira Lima

193

AS POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÃO ENTRE O MODODE ENTREVISTAR DE EDUARDO COUTINHO E DOS JORNALISTAS

DE TELEVISÃOGreici Audibert e Ilka Goldschmidt

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Equipe225

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APRESENTAÇÃO

Eu sempre achei que a trava dele com o mundo, a inadequação confessa, a de-dicação ao fumo, o olhar severo, embora humorado, fosse herança da esquer-da. Como também achei que o cigarro o mataria. Nem uma coisa nem outra. A delirante realidade, como nos seus melhores filmes, superou a ficção.

(Fernanda Torres, em Sete Anos – Crônicas)

A ideia de criar este livro surgiu de uma conversa informal com as professoras Míriam e Monica nos corredores da Universidade. Entre considerações e sugestões de leituras para os encontros do Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Nami-Uniso/CNPq), decidimos encarar o desafio de organizar os resultados das pes-quisas desenvolvidas pelos membros do Grupo em uma publicação que potencializas-se a problematização das narrativas – em suas diversas formas e matizes – no Brasil. Àquela altura, debatíamos a obra do cine documentarista Eduardo Coutinho, tema dos nossos encontros e reflexões no ano de 2015. Assim, o pensamento de aglutinar a inspiração de Coutinho ao esboço do projeto que elaborávamos veio naturalmente e, quando nos demos conta, lá estava, firme, conduzindo as etapas do processo criativo aqui traduzido.

Em Depoimento: Coutinho era sedutor, tímido e cruel, conta Fernanda Torres, pu-blicado em 04 de fevereiro de 2014 na Ilustrada da Folha de S. Paulo e relançado como Coutinho, parte do livro Sete Anos – Crônicas (Companhia das Letras, 2014), a atriz e es-critora expõe detalhes da relação com Eduardo. Marcada pelo olhar severo e pelo cari-nho, revela a pluralidade de um dos personagens mais marcantes do cinema nacional.

Como velho comunista que era, acho que Coutinho, embora carinhoso, tinha muitas reservas com relação a pessoas como eu. Ele usava palavras como “estrela” e “celebridade” para me definir. Era muito sedutor, apesar de tímido, e muitas vezes cruel nos comentários (TORRES, 2014, s.p.).

E é justamente dessa pluralidade que partimos para ampliar a chamada de es-tudos, antes restrita ao próprio Nami, à comunidade científica nacional. O número de propostas de capítulos recebidas superou quaisquer que fossem nossas expectativas. De pós-doutores a alunos de graduação, é dessa multiplicidade de olhares e narrati-vas que decorrem o nome dado à publicação e as variadas abordagens nela reunidas. Com produções de pesquisadores ligados a Instituições de Ensino Superior (IES) de estados como Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, acreditamos ter reunido um conjunto de métodos investigativos compatível com a própria natureza das obras de Eduardo Coutinho: plural.

EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

GRUPO DE PESQUISAS EM NARRATIVAS MIDIÁTICAS (NAMI)

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Multifacetado

Para entender o processo produtivo de Coutinho, é preciso estar atento às diferenças narrativas que marcam seu legado. Por ocasião do lançamento de Últimas conversas (2015), Jordana Berg, parceira de quase duas décadas do cineasta, revelou particularidades da lógica criativa presente em cada obra. Entre pontos de convergên-cia, a montadora indica multifacetadas “regras do jogo”:

O processo dele era mandar transcrever o material todo para um caderno com o time code de tudo. Eu recebia esse caderno. A minha versão era di-gital, e a dele, impressa. Ele marcava neste caderno as coisas que o interes-savam, que não era necessariamente o que acabaria entrando no filme. Era como se fosse um primeiro select manual. Ele escrevia coisas ao lado, em geral temas que o interessavam: família, filhos, religião, deus, morte, etc., ou alguma palavra que lhe chamou atenção, alguma frase diferente, desco-munal, etc. Eu marcava no meu caderno digital tudo o que me interessava e depois o caderno dele vinha para mim (isso como era sempre antes de ele morrer). E aí eu ia fazendo no computador, numa timeline, uma acomodação entre as minhas escolhas e as dele, no Final Cut. Como trabalhamos juntos de 1995 a 2013, 19 anos, ao longo dos anos meus selects foram ficando pra-ticamente idênticos aos dele. [...] (GALANTERNICK, 2015, s.p.).

Filme marcado pelas tensões do diretor consigo mesmo, Últimas conversas traz à tona um Eduardo Coutinho impaciente quando diante de jovens estudantes de escolas públicas do Rio de Janeiro para tratar de temas relativos à vida e à morte, família, memória e religião.

Na entrevista intitulada Últimas conversas de Jordana com Coutinho – con-tém Spoilers, concedida à montadora Nina Galanternick e publicada em 10 de abril de 2015, Jordana retoma o método de trabalho antes citado ao tratar do documentário. “O material bruto era composto por 32 horas, mais ou menos 30 entrevistas. [...] Ele estava muito infeliz com o filme, achando que não tinha filme, que deu errado – foi um processo complicado”.

Dirigido por Eduardo Coutinho, montado por Jordana Berg e finalizado por João Moreira Salles, a obra final do realizador estava em fase de “confrontar as obser-vações”, como revela Berg a Luiz Carlos Merten no texto Últimas Conversas, o derradeiro documentário de Eduardo Coutinho, publicado em 07 de maio de 2015.

João (Moreira Salles) e eu experimentávamos o mesmo mal-estar. Querendo ser fiéis a Coutinho, sentíamos como se o estivéssemos traindo. E aí eu co-mecei de novo – ganhei até um novo cachê. Essa nova montagem, que foi a que ficou, resgata o processo, mas deixa claro que foram três etapas. O filme foi feito por uma pessoa, montado por outra e finalizado por uma terceira. Por uma questão de honestidade, incluímos não só o crédito como a fala do próprio Coutinho, quando ele expressa suas dúvidas (MERTEN, 2015, s.p.).

Apesar disso, o processo de inclusão dos personagens no filme seguiu a lógica dos documentários anteriores, na qual “rainhas”, “bispos” e “peões” são intercalados na

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

montagem da obra para preservar o ritmo narrativo, conforme explica Jordana Berg:

A gente costumava dividir os personagens entre peões, bispos e rainhas. Os peões são personagens bem curtos que entram para ajudar a narrativa ir para frente, os bispos são personagens mais fortes, mas que não são extre-mamente luminosos, em termos de tamanho são médios. E as rainhas são os grandes personagens, aqueles que duram um bom tempo, tipo a D. Tereza do Santo Forte (GALANTERNICK, 2015, s.p.).

Nessa direção, e com as rubricas em mãos, a efervescência das subjetividades nos filmes de Eduardo decorre, em parte, da preocupação de criar narrativas redondas, claras, mas, sem serem vulgares, pautadas na composição dramatúrgica das cenas.

Existiu uma deliberação em não dar todas as informações, para que o es-pectador possa imaginar ou a informação é importante? O Coutinho, apesar de ser um cara ultra-sofisticado (sic) e ter um nível de subjetividade muito grande nas coisas que ele pensa e faz, ele é muito concreto, então a gente em geral não trabalha com essa lógica do que vai dar para o espectador ou não. Ele quer que a história fique clara, isso é uma preocupação muito firme. [...] A gente fazia juntos uma composição dramatúrgica, que tivesse ritmo e os peões serviam para isso, entre uma rainha e outra ou entre rainha e um bispo tinha um peão ou dois. Inclusive na montagem, a gente tinha um quadro, onde cada um tinha um cartão com uma cor diferente, assim a gente visualizava rainha, bispo, etc. Raramente você vê num filme dele duas rainhas seguidas (GALANTERNICK, 2015, s.p.).

Ao considerar essa subjetividade concreta – se é que podemos nos referir as-sim a essa lógica produtiva – e longe de carregar certezas, as narrativas científicas que reunimos nos permitem visualizar a obra de Eduardo Coutinho por diversos prismas e perspectivas. E são justamente essas diferentes maneiras de ver que possibilitam o alcance de falas ligadas à memória, tão buscadas pelo diretor em seus filmes. Tal fato contrapõe a afirmação de Berg no sentido de que “ele não acreditava em jovens, por-que ele trabalha muito a fala ligada à memória e ele acreditava que jovens não lem-bram, só vivem o presente” (GALANTERNICK, 2015, s.p.). Neste livro, ao contrário, são justamente as diversidades de olhares, de métodos, de estados e de regiões do Brasil que nos possibilitam viajar e interagir com os universos traduzidos e desvendados no legado de Coutinho.

Organizados pela ordem de envio de suas versões finais aos editores, os ca-pítulos que seguem são precedidos pela entrevista concedida por Elizabeth Teixeira, dama do documentário de Coutinho, a um de nossos pesquisadores colaboradores. Isso posto, só nos resta desejar boa leitura.

Até breve!

Diogo Azoubel

GRUPO DE PESQUISAS EM NARRATIVAS MIDIÁTICAS (NAMI)

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REFERÊNCIAS

GALANTERNICK, Nina. Últimas conver-sas de Jordana com Coutinho – contém Spoilers. edt.: associação de profissionais de edição audiovisual, 10 abr. 2015. Dis-ponível em: <http://edt.org.br/noticias/ultimas-conversas-de-jordana-com-cou-tinho-contem-spoilers>. Acesso em 02 mar. 2016.

MERTEN, Luiz Carlos. Últimas Conversas, o derradeiro documentário de Eduardo Coutinho. O Estado de São Paulo, 07 maio 2015. Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,ultimas--conversas-o-derradeiro-documentario--de-eduardo-coutinho,1682521>. Acesso em 02 mar. 2016.

TORRES, Fernanda. Depoimento: Couti-nho era sedutor, tímido e cruel, conta Fer-nanda Torres. Folha de São Paulo, 04 fev. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/02/1406969--encantavam-o-mau-humor-persisten-te-a-magreza-de-santo-o-cigarro-e-a-iro-nia.shtml>. Acesso em 02 mar. 2016.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

ELIZABETH TEIXEIRA: a dama do documentário de Eduardo Coutinho

1 Entrevista realizada em 15 de setembro de 2015. Jurani O. Clementino é jornalista, doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Campina Grande – PB (PPGCS-UFCG). Professor dos cursos de Comunicação Social – Jornalismo do Centro Universitário do Vale do Ipojuca (UNIFAVIP, Caruaru) e Publicidade e Propaganda do Centro de Educação Superior Reinaldo Ramos (CESREI, Campina Grande). E-mail: [email protected].

Ela tem 90 anos. Conheceu Eduardo Coutinho em abril de 1962: estava participan-do de uma manifestação

contra o assassinato de seu esposo, o líder camponês João Pedro Teixeira, na cidade paraibana de Sapé. Em fevereiro de 1964, foi com Eduardo Coutinho até Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, para filmar Cabra Marcado para Morrer (1964-1984). Dois meses depois, as filmagens foram interrompidas por conta do Golpe Militar. Elizabeth foi presa, fugiu, saiu da Paraíba e se escondeu em uma cidade do interior do Rio Grande do Norte. Depois da Dita-dura, Coutinho retomou as filmagens da obra e encontrou Elizabeth vivendo de forma clandestina, separada dos filhos, da

família, dos amigos... Concluído o docu-mentário, ela o acompanhou em algumas sessões de lançamento do filme, retomou a luta em defesa do trabalhador rural e recebeu homenagens por onde passou. Em 2013, 30 anos depois daquele primei-ro encontro com Coutinho, o cineasta retornou à Paraíba para gravar um extra para o DVD da obra. Desse último encon-tro resultou o documentário A família de Elizabeth Teixeira (2014). Nesta entrevista, exploramos a relação dela com o cineas-ta, a importância do trabalho de Coutinho para a vida de Elizabeth, os encontros e desencontros dos dois, as tragédias e os conflitos familiares, bem como a saudade do marido assassinado.

por Jurani O. Clementino1

GRUPO DE PESQUISAS EM NARRATIVAS MIDIÁTICAS (NAMI)

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Jurani O. Clementino: Dona Eli-zabeth, como a senhora conheceu o ci-neasta Eduardo Coutinho?

Elizabeth Teixeira: Ah! Eu co-nheci Eduardo Coutinho na minha casa. Ele foi diretamente conversar comigo e fazer o convite para participar do movi-mento, da luta dele, né? Foi uma perso-nalidade muito boa, muito boa. Foi lá em Sapé, antes da Ditadura, mais ou menos assim, em 1962. Ele tomou conhecimento da morte de João Pedro e foi me procu-rar. Chegou lá, conversou comigo e disse que estava para me ajudar na luta. Se eu precisasse de qualquer coisa, falasse para ele. Ai, eu fui presa, né? Foi difícil. Tive que abandonar os meus filhinhos, dois foram assassinados porque diziam: “Olhe, minha mãe, mataram meu pai; mas, quando eu ficar homem de maior, eu assumo a luta dele. Eu quero fundar um sindicato, não vou para nenhum que já está aí funcio-nando. Eu tenho que procurar um local e fundar um sindicato rural e dar conti-nuidade à luta de meu pai”. Eu dizia: “E é, meus filhos?”. “É, eu tenho que continuar a luta de meu pai”, eles diziam para mim e mais para outras pessoas, ainda tudo pe-queno. “Meus filhos, vocês vão continuar a luta?”. “Vamos continuar a luta de meu pai, fundando os sindicatos rurais nesse País, continuar a luta por uma reforma agrária”. Eu dizia: “E é, filhinhos?”. “É”. Acontece que, com o Golpe Militar, eu fui presa e, quan-do eu estava presa, a menina mais velha, a Marluce Teixeira, já tinha se suicidado por-que Antas do Sono e Engenho Melancia [fazendas] botaram oito moradores para fora, oito trabalhadores. Naquela época, eu, como presidente da Liga Campone-sa, eles vieram na minha casa pedir uma ajuda para que eu chegasse até lá, falas-se com o senhor dos engenhos que eles não podiam sair. Tinha deles que estavam com oito filhinhos morrendo de fome. Eu

disse: “Tá certo”. E fui. Quando cheguei lá, falei, eles deram as costas para mim, os proprietários, senhor de engenho. Eu dis-se que ele tinha botado aqueles homens para fora, mas eles não podiam sair. Como pais de oito filhos, não tinham condições. Tinham que continuar morando, ficando ali mesmo na casa. Eles calados estavam, calados ficaram. Nenhum me deu respos-ta, nem o do Engenho Antas, nem o do Engenho Melancia, nenhum. Voltei para casa e, quando cheguei, chegou um carro grande, cheio de policial, e um pequeno. Quando saltaram do carro foram entran-do, rodeando a minha casa e dando tiro em volta. Foi tanto tiro no mundo que a menina mais velha, Marluce, me abraçou e disse: “Mainha, você vai presa, mas não vai ter o direito de voltar porque, assim como assassinaram meu pai, vão assassi-nar a senhora também. A senhora não vai ter o direito pela quantidade de policias que estão aí dando tiro em volta da nossa casa”. Eu disse: “Minha filha, eu volto”. “Vol-ta não, mainha, você não volta!”. Eles dis-seram [os policiais]: “Entra no carro, entra, sobe!”. E quando eu fui subindo, um botou a arma aqui [apontando para o ombro], o outro aqui [em frente ao rosto], e come-çaram a dar tiro assim, às minhas costas. Era tiro, tiro, tiro... eles davam muitos ti-ros para me intimidar e eu abandonar a luta, porque quando eu assumi o lugar de João Pedro, as companheiras, mulhe-res dos trabalhadores do campo, vinham todas me abraçar, prestar solidariedade, dizer que estavam comigo, que nunca es-peravam que uma pessoa como eu fosse dar continuidade àquela luta. Foi muita bala, meu filho. Aí, fui presa. Quando eu cheguei aqui em João Pessoa, falei para o delegado como foi a minha situação lá no engenho, da volta para casa e da polícia com aquela má intenção de dar tantos ti-ros em volta da minha casa e às minhas costas. O delegado me liberou, né? Quan-

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do ele me liberou, outro companheiro da Liga Camponesa já estava na porta dele com o carrinho para voltar comigo. Quan-do eu cheguei em casa, a minha filhinha, foi comprar veneno ali em Antas do Sono [Sapé-PB]. Barra de Antas tinha um arma-zém muito grande. A igreja católica e o armazém que vendiam produtos para os proprietários das usinas dali. Ela comprou o veneno, ingeriu e estava na cama mor-rendo. Ela disse: “Mãe, estou aqui, eu não vou escapar, vou morrer”. Aí, o menino da Liga, que foi comigo, o companheiro, disse: “Dona Elizabeth, vamos voltar com ela para João Pessoa”. Voltamos e, quan-do chegamos lá para tirá-la do carro para apresentar para o médico, ela estava mor-ta. Chamei o médico que foi até lá, olhou e disse: “Tá morta”. Foram muitos momen-tos difíceis na minha vida, que eu penso assim, meu filho: “Como é que hoje eu ainda tô viva? Na idade que já estou ainda estar viva”.

JC: E sobre a sua relação com a gravação do filme Cabra Marcado para Morrer?

ET: A minha relação foi boa, ma-ravilhosa. Eu gostei muito. Eduardo que fez o filme foi quem me resgatou da pri-são em São Rafael e trouxe diretamente para esta casa quando terminou a Dita-dura. Esta casa foi ele que comprou e me deu porque eu não tinha uma casa para morar. Só se eu fosse morar com a minha filha Marizé, que mora ali... [apontando para uma rua ao lado]. Quando ele foi me resgatar, já tinha comprado a casa. Quan-do eu cheguei aqui, duas camas de soltei-ro, que ele comprou, porque da casa em que eu morei (RN) ninguém tirou nada. Ficou tudo lá. Cama de casal, cadeiras, coisas do tempo de João Pedro. Eduardo Coutinho foi uma personalidade muito boa. Já morreu, não é, meu filho?

JC: Como foi que a senhora ficou sabendo da morte de Eduardo Coutinho?

ET: Foi um companheiro, daqui mesmo de João Pessoa, que veio na mi-nha casa me dizer, né? Eu me senti muito triste. Eu fui pro meu quarto, fiquei lá na minha cama a noite toda pensando. Eu me senti muito triste porque foi uma pes-soa muito boa para mim. Eduardo Couti-nho foi quem me ajudou muito quando eu não tinha nada. Que Deus abençoe Eduardo.

JC: Como foi que o Eduardo Cou-tinho descobriu a senhora lá em São Ra-fael, no Rio Grande do Norte?

ET: Ele descobriu porque ele fa-lou com o delegado, com o menino do exército onde eu fui presa duas vezes, né? Quando saí, falei para esse menino do exército: “Eu vou para São Rafael. É para onde eu vou. Porque ele vai me tirar dire-to para lá” [se referindo a um companhei-ro de Pernambuco que teria um amigo em São Rafael e que a levou para traba-lhar colhendo batatas e algodão na fazen-da dele]. Ele falou com o menino porque sabia que eu tava presa no exército, viu? Ele sabia tudin’ e foi direto para lá me res-gatar. Quando veio a anistia, fui resgatada por Eduardo Coutinho, que me trouxe di-reto para esta casa aqui.

JC: Eduardo Coutinho chegou a São Rafael acompanhado pelo seu filho mais velho, o Abraão. Como foi esse reen-contro?

ET: Foi, ele chegou com o meu filho mais velho, Abraão Teixeira, que já morreu. Meu encontro com o mais velho dos homens foi maravilhoso. Já o Isaac é médico, estudou em Havana e traba-lha em Fortaleza (CE) hoje. Ele estudou lá porque quando o governador, o presi-dente lá de Havana, soube que João Pe-dro foi assassinado e que eu tinha ficado

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com 11 filhos, mandou me ver para eu ir morar lá com todos os meus filhinhos. Só que eu tinha um compromisso aqui. Eu assumi esse compromisso da luta na Paraíba. Quando ele mandou me ver, um carro grande veio me pegar com todos os filhos. Isaac foi como estudante, já ti-nha terminado a primeira série aqui, né? Ele disse: “Mãe, eu vou para Havana. Eu vou estudar lá. Fidel vai me dar o estudo”. Abraão já estava se formando em jorna-lismo e ficou. Abraão se formou jornalista e Isaac médico. Ele trabalha em Fortaleza, mas mora e tem uma casa aqui. Só vem de oito em oito dias, de mês em mês.

JC: Dona Elizabeth, o filme Cabra Marcado para Morrer, do qual a Senhora acabou se tornando uma personagem central, foi gravado em momentos dife-rentes, tanto de tempo, quanto de espa-ço. Eduardo Coutinho começou a filmar na Paraíba (na região de Sapé) e depois se deslocou para Pernambuco. Você viajou com ele para cidade de Vitória de Santo Antão. Como foi esse momento?

ET: A gente filmou aqui e a gen-te filmou em Pernambuco. Ele me filmou não só aqui na Paraíba, mas também em Pernambuco e ainda parece que teve umas filmagens no Rio [de Janeiro], com os meus filhos. A viagem para gravar em Pernambuco foi ótima. Lá não me faltou nada, graças a Deus. Eu fiquei lá e o me-nino que fez o filme me ajudava muito. Quando eu vim para cá ele me deu uma ajuda para eu fazer uma feirinha. Comprar as coisas que tava precisando para dentro de casa. Eu tava com uma vontade tão grande de ver ele.

JC: Mas a senhora viu o Coutinho recentemente não foi? Ele esteve aqui na sua casa em 2013 quando veio gravar o filme A família de Elizabeth Teixeira. Como foi esse ultimo encontro de vocês?

ET: Foi, ele veio aqui. Veio falar comigo, me abraçar e muito contente. Ele veio e gravou outro filme comigo. Ele quando me via era só para gravar comi-go. Ele queria que eu fosse do filme dele, não era? Teve aqui para gravar a história de Elizabeth Teixeira. Eu me sentia orgu-lhosa por isso. E quando soube da noti-cia que ele tinha morrido eu me senti tão assim, porque eu ia procurar ele de novo para conversar. Ele conversava muito mais eu. Era uma pessoa muito boa ele. Da última vez que ele veio aqui, a gente foi lá no centro. Ele me chamou para ir lá almoçar ou jantar. Ele queria que eu fosse no centro mais ele e de lá voltava. Ele era uma pessoa muito assim... gostava muito da minha pessoa. Me tratava muito bem. Da última vez que ele esteve aqui, parece que ele ficou dois dias e foi embora.

JC: A senhora acompanhou o lançamento de Cabra Marcado para Mor-rer quando ele foi concluído nos anos de 1980?

ET: Acompanhei. Agora eu tô até esquecida, mas eu acompanhei, sim.

JC: A senhora visita sempre o es-paço do museu em Sapé, onde é guarda-da a memória das Ligas Camponesas?

ET: Faz é tempo que eu não vou lá.

JC: A senhora ficou sabendo o motivo da morte de seu amigo Eduardo Coutinho?

ET: Sei não, meu filho. Ninguém me falou. Até hoje, ninguém me falou nada. Eu só sei que ele morreu. Disseram: “O Eduardo morreu”. Mas das razões da morte dele eu não tenho conhecimento de nada.

JC: A senhora sabe da sua impor-tância, após a morte de João Pedro Teixei-

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

ra, na luta por melhores condições de vida para o homem do campo? Hoje, aos 90 anos, como é que a senhora vê esse tem-po todo de luta, o fato de ter se tornado essa referência para as novas gerações?

ET: Eu vejo assim: Deus é quem nos ajuda. Deus é quem nos dá aquela força. Porque, assim como João Pedro foi assassinado, eu, ficando com 11 filhos, nunca pensei que tivesse coragem de en-frentar aquela luta do João Pedro. No dia a dia, na luta camponesa, precisei deixar meus filhinhos tudo em casa e ir enfrentar a luta do companheiro do campo, o so-frimento deles que me convidavam para falar com o proprietário da terra sobre a situação deles. Eu me lembro assim, como é que eu tive aquela coragem? Porque com João Pedro vivo, eu nunca pensa-va em enfrentar, dar continuidade a luta dele. As prisões, ficar presa um dia, dois, três, voltar para casa, abraçar meus filhi-nhos. Ver a minha filha mais velha se suici-dar, ouvir a quantidade de tiro que deram ao redor da minha casa... isso foi muito difícil. Hoje me deito e penso como é que uma criatura passa pelo que eu passei na vida? Tudo porque meu pai não aceitou o meu casamento com João Pedro. Meu pai era um homem rico, tinha muito dinheiro. Ele não aceitou de jeito nenhum. Eu fugi e me casei em Cruz do Espírito Santo (PB), na igreja e no civil. Papai tinha dois vigias da noite, todos dois dormindo na hora que o carro chegou. João Pedro não tinha carro, era do tio dele, que era gerente do Engenho Massangana, no município de Cruz do Espírito Santo. Ele pegou o carro do tio, o motorista e foi me ver. Eu fugi da casa do meu pai, que queria que eu me casasse com uma pessoa rica. Meu pai só pensava em riqueza. É tanto que depois que eu já tinha quatro filhinhos [Marluce, Abraão, Isaac e Marta], meu pai encheu um baú grande de dinheiro, um baú chei-nho de dinheiro, comprou um carro, que

eu pedia e ele dizia que eu era “de menor”. “Só quando você for ‘de maior’ e souber dirigir”. Ele comprou um carro, um mo-torista e mandou me ver já aqui, no sítio Barra de Antas [Sapé], a gente tinha vin-do de Recife, eu mais João Pedro. Foi no sítio que João Pedro teve conhecimento dos engenhos. Eu não sabia que ele tinha aquele espírito de luta. Ele gostava mui-to de ler jornal. Aí, acontece que papai mandou me ver, no carro, com o moto-rista dele. João Pedro disse: “Vá, minha fi-lha, saber o que é que tá acontecendo lá”. Quando cheguei lá, meu pai disse: “Minha filha, eu mandei lhe ver, sua mãe está ai dentro, não vai sair para te ver, só quan-do você resolver uma coisa aqui comigo. Olhe este baú, quero que você abra e veja, dentro ele tá cheio de dinheiro. Ele é todo seu, se você deixar aquele negro pobre com os filhos dele. Se você deixar tudo lá”. Eu disse: “Meu pai, o senhor manda me chamar para esse assunto?”. “É, abra o baú e veja”. Eu disse: “Não vou abrir baú, não”. “Não vai abrir?”. Eu disse: “Não”. Papai abriu o baú e disse: “Esse carro novinho que tá ali na frente, independente dos meus carros que tão aí, é seu. Comprei, é seu. Tá logo ali na frente. Esse baú é seu. Você não precisa voltar mais porque nós vamos para loja, você compra a roupa que quiser. Deixe aquele negro. Você trouxe os seus documentos?”. Eu disse: “Meu pai, o se-nhor mandou um convite para vir aqui e a conversa é essa?”. Ele disse: “É. Quero que você se separe daquele negro”. “Papai, eu vou voltar”. Ele disse: “Vai voltar? Pois sua mãe não vai sair para falar com você, não. Só sai se você abandonar ele”. Aí, eu disse: “Pois, papai, eu vou entrar no carro e vou voltar”. Eu entrei no carro com o motorista e quando eu cheguei em casa João Pedro disse: “O que foi?”. Eu contei e ele disse: “E foi, minha filha? Foi esse assunto? Seu pai mandou lhe ver para você deixar os filhi-nhos?”. Eu disse: “É, papai quer que eu me

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separe. Me ofereceu um baú cheio de di-nheiro e um carro novo que eu tinha pedi-do a ele quando eu tava em casa, solteira. Papai quer a minha separação”. Aí, ele dis-se: “Ave Maria!”. Foi um momento muito difícil. Eu penso até hoje, com a idade que estou, ainda estar viva. Só pode ser Deus. Porque foi muito momento assim, difícil, trabalhoso.

JC: Dona Elizabeth, é notório que a senhora viveu muitas tragédias familia-res [os conflitos de João Pedro com o seu pai, o assassinato dele, o suicídio de sua filha mais velha, a separação dos filhos, o período distante sem notícias e, mais re-centemente, um de seus filhos, João Pe-dro Filho, que tirou a vida do irmão, Zé Eudes, por uma disputa pela propriedade da terra], tudo isso em boa medida regis-trado por Eduardo Coutinho nos filmes Cabra Marcado para Morrer e A Família de Elizabeth Teixeira. No entanto, o próprio Coutinho foi vítima de uma tragédia fami-liar ao ser brutalmente assassinado pelo próprio filho no seu apartamento no Rio de Janeiro. Ele conversava, partilhava a vida particular dele com a senhora?

ET: Não conversava, não. Nunca falava sobre a vida dele. Quando falava comigo queria saber se eu estava bem. “Tá se sentindo bem?”. Eu dizia que às ve-zes tava sentindo muita dor de cabeça...

JC: Dona Elizabeth, a literatura sobre a sua família faz referência clara à relação difícil de você com seu pai. Cabra Marcado para Morrer, inclusive, traz uma imagem que reforça o discurso de um ho-mem de difícil convivência, de diálogo, etc. A sua mãe é uma figura que pratica-mente não aparece nessas narrativas e, quando surge, é na figura de uma mulher omissa, passiva. Como ela era?

ET: A minha mãe era assim, uma pessoa muito calada, muito na dela. Ela

não cuidava de nada de serviço de casa porque tinha empregada para tudo, né? Para cozinhar, fazer a faxina. O negócio dela era viver deitada no quarto. Se levan-tava só naquela hora de tomar um banho, penteava o cabelo e voltava pro quarto. Minha mãe era uma pessoa muito calada, não gostava de conversar, não.

JC: A senhora acha que herdou de quem esse espírito guerreiro e essa maneira espontânea de falar?

ET: Eu não sei, meu filho [risos]. Porque meu pai não era. Minha mãe não era. Eu não sei a quem foi que... sei não. Da minha pessoa mesmo, né? Eu assumi o movimento, a Liga Camponesa, o sindi-cato de lá, falando com os trabalhadores. Tinha que falar, tinha que fazer comício, falar sobre a luta, sobre a Reforma Agrá-ria. Eu não sei a quem foi que eu puxei. Isso foi um dom mesmo que saiu da mi-nha pessoa e eu dei continuidade à luta, a conversar, falar, para o homem do campo como era a situação difícil de resolver o problema da terra. Acontecia de chora-rem porque não tinha terra para plantar, para alimentar seus filhinhos. O salário não dava para comparar nada naquela época. Muito difícil a luta, a vida do cam-po, do trabalhador. E eu enfrentar, tendo um pai rico, uma mãe com dinheiro, para eles não faltava. Meu pai era muito rico, tinha uma mercearia, matava boi toda se-mana. A comida na casa dele era de so-bra. Ele colocava os restos pros porcos, pros cachorros. Ele criava muita galinha. Ele tinha muita terra, muito gado, muito cavalo, muito burro. Ele comprava era um caminhão cheinho de aguardente para vender na mercearia dele. Vendia muita cana, muito aguardente. Iam os proprie-tários de terra tudin’ fazer feira lá no cam-po. Toda semana ele matava um boi lá na casa dele. Tirava as carnes para comer e vender aos pequenos proprietários. Meu

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pai era um homem de condições. Eu casei com um rapaz pobre, porque João Pedro não tinha condições, mas tinha amor e muito carinho para me dar e me ajudar. João foi quem me ensinou a cozinhar. Eu nunca cozinhei na casa de meu pai. Teve uma cozinheira que cozinhou 20 anos na casa dele. Saiu porque já tava velhinha. João Pedro me ensinou. Eu era quem cozinhava. Eu casei com um rapaz po-bre tendo sido criada como uma menina rica. Eu era quem lava a roupa, era quem cozinhava. Na casa de meu pai tinha la-vadeira, tinha cozinheira, tinha faxineira para deixar tudo limpo. Ninguém nunca fez trabalho nenhum de casa. Eu me casei com um rapaz pobre, era eu quem fazia tudo. Tudo... tudo era eu quem fazia. Co-zinhava, lavava a roupa de João Pedro, a minha, a de meus filhinhos tudin’. Quem fazia a luta de casa toda era eu. E valeu a pena. Até hoje o que eu sinto na minha vida foi o assassinato do meu João Pedro Teixeira. Uma pessoa tão boa que era, to-dos os dias quando ele saia de casa, pega-va na minha mão, apertava, me abraçava,

me beijava e todos os filhinhos em volta e dizia: “Minha filha, não sei se vou conse-guir voltar, porque vão tirar a minha vida”. Até que, naquele dia [02 de abril de 1962], ele saiu e, quando chegou ali em Barra de Antas – fica perto lá do Café do Ven-to –, onde ele ia pegar um ônibus para vir aqui para João Pessoa resolver problema da luta, dois soldados tiraram a vida dele. Mataram João Pedro. E quando mataram João Pedro foi quando eu assumi o lugar dele, né? Continuei a luta de João Pedro... Ai, meu Deus.

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BOCA DE LIXO E A ESCUTA DOS RESTOS SOB A HISTÓRIA

1Ana Carolina Cernicchiaro é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem e do curso de Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul); doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).2“A gente fala muito em sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas (...) nunca ninguém falou que existem países superdesenvolvidos, isto é, excessivamente desenvolvidos. É o caso dos Estados Unidos, onde um cidadão americano médio gasta o equivalente a 32 cidadãos do Quênia ou da Etiópia. (...) A economia capitalista está fundada no princípio de que viver economicamente é produzir riqueza, quando a questão realmente crítica é redistribuir a riqueza existente” (VIVEIROS DE CASTRO apud BRUM, 2014).3“As sobras deste mundo também fazem a festa dos peixes limpa-fundo que recolhem carinhosamente da frente dos condomínios, o lixo que garantirá o seu sustento, aliviando, em parte, a culpa do es-banjador que percebe uma generosidade involuntária nas migalhas que joga pela janela” (SOUSA, 2007, p. 6).

Enquanto a tempestade do superdesenvolvimentismo2 nos “impele irre-sistivelmente ao futuro”, os restos se amontoam sob a história. No Brasil, estes restos têm a figura das pilhas de árvores em uma Amazônia cada dia mais devastada, de indígenas assassinados pelo agronegócio, de

mendigos embaixo das marquizes, de lixões superlotados. Estes lixões, onde os restos de nosso vício pelo consumo se acumulam, inspiraram parte significante da produção de documentários no Brasil, entre eles Boca de lixo (1992), de Eduardo Coutinho. Mais do que o lixo propriamente dito, o que interessa a esse cinema são os “seres invisíveis” que catam este lixo, os “peixes limpa-fundo”3 que recolhem nossas migalhas, eles mes-mos restos de uma sociedade que divide seres humanos em humanos e não-humanos.

Se, conforme nos mostra Jacques Rancière (2009, p. 16), para Aristóteles, o humano é um animal político porque, através da linguagem, pertence a uma comuni-

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dade, é porque ser humano é ter voz legítima na pólis, é ser capaz de definir o justo e o injusto, de dizer o que é certo e o que é errado em uma dada sociedade. A questão é que, já na democracia grega, escravos e mulheres não poderiam falar na e da pólis, pois, ainda que compreendessem a linguagem, não a possuíam, ou seja, sua lingua-gem não tinha legitimidade, não se tornava discurso. De forma que a democracia es-tabeleceu suas bases sobre essa separação que inumaniza seres vivos, seus corpos e suas habilidades (a carne animal ou o trabalho humano), anulando sua intencionali-dade, seus desejos, seus pensamentos, sua voz. Nesta lógica, apenas aquele “nós” que circunscreve e fala na comunidade possui subjetividade, é humano.

Estaria aí a base de nossa partilha do sensível, aquilo que compartilhamos,

o que é próprio e o que é comum em uma comunidade, ou seja, o mundo ao qual pertencemos, mas também aquilo que dividimos, que excluímos, pois, nos mostra Rancière (2009), os recortes que a partilha define sempre pressupõem lugares exclusi-vos, competências e incompetências, legitimidade ou visibilidade, quem pode ou não pertencer à comunidade e nela ter voz, nossa percepção do que é ruído e do que é linguagem, do dizível e do indizível, do humano e do não humano.

Trata-se, nos mostra Giorgio Agamben, de uma máquina antropológica que, ao mesmo tempo em que produz o reconhecimento do humano, cria inumanidades, ou seja, humanos não sujeitos que se encontram excluídos das bases legais de prote-ção e recebem a mesma violência tipicamente dirigida ao animal. De acordo com o diagnóstico de Agamben, essa máquina busca excluir e ilhar todo não-humano do ho-mem, animalizando o humano, produzindo no homem um não-homem, ou seja, uma vida nua, a vida biológica como tarefa (im)política suprema (AGAMBEN, 2006, p. 140). Tal separação entre duas humanidades define, inclusive, uma dicotomia determinante que atravessa a noção de povo. Conforme nos mostra Agamben (2002, p. 183), povo é o termo que denomina tanto o sujeito político constitutivo - o Povo humanizado que constitui a classe política e que serve de base à ficção de legitimação do Esta-do moderno, onde a propriedade é o direito fundamental (Antonio Negri nos lembra que Povo é o conjunto dos cidadãos proprietários portadores de direitos reconhecidos pelo soberano (NEGRI, 2003, p. 143) - quanto a classe que, de fato, se não de direito, é excluída da política, o pobre, o deserdado, o excluído, aquele que, voltando à partilha aristotélica, é inumano.

É dessa animalização do homem esvaziado de direitos, sem emprego, sem dinheiro ou propriedade, desse povo com “p” minúsculo, que nos falam as primeiras cenas de Boca de lixo, com imagens impactantes de porcos, urubus e pessoas catando lixo em uma balbúrdia pouco humana. Contudo, Eduardo Coutinho não se contenta em constatar o absurdo da nossa lógica social e denunciar a partilha do sensível que, desde Aristóteles, faz o Ocidente funcionar. Ao invés do tom distanciado e hierarqui-zante dos documentários tradicionais sobre a miséria brasileira, o filme problematiza a vitimização, tipificação e animalização do outro, como quem busca reconfigurar essa partilha enquanto a expõem. Daí Consuelo Lins concluir que, se as sequências iniciais do filme apontam para a exploração da pobreza e comercialização da miséria, com imagens que “lembram as que são exibidas na televisão para serem consumidas em

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forma de espetáculo”, é porque Boca de Lixo está “desde o começo em ‘duelo’ com o clichê, face a face com a imagem que se tem desse universo. É como se o filme jogasse na nossa cara a imagem que temos desses seres, a imagem do senso comum” (LINS, 2007, p. 88).

Contra essa imagem do senso comum que apresenta o outro de classe como objeto de curiosidade e/ou vítima apática, o filme problematiza o embate, o choque, o desafio lançado pelo outro já no primeiro diálogo: “O que você ganha com isso?”, intima um adolescente com as mãos na cintura em postura desafiadora. Ao que Couti-nho, surpreso pela interpelação, não pode senão responder com outra pergunta: “Ãh?”. O menino, cada vez mais desafiador, completa: “[...] pra ficar colocando esse negócio na nossa cara?”. “É pra mostrar como é a vida real de vocês. Pras pessoas verem como é que é”, responde o cineasta timidamente. “Sabe pra quem o senhor podia mostrar? Podia mostrar pro Collor [então presidente do Brasil]”, replica o menino.

Esta desconfiança em relação à presença da equipe de filmagem, evidenciada nas pessoas escondendo o rosto ou refutando a câmera, mostra como os moradores do aterro sanitário de Itaoca, em São Gonçalo (RJ), estão cientes da imagem negati-va que a mídia tem deles e aponta para uma recusa da espetacularização da miséria que os transforma em tipos vitimizados ou animalizados. Para reverter esta descon-fiança, Coutinho apresenta fotocópias de retratos tirados a partir do que já filmou no lixão. Conforme analisa Consuelo Lins: “o diretor quer mostrar que uma outra imagem é possível, e tenta contornar a resistência inicial, oferecendo imagens justamente a seus possíveis personagens” (LINS, 2007, p. 88). Segundo ela, esse gesto indica que “o que está sendo proposto não é mais uma desapropriação da imagem alheia, segundo a lógica mediática, mas a criação de uma imagem compartilhada entre quem filma e quem é filmado” (LINS, 2007, p. 88), um diálogo, uma interlocução, uma contamina-ção, um atravessamento pelas imagens. Neste sentido, é que devolver a imagem dos personagens a eles mesmos (uma estratégia constante nos filmes de Coutinho) é uma forma de envolvê-los no filme como um acontecimento:

Procuro devolver a imagem que captei das pessoas sempre durante ou de-pois da filmagem. O pecado original do documentário é roubar a imagem alheia, para compensar esse pecado mostro o produto final ou em anda-mento. Tento ser digno da confiança que essa comunidade colocou em mim (COUTINHO, 1997, p. 170).

Mais do que a cumplicidade das imagens compartilhadas, o que possibilita a aproximação é a disponibilidade de escuta de Coutinho. O contato com Jurema é um caso emblemático disso. Se, em um primeiro momento, ela não quer aparecer na frente da câmera porque “depois vocês botam no jornal e dizem que é para a gente co-mer”, após uma longa conversa sobre seu modo de vida, os filhos, o início do namoro com o marido, etc., ela chega a confessar que utiliza, sim, a comida do lixão para sua alimentação: “Muitas coisas que a gente apanha ali, a gente aproveita. É uma fruta, um legume, é muita coisa boa, um macarrão, uma carne, uma galinha. [...] Mas não precisa ficar falando pra Deus e o mundo que a gente vive dali”, confessa Jurema, acrescentan-do que a maioria das pessoas se escondia da câmera no início das filmagens porque

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pensava que ia passar na televisão. A mundança da atitude de Jurema e de seus ami-gos parece mostrar que o que permite a aproximação entre cineasta e personagens é a forma como, diferentemente da massificação televisiva, singulariza os catadores. Conforme avalia Ismail Xavier, o movimento de Coutinho é na direção contrária à da massificação, pois coloca pessoas que são vistas como desinteressantes em situação de surpreender, de quebrar pressupostos, mostrando que as pessoas são mais do que aparentam e não apenas pelo que representam ou ilustram na escala social (XAVIER, 2010, p. 76). É o interesse do cineasta pelos catadores como seres singulares, por suas histórias, seus desejos, seus problemas e alegrias o que permite a aproximação, o que possibilita o encontro. Encontro este que se torna ele próprio o tema do documentário graças a um certo respeito da montagem pela cronologia de filmagem, que nos per-mite perceber como os discursos vão mudando conforme a relação cineasta/persona-gem vai ficando mais íntima. E aqui cabe um breve parêntese para lembrar que essa mudança no discurso dos personagens já estava presente em Cabra marcado para morrer, de 1984. Também neste documentário, a ordem cronológica é o que dá potên-cia à transformação de Elizabeth (protagonista do filme e viúva de um líder camponês assassinado em 1962) durante a produção do documentário de 1984. A rememoração do passado de luta pela reforma agrária - inclusive através das imagens do primeiro Cabra, gravado por Coutinho em 1964 e interrompido pela ditadura militar – permite à Elizabeth, que estava na clandestinidade desde o golpe, reencontrar sua força política e seu discurso combativo. Em ambos os casos, fica evidente que, ao respeitar a velha máxima de Jean Rouch, “não o cinema da verdade, mas a verdade do cinema”, ou seja, a verdade das condições de filmagem, do que acontece no encontro entre cineasta e personagens - um encontro que não existiria se não fosse a câmera –, o filme se torna ele mesmo um acontecimento, um produtor de realidade, mais do que uma represen-tação dela. Neste sentido, o tema do filme acaba sendo o próprio filme, ou melhor, o encontro, o embate com a alteridade que o acontecimento fílmico gerou.

Para Coutinho (1997), o interesse do documentário está na conversa, no diá-logo. Mas esse diálogo, alerta ele, é sempre assimétrico, pois quem tem uma câmera tem um poder, o poder de colocar o outro em uma posição pejorativa, e isso só pode ser compensado, incluindo essa assimetria. Por isso, defende ele, o diálogo, os erros, o embate, os silêncios devem aparecer, mesmo em momentos críticos. Daí a câmera também se tornar uma protagonista em Boca de lixo, pois a interferência, a reação que ela provoca são, como percebeu José Carlos Avellar, temas do filme. É como se, ao mostrar de que maneira se organiza a vida social daquelas pessoas, a câmera também conversasse com elas.

Ela não é apenas a testemunha, a ferramenta de trabalho, mas presença viva que interfere, desequilibra, provoca, instiga uma reação – de aceitação ou de rejeição – na pessoa filmada. A câmera provoca um comportamento que não existiria sem ela. Eduardo Coutinho realiza seus filmes nesse conflito (AVELLAR, 2013, p. 541).

Também por isso, Coutinho mantém as contradições dos discursos: enquanto uma entrevistada diz que é melhor trabalhar no lixão do que em casa de família, outra diz que preferia trabalhar como empregada; enquanto uma diz que quem está lá é

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porque é relaxado, porque gosta de comer fácil, outra carrega 60 kg de lixo na cabeça de uma só vez, num montante de mais de duas toneladas de lixo por semana.

Essas contradições mostram também que Coutinho não quer provar uma tese, a não ser a de que os trabalhadores de Itaoca são pessoas com opiniões próprias, singulares e heterogêneas, que possuem um pensamento e uma voz legítima capaz de falar na e da pólis. Ele não segue a vertente do modelo sociológico [para usar uma expressão de Jean-Claude Bernardet (2003) sobre os documentários de esquerda da década de 60], não tenta conduzir o discurso do outro, não tem a pretensão de “dar voz” a este outro, mas propõe percebermos que ali já existe uma voz, uma voz que não precisa da legitimidade do intelectual, ela já é legítima por si só. Mais do que dar um direito à fala, trata-se de uma escuta, de se deixar experienciar. Escutemos, nós, o próprio Coutinho:

O cineasta tradicional vai ao lixo a partir de um espírito de revolta e de cons-ciência intelectual de classe média de que aquilo é um horror, de que aquilo é um inferno e que as pessoas fazem isso obrigadas pela injustiça do país, e ele precisa encontrar pessoas conscientes disso.O meu propósito do lixo é o contrário, era interrogar sobre o cotidiano, como é viver no lixo. “Como é viver no lixo, é bom ou ruim?” Para um ci-neasta intelectual é um absurdo perguntar se é bom. Já estou propondo uma aceitação de que aquilo não é o inferno na terra e de que eles não são abutres. Bom, ou relativamente bom, porque é uma estratégia de vida como qualquer outra. Será que aquilo, o lixo, é um inferno? Ou será que todo o Brasil é um inferno para os excluídos, um inferno banalizado? (COUTINHO, 1997, p. 169-170).

Segundo Coutinho, o que interessa é dar “ao interlocutor a ideia de que ele não será julgado ou penalizado por ser passivo ou consciente”. Para isso, no entanto, é preciso que o cineasta realmente não o julgue, que não venha cheio de certezas em busca de exemplos para suas teses, avaliando o outro a partir de sua própria verdade, como se a verdade fosse um dado objetivo. “Tento fazer filmes em que tenho uma pergunta para colocar e não uma resposta para dar, busco filmes que terminem com perguntas e reflexões e não com respostas”, explica Coutinho (1997, p. 170).

O cineasta está interessado nos catadores não como classe, como massa ho-mogênea, mas como seres singulares. Sua busca não é pela representação de seres exemplares que serviriam de argumento para uma tese política, ele está atrás da con-taminação, do atravessamento, da afetação. Neste atravessamento, desconstrói di-cotomias identitárias e hierárquicas; ao invés da pena apática superiora, Boca de lixo suscita com-paixão, no sentido que Jean-Luc Nancy dá ao termo: “nem altruísmo, nem identificação: a sacudida da brutal contiguidade” (NANCY, 2006, p.12). E assim, através dessa abertura à alteridade, dessa contaminação, deste devir-outro, é capaz de cons-truir um lugar conjunto, de criar um espaço comum. Conforme nos ensina Comolli (2008), filmar pode ser designar o lugar do outro e enclausurá-lo nesse lugar ou cons-truir um lugar junto com ele.

Esta seria, segundo Deleuze, a tarefa do cinema: “É preciso que a arte, par-

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ticularmente a arte cinematográfica, participe dessa tarefa: não se dirigir a um povo suposto, já presente, mas contribuir para a invenção de um povo” (DELEUZE, 1990, p. 259). Para contribuir nessa invenção é preciso perceber este povo como um povo que falta, como um povo heterogêneo, que não se encaixa na lógica do particular ou do universal (na qual um indivíduo é capaz de representar o todo), mas na lógica do sin-gular e do plural (cada um é único, singular, mas ao mesmo tempo ligado a todos os outros, coletivo). Ou seja, ao invés do “sabemos quem somos e quem filmamos”, o filme coloca todas as identidades prévias em questão, incluindo a própria separação entre sujeito que filma e objeto de filmagem.

Se não busca a representação de uma classe de catadores, como massa ho-mogênea, tampouco propõe descobrir a verdadeira identidade de seus personagens, retratar uma realidade individual objetiva, escondida por trás dos fatos da vida de al-guém. Não lhe preocupa a veracidade dos fatos e pouco lhe importa que a câmera mude a fala das pessoas: “às vezes é mais importante que a câmera catalise as pes-soas que estão diante dela, para que revele uma ‘superverdade’ delas”, afirma Coutinho (1997, p. 171). Ele sabe que é nessa “superverdade” que está a invenção de um povo, o devir do personagem quando ele próprio se põe a ficcionalizar o que é, quando é capaz de criar e inventar a si mesmo, se mostrando como sujeito político diante da câmera. Conforme explica Ismail Xavier, o centro do método de Coutinho é a fala de alguém sobre sua própria experiência, sem se prender aos clichês de sua condição social. “O que se quer é a expressão original, uma maneira de fazer-se personagem, narrar, quando é dada ao sujeito a oportunidade de uma ação afirmativa” (XAVIER, 2010, p. 67). Segundo ele,

[...] o cineasta evita a interpelação que constrange, se faz presente na forma do recuo, deixa espaço e tempo, liberdade para o sujeito. Em suma, sua vir-tude é saber criar um vazio para fazer emergir a auto-exposição e, na melhor das hipóteses, um conhecimento de si produzido pela troca em que, mes-mo efêmero, se define esse “nós”, uma partilha de experiência projetada no plano desejado em que o envolvimento deve ir fundo (XAVIER, 2010, p. 75).

Neste sentido, Coutinho parece seguir a lição de Deleuze, para quem o ci-neasta não deve ser um etnológo de um povo, criar sua ficção sobre o outro, mas se dar intercessores, tomar personagens reais colocando-os em condições de ficcionar por si próprios, de fabular. “A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual o personagem nunca pára de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política e produz, ela própria, enunciados coletivos” (DELEUZE, 1990, p. 264). O personagem se constrói na sua fabulação, na sua ficcionalização diante da câmera, na narrativa que cria, se cons-trói também politicamente, assume seu lugar na pólis, se mostra como ser humano, político, visível, capaz de contar sua história, de contar a história desse povo que falta, a história de um país e, muitas vezes até, a história do próprio cineasta. Isso fica evi-dente, por exemplo, em Cabra marcado para morrer. São os camponeses que contam a Coutinho e ao espectador a história da interrupção das primeiras filmagens de Cabra em 1964, de como Coutinho e sua equipe se esconderam, das revistas do exército, do interrogatório sobre a equipe de filmagem “cubana” e suas armas (os militares diziam

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se tratar de guerrilheiros cubanos), etc. Algumas dessas histórias, o próprio Coutinho só ficou sabendo na hora de filmar.

Mas voltemos ao aterro sanitário de São Gonçalo. Considerando essa potên-cia política da fabulação é que podemos entender a importância da música de Chico Roque e Carlos Colla no filme. O Sonho por sonho, cantado pela menina que sonha em ser cantora, diz mais daquela personagem do que qualquer história “real” que ela pudesse nos contar, diz dos seus desejos, de suas esperanças, de suas fantasias - se-gundo Lacan, a fantasia está na própria origem do sujeito (2003, p. 364). É como se, pela primeira vez, Coutinho percebesse o poder de “superverdade” desse ato absolu-tamente singular de escolher e cantar uma música diante da câmera. Não é à toa que personagens cantando serão momentos substanciais em vários de seus filmes futuros, penso aqui, por exemplo, em Babilônia 2000 (2001), Jogo de Cena (2007) e, é claro, As Canções (2011).

Aliás, o próprio Boca de Lixo poderia acabar com essa sequência idílica em

que a filha de Cícera canta Sonho por sonho acompanhando a voz de José Augusto no rádio, enquanto os outros personagens assistem às filmagens feitas por Coutinho em uma TV adaptada sobre uma Combi. Mas, como bem percebeu Consuelo Lins, o longo plano que encerra o filme de um garoto revirando os detritos cercado de urubus não nos permite sair do cinema com a consciência tranquila, como se soubéssemos de quem é a culpa ou que algo está sendo feito para que possamos dormir em paz. Se, por um lado, Coutinho não parte do princípio de que a vida dos catadores é um horror, focando seu interesse nas estratégias de sobrevivência de cada um, na forma como inventam singularmente seus cotidianos; por outro, o inaceitável da situação não sofre redução. Ao espectador não é permitido tolerar, suportar ou se acomodar diante do choque com o real dos lixões, pois é diante desse choque com o real, sob o risco do real (para usar a famosa expressão de Jean-Louis Comolli), que se encontra a potência do documentário.

O exercício de abertura, de hospitalidade incondicional4 ao outro (DERRIDA,

2003), que está em jogo ali nos faz rever nossas certezas, desconstrói nossos precon-ceitos, desnaturaliza nossas classificações nos mostrando que aquelas pessoas vivem com dignidade e até alegria mesmo nas situações mais adversas. Conforme analisa Jorge Wolff, o fato de estarem em lugares “estranhos, fétidos e caóticos, lugares habi-tados por seres sem rosto, já que estrangeiros a nós mesmos, vale dizer, sem qualquer direito à visibilidade ou mesmo à existência”, não impede que seus habitantes “desen-volvam formas de sociabilidade e desfrutem de suas vidas”. Wolff destaca que, em Boca de lixo, “há um esvaziamento das mediações e dos filtros audiovisuais. Há um corpo a corpo ou um tête-à-tête efetivo com o objeto fílmico: somos levados a sentir a expe-

4 Em entrevista a Dominique Dhombres, publicada no Le Monde em 2 de dezembro de 1997, Jacques Derrida explica que “a hospitalidade consiste em fazer tudo para se dirigir ao outro, em lhe conceder, até mesmo perguntar seu nome, evitando que essa pergunta se torne uma ‘condição’, um inquérito policial, um fichamento ou um simples controle das fronteiras. Diferença de uma só vez sutil e fundamental, questão que se coloca no limiar do ‘em-casa’ e no limiar entre duas inflexões. Uma arte e uma poética, mas também toda uma política dependem disso, toda uma ética se decide aí” (DERRIDA, 2004, p. 250).

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riência, ou seja, o cheiro do real” (WOLFF, 2007).

Por isso que, se o cinema documentário é aquele que pode se ocupar “das fissuras do real, daquilo que resiste, daquilo que resta, a escória, o resíduo, o excluído, a parte maldita” (COMOLLI, 2008, p. 172), ele pode também escavar singularidades na-quilo que a sociedade pretende esconder debaixo do tapete, focar o resto até que dei-xe de ser resto, até que fique aparente, até que sua voz ecoe e deixe de ser apenas um murmúrio sob a história. Neste sentido, Boca de lixo é um documentário verdadeira-mente contemporâneo, capaz de manter o olhar fixo no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro, o que está invisível, escondido sob os holofotes midiáticos (AGAMBEN, 2009). Ele rompe com a história como sucessão de vitórias dos poderosos, “escova a história a contrapelo” (para usar a famosa expressão de Benjamin)5, percebe, como o anjo da história, que é preciso escavar os restos para que o futuro não seja apenas o futuro do progresso dos poderosos e da catástrofe dos invisíveis.

Aí estaria a potência ética do documentário, uma abertura na história que é, antes de tudo, uma opção política pelas vítimas da opressão. Ética e política, neste sen-tido, são indissociáveis, porquanto a questão do político é essa que nos vem da alteri-dade, como resto da nossa sociedade, e que é significada a partir deste lugar marginal do outro. Mas também não se pode dissociá-las da estética, já que este olhar do outro, esta rememoração dos restos, que irrompe na imagem, transforma a imagem, trans-forma a própria linguagem do documentário, realiza um devir-minoritário do cinema.

Ao escutar a história dos vencidos por eles mesmos, ao deixar-se atravessar por esta história que coloca em jogo nossa visão de mundo e desnaturaliza as for-mas fixas, homogêneas e excludentes da cultura, o documentário acaba por anular as fronteiras e reconfigurar a partilha do sensível, no e pelo acontecimento fílmico, questionando os papéis na sociedade entre os que pensam e decidem e os que es-tão destinados ao trabalho material ou à marginalidade e redistribuindo os lugares e identidades do visível e do invisível, do barulho e da palavra, dos sujeitos e dos objetos de conhecimento (RANCIÈRE, 2009). Dessa maneira, documentarista e espectador são contaminados por esse povo que falta, permitindo que ele se invente e nos invente. O cinema como um espaço de encontro, de contágio, de abertura incondicional à alte-ridade, um devir-outro que nos permite perceber cineasta, espectador e personagem como seres-uns-com-os-outros.

5 Segundo Michel Löwy, o imperativo benjaminiano de “escovar a história a contrapelo” tem um sig-nificado histórico – “trata-se de ir contra a corrente da versão oficial da história opondo-lhe a tradição dos oprimidos. Desse ponto de vista, entende-se a continuidade histórica das classes dominantes como um único e enorme cortejo triunfal, ocasionalmente interrompido por sublevações das classes subalter-nas” –, mas também político (atual) “a redenção/revolução não acontecerá graças ao curso natural das coisas, o “sentido da história”, o progresso inevitável. Será necessário lutar contra a corrente. Deixada à própria sorte, ou acariciada no sentido do pelo, a história somente produzirá novas guerras, novas catástrofes, novas formas de barbárie e opressão” (LÖWY, 2005, p. 74).

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Referências

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

O MÉTODO DA COMPREENSÃO NAS ENTREVISTAS DE EDUARDO COUTINHO EM EDIFÍCIO MASTER

1 INTRODUÇÃO

Quando se fala em documentário, o jornalista Eduardo Coutinho aparece como um dos principais nomes do cinema brasileiro. Duas Semanas no Morro, Theodorico Imperador do Sertão, Cabra Marcado para Morrer, Santa Marta, Volta Redonda, Memorial da Greve, O Fio da

Memória, Boca de Lixo, Santo Forte, Babilônia, Edifício Master, Peões, O fim e o Princípio, Jogo de Cena e Moscou são algumas de suas obras.

Entre tantas obras, este texto se detém na análise do filme Edifício Master, de 2002, que ganhou o prêmio de melhor documentário no Festival de Gramado e foi o que mais fez sucesso desde o seu mais notório documentário – Cabra Marcado para Morrer, concluído em 1984 (LINS, 2015). Diversamente de outros trabalhos de Couti-nho, este foca na classe média baixa residente em um prédio, em Copacabana, bairro nobre do Rio de Janeiro. Sem cair em estereótipos, ou lugares comuns, Coutinho con-segue extrair de seus entrevistados um universo rico de vivências que aponta tanto a

Erica Aparecida Domingues1

Tarcyanie Cajueiro Santos2

1 Erica Aparecida Domingues. Repórter TV Votorantim. Graduada em Jornalismo pela universidade de Sorocaba. Bolsista da CAPES no mestrado em Comunicação e Cultura. 2 Tarcyanie Cajueiro Santos. Mestre e Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, com Pós-Doutorado pela mesma instituição. Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (UNISO), Sorocaba/SP.

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experiências comuns daqueles que vivem nas grandes cidades brasileiras, quanto para questões existenciais que assolam o ser humano de maneira geral. Pressupomos que a densidade e a riqueza das narrações dos personagens do documentário podem ser pensadas a partir dos pressupostos do método da compreensão, que trabalha o “eu” e o “outro” como um processo relacional.

Procuramos analisar a densidade das entrevistas a partir do método da com-

preensão. No entanto, não selecionamos todos os personagens do documentário, por-que, concordando com Simonard e Santos (2015, p. 35), “Coutinho repete o mesmo artifício de entrevista em muitas delas” e o que nos interessa é discutir como ocorre o momento da entrevista, de que forma ela vai se desenrolando. Acreditamos que as entrevistas observadas apontam para questões que perpassam, de maneira geral, o documentário: solidão, isolamento, medo, insignificância, confinamento, incompreen-são, incomunicação, visibilidade e, acima de tudo, a relação dos moradores consigo mesmos, com a sua cidade e com sua própria moradia.

Para extrair a história de vida dos moradores do edifício com toda a carga

trágica que isso comporta, Coutinho trabalha com uma técnica baseada na escuta e no dispositivo, na qual os entrevistados são deixados à vontade para narrar as suas histórias, intervindo quando necessário, sem sugerir o que quer ouvir. A busca deste “movimento de abertura ao outro e de atenção ao que está sendo dito” (LINS, 2015, p. 34), complementa-se na técnica cinematográfica, com pouca edição, sem muitos cortes, evitando um roteiro predefinido, sem tratamento estético. Ao evitar uma lógica imagética tão comum aos programas televisivos, de tudo devassar e mostrar, Couti-nho se atem à possibilidade do aparecimento de algo inesperado, respeitando o silên-cio e a pausa presentes nas narrações que vão tomando forma na medida em que são contadas.

Este capítulo se divide em três partes: na primeira, falamos de Coutinho e mostramos porque ele é considerado o cineasta da escuta, delineando seus pressu-postos e sua visão de documentário. No segundo momento, discutimos o método da compreensão. No terceiro, analisamos as entrevistas com base nessa perspectiva.

2 COUTINHO, CINEASTA DA ESCUTA

Nascido em São Paulo, Coutinho participou do programa da TV Re-cord, em 1957, O Dobro ou Nada, um jogo com perguntas e respos-tas. “Venceu algumas etapas do programa, com o dinheiro do prê-mio, mudou-se para a França, onde estudou direção e montagem.

Formou-se em cinema pelo Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), em Paris” (SIMONARD; SANTOS, 2015, p. 33). Segundo Lins (2015), no início de sua carreira, Coutinho era um cineasta de ficção, sem nenhuma experiência com documentário. Ao retornar ao Brasil, em 1960, participou de uma produção teatral do Centro de Cultura Popular da UNE (CPC) de São Paulo. Em 1961, trabalhou como gerente de produção do longa metragem Cinco Vezes Favela e mudou-se para o Rio de Janeiro. Em abril

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

de 1962, começou um documentário (inacabado) sobre a UNE Volante, viajando pelo Nordeste. Além da participação em alguns roteiros, Coutinho dirigiu quatro filmes, du-rante a década de 1960: “o inacabado Cabra Marcado para Morrer (1944), O Pacto, um dos três episódios de ABC do Amor (1966), o longa metragem O homem que Comprou o Mundo (1968) e, já em 1970, Faustão, que veio a ser a última experiência de ficção que realizou” (LINS, 2015, p. 17).

Coutinho também trabalhou na TV Globo, no programa Globo Repórter, exer-cendo várias funções, como a de redator, repórter e diretor de diversos programas e seis documentários de média-metragem, entre os quais: Seis Dias em Ouricuri (1976), Theodorico, o Imperador do Sertão (1978) e Exu, uma Tragédia Sertaneja (1979). Segundo Simonard e Santos (2015, p. 4), “tais documentários conheceram sucesso de audiência e são lembrados por terem a ousadia de apresentar um Brasil pouco conhecido – ou até mesmo duramente maquiado pela mídia – para o restante do País”. Consuelo Lins, por seu turno, lembra que a maioria desses documentários apresentava:

[...] marcas da estética-padrão do programa, que já começava a se consoli-dar e contava com um apresentador e narrador oficial, embora ainda sem a figura do repórter como mestre-de-cerimônias – sempre presente na ima-gem e mais importante que o próprio tema, que só surgiria em 1983 (LINS, 2015, p. 20).

Apesar de terem sido criados programas nos quais havia a possibilidade de identificar um trabalho autoral de imagem e montagem, como Seis Dias de Ouricuri, primeiro programa dirigido por Coutinho para o Globo Repórter, a tendência era a de que nesses programas de televisão o diretor e a equipe não aparecessem, “[...] só em casos excepcionais e inevitáveis, mas jamais falando para a câmera” (LINS, 2015, p. 21).

O lançamento de Cabra Marcado para Morrer, de 1984, que foi premiado com o Tucano de Ouro de melhor filme, marca um momento no qual Coutinho pede de-missão da Rede Globo e passa a dirigir documentários. Com 50 anos de idade, este cineasta dedica-se efetivamente à atividade de documentarista até o seu falecimento, em 2 de fevereiro de 2014, aos 80 anos, quando foi morto3.

As suas obras revolucionaram o modo de fazer documentário nas décadas de

1960 e 1970. Diferentemente dos filmes desse período, marcados por um locutor que narra uma história, os documentários de Coutinho não têm um modelo linear, tam-pouco a pretensão de passar uma verdade, um sentido pronto. Contrariando os “filmes dessa época, alinhados a um modelo sociológico”, caracterizados pela locução de um “narrador invisível que é o dono da voz” e que, em terceira pessoa, “fala sobre persona-gens que só comparecem quando chamados, a fim de servirem como exemplos que confirmem as teses apresentadas pela narração” (FROCHTENGARTEN, 2009, p. 126), os

3 Segundo o site de notícias G1, o filho do cineasta, que sofria de esquizofrenia, após um surto, esfaqueou o pai, que morreu por perfuração na altura do abdome. A esposa de Coutinho também foi esfaqueada na mesma ocasião. Ela conseguiu sobreviver, após ficar trancada no banheiro de sua residência, na Lagoa, Zona Sul do Rio (TORRES, 2 fev. 2014).

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filmes de Coutinho registram as relações dos personagens com o diretor. Para tanto, baseia-se em conversas, no aleatório e na ênfase de mostrar ao espectador que o que foi filmado não é a realidade em si, mas um olhar intermediado pela câmera, de um diretor e de sua equipe de produção. Isso tudo, levando-se em conta a possibilidade sempre presente do erro, porque no processo de filmagem na entrevista com o outro pressupõe o imponderável. Nas palavras do cineasta:

Há vinte anos se fazia documentários no Brasil em que o diretor não tinha nem microfone. Quer dizer, era admissível que a pergunta dele não inter-ferisse. Em toda minha experiência de vida e de filmagem eu vi que, não importa se há pesquisa anterior e se eu conheço alguns fatos, o acaso está sempre presente. E que há um problema que é saber quando perguntar, o quê perguntar, quando romper o silêncio e quando não romper. Eu estou a toda hora errando. Porque o documentário é baseado na possibilidade de erro humano. Até hoje acontece de eu perguntar na hora em que eu não devia e o silêncio acaba. Ou eu faço a pergunta errada. Às vezes eu consigo fazer a pergunta certa. Tudo porque a voz em um filme ou na história oral é imediata (COUTINHO in FROCHTENGARTEN, 2009, p. 129).

Vale ressaltar também que Coutinho é mais do que um contador de histórias. Ele oferece leituras que impressionam o espectador. A entrevista é o substrato de seus filmes, de tal forma que a edição fica em segundo plano. Para Coutinho, o que interes-sa é o acaso, a surpresa e a incerteza do resultado, que só se torna fecundo quando a entrevista é um ato colaborativo. Diz o cineasta: “O ato de filmagem é assim: a pessoa me diz alguma coisa que nunca vai repetir, nunca disse antes ou dirá depois. Surge naquele momento” (in FROCHTENGARTEN, 2009, p. 130). Por isso, citando Lins (2015, p. 24), “se há uma base comum a seus filmes e sua presença é justamente esse pensa-mento ao vivo, que recusa ideias prontas, imagens feitas – particularmente se forem dele mesmo”.

Eduardo Coutinho é conhecido como um cineasta da escuta. Mais do que en-trevistar, ele conversa com as pessoas que filma. Por isso, suas obras podem ser pen-sadas a partir do método da compreensão, que coloca em interação “eu” e “outro”, em uma busca de abertura e de encontro à alteridade. Seus diversos filmes são marcados por querer deixar o entrevistado à vontade, como em Edifício Master, em que o ci-neasta está presente nas casas dos entrevistados, deixando claro aos que assistem ao documentário que se trata de uma representação do real, por meio de histórias de pessoas comuns.

3 O MÉTODO DA COMPREENSÃO

A compreensão enquanto método não tem um caminho definido. Ela nasce da intersecção de três perspectivas: a primeira, como o des-velamento dos “modos de ser e conhecer da alteridade” (MARTINO, 2014, p. 34) a partir da experiência do cotidiano, normalmente cris-

talizada em opiniões e julgamentos preestabelecidos; a segunda, como ampliação da epistemologia, abraçando outros saberes e, dessa forma, não se reduzindo a uma ra-

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

cionalidade onipotente, que se pensa como a única possibilidade de conhecer o mun-do; a terceira, que pressupõe uma ética, razão prática voltada para o outro. A relação entre eu e outrem, nessa perspectiva, é marcada pela diferença e semelhança, pois ao mesmo tempo em que o outro é visto como diferente, ele é semelhante ao eu, na medida em que traz consigo a mesma falta de lógica e coerência.

Para Kunsch (2014), o método da compreensão é difícil, mas se faz necessário. Este método pressupõe sentidos, conhecimentos, sentimentos, saberes, as tentativas lógicas e não lógicas, científicas ou não. A construção de diálogos não é fácil, pois, segundo o autor, dialogar com o próximo é complicado, mas o método é um caminho que se escolhe e é possível escolher este da compressão, da inclusão e não da exclusão de sentidos e experiências.

Ainda segundo esse autor (2014), o método da compressão pressupõe o diá-logo. Para que haja conversa, é preciso haver o narrador e o ouvinte; ou seja, o exercício que se faz é o da escuta, e não da crítica. É justamente isso que vamos ver nos traba-lhos do documentarista Eduardo Coutinho, que dialoga com as histórias, sem opinar ou interferir, apenas deixando o outro narrar sua experiência de vida, tentando entrar na sua singularidade. Isso permite que se reúnam ideias e boas histórias. Colocar a vida de pessoas anônimas e as deixar falar, relembrar, expor sentimentos guardados. A compreensão está quando assistimos às entrevistas do documentário e encontramos essas características nos depoimentos. Pois:

Inventar a vida humana é uma tarefa de permanente desconstrução. Aos olhos rápidos do cotidiano, a vida humana aparenta muitas vezes ser algo estático, imóvel em suas convicções e perspectivas, ancorado em certe-zas que, se desafiadas ou destruídas, mostram-se vazias de um significado maior, tornando aparente a fragilidade sobre a qual repousam (MARTINO, 2014, p. 17).

Como diz Martino, para que o eu possa ouvir o tu, é preciso despi-lo de todas as certezas e ideologias. A compreensão do outro, sem perder o sentido da razão, pres-supõe o seu acolhimento buscando sair do eu e tentar ver como o outro está vendo, como o outro chega a um dado pensamento e organiza sua própria narração. É a árdua tarefa de compreender o outro em si mesmo, que só é possível quando o aceitamos em sua incoerência, falha e complexidade. Nas palavras Martino:

É nesse espaço que se coloca, talvez ainda mais diretamente, o problema da compreensão: entender como é possível se aproximar desse outro, dessa alteridade absolutamente fechada e ao mesmo tempo aberta para mim, na medida em que também estou pronto para adotar, perante mim mesmo, uma postura reflexiva (MARTINO, 2014, p. 21).

A aceitação da complexidade do outro, tentando aproximar-se dele pelo afas-tamento do eu faz parte da prática cinematográfica de Coutinho. Este documentarista não se interessa por enquadrar ninguém em esquemas pré-concebidos, tampouco em emitir juízos de valor no momento da filmagem. Vejamos o que o cineasta diz a res-peito:

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Veja o caso do Master, em que uma mulher me diz que todo brasileiro é preguiçoso. É um discurso com o qual eu não concordo. Mas é um discurso extraordinário porque ela teve condições de dizer aquilo para mim. E eu não estou lá para dizer se a senhora está errada. O discurso é magnífico porque são as razões dela, não são as minhas. Ela acredita naquilo que está falando e fala com veemência (COUTINHO in FROCHTENGARTEN, 2009, p.130).

A hipótese desse trabalho é que o diálogo com os entrevistados, sem julga-mento por parte do diretor e de sua equipe, os deixa à vontade para narrar as suas vi-das. Após uma pré-entrevista com a equipe de Coutinho, que compila as informações sobre os entrevistados, o cineasta decide por “aqueles que narram bem, que sabem contar histórias” (LINS, 2015, p. 79). Contudo, nem sempre é fácil extrair boas histórias dos entrevistados neste ato de conversa, que é como Coutinho prefere chamar as en-trevistas quando faz seus documentários. O Edifício Master é um exemplo dessa difi-culdade. Lins (2015), que fez parte da equipe de produção desse documentário, conta que eles não identificavam bons narradores entre os moradores do prédio. Diferente-mente dos “pobres”, presentes nos outros documentários de Coutinho, os moradores do Edifício Master não tinham um repertório comum, nenhum assunto pelo qual par-tilhassem algo. Nesse sentido, por apresentar modos de vida diferentes das pessoas da favela, foi necessária uma outra estrutura de filmagem, “centrada na experiência na diversidade de experiências, e não especificamente na fala de um personagem parti-cular” (p. 26). Vejamos abaixo alguns exemplos de como esse processo ocorre no do-cumentário Edifício Master.

4 O FILME EDIFÍCIO MASTER

Edifício Master fica localizado em Copacabana, um dos bairros mais lu-xuosos do Rio de Janeiro. Trata-se de um prédio de classe média bai-xa, composto de 276 apartamentos conjugados, 12 andares, 23 apar-tamentos por andar. Para a realização desse documentário, a equipe

de Eduardo Coutinho alugou um apartamento por um mês no edifício e três equipes filmaram a vida dos moradores durante uma semana. Coube à equipe realizar entre-vistas prévias com 37 moradores, derivadas de uma lista passada pelo síndico e o por-teiro chefe do prédio, cujo critério de feitura era desconhecido pela equipe. Apesar do trabalho árduo da equipe que procurava incessantemente por entrevistados que se dispusessem a falar, Lins (2015, p. 48) escreve que “dos cerca de 70 moradores entre-vistados no edifício Master ao longo das três semanas de pesquisa, Coutinho escolheu 37 para serem filmados, dos quais dez acabaram não entrando na montagem final”.

É no interior do prédio que se desenrola o documentário. Uma das poucas cenas externas acontece logo no início, quando a equipe e o cineasta aparecem, em registro nas câmeras de segurança, entrando no edifício. Logo em seguida, as escadas, corredores desertos e as câmeras de segurança do prédio são mostrados, assim como o que parece ser a rotina do edifício. Os cortes feitos no filme são simples, com enqua-dramentos de rosto, cortes secos; os ruídos do prédio não são excluídos, tudo para ten-tar deixar o ambiente natural. Uma das entrevistas, na metade do filme, é interrompida

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devido ao barulho dos pedreiros no apartamento ao lado.

A primeira entrevista que abre o documentário é a da dona Vera, que passou quase toda sua vida “lá”. Era isso que Coutinho queria ouvir dela, mas não foi bem assim que aconteceu; para chegar a essa frase, ele precisou utilizar o método da entrevista. Quando ela revela que se mudou para o prédio com apenas um ano, ele rapidamente coloca sua posição de diretor: “Quer dizer que a senhora passou quase sua vida toda aqui”. Ela, com voz serena, responde: “Todos os quarenta e nove anos eu passei aqui, sem mudar de prédio”. Repare que no momento em que interfere, Coutinho já sabia o que queria ouvir dela, mas só precisava de um “empurrãozinho” para a fala sair. É nessa primeira entrevista que partimos com a nossa análise. Toda a sua experiência com a entrevista fez com que ele fosse pontual e objetivo em sua pergunta, deixando que ela mesma dissesse que passou praticamente toda sua vida em um único local.

Partimos para a entrevista de Renata, uma jovem sonhadora, mulher de pele negra, que apresenta traços de uma menina. Coutinho não corta o começo da sua en-trevista: “Meu namorado é americano”. Renata parece encantada em ser o “chocolate” como é chamada pelo seu pretendente, e ele o “chocolate light”. Suas falas não dão se-quência, os movimentos do cabelo e gestos de inquietude são constantes. Ela começa a ficar séria ao dizer que queria morar sozinha com a prima e a mãe duvidou da sua capacidade: “Só não vou virar puta e matar ninguém, mas para sua casa eu não volto mais”. A decisão foi tomada, pois sua mãe a levou a um “centro espírita” para obrigá-la a fazer um aborto aos 15 anos. Segundo Renata, a mãe não a aceitava em casa se estives-se grávida. Diante disso, Renata anuncia: “Se não me aceita com filho, sem filho tam-bém não vai ter”, e desde então seguiu sua vida. Nesse trecho, os cortes são secos e a intervenção de Coutinho é mínima, o que serviu para enriquecer a narração do sujeito.

Falando em amor, mas dessa vez se tratando de um casal, analisamos a entre-

vista de Carlos e Maria Regina, que estão casados há um ano. Coutinho abre pergun-tando: “Como está um ano de casamento?”, para disfarçar Carlos reponde: “Graças a Deus, tudo bem”. Mas o olhar de canto da esposa faz com que o cineasta perceba que havia algo errado, e pergunta: “Que foi essa olhada, dona Maria?”. Com sorriso sem graça, a dona da casa retruca: “Fala a verdade, Carlos”. Ainda querendo esconder, ele afirma: “Nós estamos bem”. Aqui parece um típico casal que tem seus altos e baixos. Coutinho aproveita desse casal o máximo que pode, porque viu que seria uma boa história. Prosseguindo, ela conta que tentou até um suicídio devido ao conflito entre o casal. E o motivo foi ciúmes. Apesar disso, o casal ainda demonstra carinho um pelo outro. Dona Maria parece não ter o menor constrangimento de falar de si e tampouco de sua vida. Coutinho a ajuda perguntando: “Quantos filhos a senhora tem?”. E dona Maria responde: “22 filhos contando com 15 abortos”.

A entrevista prossegue, mostrando a história de vida do casal. Ela, pobre na infância, moradora de favela; já ele, “bem de vida”. Ela viveu, durante a adolescência, no meio da prostituição. Com mais idade, trabalhou em Copacabana, como doméstica e afirma não gostar de morar no bairro porque se sente presa. Seu marido diz que sem-pre a chama para dar uma volta pelo calçadão, mas ela não quer ir. Ela diz que o motivo

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de não ir é por “ser coroa e não ter mais o corpo bonito”. Ela gosta de samba, e ele não. E ali se repete uma breve “discussão entre o casal”. Coutinho encerra: “Vocês ainda se gostam?”, e ela afirma que sim. Carlos, por sua vez, também demostra seu amor: “Nós não prestamos, mas nos amamos”. Ao analisarmos as narrativas, vemos que o diretor não pré-fixou um sentido sobre quem seria este casal. Não há nenhum juízo de valor; apenas pequenas interrupções do cineasta em momentos que achou necessário para tirar daquela conversa uma boa história.

Outra personagem que aparece é Alessandra, de 20 anos. Ao responder Cou-tinho, que perguntou como foi a sua infância, ela sorri, olha para o alto e diz não ter tido infância. Então ele pergunta: “O que quer dizer isso?”. Ela responde que não teve li-berdade de ser uma criança normal devido à rigidez do pai, que não a deixava brincar, e diz: “Com 14 anos de idade já fui mãe, aí acabou infância”. A indagação de Coutinho novamente é clara, que pergunta em seguida: “Como foi essa história de ser mãe, con-ta. Foi a primeira vez que você transou?”. E ela relata tudo como se estivesse contando para uma amiga: sim, que só saía para a escola; estava apaixonada, e aconteceu na primeira vez que saiu, quando conheceu o pai da sua filha. Então, ela diz: “Ai que ódio!”. Sem saber o que estava acontecendo com seu corpo, disse ter comentado com sua mãe que estava diferente e achava que estava grávida. A família entrou em desespero; o pai não falou com a filha durante um ano. Então, aos vinte anos, ela diz que seu “pri-meiro programa foi muito legal”, porque ela nunca tinha visto tanto dinheiro na sua frente: “Foi cento e cinquenta reais em um dia, mas pra mim aquilo foi tudo!”. Afirmou ser muito diferente do salário do antigo serviço, cujo valor era de apenas “cento e trinta seis reais”. Ela também conta, em sua entrevista, que com o dinheiro do primeiro pro-grama, levou a filha para uma rede de fast-food no shopping e gastou tudo em “lanche e sorvete”. Parece ter sido um grande evento, pois ela o compara ao desejo de uma criança quando ganha o “brinquedo que mais quer”. Em uma da poucas intervenções Eduardo pergunta: “Como é viver assim?”. Mais séria, ela diz:

Não é bom, não é o que o pessoal fala: Isso é uma vida fácil. Não é. Porque é muito, muito nojento você sair com uma pessoa e você pode até gostar dela por ela ser uma pessoa interessante, uma pessoa inteligente, e depois no outro dia você acordar e essa pessoa te dar um dinheiro. Não é bom e não é um dinheiro fácil assim como o pessoal pensa, porque é muito difícil. A gente passa por muita humilhação, escuta o que não quer. É humilhada, muito humilhada. Isso não é fácil.

Depois, o cineasta pergunta como é o sexo, se tem prazer, ou se tem de fingir. Alessandra finaliza dizendo que bebe todo dia para ter coragem de trabalhar e espera sua morte todo dia. Em suas palavras: “Esse mundo é muito ruim. Tem muita pessoa ruim”. Nesse depoimento, Coutinho parece utilizar algo muito próximo aos pressupos-tos do método da compreensão para extrair um depoimento forte, mas sem expor a filha de cinco anos e sem emitir juízos de valor sobre Alessandra. Nessa entrevista, ve-mos a contradição aparecer na fala da entrevistada e, em nenhum momento, Coutinho procura imprimir um sentido ao que ela fala, perguntando apenas o que significam algumas frases que ela usa para construir sua narrativa. Depois de expor a sua vida, com toda a sua carga trágica e as expectativas que tem com a sua filha e irmã, Couti-

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

nho pergunta o que significa quando ela diz “eu minto muito”. A entrevistada afirma sorrindo:

Alessandra: Eu sou muito mentirosa e eu conto mentira. E eu acho que para a gente mentir tem de acreditar na mentira pra mentira ficar bem feita. E eu sou assim, sou muito mentirosa. Muito mesmo. Eu até choro pra mim acre-ditar na minha mentira. Depois até tenho disso: Você sabe que tem mentira que eu acabo acreditando que é verdade?Coutinho: O que você mentiu nessa conversa de hoje, nossa?Alessandra: Ah, agora não menti nada, não. Ontem eu menti pra eles. É por-que eu não queria vir, eu estava com medo de fazer entrevista. Eu menti, eu falei: “Vou sair. Fala que não sabe que horas eu vou chegar, não”. Assim que saíram daqui, eu cheguei. Eu não queria; eu tava com medo. Mas hoje eu não tava mentindo, hoje eu esqueci mesmo e nem passava pela minha cabeça que eu tinha que fazer entrevista (...). Você vê como sou uma menti-rosa verdadeira...

E por fim seguimos para os estilos musicais, que dão trilha sonora ao docu-mentário. A música não é uma mera ilustração; elemento externo, inserido pelo dire-tor para potencializar as narrativas dos personagens. Ao contrário, emerge das falas e junto com elas produz sentido, construindo um cenário que se desdobra e conduz a história e experiência de cada um. Seja Nadir, ex-cantora de festivais; ou Fábio e Bacon, que, como muitos jovens, sonham em fazer sucesso com a música. Entre tantos, o mais marcante e que tem um tempo maior de entrevista é seu Henrique, um aposentado, que foi com documento falso para os Estados Unidos. Na certidão original, tinha 17 anos, mas, para conseguir embarcar, marcava 18 anos. Seu primeiro emprego nos Es-tados Unidos foi o de lavador de pratos, mas por sorte ou acaso da vida, foi contrata-do no aeroporto por uma empresa que precisava de pessoas que falavam português. Para arrancar mais informações, Coutinho pergunta por que morar no Brasil de novo, supondo que ele estaria “bem de vida”. É nesse momento que os fatos de sua vida já esquecidos, ou guardados na memória são revelados ao dizer que não guardou di-nheiro e o que tinha, “investiu tudo nos seus três filhos”, dando casa, carro e estudo. E que hoje recebe uma aposentadoria dos Estados Unidos, mas que “também não é grande coisa”, finaliza.

Nessa segunda parte da entrevista, fica claro para aqueles que assistem o do-

cumentário, que Coutinho já tinha informações sobre a vida de seu Henrique. Pois, o documentarista pergunta como ele conheceu Frank Sinatra. Agora já mais descontraí-do, seu Henrique parece contar um “causo” para um amigo. Bem à vontade, ele expõe com orgulho que foi convidado pela companhia aérea onde trabalhava a participar de um coquetel para os astronautas quando voltaram da lua. Durante o jantar ele viu Frank Sinatra, foi até sua mesa e o cumprimentou. Frank Sinatra, segundo ele, o cha-mou para subir no palco e cantar dois versos da música My way. Desta forma, ele di-vidiu o palco com seu ídolo musical. Seu Henrique afirma que essa canção resume a sua vida, afinal “My Way conta a história de um rapaz que viajou o mundo e fez tudo da sua maneira”. Ele se considera um homem que “saiu do país de origem e venceu na vida”. Hoje, sozinho, dois sábados por mês, ele coloca esta canção para os vizinhos ouvirem. Nesse trecho fica clara a sua solidão, que hoje viúvo e com os filhos morando

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longe, vive sozinho com suas lembranças, que na música tomam vida. Sua solidão e isolamento são evidenciados com mais nitidez quando ele abre a entrevista dizendo que após ter escorregado no ladrilho de sua casa, quase morreu, bateu com a cabeça e teve um derrame. Sua vida foi salva por uns vizinhos que passavam. Ao perceber isso, Coutinho, com muita simpatia, pede a ele para cantar a música da sua vida, o que o entrevistado faz com muita emoção.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pergunta norteadora deste trabalho foi a de entender como Couti-nho consegue extrair dos seus entrevistados “boas conversas”, que mostram dimensões existenciais por meio de narrativas densas e cheias de sentido. O método da compreensão apareceu como uma

possibilidade de pensarmos esse encontro entre entrevistado e entrevistador. “Para tanto, antes de tudo, a entrevista deve ser entendida como uma técnica, um meca-nismo de troca de subjetividades, em que um dos elementos envolvidos na função, o entrevistador, se ‘abre’ para receber o outro” (D’ALMEIDA, 2006, p. 5).

Edifício Master é um documentário de pessoas eminentemente falando, ex-pondo a si mesmas, sem, no entanto, cair no bizarro ou caricatural, tão comum nos programas de televisão, nos quais a intimidade dos participantes é devassada como se estivessem em um circo de horrores. Nesse filme, as imagens que falam por si próprias se interseccionam com as falas dos personagens, que apontam para uma vida isolada, solitária, marcada pela visibilidade das câmeras e por dramas existenciais do cotidiano, além de pequenos atos de resistência à massificação e aglomeração tão comum às grandes cidades.

Voltemos, pois, às nossas perguntas: como esse cineasta consegue extrair de seus entrevistados narrativas tão densamente povoadas de afeto? Como as pessoas, que mal se comunicam entre si, que se evitam e estão quase sempre imersas em seus próprios dramas, aceitam falar de si mesmas diante de uma câmera, se expondo em uma intensidade muitas vezes dilacerante? Segundo Lins (2015, p. 80), são diversos os motivos; entre eles, a criação de uma relação de afeto entre a equipe de pesquisadores, que não era de nenhum canal de televisão e que ficou um mês no prédio, convivendo com os moradores. “Um segundo motivo que pode levar os entrevistados a falarem de forma como falam é o fato de sentirem que estão sendo efetivamente ouvidos e, portanto, reconhecidos na vida comum”.

Esse processo da escuta só ocorre por que há o reconhecimento de que quem fala não merece ser encaixado em uma imagem pré-fixada, pois tem propriedade e merece ser ouvido. Em Coutinho, não há julgamentos, mas pequenas intervenções que ajudam o personagem a elaborar melhor seu ponto de vista. Esse procedimento respeitoso da alteridade e que se faz no percurso a ser trilhado, é procedimento de-mandado pelo método da compreensão. O entrevistador, nesse caso, deixa de ser o centro do mundo, tornando-se ele próprio parte do diálogo, no qual a escuta – essa dimensão humana de aproximação – permite o acolhimento do outro em sua inteire-

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

za, contradição e complexidade.

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Referências

ALMEIDA, Alfredo Dias D’. O processo de construção de personagens em docu-mentários de entrevista. In: NP DE COMU-NICAÇÃO VISUAL DO VI ENCONTRO DOS NÚCLEOS DE PESQUISA DA INTERCOM, 2006, Rio de Janeiro. Anais... Brasília: UnB, 2006. p. 1-13. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/113679447187618551047955842077616474011.pdf>. Acesso em: 25 set. 2015.

FROCHTENGARTEN, Fernando. A entre-vista como método: uma conversa com Eduardo Coutinho. Psicologia USP, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 125-138, mar. 2009. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/psicousp/article/view/41992>. Acesso em: 10 ago. 2015.

KÜNSCH, Dimas. Conversando a gente se entende. In: KÜNSCH, Dimas et al. (org.). Comunicação, diálogo e compreensão. São Paulo: Plêiade, 2014. p. 11-14.

LINS, Consuelo. O documentário de Cou-tinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2015.

MARTINO, Luís Mauro Sá. A compreensão como método. In: KÜNSCH, Dimas et al. (org.). Comunicação, diálogo e compre-ensão. São Paulo: Plêiade, 2014. p. 17-36.

SIMONARD, Paulo Henrique ; SANTOS, Ro-dolfo Oliveira dos. As conversas de Eduar-do Coutinho: Análise do método de entre-vista em sua obra documental. Interfaces Científicas - Humanas e Sociais. Aracaju, v. 3, n. 2, p. 31-46, fev. 2015. Disponível em: <https://periodicos.set.edu.br/index.php/humanas/article/view/1932>. Aces-so em: 20 jul. 2015.

TORRES, Lívia. Filho do cineasta Eduardo Coutinho é preso pelo assassinato do pai

no Rio. G1 Rio de Janeiro. 2 fev. 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/02/filho-do--cineasta-eduardo-coutinho-e-preso-pe-lo-assassinato-o-pai-no-rio.html>. Acesso em: 20 jun. 2015.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

MAPEAMENTO DA PRODUÇÃO ACADÊMICA SOBRE EDUARDO COUTINHO

1 GÊNESE DO DOCUMENTÁRIO E A TÊNUE RELA-ÇÃO COM O REAL

Bill Nichols, professor de cinema na San Francisco State University conhe-cido por estudar o significado social do cinema, costuma dizer que por trás da ascensão do documentário está “a história de amor do cinema pela superfície das coisas, sua capacidade incomum de captar a vida

como ela é” (NICHOLS, 2014, p. 117). Essa abordagem, fenomenológica (MARTINEZ; SILVA, 2014), está ancorada na “capacidade que serviu de marca para o cinema primiti-vo e seu imenso catálogo de pessoas, lugares e coisas recolhidas em todos os lugares do mundo” (NICHOLS, 2014, p. 117).

Míriam Cristina Carlos Silva1

Monica Martinez2

Tadeu Rodrigues Iuama3

1 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pós-doutorado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professora titular da Universidade de Sorocaba (Uniso), na linha de pesquisa Análise de Processos e Produtos Midiáticos. Contato: [email protected] Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), pós-doutorado em Narrativas Digitais pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Docente do Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso). Contato: [email protected] Mestrando em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Bolsista PROSUP/CAPES. Contato: [email protected].

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Evidentemente, mais do que em qualquer outro gênero cinematográfico, em-butida no documentário está a noção da objetividade dos aparatos fotográficos, isto é, da câmera, que registraria os fenômenos tais quais eles ocorrem na realidade:

Como a fotografia antes dele, o cinema foi uma revelação. As pessoas nunca tinham visto imagens tão fiéis a seus temas nem testemunhado movimento aparente que transmitisse a sensação tão convincente de movimento real. Como observou o teórico do cinema Christian Metz, na década de 1960, numa discussão da fenomenologia do filme, copiar a impressão de movi-mento é copiar sua realidade. O cinema atingiu seu objetivo num nível ja-mais alcançado por outro meio de comunicação (NICHOLS, 2014, p. 117).

Como diz Nichols, a “notável fidelidade da imagem fotográfica ao que ela re-gistra dá a essa imagem a aparência de um documento” (NICHOLS, 2014, p. 117, gri-fo nosso). Destaca-se, como se pode perceber, a palavra “aparência”. Não por acaso, a produção de documentários, no que diz respeito ao cinema brasileiro e também ao cinema mundial, nasce associada a uma necessidade da pesquisa científica. Tanto a fotografia quanto as imagens em movimento foram – e ainda são – instrumentos da pesquisa etnográfica, utilizada por antropólogos, cientistas sociais e comunicólogos, entre outros.

Ocorre, concomitante com o nascimento do cinema, a gênese do documen-tário etnográfico, isto é, a utilização das imagens em movimento como instrumento a serviço do estudo do ser humano:

Os métodos do cinema etnográfico são muito variados e associados a tra-dições teóricas diferenciadas como a meios e procedimentos utilizados. As-sentam no entanto em alguns princípios fundamentais: uma longa inserção no terreno ou meio estudado frequentemente participante ou participada, uma atitude não directiva fundada na confiança recíproca valorizando as falas das pessoas envolvidas na pesquisa, uma preocupação descritiva ba-seada na observação e escuta aprofundadas independentemente da expli-cação das funções, estruturas, valores e significados do que descrevem, utili-zação privilegiada da música e sonoridades locais na composição da banda sonora (RIBEIRO, 2007, p. 7-8).

Ribeiro lembra que os “métodos do cinema etnográfico são muito variados e associados a tradições teóricas diferenciadas como a meios e procedimentos utiliza-dos” (RIBEIRO, 2007, p. 7). Num primeiro momento, contudo, pode-se destacar o olhar eurocêntrico, ocidental, que via no outro o exótico, o diferente, o não europeu, com os operadores sendo enviados aos recônditos do mundo para capturar imagens do nun-ca dantes visto. A base era a ilusão da tentativa de captura do real, a invenção do outro, mas essa noção, evidentemente, só seria estabelecida mais tarde. Naquele momento do final do século XVIII, início do XIX, era o fascínio da possibilidade de registrar o outro que contava. Não por acaso, ciências nascentes como a antropologia logo perceberam o potencial de uso do registro fotográfico ou audiovisual dos povos e culturas como técnica investigativa. O cientista, ao invés de tomar notas, escrevendo detalhadamen-te acontecimentos e depoimentos que a memória poderia esmaecer ou apagar, estava

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livre para participar ativamente do processo de compreensão de uma dada realidade, vivendo a experiência da alteridade e mergulhando com seu corpo – e todos os senti-dos – na cultura do outro. O registro poderia então ser observado, avaliado, recortado, descrito, revisto quantas vezes fosse necessário. Poderia ainda servir como documento para outros pesquisadores, triste registro de povos e culturas que iam desaparecendo ou, na melhor das hipóteses, se hibridizando com a cultura dominante das nações que conquistavam o solo alheio às custas de tratados ou poderio bélico superior.

Possivelmente por sua relação com a ciência e por sua função como instru-

mento de registro do real, o documentário tenha recebido, por muito tempo, a chan-cela de tomada objetiva e inequívoca da verdade. Guy Gauthier, estudioso de docu-mentário francês, brinca dizendo que seriam precisos muitos anos de trucagens cada vez mais perfeitas para que a suspeita despertasse na audiência (GAUTHIER, 2011, p. 52). De fato, ainda que essa interpretação tenha sido ampliada com a noção de in-terpretação subjetiva, na qual pesam inúmeros fatores, é a partir de uma experiência concreta que o documentário constrói suas múltiplas possibilidades.

Por isso, segundo Gauthier, os filmes de exploração se constituem, nos anos

1920 e durante a década seguinte, em atividade importante dos documentaristas fran-ceses. “Atores, reconstituição, utilização dos lugares para as necessidades da filmagem: os acontecimentos relatados são mais ou menos exatos, mas trata-se de uma ficção à gloria do império” (GAUTHIER, 2011, p. 52). O estudioso destaca, portanto, essa cama-da ideológica do documentário francês que, como o britânico em relação aos ingleses, entre outros, estimularia o patriotismo dos impérios que desapareceriam a partir do final da Segunda Guerra Mundial.

O que se deve enfatizar, portanto, é que essa experiência concreta não se dá

sob o viés da objetividade pura e da imparcialidade total. Escolher um tema, selecionar personagens, perguntar, retomar, intervir, inserir aparatos tecnológicos como câmeras e microfones, editar as imagens são formas de intervenção no real, marcadas ainda pela subjetividade de cada um dos envolvidos, diretor, produtores, editores, cinegra-fistas, com todas as suas peculiaridades e humores. A experiência concreta não está isenta dos afetos, das ambiguidades, das contradições, das falhas de memória e, tam-pouco, da fabulação, do exagero e das omissões.

2 UM MESTRE DO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO

Eduardo de Oliveira Coutinho, conhecido como Eduardo Coutinho, é quase uma unanimidade entre apreciadores, críticos e produtores do audiovisual brasileiro. Nasceu em São Paulo em 11 de maio de 1933 e faleceu tragicamente no Rio de Janeiro, em 2 de fevereiro de 2014. Foi

assassinado pelo próprio filho, que sofre de esquizofrenia − transtorno mental que dificulta a distinção entre as experiências reais e imaginárias. Esquizo, em grego, quer dizer fragmentado; frenia significa mente (MORENO, 2015).

Coutinho transitou pela imprensa escrita, pelo teatro, pela TV, pelo cinema de

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ficção. Amir Labaki, idealizador do É tudo verdade: Festival Internacional de Documen-tário, diz que Coutinho “não começou documentarista. Tornou-se um” (LABAKI, 2006, p. 67). Seus primeiros trabalhos em cinema foram ficcionais, como Cabra Marcado para Morrer (1964), sobre a vida do líder paraibano camponês João Pedro Teixeira, assas-sinado em 1962. Já seu primeiro documentário foi Seis dias de Ouricuri (1976), mapa sobre o impacto da seca na cidade localizada a 620km de Recife (LABAKI, 2006, p. 67). Foi na televisão que esculpiu sua verve documental, por assim dizer, atuando como diretor do programa Globo Repórter em sua primeira fase (1973-1983). Permaneceu na equipe de agosto de 1975 até 1984, quando saiu porque o “programa entrou na era eletrônica (...). Em pouco tempo o documentário se transformou em reportagem, igual às produzidas pelos setores jornalísticos. Se tornou (sic) asséptico, integrado, neutrali-zado” (COUTINHO apud LABAKI, 2006, p. 61).

Desde 1984, abraçou o cinema. Com as dificuldades de sobreviver, escreveu roteiros institucionais. Especializou-se como roteirista, dado curioso e controverso, quando colocado ao lado da recorrente afirmação – questionável – de que Coutinho nunca seguia um roteiro. Mas foi com a produção de documentários que o cineasta ganhou reconhecimento, prêmios e a possibilidade de sobreviver no ofício do cinema. Ao documentar, tornou-se um narrador de narrativas, e encontrou um modo de ex-pressão singular, marcado pela capacidade de fazer emergir um universo de vozes por ele orquestradas, tanto por sua capacidade de escuta (MARTINEZ; MENEZES, 2012), quanto pela perspicácia em perceber a potência de um bom narrador. Nesse sentido, destaca-se o trabalho das equipes com as quais atuou, pois é patente a pesquisa que precede a captação dos depoimentos; o envolvimento de todos aqueles que parti-lham o processo, durante as entrevistas, e que cria a ambiência necessária para que as histórias possam se tecer; o trabalho de pós-produção, com edição cuidadosa, na qual as micronarrativas são costuradas por uma metanarrativa, a qual organiza, dá sentido, cria espaços de reflexão. Consuelo Lins, docente da Escola de Comunicação da UERJ, que trabalhou com o documentarista em dois filmes, Babilônia 2000 (2001) e Edifício Master (2002), diz que para Coutinho cinema não é inspiração, mas trabalho árduo. “Faz isso de modo muito específico, em que um pessimismo-otimista se associa a um bom humor mal-humorado, sedutor e inusitado, que acabou por transformá-lo em personagem do cenário cinematográfico brasileiro” (LINS, 2004, p. 11), por mais que fosse avesso a badalações em torno de sua figura.

Talvez, acima de tudo, Coutinho fosse mestre em criar vazios nos quais o es-

pectador pudesse adentrar. Edgar Morin, descrevendo o processo de trabalho em Crô-nica de um Verão (1961), dirigido por ele e por Jean Rouch (1917-2004), fala sobre o cineasta-mergulhador, aquele capaz de se aprofundar, com todos os realizadores, no cotidiano de seus personagens, para que, a partir de suas características mais particu-lares, surjam questões universais (SILVA, 2013).

Um mergulho – esse parece ser também o caminho empreendido por Couti-nho, que, ao dar voz a pessoas comuns, na rotina de suas vidas, aponta para um uni-verso plural de questões existenciais: amor, angústia, solidão, carências materiais e afetivas, medos, deslumbramentos poéticos. Coutinho escancara o absurdo e a beleza

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da aventura de existir, ao mostrar que somos as histórias que narramos. Há uma postu-ra compreensiva do real, que deve ser mais interpretado do que explicado (KÜNSCH, 2010, p. 13-47).

Na visão de Cláudio Bezerra, docente da Universidade Católica de Pernambu-co, Coutinho conseguiu transformar pessoas comuns em performers. “É possível tam-bém perceber a existência de certas características básicas ou um perfil comum aos escolhidos para participar dos seus documentários” (BEZERRA, 2014, p. 57-58). Para o estudioso, são seis as condições dos personagens: anonimato, oralidade, espontanei-dade, fabulação, teatralidade e experiência de vida (BEZERRA, 2014, p. 58).

Do particular, Coutinho traz à tona: a história coletiva (como em Cabra Marca-do para Morrer, 1984); debate questões de (in)justiça social, urgentes e, infelizmente, ainda atuais (Boca do Lixo, 1992), em sua cruel relação com a financeirização do mun-do (MARTINEZ, 2014); convida à alteridade a partir da exposição de intersubjetivida-des que dialogam (Edifício Master, 2002), em um espaço (exíguo e ao mesmo tempo pleno), e de um vazio, comum. Ainda, põe em cheque o próprio fazer documental, na discussão sobre os limites do real e da ficção (Jogo de Cena, 2007), estas, apenas algumas dentre as tantas indagações suscitadas por sua obra, aqui mencionadas por terem sido objeto de estudos e debates no ano de 2015, como parte dos trabalhos investigativos do Grupo de Pesquisas em Narrativas Midiáticas (NAMI) do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso).

Um documentário, portanto, não serve como testemunho inquestionável dos fatos, não deseja modificar o mundo, mas apresenta mundos possíveis. A capacidade de se adaptar, a resistência e a vontade de viver diante das adversidades e a possibili-dade de contar as próprias histórias como forma de manutenção do equilíbrio social e individual são elementos recorrentes e, não raro, inquietantes.

3 SOBRE O PERCURSO METODOLÓGICO

O presente artigo surge de uma inquietação dos pesquisadores sobre o volume e, principalmente, conteúdo acerca dos textos acadêmi-cos sobre a produção do cineasta. O resultado obtido fascinava a muitos não apenas pelo quê de Cinema Novo, que combinava com

um olhar ao mesmo tempo acurado e sensível ao outro, mas também pelo apuro téc-nico e pelas capacidades de escuta e de encontrar bons narradores.

Para este texto, decidiu-se por realizar uma revisão de literatura, por meio de levantamento com base no Portal Periódicos Capes4 no período de outubro de 2003 a agosto de 2015. Como se sabe, o Portal é uma referência nacional de produção aca-dêmica, contemplando o texto completo de mais de 37 mil publicações periódicas,

4 Portal Periódicos Capes. Disponível em: <http://www.periodicos.capes.gov.br>. Acesso em: 24 nov. 2015.

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internacionais e nacionais, de 126 diferentes bases de dados.

A premissa inicial foi a de realizar uma revisão específica de artigos, descar-tando outras modalidades de produção científica, como monografias, dissertações e teses. Uma triagem exploratória, realizada em 04 de agosto de 2015, revelou 165 arti-gos rastreados a partir do conceito-chave Eduardo Coutinho5.

Do ponto de vista de abordagem metodológica, optou-se pelo método da análise de conteúdo (BARDIN, 2011; MARTINEZ, PESSONI, 2014), tendo o corpus sido submetido a tratamento de sistematização, incluindo download e armazenamento, com devida cópia de segurança. Durante essa etapa, o rastreamento de artigos reve-lou autores e/ou temas homônimos, sobretudo no campo da literatura e das ciências biológicas, que foram descartados. Foram igualmente desconsiderados artigos irre-cuperáveis devido a links corrompidos, assim como produções em língua estrangeira e/ou publicadas no exterior. Outro fator determinante para os cortes foi a opção pela produção divulgada em publicações com sistema de acesso aberto (open access) em contraposição aos acervos de revistas inseridas no sistema comercial, comum sobre-tudo em artigos publicados no exterior. A justificativa por tal opção foi o reconheci-mento da produção disponível prontamente e sem ônus para os pesquisadores inte-ressados. Após essas opções e limitações, o número de artigos disponíveis reduziu-se de 165 artigos para 30.

Na etapa seguinte, realizou-se uma nova verificação para: 1) descarte de resu-mos de teses e dissertações que haviam sido erroneamente cadastrados como artigos; 2) identificação e descarte de artigos em duplicidade, fruto da publicação dos mesmos artigos em locais distintos. Dessa forma, o corpus passou para 10 artigos.

Ainda durante a catalogação dos artigos, foi feita uma refinação do corpus, com o descarte de dois estudos que mencionavam de forma superficial a obra de Cou-tinho, bem como o de uma entrevista que havia sido incorretamente indexada pelo sistema do portal como um artigo científico. Dessa forma, o corpus final consiste de sete artigos.

Finalizando o processo de triagem, foi feita uma leitura flutuante dos artigos selecionados (BARDIN, 2011, p. 126) para permitir a familiarização com os documen-tos. Esta fase permitiu a identificação das primeiras unidades de registro. A unidade de registro adotada neste trabalho foi a temática, que consiste em “descobrir os ‘núcleos de sentido’ que compõem a comunicação e cuja presença ou frequência de aparição podem significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido” (BARDIN, 2011, p. 135). Essa medida permitiu estabelecer os três eixos principais de análise: 1) os refe-renciais teóricos utilizados; 2) os eixos de pesquisa realizados sobre a vida e obra de Eduardo Coutinho; 3) os autores e as autoras do estudo.

5 As palavras-chave foram colocadas entre aspas, para se obter o termo exato. Sem o uso de aspas no mecanismo de busca, o retorno estava na casa dos milhares.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

Quadro 1: corpus de estudo (por ordem cronológica crescente)

Texto Ano Autores e autoras Título

1 2006 Verônica Ferreira Dias Cabra marcado para morrer

2 2008 Andréa França O cinema, seu duplo e o tribunal em cena

3 2009 Mariana Duccini Junqueira da Silva Estética da Subtração

4 2010 Giovana Scareli Construção fílmica e educação

5 2010 Patrícia Bandeira de Melo A intervenção cultural do discurso

6 2012 Monica Martinez Jornalismo literário, cinema e docu-mentário

7 2012 Alexandre Rocha da Silva; Felipe Xavier Diniz

Eduardo Coutinho entre o jogo e a cena

Fonte: MARTINEZ; SILVA; IUAMA, 2016.

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Apresentamos a seguir uma interpretação dos dados, feita a partir das seguintes categorias: referenciais teóricos utilizados nos artigos, os eixos de pesquisa sobre a vida e a obra de Eduardo Coutinho e o per-fil dos autores e autoras dos estudos.

4.1 Os referenciais teóricos utilizados

Ao todo, são 103 diferentes referenciais teóricos listados nos sete artigos. O autor de cinema com maior número de livros citados é Ismail Xavier, professor da ECA--USP desde 1971 e referência do campo. Ao todo, são seis referências: dois artigos: Ci-nema e descolonização6 e Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna7 e quatro livros: O discurso cinematográfico: a opacidade e a transpa-rência8; Os desafios do cinema: a política do Estado e a política dos autores9; O cinema bra-sileiro moderno10; O olhar e a cena11. Já o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) tem a obra geral sobre linguagem mais citada: Ordem do discurso12 é referenciada em três dos sete textos, em diferentes edições. Nota-se, aqui, a influência do pensamento francês nos estudos brasileiros.

Especificamente sobre a vida e obra de Eduardo Coutinho, a principal refe-rência é o livro O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo13, refe-6 In: Filme Cultura, Rio de Janeiro, n. 40, 1982, p. 23-27.7 In: Comunicação & Informação. Goiânia, v. 7, 2004, p. 180-187.8 Cf. XAVIER, Ismail. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1984; 2005.9 Cf. XAVIER, Ismail. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.10 Cf. XAVIER, Ismail. São Paulo: Paz e Terra, 2001.11 Cf. XAVIER, Ismail. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.12 Cf. FOUCAULT, Michel. São Paulo: Loyola, 1996; 2004; 2008.13 Cf. LINS, Consuelo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

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renciada em cinco dos sete textos analisados (71%)14. Isso se deve, provavelmente, a três motivos: 1) o fato de o livro ser de 2004, possivelmente a primeira obra sobre o documentarista, e estar no mercado há mais de dez anos; 2) a inegável qualidade da obra, adensada pelo fato de a autora ter tido experiência direta de trabalho com o cineasta; 3) a autora ser uma renomada pesquisadora de cinema no país, participando de eventos científicos como o organizado pela Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), o que dá visibilidade e credibilidade ao seu trabalho. Há uma segunda obra da mesma autora, Filmar o real15, que é citada em um dos sete textos. Infere-se aqui uma questão paralela, mas importante para a área: são poucos os autores que publicam mais de uma obra pela mesma editora, dada à volatilidade do mercado editorial brasileiro.

Dada essa característica peculiar, de extenso referencial não reincidente16, op-tou-se por realizar a classificação por autores que tiveram citações em três ou mais arti-gos do corpus. Para fins de tabulação de dados, diferentes edições foram consideradas como uma única obra. Observa-se que há 56 autores que possuem apenas uma (49) ou duas (sete) obras referenciadas por artigo:

Quadro 2: Principais autores e autoras utilizados (por ordem de ocorrência).

Autores Nº de artigos que os citam

Obras citadas Número de citações

LINS, Consuelo 5 2 11

XAVIER, Ismail 4 6 14

COMOLLI, Jean-Louis 4 3 12

FOUCAULT, Michel 3 4 6Fonte: MARTINEZ; SILVA; IUAMA, 2016.

A obra com o maior número de citações é Homo ludens17, do historiador neer-

landês Johan Huizinga (1872-1945), sendo referenciada 12 vezes em 1 único artigo (DINIZ; SILVA, 2012).

Partindo dessa análise, optou-se por desenvolver um terceiro quadro, com os três livros mais relevantes no corpus analisado, levando-se em conta tanto a quantida-de de vezes em que as obras são referenciadas quanto as citações:

Quadro 3: Principais autores utilizados.

Autores Obra Total

LINS, Consuelo O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

9

14 Ressalta-se que este estudo não é de natureza quantitativa. As porcentagens são apresentadas apenas com a intenção de propiciar uma noção de grandeza. 15 Cf. LINS, Consuelo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.16 Por motivo de espaço, as tabulações dos 103 artigos não constam na íntegra neste artigo. Contudo, elas estão disponíveis para consulta, bastando para isso o contato com os autores.17 Cf. HUIZINGA, Johan. Johan. São Paulo: Perspectiva, 2000.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

COMOLLI, Jean-Louis Ver e poder – a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, docu-mentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

9

XAVIER, Ismail O Discurso cinematográfico - a Opacidade e a Transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

8

Fonte: MARTINEZ; SILVA; IUAMA, 2016.

4.2 Os eixos de pesquisa sobre a vida e a obra de Eduardo Coutinho

A tabela abaixo aponta os filmes de Coutinho que foram objeto dos estudos. Com exceção de duas pesquisas, que comparam produções distintas do diretor (SILVA, 2009; DINIZ; SILVA, 2011), as demais mencionam apenas um filme cada:

Quadro 4: Filmes citados nas pesquisas (por maior incidência)

Filme Ano Inferência Autores

Santo forte 1999 4 SILVA, 2009SCARELI, 2010

MARTINEZ, 2012DINIZ; SILVA, 2012

Cabra marcado para morrer

1984 2 DIAS, 2006MELO, 2010

Jogo de cena 2006 2 FRANÇA, 2008DINIZ; SILVA, 2012

Peões 2004 2 SILVA, 2009DINIZ; SILVA, 2012

As Canções 2011 1 DINIZ; SILVA, 2012

Edifício Master 2002 1 DINIZ; SILVA, 2012

Moscou 2009 1 DINIZ; SILVA, 2012

O fim e o Princípio 2005 1 SILVA, 2012Fonte: MARTINEZ; SILVA; IUAMA, 2016.

O filme Santo Forte (1999), com quatro menções, é o principal objeto de es-tudo dentre os textos analisados. Não se trata de um acaso. A filmagem de trajetórias religiosas em uma comunidade do Rio de Janeiro, baseada essencialmente na fala dos personagens, é o suporte a partir do qual “as reflexões de Coutinho sobre documen-tário se tornaram mais definidas” (LINS, 2004, p. 98). Seguem-se Cabra Marcado para Morrer (1984) e Peões (2004), com duas menções cada. Embora apareça em 2 artigos, Jogo de cena (2006) é citado em conjunto com outros 2 filmes (Moscou, 2009 e As Can-ções, 2011) num dos artigos somente para indicar uma característica daquela fase da obra do autor (DINIZ; SILVA, 2012).

No âmbito dos temas, quatro artigos são das Ciências da Comunicação, com foco em representação (FRANÇA, 2008), autoria (SILVA, 2009), jornalismo (MARTINEZ, 2012) e cinema (DINIZ; SILVA, 2012). Além desses, existem estudos sob a perspectiva da história (DIAS, 2006), pedagogia (SCARELI, 2010) e sociologia (MELO, 2010). Essa predominância é justificável, uma vez que classicamente os estudos fílmicos são pro-

Quadro 3: Principais autores utilizados (cont.)

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duzidos a partir da área da Comunicação.

4.3 Os autores e as autoras do estudo

Do ponto de vista de relações de gênero, houve predominância de autoria feminina (seis dos sete artigos do corpus). Uma investigação mais aprofundada seria necessária para identificar os motivos desta predominância. Uma hipótese seria a de que o trabalho do cineasta despertaria mais interesse na esfera do feminino, aqui en-tendido não como uma questão relativa à sexualidade, mas à percepção de mundo.

Com base no levantamento feito na plataforma Lattes, do CNPq, foi elaborada a seguinte tabela, ordenada por nome do autor, com titulação na ocasião da elabora-ção do artigo:

Quadro 5: Sobre os autores (por ordem alfabética de sobrenome).

Autores Formação Acadêmica Área Instituição

DIAS, Verônica Ferreira Doutoranda Ciências da Comuni-cação

USP

DINIZ, Felipe Mestrando Comunicação e Infor-mação

UFRGS

FRANÇA, Andrea Doutora Comunicação UFRJ

MARTINEZ, Monica Pós-doutorado Comunicação UMESP

MELO, Patrícia Bandeira de

Doutoranda Sociologia UFPE

SCARELI, Giovana Doutora Educação UNICAMP

SILVA, Alexandre Rocha da

Pós-doutorado Ciências da Comuni-cação

Sorbonne Nouvelle

SILVA, Mariana Duccini Junqueira da

Doutoranda Ciências da Comuni-cação

USP

Fonte: MARTINEZ; SILVA; IUAMA, 2016

Outros apontamentos podem ser feitos: 1) as instituições de origem dos pes-quisadores são predominantemente públicas (cinco de sete); 2) apenas dois dos sete artigos são de outras regiões que não a Sudeste; e 3) a titulação dos pesquisadores é variável, abrangendo um trabalho de um mestrando (em conjunto com orientador) e o restante de doutorandos a doutores com pós-doutorado.

Evidencia-se também a predominância de estudiosos do campo da Comuni-cação. Três quartos dos autores possuem formação nessa área, e mesmo no artigo que trabalha com um ponto de vista relacionado à História (DIAS, 2006), o estudo é feito por uma pesquisadora da Comunicação.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo teceu um breve arrazoado teórico sobre a gênese do docu-mentário, que traz em sua matriz a noção de registro fiel do real her-dada da fotografia, em sua relação com a investigação do mundo. Por isso o documentário foi e continua sendo tão usado como técnica da

investigação científica. Após essa constatação, o argumento abre para a noção de que a prática do registro documental, embora experiência concreta, não se dá sob o viés da objetividade pura e da imparcialidade total.

Em seguida, o artigo delineia uma minibiografia de Eduardo Coutinho, dos seus primeiros trabalhos ficcionais em cinema, como Cabra Marcado para Morrer (1964), a passagem pelo programa Globo Repórter (1975-1984) e desde então, quando se dedicou à produção de filmes. A relevância do autor no cenário do documentário nacional, bem como sua longa vida produtiva, sugeriu aos autores a princípio a hipóte-se de que haveria a existência de farta produção de artigos científicos sobre sua obra.

A curiosidade por investigar o pensamento comunicacional sobre o cineasta levou à proposta desta pesquisa, que empregou em sua primeira fase o rastreamento do conteúdo do Periódicos Capes, portal que congrega a produção científica nacional. Apesar do relevante número inicial de artigos (165), o fato é que a triagem feita em duas etapas revela a existência de apenas sete artigos realmente escritos sobre o autor e sua obra. Esse dado é inquietante, pois, apesar de o rastreamento ter sido cuidado-samente feito, a partir do método da análise de conteúdo, sabe-se da existência de outros artigos em revistas científicas indexadas no portal que não foram recuperados pelo sistema de busca.

Na segunda fase da pesquisa, por meio do método da análise de conteúdo (BARDIN, 2011; MARTINEZ; PESSONI, 2014), foram investigados os três eixos principais de análise: 1) os referenciais teóricos utilizados; 2) os eixos de pesquisa realizados so-bre a vida e obra de Eduardo Coutinho; 3) os autores e as autoras do estudo.

Ao todo, foram 103 diferentes referenciais teóricos listados nos sete artigos. O autor de cinema com maior número de livros citados foi Ismail Xavier, com sete re-ferências. Xavier é professor da ECA-USP desde 1971 e referência do campo. O fato de a obra geral sobre linguagem mais citada ser de um filósofo francês (Michel Foucalt) sugere a forte influência francesa no campo brasileiro da Comunicação.

Especificamente sobre a vida e obra de Eduardo Coutinho, a principal refe-rência encontrada foi o livro O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo, de Consuelo Lins (Zahar, 2004), referenciada em 5 dos 7 textos analisados (71% ). Isso se deveu, a nosso ver, a três motivos: 1) o fato de o livro ser de 2004, provavelmen-te a primeira obra sobre o documentarista, e estar no mercado há mais de dez anos. 2) a inegável qualidade da obra, adensada pelo fato de a autora ter tido experiência dire-ta de trabalho com o cineasta; 3) a autora ser uma renomada pesquisadora de cinema no país, participando de eventos científicos com o organizado pela Associação Nacio-

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nal dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), o que dá visibilida-de e credibilidade ao seu trabalho. Há uma segunda obra da mesma autora, Filmar o real (Zahar, 2008), citada em 1 dos 7 textos. Infere-se aqui uma questão paralela, mais importante para a área: são poucos os autores que publicam mais de uma obra pela mesma editora, dada à volatilidade do mercado editorial brasileiro.

O filme Santo Forte (1999), com quatro menções, foi o principal objeto de es-tudo dentre os textos analisados. Não foi um acaso. Segundo Lins, a filmagem de tra-jetórias religiosas em uma comunidade do Rio de Janeiro, baseada essencialmente na fala dos personagens, é o suporte a partir do qual “as reflexões de Coutinho sobre documentário se tornaram mais definidas” (2004, p. 98).

Do ponto de vista dos campos produtores dos artigos, 4 artigos eram das Ciências da Comunicação, com foco em representação (FRANÇA, 2008), autoria (SILVA, 2009), jornalismo (MARTINEZ, 2012) e cinema (DINIZ; SILVA, 2012). Além destes, exis-tem estudos sob a perspectiva da história (DIAS, 2006), pedagogia (SCARELI, 2010) e sociologia (MELO, 2010). Essa predominância é compreensível, uma vez que classica-mente os estudos fílmicos são produzidos a partir da área da Comunicação.

Do ponto de vista de relações de gênero, houve predominância de autoria feminina (6 dos 7 artigos do corpus). Uma investigação mais aprofundada seria neces-sária para identificar os motivos desta predominância. Uma hipótese seria a de que o trabalho do cineasta despertaria mais interesse na esfera do feminino, aqui entendido não como uma questão relativa à sexualidade, mas à percepção de mundo.

Outros apontamentos puderam ser feitos: 1) a instituição de origem dos pes-quisadores foi predominantemente pública (5 de 7); 2) apenas 2 dos 7 artigos eram de outras regiões que não a Sudeste; e 3) a titulação dos pesquisadores foi variável, abrangendo de mestrandos (em conjunto com orientador) a doutorandos e doutores com pós-doutorado.

Como consideração final, dialogamos com Bill Nichols, professor de cinema na San Francisco State University, ao endossar que sim, por trás da obra documental de Eduardo Coutinho, há uma história de amor do cinema e do cineasta, mas pela profun-didade das coisas, pela capacidade incomum que a prática possibilita de, dependendo da abordagem empregada, captar a vida de uma forma muito mais complexa do que ela aparentemente é, ainda que a registre “como ela seja”, graças ao imenso potencial do documentário de registrar pessoas, lugares e coisas do mundo como são, como imaginam ser ou como os idealizadores da película a percebem ou imaginam que eles sejam ou devam ser.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

Referências

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FilmografiaBABILÔNIA 2000. Direção de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: VideoFilmes, 2001. 1 DVD (80 min): son. color.

BOCA de Lixo. Direção de Eduardo Couti-nho. Rio de Janeiro: Cecip, 1992. Brasil 1 DVD (50 min): son. color.

CABRA Marcado Para Morrer. Direção de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro, Iser Ví-deo, 1987. 1 DVD (54 min): son. color.

EDIFÍCIO Master. Direção de Eduardo Cou-tinho. Rio de Janeiro: VideoFilmes, 2002. 1 DVD (110 min): son. color.

GLOBO Repórter. Direção de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Rede Globo, 1973-1983. Televisão (semanal), son. co-lor.

JOGO de Cena. Direção de Eduardo Couti-nho. Rio de Janeiro: VideoFilmes; Matizar, 2007. 1 DVD (105 min): son. color.

SANTO Forte. Direção de Eduardo Cou-tinho. Rio de Janeiro: CECIP, 1997. 1 DVD (80 min): son. color.

SEIS Dias de Oiricuri. Direção de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Rede Globo de Televisão, 1976. 1 DVD (41 min): son. color.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

SANTO FORTE OU COMO NARRAR DIANTE DO ENIGMA DO REAL

Pedro Felipe Moura de Araújo1

1 Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB, 2011), mestrado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2015) e atualmente cursa doutorado na mesma instituição. Tem interesse nos estudos e práticas dos seguintes temas: estudos contemporâneos da subjetividade, cinema documentário, ética e processos estéticos.

Figura 1: o vazio no quintal de Dona Thereza, em Santo Forte.

Fonte: Frame capturado em arquivo de filme.

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1 INTRODUÇÃO

Depois de Cabra Marcado Para Morrer (1964), documentário divisor de águas no cinema brasileiro, Eduardo Coutinho não havia lançado co-mercialmente nenhum outro filme, pois não se considerava cineas-ta. Até 1997, havia realizado apenas vídeos institucionais e alguns

poucos filmes junto ao Centro de Criação da Imagem Popular (CECIP), onde trabalha-va. Sem dinheiro e não conseguindo ter coragem suficiente para arriscar no cinema, bateu-lhe “um troço existencial” (LINS, 2004, p. 97) e, como num “ato de desespero”, só encontraria sentido em continuar fazendo filmes a partir de algo pessoal e intransfe-rível, algo que ninguém gostaria ou poderia fazer. Coutinho encontra com José Carlos Avellar, crítico de cinema e então diretor da RioFilme, para conversar tanto sobre o que projetava fazer como a lista de dificuldades que implicaria aquela proposta. Interessa-do em investir num “cinema menos convencional e mais inquieto esteticamente”, Avel-lar assume produzir e dar visibilidade a empreitada do amigo e cineasta. Depois de 15 anos, Santo Forte seria seu segundo filme lançado comercialmente nos cinemas. Nesse filme, Coutinho tomaria por base uma radicalidade metodológica: a aposta irrestrita na fala das pessoas, na palavra filmada. Depurando os elementos éticos e estéticos de seus filmes anteriores, Coutinho se concentraria no que entendia como fundamental: o encontro, a fala e a transformação dos personagens.

Após ter coordenado uma pesquisa sobre identidade brasileira para uma sé-rie na TV Educativa (RJ), que não foi concluída, Coutinho percebeu que falar sobre ex-periências religiosas deixavam as pessoas mais à vontade que quaisquer outros temas, pois a relação com o sagrado vinha impregnada do dia a dia ordinário que se vive. Encontrou, nesse eixo central da religião, um acesso privilegiado à fala e ao cotidiano das pessoas, sendo esse seu desejo do fazer documental naquele momento. A reli-gião, como conteúdo, perpassa de diferentes maneiras a obra de Coutinho, mas será trabalhada com radicalidade ética e minimalismo estético em Santo Forte. A partir do contato com a pesquisa da antropóloga Patrícia Birman, sobre trajetórias religiosas populares na favela Vila Parque da Cidade2, Coutinho encontra tanto a riqueza mate-rial e subjetiva3 que necessita como a definição da proposta metodológica de filmar numa “locação única”. Tal concentração geográfica o livraria do perigo na busca de uma (suposta) totalidade sobre o discurso religioso no Brasil, buscando focar mais no ato da palavra encarnada no cotidiano, como um índice de acesso à temática e à fala do outro.

No fazer do filme, Coutinho se depara com um mosaico de crenças em dife-

rentes registros: de trajetórias e eventos singulares à rituais e experiências que convi-vem com as bênçãos e decepções das religiões. O filme propõe uma perspectiva do-cumentária contrária às narrativas clássicas que abordam o tema, nas quais a relação

2 Localizada no bairro da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro.3 Outro ponto crucial nessa definição é o contato com as entrevistas que a antropóloga Patrícia Guimarães, na época assistente de Patrícia Birman, fazia na região para sua tese de doutorado.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

com a religião é retratada como um processo de alienação social, o ópio do povo. Ha-verá em Santo Forte uma aposta no encontro com pessoas e seu imaginário4 religioso, na forma como esse se veicula pela contação de suas histórias singulares. O que teriam a falar para além da doutrina, aqueles que creem? Com a proliferação das entrevistas, talk-shows e enquetes de rua como a referência das “imagens do real” reproduzidas pela televisão, o território único livraria Coutinho da ideia de uma totalidade verifi-cável, de ter que fazer uma cobertura nacional sobre o tema. É só com o advento do vídeo como suporte que Coutinho poderia realizar sua intuição materialista de apostar no acontecimento da fala, na captação paciente do transcorrer de uma conversa (pois assim filmaria até mais de uma hora sem interrupções), acreditando que é a partir des-te dispositivo, mais do que no tema, que seu documentário poderia se realizar.

Tendo início em outubro de 97, precisamente no dia em que o papa João Pau-lo II celebra uma missa para milhares de brasileiros no aterro do Flamengo, Coutinho vai à procura de pessoas que saibam contar histórias, que tenham fé no que dizem. A seleção das personagens ocorre por relatórios escritos, conversas com pesquisadores e imagens prévias realizadas pela equipe, pois o que se vê no filme é o primeiro con-tato de Coutinho com essas pessoas, como se fosse esse “frescor do primeiro encon-tro” (MESQUITA, 2013, p. 103) que pudesse garantir um momento único, incorporando todo o aleatório que viesse a acontecer ou ser dito por ambas as partes. Em Santo Forte, esse rigor nas escolhas técnicas e estéticas, junto ao risco da não garantia desses depoimentos – que se configurará em seus filmes seguintes como um dispositivo5 de filmagem –, mais que um conhecimento sobre a temática da religião, reposiciona as condições de invenção que ele credita ao cinema documentário, como de sua opção ética pela conversa e pelas pessoas comuns. Frente a um tema tão amplo e enraiza-do em nossa cultura como a religião, como não ser clichê? Como filmar diferente de como a televisão mostra? Diante da sobre-exposição televisiva da entrevista e das re-portagens de opinião, como reanimar a força de um corpo ao narrar, de uma palavra filmada?

4 “O documentário tem que deixar as coisas abertas para que o público pense. E portanto, eu não estou à procura da verdade, eu estou à procura do imaginário das pessoas” (MESQUITA, 2013, p. 238).5 “Dispositivo” é um termo que Coutinho começou a usar para se referir a seus procedimentos de filmagem. Em outros momentos ele chamou a isso de “prisão”, indicando as formas de abordagem de um determinado universo. Para o diretor, o crucial em um projeto de documentário é a criação de um dispositivo, e não o tema do filme ou a elaboração de um roteiro – o que, aliás, ele se recusa terminantemente a fazer. O dispositivo é criado antes do filme e pode ser ‘Filmar dez anos, filmar só gente de costas, enfim, pode ser um dispositivo ruim, mas é o que importa em um documentário’ [fala do Coutinho]” (LINS, 2004, p. 101).

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2 NOTAS SOBRE MÉTODO: ESCREVER COM IMAGENS

Como fazer surgir no corpo do texto a trama complexa que estes ques-tionamentos acima nos apontam? Como não fechar a leitura de ima-gens em um sentido concluso, mas intentar a profusão entre pensa-mento, afetos e acontecimentos que as imagens podem suscitar? No

prólogo de seu livro As distâncias do cinema, o filósofo Jacques Rancière (2012) reivin-dica uma posição teórico-política que recusa a autoridade “daquele que sabe”, a partir do que chama de uma “política do amador” (p. 16): uma prática de escrita na relação com o cinema que lhe permitiria traçar um itinerário próprio, viajar dentro de um sis-tema de desvios que o terreno das imagens em movimento nos dispõe. Perscrutando um espaço possível, no tecer das palavras junto às imagens, apostaremos na forma do ensaio: por ser uma escrita mais lacunar do que prescritiva, o ensaio tende a não ser sistemático nem tampouco disciplinar.

Propondo-se avesso a dogmatismos, o ensaio seria essa experiência com a es-crita e com o pensamento no qual a possibilidade da verdade apareceria como “cons-telação em devir” (ADORNO, 2003, p. 21), onde não se poderia “admitir a primazia das formas lógicas sob a qual deveriam se enquadrar os objetos do conhecimento, nem tampouco é possível pressupor qualquer forma de inteligibilidade que pudesse abrir mão de conceitos” (BOTTON, 2011, p. 91). No presente ensaio, procurar-se-á não for-mular caminhos definitivos, mas talvez se aproximar do que Walter Benjamin apontou como imagens de pensamento, nos convidando a “ler-ver imagens não enquanto ma-téria a ser decifrada, tampouco como mera representação do mundo, mas como força que pode produzir estranhamento a partir de sentidos que não se completam, que não se encerram em si mesmos, não totalizam” (RODRIGUES; BAPTISTA, 2010, p. 422).

Santo Forte. Após lermos o título do filme, branco no preto em letras garra-fais, segue-se uma breve imagem de um homem e uma mulher levemente abraçados, lado a lado na porta de casa. Ainda na imagem, começamos a ouvir uma voz masculina dizendo “Aí teve uma vez a noite que ela acordou...”, e já vemos um homem sentado no sofá da sala de casa, iniciando o relato de uma incorporação espírita que lhe sucedeu junto a esposa. Tudo o que surge nesta cena está nesta imagem em plano fixo: nas pa-lavras deste homem que fala para a câmera. Ele fala da vez em que sua mulher acordou no meio da noite e incorporou um de seus guias, uma pomba-gira (corte rápido para a imagem de uma pequena estátua da entidade), que se chamava Maria Navalha. Com sobrancelhas expressivas, ele segue falando que a pomba-gira o ameaçou de morte, que a sua esposa não deixava ela levá-lo porque era boba, perguntando se quer que ela carregue um braço ou uma perna dele. O homem tenta conversar com Maria Na-valha, a questiona porque iria matá-lo, já que ele não faz nada de errado: “Vai me tirar um órgão meu assim por quê?”, encena o homem. Pouco mais de meia-noite, o guia foi embora, e a esposa acorda com dores no corpo. “É você? Não... agora sou eu”, explica ele, dizendo que sua esposa agora estava consciente. Ele questiona em seguida se ela tinha “problemas de espiritismo” e por quê nunca teria dito para ele, pois um guia dela

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desceu e o ameaçou. Ele explica que ela deveria procurar um centro espírita para ver essas questões, pois isso poderia até acabar a relação deles.

Ainda narrando seu relato, o homem afirma que estes episódios voltaram a acontecer, quase que diariamente, e o que lhe ajudou foi a quando a “vovó” (de ter-reiro, e vemos a mesma operação de mostrar uma pequena estátua que representa a entidade) de sua esposa “desceu” e explicou tudo que estava acontecendo. A vovó disse a ele que tinha que levá-la no centro para fazer a “limpeza”, senão ela iria “morrer louca”. Corte seco na imagem, para uma cena de alguns segundos do quarto do casal: uma imagem fixa do cômodo vazio. Ele fala que a vovó o impeliu a levantar, que “faz a limpeza” nele e, depois, faz a limpeza nela. Coutinho pergunta: “Fez limpeza como?”, ao que ele mostra, falando “assim”, enquanto desliza as mãos nos antebraços. Coutinho fala: “O passo...”, e ele confirma. Diz que a vovó jogou um pouco de fumaça e o fez be-ber um pouco de vinho com ela. O homem pede para a vovó “dar uma limpeza nela”, seguida da confirmação: “Não... nela é essencial”. Depois de realizar o serviço, a vovó conclui: “Agora eu vou, meu filho”. Diante de uma pequena hesitação no relato do ho-mem, que até então ainda não se sabe quem é, Coutinho intervém um pouco confuso, questionando se o “ela deu uma limpeza nela” era como se tivessem três pessoas no momento, que a mulher era o “cavalo” do espírito da vovó. O homem acompanha a voz rouca do Coutinho, confirmando com a sentença: “Isso... Vou fazer uma limpeza no meu cavalo, que meu cavalo tava muito carregado”. A vovó vai embora, e em seguida sua es-posa acorda, perguntando o que havia ocorrido. De maneira prosaica, o homem então conclui seu relato: “Aí eu disse, ‘calma, sua vovó desceu, explicou o que tá acontecendo com você. Mas amanhã eu te falo, porque tá muito tarde e eu tenho que acordar amanhã’”. Corta, fim de cena, tela preta.

Rio de Janeiro, 5 de outubro de 1997. Imagens aéreas, realizadas para a televisão, mostram uma multidão que acompanha uma missa celebrada pelo papa João Paulo II, no aterro do Flamengo. Com sua voz fraca, o papa abre os trabalhos da cerimônia, convocando os fiéis a congregar, a pedir perdão por todos os pecados. A imagem de uma câmera posicionada ainda mais nas alturas, quase como um “olhar de Deus” vindo dos céus, dimensiona-nos à volumosa legião de pessoas que ali se fazem presentes. Seguem-se imagens aéreas de uma favela, junto ao som da reza coletiva da missa, que agora ganha destaque, “por minha culpa, por minha máxima culpa...”. Corta.

Agora já vemos Coutinho de costas, em primeiro plano, junto à sua equipe de filmagem, subindo e descendo as estreitas e largas passagens de uma favela, carregan-do toda uma aparelhagem cinematográfica em fila indiana. Uma primeira proposta do documentário seria verificar a repercussão da visita do Papa junto aos moradores da favela Vila Parque da Cidade. O objetivo seria ir atrás e filmar quem estivesse assistindo à missa pela televisão, estando ou não no escopo das pesquisas prévias para o filme6.

6 “Em seguida a equipe de quatro pesquisadores – Patrícia Guimarães, Cristiana Grumbach, Daniel Coutinho [filho do cineasta] e Vera Dutra dos Santos, uma moradora da comunidade – retomou o trabalho por mais três semanas, entrevistando um pouco mais de 40 moradores” (LINS, 2004, p. 102).

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Junto com a equipe está Vera, ex-agente comunitária de saúde e moradora há 34 anos da Vila, que nos informa sobre a localização e sua população de aproximadamente 1.500 moradores. Ela diz que foi a “porta de entrada” para que o filme acontecesse, sendo uma espécie de guia a conduzir Coutinho e equipe em direção às pessoas da comunidade, para encontrá-las e conversar sobre a visita papal.

Vemos imagens da equipe conversando, discutindo, andando. Chegam a uma

casa, onde temos um primeiro contato com Seu Braulino. Ele está na sala de casa, gra-vando a missa na TV, para recordação. Diz que se considera católico, mas que também tem um pouco de espiritismo e umbanda. O filme segue com imagens de outras pes-soas em suas casas, também acompanhando a cerimônia pela TV: acompanhamos o olhar da câmera, a partir de espiadas por brechas e quartos. Com movimentos econô-micos, a câmera desliza em um homem até chegar em seu rosto: ele está de frente a tela cantando junto com Roberto Carlos, que se apresenta no palco do Papa. Na sala de sua casa, Heloisa conta que é espírita, mas que na abertura de seu terreiro “reza o pai nosso, a ave maria”. Em outro quarto, conhecemos Vanilda, que afirma ser apostó-lica romana e que fez um pedido diretamente a Deus – ali mesmo, enquanto assiste ao papa na TV –, clamando por um milagre: que Ele lhe desse um filho. Voltamos às imagens da equipe, carregando equipamentos e descendo vielas estreitas. Seguem à procura de pessoas e palavras, de bons narradores e histórias de experiências reli-giosas: numa certa urgência, mas sem saber muito bem o que vão encontrar, como se presenciássemos em vídeo uma peregrinação profana em busca do sagrado em vozes e palavras.

Um homem desconhecido que conta histórias de incorporações espíritas nos propõe imagens impressionantes, conversando com Coutinho, sentado no sofá de sua casa. Milhões de pessoas quarando o dia todo no sol para ver e ouvir as palavras arras-tadas, e sem mais tanta energia, do sumo pontífice. Na etimologia da palavra, pontífice quer dizer “construtor de pontes”. Uma equipe cinematográfica que vai de encontro a pessoas comuns num local específico, abordam-nas em suas casas, querem propor “um dedo de prosa”. As pequenas percepções cotidianas do religioso que vão surgindo dessas pessoas parecem ter mais sabor do que ficar o dia todo naquele sol escaldante, presenciando a missa espetacular celebrada por João Paulo II. A televisão “faz a ponte” com aqueles que acompanham de longe a cerimônia papal. Esses são os dez minutos iniciais de Santo Forte – espécie de prólogo que antecede a sequência de personagens e relatos únicos a que teremos contato –, e parecem nos fornecer os tons mundanos e espetaculares que atravessam as crenças religiosas e a sua produção de imaginários, começa a expor as negociações que são tecidas pelas pessoas junto ao divino, ao in-visível.

Há um sincretismo que se evidencia nas experiências relatadas, mostrando-nos como a relação com o sagrado é permeada de mundo, impura e carnal, andando entrelaçada aos impasses do cotidiano. Nos relatos do filme, as interferências do so-brenatural na existência das pessoas são vivenciadas numa dimensão profana e corpó-rea. O fato, por exemplo, do homem que inicia o filme – que logo saberemos se chama André –, não explicar a incorporação de espírito para sua esposa por precisar acordar

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cedo no outro dia; ou no relato de Carla, quando fala com certo humor das “surras” que já levou de seu santo, dizendo que não visita mais os centros de umbanda para não passar vergonha, pois chegava toda bem arrumada e saía “toda bagunçada”. Carla diz que até dentro de casa já levou estas surras, “aqui nessa sala”, e que quando acontecia “voava” de um canto para o outro, para o espanto de Coutinho que também está pre-senciando esta história pela primeira vez, assim como nós. Na sequência dessa fala de Carla, vemos uma breve imagem da sala vazia, expondo tanto a concretude destes epi-sódios místicos como a impossibilidade do cinema em acessar o mistério da religião7.

As pesquisas anteriores ao filme, junto as pessoas que viriam a se tornar per-sonagens, servem como um mínimo necessário para despertar em Coutinho a vonta-de de encontrá-las e ouvir suas histórias, provocá-las. Há um rigor em seu método de só encontrar com estas pessoas no momento da filmagem, pois “é um acontecimento único, não houve antes nem há depois” (MESQUITA, 2013, p. 232). Essa ênfase na ima-nência do encontro, já presente em seus filmes anteriores, ganha dimensões quase místicas em Santo Forte, “Não me importa que isso pareça metafísico. Tenho de acre-ditar nisso para ter vontade de filmar” (p. 232). Diferentemente de Boca de Lixo (1992), que já se valia da incerteza como substância metodológica, combinou-se um dia para a conversa acontecer e um cachê a ser pago, para que houvesse um compromisso entre ambas as partes. Interessava a Coutinho filmar seu encontro com as pessoas, corpos que entoam e gesticulam com palavras, captar o fluxo singular da fala e deste território compartilhado.

André, agora apresentado no filme, conta-nos uma outra história: diz que sua

companheira, no meio da noite, ainda sonâmbula, recebeu o espírito de sua mãe. Ele duvida, diz que não sabe quem é, mas depois de alguns segundos e insistências do espírito ele a reconhece, por um gesto maternal que o corpo de sua mulher realiza. Essa transfiguração do corpo de sua mulher por um gesto aciona sua memória afetiva. Em certo momento, logo depois de reconhecer o espírito da mãe no corpo a esposa, André menciona um outro gesto característico que a identificaria: uma mão colocada na garganta por causa de uma tosse crônica. O surpreendente da cena é que nesse exato momento, em meio ao som ambiente que permeia a cena, ouvimos alguém tossir, quase como um “milagre encenado” no aleatório da filmagem.

Também não parece do intento de Coutinho aderir ao imaginário do outro de maneira irrestrita, mas tentar compreender as suas razões sem julgá-las8 de antemão. Tenta criar um espaço “vazio” frente a seus personagens, a ser preenchido pelas histó-rias do outro, procurando não valorar o que está sendo dito em nome de algum obje-tivo, pois tudo mereceria igual atenção, tal qual nos lembra o filósofo Walter Benjamin

7 “O mistério da religião está naquele vazio. Eu tenho que mostrar a impossibilidade do cinema de mostrar aquele mistério” (MESQUITA, 2013, p. 103).8 “Eu quero dar as pessoas o melhor delas mesmo. Assim como eu, durante o filme, nas conversas, dou o melhor de mim mesmo. [...] E o melhor de mim começa pelo seguinte: não julgá-las” (MESQUITA, 2013, p. 237-8).

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sobre o papel do cronista9 da história, que ao narrar os acontecimentos consideraria todo e qualquer detalhe com igual valor de potência. No filme, a câmera permanece parada durante as conversas, que duram de 40 minutos a uma hora: fornece tempo para que as pessoas formulem suas ideias, incorpora silêncios, desditos e hesitações; não se esquiva das modulações corporais que acompanham os relatos dos persona-gens, mas as acolhe na montagem do filme. É uma estética mínima que trabalha em favor de sua radicalidade ética. “A poesia vem dos personagens, não da filmagem. Esta tem que ser bruta” (ARAÚJO; COUTO, 2013, p. 234).

Nas conversas, Coutinho instiga seus personagens para que estes falem de suas experiências, para que o acontecimento da cena possa disparar uma versão im-prevista dos mesmos. Como uma espécie de conselheiro que, menos do que respon-der às perguntas, faz “uma sugestão sobre a continuação de uma história que está se desenrolando” (BENJAMIN, 2012, p. 216), Coutinho perscruta nos detalhes destas pequenas histórias uma potência de interrupção, de abrir novas imagens na cronolo-gia linear dos discursos sobre o mundo. Aqui, podemos tecer uma aproximação entre essas produções singulares e prioritariamente subjetivas a partir do dispositivo da câ-mera e algumas discussões animadas pelo pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben, em sua leitura do contemporâneo a partir da relação dos viventes e seus dispositivos. Se, para Agamben, os dispositivos podem produzir estágios de dessub-jetivação e anestesia no campo do político, seria talvez por um gesto de fratura no uso dos dispositivos em que se poderia vislumbrar pistas e abrir caminhos para o des-monte de suas operações estratégicas de dominação e institucionalização. Posto isso, é nessa busca de certa poética no prosaico10 dos encontros com as pessoas, que po-demos traçar um duplo registro de problematização advindo do cinema do Coutinho para o contemporâneo: no aspecto de fratura da verdade pela força performática na contação de uma história, subvertendo a necessidade de investigação do real como prova11; e no deslocamento da imagem do outro como representação, deixando pre-valecer o caráter de surpresa e ambiguidade que residiriam na singularidade subjetiva daquele que narra.

Nesse sentido, torna-se improvável que saiamos ilesos ao ouvir as histórias com ares místicos contadas por Dona Thereza, por exemplo. De sete em sete dias ela coloca “café amargoso” para “sua velha”, que diz ser o espírito de vovó Cambina. Fica-mos sabendo que Thereza criou seis filhos sozinha, nunca teve luxo, diz que o marido não prestava, bebia muito e dificultava a vida. Ela começa a conversa respondendo timidamente a Coutinho, mas aos poucos se engaja em sua contação, segue enfileiran-do suas experiências e visões sobrenaturais nas mais prosaicas situações. Um exemplo do mencionado ocorreu quando sua amiga, enquanto ajeitava umas flores em casa,

9 “O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido pela história” (BENJAMIN, 2012, p. 242).10 “Tratar o prosaico poeticamente e do poético prosaicamente” (ARAÚJO; COUTO, 2013, p. 234).11 “Uma poética que depende do saber contar”, pois, para Coutinho, se é bem contado, aquilo passa a ser verdade, uma vez que a “verdade não é investigável” (ibidem).

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apresenta uma cara de espanto: diz que não tinha mais visto a Dona Thereza, mas sim a aparição de uma rainha. Ela atribui essa dura dívida que carrega às maldades de sua antiga vida de rainha, afirmando que em outros tempos as rainhas mandavam bater e matar. Diz que gosta de música, que adora ouvir Beethoven, que também viveu no tempo dele. “Lá na Alemanha?”, indaga, surpreso, Coutinho. “Eu sou analfabeta, não sei ler e gosto de Beethoven. Você acha que é possível isso?”, arremata Thereza. Ela pede uma pausa para dar uma pitada no cigarro, oferece um café enquanto se levanta, olha para além da câmera, pergunta quem da equipe aceita um.

Durante as conversas filmadas que vão desenhando o filme, mostram-se vá-rias vezes a equipe no próprio ato da gravação, expondo que há uma espécie de cum-plicidade com o acontecimento: são dois lados, o filme parte de algum acordo entre quem filma e quem é filmado. Comumente busca-se omitir dos filmes o seu fazimen-to, aspecto ligado aos ideais de ilusão das histórias e ficções cinematográficas. É com Lidia que vemos uma operação interessante no que diz respeito a essas negociações materiais com o outro, que nos sugere outra camada para o campo do acontecimento fílmico até então. Após o relato da personagem, vemos uma componente da equipe oferecendo um cachê simbólico por sua participação no filme. Num primeiro momen-to ela, que afirma ser evangélica, recusa o dinheiro, pois está “transmitindo a palavra de Deus” e não quer receber para isso. Depois de a assistente dizer que está no contrato e que todos vão receber, ela pega o dinheiro, perguntando quando e onde o filme vai passar, que está curiosa para assistir. Acontece uma pequena abertura incalculável para a ambiguidade da situação fílmica.

Expor tanto a equipe em ação como as negociações com os entrevistados, faz surgir em cena a “cozinha” do cinema, lançando uma luz sobre o escondido lugar dos bastidores. Este movimento também mexe com uma ideia de (suposta) verossimilhan-ça do real que habita o cinema documentário, mostrando com essas escolhas que o que vemos em frente a câmera não deixa de sofrer interferências durante a sua fabrica-ção. Incorporar a dúvida e apostar nessas imagens, apesar de tudo, parte de uma pre-cária ambivalência que a própria imagem comportaria, quase como as experiências religiosas que ouvimos no filme: uma mistura terrena de fé e afeto, em que a força de narração desses relatos filmados atingem nossas certezas, atiçam nosso próprio ima-ginário. Em que medida também seríamos cúmplices desses encontros? Como presen-ciá-los em filme sem exigir mais do que mostram?

12 Conceito proposto por Henri Bergson e retomado por Gilles Deleuze em A imagem-tempo (para falar dos documentários de Jean Rouch e Pierre Perrault), que extrai deste conceito um entendimento específico que gostaríamos de apontar com o termo: “esse movimento de transformação que ocorre com um personagem real ao se narrar, ao ‘ficcionar’, ao ser capturado pela câmera ‘em flagrante delito de legendar’” (LINS, 2004, p. 120).13 “Não apenas negando a questão da ‘verdade absoluta’ [...] mas indo além, ao tirar a questão do desvelamento do artifício e não apenas pensar a ‘verdade’ do cinema, mas pensar a ‘verdade’ narrativa como gesto criativo e propositivo daqueles personagens [...]” (BRAGANÇA, 2013, p. 542).

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Outro ponto interessante que chama atenção em Santo Forte diz respeito a essa dimensão fabulatória12 do real que emerge nos relatos dos personagens em cena. O que interessa a Coutinho é a construção imaginária das pessoas e o gesto criativo13 da verdade narrativa delas, cuja ficcionalidade acaba por ser mais reveladora do per-sonagem do que a sua adequação a alguma “verdade” de seu cotidiano. Quando, por exemplo, veem-se imagens de pequenas estátuas das entidades, no momento que elas surgem na fala de alguns entrevistados, confrontamo-las com as palavras que ou-vimos. As representações formais dos guias são tensionadas pela expansão do pensa-mento nas experiências faladas, jogando com os imaginários que se formulam para além das figurações representativas, pois essas não conseguiriam “legendar” o amplo escopo de uma experiência vivenciada. Como acreditar nisso? E se não acredito, como lido com estas experiências?

No filme, deparamo-nos com uma única personagem que se define cética, que se diz ateia. Enquanto está na cozinha com Dona Thereza, no momento que ela está preparando o café prometido naquele começo de conversa, Coutinho conhece sua filha. Pergunta se ela tem alguma crença, e esta afirma não crer em nenhum deus. Coutinho se espanta: é a única pessoa sem alguma crença específica que encontra na sua empreitada pela Via Parque da Cidade. Questiona se acredita em algo, e ela diz “acredito nisso que tá aí, na natureza, o sol, o vento, o el niño, essa força ativa”. Depois vemos as duas já no quintal de casa, em meio ao varal de roupas, a filha em pé expli-cando para Coutinho que, mesmo não acreditando, já viu a mãe incorporando e sabe que “tem uma energia ali”. Vemos, então, num segundo plano, Dona Thereza de costas, fumando um cigarro. De repente, ela se aproxima de Coutinho, quase ignorando a presença da câmera, avisando que tem outra história: “Essa eu não contei!”. Discorre um evento extraordinário, de quando a irmã foi “levada” por uma entidade no meio de um banco, quando foi retirar uma grande quantia de dinheiro. Dona Thereza diz que teria sido avisada pela entidade que isto viria a acontecer. “Aqui tem uma legião de espíritos, é que não dá pra ver”, diz Dona Thereza, abarcando num gesto aquela área do quintal de sua casa, em frente à câmera. Ao fim da cena, presenciamos uma imagem do mesmo quintal vazio, alguns segundos na suspensão dos panos estendidos no varal (Fig. 1).

Pelos relatos que ouvimos, as experiências religiosas erigidas pelo filme não ganham relevo como fuga da realidade ou como desvio da concretude das questões do mundo, mas nos aparecem como intensividades narrativas. Santo Forte nos abre, em sua investigação de mundo no olhar da câmera, para a potência do plano fixo, para o insondável da presença de um rosto desconhecido na tela: um real que se enfeita de histórias e permanece enquanto enigma. As escolhas estéticas e éticas nada ga-rantem, não bastam para resolvê-lo. O cinema – e por que não também o rosto – seria essa “brecha do caos”, como nos sugere o cineasta Felipe Bragança, num texto sobre o filme. As narrações das personagens – entrelaçadas com dignidade ética pela narrativa cinematográfica de Coutinho – são conduzidas com uma espantada vigília “que não se aceita domada, mapeada, pronta. [...] Um estado maravilhosamente banal e possível no menor dos gestos e não uma utopia monolítica e inalcançável” (BRAGANÇA, 2013, p. 546).

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A última visita à Vila Parque da Cidade foi no dia de Natal daquele presente ano. Notamos a equipe filmando Coutinho acocorado junto a Carla, sentada no ba-tente da porta de casa. Ele entrega uma foto dela, realizada durante as filmagens, de presente. Um movimento que se aproxima do realizado em Boca de Lixo, mas agora não como aproximação, e sim numa espécie de desfecho do contato aberto com es-sas pessoas, uma lembrança partilhada. Na mesma noite, observamos, em outra cena, André e sua companheira na sala de casa, vendo juntos a foto que Coutinho entrega para ele. Ele diz que gostou, e sua mulher fala que “tá parecendo gente”. André fala que comprou um disco de presente para ela, que diz gostar da faixa 11, pois faz lembrar o casal. Colocam o disco para tocar, na faixa indicada, e timidamente cantam juntos em frente à câmera.

Já próximos ao fim do filme, vemos Dona Thereza à noite, sentada, fumando no quintal de casa, conversando com Coutinho. Ela fala que passou o dia todo prepa-rando a ceia de Natal para os patrões, explica suas receitas e a decoração do prato. Diz que nessa noite colocou vinho Moscatel para vovó Cambina, que ela “tá chique”, que não queria mais café. Em meio à conversa, pede licença para Coutinho, pois quer dar uma olhada nos netos que estão dormindo no quarto. O último plano do filme é como se acompanhássemos o olhar de Thereza: a câmera desliza levemente pelo quarto, onde se vê duas crianças dormindo ao som distante de uma balada radiofônica que compõe o ambiente. A câmera interrompe seu movimento e se demora num singelo altar que fica no canto do quarto na casa de Dona Thereza, amontoado de pequenos objetos: um pires, uma tigela com um pouco de vinho, um rolo de filme fotográfico, um copo cheio d’água e uma garrafa, um vaso de planta, três pequenas estátuas – tal-vez duas representando Nossa Senhora e uma da vovó Cambina –, um tubo de Mosca-tel esvaziado e uma pequena pedra.

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Referências

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BENJAMIN, W. O Narrador. Considera-ções acerca da obra de Nicolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cul-tura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

______. Sobre o conceito da história. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cul-tura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

BOTTON, A. M. Notas sobre o ensaio em Theodor W. Adorno. Graphos (João Pes-soa), v. 13, p. 89-98, 2011.

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LINS, C. da L. O documentário de Eduar-do Coutinho: televisão, cinema e vídeo. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. MESQUITA, C. Fé na Lucidez (entrevista com Eduardo Coutinho). In: OHATA, Mil-ton (org.). Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

RANCIÈRE, J. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

RODRIGUES, A. C.; BAPTISTA, L. A. S. Cida-des-Imagem: afirmações e enfrentamen-tos às políticas da subjetividade. Psico-logia e Sociedade (Impresso), v. 22, p. 422-429, 2010.

FilmografiaBOCA de Lixo. Direção de Eduardo Couti-nho. Rio de Janeiro: CECIP, 1992. Brasil (50 min): son. color.

SANTO Forte. Direção de Eduardo Couti-nho. Rio de Janeiro: CECIP, 1997. Brasil (80 min): son. color.

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A CONSTRUÇÃO DE UM DIÁLOGO FABULADOR NA NARRATIVA DE EDUARDO COUTINHO

1 INTRODUÇÃO

O documentarista Eduardo Coutinho (1933-2014) desenvolve um método de realização fílmica baseado na conversa com pessoas comuns que narram sobre suas vidas diante da câmera e dele. Tal modelo, segundo Arthur Labaki (2006), influenciou a transforma-

ção da entrevista num elemento essencial e característico do documentário brasileiro contemporâneo.

Lins e Mesquita (2008) apontam o filme documentário Cabra Marcado para

Morrer (1984) como um indicador para novos caminhos no documentário brasileiro do período, sendo um divisor de águas entre o cinema moderno dos anos 1960 e 1970 e o documentário das décadas de 1980 e 1990. O cineasta se livra das amarras do ques-tionário e de perguntas prontas, apropriando-se da filosofia do diálogo como estética narrativa do filme.

De acordo com Xavier (2010), os filmes do cineasta são o resultado de uma filosofia do encontro, a qual exige a abertura efetiva para o diálogo (que não basta

Roberto Abib Ferreira Júnior1

1 É especialista em Comunicação e Imagem pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ, 2014)

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roteirizar), o talento e a experiência que permitem compor a cena diante da câmera. Para o autor, a força do seu documentário é o aqui-agora da interação entre o cineasta, o personagem-pessoa e a câmera que capta a oralidade dessa relação.

O documentarista procura estar “vazio”, livre de opiniões sobre o entrevistado,

para mergulhar em seus sentimentos e pensamentos. A conversa de Coutinho procura fazer um movimento de abertura para o outro e de atenção ao que está sendo dito, com a intenção de entrar na singularidade da história de uma vida (LINS, 2004).

2 CINEMA-VERDADE E A REVELAÇÃO DO PRO-CESSO FÍLMICO

Na década de 1960, período em que os aparelhos de filmagem se tor-naram leves e com ampla possibilidade de deslocamentos, os mo-dos de filmar formaram o cinema-direto e o cinema-verdade. Da-Rin (2004) apresenta a distinção entre o cinema-direto, de origem norte-

-americana, e o cinema-verdade praticado na França: o cinema-direto aspira a uma in-visibilidade na qual o cineasta se posiciona como um observador neutro; já no cinema-verdade, o diretor é um participante assumido, desenvolvendo o papel de mediador.

Da-Rin (2004) ainda afirma que o filme Chonique d’ um Été (Crônica de um Ve-rão, 1961), do cineasta e etnólogo Jean Rouch e do sociólogo Edgar Morin, é o pro-tótipo do modo interativo de representação, fundador do cinema-verdade. O filme se passa no verão parisiense de 1960, no qual os diretores interrogam transeuntes, estudantes, operários e alguns casais sobre as motivações de suas vidas, registrando as suas dúvidas, emoções e opiniões sobre política e racismo.

Para Morin (1962), o ato no cinema se dá pela palavra, o diálogo, as discussões em conversas. “O que me interessa não é o documentário que mostra as aparências, é uma intervenção que atua para ir além das aparências e extrai delas a verdade escon-dida ou adormecida” (MORIN, 1962, p. 29-30 apud DA-RIN, 2004, p. 115).

No entanto, esta verdade fílmica apresentada por Rouch e Morin em Crônica de um Verão é uma verdade que transita entre o real e o imaginário, pois mostra a in-tervenção e a interação do diretor com os atores sociais. Além disso, ratifica que o filme não é um reflexo do real, desvelando verdades interiores. Para Da-Rin (2004), tanto os cineastas quanto os atores sociais “não só criam o filme como criam uma dimensão de si mesmos que não poderia existir sem o filme. Dimensão a um só tempo real e imagi-nário” (p. 120).

No início dos documentários analisados, encontramos a identificação do di-retor com o modelo de cinema-verdade, segundo os conceitos de Jean Rouch e Edgar Morin (1962). A partir da sua aparição nas cenas iniciais, Coutinho assume o papel de mediador, num processo de intervenção na realidade, ao invés de se contentar em ser o observador de um real já existente. Os filmes evidenciam o próprio método, o “modo

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de fazer” aquela realidade fílmica.

Nos primeiros minutos de Edifício Master, em voz off, surge a narração de Cou-tinho, revelando números do cenário do filme, numa descrição característica das re-portagens de televisão e do modelo sociológico do documentário. Porém, por meio da narração, o cineasta revela o processo fílmico, com a voz na primeira pessoa do plural. O texto é narrado como se fosse a leitura de um diário:

No Edifício de Copacabana, a uma esquina da praia, duzentos e setenta e seis apartamentos conjugados, uns quinhentos moradores, doze andares, vinte e três apartamentos por andar. Alugamos um apartamento no prédio por um mês, com três equipes filmamos a vida do prédio durante uma se-mana.

Diferentemente de Edifício Master que, já na primeira cena, por meio da câme-ra de vigilância do prédio, mostra a intervenção da equipe de filmagem no cotidiano daqueles moradores, em Jogo de Cena o processo de filmagem é revelado ao inverso. Nesse segundo caso, são os personagens que vão à procura de Coutinho para falar de suas vidas, são eles que se “enquadram” na câmera, fixada no tripé.

O processo de filmagem em Jogo de Cena, também apresentado no início do documentário, se deu a partir do seguinte anúncio, publicado em um jornal do Rio de Janeiro: “Convite: Se você mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias para contar e quer participar de um teste para um filme documentário, procure-nos. (Vagas limitadas)”.

Na segunda cena do filme, uma mulher sobe a escada, entra no palco e en-contra Coutinho já sentado. A primeira entrevistada é uma atriz, encenando o texto de uma personagem real, focalizada mais adiante. Durante a conversa, ela fala sobre uma personagem, protagonista de uma montagem do grupo teatral “Nós do Morro”. Ao se referir ao papel, ela tece o seguinte comentário: “Ela é forte, eu gosto da Joana porque ela é forte. Eu empresto minha força pra ela”.

Pode-se depreender nessa passagem uma possível intenção do diretor, ao propor um jogo entre textos vividos e textos encenados. Ele engendra uma ambigui-dade do que seria verdadeiro ou falso, na capacidade da pessoa de incorporar a fala do outro e trazê-la para a experiência de vida, tornando-a sua.

Além disso, ele revela mais um aspecto do cinema-verdade, no sentido de que o filme não é somente uma construção por meio da sua intervenção. É também a criação de uma faceta dos envolvidos nos documentários, que não poderia existir sem o filme, sendo ao mesmo tempo construção do real e do imaginário.

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3 FABULAÇÕES E A SUBORDINAÇÃO DO MOVI-MENTO AO PENSAMENTO

Deleuze analisa o cinema pela perspectiva da filosofia em duas gran-des obras: A Imagem-movimento (1985)2 e Imagem-tempo (2005). Na-quela, o filósofo discorre sobre o cinema clássico, enquanto nesta, faz uma reflexão do momento inaugural do cinema moderno e de

outras cinematografias.

O surgimento do cinema neorrealista (moderno) ocorre no período do pós--guerra. Segundo Deleuze, a partir daí o cinema registra a falência dos esquemas sen-sórios-motores, característicos da Imagem-movimento.

No neorrealismo, a imagem cinematográfica é temporalizada, o tempo passa

a se sobrepor ao movimento, visando a romper com a imagem-ação do cinema norte--americano e “atingir um mistério do tempo, de unir a imagem, o pensamento e a câ-mera no interior de uma mesma subjetividade automática, em oposição à concepção demasiado objetiva dos americanos” (DELEUZE, 2005, p. 71-72).

Nesse cinema, conceituado pelo autor como formador da imagem-tempo, os personagens tornam-se videntes, e não mais reativos às situações criadas pela ação. Trata-se da sobreposição do tempo em relação ao movimento, originando uma ima-gem-tempo direta, constituída pelo ótico e pelo sonoro, tornando sensíveis (visíveis e sonoros) o tempo e o pensamento.

Deleuze (2005) acrescenta que a câmera é tomada por uma consciência que

não se define mais pelos movimentos, que é capaz de seguir ou realizar, mas pelas relações mentais nas quais é capaz de adentrar: “[...] a câmera já não se contenta ora em seguir o movimento das personagens, ora em fazer movimentos dos quais elas são apenas objetos, mas em todos os casos subordina a descrição de um espaço a funções do pensamento” (p. 34).

Conforme Deleuze (2005), o cinema fundamentado pela imagem-tempo

apresenta a indiscernibilidade do real e do irreal, ou do presente e do passado, do atual e do virtual. Essas imagens indiscerníveis dão forma a um elemento do tempo que é a imagem-cristal, na qual o tempo “se desdobre a cada instante em presente e passado, que por natureza diferem um do outro, ou, o que dá no mesmo, desdobre o presente em duas direções heterogêneas, uma se lançando em direção do futuro e a outra caindo no passado” (p. 102). Na imagem cristal, o passado não se constitui depois do presente que foi, mas de modo concomitante.

2 Segundo Deleuze (2005), a imagem-movimento é um conjunto sensório-motor composto da imagem percepção (recebe o movimento em uma face), imagem-afecção (ocupa o intervalo da imagem percepção), imagem-ação (executa o movimento na outra face) e a imagem-relação (reconstitui o conjunto do movimento com todos os aspectos do intervalo).

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Portanto, a maneira de narrar do cinema feito pelos “cristais do tempo” difere

da narração da imagem-movimento, conceituada como narração orgânica3. Deleuze argumenta que as imagens-cristais correspondem a uma narração cristalina, na qual as situações sensório-motoras deram lugar a situações ótica e sonora puras, em que os personagens, em vez de reagir (ação), precisam enxergar (ver) o que há na situação.

Nesse contexto, as narrações que operam por descrições óticas e sonoras pu-ras não pressupõem uma realidade, ou remetem a uma forma do “verdadeiro”. Para De-leuze, as narrações constituídas pela imagem-tempo põem a verdade em crise. Trata-se de narrativas falsificantes, que além da indiscernabilidade do real e do imaginário, colocam no presente diferenças inexplicáveis, e no passado, alternativas indecidíveis entre o verdadeiro e o falso (DELEUZE, 2005).

3.1 Fabulação

A simultaneidade de presentes possíveis ou a coexistência de passados não necessariamente verdadeiros, resultantes de uma narração do cinema baseada na imagem-tempo direta, segundo Deleuze, origina a potência do falso, substituindo e destronando o verdadeiro. “O falso não é um erro ou uma confusão, mas uma potência que torna o verdadeiro indecidível” (DELEUZE, 2013, p. 89).

Conforme o autor, a verdade está ao lado dos dominantes e dos coloniza-dores e o povo tem a função fabuladora de dar ao falso uma potência que constitui uma memória e, portanto, inventa um povo. A verdade do cinema, e não o cinema da verdade, é a fabulação, na qual cineastas e personagens reais se tornam “outro”, sem, no entanto, serem fictícios.

A personagem não é separável de um antes e de um depois, mas que ela reúne na passagem de um estado a outro. Ela própria se torna um outro, quando se põe a fabular sem nunca ser fictícia. E, por seu lado, o cineasta torna-se outro, quando “se intercede” personagens reais que substituem em blocos suas próprias ficções pelas fabulações próprias deles. Ambos se co-municam na invenção de um povo (DELEUZE, 2005, p. 183).

Alguns momentos das entrevistas são incluídos no filme sem edição, auxi-liando a compreensão do método utilizado por Coutinho. Em Edifício Master e Jogo de Cena, há momentos concernentes ao pensamento deleuziano, segundo o qual a verdade do cinema – e não o cinema da verdade – é a fabulação.

Essa fabulação se concretiza quando os personagens e o próprio diretor, no momento da filmagem, passam para uma dimensão em que há uma potência do falso, no qual este se torna a memória dos personagens e, portanto, a invenção de um povo. Os entrevistados de Coutinho fabulam, e ele não tem nenhuma pretensão de que eles se comprometam com a verdade do que falam, mas que tenham uma potência fabu-

3 A narração orgânica consiste no desenvolvimento dos esquemas sensórios-motores, segundo os quais os personagens reagem à situação ou agem de modo a desvendar a situação.

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ladora.

Maria do Céu, a terceira personagem de Edifício Master, narra situações do pe-ríodo em que o prédio era “um antro de perdição”, como havia dito uma das entrevis-tadas do documentário. Coutinho faz uma interferência que parece ser questionadora, mas poderia ser interpretada como estímulo a uma encenação fabuladora.

Quando o diretor interfere, dizendo que ela está contando as histórias de ba-gunças e perdições no edifício com alegria, Maria do Céu passa a enfatizar o relato com mais graça e espontaneidade, chegando a se levantar e dando mais risadas. A câmera acompanha todo esse movimento feito pela entrevistada.

Maria do Céu encenou e a interferência de Coutinho poderia ser questiona-dora, a título de reprovação ou de estímulo. Nesse caso, serviu para que a entrevistada aplicasse mais ênfase à história. A câmera esteve subordinada a ela, pois acompanhou os seus movimentos. Os planos se sucederam a partir do seu ato de fala. Depois que Maria do Céu termina a história, Coutinho diz: “Maravilha” – como se aprovasse aquele momento.

A cena seguinte é em primeiro plano e sem muito movimento, quando a per-

sonagem muda de assunto. Trata-se, então, de uma questão mais séria, cuja narrativa é acompanhada por um plano mais estático. Esse movimento de câmera, subordinado ao estado mental do personagem, vai ao encontro das reflexões de Deleuze (2005) no que se refere ao cinema do pensamento.

O maior indício de que o diretor adere ao cinema comprometido com uma dimensão indiscernível entre o real e imaginário, ou com uma potência do falso que se faz fabulação, é o momento em que Coutinho questiona a entrevistada Alessandra, em relação a um depoimento dela para um dos seus produtores4:

Coutinho: Você disse assim. Eu minto muito.Alessandra: Eu sou muito mentirosa. E pra gente mentir eu acho que a gen-te tem que acreditar. A gente tem que acreditar na mentira para a mentira ficar bem feita. E eu sou assim, eu sou muito mentirosa. Você sabe que tem mentira que eu acabo acreditando que é verdade? Coutinho: O que você mentiu nessa conversa de hoje nossa?Alessandra: Agora não menti nada não. Ontem eu menti pra eles. Tava com medo de fazer essa entrevista. Hoje não, é que não lembrava mesmo. Mas ontem eu menti, pra você ver como sou uma mentirosa verdadeira.

4 Na fase de pré-produção, a equipe entrevista os possíveis personagens do documentário. Na filmagem, Coutinho já tem algumas informações dos entrevistados.

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4 A CRIAÇÃO DE UM DIÁLOGO

Uma relação dialógica consiste em perceber e aceitar o outro, em sua totalidade, unidade e unicidade. Esta é a base do diálogo proposto pelo filósofo Martin Buber (2009). Para o autor, o encontro entre duas pessoas acontece efetivamente quando um volta-se para o outro,

tornando esse outro presente. Nessa relação, um se dirige ao outro verdadeiramente. Segundo Buber (2009), há três tipos de comportamento adotados pelo ho-

mem diante do outro, a saber: observar, contemplar e tornar o conhecimento íntimo.

Buber define a tomada de conhecimento íntimo como a possibilidade do diá-logo entre os homens. “O conhecimento íntimo só se torna possível quando me coloco de uma forma elementar em relação com o outro, portanto quando ele se torna pre-sença para mim” (p. 147). Tornar-se presença significa vivenciar o outro em sua totali-dade, sem abstrações que o reduzam.

A partir dessas três atitudes possíveis do homem diante do outro, o filósofo

conceitua os respectivos diálogos: o diálogo técnico, o monólogo disfarçado de diá-logo e o diálogo autêntico, o que nos interessa para pensar o método fílmico de Cou-tinho.

O diálogo autêntico acontece quando os dois sujeitos da interação têm em mente a presença do outro no seu modo de ser, e a eles se voltam com a intenção de estabelecer uma reciprocidade. “Só quando eu chego a ter uma relação essencial com o outro de forma que ele não é mais um fenômeno do meu ‘eu’, mas é o meu ‘tu’, só então eu experiencio a realidade do falar-com-alguém na inviolável autenticidade da reciprocidade” (BUBER, 2009, p. 92).

O conceito do diálogo autêntico, proposto por Buber (2009), ocorre pelo des-dobramento da esfera do inter-humano (face a face do um-ao-outro); um aconteci-mento fonético carregado de sentido, o qual não se encontra nos parceiros separada-mente, nem nos dois em conjunto, mas no jogo entre ambos.

A verdadeira problemática ressaltada pelo filósofo, no âmbito do inter-huma-

no, é a dualidade do ser e do “parecer ser”. Na sua definição, a existência humana cal-cada no ser é determinada por aquilo que se é simplesmente. Em contrapartida, a vida balizada pelo “parecer ser” é determinada por uma vida de imagens, constituída por aquilo que se quer ser.

A autenticidade do diálogo estabelecido com o outro deixa de existir quando

se introduz alguma aparência na relação, bloqueando o mergulho do ser de um-ao--outro. A aparência bloqueia a autenticidade do humano. “É a autenticidade do inter--humano que importa; onde ela não existe, o humano também não pode ser autênti-co” (BUBER, 2009, p. 143).

Outro problema apresentado por Buber (2009), na possibilidade de existência

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do diálogo, é o olhar redutor e dedutivo. O olhar redutor procura reduzir a multiplici-dade da pessoa em estruturas esquemáticas abrangíveis e recorrentes. Já na dedução, o olhar busca enquadrar em fórmulas o devir do outro, ou seja, como ele veio a ser o que é, tomando como parâmetro a representação da sua individualidade. Nesse caso, o conhecimento do outro parte do singular para o particular, inversamente ao olhar redutor.

Desta forma, o autor ressalta que o pressuposto básico do inter-humano e, por conseguinte, da autenticidade do diálogo, se estabelece quando a aparência não intervém na relação: quando cada um procura tornar-se presente um ao outro, no seu ser pessoal, evitando a redução a classificações; e sem que nenhum dos parceiros queira se impor ao outro.

No documentário Jogo de Cena, o documentarista conversa com as atrizes,

conhecidas pelo público, sobre o processo de encenação dos relatos das personagens reais, que também aparecem no filme. A primeira passagem é com Andréa Beltrão, que se emocionou na cena sobre o filho já falecido:

Andréa: A serenidade, eu tentei, lutei para ter. Mas é que não dá. Esse texto, todas as vezes que fui decorar eu... (demonstrando que chorava). Eu acho que se eu tivesse me preparado como atriz pra chorar, eu não teria ficado tão incomodada. Fiquei incomodada; teve uma hora que eu pensei: “Gente não vou conseguir falar”.Coutinho: Aqui, agora? Andréa: É. Teve uma hora que pensei: “Será que paro? Peço pra fazer de novo? É... vai ficar chato, vai ficar meloso isso”. Eu teria que ensaiar muitas ve-zes pra conseguir falar isso francamente. Não que ela não diga francamente. Ela não fala friamente, mas estoicamente, olimpicamente dessa maneira. Eu teria que me preparar demais. Então, todas as vezes que fazia mecanica-mente passava. Agora, quando eu tentava fazer bem serena, me aproximar da serenidade dela, aí eu não conseguia.

A última fala de Andréa Beltrão exemplifica a necessidade de aproximação do outro, a procura do conhecimento íntimo, por meio do diálogo autêntico, concei-tuado por Buber (2009). Mesmo que em Jogo de Cena a conversa seja com a atriz que encenou a personagem real, sendo Coutinho um mediador entre a personagem real e a atriz, faz-se necessário o estabelecimento de um diálogo autêntico entre o entrevis-tado e o entrevistador do filme.

Entendemos que Jogo de Cena é um documentário-ensaio, no qual o próprio diretor expressa as suas intenções, no próprio modo de fazer documentário. A palavra de Andréa Beltrão é uma forma de dizer também ao espectador que o diretor preci-sa se aproximar do outro, para que ele possa se expressar autenticamente diante da câmera. Não é um dizer mecânico, como aponta Andréa Beltrão, assim como o outro não é um objeto, registrado pelo diretor por meio de um diálogo técnico ou de um monólogo disfarçado de diálogo.

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4.1 Marília Pêra e Fernanda Torres

Em seu depoimento, Marília Pêra também se aproxima da pessoa representa-da, se emocionando ao falar da similaridade entre passagens da vida de ambas, dela e da personagem. Tal aproximação é o estabelecimento do diálogo autêntico, pois se ouve o outro com atenção e aquilo que ele diz também revela algo daquele que escu-ta. Marília Pêra diz numa passagem do filme: “Teve momentos que falei da filha dela e veio a imagem da minha filha e eu dei uma marejada, como tô dando agora. Porque vem a tua filha, a continuidade. A memória emotiva vem; a carinha da filhinha”.

Por sua vez, a atriz Fernanda Torres não conseguiu se apropriar do persona-gem real, sentindo-se muitas vezes incomodada com a sensação de estar mentindo, o que denota a diferença entre mentir e fabular. Mesmo que Andrea Beltrão e Marília Pêra falassem da experiência de outra pessoa, elas se apropriaram do relato, ou seja, elas viveram aquilo que disseram.

Fernanda Torres diferenciou a interpretação de um personagem imaginário, da narração da experiência de alguém já existente, algo por ela considerado muito mais difícil. Nessa questão, observa-se mais uma vez a metalinguagem do documen-tário feito por Eduardo Coutinho. O cineasta que fundamenta o seu filme com o outro, por meio da filosofia do diálogo, necessita do diálogo autêntico para que o outro seja interpretado autenticamente, e não recriado de maneira ficcional.

Fernanda: Vamos no início de novo. Queria uma água. É tão engraçado, nossa. Parece que estou mentindo pra você.Coutinho: Por que você acha?Fernanda: Porque eu não tinha essa sensação sozinha, engraçado. Coutinho: Você acha? Espera um pouquinho, isso. Você acha que está próxi-ma demais da Aleta real ou está mentindo? Vem de que? Do que você acha que vem isso?Fernanda: Não sei, é delicado, não sei.

Em outro momento, no final da encenação, Coutinho pergunta:

Fernanda: Eu não vi o material editado.Coutinho: Ah é, você não viu o material editado?Fernanda: Eu não quis ver o material editado, poderia até ter pedido, mas eu fiquei achando que... Aquilo que eu te falei. Ela tinha tanta memória quando ela falava de algo, tinha tanta história como toda pessoa, que eu achei que o material bruto era minha memória. A diferença é que com personagem fictício, se você atinge um nível medíocre assim, você pode até ficar ali nele, porque ele é da sua medida. Com o personagem real, a realidade esfrega um pouco na sua cara, onde você poderá estar e não chegou. Tem alguém aca-bado na sua frente. O outro é um processo. E outras vezes, fazendo ficção, o personagem que não existe, você atinge um grau de realidade que aquela pessoa existe.

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5 O CINEASTA DIALOGADOR

Ao refletir sobre a entrevista nos meios de comunicação, Morin (1973) esta-belece quatro tipos: a entrevista-reta, a entrevista anedótica, a entrevista-diálogo e as neoconfissões. Neste trabalho, há interesse pelas duas últimas. A entrevista-diálogo é uma busca em comum entre as pessoas da interação. O entrevistador e o entrevistado colaboram no sentido de trazer à tona uma questão que pode dizer respeito à pessoa do entrevistado, ao entrevistador, ou a um problema. Trata-se de uma palavra humana.

Já as neoconfissões são entrevistas em que o investigador se apaga diante do entrevistado, mergulhando em seu interior, podendo ser uma relação mais profunda do que as relações superficiais da vida cotidiana. Morin cita o cinema-verdade como exemplo desse tipo de entrevista.

O outro (entrevistado), de Morin (1973), apresenta os problemas apontados

por Buber com o “ser” e o “parecer ser”, quando o entrevistado geralmente é um atleta, político, escritor ou uma estrela do cinema, pois eles estão em constante represen-tação no mundo, bloqueados por um sistema de defesa. Já o outro que desperta o verdadeiro ser é o “entrevistado considerado como ser humano a conhecer, e não na qualidade de representante de tal profissão, tal classe, tal idade. A outrem corresponde a entrevista profunda” (MORIN, 1973, p. 130).

Com relação ao entrevistador, Morin (1973) chama a atenção para três tipos: o provocador, o polemista e o ouvinte. Além disso, nomeia o entrevistador completo como dialogador, o qual seria polivalente, apto a ser ao mesmo tempo provocador e ouvinte.

Ao analisar o comportamento do diretor com os personagens, por meio de suas interferências no filme, observa-se que ele se posiciona como um dialogador, segundo a conceituação de Morin (1973). Tal comportamento é construído a partir de perguntas afirmativas, muitas vezes corrigidas pelos entrevistados, evidenciando a compreensão de um ao outro na conversa, em comum acordo.

Em Edifício Master, Coutinho conversa com o personagem Henrique e faz de-duções, que acabam sendo corrigidas pelo entrevistado.

Coutinho: O senhor trabalhou numa posição importante, numa companhia nos Estados Unidos. Imagino que o senhor juntou muito dinheiro para a aposentadoria. Por que o senhor vive num apartamento pequeno?Henrique: Eu não juntei muito dinheiro, tudo que eu tinha eu dei para os meus filhos. Eu tenho uma aposentadoria que vem dos Estados Unidos, mas não é de grande importância. É o suficiente para viver aqui.

Coutinho também faz perguntas que aparentemente são entendidas de ou-tra maneira pelo entrevistado, mas deixa transcorrer a resposta mesmo assim. O di-retor não corrige nem procura se expressar melhor. Uma passagem que demonstra este aspecto é a entrevista com o personagem Luiz. No meio da conversa, ele repete

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

uma pergunta que Coutinho havia feito, mas que não aparece no filme – isso também acontece em outros momentos no documentário.

“Luiz: O que eu sonho mais? / Coutinho: É”. Luiz responde que desde a morte de seu padrasto, do qual guarda a suspeita de que seja o seu pai verdadeiro, ele tem sonhado muito com ele. Ou seja, como não entrou a pergunta feita por Coutinho, não há como saber se era essa a sua intenção. Mas podemos supor que, ao questionar so-bre o motivo principal de seus sonhos, o sentido seria a ideia de expectativa de vida.

Outro momento interessante para essa questão ocorre na entrevista da per-sonagem Fabiana, já no final do documentário: “Coutinho: Quem é o teu avô? / Fabia-na: Ele é duas vezes meu pai. Ele que me criou”. Poderia tratar-se de um questionamen-to sobre um possível reconhecimento do avô, talvez uma personalidade pública; no entanto, Fabiana responde no sentido da significação afetiva, resguardada na figura paterna do avô.

Em Jogo de Cena, o documentarista assume mais o papel de estimulador. O tempo de fala dos entrevistados é maior do que em Edifício Master, e as interferên-cias de Coutinho são menores. Nesse filme, o diretor, em conversa com a personagem real Aleta, interpretada por Fernanda Torres, revela que o objetivo das perguntas pode facilitar a construção da narrativa. Tal assertiva é feita após a entrevistada se revelar insegura para contar a história com coerência.

Aleta: Contar não é o problema, é seguir uma corrente.Coutinho: E se eu te perguntar facilita?Aleta: Não sei, porque ela (se referindo à produtora) me perguntou, eu fui me embolando. Eu sou assim, no final eu não contei nada. Eu fracionei um monte de história. Tu acha que teve continuidade?Coutinho: Eu achei que tinha.

Ainda em Jogo de Cena, a entrevista com Maria de Fátima, designer de sobran-celhas, assemelha-se às de Edifício Master, pois as interferências sugerem a busca de conhecimento sobre a personagem, em vez de uma tentativa para ajudá-la a construir a narrativa.

Considerando as definições de entrevista-diálogo e de neoconfissões de Mo-rin (1973), podemos dizer que a conversa do diretor com os personagens busca o en-tendimento entre as pessoas da interação. Em vários momentos, o entrevistador “se apaga” diante do entrevistado, para “mergulhar” no interior da pessoa a sua frente.

6 A ÉTICA SOB O FAZER-SE IMAGEM

Na nonagésima interferência de Coutinho em Edifício Master, o diretor questiona a personagem Alessandra, denotando o compromisso éti-co – enfatizado por Bill Nichols (2005) – no cinema documentário, o qual envolve o cineasta e os entrevistados, a fim de que o diretor não

explore os entrevistados.

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Alessandra é garota de programa e, em seu depoimento, discorre sobre a pro-fissão. Por ter uma filha ainda criança, Coutinho parece se preocupar e lhe diz:

Coutinho: Eu queria saber como é que você teve coragem de dar um depoi-mento corajoso, entende? Porque você tomou a decisão de falar, que é um filme, pode passar no cinema depois. Explica isso?Alessandra: Não é coragem, isso é normal. Eu acho normal. Isso pra mim é uma coisa normal. Eu falei com ela (se refere à produtora). Eu acho isso normal.

Por sua vez, em Jogo de Cena, algumas falas da personagem Sarita denotam uma preocupação com a sua imagem: “Isso vai ficar esquisito no filme”. No final do documentário, ela volta à cena e Coutinho explica que acrescentou essa entrevista, atendendo ao pedido da própria Sarita, preocupada em tentar “suavizar” o depoimen-to anterior.

Coutinho: Quer dizer então que de todas que vieram agora, mais de 18 pes-soas, sei lá, você é a única que pediu para voltar porque você queria acres-centar alguma coisa ou cantar. Não sei exatamente. Me explique.Sarita: É que eu queria cantar só. O motivo principal. É que eu achei que o negócio ficou barra pesada.Coutinho: Em que sentido?Sarita: Trágico. Mais pra trágico do que para cômico. E aí eu achei que iria ficar uma coisa muito triste. E eu não queria ficar muito triste, entende?Coutinho: Sei. Sarita: Então a música sempre quebra um pouco...

Sarita começa a cantar emocionada a música Se Essa Rua Fosse Minha, e seu canto é intercalado com o canto de Marília Pêra. Esse momento da volta de Sarita re-presenta a ética do cineasta, ao levar em conta a preocupação do personagem com a sua imagem. No entanto, essa construção da imagem é fruto do diálogo estabelecido entre o diretor e os entrevistados. Diante de Coutinho, Sarita, ao cantar, chora nova-mente, não conseguindo deixar o depoimento mais alegre. Afinal, Coutinho a estimu-lou a cantar a canção de ninar que lembrava o seu pai e a sua filha, lembrança que a emocionou na entrevista anterior.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eduardo Coutinho, na conversa com os entrevistados, procura estabe-lecer um diálogo autêntico entre os participantes, em que um e outro tornam-se presentes no encontro, pois o resultado desta relação não é somente a expressão do “eu” do diretor, mas expressa igualmente o “tu”

dos entrevistados. Buber (2009) considera que um dos problemas da autenticidade do inter-humano está na constituição de uma relação de “um-ao-outro”, por meio de imagens, em que prevalece a ideia de “parecer ser” em vez de “ser”.

No entanto, é possível considerar, a partir dos filmes analisados, que o con-

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

ceito de diálogo autêntico de Martin Buber (2009), quando pensado no âmbito de um filme documentário, é constituído por um processo de “se fazer imagem” diante da câmera. Observamos nos documentários momentos nos quais os personagens procu-ram “parecer ser”, construindo uma história e uma imagem sobre si.

Conforme Deleuze (2005), entendemos a interação entre os participantes de

um filme documentário em uma dimensão que não é a realidade, mas também não é ficção, tratando-se de uma dimensão fabuladora. Nessa dimensão, o participante do filme torna-se “outro”, sem ser fictício, e o resultado de suas interações se dá por um discurso indireto livre, entre o diretor e o entrevistado-personagem.

Essa dimensão, em consonância com a reflexão de Buber (2009) sobre o diá-

logo autêntico não se encontra nos pares separadamente, mas no jogo entre eles, construindo um acontecimento fonético carregado de sentido, na presença de um ao outro. Portanto, a partir das obras analisados, considera-se o método de filmagem do cineasta como um estabelecimento de um diálogo fabulador.

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Referências

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CENAS DE UMA IGUALDADE TEMPORÁRIA

1 INTRODUÇÃO

Se Cabra Marcado para Morrer (1984) possui seis eixos narrativos princi-pais que se intersecionam e se complementam, como salienta Mattos (2003)2, é notório o fato de que algumas das cenas mais emblemáticas da trama gravitam em torno da figura de Elizabeth Teixeira e de seus

encontros com Eduardo Coutinho ao longo dos três dias em que a equipe do dire-tor se instalou no pequeno povoado de São Rafael, no Rio Grande do Norte, guiados por Abraão, filho mais velho da antiga líder camponesa. Em cada uma dessas circuns-tâncias, deparamo-nos com atmosferas distintas que implicam na presença de uma escala de tensões flexionada em função da disposição dos personagens nas cenas e

Thales Vilela Lelo1

1 Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do Grupo de Pesquisa em Jornalismo, Narrativas e Práticas Comunicacionais (UFOP) e do Grupo de Estudos em Trabalho, Saúde e Subjetividade (UNICAMP).2 Na perspectiva do autor (MATTOS, 2003), são eles: a rememoração das gravações de 1964; as memórias de Elizabeth a respeito de seu passado com João Pedro e a Liga de Sapé; a história da desapropriação do engenho Galileia, ocorrida em 1959; os depoimentos sobre o que se sucedeu com cada um dos envolvidos nas filmagens de 1964 após o golpe civil-militar; a procura pelos filhos de Elizabeth que se dispersaram após a fuga da mãe para São Rafael; a revelação da real identidade da viúva de João Pedro Teixeira na pequena localidade em que ela residira pelos últimos 16 anos, recuperando, nesse processo, sua combatividade de outrora.

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do momento (com sua intensidade particular) em que transcorre a tomada, feixes de instabilidades que transpiram na montagem, e não são solucionadas por quaisquer expedientes de edição.

O primeiro dos reencontros procede a uma breve contextualização das des-venturas que permearam as gravações do primeiro Cabra Marcado para Morrer, em 1964, e ao contato com trabalhadores rurais do Engenho Galileia, localizado no muni-cípio de Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, já em 1981. A cena em foco se inicia com uma descrição em off na voz do próprio Coutinho, que relata sua chegada a São Rafael e a fuga de Elizabeth Teixeira para esse povoado após perseguição política – perseguição essa que a obrigou a ocultar sua identidade sob o falso nome de Marta Maria da Costa e a se distanciar da maioria de seus filhos. O diretor também descreve os entraves que cercaram essa viagem, decorrentes de negociações conturbadas com Abraão, o único dos filhos de Elizabeth que tinha conhecimento do paradeiro de sua mãe, e que fez um sem número de exigências à equipe de filmagem antes de liberar as gravações com a viúva de João Pedro Teixeira.

O plano seguinte acontece já no interior da casa de Elizabeth, onde muitas pessoas estão dispostas em seu entorno (incluindo seus filhos Carlos e Abraão). Cou-tinho entrega a ela oito fotografias de cena provenientes das gravações de 1964. Mas antes que possa falar qualquer coisa, é interrompida bruscamente pelo filho mais ve-lho que, possivelmente receando pelo que a mãe pudesse dizer diante da câmera (e das possíveis retaliações em consequência, corriqueiras à época da ditatura civil-mi-litar no Brasil), a induz a reconhecer a abertura política outorgada na presidência de João Figueiredo. A antiga líder camponesa esboça, hesitante, narrar os sofrimentos que vivenciara ao longo dos anos em que estivera na clandestinidade, da perseguição que a afligia e do medo de ser exterminada como acontecera com seu marido. Um corte na cena e nos deparamos com Abraão derramando lágrimas enquanto ouve sua mãe.

Nova intromissão de Abraão, dessa vez em um tom indignado:

Todos os regimes são iguais, desde que a pessoa não tenha proteção política. [Elizabeth concorda, acuada]. Todos são rústicos, violentos, arbitrários, depen-dendo das camadas e das situações econômicas. Todas as facções políticas se esqueceram de Elizabeth Teixeira, simplesmente porque não tinha poder. Está aqui a revolta do filho mais velho. Agora se o filme não registrar esse meu pro-testo, essa minha veemência, essa verdade que falta a capacidade intelectual e expressiva do coração de minha mãe... (DEPOIMENTO extraído do filme Cabra Marcado para Morrer).

Há um pequeno corte no plano e, na cena que o sucede, Coutinho, sem se opor a Abraão, afirma que registraria tudo que a família de Elizabeth Teixeira desejar. Enfático, o filho da viúva de João Pedro Teixeira se manifesta uma vez mais, com o dedo em riste: “Mas eu quero que o filme registre esse nosso repúdio a quaisquer sistemas de governo” (DEPOIMENTO extraído do filme Cabra Marcado para Morrer). Coutinho in-siste, sem se alongar, questionar ou rebater Abraão, que irá gravar aquilo que for da

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

vontade de seus personagens. O plano se encerra com a imagem de Elizabeth, visivel-mente constrangida e sem disposição para prosseguir a conversa.

Como já é de conhecimento geral, os próximos reencontros da antiga líder camponesa das Ligas de Sapé com o documentarista ao longo da trama de Cabra Mar-cado para Morrer adquirem outros contornos, findando-se com uma despedida me-morável em que fica nítida a desenvoltura discursiva e o caráter combativo de Eliza-beth Teixeira, com um semblante que pouco recorda àquele do primeiro reencontro (e que adquire maior importância se associado a essas primeiras imagens rodadas em São Rafael, calcadas por uma profunda austeridade).

II

Situação similar é proeminente no decurso de Boca de Lixo (1992), gravado no lixão de Itaoca, no Município de São Gonçalo, periferia da cidade do Rio de Janeiro. Na segunda metade do documentário, somos apresentados à Jurema, uma das perso-nagens que recebem destaque na trama. Coutinho tenta se aproximar enquanto ela trabalha no aterro. Pergunta se podem conversar. Ela responde às primeiras questões formuladas com certa aspereza, encarando o diretor. Logo, dá as costas para a câmera e expõe sua revolta com a equipe, que acreditava estar realizando as gravações com o intuito de exibir as condições deploráveis de vida daqueles que residiam nas ime-diações do lixão: “A gente não cata essas coisas do lixo aqui para comer não, cês botam no jornal, aí quem vê pensa que é pra gente comer, mas não é pra gente comer, não é. Isso não pode acontecer [...] Todo mundo aqui tem porco” (DEPOIMENTO extraído do filme Boca de Lixo). Ela prossegue, enquanto em plano médio vemos imagens de um de seus filhos a auxiliando em suas atividades: “Eu tô revoltada é com isso [...] O pai dela catando legume, e eles filmando. Quem vê isso lá fora, vai pensar: olha, aquilo ali que eles comem, aquilo ali que eles vivem. Mas não é” (DEPOIMENTO extraído do filme Boca de Lixo).

Coutinho insiste na aproximação e arrisca perguntar a Jurema sobre sua fa-

mília. Somos levados a sua casa por um corte na cena, onde seus sete filhos estão dis-postos contra a parede enquanto ela se posiciona logo à frente, apresentando um por um, além de seu marido e sua mãe, que também residem no local. Já menos evasiva e desconfiada das intenções da equipe, a catadora expressa contentamento ao falar de suas expectativas de se engravidar novamente, do modo como conheceu seu compa-nheiro, dos conflitos conjugais, até que o diretor relembra do clima de hostilidade das primeiras gravações, questionando-a sobre sua insatisfação no primeiro encontro com a câmera de Coutinho: “Porque que naquele primeiro dia a senhora ficou tão brava comi-go?” (DEPOIMENTO extraído do filme Boca de Lixo). Jurema não titubeia, confessa seu aborrecimento na ocasião, decorrente da suspeita de que o material captado no depó-sito servisse para retratar o intolerável de pessoas que se alimentam de dejetos orgâ-nicos. Sustenta que admitir que reaproveita alimentos que chegam pelos caminhões de despejo não iria alterar sua situação de vida ou a providenciar assistência social. Sua presença no documentário termina com ela declarando que as pessoas que trabalham no aterro têm vergonha de serem filmadas com o corpo impregnado em lixo.

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III

Por fim, um último fotograma provém de um dos diálogos mais inquietantes do longa-metragem Edifício Master (2002), no qual Coutinho se encontra com Daniela, professora de Inglês moradora do edifício que serve de título ao filme. Chama aten-ção o fato de que essa personagem se encontre impossibilitada de fitar diretamente a câmera (e possivelmente o espectador que transparece através dela) na circunstância em que recebe o diretor em seu apartamento.

A personagem se coloca em posição lateral ao diretor, os braços envolvem as pernas em tom acuado. Os primeiros temas que Coutinho aciona correspondem a aspectos mais gerais da vida de Daniela. Contudo, ela logo aborda questões mais ínti-mas de sua trajetória, como o transtorno de sociofobia, sua dificuldade em lidar com a aglomeração típica de grandes metrópoles como o Rio de Janeiro, e sua satisfação habitual quando não é forçada a dividir o elevador com outros residentes (e conse-quentemente consegue evitar o olhar alheio em sua direção). O cineasta sente então abertura para, reticente, a perguntar sobre seu comportamento evasivo em relação a ele. Pela primeira vez ela fita a câmera: “Não porque o que eu esteja dizendo não tenha veracidade, mas porque eu não sei se eu tenho autoconfiança para encará-lo, sem talvez gaguejar ou piscar compulsivamente” (DEPOIMENTO extraído do filme Edifício Master). Daniela também relata estar temerosa com a situação em que se encontra, e que essa seria a razão pela qual ela não teria confiança para “enfrentar” a câmera. A conversa se encerra sem que o clima desconfortável se finde.

IV

É notório no campo dos estudos em cinema documentário brasileiro, princi-palmente nas análises debruçadas em compreender as dimensões éticas envolvidas na retratação da alteridade na escritura fílmica, um expressivo entusiasmo e certo grau de perplexidade em face da singularidade da obra de Eduardo Coutinho resultante, sobremaneira, da forma inédita como seu dispositivo de filmagem e suas estratégias de montagem construíram uma narrativa organizada com o intento de potencializar a expressão da palavra e dos gestos de seus interlocutores.

As três cenas já foram exaustivamente recuperadas em uma variedade ampla

de investigações (MENEZES, 1994; MATTOS, 2003; LINS, 2004; RAMOS, 2006; ALVES, GONÇALVES, 2010) sob uma diversidade ainda mais significativa de enfoques. É funda-mental também ter em mente que se elas convocam a uma reflexão mais detida sobre os métodos de gravação e montagem de Coutinho em uma visada diacrônica, é por-que elas não são descontínuas na filmografia do diretor ou casualidades decorrentes de um momento inspirado – fagulhas que fogem à estrutura narrativa de seus docu-mentários. Ao contrário, nos parece mais produtivo enfrenta-las como momentos de interlocução potencialmente capazes de condensar em imagens algumas das carac-terísticas apreciadas como constitutivas da obra do cineasta, cenas que poderiam ser também atreladas a outras tantas de qualidade semelhante (a exemplo dos interditos à manifestação verbal que demarcam cada um dos encontros com o Major Theodorico

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Bezerra em Theodorico, Imperador do Sertão (1978); da sinuosa conversa com Aniceto Menezes em O Fio da Memória (1991); ou das táticas expressivas de Chico Moisés que desconcertam Coutinho em O Fim e o Princípio (2005).

Uma primeira via de imersão nessas imagens, privilegiada por uma chave de leitura presente nos textos de Consuelo Lins (2002, 2004) e César Guimarães (2005, 2007), identifica no cinema de Coutinho [mas também no de outros cineastas pauta-dos por uma ética participativo-reflexiva (RAMOS, 2005)], o retorno do “homem ordi-nário” às tramas (GUIMARÃES, 2005), ator natural que teria sua mise-en-scène acolhida por uma estética e uma política da hospitalidade no encontro com o sujeito-da-câ-mera3. Essa constatação, que reforça a positividade ética nesse filão do documentário brasileiro, desponta em contraste a um diagnóstico cáustico da profusão das imagens midiáticas do dispositivo televisivo, responsável, segundo esses ensaístas, por “desfi-gurar” a alteridade e restringir a “contaminação” do mundo na cena – ora encurtando suas competências performativas a uma roteirização da vida nos limites daquilo que é excessivamente particular, ora submetendo a palavra alheia a uma categorização previamente estipulada, de modo a enquadrá-la na total tipicidade (a exemplo da sa-turação de vozes que povoam esquetes de “povo-fala” em programas de variedades).

Por essa guinada, como explicita Ismail Xavier (2010), delineia-se um cenário marcado por um confronto entre os regimes de visibilidade instaurados pelo cinema brasileiro contemporâneo e àqueles típicos de uma esfera pública edificada pela he-gemonia das representações da alteridade que a televisão usualmente veicula. “Como resposta, e não apenas em razão disso, os cineastas [a exemplo de Eduardo Coutinho] desenvolveram um contra discurso [...] voltado para o debate das questões reprimidas ou que se fazem presentes no discurso da mídia como um feixe de clichês” (XAVIER, 2010, p. 17). Prossegue esse autor:

Nesse gesto, os filmes se mobilizam para produzir certo efeito-do-real por diferença, o que permitiria o recurso a uma noção de ‘realismo’ como traço diferencial, em que um discurso ou um estilo atesta sua potência de reve-lação por sua oposição à convenção sedimentada e aos discursos que já se fizeram clichês (XAVIER, 2010, p.17).

Os ecos dessa maneira de vislumbrar a originalidade dos artifícios de filma-gem e de construção narrativa peculiares à produção de Eduardo Coutinho sobres-saem, a título de ilustração, quando Lins (2004) destaca que o método do diretor se molda a partir de uma consciência manifesta por ele de que o cinema é atualmente atravessado por um fluxo de imagens televisivas de um presente instantâneo que se instala nas falas e situações filmadas, de modo que seria:

3 Para Fernão Ramos (2012a), o sujeito-da-câmera não se constitui propriamente como um indivíduo físico, mas como um ser que surge transfigurado pela câmera que o abriga junto de si (incorporando a máquina que sustenta com o corpo, mas também a equipe que o faz existir como imagem cinematográfica), fundando a tomada ao transformar a ação dos sujeitos no mundo em encenação.

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[...] somente no conflito tenso e vivo com esse fluxo, em meio a todas essas impurezas, e não afastado delas, que seus documentários têm alguma chan-ce de existir e resistir – subvertendo, revirando, quebrando ‘a marteladas’, em muitos casos, as imagens que a mídia faz circular (LINS, 2004, p. 13).

– ou ainda na avaliação de Guimarães (2005) de que a aposta na “espessura da relação intersubjetiva” por parte do cineasta - aposta calcada na figuração dos gestos e na duração dos discursos – contrapõe-se à intensificação dos mecanismos de espe-tacularização da vida cotidiana que imperam na tele difusão4.

Esses apontamentos iluminam a análise empreendida por Lins (2004) a dois dos trechos apresentados no preâmbulo do presente texto. A autora frisa que tanto em Boca de Lixo (1992) quanto em Edifício Master (2002) há um diálogo conflitivo explícito com os gêneros televisivos: no primeiro caso, com as imagens negativas dos catadores de lixo que permeiam os noticiários, no segundo, com a produção de reality shows norteados pela lógica da exposição da intimidade alheia. Isso posto, as esquivas e o consequente protesto de Jurema em face da câmera de Coutinho revelariam uma re-cusa inicial em ser reduzida a uma imagem mortificante de si mesma reproduzida em demasia nas reportagens jornalísticas (algo só transposto quando o diretor vai a sua casa e a permite adquirir confiança de que sua proposta ultrapassa os prejulgamentos corriqueiros sobre o catador de lixo); bem como a exposição pública dos transtornos e fobias sociais por parte de Daniela demonstraria o impulso por um reconhecimento que vem através da escuta analítica adotada no cinema de Coutinho – reconhecimen-to que permite o restabelecimento dos vínculos deformados nos clichês que circulam nas produções populares ao campo do reality show.

A despeito dos intrigantes insights oriundos dessa chave de apreensão das virtudes da obra de Eduardo Coutinho (e particularmente das cenas acionadas na abertura deste capítulo), gravitando no entorno de sua ética de filmagem receptiva às singularidades dos personagens que investem sua mise-en-scène para o sujeito-da--câmera (em embate direto com os sistemas de cerceamento da palavra do outro que alicerçam os media), o estabelecimento dessa polarização quase ontológica entre os dispositivos potencialmente suscetíveis de representar de forma ética as dimensões expressivas dos sujeitos em cena e aqueles destinados a reproduzir a espetaculari-zação da alteridade se defronta com alguns inconvenientes. Pressupor que qualquer

4 O percurso argumentativo adotado por esses autores recebe notável influência das reflexões do crítico francês Jean-Louis Comolli (2008), que em um ensaio seminal distingue eticamente o documentário do espetáculo televisivo por seus meios dessemelhantes de acolher a mise-en-scène daqueles que são filmados. Enquanto que a televisão se caracterizaria por uma encarnação esvaziada e controladora da alteridade, o documentário se conduziria por uma filmagem calcada no reconhecimento da singularidade dos sujeitos em cena, em um gesto de hospitalidade que se debruça, sobretudo, na passagem do tempo nos corpos filmados - corpos esses que se infiltrariam no filme com o fora de campo de suas vidas encarnadas, se tornando singulares na medida em que falam, se expressam e se movimentam de um modo não reproduzível.

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forma de lidar com o outro na constelação heterogênea de narrativas televisivas é ine-vitavelmente inapropriada de um viés moral5 produz, em contrapartida, o risco con-siderável de minar a força heurística das excursões à obra de Coutinho6, levando-as a operar em um plano exterior aos documentários em si (ou seja, investigá-los pro-cedendo não de sua estrutura fílmica própria encarnada em imagens e sons, mas a partir do que se supõe que eles não são – criações do “tirânico” universo televisivo) e a reiterar, a cada nova investida analítica, os pressupostos de cariz normativo que con-formam seu arcabouço teórico (ou seja, que a vitalidade do cinema de Coutinho reside fundamentalmente em seu embate com o fluxo de imagens do espetáculo midiático).

Conservando a asserção de que nos filmes do cineasta em questão se ma-nifestam de modo privilegiado os ingredientes de uma ética participativo-reflexiva7 que lida com o outro em cena sem confiná-lo a um roteiro prévio de intenções do realizador, um segundo prisma de leitura da obra de Eduardo Coutinho (e, consequen-temente, das cenas acionadas nas três primeiras seções), tende a inserir os filmes do diretor em uma trajetória histórica do cinema documentário brasileiro, caracterizando seu trabalho como expoente de uma reorientação da estrutura narrativa e dos modos de interlocução com a alteridade calcada na encenação-direta8, como indica Ramos (2008, 2011). A imersão nas obras nesse marco também opera por uma via extrínse-ca, apreciando sua filmografia em contraste à produção do gênero que vigorara dos anos de 1960 até 1984 (ano de lançamento de Cabra Marcado para Morrer)9 arvorada naquilo Bernardet (2003) identifica como um “modelo sociológico” de representação do “outro de classe”.

Nesse horizonte Cláudia Mesquita (2007) salienta [inspirada pelas considera-ções de Bernardet (2003)], que “Coutinho abre caminho para uma reflexão mais ama-durecida sobre a elaboração de sentidos pelo documentário, pondo em crise tanto as ilusões de conhecimento objetivo do ‘modelo sociológico quanto a falsa neutralida-de do ‘dar a voz’: tudo é negociação, mediação, elaboração de versões, de discursos”

5 Ainda que não seja o tema do presente capítulo, é fundamental ter em mente que diversas investigações levadas a cabo desde a emergência dos Estudos Culturais britânicos na década de 1960 procuraram destacar as inflexões de ordem ética que atravessam uma cultura popular midiática. 6 Evidente que esse modo de conduzir a análise não se restringe à apreciação dos filmes de Eduardo Coutinho, mas se estende a uma diversidade de cineastas que fazem parte daquilo que Mesquita (2007) nomeia como um “cinema brasileiro de retomada” principiado no final do século XX com o lançamento de Santo Forte (1999).7 Segundo Ramos (2005), o que caracteriza esse campo ético do documentário do século XX (em contraste aos paradigmas da missão educativa e da ética do recuo), é o fato do realizador de uma determinada obra assumir deliberadamente o seu lugar de enunciador, imprimindo suas marcas no filme (que podem envolver até mesmo sua inserção na trama como personagem), de modo a enfatizar ao espectador a circunstância do mundo em que o documentário é feito.8 Nos termos de Ramos (2012b), “quando a encenação na tomada é explorada estilisticamente em sua radical indeterminação, liga-se umbilicalmente ao transcorrer do mundo no presente, em sua tensão de futuro ambíguo e indeterminado. A ação que explora a circunstância indeterminada da tomada ocorre sob a forma da encenação direta” (p. 26).9 Evidentemente que há exceções às tendências desse modelo que imperou nas obras do período histórico em questão, como frisa Bernardet (2003) ao se deter em filmes como Congo (1972), de Arthur Omar, e O Porto de Santos (1978), de Aloysio Raulino.

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(MESQUITA, 2007, p.11). Desse modo, a pesquisadora (MESQUITA, 2007, 2010) distin-gue nos filmes do diretor (mas também em obras de outros realizadores do mesmo período10) elementos que contribuiriam para a emergência de uma cena documentá-ria brasileira de retomada na primeira década do século XXI, tais quais: a tendência à particularização do enfoque (abandonando os procedimentos totalizantes e as possí-veis sinédoques de personagens construídos como tipos representativos em função de um contexto mais ampliado); a valorização da subjetividade do homem comum (em detrimento da restrição dos sujeitos filmados à posição de informantes de um tema); e a tônica conferida à abordagem performativa das situações, com destaque para a intensidade da experiência de interlocução entre quem filma e quem é filmado (em oposição a teses previamente formuladas ilustradas nas cenas de interação).

Nessa trilha, Lins (2002, 2004) irá apontar que os dispositivos de filmagem de Coutinho investem na produção de acontecimentos especificamente fílmicos, expli-citados na montagem11 no intuito de desvelar as condições de produção da obra nas cenas, tornando evidente para o espectador que se trata de um filme, e não da “captu-ra” de uma realidade pré-existente à tomada (como haveriam ansiado os realizadores de outrora). Xavier (2010, p. 19) acompanha o raciocínio quando assevera que o “o que Coutinho busca é o efeito-câmera no que esse tem de cumplicidade, por assim dizer, com a esfera do contingente que, no entanto, não se pode tomar como lugar do espontâneo [...] mas como lugar da ambivalência”. Prossegue o autor: “Se há a ideia de realismo, essa vem da situação produzida, esse happening tornado possível pela pre-sença da câmera, lugar da ampliação de experiências” (XAVIER, 2010, p. 19).

Esse procedimento que mescla contingência e teatralidade (assumindo-se en-quanto filme, vale-se do efeito-câmera para produzir momentos inesperados de inter-locução entre os envolvidos nas cenas) adquire uma feição ética reflexiva, atrelada aos cânones do cinema verdade francês, potencializando a manifestação, na própria es-trutura narrativa do documentário, da única verdade possível - aquela das filmagens12. Por esse ângulo, o corpus acionado no princípio do texto adquire outra consistência: a inserção das situações de interação entre Coutinho e Elizabeth (e Abraão), Jurema e Daniela nos filmes do diretor em sua duração peculiar se deve a uma obrigação moral de confessar as conversas como filmagens, advertindo ao espectador (como uma dívi-da) que as situações gravadas não são espontâneas, e que qualquer sinal de vitalidade da palavra alheia nessas imagens só pode ocorrer sob as coordenadas do efeito-câme-ra (ainda que pressionadas em seus limiares pela expressividade da alteridade).

10 Mesquita (2007) também menciona O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-Retratos) (2003), de Paulo Sacramento, e Estamira (2005), de Marcos Prado.11 Como frisa Lins (2004) ao refletir sobre influência da estilística do cinema verdade em Cabra Marcado para Morrer, “não apenas o diretor de fotografia, o técnico de som e o diretor são filmados em muitas sequências, mas a própria narração de Coutinho indica as condições de produção de diversas entrevistas”.12 Algo que contribui a essa chave interpretativa é o fato do próprio Coutinho associar seus métodos de trabalho aos do cinema verdade francês da década de 1960, particularmente aos documentários de Jean Rouch, como ocorre em entrevista concedida a Fernando Forchtengarten (2009).

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Fernão Ramos (2002, p. 3) considera que o recuo reflexivo louvado por essa esfera da crítica especializada seria o ponto cego da ideologia da ética contemporâ-nea, que pressuporia que o único dispositivo discursivo válido para o documentário seria “apontar em direção às suas próprias condições de enunciação”, de forma a in-terrogar a produção antecedente, sob uma concepção estilística e moral diferentes, a consciência de uma época que não era a sua (RAMOS, 2011). Brian Winston (1993) complementa esse argumento ao assinalar que persiste nesse horizonte ético a mes-ma conjectura da imagem como evidência que demarcaria a produção moderna em cinema documentário, só que dessa vez transfigurada: a evidência ofertada não é mais a do registro, mas a dos cineastas realizando in situ um filme do gênero. Assim, averi-guar as cenas descritas no início do texto por essa linha não permite ir além da consta-tação de traços dessa ética da filmagem encampada por Coutinho, já que não haveria mais nada a explorar além da ponderação de que a obra se encaixa (ou não) nos trilhos éticos de seu tempo.

V

Se os eixos de interpretação dos trechos de Cabra Marcado para Morrer, Boca de Lixo e Edifício Master aludidos no início evocam leituras que priorizam o seu con-traste com agentes externos a eles (no primeiro caso, o espetáculo midiático ao qual Eduardo Coutinho enfrentaria pelo recurso a uma ética participativo-reflexiva; no se-gundo, a um cinema documentário que apostava na “captura” de uma realidade pré--existente à circunstância da tomada – explicitando que a única “verdade” possível é aquela das filmagens), outra aproximação possível dessas cenas irá se debruçar nas especificidades das relações urdidas entre o diretor e seus interlocutores. Essa forma imanente de imergir nos trechos procura compreender os métodos explorados por Coutinho para construir uma narrativa dirigida para a intensidade dos encontros em sua duração.

Essa via de acesso às conversas13 que conformam a concepção estilística dos documentários do cineasta em questão é encampada por Xavier (2004), em um artigo no qual o autor advoga que, no misto de espontaneidade e teatro que transparece nas palavras e nos gestos daqueles que se dispõe a falar para a câmera de Coutinho, este investe em uma “filosofia do encontro”, de tal modo que há na situação de diálogo instaurada uma abertura à escuta ativa e uma premissa de confiança, propiciando a gestação do “senso partilhado de um ‘nós’ que dê lastro ao movimento da troca” (XA-VIER, 2004, p.184).

Seriam então as imagens selecionadas no princípio do capítulo retratos dessa disposição e sensibilidade de Coutinho para conquistar a confiança de seus persona-gens, e, nesse processo, obter deles uma vitalidade expressiva digna de sua particu-

13 Como fica patente em entrevista concedida a Fernando Forchtengarten (2009), o diretor prefere que as interações que tomam conta de seus filmes sejam classificadas como “conversas”, e não como entrevistas, já que essas possuiriam um componente jornalístico (de coleta de depoimentos informativos) dispensável à consecução de seu método de filmagem.

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larização em cena? O reconhecimento da singularidade de Elizabeth, Jurema e Da-niela, que Coutinho demonstra ao escutá-las cuidadosamente, consequentemente as conduzindo a atitudes surpreendentes14 é o que sua direção quer frisar? Embora seja inquestionável a riqueza dos encontros em tela, é fundamental, antes de tudo, evadir da equivocada inferência de que o verniz ético na retratação da alteridade nas narrati-vas do cinema de Coutinho seria acionado através do gesto do diretor de, no contato com seus interlocutores, tomar como pressuposto uma suposta igualdade entre ele e esses parceiros de interação, acolhendo suas vozes ao supostamente se “colocar” no lugar que esses sujeitos ocupam no mundo cotidiano, e reconhecendo que, embora de lados diferentes da câmera, na cena todos estão envoltos sob um mesmo mundo comum (portanto, desvestidos de quaisquer distâncias que os apartem um do outro).

Ao contrário do que essa proposição leva a crer, a promessa de Coutinho, como o próprio faz questão de reforçar em diversas entrevistas concedidas (FILÉ, 2000, FIGUEIRÔA et al, 2003; FROCHTENGARTEN, 2009), é a de que seu cinema não serve para transpor distâncias, mas para explicitar na própria escritura fílmica a inalienável diferença entre seu lugar no mundo e o lugar daqueles que oferecem sua mise-en-s-cène para a trama que se constrói gradualmente. Esse gesto, explorado como eixo condutor de uma boa parte de sua filmografia (como fora indicado), é o que permite que arrombem em cena os momentos de uma “igualdade temporária” entre ele e esses sujeitos - “igualdade” essa que se manifesta nas ocasiões em que a montagem permite, de modo reflexivo, que percebamos os conflituosos vínculos que decorrem da presen-ça de alguém “de fora” (o sujeito-da-câmera) indo ao encontro da ação de um corpo outro na intensidade do presente.

Considerações dessa natureza salpicam nos argumentos de alguns dos au-tores que se detiveram na obra de Eduardo Coutinho. A título de exemplo, no artigo supracitado de Xavier (2004), há a sugestão de que o diretor não escamoteia por um atalho de edição a assimetria de poderes que existe entre ele e seus entrevistados, assimetria não transponível por maior que seja a abertura efetiva para o diálogo; em Mattos (2003), acentua-se que a busca de Coutinho por uma “fala incorporada” que pulse nas imagens não o impõe a apagar sua distância social perante seus persona-gens – ainda que em situação de presença física na circunstância do encontro filmado. Mas a leitura mais instigante convocada nesse lastro de análises é a ofertada por Mi-gliorin (2011, p. 21) por meio de uma aproximação desses encontros vertidos em nar-rativas como figurações de um “desdobrar-se entre a presença do outro como forma sensível que afeta o todo e o dissenso que não se resolve no estar junto”. Sendo o filme documentário um investimento de poder dotado de meios discursivos e imagéticos que de partida submetem na circunstância da tomada aquele que é filmado a uma posição de menor desenvoltura em face daqueles que o filmam (GUIMARÃES; LIMA,

14 No caso de Cabra Marcado para Morrer o “acontecimento fílmico” gerado pela interação com Elizabeth tem início no dia seguinte ao primeiro encontro, quando a antiga líder camponesa recepciona Coutinho na escola onde lecionava em São Rafael com as seguintes palavras: “Ontem à noite eu me deitei e fiquei imaginando. A entrevista, eu falei muito mal ontem, mas eu fiquei também muito emocionada... Porque eu devia ter começado direitinho, a vida como você queria, de início... Se você tinha deixado pra hoje eu tinha me expressado melhor” (DEPOIMENTO extraído do filme Cabra Marcado para Morrer).

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2007), o esforço do documentarista seria guiado por uma política e uma estética da hospitalidade que se propõe a construir um mundo em cena que não visa à transposi-ção dos desentendimentos em prol de uma nova unidade, mas sim os expor na urdi-dura das interações filmadas. Isso posto, denota-se em Coutinho uma “aceitação não resignada” (GUIMARÃES; LIMA, 2007) desse mundo edificado em cena, aceitação essa que implica no acolhimento do risco presente nas relações tecidas, de modo que um componente de incomunicável perambula pelo transcorrer das conversas. Nos termos de Migliorin, “o encontro é mais que um aperto de mão ou uma troca de olhares, mas a possibilidade de sujeitos que não habitam a mesma cena se reunirem por um breve instante em que o que lhes aparta passa a existir” (2011, p. 22).

A construção desse “nós” fraturado que se torna decisivo na montagem das

obras de Eduardo Coutinho é o que o próprio nomeia como seu “tema” central: o re-gistro do “encontro entre o mundo do cineasta e da sua equipe, mediado pela câmera, e o mundo que está em frente a essa câmera” (FIGUEIRÔA et al, 2003, p.216). Nesse contato, revelam-se as diferenças entre os sujeitos na trama (e as tensões acionadas por meio delas) como um trunfo do filme: “a partir dessa diferença, de que eu sou socialmente outro, superior socialmente ao que a pessoa na frente da câmera é. [...] A partir desta diferença bem estabelecida pode haver uma igualdade temporária e utópica” (FILÉ, 2000, p. 73).

Esses trechos que evidenciam as tentativas de reconhecimento e aceitação

mútua das diferenças exigem que “o documentarista, por exemplo, não se sinta su-perior só por ter o controle da câmera, que representa o poder nessa situação. O que exige também que o documentarista não julgue o outro, colocando entre parênteses tudo o que ele é” (FIGUEIRÔA et al, 2003, p. 220). Desse modo, o diretor conclui, “talvez por saber que falo de fora para dentro é que posso falar de dentro para fora. Ou seja, é justamente por me colocar diante das pessoas como sendo ‘de fora’, que elas, ao se sentirem escutadas por esse alguém de fora, revelam o ‘de dentro’” (FIGUEIRÔA et al, 2003, p.216).

Nessas ocasiões emerge também aquilo que Coutinho classifica como uma “negociação de desejos”. Nas palavras do realizador, essa noção permite compreender a seguinte condição que permeia seus encontros com a alteridade:

O entrevistado tem desejo de contar coisas que, eventualmente, podem não lhe interessar, e você não pode ter uma atitude paternalista demonstrando que tudo o que ele disser é interessante...Você ouve com respeito, mas tenta encaminhar a conversa para o que lhe interessa. De repente, há pontos de encontro entre o desejo dele e o seu (FIGUEIRÔA et al, 2003, p. 220).

Averiguar os trechos arrolados no início do texto sob essa perspectiva permi-te identificar nas narrativas do cineasta os múltiplos lances que muitas vezes tencio-nam ao limite a possibilidade de manutenção da interação (ou ainda desconcertam o diretor devido as suas imprevisibilidades), mas que são intencionalmente explorados em sua vitalidade para a composição ética e estilística da trama.

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Afinal, como não se inquietar com os entraves inibidores ao diálogo entre Cou-tinho e Elizabeth decorrentes da participação de Abraão naquele primeiro encontro em São Rafael? Como Bernardet (2003) enfatiza em um capítulo dedicado à análise de Cabra Marcado para Morrer, o filme se constitui no limiar entre a recuperação de uma memória fragmentária e o risco iminente dessa lembrança ser uma vez mais esquecida (como fora Elizabeth Teixeira nos anos em que se refugiou em São Rafael). Assim, nos deparamos naquela circunstância com a ameaça da inviabilização das gravações com a antiga líder camponesa nos dias em que a equipe se hospedara no pequeno vilarejo do Rio Grande do Norte. E junto com Coutinho, nos aliviamos quando, no dia seguinte, o filho mais velho da viúva de João Pedro Teixeira não retorna e ela pede para “refazer” a entrevista do dia anterior. Sua expressividade dali em diante ganha corpo, e se tor-na ainda mais ressonante por reverberar os ecos do primeiro encontro em cada novo depoimento.

A mesma sensação emerge quando somos apresentados à Jurema em Boca

de Lixo. Vemos na tela um conturbado primeiro encontro. Coutinho anseia o contato, a personagem é ríspida, dá as costas para a câmera. Silencia as poucas questões que o diretor endereça a ela com um agudo protesto. Mas a “negociação de desejos” perma-nece, de modo que Coutinho vai com ela até sua residência e somos apresentados à família dessa mulher. Mas apesar dessa frágil aproximação, as fagulhas do choque ini-cial não cessam, e a recuperação da situação de conflito que ocorrera ainda no aterro é recuperada nos últimos instantes em que vemos o rosto de Jurema na tela.

Por fim, e não menos importante, com Daniela nos defrontamos com o temor gerado pelo efeito-câmera explorado como recurso narrativo por meio da tentativa de edificar uma distância adequada de sua interlocutora (uma aproximação exacer-bada poderia fazer com que ela desistisse das gravações, um excesso de afastamento conduziria a uma situação ainda mais desconfortável para a personagem). “Por que quando você fala você não olha pra mim?”, Coutinho a indaga ciente do incômodo clima criado pela disposição de Daniela no quadro. Sua dificuldade em enfrentar a câ-mera seria derivada do medo da exposição ao olhar alheio. O diretor quer entender as nuances desse comportamento, e sem dissimular as dificuldades que envolvem essa aproximação com sua interlocutora, tenta compreender seu mundo - mas esse mo-mento é fugaz e logo a interação se finda.

Finalizo com a constatação de que as cenas de uma “igualdade temporária”, que dão o título a esse capítulo são, sobretudo, aquelas em que uma ética da distância apropriada se esboça em imagens – nem muito próximo, nem muito distante, como defende Coutinho (FILÉ, 2000). Sob essa perspectiva foi possível identificar, na imanên-cia da escritura fílmica de alguns de seus documentários, os rastros de um engajamen-to participativo-reflexivo sedimentado na sucessão de afastamentos e aproximações entre Eduardo Coutinho e seus interlocutores nas circunstâncias das filmagens – que podem conduzir à fraturas e dissensos que não são resolvidos por um enganoso senso de harmonização na montagem, em respeito àqueles que têm sua mise-en-scène aco-lhida nas gravações e que se singularizam com seus gestos e palavras nas narrativas do diretor.

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EDIFÍCIO Master. Direção de Eduardo Cou-tinho. Rio de Janeiro: VideoFilmes, 2002. 35mm (110 min): son. color.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

CABRA MARCADO PARA MORRER: análise histórica, descritiva e interpretativa das imagens de capa do documentário1

1 Texto adaptado do artigo científico ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA: técnicas para interpretação e análise de imagens fotográficas, apresentado no II Colóquio Internacional Discurso e Mídia, em Salvador – BA.2 Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Possui especialização em Jornalismo cultural na Contemporaneidade pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA); e MBA em Marketing Estratégico e Comunicação pela Universidade Gama Filho (UGF). É graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo e em Rádio e TV (UFMA); e em Letras: Português/ Inglês pela Universidade Ceuma. E-mail: [email protected].

1 INTRODUÇÃO

O mundo é formado por imagens? Ou melhor, uma imagem vale mes-mo mais do que mil palavras? Nosso objetivo neste artigo é justa-mente investigar a veracidade de tais assertivas quando diante da possibilidade de empreender um estudo científico que tenha nas

imagens mais do que simples ilustrações. Como objetos empíricos do estudo, escolhe-mos os cartazes promocionais do documentário Cabra marcado para morrer (1984), assinado por Eduardo Coutinho, e os analisamos depois de discutir as obras de Erwin Panofsky, Significado nas Artes Visuais; de Peter Burke, Testemunha Ocular; e de Boris Kossoy, Fotografia e História. Tais escolhas se devem ao fato de que, na nossa concep-ção, os três autores apresentam contribuições significativas sobre o estudo das bases desta investigação: a iconografia e a iconologia enquanto técnicas de análise e inter-pretação de imagens respectivamente. Kossoy, aliás, é o autor que alicerça a análise empreendida na última parte desta investigação. Isso porque, dos três, ele é o único

Diogo Azoubel2

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a oferecer indicações práticas para leitura das fotografias – às quais nós nos apropria-mos na análise e interpretação dos cartazes.

Pensando nisso, cabe, portanto, perguntar se é mesmo possível partir das imagens, e não dos textos escritos somente, para construção de argumentos que sustentem uma tese sobre este ou aquele fato e/ou fenômeno. Tal questão há muito tempo vem instigando pesquisadores em diversas áreas do conhecimento. Dos mais aos menos conservadores, a resposta vai além do simples “gostar” ou não do uso de imagens, do sentir-se à vontade com elas ou de nelas se poder perceber indícios veros-símeis ao que se pretende em um estudo científico.

1.1 Metodologia

Partindo das orientações de Marconi & Lakatos (2011), a revisão bibliográfica foi a técnica usada para o levantamento dos dados/conceitos ora apresentados. Em uma abordagem dialética com enfoque qualitativo, os métodos de procedimento fo-ram o comparativo, o histórico, o analítico e o interpretativo. Os autores usados são aqueles que tratam das teorias científicas aos que trabalham especificamente com o universo das imagens, passando, aqueles que se debruçam sobre a metodologia cien-tífica.

De acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa3 , o termo “ico-nografia” vem do latim, que por sua vez o busca no grego, e faz referência à “planta de uma construção, a técnica de desenhar plantas ou esboços”. Já o termo “iconologia” vem do francês e está diretamente associado à ideia de “ícone”, que se refere ao “re-trato, desenho, figura”. Juntas, as duas definições podem remeter ao esboço de uma figura representativa da realidade, espécie de rascunho.

Para contextualizar a imagem escolhida, é preciso levar em conta o momento no qual ela fora produzida. Além de conhecer a técnica usada, é necessário perceber a sociedade da época para, então, poder identificar nos cartazes elementos e conjectu-ras que se estruturam por detrás dos elementos visíveis ou, em outras palavras, visua-lizar o que compõe as entrelinhas do que é relatado.

2 CABRA MARCADO PARA MORRER

Buscamos, nas palavras de Ramos (2006), indicações que nos permitam conhecer a estrutura que sustenta as imagens a serem analisadas. De acordo com o autor, Cabra Marcado para Morrer é resultado dos esfor-ços empreendidos pelos membros do Centro Popular de Cultura (CPC)

da União Nacional dos Estudantes (UNE). Entretanto, o Golpe Militar de 1964 rompeu com a produção do filme, iniciada em 1964 e retomada 17 anos depois, em 1981.

3 Cf. CUNHA, Antônio Geraldo da. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010, p. 346.

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Com energia para alcançar as classes populares e se distanciar do público de classe média, os integrantes do CPC investiram em “uma nova forma de comunicação” a fim de dialogar com as ações empreendidas pelo Movimento de Cultura Popular (MCP) e pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) em uma espécie de in-dependência do Estado. Em março de 1962, afirma Ramos, o CPC estabeleceu víncu-los com a UNE, mesmo que resguardada a autonomia financeira e administrativa do Centro. Dessa forma, foram estabelecidos departamentos para produção de obras de caráter político pedagógico “nas quais a criação estética seria comandada por um es-forço conscientizador” (RAMOS, 2006, p. 2), fosse por meio do teatro, da música ou do cinema.

Nessa direção, e em uma das viagens da caravana UNE-Volante que percorreu o Brasil para discutir a Reforma Universitária e incentivar a formação de núcleos cultu-rais nos estados, Eduardo Coutinho, então com 30 anos, chega à Paraíba partindo de Pernambuco. Em meados de abril de 1962, conhece as ligas camponesas que viven-ciavam os conflitos decorrentes da questão agrária que remetem à organização da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, mais tarde chamada Liga Camponesa de Galileia, entre 1954 e 1955; e à gestão de Juscelino Kubitschek (1902-1976).

Ramos explica que, daquele momento em diante, “as invasões de terras se multiplicaram pelos Estados do Maranhão, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte e Paraí-ba” (RAMOS, 2006, p. 2). E foi justamente na Paraíba que fora constituída a Associação de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Sapé, ou Liga Camponesa de Sapé. Quan-do da chegada de Coutinho àquele Estado, a Liga de Sapé representava a maior do Nordeste brasileiro: mais de sete mil sócios se organizavam em torno de uma iniciativa de ajuda mútua.

João Pedro Teixeira, fundador da Liga, foi assassinado em 2 de abril de 1962, poucos dias antes da chegada de Coutinho. Para Ramos, o interesse inicial de filmar o comício de protesto pelo assassinato levou o documentarista à Sapé em 15 de abril daquele ano.

Nesta ocasião, Elizabeth Teixeira, viúva do fundador da Liga, acompanhada de seis dos seus onze filhos, manteve seu primeiro contato com Eduardo Coutinho, numa curta conversa, na Sede da Liga. Nesse dia, pouco antes do comício, nasceu a ideia de fazer Cabra Marcado para Morrer, um filme de longa-metragem sobre a vida de João Pedro Teixeira (RAMOS, 2006, p. 2-3).

Tal projeto, entretanto, enfrentaria vários obstáculos que o reconfigurariam antes de ser concluído. O primeiro deles resulta de um conflito entre policiais e tra-balhadores de uma usina contra camponeses nas proximidades de onde foram pla-nejadas as locações para o filme. Ocupado pela Polícia Militar depois da morte de 11 pessoas no confronto, o espaço fora descartado como adequado à condução dos tra-balhos. Dessa maneira, o Engenho da Galileia, em Vitória de Santo Antão, no Pernam-buco – berço da primeira liga camponesa, em 1955 –, fora escolhido como locação.

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As filmagens aconteceram entre os dias 26 de fevereiro, quando foi rodado o primeiro plano de Cabra Marcado para Morrer, e primeiro de abril de 1964, momento em que o trabalho da equipe do CPC da UNE foi definitivamente interrompido pelo Golpe de Estado (RAMOS, 2006, p. 3).

Eduardo Coutinho e a equipe dele retornariam à Paraíba em 1981, depois da anistia decretada durante a gestão do general João Baptista de Oliveira Figueiredo (1918-1999). Sobre o assunto, Montenegro explica que:

O retorno de Eduardo Coutinho, em 1981, ao Engenho Galileia onde, em 1964, iniciara as filmagens de Cabra Marcado para Morrer, simbolizará o revi-sitar coletivo de uma memória. Os camponeses, atores do filme, e o diretor se reencontram, tendo como elemento de ligação a experiência da filma-gem. O filme os colocará juntos outra vez, como não tinham tido oportu-nidade desde abril de 1964, quando o Exército cercou o Engenho Galileia onde estavam sendo realizadas as filmagens. O reencontro dos trabalhado-res que atuaram como atores e a possibilidade de verem-se projetados 17 anos mais novos produzem um clima de grande emoção. A memória é atua-lizada através de conversas acerca de experiências comuns vividas naquele período, mas, sobretudo, através da projeção do filme. As imagens, as falas dos atores produzirão a redescoberta de lembranças desconhecidas. A fil-magem da forma como o grupo reage ao momento da projeção, bem como as entrevistas posteriores, em que cada um dos atores relata sua experiência em rever aquelas imagens, representa uma inusitada forma de reconstrução da memória (MONTENEGRO, 2001, p. 3).

É essa perspectiva que nos permite inferir alguns marcos daquele período de intensas mudanças e tensões no regime político nacional. As perseguições políticas do regime militar que são retratadas abrem espaço para discussões sobre como se con-figurava a vida no Brasil em um período obscuro e violento. E é justo por essa quebra na produção da obra que Eduardo Coutinho modifica as estratégias de ação e docu-mentação dos acontecimentos. O tempo passou e o diretor, certamente, reposicionou alguns olhares. Sem um roteiro engessado, o resultado das filmagens não mais se as-semelha ao caráter iminentemente pedagógico de outrora. A contrário, o hiato entre o início e o fim das filmagens serve de alicerce para ressignificação dos referenciais estéticos anteriores ao Golpe. Algo como a analogia do renascimento proposta por Ramos em relação à ruptura imposta em 1964.

A experiência de perda passaria a unir a todos. Depois de um longo proces-so de luta visando superar o estado de coisas instalado com os governos mi-litares, tudo parecia renascer. Plataformas antigas, sonhos perdidos e lutas derrotadas pareciam voltar à ordem do dia (RAMOS, 2006, p. 4).

Em direção complementar, Montenegro explica que a continuidade dada ao filme revela um diretor que, embora ainda com as mesmas preocupações, assumiu posturas diferentes. Diz ele que “não há mais a certeza do caminho, do que fazer para mudar a realidade e, por extensão, a consciência a ser ensinada ao povo” (MONTENE-GRO, 2001, p. 4). Pensando nessas considerações preliminares, passemos agora à abor-dagem da iconografia e da iconologia enquanto técnicas que vão nos permitir analisar e interpretar os cartazes promocionais de Cabra Marcado para Morrer.

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3 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA

Burke afirma que é preciso estar atento às fragilidades das imagens quando do momento em que desejar usá-las como evidência. O autor reconhece que o próprio tempo decorrente entre o registro imagético do mundo e a leitura pode ser um problema, além do contexto e da

função nos quais se insere cada imagem. “Até que ponto se pode confiar nas fotogra-fias?” (BURKE, 2004, p. 25), pergunta o autor depois de afirmar que, desde sua origem, a fotografia foi discutida como forma de auxílio à História. E, parafraseando Lewis Hine (1874-1940), Burke lembra que fotografias não mentem, mas que mentirosos podem fotografar. Vamos além, especialmente quando diante das imagens que engendram este estudo: eles não só podem fotografar como construir narrativas outras sobre a superfície fotográfica.

Como então driblar tantas “armadilhas” e fazer das imagens construídas pelos seus agentes ferramentas de auxílio na busca científica? Aqui estão destacadas duas técnicas que podem contribuir não para fazer das imagens genericamente confiáveis, mas para auxiliar o cientista na busca por argumentos que o ajudem a decidir usá-las ou não em suas pesquisas. E, em caso afirmativo, como usá-las.

Um primeiro passo é não descontextualizá-las. É preciso levar em conta o mo-mento em que cada uma delas foi produzida. Não basta saber qual foi o tipo de equi-pamento ou o tipo de técnica usados; é preciso conhecer a sociedade da época para, então, poder identificar na fotografia elementos e conjecturas que se estruturam por detrás dos elementos visíveis.

Como outras formas de evidência, imagens não foram criadas, pelo me-nos em sua grande maioria, tendo em mente os futuros historiadores. Seus criadores tinham suas próprias preocupações, suas próprias mensagens. A interpretação dessas mensagens é conhecida como “iconografia” ou “icono-logia”, termos algumas vezes utilizados como sinônimos, porém, em outras, distintos, como veremos a seguir (BURKE, 2004, p. 43).

Dando continuidade ao pensamento de Burke, é conveniente lembrar que os termos acima referidos são, segundo o autor, lançados durante as décadas de 1920 e 1930.

Para ser mais preciso, eles foram relançados – um famoso livro renascentista de imagens, publicado por Cesare Ripa em 1853 já era intitulado Iconologia, ao passo que o termo “iconografia” estava em uso desde o século 19. Por volta da década de 1930, o uso desses termos tornou-se associado a uma reação contra uma análise predominantemente formal de pinturas em ter-mos de composição ou cor, em detrimento ao tema (BURKE, 2004, p. 43-44).

Mas de que formas cada um dos três autores selecionados como referências aborda individualmente esses conceitos e/ou técnicas? É o que abordamos a seguir, lembrando que a citação das obras detém-se à data de publicação original de cada

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uma em ordem crescente.

3.1 Erwin Panofsky

Para Panofsky, a iconografia é “o ramo da história da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma” (PANOFSKY, 2009, p. 47). Em oposição a essa definição, a iconologia é a descoberta e interpretação de valores “simbólicos” e que, segundo o autor, “muitas vezes podem, até, deferir do que ele [o artista] conscientemente tentou expressar” (PANOFSKY, 2009, p. 53).

Iconologia, portanto, é um método de interpretação que advém da síntese mais que da análise. E assim como a exata identificação dos motivos é o re-quisito básico de uma correta análise iconográfica, também a exata análise das imagens, estórias e alegorias é o requisito essencial para uma correta interpretação iconológica [...] (PANOFSKY, 2009, p. 54).

Assim, a análise/interpretação de obras de arte – termo que preferimos subs-tituir por “imagem” –, deve acontecer em três níveis interdependentes que pendem da subjetividade de cada um em uma abordagem que o autor chama de tradicional, por corrigir e suplementar essa subjetividade por “uma compreensão dos processos históricos” (PANOFSKY, 2009, p. 63-64). São eles a descrição pré-iconográfica, a análise iconográfica e a interpretação iconológica, a saber:

3.1.1 Descrição pré-iconográfica

Mantendo-se “dentro dos limites do mundo dos motivos”, essa descrição nada mais é que o relato de “objetos e eventos, cuja representação por linhas, cores e volu-mes, constituem” esse mundo. A descrição pré-iconográfica objetiva a identificação dos elementos retratados, dos personagens aos detalhes que compõem a paisagem. Para tanto, o leitor da imagem deve se valer da própria experiência prática, de sua bagagem cultural o que, por outro lado, não é garantia de uma boa descrição. Isso porque, imaginado a retratação de um objeto desconhecido para o leitor, o mesmo não vai poder ser motivo de uma descrição exata. Por isso a necessidade de identificar todos os elementos presentes na imagem para que, de maneira conjunta, eles possam ser identificados como parte de um contexto mais amplo.

3.1.2 Análise iconográfica

Essa análise envolve mais que a simples descrição, embora dependa dela, uma vez que busca identificar “imagens, histórias e alegorias” com base na familiaridade do leitor da imagem os objetos nela retratados. Essa familiaridade pode ser adquirida, para o autor, seja pela tradição oral, seja pela leitura de fontes literárias diversas. Eis a importância de se considerar o contexto em que cada imagem foi produzida, pois:

É tão impossível [...] fornecer uma análise iconográfica correta aplicando, indiscriminadamente, nosso conhecimento literário aos motivos, quanto fornecer uma descrição pré-iconográfica certa aplicando, indiscriminada-mente, nossa experiência prática às formas (PANOFSKY, 2009, p. 59).

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Dito isso, vale ressaltar que o pesquisador não pode e nem deve se contentar com uma proposta de leitura de imagens somente e, mesmo advogando em prol de uma visão em detrimento de outra, deve conhecer as que lhe são opostas até mesmo como forma de poder justificar suas escolhas.

3.1.3 Interpretação iconológica

Em uma analogia ao trabalho do médico, que deve diagnosticar males com base no relato de sintomas, isolada e conjuntamente, Panofsky argumenta que a inter-pretação iconológica seria uma espécie de “intuição sintética”. Essa intuição objetiva identificar os significados intrínsecos por traz de uma imagem ou de conjuntos delas com base no que se pensa ser o significado de tantas outras obras ou conjuntos delas. Isso revela novamente a necessidade da contextualização do objeto para o empreen-dimento de uma leitura efetiva de seus sentidos. Afinal, “é na pesquisa de significados intrínsecos ou conteúdo que diversas disciplinas humanísticas se encontram num pla-no comum, em vez de servirem apenas de criadas umas das outras” (PANOFSKY, 2009, p. 63). Em miúdos, a análise/interpretação de imagens não pode e nem deve se dar fora da totalidade ou negligenciado os aspectos econômico, político, social etc. do quais fazem parte.

3.2 Peter Burke

Retomando a obra de Panofsky, Burke relembra os três níveis abordados por aquele autor para análise de imagens como correspondendo a três níveis de significa-ções das próprias obras em paralelo à analise literária em uma espécie de adaptação das técnicas alemãs para interpretação de textos. Esses níveis corresponderiam res-pectivamente à hermenêutica, à semântica e a Geist5 (BURKE, 2004, p. 45).

Sem desconsiderar o trabalho de Panofsky, Burke relembra historiadores da arte distinguiram a iconologia dos significados propostos pelo autor. E, usando o mes-mo exemplo da Santa Ceia6 usado por Panofsky, ele argumenta que para interpretação das mensagens contidas nas imagens é necessário estar familiarizado com os códigos culturais presentes nelas.

Sem citar o plano pré-iconográfico, Peter Burke aponta três problemas que podem decorrer da análise iconográfica. Segundo ele, em primeiro lugar, os estudio-sos tendem a aproximar imagens historicamente separadas na busca por sentidos e, inversamente, separar aquelas imagens produzidas para serem lidas como conjunto.

5 Segundo Burke, a Geist corresponde ao nível cultural focado na captação do “espírito” das obras lite-rárias.6 Panofsky explica que alguém que não esteja familiarizado com o cristianismo pode ver na representa-ção da Santa Ceia não mais que um jantar, ou confraternização.

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Depois, não se pode negligenciar os detalhes, pois são eles que vão levar o leitor/pes-quisador a dados como a autoria da própria imagem que, porventura, não tenha sido assinada como no caso das “orelhas de Morelli”7 . O terceiro problema está relacionado à justaposição de textos com o objetivo de “clarificar” as imagens interpretadas.

O autor traça seu raciocínio deixando expostas as armadilhas que análises e interpretação descomprometidas podem revelar. Para ele, o método iconográfico pro-posto por Panofsky pode ser e tem sido criticado por ser especulativo demais, por não atentar à variedade de imagens8 e por desconsiderar a dimensão social ao perguntar “qual significado das imagens” sem considerar o “para quem”. No método iconológico isso fica mais evidente uma vez que, segundo Burke, “iconologistas correm o risco de descobrir nas imagens exatamente aquilo que já sabiam que lá se encontrava” (BURKE, 2004, p. 50).

[...] uma última crítica do método, que o considera excessivamente literá-rio, ou logocêntrico, no sentido de assumir que as imagens ilustram ideias e de privilegiar o conteúdo sobre a forma [...]. Em primeiro lugar, a forma é certamente parte da mensagem. Em segundo, as imagens frequentemente despertam emoções bem como veiculam mensagens no estrito sentido do termo.[...] o método específico para interpretação de imagens que foi desenvolvi-do no início do século 20 pode ser considerado falho por ser excessivamen-te preciso e estreito em alguns casos e muito vago em outros. Para discuti-lo em termo gerais, o método incorre no risco de subestimar a variedade de imagens, sem falar na diversidade de questões históricas para as quais as imagens podem auxiliar a encontrar respostas (BURKE, 2004, p. 52).

Para finalizar a argumentação sobre o uso de imagens em pesquisas científi-cas, buscamos as palavras de Burke, que afirma que os historiadores – neste trabalho compreendidos também como pesquisadores com interesses históricos – devem ir além da iconografia. Sobre a iconologia, o autor recomenda praticá-la de maneira mais sistemática, inclusive com o possível uso da psicanálise e da teoria da recepção.

3.3 Boris Kossoy

Para Boris Kossoy, apesar de todas as modificações nos processos de relacio-namento do homem com a sua própria imagem, permitidas pelo advento da fotogra-fia, do conhecimento de mundo à portabilidade e reprodutibilidade das imagens, a fotografia ainda não alcançou o status de documento (KOSSOY, 2001, p. 28).

7 Exemplo citado por Burke na mesma obra para explicar a maneira pela qual a análise de orelhas e mãos em obras de autoria controversa poderia identificar o verdadeiro “dono” de cada imagem. Tal método teria sido introduzido pelo perito italiano Giovanni Morelli (1816-1891) e por ele denominado como identificação da “forma fundamental” (BURKE, 2004, p. 39-40).8 Para Burke não é interessante assumir imagens como representantes do “estilo de uma época”, uma vez que essas imagens não podem ser percebidas como homogêneas. Há, portanto, que se considerar a diversidade de estilos e técnicas e isso vale, inclusive, para a análise de fotografias.

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Nesse sentido, quando da leitura de imagens fotográficas, o autor argumenta que é preciso atenção especial ao fator tempo. Pois, “à medida em que se distancia da época em que foi produzida, mais difíceis as possibilidades de suas informações serem resgatadas [...]” (KOSSOY, 2001, p. 29). E para superar os desafios impostos pelo tempo, Kossoy detalha uma metodologia que pode ajudar o pesquisador não somente a ler as imagens, mas a empreender suas pesquisas de maneira geral e metodologicamente organizada.

Ao que interessa neste texto, ele afirma que um passo importante para uma boa leitura imagética é o estudo técnico iconográfico: “estudo no nível técnico e des-critivo, o qual fornecerá elementos seguros e objetivos para ulterior interpretação” (KOSSOY, 2001, p. 75-76). O objetivo é claro, buscar na fotografia informações visíveis e não visíveis sobre a própria imagem fotográfica, sua história como documento e sobre o momento que deu origem ao registro.

O autor trata da análise técnica e da análise iconográfica, que podem ser rea-lizadas concomitantemente no momento no qual se pretenda identificar os autores e a tecnologia empregada em cada registro.

Deve-se [...] entender que a imagem fotográfica é um meio de conhecimen-to pelo qual visualizamos microcenários do passado; contudo, ela não reúne em si o conhecimento do passado. [...] É um engano pensar-se que o estudo da imagem enquanto processo de conhecimento poderá abdicar do signo escrito (KOSSOY, 2001, p. 78).

No que tange à iconografia e à iconologia, Kossoy afirma que é essencial evi-tar o reducionismo da imagem fotográfica à categoria de testemunha fidedigna da realidade. Isso porque, para ele, o que é posto na imagem quase nunca é questio-nado dado o grau de semelhança com o objeto retratado. Por isso a importância de uma dupla linha de investigações, a iconográfica e a iconológica. Não parece ser o que acontece nas imagens que nos propomos a analisar e interpretar dada a pungência da construção de sentidos, ou mesmo de narrativas, sob a superfície visível.

Retornando às indicações de Kossoy, e na linha de investigação iconográfica, é importante buscar perceber e detalhar o conteúdo da imagem, seu assunto, além de situar cada registro temporalmente.

A análise iconográfica, entretanto, situa-se ao nível da descrição, e não da interpretação, como ensinou Panofsky. Este, referindo-se à representação pictórica, revive o “velho e bom termo” iconologia como um “método de in-terpretação que advém da síntese mais que da análise” e que seria o plano superior, o da interpretação iconológica do significado intrínseco (KOSSOY, 2001, p. 99).

“Ver, descrever e constatar” não é o suficiente para Boris Kossoy quando se busca os significados de uma imagem. Por isso, ele apresenta um esquema detalhado para leitura efetiva de fotografias.

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Fonte: <http://www.centoequatro.org/wp-content/uploads/2015/02/cartaz_cabra_mar-cado_para_morrer-416x600.jpg>. Acesso em: 10 ago. 2015.

Fonte: <http://cinemabh.com/wp-content/uploads/2015/02/cabra-marcado-para-morrer-poster.png>. Acesso em: 10 ago. 2015.

Remetendo à criação de Eduardo Coutinho, podemos notar, primeiramente, a semelhança com que as imagens são construídas. Mas o que, de fato, o diretor quis dizer com essa construção visual? Para refletir sobre a questão, recorremos aos apon-tamentos de Joly, no sentido de que:

A fotografia [...] não é apenas um documento por aquilo que mostra da cena passada, irreversível e congelada na imagem. Faz saber também de seu au-tor, o fotógrafo, e da tecnologia que lhe proporcionou uma configuração característica e viabilizou seu conteúdo (KOSSOY, 2001, p. 75).

Na próxima seção, propomos um exercício de leitura (análise e interpretação) dos cartazes promocionais do documentário Cabra Marcado para Morrer (1984), assi-nado por Eduardo Coutinho.

4 ANÁLISE

a quebra de quase duas décadas no percurso produtivo do filme, e entre as inúmeras variações (de cor, de tamanho, de tipografia etc.) dispo-níveis na Internet, selecionamos duas imagens (cartazes) largamente relacionadas à promoção documentário. São elas:

Imagem 1: Cartaz promocional de Cabra Mar-cado para Morrer. Versão I.

Imagem 2: Cartaz promocional de Cabra Mar-cado para Morrer. Versão II.

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Ninguém tem a menor ideia do que o autor quis dizer; o próprio autor não domina toda a significação da imagem que produz. […] Interpretar uma mensagem, analisá-la, não consiste certamente em tentar encontrar ao máximo uma mensagem preexistente, mas em compreender o que essa mensagem, nessas circunstâncias, provoca de significações aqui e agora, ao mesmo que se tenta separar o que é pessoal do que é coletivo (JOLY, 1996. p. 44).

É justamente nessa perspectiva que focamos o nosso esforço analítico pauta-do na obra de Kossoy. Faz-se necessário em um primeiro momento descrever as ima-gens. Em ambas, o que se vê em segundo plano é uma sobra sobre fundo vermelho. No canto direito superior das imagens, lê-se o nome do documentário, já no canto superior esquerdo consta a sequência “(vinte / anos / depois) / um filme / de Eduardo Coutinho / produzido por / Zelito Viana” na primeira imagem e “(VINTE ANOS / DEPOIS) / UM FILME DE / EDUARDO COUTINHO / PRODUZIDO POR / MAPA FILMES” na segunda. As barras indicam as quebras de linha na criação dos cartazes, bem como as palavras grafadas em caixa alta ou baixa respeitam o que nos é apresentado imageticamente.

No que toca às tipografias escolhidas, na primeira imagem o caráter é mais austero, objetivo, enquanto que na segunda a dramaticidade com que são represen-tadas as letras assemelha-se, em partes, ao que geralmente é usado na promoção de obras ficcionais “macabras”, “obscuras”. A própria sombra ali representada reforça tal interpretação, uma vez que denota a figura de um homem em desespero, com a boca entreaberta como em um grito; braços lançados para trás e mãos que ultrapassam a linha da cabeça como quem fora atingido, impactado por algo.

Partindo dessa descrição inicial, retomamos a história do filme para estabele-cer um elo entre a sombra nas imagens e o desenrolar dos fatos. Assassinado em uma emboscada em 2 de abril de 1962, João Pedro Teixeira foi alvejado pelas costas quando voltava para casa depois do adiamento de uma apresentação que ele faria em João Pessoa naquele dia. De acordo com Caetano, o crime fora encomendado pelo fazen-deiro Agnaldo Veloso Borges e executado por dois policiais (CAETANO, 2014, on-line).

Funcionou; conseguiram matar João Pedro neste dia, numa emboscada. Saindo no último ônibus, indo a pé, já perto de sua casa, atiraram nas costas dele. Três tiros brutais, planejados por Antônio Vítor, Agnaldo Veloso Borges e Pedro Ramos Coutinho, como confessou o Cabo Chiquinho que praticou o crime com mais dois capangas (O NORDESTE, s.a., on-line).

Sem qualquer profundidade dimensional, destacamos que a sombra da se-gunda imagem é mais “arredondada” do que a da primeira – espécie de alusão à forma física do homem ali representado –, bem como as linhas que representam a boca estão mais distantes entre si no primeiro cartaz. Na mesma direção, e apesar de ser repre-sentada de frente, a sombra – que agora pode ser entendida como a do próprio João – é “vazada” por pontos que se assemelham à representação dos buracos feitos pelas balas, sendo cinco na primeira imagem e três na segunda . Por eles, o fundo vermelho se faz notar em uma espécie de sugestão do que fora descrito na coluna Aconteceu por Jório Machado no Jornal Correio da Paraíba: “Seu peito atlético ficou tão estragado que

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à primeira vista não erraríamos em pensar que os latifúndios usaram foices em vez de fuzil. [...] seu corpo comprido cravado de balas e entornado de sangue, parecia a ima-gem de Jesus morto [...]” (O NORDESTE, s.a., on-line).

Buscando as palavras de Chevalier e Gheerbrant, é pertinente citar que o ver-melho é considerado como “o símbolo fundamental do princípio da vida, com sua for-ça, seu poder e seu brilho, o vermelho, cor de fogo e de sangue, possui, entretanto, a mesma ambivalência simbólica destes últimos, sem dúvida, em termos visuais”. De maneira complementar, o vermelho-escuro é noturno, secreto, representa o mistério da vida. [...]. Ele “alerta, detém, incita à vigilância e, no limite, inquieta” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1989, p. 944).

No que toca ao primeiro plano da primeira imagem o que se vê é a represen-tação de uma mulher idosa, castigada pelo trabalho no campo, olhos de expressão va-zia e ares de incerteza: Elizabeth Teixeira, viúva de João. Na segunda imagem, a lógica de organização do material é a mesma e o que se nota é a ilustração a lápis, supomos, de um homem de meia-idade; no lugar dos olhos, apenas sombras que parecem de-notar desolação, vazio, insegurança. A boca curvada para baixo nos cantos clarifica essa interpretação, uma vez que consolida a leitura a fisionomia de um operário que pode, neste pondo, representar o próprio João Teixeira quando diante das constantes ameaças decorrentes das ações em defesa dos direitos dos camponeses de Sapé: suas lutas, frustrações e percalços.

Apesar do fundo vermelho, o primeiro plano das duas imagens está em preto e branco, fato que nos permite inferir que cabe ao leitor dar cor aos acontecimentos retratados no filme. O uso desse recurso pode ser compreendido, ainda, como refle-xo das condições de vida às quais eram submetidos os trabalhadores rurais de Sapé: sem perspectivas que lhes permitisse matizar a própria realidade. Especialmente em relação à foto de Elizabeth Teixeira, e com o assassinato de João, nos parece justo ligar aquela expressão vazia e incerta às inseguranças decorrentes da quebra da estrutura da família Teixeira – que se espalhou pelo Brasil – depois do Golpe de 1964, fato que a lançou à clandestinidade.

Das imagens, passando pelo resgate histórico da produção do filme, busca-mos, por fim, nas palavras de Montenegro, as bases para tentar compreender como tais registros aproximam a arte e a realidade do confronto entre a miséria e o impe-rialismo daquele contexto. Para ele, “o filme inseria-se na perspectiva artística de in-tervenção na realidade. A arte levando consciência, a arte revolucionária” (MONTENE-GRO, 2001, p. 8). Mais reflexões são necessárias, entretanto, antes que cheguemos a respostas mais contundentes que as apresentadas neste texto.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base na abordagem dos conceitos de iconografia e de iconologia pudemos experimentar a análise e interpretação imagética de dois cartazes promocionais do documentário Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho. Tal experimentação revelou pontos de

convergência relacionados tanto às escolhas criativas empreendidas quanto à concei-tuação das referidas obras. Da mesma forma, e no que toca aos pontos de tensões identificados, acreditamos que a mudança na tipografia das fontes usadas em cada uma das duas imagens é capaz, por exemplo, de resignificar a leitura delas.

Entendendo os desafios que uma proposta deste nível representa, acredita-mos ser necessário dar continuidade à investigação ora iniciada a fim de consolidar os achados aqui citados. Entre eles, o fato de que, mesmo construídas sob lógicas pro-dutivas similares, imagens são dotadas de semântica própria que podem promover leituras plurais e peculiares acerca dos mesmos objetos gráficos, como no caso das sombras que compõe os cartazes, nas quais o arredondamento das linhas é capaz de conotar maior ou menor carga dramática à imagem.

A interação com o leitor é também importante para que se promova o resgate histórico dos contextos nos quais aqueles registros foram feitos. Da mesma forma, o conhecimento puro e simples das técnicas usadas para construir narrativas imagéticas não garante, por si só, a apreensão das mensagens possíveis que estejam contidas ali.

Com base na revisão bibliográfica, iniciamos esta investida científica compa-rativa, histórica, analítica e interpretativa que, neste estágio, simboliza o alargamento dos nossos caminhos investigativos futuros. Por fim, acreditamos que esta é tão so-mente a primeira etapa de um esforço que se pretende extensivo acerca da questão da imagem estática na promoção (divulgação e circulação) do legado fílmico de Eduardo Coutinho.

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Referências

BURKE, Peter. Testemunha ocular. Bauru: EDUSC, 2004.

CAETANO, Maria do Rosário. Os herdeiros do Cabra Marcado Para Morrer. Dispo-nível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/28022>. Acesso em: 13 set. 2015.

CARTAZ de Cabra Marcado Para Morrer [1964] Versão I. 1 fotografia; color. Dispo-nível em: <http://www.centoequatro.org/wp-content/uploads/2015/02/cartaz_ca-bra_marcado_para_morrer-416x600.jpg>. Acesso em: 10 ago. 2015.

CARTAZ de Cabra Marcado Para Morrer [1964] Versão II. 1 fotografia; color. Dis-ponível em: <http://cinemabh.com/wp--content/uploads/2015/02/cabra-marca-do-para-morrer-poster.png>. Acesso em: 10 ago. 2015.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Di-cionário de símbolos. 2. ed. Rio de Janei-ro: José Olympio, 1989.

ENCICLOPÉDIA Nordeste. João Pedro Tei-xeira. Disponível em: <http://onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Jo%C3%A3o+Pedro+Teixeira&ltr=j&id_perso=1016>. Acesso em: 13 set. 2015.

JOLY, Martine. Introdução á análise da imagem. Campinas: Papirus, 1996.KOSSOY, Boris. Fotografia e história. Co-tia: Ateliê Editorial, 2001.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos da metodolo-gia científica. São Paulo: Atlas, 2011.

MONTENEGRO, Antonio Torres. Cabra marcado para morrer: entre a memória e

história. In: SOARES, Mariza de Carvalho e FERREIRA, Jorge (Org.). A história vai ao cinema. Rio de Janeiro: Record, 2001.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes vi-suais. São Paulo: Perspectiva, 2009.

RAMOS, Alcides Freire. A historicidade de Cabra Marcado Para Morrer (1964-84, Eduardo Coutinho). Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/1520>. Acesso em: 23 ago. 2015.

Filmografia

CABRA Marcado Para Morrer. Direção de Eduardo Coutinho. [Brasil]: [Eduardo Cou-tinho Produções Cinematográficas e Pro-duções Cinematográficas Mapa], [1984]. Documentário (119 min): son. color. Dis-ponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VJ0rKjLlR0c>. Acesso em: 10 ago. 2015.

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A ACOLHIDA NO LIXÃO: avizinhamento e formas de exposição no documentário Boca de Lixo

1 INTRODUÇÃO: ENFRENTAR A DESCONFIANÇA DA COPRESENÇA

Em Boca de Lixo (Brasil, 1992), Eduardo Coutinho se avizinha aos poucos das personagens filmadas, no espaço de um lixão2, colocando em cena as dificuldades enfrentadas para superar o receio inicial que a presença da equipe de filmagem desperta nos sujeitos que vivem da coleta do

lixo. Se o filme3 se inicia com planos mais distantes e gerais de pessoas, sem conseguir particularizá-las (mostradas em conjunto, são apenas catadoras), logo nos primeiros minutos a câmera buscará proximidade com seus rostos. O que não será fácil. Arredias, provavelmente pela consciência que têm do uso que suas imagens e sons geralmente

Diego Baraldi de Lima1

1 Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor adjunto do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá-MT. E-mail: [email protected]. Link para Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/18341598532729832 Como informam os créditos de encerramento, trata-se do vazadouro de Itaoca, localizado no município de São Gonçalo, a 40 quilômetros do Rio de Janeiro.3 Nesse artigo, alternamos designações relacionadas ao cinema (filmar, filmagem) e ao vídeo (gravar, gravação) para nos referir a Boca de Lixo que, é importante lembrar, foi realizado com equipamentos de gravação de vídeo. Ademais, Coutinho utilizou largamente o vídeo e o vídeo digital para realizar seus filmes, o que foi essencial para “filmar” seus personagens. Lembramos também que a partir do final da década de 1990, com Santo Forte, as versões para exibição comercial dos filmes do cineasta foram transferidas para o formato 35mm.

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recebem no telejornal, as pessoas do lixão escondem os rostos e evitam a câmera, como se estivessem temerosas de que a equipe de gravação desejasse capturá-las para posteriormente expô-las de forma aviltante em alguma reportagem espetacular. Se a câmera é recebida como arma que pode ser disparada contra aqueles que catam lixo, a aparição daqueles que chegam com o aparato de gravação também se coloca como uma presença indesejada pelas pessoas do aterro. “Quando nos aproximamos delas com uma câmera, elas nunca imaginam que isso pode ser a favor delas”, diria Comolli sobre a desconfiança que toda equipe de filmagem é capaz de produzir nos sujeitos filmados (COMOLLI, 2008, p. 58).

Nesse sentido, nossa proposição é analisar como se dá a aproximação (avizi-nhamento) e convivência de Coutinho e sua equipe no território – inicialmente, espa-ços que os catadores ocupam no aterro sanitário e, posteriormente, a casa de alguns - dos sujeitos filmados, a partir da instauração do que chamamos cenas de hospitali-dade (LIMA, 2014). Uma relação de hospitalidade se inicia quando temos, mergulha-dos na mesma cena, a ocupar física e psiquicamente o espaço, as figuras do hóspede e do anfitrião. Para Alain Montandon (2011, p. 31-32), tal cena remonta à acolhida e copresença na casa, espaço emblemático da hospitalidade. Mas “a penetração num espaço e a instalação de um ritual de acolhida”, elementos implicados em toda cena de hospitalidade, estendem-se a outros espaços, tanto geográficos (domésticos e ur-banos) quanto psíquicos (o território simbólico do outro). Nas cenas que analisamos, tomamos cineasta e equipe como hóspedes/visitantes que adentram um espaço que é próprio aos sujeitos filmados, tomados como anfitriões. Interessa-nos atentar para a variação da copresença de hóspedes e anfitriões em Boca de Lixo nesse espaço – tor-nado, pela mediação do aparato de filmagem, espaço fílmico –, visto que as cenas de hospitalidade não são estanques ou previsíveis, e dependem sempre do jogo de rela-ções e de negociações que se estabelecem entre hóspedes e anfitriões, às voltas com surpresas, imprevistos e dificuldades que podem (ou não) se instalar nas cenas.

Como se trata de um espaço que não pertence a ninguém (em teoria, pressu-pomos, já que nenhum dos catadores pode reivindicar a posse do território, ainda que o terreno pertença à prefeitura ou instituição privada), aqueles que catam não podem impedir o acesso daqueles que chegam com o aparato de filmagem. Se a equipe entra no espaço do lixão sem maiores problemas, aproximar a câmera dos catadores, filmar seus rostos de perto, parece ser algo vedado àqueles que filmam. Como é inevitável ser filmado como um corpo a ocupar aquele espaço, parece haver um esforço, por parte dos catadores, em preservar o rosto como imagem que não se deixa capturar tão facilmente. Essa recusa inicial em mostrar o rosto indica o temor que os catadores do lixão possuem em relação ao poder da câmera em reduzi-los a estereótipos: vagabun-do, sem vergonha, relaxado, ladrão ou, pior que tudo, comedor de lixo. Se à presença da equipe inicialmente é vedada essa possibilidade de mostrar de perto, vemos, a par-tir das imagens dessa recusa, o trabalho de Coutinho para minimizar o impacto dessa presença invasiva no território daqueles que catam e procurar o avizinhamento com aqueles que se pretende filmar. Nesse sentido, é fundamental o corpo a corpo que o cineasta coloca em cena no filme, aproximando-se fisicamente das pessoas filmadas. Ainda nas primeiras tentativas, quando interpela diretamente alguns catadores, insis-

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tindo para que aceitem falar para a câmera, Coutinho argumenta: “É um trabalho legal como os outros, não tem problema!” Entretanto, os jovens, com os rostos cobertos por panos, viram suas faces, recusando a câmera.

Mais do que revelar-se enquanto discurso conscientemente construído (o fil-

me como filme), essa dificuldade em conquistar a adesão dos catadores explicita o di-fícil momento em que uma equipe de filmagem se aproxima daqueles a quem deseja filmar. Não poucas vezes, as pessoas filmadas reagem à destinação que suas imagens podem ganhar. Consciente dessa reação, Coutinho contornará os estereótipos cruéis construídos pela televisão em torno daqueles que trabalham com o lixo. Para que aqueles que filmam deixem de ser uma ameaça (o estrangeiro em toda sua potência de conflito), o cineasta precisará também se expor para enfrentar a desconfiança que paira sobre a equipe e o dispositivo de filmagem. Para o espectador, a emergência do antecampo4 coloca em cena o trabalho de Coutinho em reverter a assimetria fundante entre aqueles que filmam e aqueles que são filmados.

Coutinho segue adiante, propõe a uma garota mais desenvolta – e que con-vivera desde a infância com o lixão – a tarefa de citar nomes de pessoas que conhece no lugar onde trabalhou e viveu desde criança. Os nomes que são ditos – pela garota e por outros catadores – são intercalados com imagens em plano próximo de rostos. Em seguida, vemos Coutinho em cena: ele segura nas mãos e folheia reproduções precá-rias de imagens de pessoas que trabalham ali, para que outras a seu redor possam re-conhecê-las nas imagens e nomeá-las. Ao mostrar e identificar esses rostos individuais, Coutinho permite que os separemos do conjunto indefinido de pessoas inicialmente mostradas nas imagens da catação, para que possamos singularizar esses sujeitos.

Esse gesto de pedir aos catadores que reconheçam os colegas de labuta atra-

vés das imagens fotocopiadas possibilitará a Coutinho construir um vínculo com algu-mas pessoas do lixão. De algum modo, as imagens (em papel) franqueiam ao cineasta a possibilidade de filmar os personagens de perto, estabelecem “uma ligação entre filmados e filmadores – e faz[em] com que o vídeo se realize” (LINS, 2004, p. 88). Esse reconhecimento dos rostos nas imagens cria uma ponte provisória que torna o mundo daqueles que filmam menos distante daquele dos que são filmados.

4 O antecampo, “fora-de-campo” mais radical (AUMONT, 2004, p. 41) corresponde à porção do espaço detrás da câmera, onde estão aqueles que filmam. Ao contrário da ficção, na qual o antecampo é fre-quentemente heterogêneo em relação ao espaço da diegese, no cinema documentário esse espaço pode integrar a cena - ser homogêneo a ela -, incidindo mais ou menos naquilo que está no campo. A incidência do antecampo no campo – e a comunicação entre esses espaços - revela nuances importan-tes para a compreensão das cenas de hospitalidade.

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2 DE CARA COM O LIXO

Os minutos iniciais de Boca de Lixo oferecem ao espectador uma sé-rie encadeada de 32 planos na qual somos situados no espaço do aterro sanitário. Inicialmente, a câmera na mão avança, como que a farejar, entre detritos que imediatamente associamos a coisas des-

cartadas. Quando se abre um plano mais geral, no qual é possível avistar o céu na parte superior do quadro, vemos grande quantidade de lixo depositada nesse local circundado por aves pretas e uma estranha fumaça emanando no horizonte. Depois, em outro plano, vemos muitas aves brancas pairando sobre montes de dejetos, um urubu ao centro. Outros animais vasculham os resíduos: um porco desloca-se para a direita do quadro e revela outros dois porcos ao fundo; um cachorro fareja; um cavalo branco “pasta” entre aves pretas e ondas de fumaça que brotam do solo e criam a sen-sação de estarmos em algum cenário de filme pós-apocalíptico. Quando busca um en-quadramento mais amplo, no qual contemplamos o voo dos pássaros ao entardecer, percebemos que esse cenário se localiza nas proximidades da inconfundível paisagem montanhosa que vemos ao fundo: a cidade do Rio de Janeiro.

Só então avistamos as pessoas. Elas surgem quando vemos a parte traseira

de um caminhão de coleta despejar sua carga em algum ponto do lixão. São muitas, é impossível perceber seus rostos, e se apressam em retirar aquilo que podem, antes mesmo que a máquina complete a descarga. É uma imagem repugnante e que coloca o espectador a uma distância pouco confortável de algo que talvez desejasse apenas repelir. Lembramos aqui o comentário de Consuelo Lins sobre as imagens que envol-vem o vazadouro:

Na verdade, Boca de Lixo está desde o começo em “duelo” com o clichê, face a face com a pior imagem que se tem desse universo. É como se o filme jo-gasse na nossa cara a imagem que temos desses seres, a imagem do senso comum. É um documentário que não apenas se confronta com essa ques-tão como a traz para o seu interior (LINS, 2004, p. 87).

O caráter repugnante da imagem mostrada se agudiza quando vemos (e ou-vimos) a parte líquida (chorume) do lixo se derramar sobre o conteúdo depositado. A partir de então, como que também mergulhados ali, visual, auditiva, tátil e olfativa-mente, vemos o empurra-empurra daqueles que procuram se aproximar do material recém-chegado para dali extrair algo. Em dado momento, a câmera busca espaço na altura dos pés daqueles que catam.

Então vemos aqueles que filmam. Eles (um com a câmera e outro portando o equipamento de som) abrem caminho entre aqueles que disputam o material des-carregado no aterro. A câmera está apontada para o chão, interessada na batalha pela coleta. Em plongée, vemos o lixo ser revirado com o auxílio de mãos, ancinhos e outras ferramentas mais ou menos improvisadas. Planos sucessivos concentram-se em mos-trar mãos separando legumes: uma batata, uma cenoura, depois um chuchu. Mesmo que mostrados rapidamente, esses planos são essenciais para explicitar que há co-mida ali (algo que repercutirá em passagens importantes do filme). É ao final desses

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planos que mostram o alimento entre o lixo que surge o acompanhamento musical de Tim Rescala, que recortará diferentes segmentos do filme: uma composição percussiva que cria ritmo a partir de sons que parecem corresponder ao estalido de latas e outros objetos metálicos. Com esse som e com a câmera novamente a farejar, aparece o título do filme, escrito à mão em papel craft.

É só a partir do título do filme que veremos uma mudança de posição e de in-teresse em relação ao que se filma: se antes as imagens eram mais gerais, muitas delas em angulação voltada para o chão e pouco eficazes em destacar corpos individuais na composição do quadro, agora a câmera buscará rostos. Ao tentar mostrá-los fron-talmente – majoritariamente em planos médios – a câmera é evitada e repelida pelas pessoas. Alguns, mesmo com o rosto já escondido por panos que protegem a face (provavelmente do sol e do mau cheiro), fogem da câmera. Outros, com o rosto des-coberto, fazem gestos com as mãos, pedindo que o cinegrafista se afaste. Uma mulher mostrada de perto corre da câmera e se esconde atrás de uma criança. Depois, outros rostos cobertos encaram a câmera, e é inevitável não tomar tais vestes como máscaras precárias que servem de proteção aos que são filmados (contra os que chegam com o equipamento de gravação). O repique sonoro cria uma tensão extra a essas imagens que vão se acumulando. Até que um rosto também coberto vai se dando a ver, e a menina por trás do véu deixa seu sorridente rosto5 ser filmado.

Há um corte. Vemos um menino negro ao centro do quadro, boné para o lado. Ele olha fixamente para a câmera e depois para ambos os lados, como que a perscrutar aqueles que filmam. A interpelação do menino é direta: “Quanto vocês ganham com isso? Pra ficar botando esse negócio na nossa cara?”. É na continuidade desse plano que ouvimos – e também vemos parcialmente em quadro – Coutinho aparecer pela primeira vez no filme. À pergunta do menino, o cineasta procura oferecer uma respos-ta: “Hã? É pra mostrar como é a vida real de vocês... as pessoas verem como é que é...”. Direto, o menino não hesita em revidar: “Sabe pra quem o senhor podia mostrar? Pro Collor”. Na duração do plano (mesmo que Coutinho não esteja visível no quadro) e da interação face a face, o imprevisível acontece: o menino não apenas interpela aque-les que filmam (o que já é uma tomada de posição incomum para aqueles que são filmados). Aparentemente insatisfeito com a resposta do cineasta, ele ainda constrói uma réplica em que demonstra a capacidade de improviso e faz com que, mesmo que momentaneamente, o espectador se surpreenda com sua elaboração rápida e inven-tiva. Dessa passagem até o final do filme, o menino reaparecerá outras vezes, como se estivesse sempre atento aos passos dos visitantes, interessado mesmo em compor com a equipe de gravação.

5 Ao comentar o aprimoramento do método de filmar de Coutinho, César Guimarães aponta para a centralidade que a presença dos rostos dos personagens vai adquirindo nos filmes no cineasta: “Em sin-tonia com o gesto de filmar a fala, os filmes de Coutinho concedem ao rosto – e apesar dos cortes – uma inquietante potência” (GUIMARÃES, 2010, p. 193).

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Essa primeira interação entre os catadores e Coutinho impede que o especta-dor mais desatento – e que eventualmente não tenha percebido até então as imagens da equipe de gravação em cena – continue a se horrorizar com as imagens do aterro e das pessoas que ali se aglutinam de forma quase animalesca, coexistindo unicamente para aproveitar algo entre as montanhas de dejetos. Ao explicitar a presença do cineas-ta (e equipe) em cena, essa primeira fala também implica diretamente o espectador, que, ao se dar conta do filme sendo produzido, pode também começar a desconstruir o olhar distanciado e indiferente associado ao lixão pelo noticiário televisivo que, com sua pretensa objetividade, frequentemente mostra as pessoas que sobrevivem do lixo ora como as mais severas vítimas do desajuste social, ora como sujeitos desocupados que não querem trabalhar. Imaginário que repercute na fala de diferentes persona-gens do filme e contra o qual esses personagens, e também o filme, inventarão novas imagens, novos sujeitos.

3 PARA ALÉM DO LIXO, CASAS

Ainda que seja inevitável mostrar as imagens do lixão, aos poucos percebemos que, muito mais do que concentrar-se no choque que essas imagens ainda podem causar – algo bastante mastigado pela cobertura dos telejornais –, interessa a Coutinho ir além dessas ima-

gens. O cineasta deseja aproximar-se daqueles que vivem e trabalham ali, saber um pouco de suas vidas e do porquê de estarem naquele espaço. Coutinho parece desejar dividir com o espectador a surpresa que aquelas vidas podem produzir. Quando ouvi-mos uma mulher responder que trabalhar no lixão é melhor do que ter emprego e ga-nhar salário mínimo, melhor do que trabalhar em casa de família, repensamos nossas pressuposições sobre o que é trabalhar em um aterro sanitário e passamos a encarar aqueles que trabalham ali como pessoas capazes de escolher.

De todas as pessoas mostradas no lixão, Coutinho conversará mais detida-mente com cinco: Nirinha, Lúcia, Cícera, Enock e Jurema. Essas cinco personagens te-rão seus nomes apresentados no filme na forma de letreiros (escritos a mão em papel craft). A atenção a cada um deles constituirá, na montagem, a principal força organiza-dora do filme, através de sequências que se concentram em um dos personagens de cada vez, mostrando-os ora no aterro, ora em casa. Somente a primeira personagem, Nirinha – famosa entre os colegas por ser a pessoa a selecionar a maior quantidade de lixo e por negociar o produto de sua coleta diretamente com uma empresa fora do aterro, sem precisar de atravessador –, é mostrada apenas no lixão. Ainda que se con-centre nesses cinco personagens, o filme não se deterá apenas neles, recortando essas sequências mais demoradas com outras passagens filmadas no vazadouro e com ou-tros personagens que aparecerão mais rapidamente, sem a identificação de letreiros.

Nesse avizinhamento entre Coutinho e as pessoas filmadas, um gesto impor-tante do cineasta para revelar como os catadores criam um vínculo com o espaço do lixão é a entrada da equipe nas barracas em que se protegem do sol. O acesso a esses espaços temporários de permanência parece franquear também o acesso à casa de alguns personagens aos quais o filme se atenta mais. Essa passagem dos barracos para

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as casas é essencial para garantir a aproximação que o diretor estabelece com aqueles que filma, transformando sua presença (junto com equipe e aparato de gravação), de inimiga potencial, em algo bem menos problemático, mais bem aceito no interior das casas. Como aponta Guimarães (2010, p. 194-195),

[...] a copresença do rosto, da fala, da escuta e da máquina que registra faz do filme um espaço de partilha no qual os sujeitos ganham tempo e au-tonomia para desenvolverem uma auto-mise-en-scène que comporta frag-mentos biográficos, valorações subjetivas, táticas cotidianas para enfrentar a precariedade dos recursos materiais e a instabilidade da relação com o lixão, e também – por que não – pequenas aspirações.

Nessa visita às casas, cineasta e equipe (com o aparato de gravação) conquis-tam um lugar de proximidade com os filmados. Ainda que provisoriamente, afetos são divididos, um mesmo espaço – o da casa – é compartilhado entre os que compõem a cena e o espectador, que também pode se instalar nesses espaços produzidos pelo filme. É na casa de alguns personagens que poderemos ouvir mais e conhecer melhor aqueles que são inicialmente filmados no espaço caótico do aterro sanitário. No caso de Lúcia, em sua casa nos deparamos com uma personagem de gestos contidos e fala pausada, diferente do comportamento mais expansivo visto no aterro, lugar no qual, como ela mesma diz, ela grita e mexe com os outros. Sentada na sala, Lúcia associa o trabalho no vazadouro às recordações da época em que trabalhava no Paraná, na colheita da cana:

[...] quando a gente trabalhava no Paraná, a gente pegava aqueles caminhão de... cortar cana, né? Aqueles caminhão daquelas firmas rica, aqueles fazen-deiro rico. Mandava aqueles caminhão buscar aqueles trabalhador, né. Aí todo mundo pegava aquele caminhão, chegava lá naquele campo de cana, aí todo mundo se conhecia. Na hora de vir embora, todo mundo se conhe-cia, na hora de ir pra trabalhar, na hora do almoço, todo mundo era uma festa, chegava no final de semana a gente ficava triste porque não tinha com quem conversar e com quem bagunçar (BOCA..., 1992).

A fala de Lúcia evidencia a memória do tempo vivido coletivamente no es-paço de trabalho, seja na colheita de cana, seja no lixão, espaço no qual, segundo a personagem, “todo mundo é amigo”. Essa fala abre o filme para uma perspectiva que será explicitada na sequência seguinte à passagem de Coutinho pela casa de Lúcia, quando veremos os catadores em situações de ócio, descanso e lazer no aterro, ao som da música Cama e Mesa, que ouvimos na voz de Agepê, como que saindo de um rádio, e que se sobrepõe, na montagem, aos planos que mostram os catadores nessa espécie de tempo livre.

Após o longo plano em que Lúcia se recorda da época da colheita da cana, a

conversa será entrecortada com momentos em que a personagem é filmada no traba-lho. Essa operação da montagem valerá para os outros três personagens que conhece-remos em seguida, também filmados em casa: Cícera, Enock e Jurema. Do lixão à casa, e vice-versa, movimento contínuo do filme. Em um desses inserts, Lúcia aparece em meio a outros catadores, apontando algo para aqueles que filmam. Alguém diz que é uma galinha. A câmera desloca-se para a esquerda, à procura. Coutinho pergunta:

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“Cadê a galinha?”. Há um corte e vemos, em um cesto, enterrado entre algumas bata-tas, um frango depenado, como que saído de uma embalagem de supermercado. A voz de Lúcia se sobrepõe à imagem: “É pro porco! Vai pro porco!”. Há um corte e esta-mos novamente na sala da casa de Lúcia, onde ela conversa com Coutinho, sentada no sofá. Aqui ela diz que “precisa daquela lixeira, porque tem uma comida de porco, tem uma roupa, a gente acha as roupas boas, calçados bons”.

Essa fala contraria em parte algo que a personagem dissera mais ao início do

filme, aparentemente em seu primeiro contato com Coutinho e a equipe de gravação, no lixão (antes de ser filmada em sua casa). Nessa ocasião, que na montagem aparece organizada junto às primeiras conversas que Coutinho estabelece com os catadores (entre elas, a rápida interação com o menino que interpela o cineasta), Lúcia é enfática ao afirmar que há muita gente que come os alimentos encontrados no vazadouro. Além de falar sobre o aproveitamento dos alimentos, Lúcia afirma que “muita gen-te trabalha aqui porque é relaxado” e que há “uma porrada de homem que trabalha aqui porque é relaxado, porque prefere comer fácil”. Se, nessa primeira ocasião em que é filmada, Lúcia não se preocupa muito em suavizar sua fala, principalmente so-bre o consumo humano de alimentos encontrados no aterro, quando passamos para o espaço da casa, a personagem, menos provocativa, procura uma nova maneira de justificar o aproveitamento da comida descartada, afirmando ser esta destinada aos animais de criação doméstica. O aproveitamento de alimentos encontrados no aterro sanitário para consumo humano é um dos temas que assombram Boca de Lixo, e es-sas diferentes posições que a personagem assume em momentos distintos do filme revelam como é delicado para os catadores tocar nesse assunto, que reaparecerá em outras passagens.

Ao afirmar que a comida coletada é aproveitada para alimentação de animais,

Lúcia, pelo menos provisoriamente, suaviza a tensão entre as imagens que, em inserts, mostram pessoas manipulando legumes e outros alimentos, que não deixam de lem-brar ao espectador o imaginário de “comedores de lixo” do qual os personagens tanto se esforçam em se afastar. No decorrer do filme fica claro que muitos daqueles que são mostrados no lixão e, principalmente, muitos daqueles que consentem em ser filma-dos de frente, recusam-se a afirmar para a câmera que sobras de alimentos encontra-dos ali sejam aproveitadas para o consumo humano. Imaginamos que isso aconteça porque, nesse enfrentamento com a câmera/equipe de gravação que o filme coloca em cena, é justamente contra essa ideia de “comedores de lixo” difundida pela mídia que boa parte das pessoas filmadas irá se posicionar. O destino da comida encontra-da no lixo tensionará o filme do início ao fim. Percebemos um sutil embate entre as imagens do filme, que não recuam frente àquilo que se dá a ver (os alimentos sendo separados em meio aos detritos, pessoas comendo em meio ao lixo), e os personagens que resistem em afirmar que os alimentos descartados no lixão sejam aproveitados para consumo próprio.

Ainda em relação à fala inicial de Lúcia, é interessante perceber como o pró-prio filme acaba por revelar a fragilidade das provocações que a personagem inicial-mente lançara a Coutinho, ao afirmar que apenas homens relaxados (preguiçosos)

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trabalham no aterro. Mais ao final de Boca de Lixo, Coutinho encontrará, trabalhando entre os catadores, o marido de Lúcia, que havíamos conhecido na passagem gravada na casa da personagem. Se antes ele aparecia no filme como um trabalhador regu-larizado e com relativa estabilidade (trabalhava há quatro meses como motorista de caminhão de coleta de lixo da prefeitura), agora o personagem diz estar desempre-gado há oito dias, tendo que “se virar” com o trabalho provisório no lixão. “Que loucu-ra...”, diz Coutinho, sensibilizado com a nova situação enfrentada pelo marido de Lúcia. Ao conversar um pouco mais com o personagem, vemos a dificuldade de ambos (do personagem e de Coutinho) em abordar e discorrer sobre a situação de desemprego. “Qualquer lugar pra mim, qualquer serviço pra mim é serviço, eu não, eu sou um tipo de pessoa que não tem aquele tipo de escolha de serviço, não”, diz o personagem, já sem o ânimo com que o havíamos visto e ouvido falar com Coutinho na cena da casa de Lúcia. Naquela passagem, o personagem aparecia sorridente, lembrando o passa-do, quando conhecera a mulher na colheita de cana, entre as músicas sertanejas que cantavam durante o trabalho. Percebemos que, ao contrário da cena na casa, em que o personagem se mantivera em constante contato visual com Coutinho, agora é mais difícil para o marido de Lúcia encarar o cineasta (situado no antecampo). “E pra você não tem muita diferença, trabalhar aqui ou noutro lugar?”, pergunta Coutinho, procu-rando escapar, talvez, da tristeza que permeia a situação. Lidando com os desafios do trabalho do aterro, a fala do personagem, ainda que afirmativa (ele chega a dizer que “não tava muito a fim de ficar lá, não”, referindo-se ao trabalho de motorista), é acom-panhada de um olhar que constantemente busca o chão. Ao final da conversa com Coutinho, o personagem parece enxugar com a roupa lágrimas que lhe vêm aos olhos (mas que poderiam também ser o suor do trabalho). Ainda que ambos tentem manter a conversa em um tom ameno, é o silêncio que se impõe ao final do plano.

4 OUTRAS CASAS, OUTRAS INVENÇÕES

Em outra passagem do filme, Coutinho encontra Enock no lixão. O per-sonagem rapidamente mobiliza o cineasta e equipe com as histórias de suas andanças pelo Brasil, do “Acre até o final de Porto Alegre”. “Tem gente que o dia que não sente o cheiro desse lixo, ele tá doente em casa

[...], sente falta”, diz, revelando, através de uma perspectiva sensorial, a vinculação que muitos dos que trabalham ali têm com o aterro.

Quando Coutinho se interessa em saber mais sobre o personagem, Enock res-ponde: “Se tivesse tempo eu ia dar uma entrevista boa pro senhor”. É um momento precioso, em que se explicita a consciência que o personagem tem sobre o repertório de histórias que poderia oferecer ao filme. Mesmo que haja um corte e que não veja-mos a reação de Coutinho à fala do personagem nos planos seguintes, é nas histórias do personagem conhecido pelos demais catadores como “Papai Noel” (em virtude da idade avançada e da longa barba que cultiva) que o filme se deterá. “Completei 72 anos no dia 12 de fevereiro”, diz Enock. “Como é que o senhor é tão forte assim?”, in-daga Coutinho. “Não sei... Ou tem saúde ou é invenção... Eu não sinto nada”, revela o personagem. Quando pergunta a Enock se o personagem tem família, o som da conversa persiste enquanto, no campo imagético, ocorre a transição para o espaço da

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casa do personagem. Ali, vemos a companheira de Enock alimentando as galinhas no quintal, no fundo de casa. O som do aterro fica para trás e agora ouvimos os sons do entorno doméstico. No plano seguinte, aparentemente registrado antes do plano em que a companheira de Enock joga ração às galinhas, vemos o que seria a chegada de Coutinho e equipe à casa de Abraão.

O personagem conduz a equipe e apresenta Dona Lurdes. Ela está próxima ao tanque de lavar roupa e recebe aqueles que filmam com um sorriso cordial, enquan-to Enock busca cadeiras, como se fosse oferecê-las para a equipe se sentar. “E o Seu Enock, como é que ele é, é bom pra viver junto, ele é calmo, como é que é?”, indaga Coutinho. “Ele é calmo, sim. Só ‘veve’ no lixo”, diz a personagem, lançando o olhar para Enock (na margem esquerda do fora de quadro). Depois, quando Coutinho pergunta o que ela acha de o companheiro trabalhar no vazadouro, ela responde com a mesma expressão sorridente que mantém durante a rápida conversa que tem com Coutinho: “Ué, eu acho que tá bom, né, que a gente não tem mesmo da onde tirar”. “Mas a senho-ra não vai, não, né?”, devolve o cineasta, ao que ela responde quase como se respon-desse a uma ofensa: “Ah, eu não vou, não”. “Por que, conta por quê?”, insiste Coutinho. Mostrada em plano próximo e mirando o cineasta, Dona Lurdes menciona algo que poucas pessoas verbalizam no filme: “Porque eu tenho vergonha de ir”. Sabemos que boa parte da recusa dos personagens em se deixar filmar envolve justamente essa dificuldade que Dona Lurdes coloca em cena: ter que assumir publicamente que se trabalha no lixão.

A conversa entre Coutinho, Dona Lurdes e Enock continua em tom descon-

traído. A câmera se concentra agora em Enock. “Tinha uma pessoa lá no lixo que cha-mava o senhor de Papai Noel, o senhor fica bravo ou não?”, diz Coutinho a Enock. O personagem, fumando um cigarro improvisado, solta uma interjeição negando o in-cômodo e afirma: “Faz parte da vida, então isso é mais um comprovante, então eu sou o pai dessa, deles, né, da natureza deles”. Coutinho aproveita o gancho para fazer uma bela e importante afirmação: “E o lixo faz parte da vida também”. Com a sabedoria que lhe é peculiar, Enock concorda com Coutinho e filosofa: “Faz parte da vida, é o final do serviço, é o lixo [...], ali é o final e é dali que começa...”. Percebendo o conceito que o personagem começa a criar, Coutinho o estimula: “Que quer dizer o final do servi-ço?”. Enock argumenta: “O final do serviço diz que é a limpeza da casa, ir jogando fora, desprezou, reciclou, findou ali. Mas ele continua ali, e dali [...] pra continuar, continua pra mais longe ainda”. É incrível a percepção que o personagem oferece a Coutinho e ao espectador sobre o movimento cíclico que envolve a produção, o descarte e a res-significação do lixo. A perspectiva que o personagem elabora – e que é afirmada por outros personagens, de diferentes maneiras – é de que os materiais que são descarta-dos como lixo são, na verdade, objetos que podem se prestar a outros usos. Quando a câmera adentra a casa do personagem, vemos Enock na sala, explicando a Coutinho como se apropriara de alguns objetos encontrados no lixão. Desprezados como coisa inútil ou estragada, tais objetos foram literalmente resgatados ou consertados pelo personagem e incorporados à decoração do lar. Lar que Enock e Dona Lurdes mostram com orgulho aos visitantes que se instalam, mesmo que rapidamente, nesse espaço.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ABRIR A CASA, EX-POR-SE AO FILME

Pensar a cena filmada como espaço de relações/interações que remon-tam à cena da hospitalidade nos aproxima da perspectiva de Comolli (2008) no que diz respeito às possibilidades de mútua implicação dos sujeitos filmados e daqueles que filmam no documentário. Pensar essa

mútua implicação significa considerar as responsabilidades envolvidas quando ci-neasta e sujeitos filmados colocam-se frente a frente em uma relação mediada pela câ-mera. Se tal relação se desenvolve nos espaços cotidianos daqueles que são filmados, essas responsabilidades envolvem também o modo como esse espaço será dividido, partilhado; afinal de contas, como todo espaço efetivamente habitado e relativamente codificado, aquele que chega não pode desconhecer onde está entrando, e aquele que recebe precisa demonstrar alguma consideração por aquele com quem dividirá tal espaço.

Em Boca de Lixo, foi preciso transpor a rejeição inicial que os personagens ofe-reciam ao filme, por recear a exposição pública guiada pelo clichê, pelo estereótipo, pelo modo com que a televisão sequestra a fala e o rosto dos personagens. Foi preciso que Coutinho contornasse a desconfiança dos personagens e alcançasse uma proximi-dade com eles no momento da filmagem. Nas cenas de hospitalidade que o filme ins-taura, o acolhimento aos visitantes (cineasta e equipe) não está garantido de antemão, ele é conquistado. O filme faz uma bela passagem entre a rejeição e a acolhida que o cineasta recebe dos sujeitos filmados. Filmá-los em casa parece ter sido um passo de-cisivo para superar os entraves que inicialmente surgiram no aterro sanitário. Mestre da arte da conversação, Coutinho retribui aos que o recebem com uma mise-en-scène que preserva a singularidade deles e realça o valor de suas falas, sua inventividade e originalidade. Como em outros filmes do cineasta, a disposição acolhedora da mise--en-scène revela um convívio, em cena e em quadro, do cineasta e dos sujeitos filma-dos. Entrevemos aí uma aproximação interessada entre hóspede e anfitrião, através da conversa, espaço de acolhimento das auto-mise-en-scènes dos sujeitos filmados.

Ao abrir suas casas para o filme, compartilhando o espaço doméstico com o cineasta, os personagens filmados podem se abrir para a câmera e confessar aquilo que negaram (por exemplo, após relutar, no lixão, em dizer que alimentos são aprovei-tados para consumo próprio, a personagem Jurema, em sua casa, conta que é possível utilizar certos alimentos no preparo doméstico). É no interior de suas casas que as pes-soas filmadas podem elaborar outra exposição de suas vidas. No aterro, pelo menos inicialmente, expor-se à câmera é aviltante, vergonhoso. Aqueles que são filmados ali desejam esconder da sociedade o que elas fazem. Filmados em casa, fica claro que essa “resistência inicial foi contornada e que há um desejo comum de filmar e ser fil-mado” (LINS, 2004, p. 89).

Ao registrar os personagens em suas casas, o filme abre-se para outras formas

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de exposição desses sujeitos: através dele, os personagens podem assumir outra atitu-de subjetiva. O filme torna-se espaço (fílmico) no qual os filmados são corresponsáveis pela colocação em cena de outro imaginário sobre suas vidas. Como lembra Consuelo Lins, os personagens de Boca de Lixo parecem se recusar a ser transformados em “ti-pos”. O filme (ou seria o cineasta?) faz um gesto de “criação de uma imagem compar-tilhada entre quem filma e quem é filmado, com riscos e possibilidades de equívocos” (LINS, 2004, p. 88). Para a autora, “essa passagem ao local de moradia é fundamental para que os catadores se transformem em seres de carne e osso, com história, família, filhos e preocupações que não se limitam à vida no lixo” (LINS, 2004, p. 92).

Ao enfrentar o risco dessa nova exposição, os filmados mudam o modo como os percebemos, e também como eles mesmos se percebem. Na sequência final, quan-do se veem em um monitor de TV instalado sobre uma Kombi, está em jogo uma nova percepção sobre os catadores: não mais apenas as pessoas invisíveis, escondidas da sociedade, refugiadas no lixão, mas subjetividades singulares que desafiam estereó-tipos, capazes de se afirmar em suas escolhas e, a seu modo, inventar outras possibili-dades de vida.

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Referências

AUMONT, J. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

BOCA de lixo. Direção: Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Cecip (Centro de Criação de Imagem Popular), 1992. 45 minutos, cor.

COMOLLI, J.L. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, docu-mentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

GUIMARÃES, C. Comum, ordinário, popu-lar: figuras da alteridade no documentário brasileiro contemporâneo. In: MIGLIORIN, C. (org). Ensaios no real. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.

LIMA, D. B. O cineasta na casa do outro: cenas de hospitalidade no documentá-rio brasileiro contemporâneo. 2014. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Curso de Pós Graduação em Comunica-ção Social, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. São Paulo: Editora JZE, 2004.

MONTANDON, A. O livro da hospitalida-de: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Editora Senac São Paulo: 2011.

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O JOGO DA ENCENAÇÃO NO CINEMA DE EDUARDO COUTINHO

1 PRÓLOGO

O ato de filmar é uma atividade complexa. Não se filma sozinho. Não se filma sem ninguém nem para ninguém. A questão que nos move neste artigo é o que pulsa na cena e faz com que ela se modele. O jogo da encenação será analisado, tanto no que se refere à tecno-

logia, como o que toca a ordem técnica e o discurso da linguagem cinematográfica, sempre veiculados à obra documental de Eduardo Coutinho, nosso objeto de análise.

Os elementos tecnológicos do aparato cinematográficos, as máquinas que produzem imagens serão pensadas não apenas como máquinas de ver, mas como instrumentos que promovem modos de ser. Entra em cena também o jogo da per-formance, que relaciona as dinâmicas de poder, diretor/personagem. Além disso, fa-remos uma reflexão sobre o outro lado da encenação, para onde as imagens produ-zidas se destinam: os olhos do espectador. Assim, no presente artigo nosso objetivo é fundamentar o que podemos chamar de círculo do fazer cinema, desenvolvendo um pensamento sobre a construção da cena na obra de Coutinho.

Como a base sólida de uma pirâmide, enxergando também no bojo de sua es-truturação o paradigma do jogo, os princípios da arte de filmar serão aqui repensados: com o que se filma, como se filma e para quem se filma. Apostamos na ideia de que não se filma e não se vê impunemente.

Felipe Diniz1

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), cineasta diretor dos filmes Histórias de Esquina (2006), Arquivos da Cidade (2009), Desenredo (2015).

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1.1 Primeiro Ato

A origem do termo encenação vem do teatro, lugar que aponta o palco como excelência da sua arte. No teatro clássico, tornava-se necessá-ria a posição de alguém que adaptasse a passagem do texto a cena, que de algum modo tornasse possível levar as tragédias aos palcos.

Surgia, nos primórdios do século XIX, a figura do encenador. “Deste modo, a história da encenação teatral é a de um crescimento constante da função do encenador: ele espacializa e gestualiza o texto” (AUMONT, 2008, p. 129).

Chega o século XX e no palco atores e atrizes encenam, sob o comando e o olhar de um encenador e amparados por métodos de representação como os de Stanislavski2, Grotowski3, Brecht4 ou Lee Strasberg5. Regras de impostação da voz e de expressão corporal em cena são revisadas delimitando a encenação no próprio corpo. No início do século XX a arte teatral tornou-se a arte da encenação. Uma arte focada no corpo e nos movimentos que dele partem, praticamente ignorando outros elementos que poderiam contribuir com a cena, como a iluminação, o cenário, a música etc.

É neste contexto que o cinema se desenvolve, dando a ver novos parâmetros que expressam a encenação. Inicialmente experimental, o cinema tem o diretor como encenador, envolvido em questões mais técnicas do que discursivas. Com o aperfei-çoamento da tecnologia surge um cinema mais maduro, porém subjugado às regras da interpretação teatral. Neste contexto do cinema mudo, a teatralidade da expressão corporal era base de sua encenação, cujos gestos lembravam o exagero apresentado nas peças do teatro clássico. O cinema ainda não havia encontrado o seu tom.

Aos poucos os realizadores foram descobrindo que os espaços de encenação do teatro e do cinema eram distintos. “Se a encenação é um gesto do teatro, como compreender a sua intervenção no cinema?” (AUMONT, 2008, p. 12). A encenação no teatro se dava no palco e a do cinema era enquadrada pelos limites de uma câmera e exibida através do contorno do écran. A diferença se inscreve tanto no momento da criação quanto no da apresentação. No cinema “encenar é exercer o olhar sobre o que se filma, distinguindo-lhe o essencial e tornando-o visível” (p. 70). Encenar é tornar a invenção visível. O jogo da encenação no cinema é estruturado pelo olhar do realiza-

2 Ator e diretor de teatro russo (17/1/1863 - 7/8/1938), pseudônimo de Konstantin Sergueievitch Alekseiev, criador de um novo estilo de interpretação, o método Stanislávski, baseado em naturalidade, fidelidade histórica e busca de uma verdade cênica.3 Polonês, nascido em 1933 e morto em 1999, foi figura central no teatro do século XX, principalmente no teatro experimental ou de vanguarda.Segundo Grotowski, o fundamental no teatro é o trabalho com a platéia, não os cenários e os figurinos, iluminação. A relação com os espectadores era direta, no terreno da pura percepção e da comunhão.4 Alemão, nascido em 1898 e morto em 1956, criador de um teatro épico e didático que se caracteriza, pelo cunho narrativo e descritivo, cuja proposta é apresentar os acontecimentos sociais em seu processo dialético. É um teatro que atua, ao mesmo tempo, como ciência e como arte.5 Lee Strasberg nasceu em Israel, em 1901 e é considerado o patriarca do “método”, um sistema de representação da dramaturgia que inspirou legiões de grandes atores americanos durante sua vida.

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dor, se caracteriza pela marca pessoal do cineasta que rege a produção da cena.

A encenação é um olhar: fórmula sugestiva na sua elegante concisão: não poderíamos classificar melhor a relação entre o que se passa na cena, mes-mo imaginária, como é a cena fílmica, e aquilo que se joga no exercício concorrente dos olhares – no do cineasta (da câmera), da personagem, do espectador (AUMONT, 2008, p. 38).

O cinema do período pós-II Guerra Mundial, considerado por muitos estudio-sos o segundo cinema, deixa de se remeter por completo ao teatro e de certa forma atinge sua natureza primitiva, de quando os irmãos Lumière tentavam captar image-ticamente o movimento da vida. Assim, encenar passa a ser registrar coisas vivas e a potência da encenação cinematográfica se insinua, adquirindo um sentido “de uma espécie de capacidade mágica para ver, para revelar e para fazer aparecer a verdade” (AUMONT, 2008, p. 72). Nesse ambiente, a encenação abandona de vez o referente teatral e assume a dimensão da invenção propriamente audiovisual.

Aumont (2010) destaca em sua obra as palavras de Merleu Ponty atribuindo

a encenação à manipulação espontânea da linguagem cinematográfica. Encenar seria então dirigir, exercer a criação de uma singular mise-en-scène: definir o enquadramen-to, os movimentos de câmera, o tempo da cena, decupar um roteiro, dividi-lo em pla-nos. Assim como no teatro clássico, o encenador era aquele que adaptava o texto aos palcos, no cinema, ele adapta o roteiro ou argumento e transforma em filme, dando a ver a cena. O jogo na encenação não se submete apenas às noções de dramaturgia e interpretação, se amplia refletindo os movimentos criativos que reproduzem a aparên-cia do mundo em imagens ontológicas.

Enquanto que, nas outras artes, pouco importa o princípio de formação, porque o mundo é apenas simbolizado e não está diretamente presente, no cinema, há apenas um princípio em formação aceitável: é aquela a que Mourlet chama encenação e que garante a presença direta do mundo (AU-MONT, 2008, p. 83).

A encenação no cinema é formada pela posição de um cineasta em emba-te com seu objeto e é atravessada pelas imagens do mundo. O encenador também acaba regendo o inesperado e administrando certas doses de improviso, aprendendo a utilizar o acaso em prol de suas intenções. Tal operação integra à sua dinâmica a consciência do imprevisível, que em um primeiro momento, intimidaria sua natureza. Neste instante, podemos incluir na discussão algumas analogias do encenador cine-matográfico e o encenador centrado na figura de Eduardo Coutinho.

A obra de Eduardo Coutinho reside em um espaço cuja atmosfera é impregna-da pelo teatro. A força da palavra, a aposta na oralidade e na expressão do sujeito nos faz retornarmos às origens do teatro, onde as peças eram encenadas concentrando no corpo a sua manifestação. O elenco praticamente declamava os textos clássicos sem economizar nos gestos e na eloquência da voz. Nessa dinâmica, o espectador, mesmo tendo um palco enorme em sua frente, concentrava sua atenção na atuação do corpo do ator, que por vezes parecia ter os pés colados no solo. No cinema, Coutinho coloca

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seus personagens colados na cena. Imóveis, asseguram sua encenação pelo poder da palavra afirmando também a potência do corpo na produção de sentidos. Seus filmes, nesta ótica, apresentam uma série de monólogos, onde o ator/sujeito/personagem tem a atenção total do espectador, que é envolvido pela rede da fabulação.

Cada vez mais Coutinho escancara essa similaridade, aproximando de manei-ra mais explícita o teatro do cinema. Muitos de seus filmes foram gravados em um palco: Jogo de Cena joga com a encenação de atrizes profissionais que dividem a cena com mulheres anônimas, compartilhando as mesmas histórias. Moscou6 abandona a metodologia de entrevista e se detém no registro de um ensaio de uma peça por um dos grupos mais importantes do teatro brasileiro. Podemos concluir, com isso, que o verdadeiro jogo do cinema de Eduardo Coutinho é o jogo da encenação.

Imaginemos que encenar é também colocar em jogo. Coutinho coloca em jogo uma metodologia de apreensão da fabulação de histórias. “A encenação é assi-milável a uma arte da captura, como a caça ou a colheita” (AUMONT, 2008, p. 124). O diretor, no efeito de suas estratégias, deseja romper o acontecimento da cena e, como um caçador, perde-se nas teias dúbias da interpretação de seu alvo. É este o jogo de sua encenação: Coutinho vai à caça de momentos únicos, da apreensão de sentidos surpreendentes, que fazem com que seus filmes desmontem os lugares seguros da atuação cinematográfica, tanto do diretor, quanto de seu personagem.

O encontro proposto pelo documentário – a “convocação” ao sujeito se constituir como personagem de uma narrativa – compele aos atores sociais a realizarem performances de si, de sua interioridade, de seu “eu”, recontan-do, para isso, histórias de sua vida privada, donde se depreendem seus múl-tiplos papeis sociais (BALTAR, 2010, p. 232).

O encontro proposto pelo documentário – a “convocação” ao sujeito se cons-tituir como personagem de uma narrativa – compele aos atores sociais a realizarem performances de si, de sua interioridade, de seu “eu”, recontando, para isso, histórias de sua vida privada, donde se depreendem seus múltiplos papeis sociais (BALTAR, 2010, p. 232).

1.2 Segundo ato: o jogo da tecnologia

O cinema é uma arte que não existe sem o desenvolvimento da tecnologia. Ele já nasceu nesse meio. É cria da experimentação tecnológica. São imagens em mo-vimento tecnicamente captadas por um aparato específico e projetadas por equipa-mentos desenvolvidos para tal. Sendo assim, toda evolução desses equipamentos a que o cinema foi submetido em sua história também revelou movimentos transforma-dores em sua estética e em sua linguagem.

Com o cinema documentário, não foi diferente, pois sua estética também foi

6 Moscou. Direção: Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Videofilmes, 2009. 1 DVD (78 min).

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influenciada pelo desenvolvimento tecnológico. O cinema direto7, por exemplo, signi-ficou uma aproximação maior do cineasta com seu objeto potencializando a relação compartilhada no ato da filmagem, banalizando, de certa forma, o gesto cinematográ-fico, sem torná-lo inocente.

A gravação leve do som sincrônico faz surgir uma nova ligação entre fala, duração e corpos. A noção de performance entra em jogo [...]. De cada lado da máquina há alguma coisa do corpo. Essa relação entre quem filma e quem é filmado via máquina significa a redução da distância que sempre se coloca no trabalho de mise-en-scène, e ao mesmo tempo aumenta a própria possibilidade de representar o íntimo (COMOLLI, 2008, p. 109).

A possibilidade do uso de câmeras, bem como de equipamentos de som mais leves e portáteis, não só aproxima o diretor de seu objeto, mas aproxima o seu objeto do mundo que o vê. É neste ponto que Comolli toca quando menciona a questão da performance. A construção de um personagem pelo entrevistado é estimulada por uma câmera que, próxima, revela o espectador, penetra seu íntimo e o registra para o mundo. Os equipamentos possibilitados pelo avanço que o cinema direto operou favoreceram a exibição dos corpos, de quem filma e de quem é filmado.

Em relação às regras que permeiam o espaço da gravação, identificamos nos filmes de Eduardo Coutinho algumas premissas importantes que apontam especifici-dades. Tais regras são moduladoras de um estilo minimalista de Coutinho, em que o diretor retira tudo o que parece ser excesso em se tratando de artifícios de linguagem do cinema. Empurrado por suas próprias leis de realização, ele não utiliza em nenhum momento inserts (planos de cobertura). Para ele, o insert é a morte do seu cinema, ou seja, o entrevistado está sempre em quadro, na cena. Da mesma forma, não é utilizada praticamente nenhuma narração em off e nenhuma trilha sonora é composta para seus filmes. A única música que ouvimos é a cantada por algum personagem estimu-lado pelo diretor. Experimentamos em seus filmes um minimalismo estético8.

A pré-produção é uma etapa importante de seus filmes. Uma equipe faz o pri-meiro contato com os possíveis personagens, delimitados por um espaço e um tempo determinados. Ou seja, se o filme se passará no morro Santa Marta, como foi o caso do filme Santo Forte, a equipe de pesquisadores sobe o morro, antes de Coutinho, para caçar mais do que boas histórias, mas sujeitos que saibam contá-las. Eduardo Couti-nho jamais participa da pesquisa prévia, isso é uma lei da sua proposta metodológica.

7 O cinema-direto norte americano foi impulsionado pelas leis da observação da realidade, na qual a câmera mantinha-se neutra na captura de uma realidade que a atravessava. O grupo formado pelos jornalistas Robert Drew e Richard Leacock que representavam a Drew Associates propunham um respeito absoluto à autenticidade das situações filmadas. Deste modo qualquer acréscimo à imagem original de interesse era descartado. Nenhuma interferência de som ou de imagem pelas mãos dos realizadores era permitida.8 Consuelo Lins, no livro Filmar o Real, utiliza a expressão “estilo minimalista” (2008, p. 78) para designar uma característica do diretor na maioria de seus filmes. Grande parte das vezes vemos um entrevistado que conta sua vida, gravado em um único lugar, sentado, em variações de um plano médio. Ao fundo, pouco se vê do cenário.

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A pesquisa, mais do que uma estratégia para encontrar personagens, tem o intuito de conquistar a confiança do sujeito, como se tal movimento abrisse passagem para a gravação propriamente dita. Um aval para chegada da equipe maior.

A partir deste acervo de personagens, alcançados pela equipe, que grava pré--entrevistas com uma pequena câmera, Coutinho elege os que se destacam. Dessa maneira, quando vai gravar as cenas oficiais, ele já conhece os personagens e suas histórias, mas os personagens nunca o viram, e o diretor mantém, assim, a “virginda-de da relação”9. Este ineditismo no encontro é crucial para que os personagens re-velem coisas de uma forma mais espontânea. Mesmo assim, Eduardo Coutinho, na entrevista, ainda espera que sejam reveladas histórias que não foram contadas nem no primeiro depoimento, concedido para o pesquisador na pré-produção. O diretor acredita que os relatos mais fortes são aqueles que nunca foram ditos antes e nunca serão repetidos. “Tem que parecer algo que não se repete”, afirma o diretor (apud BRA-GANÇA, 2009, p. 164). Essa frase garante a importância do instante para os filmes de Coutinho. Assumir a importância do instante e a perseguição por relatos inéditos, que nem na pesquisa foram colocados, torna-se uma regra importante experimentada por Coutinho em sua realização. Os temas passam a ser irrelevantes. O que conta é o ato de filmar. “Para mim, o momento da filmagem é sempre o momento da relação, isso é essencial. O transe do cinema ocorre nesse momento, nem antes, nem depois” (COU-TINHO apud BRAGANÇA, 2009, p. 68).

Esse transe é potencializado por outras escolhas metodológicas. Nos filmes em que Coutinho invade determinados espaços íntimos, a câmera já chega ligada. O entrevistado abre a porta de sua casa, no dia e hora previamente combinado. A partir de então tudo vale, a tensão começa, o transe paira no ar. Esta estratégia também obriga a equipe que acompanha o diretor a se inventar. A câmera deve achar seu lugar, quase que instintivamente, pois não há tempo para maiores marcações.

Observamos algumas outras regras que dizem respeito ao instante da grava-ção: Coutinho jamais muda o eixo da câmera e nunca corta. Não para de gravar. Ele começa e vai até o final, sempre olhando para o entrevistado a uma pequena distância para favorecer o tom de conversa que pretende instaurar. “Eu vou filmar uma pessoa durante trinta minutos, uma hora, a câmera não desliga nunca e as coisas vão aconte-cer ou não” (COUTINHO apud BRAGANÇA, 2009, p. 140). Esta dinâmica é fundamental para que o personagem se sinta mais à vontade e não seja tão absorvido pelo aparato cinematográfico. Coutinho acredita que o personagem experimenta um paradoxo no decorrer da conversa: por um lado apresenta uma performance diante da câmera em uma atuação que beira o teatral, pois é tocado pela presença do aparelho; por outro lado, depois de alguns minutos, ela de certa forma esquece a câmera e, a partir de en-tão, o que assistimos é uma conversa entre dois conhecidos.

9 Expressão utilizada por Eduardo Coutinho (apud BRAGANÇA, 2009, p. 164).

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Há outro fator determinante para a construção da proposta cinematográfica do diretor: a prisão espacial que Coutinho autoimpõe, reconhecida por ele mesmo em suas falas sobre a própria obra. Uma geografia específica cerca a equipe que parte em busca de histórias e a escolha da locação torna-se um dispositivo. “Tenho que criar uma prisão para encontrar os personagens no escuro. Precisa ter este risco porque cria um sentimento de urgência. Tenho que filmar aqui e neste prazo” (COUTINHO apud BRAGANÇA, 2009, p. 83).

Porém, a principal regra que Coutinho se coloca em suas produções é a cria-ção de um dispositivo de filmagem. O dispositivo10 é algo constituído por Coutinho antes mesmo de o filme começar e pode ser visto em diferentes linhas de ação, como na opção de uma locação única, na determinação de um limite de tempo, no uso de determinado equipamento, na escolha por entrevistar, por exemplo, somente mulhe-res ou somente peões. Coutinho constrói os limites com que quer trabalhar, alguns atrelados a um essencial concreto, e assim modela um espaço onde o jogo está pronto para começar.

Vilém Flusser sustenta que os atos artísticos, políticos e científicos objetivam eternizar-se em imagens técnicas11. O autor coloca ainda que “como a imagem téc-nica é meta de todo ato, este deixa de ser histórico passando a ser um ritual de ma-gia” (FLUSSER, 2002, p. 18). Ora, os personagens do filme de Coutinho eternizam suas narrações mediadas pelo aparelho, que transforma o evento em cena. A experiência narrada no encontro é espetacularizada, uma vez que a presença do aparato cinema-tográfico projeta a imagem do entrevistado para o mundo. Dá-se então a construção “mágica” de um personagem que no momento da filmagem se mostra conforme suas próprias vontades e vaidades.

As imagens técnicas escondem a realidade de um mundo concreto que não interessa a Eduardo Coutinho, e nem mesmo a seus personagens. Segundo Flusser “o caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão de suas mensagens” (2002, p. 8). O que vemos são máscaras assumidas como construtos da ordem do ima-ginário. Coutinho oferece as máscaras e não as disfarça. Elas potencializam o persona-gem que ele procura e enfeitam a realidade para o cinema.

Coutinho de certa forma desmistifica o caráter pejorativo das imagens técni-cas ao utilizá-las como produtoras da significação de seu cinema. Elas potencializam o

10 O conceito de dispositivo é caro para a filosofia moderna. Autores como Foucault e Deleuze utilizam a noção de dispositivo como uma operação em que estão implicadas os componentes de visibilidade, de enunciação, de linhas de força e de subjetivação que se misturam, se entrecruzam. Aqui, neste texto o dispositivo é usado nos termos de Eduardo Coutinho: “Para o diretor, o crucial em um projeto de documentário é a criação de um dispositivo, e não o tema do filme ou a elaboração de um roteiro, o que aliás ele se recusa terminantemente a fazer. O dispositivo é criado antes do filme e pode ser: filmar dez anos, filmar só gente de costas, enfim, pode ser um dispositivo ruim, mas é o que importa em um documentário” (LINS, 2004, p.101).11 “Imagens técnicas são imagens produzidas por aparelhos que lhes conferem uma posição histórica e ontológica diferente das imagens tradicionais” (FLUSSER, 2002, p. 13).

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efeito mágico, a verdade do acontecimento da cena. O diretor não critica a produção de imagens técnicas, o que ele faz é por em cheque o cinema documentário hege-mônico o desmascarando e oferecendo as imagens técnicas como “a cereja do bolo”. Flusser, por outro lado, desmonta esta tese ao colocar as imagens técnicas sob a or-dem da alienação, chamando atenção a respeito do modo como essas imagens são equivocadamente decifradas.

Dessa maneira, as imagens que vemos, produzidas pelos aparelhos, são falsa-mente naturalizadas. São, na verdade, construções, embora aparentem objetividade. Nos termos de Flusser (p. 14), “o observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia nos seus próprios olhos”. Isso é uma ilusão, pois as imagens técnicas carregam uma carga simbólica que tem origem na subjetividade de quem a produz e de quem recebe, e na própria materialidade do aparelho. O jogo da tecnologia processa as ima-gens que estão no mundo em cenas e as devolve para o mundo.

Flusser define o conceito de aparelhos como brinquedos que funcionam com movimentos eternamente repetidos (p. 72), seu funcionamento implica automação e jogo (p. 70). O desejo dos jogadores, no caso, de Coutinho, do personagem e do es-pectador é embutido no exercício com a câmera. “Reconhecer o jogo é forçosamente reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for a sua essência, não é material” (HUIZIN-GA, 2010, p. 6). Isso quer dizer que a produção de imagens técnicas revela o jogo da subjetividade, do desejo, da vaidade e do imaginário. A câmera, enquanto aparelho concreto conota, paradoxalmente, a imaterialidade do jogo da tecnologia, uma vez que mencionamos um jogo repleto de interferências simbólicas produzidas pelas ima-gens técnicas.

Johan Huizinga, historiador holandês nascido em 1872, em sua principal obra, Homo Ludens (2010), enfatizou o caráter lúdico da cultura. O autor encara o jogo como uma atividade que instaura o universo das regras a partir das quais o sentido se ins-titui. Na obra acima mencionada desbrava as relações sociais com base na noção do jogo como elemento chave dos processos culturais, envolvendo desde os rituais sa-grados da Idade Média até as relações da ordem política e econômica do conturbado início do século XX.

O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremen-te consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana” (HUIZINGA, 2010, p. 33).

Assim, o autor vai conceituando o jogo, e quanto mais ele aproxima o lúdico da linguagem, da cultura e da estética, mais aproximamos, nós, o jogo do cinema de Coutinho. Nota-se que o mestre do documentário brasileiro se apoia nos elementos lúdicos do jogo para a estruturação de sua obra e de sua encenação cinematográfica. Reconhecemos no cineasta uma potência de jogador, que cria seus próprios parâme-tros ao conceber suas próprias metas. Coutinho inventa uma gama de limitações e estabelece consigo mesmo um jogo, cujas regras correspondem a sua própria conduta

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frente ao cinema.

No cinema documentário de Eduardo Coutinho a câmera é absoluta. Seus personagens são gravados em depoimentos frontais e a câmera permanece na maio-ria das vezes fixas. O olhar de quem é gravado muitas vezes encara a câmera, ou o olhar do diretor, que está sentado ao lado do equipamento de captação de imagens. Em outros momentos, a presença dela atinge maior grau: ela aparece em quadro, sen-do gravada por uma segunda câmera. Ou seja, é impossível não a perceber. Ela está sempre dentro do quadro, mesmo quando sua aparência não se revela. Nesses casos, a câmera não está fora da cena; está apenas fora de campo.

A presença da câmera no quadro, o que conota a presença de uma segunda câmera no ambiente de filmagem, é utilizada em vários momentos dentro da filmo-grafia de Eduardo Coutinho. A aparência da câmera revela a presença do cinema no filme. Não se trata de uma redundância, e sim fundamenta a teoria de que o docu-mentário não apresenta simplesmente a vida como ela é, mas se mantém como um recorte do olhar humano e material do aparelho, atravessado pelo vínculo com a rea-lidade. A câmera, significante do sistema fílmico, simboliza o voyerismo exacerbado do espectador e de Coutinho, que convoca seus entrevistados a participarem de uma experiência que resulta na produção de imagens técnicas estruturadas por um jogo. Um jogo abrigado pelas lentes do cinema, portanto um jogo montado, provocado e estimulado pela câmera, impregnada de desejos nada ingênuos que vêm de todos os lados. Sendo assim, os personagens de Eduardo Coutinho não estão no mundo; estão no cinema, só têm existência no écran.

Se no teatro encenar é pôr numa cena, no cinema tudo reporta ao quadro: os movimentos, os gestos, as mímicas dos atores, o aspecto do lugar de re-presentação, só tem existência no retângulo do quadro [...] o quadro é o amplificador de tensão que permite ampliar e até transfigurar esses efeitos e esse potencial (AUMONT 2008, p. 84).

No cinema, somos todos prisioneiros do écran, dispositivo que condiciona a cena. Limitado por um espaço e por um tempo, o recorte visto no interior do quadro cinematográfico revela uma imagem fabricada. O que se vê são construções abaladas pela mise-en-scène e pela tecnologia. A única certeza que temos no cinema é a certeza da cena e é esse movimento que Eduardo Coutinho nos mostra em seus filmes. A ver-dade da invenção da cena, compartilhada por ele e por seus personagens.

Desse modo, a câmera deixa de ser somente um instrumento de captação ou registro para tornar-se simultaneamente, um instrumento de catalisação e de produção das verdades dos personagens. Como já dissera o “mestre dos mestres” Jean Rouch, para quem a ficção era o único caminho para se penetrar a realidade, “ a câmera não deve ser um obstáculo para a expressão dos personagens, mas uma testemunha indispensável que motivará sua ex-pressão” (FELDMAN, 2010, p. 152).

Ocultando ou não a aparência da câmera nas cenas de seus filmes, Coutinho a explora deliberadamente. Faz uso dela para estimular a fabulação e insiste em sua

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presença para assegurar o espaço de invenção. No fim do jogo, a câmera não só não se faz ausente, mas é, de certa forma, compartilhada por todos nós.

1.3 Terceiro ato: o jogo do espectador

O cinema pode ser considerado uma arte nova. Podemos afirmar que algu-mas gerações no separam das primeiras projeções cinematográficas. Dessa maneira, somos, de certa forma, engajados nos movimentos que do cinema partem. Somos público e ao mesmo tempo autores, observadores e críticos, mas acima de tudo somos “atuantes na prática cinematográfica e não apenas sujeitos do espetáculo” (COMOLLI, 2008, p. 10).

Assim como a câmera, que mesmo fora de quadro, de alguma forma está pre-sente na cena, o espectador é peça chave na experiência cinematográfica da encena-ção: mesmo sem estar presente, ele influencia a concepção fílmica, na medida em que direciona um olhar para a cena. A cena não é impassível ao poder do olhar de quem vê.

Assim como a projeção de um filme não se desenrola apenas na tela da sala, mas também na tela mental do espectador, o espectador que o cinema su-põe não está (apenas) diante do filme, mas no filme, capturado e desdobra-do na duração do filme. Não há, portanto, apenas técnica e ideologia [...] há, simultaneamente, a invenção do espectador como sujeito do cinema, sujeito do filme e sujeito da experiência vivida que é a projeção de um filme (COMOLLI, 2008, p. 97).

Neste sentido, a importância do espectador é dupla: ele é parte integrante do jogo da encenação cinematográfica, uma vez que o filme é pensado para que ele assis-ta, e, ao mesmo tempo, é dono de suas impressões, quando, de fato, assiste à obra na sala escura. No cinema, o mundo se transforma aos olhos do espectador, que inventa versões da história independente das pensadas pelos autores. O mundo atravessa o cinema e se coloca entre o filme e o espectador que na projeção atualiza percepções. Assim, o espectador torna-se mais uma peça integrante no jogo do cinema.

Em uma análise de certo ponto contraditória à colocada acima, Arlindo Ma-chado (2007), ao teorizar sobre como se dá o prazer voyer do espectador no cinema clássico de ficção, atribui o efeito de realidade no cinema a uma simulação de uma indiferença à presença da plateia, como se o cinema dispensasse o olhar do outro. Essa distância privilegiaria a imaginação por parte do espectador, que mediado pela câme-ra invade a privacidade dos personagens, vivenciando as mais diferentes situações, antes jamais imaginadas por ele. No cinema documentário, esse prazer de olhar do espectador é de outra ordem. A crença na realidade filmada é maior. O mundo garante a cena, ainda que em alguns documentários essa certeza não seja inabalável. O espec-tador do cinema documentário encontra-se em um caminho duplo: por um lado quer acreditar na cena que vê como uma passagem da vida real e por outro se vê empa-redado por uma sala escura. Está no cinema, portanto envolto em uma trama virtual.

Espectador do cinema documentário, encontro-me na ambivalência: quero estar ao mesmo tempo no cinema e não no cinema, quero acreditar na cena

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(ou duvidar dela) mas também quero crer no referente real da cena (ou duvi-dar dele). Quero simultaneamente crer e duvidar da realidade representada assim como da realidade da representação. Meu prazer, minha curiosidade, minha necessidade de conhecer, meu desejo de saber são recolocados em movimento por essa dialética da crença e da dúvida (COMOLLI, 2008, p. 170).

Essa dança da crença e da dúvida do que se vê é reforçada pelo cinema docu-mentário de Eduardo Coutinho. Ele provoca o surgimento de um elemento ficcional na sutileza da fala de seus personagens, que “se torna mais importante que o real”12. Cou-tinho brinda o espectador com o acontecimento da cena, embaralhando os conceitos de veracidade e de imaginação. Nesse contexto, o espectador que vai ao cinema com o desejo de se deparar o real, com a vida vivida, é tocado pela ambiguidade de um personagem, tão complexo e cheio de dubiedades quanto ele. Neste movimento, ele acaba encontrando rastros de si mesmo, cacos da própria existência. O exibicionismo do personagem, nesse caso, não é indissociável do voyerismo do espectador. O espec-tador vê seu desejo de visibilidade ser confrontado pela ação de um personagem que se expõe na tela.

Arlindo Machado (2007, p. 53) afirma que o espectador no cinema pode in-corporar um olhar e ao mesmo tempo se reconhecer naquele que olha, “como se a tela fosse ao mesmo tempo o buraco da fechadura através do qual ele espia e um espelho onde ele se reconhece como o ego espião”. Dessa forma, o jogo do espectador não é só aparado pelo seu campo de visão, mas pelo que ele percebe que o personagem em questão olha. “A minha percepção depende fundamentalmente do que eu adivinho na percepção do outro, do que eu suponho que o outro vê (ou não) e do que eu supo-nho que o outro sabe (ou não) que eu vejo” (MACHADO, 2007, p. 97).

Coutinho nos dá a ver filmes que trazem para o cinema o anonimato de his-tórias e personagens. A identificação do espectador com a cena é imediata. Ele está a mirar na sala de projeção, portanto no contexto da sétima arte, um espelho de sua vida mundana expressa na tela. Ao acender das luzes, todos voltam as suas vidas correntes: eles e nós, anônimos, porém não anódinos, sendo fantoches do universo cinemato-gráfico. Assim, o espectador lê o filme como um texto aplicando essência à aparência. Machado diz que habitar o filme como um leitor das imagens é “se dividir para ocupar muitos lugares ao mesmo tempo e experimentar o outro como uma unidade móvel e escorregadia” (MACHADO, 2007, p. 99).

Coutinho tem consciência da presença do espectador no filme. Para ele o es-pectador não é indiferente. Isso fica claro na preocupação do diretor em explicitar seus procedimentos metodológicos na própria cena. Em vários de seus filmes, ele prepara o terreno, deixando claras as regras do jogo que o espectador será convidado a partici-par, apontando para direções de como encontra seus personagens, se os personagens recebem algum cachê para conceder-lhe a entrevista, além de limitar o espectador em um espaço e em um tempo bem definidos.

12 Segundo o próprio diretor, em entrevista concedida ao jornal O Globo em 7 de março de 2010.

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Além disso, quando entrevista seus personagens, o diretor não esquece o es-pectador. Como um interlocutor cuidadoso, está sempre pedindo maiores informa-ções sobre o conteúdo relatado, para que o espectador não se perca em meio à nar-ração. Perguntas como “ele quem?”, “sua mãe?”, “quando?”, “isso é bom?” são repetidas por Coutinho no decorrer da conversa, com o intuito de situar o espectador na trama e ao mesmo tempo dar uma direção ao personagem.

Dessa maneira o espectador também influencia a encenação cinematográfi-ca. A presença do espectador é sentida sob várias óticas. Por um lado, na medida em que o diretor o inclui em suas táticas de mise-en-scène, conduz a cena de forma que o espectador não se perca em meio aos devaneios do personagem. Por outro lado, o personagem está ciente do poder do espectador, e sua performance é diretamente influenciada não só pelo olhar do diretor e equipe, mas pelo dispositivo midiático e espetacular representado pela audiência.

1.4. O êxodo: considerações finais

Como a estrutura de uma tragédia grega, este estudo desfilou alguns elemen-tos que consideramos importantes para a modelação do jogo da encenação no cine-ma de Eduardo Coutinho. Observamos uma obra em que o encontro assume a maior proporção. O que se produz no encontro do diretor com o personagem atravessados pelas regras de expressão cinematográfica é, de fato, o que está em jogo para Couti-nho.

A encenação é aqui então pensada como afirmação da potência cinemato-

gráfica, envolvendo a tecnologia, a audiência e a mise-en-scène. A encenação, ainda que sob a luz da invenção, não é falsa, não é ficcional e, paradoxalmente, corrobora a linguagem documental da obra. A vida pulsa na cena, molda a cena. “Como um grande estrategista cênico, Coutinho quer que o cinema se dê no limite da superficialidade da imagem, nunca como uma vontade anterior a ela” (MIGLIORIN, 2010, p.11). Como que aprisionado pelo contorno de um espaço e de um tempo, seu cinema joga com a força da instabilidade, desestabilizando os lugares seguros da ficção e da realidade.

Nada existe anterior à cena. É nela que o acontecimento se expressa, provo-cado pela câmera, pela condução da direção e pela presença do espectador. Coutinho privilegia a captura da própria encenação. A construção do personagem é a novidade e assume o status de verdade na cena documental apresentada, onde o real e o imagi-nário estão entrelaçados.

A maneira pela qual são articulados os depoimentos, o modo com o qual os personagens contam versões de histórias de suas vidas é estimulado pela relação im-posta no momento da filmagem. A produção de uma autoimagem dos personagens provocada pela tensão que envolve o encontro é o que sustenta o jogo da encenação de ambos os lados da câmera. O jogo dramático que se estabelece entre o diretor e seu personagem, revela a verdade de histórias contadas de uma maneira que jamais seriam contadas se não tocadas pelo dispositivo cinematográfico.

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Referências

AUMONT, Jacques. O cinema e a encena-ção. Lisboa: Texto & Grafia, 2008.

BALTAR, Mariana. Cotidianos em perfor-mance: Estamira encontra as mulheres de Jogo de Cena. Rio de Janeiro: Azougue, 2010.

BRAGANÇA, Felipe (org.). Encontros: Edu-ardo Coutinho. Rio de Janeiro: Azougue, 2009.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A ino-cência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Humani-tas, 2008.

COUTINHO, Eduardo. Entrevista. O Globo, Rio de Janeiro, 7 mar. 2010.

FELDMAN, Ilana. Na contramão do con-fessional: o ensaísmo em Santiago, Jogo de Cena e Pan-Cinema Permanente. In: MIGLIORIN, Cezar (org). Ensaios no Real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Ja-neiro: Azougue, 2010.

FLUSSER, Vilém. A Filosofia da caixa pre-ta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2010.

MACHADO, Arlindo. O Sujeito na tela. São Paulo: Paulus, 2007.

MIGLIORIN, Cezar. Documentário recen-te brasileiro e a política das imagens. In: MIGLIORIN, Cezar (org). Ensaios no Real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Ja-neiro: Azougue, 2010.

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O DISPOSITIVO DE CRIAÇÃO EM JOGO DE CENA

1 INTRODUÇÃO

O documentário produzido nas duas últimas décadas no Brasil tem sido marcado por algumas mudanças substanciais em relação a uma certa tradição que perpassa historicamente o gênero. Dos re-gistros mais convencionais baseados em premissas como a objeti-

vidade e a imparcialidade e em uma relação de alteridade em que o realizador produz discursos fílmicos que são necessariamente de terceira pessoa, o documentário passa a ser atravessado por um movimento a partir do qual se tornam importantes registros de outras naturezas.

Se tornam parte do processo de concepção e realização dos filmes de forma mais expressiva, então, o dado autobiográfico e a assunção da experiência pessoal dos próprios realizadores, como em Um passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2002), 33 (Kiko Goifmann, 2003), Diário de uma busca (Flávia Castro, 2012) e Elena (Petra Costa,

Gabriela Machado Ramos de Almeida1

Augusto Ramos Bozzetti2

1Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do curso de Comunicação Social da ULBRA. Coordenadora do projeto de pesquisa Tendências do documentário brasileiro contemporâneo. E-mail: [email protected] Graduado em Produção Audiovisual pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Foi bolsista de Iniciação Científica do projeto de pesquisa Tendências do documentário brasileiro contemporâneo. Realizador audiovisual, com experiência na área de animação. E-mail: [email protected].

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2012); as experimentações de autorrepresentação com viés sociológico e a valorização do acaso, como em Rua de mão dupla (Cao Guimarães, 2002), Prisioneiro da Grade de Ferro (Paulo Sacramento, 2003), Pacific (Marcelo Pedroso, 2009) e Doméstica (Gabriel Mascaro, 2013); a incorporação de expedientes comumente associados à encenação ficcional, a exemplo de Jogo de Cena e Moscou, (ambos de Eduardo Coutinho, 2007 e 2009), Terra Deu, Terra Come e Orestes (Rodrigo Siqueira, 2010 e 2015) e Olmo e a Gaivo-ta (Petra Costa e Lea Glob, 2015), além da exploração de um teor ensaístico em que os realizadores transitam entre uma dimensão reflexiva mais pessoal e uma abertura ao mundo, como em Santiago (João Moreira Salles, 2007).

Ainda que seja possível, como veremos, identificar no cânone do documen-tário experiências que fogem à tradição do documentário expositivo clássico inau-gurada pela escola inglesa há quase um século, alguns mecanismos empregados em boa parte da produção documental mais recente, a exemplo da citada acima, operam como ferramentas éticas e estéticas na busca por um frescor e pela superação de uma discussão mais elementar sobre o grau zero da representação documental. Isso não implica afirmar que os limites entre ficção e documentário foram diluídos, mas sim acrescentar camadas que permitam complexificar o debate pensando em pontos de contato entre as duas linguagens.

Uma parcela significativa dos filmes que assumem os traços mencionados an-teriormente (autobiografia, autorrepresentação, acaso, encenação próxima da ficção e ensaísmo) nasce do que parte da teoria brasileira do documentário chama de dispo-sitivo de criação (MIGLIORIN, 2005a, 2005b; 2008; LINS, 2007, 2008a; 2008b). É a partir desta chave que se dará a nossa leitura do filme Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, lançado em 2007 e considerado um ponto de virada na obra do cineasta, composta por cerca de 30 filmes produzidos entre 1966 e 2013 (OHATA, 2013).

O objetivo deste artigo é discutir o conceito de dispositivo de criação em sua dimensão teórica e investigar o dispositivo engendrado por Coutinho em Jogo de Cena, desdobrado aqui em três níveis: 1) o anúncio de jornal que convida mulheres a participar do filme contando histórias pessoais; 2) a estratégia de misturar, num es-paço cênico teatral, os relatos das mulheres desconhecidas à encenação dos mesmos relatos por atrizes famosas, como Andréa Beltrão, Marília Pêra e Fernanda Torres; e 3) a inserção de atrizes desconhecidas que também encenam os depoimentos num mo-mento posterior, ajudando a reforçar uma intenção deliberada de problematizar as fronteiras entre documentário e ficção.

2 ALGUMAS VIRADAS HISTÓRICAS DO CINEMA DOCUMENTÁRIO E A QUESTÃO DO DISPOSITIVO

Desde Nanook, o esquimó (Nanook of the North, Robert Flaherty, 1922), tomado pela historiografia como o primeiro documentário, ou a obra inaugural de um outro cinema capaz de se sustentar como gê-nero paralelamente ao cinema de ficção, estabeleceu-se a discussão

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sobre a capacidade que este tipo de filme teria, potencialmente, de lidar com a “verda-de” do mundo. Não apenas uma “verdade” que a princípio poderia ser do filme ou do seu diretor, mas uma “verdade” mais universal, que estava ao redor, ou seja, o domínio do mundo natural pelo homem e suas máquinas, na tentativa de explicar este mesmo mundo em conceitos fechados e definitivos.

Se Flaherty tivesse conseguido finalizar o filme na primeira vez em que o ro-dou, em 1916, é provável que a obra não tivesse tanta força. Porém, em razão de um incêndio que comprometeu os negativos de praticamente todo o material captado em suas primeiras viagens à baía de Hudson, na qual vivia a comunidade filmada, o cineasta precisou voltar à locação em 1920 e recomeçar o trabalho, agora impregnado pela linguagem audiovisual usada no cinema de ficção e que se desenvolvia tão rápi-do quanto se consagrava diante das plateias do mundo.

Flaherty refilmou então seu projeto original, encenando boa parte das ações com os mesmos personagens3 da sua filmagem original, agora transformados em in-térpretes de si mesmos ao reproduzir aquilo que já tinham feito antes. Se as ferramen-tas narrativas oriundas da ficção e recém-incorporadas pelo documentário foram a mola propulsora de Flaherty na busca deste registro, é preciso lembrar que o cinema documentário teve também outros pontos de virada e amadurecimento importantes.

No final dos anos de 1950, são os equipamentos portáteis de captação de imagem e os gravadores de som sincronizado que possibilitam uma nova ruptura, reacendendo a discussão em torno da dicotomia ficção/realidade, com o surgimento do Cinema Direto, nos Estados Unidos, e do Cinema Verdade, na França. Já é possível identificar aí a exploração mais incisiva de recursos que, muitos anos depois, seriam chamados de “dispositivos de criação”, como as estratégias de ficcionalização e a cria-ção de métodos que problematizam a existência de um “real” prévio à filmagem, um real que o cineasta apenas registra.

É o caso de A Pirâmide Humana (La pyramide humaine), realizado pelo cineasta francês Jean Rouch, em 1959, na Costa do Marfim. Num liceu onde estudavam jovens negros (da população local) e brancos (filhos de franceses), Rouch observou a falta de interação entre os grupos e propôs que passassem a conviver, para que pudesse registrá-los. O cineasta cria, então, uma situação que não existia a princípio no mundo histórico e divide com o espectador este processo de criação, introduzindo no filme uma camada autorreflexiva que é partilhada com o público4. Assim, em vez de vermos a falta de convivência entre jovens brancos e negros num liceu de Abidjan, contempla-mos o que decorre de um convívio sugerido pelo realizador, que interfere diretamente no mundo histórico filmado e problematiza a própria inscrição do real no cinema, por um lado, e os reflexos da colonização francesa na África, por outro.

3 Ou atores sociais, para seguir a denominação popularizada por Bill Nichols (1991).4 Pouco depois o procedimento se repetiria num filme que se tornou mais celebre: Crônica de um Verão (Chronique d’un été, 1961), criado e dirigido por Rouch em parceria com Edgar Morin.

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Um outro salto temporal nos traz ao final do século XX e princípios do sé-culo XXI, marcados por um novo momento de amadurecimento e transformação na produção documental. Ancorado novamente em avanços tecnológicos que acabam por se refletir no âmbito da linguagem, o documentário passa a explorar de maneira mais relevante os chamados “filmes de dispositivo”3. No Brasil, a ideia de dispositivo de criação vem sendo explorada para explicar algumas experiências contemporâneas. Segundo Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, o dispositivo:

[...] remete à criação, pelo realizador, de um artifício ou protocolo produtor de situações a serem filmadas, o que nega diretamente a ideia do documen-tário como obra que ‘apreende’ a essência de uma temática ou de uma rea-lidade fixa e preexistente. [...] teríamos, nos ‘filmes de dispositivo’ a criação de uma ‘maquinação’, de uma lógica, de um pensamento que institui con-dições, regras, limites para que o filme aconteça (LINS; MESQUITA, 2008a, p. 168-169).

Nesses casos, o dispositivo corresponde, de forma geral, a uma espécie de conceito de fundo da obra e tem como objetivo complexificar a relação do realizador e do próprio filme com o real. Não há documentário possível sem a maquinação de um dispositivo, mas em alguns casos, a sua exploração reflexiva em um nível metalin-guístico torna-se condição de possibilidade para o filme. Também está implícita nesta leitura uma valorização do documentário como processo, em que colocar o dispositi-vo de criação em funcionamento importa tanto quanto o resultado que dele deriva. O acaso passa a ser ainda mais incorporado ao filme, já que a realização de um documen-tário de dispositivo abarca um grau muito maior de risco do real.

Cezar Migliorin toma o dispositivo como uma estratégia narrativa capaz de produzir acontecimento na imagem e no mundo e sugere: “Pensar de que forma as novas tecnologias do audiovisual são organizadas em dispositivos de criação é pensar também o estatuto da imagem contemporânea, a possibilidade e o sentido da produ-ção de novas imagens” (MIGLIORIN, 2005). Serão investigados, adiante, os mecanismos por meio dos quais o dispositivo de criação acionado por Coutinho em Jogo de Cena faz com que o filme alcance um sentido de reflexão sobre a imagem contemporânea e sobre os embates entre documentário e ficção – tão caros ao cinema quanto atuais..

3 O DISPOSITIVO DE CRIAÇÃO EM JOGO DE CENA

Embora, como vimos, a exploração do dispositivo de criação em filmes documentários não fosse exatamente uma novidade à época do lança-mento de Jogo de Cena, nos interessa especialmente o uso que Eduar-do Coutinho faz deste mecanismo, apresentando-o gradativamente

durante o filme, ressignificando cada evento apresentado. O dispositivo, afinal, não é

5 A ideia de dispositivo desenvolvida aqui não guarda relação direta com a noção de dispositivo cinematográfico popularizada nas teorias do cinema após a publicação dos dois textos clássicos de Jean-Louis Baudry (BAUDRY, 1970; 1975). Para uma discussão mais específica sobre o conceito de dispositivo nas teorias do cinema, ver: ALMEIDA, 2015.

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apenas o disparador dos acontecimentos, mas um acontecimento próprio em si, usa-do não somente para discutir as verdades desse documentário em particular, mas a de todo o cinema, tornando indispensável o juízo feito pelo espectador, agora obrigado a duvidar ao invés de acreditar.

3.1 O anúncio de jornal

A primeira imagem que vemos em Jogo de Cena, logo após os créditos de abertura, ainda antes de qualquer imagem que nos posicione diante da mise-en-scè-ne, é a reprodução de um anúncio de jornal publicado pela equipe de produção, re-velando parcialmente o dispositivo de criação utilizado para delimitar a temática do filme. De forma clara e direta, o anúncio convida à participação mulheres acima dos 18 anos, moradoras do Rio de Janeiro, que tenham histórias para contar e que estejam dispostas a participar de um teste para um filme documentário. É importante notar que, já nesse anúncio, o projeto de Jogo de Cena se assume como um documentário, respondendo de antemão algumas perguntas que serão feitas ao longo do filme ou que podem ser suscitadas a partir do debate criado pelos mecanismos colocados em marcha pelo dispositivo de criação (do qual esse anúncio é apenas uma parte).

Figura 1: Anúncio de jornal convida mulheres a contarem suas histórias.

Fonte: Impressão de tela do DVD de Jogo de Cena.É interessante perceber, no anúncio, os limites impostos ao direcionar seu

campo de pesquisa para regras tão simples quanto determinantes. A criação de regras constitui uma condição de possibilidade para inúmeros documentários baseados em dispositivos de criação, com resultados bastante distintos, já que o diretor “dispara um movimento não presente ou pré-existente no mundo” (MIGLIORIN, 2005), e coloca-se, deste modo, em um movimento pendular entre o acaso e o controle:

O dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. O criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma quantidade de atores e a esse universo acrescenta uma camada que forçará movimentos e conexões entre os atores (personagens, técnicos, clima, aparato técnico, geografia, etc.). O dispositivo pressupõe duas linhas complementares; uma de extremo controle, regras, limites, recortes e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e de suas interconexões (MIGLIORIN, 2005).

O que parece ser o dispositivo básico do projeto, ou a sua razão de ser, em poucos minutos vai se revelar apenas um suporte para uma construção narrativa mais complexa do que o anúncio pode revelar. Este é um dos motivos pelos quais o dispo-

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sitivo colocado em operação na obra surge como um mecanismo dividido em três ní-veis, em nossa proposta de leitura do filme. O primeiro, já citado, concerne às histórias coletadas no mundo histórico, limitadas pelo anúncio, e que serão o alicerce para uma discussão que não é apenas da fábula em si. Os outros dois níveis, que dizem respeito à incorporação de elementos da ficção, serão explorados a seguir.

3.2 A encenação dos relatos

O anúncio que apresenta Jogo de Cena não deixa dúvidas de que o filme previa a coleta dos relatos e a promessa é cumprida até o fim, sem ressalvas. O que acontece, porém, é que os mesmos depoimentos são apresentados uma, duas ou até três vezes, nem sempre apenas pelas mulheres que responderam ao anúncio e foram selecionadas pela equipe de produção (e que seriam as “donas” da história, como o espectador supõe a princípio).

É aqui, então, que Coutinho coloca em ação o segundo nível do dispositivo de criação. Após selecionar personagens, ele as entrevista diante da câmera e transforma o material coletado em uma espécie de roteiro, que é utilizado posteriormente para que conhecidas atrizes brasileiras encenem para o diretor os relatos fornecidos pelas personagens, criando outra dimensão para as histórias ali apresentadas.

O primeiro momento em que a assunção de procedimentos ficcionais em Jogo de Cena é posta às claras ao espectador é quando a atriz Andréa Beltrão surge no espaço cênico moldado pelo filme – não por acaso, um proscênio – repetindo a história de Gisele, personagem que relata a perda de um filho recém-nascido5. Andréa Beltrão, atriz popular, encena o depoimento de Gisele, e Coutinho expõe as duas mu-lheres, por meio da montagem paralela, contanto exatamente a mesma história.

Enquanto Andrea Beltrão interpreta Gisele, Coutinho está também interpre-tando a si mesmo, fazendo o papel do diretor/entrevistador que de fato foi com Gisele em seu depoimento “original”, mas que agora finge ser ao repetir perguntas e conduzir uma conversa que ele já conhece e que já está definida. A história caminha para um desfecho dramático – a morte do bebê de Gisele ainda na maternidade. Gisele man-tém a serenidade mesmo nos trechos mais duros do relato, e Andrea Beltrão se vê engasgada e impedida de seguir adiante com a encenação. Coutinho interrompe a cena e passa, então, a conversar com a atriz Andrea Beltrão, deixando claro o tipo de investigação que está propondo com esse segundo nível do seu dispositivo de criação.

Neste momento, o que acontece é um relato da própria atriz, de teor docu-mental, procurando entender as razões que a fizeram perder o rumo e a concentração

6 Este não é, no entanto, o primeiro momento em que vemos uma atriz em cena. O depoimento que dá início ao filme, após a inserção do anúncio, é da também atriz Mary Sheila. Ocorre que, durante a sua fala, o dispositivo de criação do filme não é totalmente conhecido pelo espectador, de modo que os procedimentos de ficcionalização ainda não parecem evidentes. Retomaremos a presença da atriz Mary Sheila ao final da análise.

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diante do texto que estava interpretando. Coutinho volta então a ser um entrevistador de fato e passa a procurar pelos elementos que constituem essa fronteira entre a ficção e o real, tentando descobrir de que maneira o roteiro, baseado em uma história colhi-da no mundo histórico, impacta na atuação da atriz. Andrea Beltrão passa a fazer parte da cena, assim, como entrevistada e não mais como intérprete.

Quando afirmamos que o centro gravitacional do interesse de Jogo de Cena não está apenas no conteúdo dos relatos, é porque, ao executar o segundo e terceiro níveis do dispositivo, Coutinho promove um debate sobre o lugar do próprio cinema documentário e sua relação com o real: ao se valer da encenação e de expedientes de ficcionalização que são assumidos e revelados ao espectador ao longo do filme como aspectos constituintes da obra, o diretor abre mão, deliberadamente, de alguns índices que balizam a promessa de real do documentário, obrigando o espectador a desconfiar do filme, dos gêneros e dos rótulos. No entanto, não se trata de uma busca pela indiscernibilidade entre documentário e ficção, que por vezes é apontada como uma tendência do documentário contemporâneo. Como afirma Cesar Guimarães:

[...] mais do que eliminar o problema da referência e instalar confortavel-mente o espectador na indistinção dos gêneros documentário e ficcional, parece-nos que certos filmes revigoram a oscilação entre a crença e a dú-vida que anima todo espectador a se projetar na cena filmada. Aos que lamentam ou festejam um pretenso fechamento da cena – “tudo é teatro, ficção, encenação (premeditada ou não), não há mais nada de real, e o que nos sobra é o logro no qual caímos” – certos filmes respondem com um des-norteante encadeamento de mises en abyme e de passagens oblíquas entre os regimes da ficção e do documentário (GUIMARÃES, 2011).

As questões levantadas por Coutinho num nível metalinguístico parecem for-talecer ainda mais as próprias histórias coletadas no real, retroalimentando conteúdo e forma. Mais adiante, quando encontramos a atriz Fernanda Torres, já não existem surpresa nem estranhamento por conta de sua popularidade. Porém, diferentemente do que acontece com Gisele e Andrea, o primeiro depoimento de Fernanda não é pre-cedido de outro semelhante gravado com a suposta personagem real.

Como já vimos Andrea Beltrão encenando, supõe-se que essa primeira apa-rição de Fernanda Torres seja, da mesma maneira, a encenação de um texto criado a partir do depoimento de uma mulher “comum”. Fernanda conta a história de uma tia que é mãe de santo e a levou para um terreiro de candomblé, onde a tratou de uma depressão sofrida após uma gravidez interrompida. O depoimento termina e em ne-nhum outro momento do filme o espectador contempla este relato novamente. Ao não deixar claro se essa é uma história vivida pela própria Fernanda Torres ou se é a en-cenação de uma história relatada por outra pessoa, Coutinho cria uma nova dimensão reflexiva para o documentário, que parecerá ainda mais complexo quando o terceiro nível do dispositivo entrar em ação (como abordaremos adiante).

O depoimento de Fernanda Torres, em sua aparição seguinte, é intercalado com o de outra mulher desconhecida que conta a mesma história, deixando claro ao espectador que se trata de uma repetição do procedimento anterior com Andréa e Gi-

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sele, e ao mesmo tempo colocando em suspensão a primeira fala de Fernanda Torres.

Ocorre também que, em sua segunda aparição, Fernanda Torres altera radical-mente a sua forma de estar em cena. Sabemos que ela reconta a história de Aleta, uma menina que, ainda muito jovem, sofre com uma gravidez não planejada e é obrigada a abandonar planos e sonhos, abrindo mão dos estudos e de uma vida social para cuidar do bebê. A narrativa progride, intercalando os relatos da Aleta desconhecida e de Fer-nanda Torres, mas a atriz surge diferente: faz uso de maneirismos e de uma linguagem tipicamente jovem, com o emprego de gírias.

A inevitável comparação entre as duas aparições de Fernanda Torres parece

deixar claro o desejo de Coutinho de fazer o espectador acreditar que o primeiro re-lato de Fernanda Torres é “real”, ou seja, que se trata de uma história de fato vivida por ela. Curiosamente, na encenação da história de Aleta, Fernanda Torres também tem dificuldade de levar a atuação até o final. Assim como fez com Andrea Beltrão, o diretor interrompe a cena e passa a investigar os motivos que levam a atriz a perder a personagem.

Se, no caso de Andrea, era a dramaticidade da história real que a derrubava, com Fernanda é a existência de uma personagem real e “acabada”, como a própria atriz define, que a impede de se sentir confortável. Ao interpretar uma personagem da ficção, diz ela, é possível atingir um nível de atuação razoável ou até medíocre que se estará livre para seguir adiante, mas quando a personagem existe no mundo histó-rico, a situação é diferente. Fernanda Torres interrompe o depoimento diversas vezes e sai do papel, permanecendo em silêncio por longos momentos. Tenta voltar, mas interrompe novamente, ao que comenta, com o diretor: “parece que estou mentindo para você”. Coutinho deixa a câmera ligada e grava não só a encenação de Fernanda como, principalmente, seu relato documental e seus questionamentos sobre a arte da interpretação.

Esses dois momentos distintos da atriz nos permitem, mais adiante, depreen-der também um segundo depoimento de Andréa Beltrão como sendo documental – como acontece na história do terreiro de candomblé de Fernanda Torres. Nesse outro momento, Andréa relata a história de uma empregada com quem tinha grande afini-dade na juventude, descrevendo com riqueza de detalhes diversos momentos dessa relação, em tom memorialístico, em meio a lágrimas e risadas que, diferentemente do que aconteceu quando interpretou Gisele, Andréa não tenta esconder e muito menos servem de motivo para que a atriz se perca.

Esse é um exemplo de como o dispositivo de criação acionado por Coutinho em Jogo de Cena não apenas propõe um debate para além do uso da forma sobre o conteúdo, como, a todo o momento, vai criando códigos que nos obrigam a duvidar e a reinterpretar o que estamos vendo, de maneira que o filme se transforma e se ressig-nifica durante toda a sua duração.

Quando Marília Pêra, atriz provavelmente ainda mais popular que as anterio-

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res, aparece para encenar o relato de outra mulher comum, Sarita, isto que chamamos de segundo nível do dispositivo já está bastante absorvido. A novidade que ela traz para as questões levantadas por Coutinho situa-se no âmbito do próprio ofício de atriz e no campo perigoso do qual Andréa Beltrão e Fernanda Torres tentavam o tempo todo escapar, ao procurarem inserir certo grau de naturalismo em suas interpretações.

Ao falar sobre o choro, Marília Pêra faz menção ao melodrama. Segundo ela, “quando as lágrimas são de verdade, as pessoas procuram escondê-las, mas quando estão a serviço do drama, são muito bem-vindas”. A atriz mostra para Coutinho, diante da câmera, um objeto conhecido como “cristal japonês”, utilizado por atores e atrizes para chorar em cena. Ela não só revela os meandros da farsa, como se coloca inteira-mente à disposição do diretor, quando diz: “se você quiser muito que eu chore e, caso eu não consiga, utilizo o cristal japonês”, indicando a disposição natural da ficção, em que toda ação existente é uma construção do diretor, onde tudo tem hora e lugar para acontecer, onde as emoções são calculadas em busca de um efeito realista.

Dessa maneira, o segundo nível do dispositivo de criação engendrado por Coutinho em Jogo de Cena funciona para questionar o poder de um relato verdadei-ro em comparação com a encenação deste relato, confrontando realidade e ficção e procurando investigar de que forma cada um desses universos pode contribuir para a construção do filme e para o enriquecimento narrativo do próprio cinema, no âmbito da experimentação e da pesquisa de linguagem.

Se tomarmos os modos ficcionalizante e documentarizante definidos por Ro-ger Odin em sua proposta de abordagem às narrativas fílmicas, veremos que os docu-mentários partilham com a ficção algumas operações próprias do modo ficcionalizan-te: “a construção de um mundo diegético [...]; ‘a rede conceitual da ação’ que ampara a narrativa; o recurso à narração e à figura do narrador; a organização do filme como discurso; e a adoção de uma estrutura enunciativa” (ODIN apud GUIMARÃES, 2011)6.

A intensificação destas estratégias e a assunção de procedimentos ficcionais pelo documentário como parte do contrato de leitura dos filmes contribui para o que Guimarães (2011) considera não uma fusão entre os dois modos, mas um desloca-mento provocado na medida em que os modos ficcionalizante e documentarizante passam a solicitar um ao outro. Assim como o primeiro nível do dispositivo de criação – o anúncio de jornal do início do filme – serve como alicerce para o segundo nível, também este segundo nível vai ancorar um terceiro nível do dispositivo, acionando uma camada ainda mais complexa do filme.

3.3 A inserção de atrizes desconhecidas

Coutinho estabelece, em um terceiro momento, o elemento final que vai de fato consolidar as questões propostas pelo filme, ao inserir atrizes desconhecidas inter-pretando as histórias que, até então, pareciam ter “donas”. Seria possível depreender,

7 Texto original: ODIN, Roger. De la fiction. Bruxelles: De Boeck Université, 2000.

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a partir do segundo nível do dispositivo – estabelecido ainda bem cedo na obra – que Coutinho pretendia colocar em discussão o pacto de crença que envolve a imagem documental. Porém, ao inserir atrizes desconhecidas do público, o diretor nos faz crer que seu interesse já não recai apenas no debate sobre as fronteiras entre real e ficção, ou de que maneira esses dois campos da diegese do filme trabalham para construir as histórias nele apresentadas. Segundo Guimarães:

[...] há em Jogo de Cena uma matéria mais espessa e resistente, e que não nos permite dizer, de maneira unívoca, que o mundo seja garantido única e inteiramente pelo filme. Para retomar as palavras de Comolli, ainda há em Jogo de cena algo do mundo que garante o filme. Chamemos a isso de “ex-periência do sujeito filmado”, agora apanhada em uma intrincada implica-ção da subjetividade nas formas do discurso, coisa que o cinema aprendeu com o teatro no momento em que a entrevista, exaurida, sequestrada pela televisão, contribui cada vez mais para a destruição da fala e para a deserção do sujeito (GUIMARÃES, 2011).

Coutinho não apresenta suas personagens por meio de legendas ou quais-quer outros recursos. O que vemos é apenas, e invariavelmente, alguma mulher con-tando uma história diante da câmera. O diretor nunca pergunta seus nomes, idades, suas profissões ou o que fazem da vida. E é sobre essa desconstrução que o terceiro nível do dispositivo de criação de Jogo de Cena vai atuar.

A primeira manifestação deste nível do dispositivo ocorre logo após o primei-ro depoimento de Andréa Beltrão. Nilza, como a chama Coutinho logo na primeira pergunta, é uma mulher de origem pobre de Minas Gerais, muito jovem e analfabeta, que foi para São Paulo trabalhar como babá e acabou engravidando em uma relação fortuita dentro de uma guarita de ônibus na Praça da Sé. Decidida a ter a filha mesmo sem a presença do pai e sem condições de criá-la, Nilza acaba entregando a criança à guarda de uma patroa que a leva para Petrópolis, permitindo que a jovem babá, agora moradora do Rio de Janeiro, possa encontrá-la a cada quinze dias.

A força do relato situa-se não apenas na história em si, mas também (e prin-cipalmente) na figura de Nilza. Dois aspectos servem à construção da credibilidade e do valor de verdade da sequência: a personagem em si e a participação de Coutinho, que a interrompe algumas vezes, faz perguntas e direciona o depoimento para o seu interesse enquanto cineasta, criando, através de um diálogo verossímil e naturalista, a sensação de acompanharmos um relato contado por quem o experienciou.

Mas o depoimento de Nilza chega ao fim e então ela olha para a câmera e afirma: “E foi isso que ela disse” (único momento do filme em que isto acontece). Não voltamos a ouvir este relato, mas sabemos que a história encenada por Nilza não foi contada originalmente por ela. Esta desconstrução, no entanto, não interdita a cren-ça no relato e o seu apelo emocional. Os créditos finais indicam que se trata de uma atriz chamada Débora Almeida, que, diferentemente das outras atrizes famosas que conhecemos, parece aos olhos do público tão anônima quanto a dona da história que contou.

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Mais adiante, Coutinho nos apresenta a Jackie Brown, uma rapper negra e ho-mossexual que faz parte do grupo de teatro Nós do Morro. Jackie conta uma história muito parecida com a de Mary Sheila, a primeira mulher (também negra) a aparecer no filme, sobre uma infância pobre e a superação de dificuldades por intermédio da arte. Embora sejam semelhantes, os relatos não se aproximam da maneira como acon-tece entre Andréa Beltrão e Gisele, Fernanda Torres e Aleta e Marília Pêra e Sarita, por exemplo, em que há claramente um texto roteirizado a partir de um relato colhido no mundo histórico e que é encenado pelas atrizes.

No entanto, as afinidades existentes entre os depoimentos dessas duas mu-lheres indicam que pode se tratar da mesma história. É preciso reconhecer que, de concreto, as únicas evidências são o fato de ambas as entrevistadas fazerem parte do grupo Nós do Morro e de terem sonhado, na adolescência, em ser paquitas. Acredita-mos em Mary Sheila no início do filme, até porque estamos ainda no primeiro nível do dispositivo. Mas quando Jackie Brown aparece, o efeito produzido é de que ela está repetindo a história de Mary, ao mesmo tempo em que parece ainda mais verossímil do que sua antecessora.

Mary Sheila é de fato atriz e começou sua carreira no grupo Nós do Morro. Mas, diferente das atrizes famosas, é menos popular. Ao deixar em suspensão também a relação entre Mary Sheila e Jackie Brown – com várias semelhanças e algumas parti-cularidades (Sheila não faz referência à homossexualidade, por exemplo) – Coutinho propõe uma reflexão sobre o modo como um determinado conjunto de índices cons-trói a crença na imagem documental: a presença da atriz famosa denuncia a encena-ção ficcionalizada, ao passo que, a princípio, o espectador poderia inferir que as histó-rias contadas por mulheres desconhecidas foram vividas por elas. Mas, como vimos, o dispositivo de criação é utilizado para desconstruir estes parâmetros e provocar uma reflexão de caráter metalinguístico sobre as fronteiras entre ficção e documentário no cinema.

O que vai ratificar a presença desse terceiro nível do dispositivo é, finalmente, o relato de uma mãe, uma senhora de mais de 60 anos, a respeito da morte do filho, vitimado após reagir a um assalto. Essa história guarda semelhanças com quase todas as outras no sentido da maquinação do dispositivo. As duas mulheres que surgem em cena para oferecer este relato, ambas desconhecidas, não têm seus nomes citados e o texto que interpretam é muito parecido.

No entanto, nesse caso, não há pistas sobre quem teria de fato vivido a expe-riência. Coutinho não as interrompe para falar sobre atuação, como faz com as atrizes famosas; elas não admitem em momento algum qualquer tipo de farsa, como faz a intérprete da babá Nilza e, nem ao menos, podemos supor serem atrizes como faze-mos no caso de Mary Sheila e Jackie Brown. Ao mesmo tempo, ambos os relatos são, cada um a sua maneira, emocionados e emocionantes, e carregam um elevado grau de naturalismo.

É aí que Coutinho finalmente solicita que paremos de procurar pela verdade no filme documentário. Um dispositivo de criação complexo, dividido em três níveis que se completam e se retroalimentam dentro da narrativa, reconstrói, para o espec-

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tador, os códigos necessários para a fruição da obra, e concede ao documentário a liberdade de se admitir como cinema que de fato é.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diz-se que qualquer filme, independente do gênero, é, não só (ou unicamen-te), mas também, um filme documentário, no sentido de registrar certa contempora-neidade à época de sua produção no que tange os diversos aspectos, sejam eles pic-tóricos (paisagens, figurinos, pessoas) ou linguísticos (oralidades, discursos, assuntos, conceitos). A ideia de fronteira entre ficção e realidade nasceu junto com o cinema e parece se desenvolver com ele em teoria e interesse na mesma proporção em que a tecnologia reinventa a arte.

O dispositivo de criação de Jogo de Cena praticado por Coutinho surge em um momento em que se acredita haver um borramento entre essas fronteiras, e não só investiga como propõe caminhos para a questão. Valendo-se de conceitos como naturalismo, realismo e verossimilhança, o diretor busca, na hibridização entre me-mória – as histórias relatadas no filme – e acontecimento – as entrevistas registradas, a contribuição de cada um desses universos (ficção e realidade) para a construção de um universo maior – o do próprio cinema, nos permitindo perceber de que maneira eles servem ao universo da fábula cinematográfica.

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Referências

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O FIM E O PRINCÍPIO: dispositivo estilhaçado e vigor da oralidade

1 INTRODUÇÃO

Realizado em 2005, O Fim e o Princípio (doravante FP) é uma obra que rompe com diversos procedimentos que Eduardo Coutinho consolida-ra em seus últimos trabalhos. Trata-se de uma produção realizada sem pesquisa prévia de personagens, sem locações ou temas demarcados,

e que, por conseguinte, abandona/reformula parcialmente a noção de “dispositivo” tantas vezes empregada para mensurar sua prática cinematográfica desde Santo Forte (1999). Ou seja, a delimitação de uma “prisão” espaço-temporal que aciona linhas de forças criativas e que, simultaneamente, impede o cineasta de tecer generalizações sobre seus sujeitos e de extrapolar os parâmetros que norteiam o seu “documentário de encontros”2. No decorrer de FP, é fato, gradualmente, uma demarcação espacial e temática se impõe, mas ela não antecede à filmagem (não é definida antecipadamen-te) e tampouco a determina, procedimentos recorrentes em trabalhos anteriores do diretor3.

Em decorrência disto, FP é a obra de Coutinho que mais aposta no improviso e na indeterminação como fomentadores do ato criativo. Todavia, cabe lembrar que a ação do imprevisto como espécie de atributo que confere ao filme espontaneidade

Laécio Ricardo de Aquino Rodrigues1

1 Professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), vinculado ao Bacharelado em Cinema e Audiovisual, e Doutor em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (IA/Unicamp), com tese sobre a obra de Eduardo Coutinho.2 Ver: Lins (2004) e Rodrigues (2012).3 No limite, podemos dizer que é outra a noção de dispositivo em pauta: não mais a delimitação prévia, antecedida por uma pesquisa de personagens; o dispositivo agora passa a ser regido pelo acaso e pela aposta em encontros fortuitos, acidentais.

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e rumos inusitados, solicita pormenorização. Em outros termos, creio ser necessário relativizar a força do acaso enquanto recurso da escrita fílmica, posto que, no limite, nenhum filme se encontra completamente à deriva e o imprevisível desponta como expediente desejado (incentivado). Por fim, no que se refere à singularidade de FP, há outras considerações a destacar. Em oposição à clausura evidente em Edifício Master (2002) e, de certo modo, em Peões (2004), produções cujas tomadas foram realizadas, quase sempre, em recintos fechados, sem abertura para o exterior, podemos afirmar que FP é um filme solar, que valoriza a beleza dos cenários (a peculiar paisagem do se-miárido) e a simplicidade da iluminação natural. Por conseguinte, FP também sinaliza um deslocamento de Coutinho do universo urbano para o rural. Outra guinada esti-lística evidente: neste documentário, a câmera é removida do tripé e posicionada no ombro, o que confere ao enquadramento menor rigor e maior oxigenação. Flutuante, ela se torna mais íntima dos entrevistados; vez ou outra, um deles burla as regras da encenação e interage com alguém do grupo, desconstruindo o artifício da representa-ção. Comentário que nos conduz a outra observação. Em seus filmes, não há dúvidas de que Coutinho adere ao jogo (arma a cena e dela participa, injetando confiança ao entrevistado); mas se trata de uma participação controlada, que pouco se expõe na tomada. Em FP, todavia, o acaso lhe traz surpresas e, não raro, a espontaneidade dos sujeitos abordados desarma sua postura cautelosa – ele continua a agenciar seus in-terlocutores, mas, eventualmente, também é desafiado por aqueles.

Concentremo-nos agora em algumas sequências/eventos de FP, de modo a fundamentar nossa leitura. Enquanto observamos o longo travelling inicial que nos descortina uma típica paisagem do sertão, Coutinho, em off, nos revela a premissa que norteou o projeto: diretor e equipe se deslocaram para a Paraíba com o intuito de fazer um filme sem pesquisa prévia, sem tema ou locação em particular. O objetivo era encontrar uma comunidade rural que concordasse em partilhar suas histórias de vida. Uma proposta que, até onde podemos inferir, adota o imprevisto como desafio – não havendo personagens, tentar-se-ia fazer um filme sobre esta busca mal-sucedida. Na continuidade do off, Coutinho revela que a única pesquisa realizada foi de hospeda-gem – e assim a equipe chega a São João do Rio do Peixe (PB), cidade que serviria de QG para o grupo. O primeiro passo, segundo o cineasta, foi localizar um agente da Pastoral da Criança, que, em virtude do seu trabalho, deveria conhecer bem os povoa-dos do município. Deste modo, a equipe chegou ao nome de Rosilene Batista (Rosa), professora do Ensino Fundamental, e moradora do Sítio Araçás, comunidade rural de São João do Rio do Peixe. O primeiro contato direto com Rosa, em Araçás, ocorre dian-te das câmeras. Ou seja, o processo de busca e de explicitação do dispositivo para os informantes locais, negociações que constituem uma espécie de grau zero do filme, é inserido na edição final de FP como parte do documentário em si (em outros termos, já estamos no filme, embora desconheçamos, nós e a equipe, seus prováveis rumos). Em cena, Coutinho pormenoriza os detalhes do projeto: “Queremos filmar num lugar-zinho de São João”; “nós queremos ouvir histórias, nós queremos saber de pessoas que falam da vida”.

Nos dias seguintes, a equipe, orientada por Rosa, percorre alguns distritos da região; contudo, as entrevistas não avançam no sentido esperado. Em vez de histórias

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de vida partilhadas e de memórias revolvidas, o grupo se depara com falas políticas que reivindicam alguma ação (a presença da câmera, assim, é compreendida como possibilidade de denúncia). Apesar da legitimidade das reclamações, elas são insu-ficientes para alçar tais sujeitos à condição de personagens; Rosa, por sua vez, não obstante sua destreza na mediação, demonstra pouca versatilidade para se desvin-cular das questões práticas. Deste modo, Coutinho e equipe decidem concentrar as filmagens em Araçás, transformando-o no dispositivo espacial de FP. Trata-se de uma comunidade endógena (a maior parte dos moradores é interligada por laços de pa-rentesco) na qual a família de Rosa reside há mais de um século. Um cenário propício, portanto, à construção de vínculos de intimidade. No entanto, para encontrar algo do mundo rural ainda não soterrado pela cultura urbana ou alterado pela escrita, seria preciso focar num público especial, os idosos, posto que os mais jovens, em ritmo de escolarização (lembremos que Rosa é professora), não necessariamente representam uma continuidade das tradições.

Para usar uma terminologia de Paul Zumthor (1993), Coutinho, em FP, parece interessado em mapear os índices de oralidade (ou vestígios) que teimam em se per-petuar em Araçás, sedimentados na experiência dos mais velhos, malgrado a expan-são de uma cultura letrada que ameaça a continuidade da primeira. São precisamente os idosos do lugar que se convertem nos personagens centrais de FP – um contingen-te de faixa etária próxima à do cineasta, porém portador de outra experiência cultural. Em trabalho anterior (RODRIGUES, 2012a), eu destacara que o privilégio outorgado à oralidade no cinema de Eduardo Coutinho, embora esteja evidente em Cabra Mar-cado para Morrer (1984), encontra sua justa medida a partir de Santo Forte. Mas ele chega a seu ápice nesta produção de 20054. Em outros termos, cabe ressaltar que FP é o filme de Coutinho no qual a oralidade se manifesta com maior vigor, expondo sua expressividade e encadeamentos narrativos próprios. Neste sentido, antes de avançar na leitura do filme, convém refletir um pouco sobre a relação oralidade e escrita. Como entender uma cultura imersa na tradição oral e quais os seus fundamentos comunica-tivos? Por outro lado, em que ela se diferencia das culturas marcadas pela presença da escrita e, sobretudo, da tipografia?

Segundo Barthes e Marty, o ato de escrever (etimologicamente gravar ou fa-zer uma marca) não tem, em sua gênese, uma relação evidente com o oral. Escrever, portanto, não se confunde, necessariamente, com a reprodução gráfica dos sons/fo-nemas; originalmente, é uma prática vinculada à experiência visual do homem e já existente antes de ser estabelecido seu vínculo com a fala (antes de sua fonetização). Posteriormente, esclarecem os autores, o ato de escrever se distancia da experiência visual, atendendo aos ritmos do corpo e da voz, alcançando os fonemas e sons arti-culados pelo homem. Nesse processo, despontam as primeiras pré-escritas, e não um único modelo de codificação, que possuíam funções de registro/fixação do oral, mas

4 Se ponderarmos a situação espectatorial, não raro, a audição parece ser uma faculdade mais solicitada na arte de Coutinho do que a visão; ou é intensificada por uma espécie de enquadramento sonoro – composição que propicia nossa imersão auditiva no decorrer da projeção.

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também acumulavam finalidades ornamentais, mágicas e mnemônicas – registros de base memorialística, que estimulavam a narração e minimizavam o esquecimento (1987, p. 32 a 39). Segundo os autores, a escrita fonetizada nasce das necessidades da economia pública e da administração; portanto, num estreito vínculo com o poder. No entanto, atrelada ou não a tais interesses, esta escrita, em seus primeiros séculos, se encontra subordinada à oralidade (é suporte da fala); ou seja, limita-se a registrar os encadeamentos peculiares à articulação oral, sem promover transformações significa-tivas na comunicação humana ou instaurar novas racionalidades (em outros termos, os registros escritos ostentam as propriedades da fala).

Tal quadro permanece hegemônico até o século XV. Todavia, com a ascen-são da imprensa, ocorre uma reviravolta nesta relação: as propriedades desta nova escrita passam a reordenar a cognição humana e a disciplinar a fala – ou seja, a escrita gradualmente se apodera do falado e disciplina o pensamento (1987, p. 43-47). Tal diagnóstico também é reiterado por autores como Walter Ong (1999) e Paul Zumthor (1993), dentre outros. Contudo, entenderemos melhor as implicações deste processo se compararmos as propriedades que caracterizam a comunicação num grupo imerso na oralidade com aquelas que norteiam o ato comunicativo nas sociedades onde a tipografia é uma prática consolidada.

A escrita (fonetizada e consolidada) é uma comunicação que se dá em ausên-cia, já que supõe uma disjunção espaço-temporal entre emissor e receptor. Na leitura de uma notícia no jornal ou de um livro impresso, o emissor faz do receptor uma es-pécie de enunciador daquilo que se encontra redigido, posto que “o receptor repete em si, como que por sua conta, aquilo que diz o escritor” (BARTHES; MARTY, 1987, p. 46). Inconcebível na tradição oral, tal situação é a essência do regime tipográfico. Em contrapartida, destacamos que a comunicação oral depende do contexto, se estabele-ce num lugar e carece de interlocução – a presença do outro é fundamental, uma vez que ele é sempre instigado, solicitado e a sua resposta é aguardada para que haja uma continuidade do ato comunicativo.

E, diferentemente da escrita, que fixa o conteúdo de uma mensagem num suporte físico (ele é passível de múltiplas interpretações, mas, uma vez publicado, sua fixação é irrevogável), a oralidade solicita sempre sua reinvenção/recriação a cada nar-ração ou lembrança. Na tradição oral, portanto, o intérprete ocupa uma função pri-mordial ao conceder sua voz/memória/corpo (gesto) ao texto, conferindo-lhes novos sentidos, atualizando-os para outros ouvintes. Na verdade, a obra se refaz e se perpe-tua a cada interpretação, sendo igualmente comum a fecundação de uma canção/tema por outros (deduzimos assim que, além da intertextualidade, a existência de di-ferentes versões é traço recorrente neste regime). Mas, se o intérprete é igualmente um criador, é imprescindível para o êxito do jogo que haja uma audiência entregue ao prazer da escuta e da interação (ZUMTHOR, 1993, p. 55-57). Em outros termos, a comunicação oral requer um interlocutor, numa mesma circunstância e espaço, que é também co-autor da mensagem.

Também o exercício da leitura se manifesta de forma diferenciada nas comu-

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nidades onde a oralidade é hegemônica e onde a imprensa se impõe. Até o final da Idade Média, período em que predomina uma cultura manuscrita, o ato de ler implica a pronúncia em voz alta do texto – a palavra fixada possuía estreita conexão com a voz, exigindo ser proferida. Consolidada a era tipográfica, a voz é afastada desta prá-tica – os aspectos visuais do texto a silenciam. A imprensa promove uma reeducação do olhar e disciplina a leitura; além disso, ela institui um estilo de escrita e gramática (redes coercitivas) que, gradualmente, passa a disciplinar a fala. Deste modo, num con-texto de hegemonia tipográfica, qualquer escrita ou fala desviante é vista como erro ou prática iletrada (BARTHES; MARTY, 1987, p. 49-50).

Algumas destas observações nos conectam ao ensaio O Narrador, de Walter Benjamin. Neste texto, Benjamin reconhece que a arte de narrar está em vias de extin-ção. O diagnóstico transparece pesar: o homem moderno encontrar-se-ia privado de uma faculdade que, até então, lhe parecia inalienável – a faculdade de intercambiar experiências e de, em virtude desta partilha, ampliar seu estoque de histórias para comunicar a novos ouvintes (1987, p. 194-198). Tal quadro, admite o autor, tem raízes fincadas num grupo de transformações vigentes nos últimos séculos e que promo-veram uma reconfiguração das sociabilidades: passagem do modelo artesanal para o industrial; transição da vida rural para a urbana; substituição do conto e da fábula, formatos socialmente partilhados e marcados pelo inacabamento (sentidos abertos), pelo romance de leitura reclusa e individualizada; ascensão da imprensa e do modelo informacional, acompanhada de reversão nos laços entre a oralidade e a escrita. Esta transição se notabiliza também pela emergência de novas relações com o tempo – pressionado pelas sirenes das fábricas e pelo ritmo citadino, o homem moderno não dispõe de tempo para a pausa contemplativa e o exercício da escuta (1987, p. 204-205). Sem intervalo para si e para o outro, desaparece o dom de ouvir, se dispersa a comunidade de ouvintes, finda o ciclo da narração oral.

No ensaio, cabe destacar o papel conferido aos anciões enquanto narradores exemplares e voz do saber – baú de experiências, cada ancião é uma enciclopédia viva. Entende-se, portanto, porque a morte de um velho, numa comunidade oral, é conside-rada uma perda irrecuperável. Duas últimas considerações de Benjamin são importan-tes para nossa leitura de FP. Em outra passagem, o alemão sugere a existência de duas categorias arquetípicas de narradores exemplares. Um bom narrador, nos diz ele, seria aquele que viaja muito e recolhe histórias (personificado pela figura do marinheiro/marujo); mas um bom narrador é também aquele que conhece como ninguém seu lugar e suas tradições – caso do camponês sedentário5. De nossa parte, interessa reter o seguinte fato: imersos numa cultura ainda fortemente oral, os personagens de FP são, em sua totalidade, agricultores; ou seja, se vinculam a uma das categorias arquetí-picas definidas pelo filósofo. Todavia, esclarece o autor, o senso prático é característica fundamental de todo bom narrador. Em outros termos, narrar implica também em dar conselhos úteis, em orientar o interlocutor, fornecendo ensinamentos e sugestões

5 Não devemos entender tais arquétipos como polaridades, mas como duas matrizes que se interpenetram para gerar outros narradores.

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para o dia a dia (1987, p. 199-202).

Dispomos agora de referenciais sólidos para pensarmos o caso peculiar de Araçás e seus habitantes: trata-se de uma comunidade rural de claras matrizes orais, ainda resistente à ação disciplinar da escrita e à pressão do relógio; por outro lado, além de narradores natos, percebemos que os idosos do lugar são conselheiros hábeis. No entanto, é preciso nuançar este quadro: cabe lembrar que a escrita não está ausente do cotidiano de Araçás. Alguns dos entrevistados, dois ou três, sabem ler, ainda que conservem vestígios de oralidade em sua fala; e Rosa, de uma geração intermediária, é professora – o que significa que os mais novos estão em processo de alfabetização desde a infância. Por outro lado, durante as entrevistas, observamos em suas residên-cias a presença de aparelhos eletrônicos (som e TV), o que comprova que os saberes e informações que ali circulam também advêm de fontes externas (não são unicamente comunicados de uma geração a outra).

Concluída a digressão, voltemos ao documentário. Inviabilizada a filmagem nas comunidades próximas, Coutinho e equipe decidem concentrar as atividades no povoado de Rosa. Sobre a professora, cabe destacar sua centralidade no projeto: des-de as abordagens iniciais, Rosa se consolida como importante colaboradora e princi-pal mediadora do diretor na região. Em quase todas as sequências, é ela quem segue à frente da equipe, introduzindo-a nas casas e contornando os ruídos decorrentes do encontro entre culturas diferentes – dela partem as perguntas iniciais e, nos momen-tos em que Coutinho tem dificuldades em avançar na conversa, é Rosa quem “traduz” as colocações do cineasta para seus pares. Entretanto, apesar de sua centralidade para o êxito do filme, cabe ponderar também a maestria do diretor.

Coutinho, é fato, encontra-se desarmado para iniciar qualquer contato sem a mediadora. No entanto, refreada sua habilidade com os “nativos”, Coutinho direciona à Rosa sua capacidade agenciadora, estimulando a professora a se transformar em personagem – no caso, uma moderadora exemplar. Trata-se de curiosa passagem que tem início nas tomadas iniciais e que se prolonga no decorrer do filme. Nessa ativi-dade, Coutinho oscila entre duas estratégias: ora solicita da professora informações pertinentes sobre a região e seus moradores (e assim se familiariza com o lugar); ora orienta Rosa na abordagem.

Acompanhemos uma sequência capital do filme (9m46s)6, exemplar da cen-tralidade de Rosa no projeto e da sagacidade do diretor. Coutinho e a professora se encontram à mesa. Posicionado fora do quadro, o cineasta pede que a mediadora desenhe numa cartolina o mapa do povoado e de seus habitantes. Neste exercício, as precisões cartográficas são desnecessárias – importam as informações sobre cada morador, reveladoras de suas personalidades, mas também dos vínculos afetivos entre

6 Sempre que nos referirmos à minutagem/cronometragem do filme neste trabalho usarei a seguinte nomenclatura: “h” para horas, “m” para minutos e “s” para segundos. Exemplo: 1h10m15s.

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Rosa e eles7. Para Oliveira, ao traçar um mapa relacional, Rosa, além de introduzir os futuros entrevistados ao diretor, delimita um caminho para a filmagem – em outros termos, para onde vamos e o que veremos, em FP, está ligado às formas como Rosa se relaciona com este espaço e seus ocupantes (2008, p. 37-38).

Tendo em vista a limitação espacial do artigo, não avançaremos aqui num es-tudo detalhado dos encontros entre Coutinho e os personagens de FP8; ao contrário, optaremos por condensar as conclusões no intuito de apreender a relevância política do filme (no mínimo, ele nos oferece uma espécie de “pedagogia da entrevista”) e de captar os sinais de inovação estética nele evidentes, se comparado com o conjunto anterior da obra do cineasta.

Cada encontro no filme é revelador dos indícios de oralidade existentes na comunidade, ao mesmo tempo em que nos descortina o desafio à prática da entrevis-ta enfrentado por Coutinho, não obstante a longa experiência do diretor. Entre uma conversa e outra não faltam conselhos, palavras de viés utilitário e que expressam a sabedoria que só os anos permitem. Não raro, os entrevistados também confrontam o diretor e devolvem uma pergunta inicial com outra questão nem sempre confortá-vel. Lembremos que estamos no regime oral: a interlocução é necessária, a comunica-ção solicita interação entre as partes e os protocolos da vida urbana não demarcam estranhamentos, formalidades. Pode até haver desconfiança com o cineasta oriundo da cidade, mas não receio de lhe dirigir uma pergunta. Tampouco predomina aqui o cumprimento das regras de encenação, como o esquecimento da equipe. Em FP, os personagens burlam protocolos, se dirigem a quem está fora do quadro, intervêm ati-vamente na composição e demovem o cineasta do lugar de entrevistador, solicitando dele maior exposição.

Vejamos o segundo encontro com Leocádio (1h36m). Apesar da situação des-confortável (ambos estão de pé e expostos ao sol) e da curta duração, é dos mais notá-veis em FP. Nele, acompanhamos uma repentina troca de papéis, quando o sertanejo passa a entrevistar o diretor. Suas perguntas versam sobre temas herméticos e deixam Coutinho em posição delicada. “O senhor crê em Deus?”, dispara. O rosto inclinado, o semblante sóbrio e os braços cruzados nos sugerem que, para ele, tais questões exi-gem seriedade. “Eu... É complicado isso, né?”, diz o cineasta. “Crê na natureza, né?”, in-siste Leocádio, para em seguida complementar: “Quem crê na natureza, crê em Deus”. O comentário soa como um esforço do personagem para contemporizar a hesitação do diretor. Leocádio faz nova investida: “Ou o senhor acha que crer em Deus é uma ilusão?” Encurralado, Coutinho tenta contornar a questão: “Não, não acho. [...] É difícil saber essas coisas”. O sertanejo persiste: “Existirá Deus no céu?” Coutinho novamente pondera: “Acho que seria bom, mas não sei, queria saber”.

7 A rigor, o filme que Coutinho ambicionava realizar só tem início com o delineamento do mapa – antes, só dispúnhamos de tentativas escorregadias. É como se, ao traçar o mapa, Rosa assumisse o papel das equipes de pesquisa que, em obras anteriores, auxiliaram o cineasta.8 Aos interessados, sugiro a leitura do capítulo 3 da minha tese de doutorado (RODRIGUES, 2012b).

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A inversão é das mais surpreendentes na cinematografia de Coutinho, supe-rando, a meu ver, o equilíbrio de forças conquistado pela personagem Thereza em Santo Forte. Na verdade, cabe aprofundar aqui a comparação entre esta personagem, também idosa, e os sertanejos de FP. Em Santo Forte, Thereza redireciona a entrevista ao sugerir novos temas e interrompe quando julga necessário (de algum modo, torna o encontro mais recíproco). No entanto, alguns personagens de FP me parecem equa-lizar ainda mais esta relação de forças: eles não interrompem ou mudam o sentido da conversa, mas, ao aceitar a entrevista, também eles passam a entrevistar Coutinho e a desafiá-lo em cena. Em outras palavras, Coutinho, em FP, muitas vezes é tratado como um homem comum, enquanto Thereza ainda o trata com formalidade, reconhecendo distinções. Talvez porque, embora Thereza seja humilde como os sertanejos, advém de uma cultura citadina, onde a escrita é hegemônica e as regras sociais impõem dis-tâncias.

A participação de Chico Moisés em FP ratifica nossas observações (1h18m18s). Suas colocações várias vezes desconcertam Coutinho, obrigando o cineasta a se repo-sicionar na entrevista; não raro, a conversa ganha ares de desafio, com Chico eventual-mente encurralando o cineasta. Ao provocar o diretor e eventualmente questioná-lo, Chico subverte a relação de controle/autoridade implícita na situação de entrevista. Em muitos trechos, sentimos que é o cineasta quem se encontra enredado nas arti-manhas do entrevistado. Tal situação é comprovada pelo fato de Chico sinalizar o fim da conversa, despachando o cineasta, ou, eventualmente, debochar das investidas de Coutinho com piscadelas suspeitas e frases que revelam mais desdém do que apreço.

No segundo encontro com Chico, o sertanejo, em gesto de perspicácia, se desloca para alterar o enquadramento da câmera, o que provoca surpresa em Cou-tinho. Tal desvio solicita melhor apreciação: se Leocádio, na conversa final, inverte as posições na entrevista e passa a questionar o diretor, desta vez Chico interfere na com-posição do quadro, obrigando o cinegrafista/equipe a acompanhá-lo e a rever suas pretensões estilísticas. Inadmissíveis nos filmes que adotam mise-en-scène rigorosa, cremos que ousadias deste porte dificilmente poderiam ser vislumbradas nos docu-mentários urbanos de Coutinho. Não obstante o deslocamento, Chico volta a alfinetar o diretor: “Mas, bem, será possível que peleja pra me pegar e nunca me pega e sempre eu vou continuando, sempre na mesma linha?!” “Por que será?”, questiona o cineasta, aguçando o sertanejo. Chico não recua: “Eu sei que o sabido é o senhor”. “Por quê?”, Coutinho o instiga mais uma vez. “Ora... se eu fosse sabido, eu que andava filmando e procurando as pessoas, né? Errei?” “Não”. Ante a lucidez do entrevistado, o cineasta é obrigado a transigir. Chico tem consciência de sua sagacidade, mas reconhece que inteligência maior (e poder) reside no ato de filmar e de inquirir o “outro”, gesto que, malgrado a generosidade intencional, é sempre desigual e implica certa apropriação da imagem/subjetividade da alteridade.

Analisados em conjunto, os encontros nos permitem identificar outra parti-cularidade comum às comunidades onde a oralidade é hegemônica. Se FP, com seus enquadramentos fechados, nos proporciona um estudo da fisionomia sertaneja, é preciso ressaltar que tal estilística destaca igualmente a gestualidade inerente à prá-

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tica comunicativa dos entrevistados. Em outros termos, vislumbramos corpos tão en-volvidos no ato de narrar quanto as palavras que deles emanam. Diferentemente de outros títulos do diretor, onde os lábios parecem se manifestar com mais ênfase do que o corpo, neste filme testemunhamos uma equivalência comunicativa. Nesse reen-contro com o gesto, descobrimos algo que nos parecia extraviado pela escrita, bem como aprendemos mais sobre a relação entre estes indivíduos e a comunidade a qual pertencem. Afinal, como observa Jean-Loup Rivière, o gesto, tal como a memória, se encontra na articulação entre o social e o individual: “um gesto é sempre o do outro, do antepassado” (1987, p. 15-16).

Em nossa avaliação, os procedimentos postos em prática em FP nos permitem

vislumbrar nesta produção traços de um cinema etnográfico, mesmo num documen-tário desprovido de pretensões científicas (cuja realização não emprega léxico espe-cializado ou decorre de orientação acadêmica). Ao apreender a visão de mundo deste “outro” por meio de sua fala e gestualidade intrínsecas, documentados em seu lócus geográfico e cultural, FP nos convida a adentrar nas especificidades deste universo – sua arquitetura, mobiliário, vestuário, os vínculos familiares, a religiosidade candente (espécie de catolicismo rústico, popular). Ou seja, torna possível ao espectador urba-no, forjado numa cultura escrita, se defrontar com este cotidiano singular, regido pela oralidade. Mapeados com sutileza pelo cineasta, tais vestígios compõem um painel da oralidade ainda vigorosa em Araçás, mas que já se encontra minimizado na fala de Rosa, figura de geração intermediária, e, certamente, se revelará mais rarefeito nas crianças escolarizadas.

É preciso, no entanto, enumerar outras virtudes de FP. Se por um lado os per-sonagens de Araçás se encontram expostos neste jogo (são filmados sem aviso-pré-vio), também Coutinho se expõe em cena ao interpelar sujeitos portadores de uma cultura e trajetória que lhe são distantes. A abordagem, consequentemente, tem o frescor do ineditismo, mas também a tensão inicial peculiar no contato entre desco-nhecidos, com suas eventuais dificuldades de comunicação. Ao compartilhar estes “ruídos” com o espectador, testemunhamos um exercício de transparência por vezes omitido até nos filmes propriamente etnográficos. Estabelecendo uma ponte entre os dois mundos em contato (o urbano e o rural), emerge a figura de Rosa. A nosso ver, a participação ativa de alguém da comunidade no processo de filmagem é um mérito que aproxima FP do cinema de cunho etnográfico.

As virtudes do filme não cessam aqui. Ante a dificuldade em entender parte do que era dito pelos personagens no documentário, Coutinho foi consultado sobre a possibilidade de inclusão de legendas no corte final. No entanto, ao recusar qualquer tradução, optando por preservar a singularidade dos depoimentos, creio que o cineas-ta demonstra feeling etnográfico. Afinal, a alegada impossibilidade de compreensão de parte do que é dito constitui, na verdade, um dos méritos de FP, cuja proposta não é apresentar um painel didático de uma comunidade sertaneja, mas registrar a ful-gurância de sua oralidade, incluindo o estranhamento que ela proporciona para um interlocutor pouco familiarizado com esta matriz cultural.

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Excluída a parcela de incompreensão de alguns depoimentos, muitos deles, se observados com atenção, nos revelam os dilemas daquela comunidade e da vida no semi-árido: velhice, abandono, resistência, honra, religiosidade, relações de gênero, solidariedade, laços de vizinhança e redes de sociabilidade, solidão e o medo da morte são temas recorrentes nas conversas registradas em FP. Tímidas inicialmente, as falas dos personagens se adensam na interação com o cineasta. E, ao nos depararmos com suas histórias de vida, seus dilemas e recordações, experimentamos a ambígua sen-sação de nos comovermos com a fragilidade deste mundo, mas também com a sua capacidade de revigoramento.

Voltemos ao filme. Concluídas as despedidas, chegamos à estranha sequência final de FP (1h45m23s) que carece de atenção. De início, acompanhamos uma refeição no interior da casa de Rosa – na cena, diferentes gerações da família se encontram à mesa e no chão. A câmera acompanha tudo à meia distância, fixa e numa posição elevada; posteriormente, aproxima o quadro da mesa. Após longa observação e novo corte, retorna ao enquadramento inicial, aberto. O recinto, agora, está vazio; uma úni-ca pessoa, a mãe de Rosa, cremos, atravessa o campo e dele se retira. O plano da sala desabitada permanece na tela por uns 10 segundos até a entrada dos créditos. Como entender tal desfecho? É possível vê-lo como uma homenagem à Rosa e sua família (uma espécie de despedida deste convívio), cuja contribuição para o filme é ímpar. Mas outros sentidos podem ser escavados.

À mesa, estão reunidos homens e mulheres, adultos e crianças, mas não os idosos, que constituem o contingente privilegiado pelo filme. A ausência dos velhos e a presença ostensiva dos mais jovens nos convidaria a pensar no futuro de Araçás e das práticas ali vigentes? Os mais novos representam uma continuidade ou, uma vez que se encontram em ritmo de escolarização, anunciam um novo tempo? Deste modo, a sala vazia ao término da sequência sinalizaria a dúvida quanto ao destino daquele lugar? Poderíamos intuir também, a partir desta questão, o sentido do título do filme? Talvez. Assim, os idosos personificariam o Fim de uma jornada e os jovens sinalizariam um novo Princípio, um recomeço.

Sem dúvida, em FP, é evidente o sentimento de vazio e de finitude – senti-mento que, não raro, aflora nas perguntas e respostas. Uma espécie de sensação imi-nente e, por vezes, desconfortável. Neste documentário, transitam personagens repre-sentativos de um universo muitas vezes esquecido pelo poder político e pelo frenesi das grandes cidades. Trata-se de uma realidade em vias de desaparecimento: os mais novos quase sempre se foram, não há garantias de renovação, nada aponta para a continuidade. Enfim, em FP, contemplamos pelas lentes do cineasta um sertão denso, simultaneamente poético e inóspito, remoto e familiar. Talvez o sertão seja mesmo este mundo enigmático preconizado pelo título do filme: desfecho e origem de tudo,

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9 A analogia implícita no título também é adequada para pensarmos a trajetória de Coutinho e seu retorno à Paraíba, estado que abrigara a Liga Camponesa de Sapé, cujo líder João Pedro Teixeira, assassinado em 1962, inspirou a primeira versão de Cabra Marcado para Morrer. Todavia, somente duas décadas depois, o cineasta retornaria ao Nordeste para concluir a obra, agora um documentário. Cremos que a analogia fim e princípio pode exemplificar a relação de Coutinho com este universo, ilustrando sua experiência de um novo retorno, em 2005.

sinônimo de morte e renascimento9.

Mas também identifico outra possível leitura para o título. FP me parece sina-lizar um claro desejo, por parte do diretor, de reinventar sua trajetória artística. E, ainda que este documentário se baseie no registro de encontros, nele vislumbramos inova-ções consideráveis se o compararmos com as produções anteriores do cineasta. O que me autoriza a recolocar a questão: o seu título não ilustraria, pois, este processo de transição? O Fim de um modelo supostamente exaurido (e que atingira seu ápice nos trabalhos antecedentes) e o Princípio de algo novo? Eis o porquê da sala vazia ao tér-mino, sinal de um impasse estético, interrogação sobre um redirecionamento artístico ainda incerto. Se considerarmos que Jogo de Cena é a aposta seguinte de Coutinho, creio que tal hipótese se fortalece.

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Referências

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163

EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

O CINEMA DE EDUARDO COUTINHO COMO NARRATIVA DE CONSCIENTIZAÇÃO SOCIAL: uma análise de Boca de Lixo

1 INTRODUÇÃO

O cinema está entre os meios de comunicação considerados mais acessíveis quando pensado a partir da comunicação. Isso porque a combinação de textos audiovisuais propicia melhor interpreta-ção, levando em conta que as produções audiovisuais não exigem

a decodificação da língua escrita, quando não legendadas. De acordo com Martín-Bar-bero (2003), o cinema nasceu “popular” justamente porque é acessível aos públicos iletrados. O autor sustenta que o cinema é um mediador vital na constituição da expe-riência popular urbana, pois além de seu conteúdo e do esquematismo de sua forma, ele oferece uma sequência de imagens que mais do que argumentos, entrega gestos, rostos, modos de falar e caminhar, paisagens e cores. Combinando esses elementos, as obras cinematográficas abordam diversas situações cotidianas vivenciadas, inclusive textos sobre grupos considerados excluídos socialmente, foco deste artigo.

Assim, este trabalho propõe pensar o cinema como suporte de aprendizado, ou seja, como um texto audiovisual estruturado que pode apresentar ou ampliar olha-res sobre um determinado assunto. Desta forma, pretende contribuir para os estudos

Thífani Postali1

1 Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Professora da Uniso. Membro do Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (NAMI). E-mail: [email protected].

GRUPO DE PESQUISAS EM NARRATIVAS MIDIÁTICAS (NAMI)

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sobre cinema e aprendizado, propostos por Akhras (2010). Para a construção do conteúdo, nos apoiamos em autores que contribuem

para as reflexões acerca das produções audiovisuais, tais como Martín-Barbero (2003), Joly (1996), Wolff (1982) e Xavier (1984), além de investigações sobre o processo de aprendizado através do cinema, com base nas considerações de Akhras (2010). Como metodologia, o trabalho utilizou referencial bibliográfico e análise do filme Boca de Lixo (1992), a partir da proposta sobre processos de aprendizado no cinema (AKHRAS, 2010).

O que nos levou a escolher o filme Boca de Lixo, de Eduardo Coutinho, foi a for-ma como o diretor dá ênfase aos discursos dos personagens selecionados que, pouco a pouco, permitem que o espectador adentre em parte de suas histórias e vivências no aterro sanitário de São Gonçalo, RJ. Como ressalta Lins, o que chama a atenção nas produções de Coutinho é a construção de “um cinema que dá aos personagens vonta-de de falar mais, de dizer mais alguma coisa” (2004, p. 181). Assim, é possível encontrar nas narrativas selecionadas pelo diretor, sequências de situações que podem provocar o aprendizado a respeito das condições sociais em que vivem as pessoas ligadas à se-paração, comercialização e consumo do lixo.

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CINEMA

São várias as possibilidades de análise das produções audiovisuais, seja a partir do refletir sobre a construção do filme, de seu resultado ou, ain-da, sobre a recepção que envolve o conteúdo assimilado pelos recep-tores. Aqui, propomos estudá-las à luz de teorias do aprendizado com

base no artigo Uma perspectiva teórica para o documentário como cinema de aprendiza-do, no qual Akhras (2010) propõe explorar esses estudos para a análise de produções e aplicação nas linguagens e estéticas cinematográficas que tenham como intenção gerar aprendizado.

Para tanto, o autor produz o conteúdo utilizando as teorias construtivistas, que definem que o aprendizado ocorre quando os indivíduos se tornam preparados para desenvolver os conceitos previamente adquiridos, assimilando-os em novas si-tuações que possibilitam a ligação entre eles. Todavia, antes de refletir sobre o cinema como suporte de aprendizado, vale ressaltar alguns pensamentos que julgamos perti-nentes acerca das produções audiovisuais.

De acordo com Joly (1996, p. 39), uma produção cinematográfica deve ser considerada representação, ou seja, “[...] não é a coisa representada, se parece com ela, evoca, quer dizer outra coisa que não ela própria, utilizando o processo da seme-lhança”. Falando ainda sobre o gênero documentário, gênero no qual encontramos grande quantidade de produções que propõe pensar o social, é possível refletir so-bre o cinema a partir de Xavier (1984, p. 31), que reforça que “[...] em todos os níveis, a palavra de ordem é ‘parecer verdadeiro’; montar um sistema de representação que procura anular a sua presença como trabalho de representação”. Sabemos que existem diferentes linguagens e técnicas de produção, todavia, entendemos que Xavier indica

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

que a ideia é que o receptor mergulhe na produção, de modo que se esqueça de que é uma representação.

Sobre a construção do filme, Joly (1996) apresenta que o conteúdo depen-de da interpretação que o realizador tem do social, suas visões sobre o mundo e os seus problemas, ou seja, uma representação que pode conter conteúdos ideológicos, elaborados a partir do repertório de quem a produziu. Deste modo, torna-se possí-vel pensar que as produções cinematográficas carregam conteúdos das referências de seus idealizadores, portanto, talvez, a maneira mais adequada para se entender um produto audiovisual seja buscar conhecer primeiro o seu idealizador. Cabe ressal-tar que a autora também destaca que o próprio idealizador não tem noção absoluta sobre todo o conteúdo que produziu, pois quem está recebendo o conteúdo pode interpretar a partir de seu repertório. Sobre esse aspecto, Wolff (1982) sustenta que as mensagens são lidas de acordo com os códigos culturais do receptor, pois “qualquer leitura de qualquer produto cultural é um ato de interpretação” (p. 112). Ela apoia que a maneira pela qual se traduz ou interpreta determinada obra é sempre apurada pela própria perspectiva e posição na ideologia de cada indivíduo ou grupo. Sendo assim, a autora ressalta que não há nada de absoluto nos significados codificados.

Wolff também cita Stuart Hall, que lembra que a decodificação ocorre de di-ferentes maneiras, dependendo do público-receptor. Portanto, Hall apresenta outra questão que vai ao encontro do pensar o cinema como suporte de aprendizado. Para ele, “a natureza polissêmica do discurso ‘televisivo’ significa ser impossível a atribuição de um significado único a uma determinada mensagem ou evento, embora um ‘signi-ficado ou leitura preferencial’ possa ser sugerido [...]” (apud WOLFF, 1982, p. 122).

A partir dessas ideias, importa pensar o cinema de Eduardo Coutinho como

possível contribuição para o aprendizado, ou seja, como um texto audiovisual que possibilita apresentar ou ampliar olhares sobre um determinado assunto, colaborando assim, para a construção de significados e, consequentemente, aprendizado.

3 EDUARDO COUTINHO E BOCA DE LIXO

O cinema de Eduardo Coutinho é contundente, pois procura dar voz a diversas pessoas e grupos sociais que, muitas vezes, são invisíveis aos meios de comunicação e aos diversos setores da sociedade. De acordo com Lins (2004), no lugar de se ocupar com os considerados

grandes acontecimentos e grandes figuras da história, o documentarista se dispõe a identificar e apresentar acontecimentos e pessoas que são ocultas pela história oficial e pela mídia. Portanto, o cinema de Coutinho é um palco de assuntos que abordam as questões sociais e que, de certa forma, entrega ao espectador conteúdos isolados dos grandes meios, propiciando a ele uma forma de compreender o outro lado ou um lado oculto, provocando assim, alteridade.

É possível observar alteridade nas produções de Coutinho, pois como lembra Lins (2004), uma das estratégias do diretor é a concentração no presente para extrair

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todas as possibilidades, o que faz com que ele procure se livrar das ideias preconcebi-das sobre o assunto tratado. Como esclarece o próprio diretor, “[...] o essencial é a ten-tativa de se colocar no lugar do outro sem julgar, de entender as razões do outro sem lhe dar razão. Cada pessoa quer ser ouvida na sua singularidade. Eu tento abrir dentro de mim um vazio total, sabe?” (COUTINHO, 2000, p. 65).

É a partir desse aspecto que suas produções possibilitam conhecer o diferen-te, trabalhando uma “mistura de personagens, falas, sons ambientes, imagens, expres-sões, jamais significações prontas fornecidas por uma voz off” (LINS, 2004, p. 184).

Em Boca de Lixo, filmagem realizada no aterro sanitário de são Gonçalo, RJ, em 1992, o diretor busca trabalhar aquilo que parece estar distante da “vida civilizada”, ainda que parte do ambiente urbano. Ele procura apresentar a periferia da periferia, o local para onde vão todos os resíduos descartados pela sociedade industrial, inclusive, as pessoas. Todavia, nesse local também há organização de indivíduos que procuram viver com o mínimo de dignidade, como os depoimentos de alguns que iniciam o dis-curso defendendo suas condições: “Estou trabalhando e não roubando”.

O cinema de Eduardo Coutinho ganha visibilidade enquanto produção que não procura apresentar alguma estrutura de causa-efeito ou problema-solução, as mais trabalhadas pela indústria hollywoodiana e muitas outras produções cinemato-gráficas. De acordo com Lins, “a aproximação cineasta/personagens se dá não a partir do princípio que a vida deles é um horror, mas a partir de um olhar terno e, o que é fundamental, sem nenhuma piedade, que quer ver como eles se viram no dia a dia, seja onde for”. (2004, p. 186). A autora ainda ressalta:

As realidades abordadas são geralmente duríssimas, mas as imagens encon-tram pouco a pouco um tom que deixa essa dureza em segundo plano. O interesse passa a ser o cotidiano: as dificuldades, as pequenas alegrias, os medos, os momentos de descanso, os amores, os encontros, os amigos, a educação e a preocupação com os filhos (LINS, 2004, p. 186).

Assim, Boca de Lixo nos apresenta situações que podem provocar aprendiza-dos sobre problemas e condições sociais. Apesar de o diretor explorar todas as pos-sibilidades presentes durante as filmagens, a edição de seus filmes pode possuir cer-ta estratégia na construção da narrativa cinematográfica que, mesmo sem intenção didática acerca do processo de aprendizado, é construída de forma organizada para apresentar as situações.

4 POSSÍVEIS PROCESSOS DE APRENDIZADO EM BOCA DE LIXO

Como já levantamos, mesmo que os estudos sobre textos audiovisuais apresentem que as produções não possuem interpretações seme-lhantes entre os indivíduos, acreditamos que seja possível construir um esquema que contribua para uma assimilação próxima entre os

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

receptores, como propõe Akhras (2010). Posto assim, um aspecto central para a cria-ção de um conteúdo que provoque o aprendizado é “determinar como uma sequência de situações pode ser elaborada para que elementos de situações anteriores possam se conectar com elementos de situações posteriores” (AKHRAS, 2010, p. 109). Para que isso ocorra, o autor apresenta que o aprendizado envolve processos tais como cons-trução, autorregulação e cumulação.

No processo construtivo, o indivíduo deverá transformar as informações ad-quiridas em um conteúdo assimilado. Para que isso ocorra, ele deverá ligar, a partir de um processo adaptativo, os novos conceitos adquiridos através de “processos de combinação, elaboração e integração” (AKHRAS, 2010).

O processo de autorregulação trata-se de uma conscientização do indivíduo imerso no processo de aprendizado. “À medida que os estudantes tentam aprender em situações, eles têm que tomar decisões sobre o que fazer para atingir os seus ob-jetivos, ou mesmo para ajudar a definir esses objetivos” (AKHRAS, 2010, p. 111). Assim, o processo de autorregulação envolve situações que são analisadas e utilizadas para conduzir a novas interpretações, dando sentido a novas situações.

Já o processo cumulativo tem como aspecto central a repetição, que deve ocorrer em diferentes contextos e maneiras de se abordar um mesmo assunto (SHUELL, 1992 apud AKHRAS, 2010). Akhras (2010) ressalta que as ideias devem ser revistas por diversas vezes, já que a compreensão adquirida poderá alterar todo o significado cons-truído previamente.

Analisar todo o filme utilizando essas teorias seria impossível neste trabalho, portanto, a seguir, aplicaremos os processos em algumas situações que apresentam o uso que as pessoas fazem dos alimentos despejados no aterro sanitário e a ideia de trabalho.

Com relação ao uso e destino dos alimentos encontrados no lixo e a ideia do trabalho, pode ocorrer processo construtivo logo no início do filme, a partir das seguintes situações: (1) imagens do lixo, porcos, cachorros, cavalos e aves em meio ao lixo; (2) imagem de pessoas colhendo alimentos; (3) depoimento de uma mulher dizendo que trabalhar no lixão é melhor do que muito trabalho, como por exemplo, trabalhar em “casa de família” e que se o lixão acabar, muita gente vai morrer de fome.

Nas situações de 1 a 3 pode ocorrer um processo construtivo da ideia de que as pessoas, apesar das condições de vida, têm no lixo o seu trabalho. Todavia, não dei-xa bem claro se elas se alimentam do lixo que separam.

O processo autorregulativo também pode ocorrer logo no início do filme, no momento em que uma mulher revela sua opinião com relação às pessoas que a cer-cam (4) “muita gente trabalha aqui porque é relaxado. [...]. Tem uma porrada de mulher e de homem trabalhando aqui porque aqui é fácil, cai batata, cai de tudo para se co-mer. Muitos não vão porque não quer trabalhar”.

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A situação 4 contribui para que o receptor tenha novas interpretações sobre a ideia do lixo como trabalho, pode levá-lo a perceber o lixão mais como fonte direta de alimentação de pessoas que não estão dispostas a trabalhar, discurso mais conivente com o senso comum. Aqui também ocorre um reforço com relação ao aproveitamento do lixo para a alimentação não só dos animais, mas das pessoas que ali estão, que é retomado logo em seguida na situação (5) em que um jovem revela que a comida que sua mãe criou os dez irmãos saiu do lixo. Nesse momento, outros jovens intervêm no discurso, dizendo não ser verdade. Ele ri, frisando aos demais que eles mesmos colhem o que comem. Até o momento, não há imagens de pessoas se alimentando do lixão ou adultos afirmando diretamente o fato, mas há o início também do processo construti-vo da ideia de que o lixão é a fonte principal de alimento.

Em seguida, ocorre a situação (6) em que uma mulher aparece trabalhando no lixo. Nela o discurso muda e a narrativa apresenta diretamente o lixo como traba-lho. Enquanto Coutinho pergunta sobre quantidade de materiais coletados, valor ven-dido etc., a mulher separa materiais recicláveis e carrega o peso explicando ao diretor como negocia com compradores, quanto vale o material, quanto é possível arrecadar por semana entre outras informações. Ou seja, o contexto revela uma pessoa que tem total discernimento e controle administrativo sobre o que faz. Nessa situação, ocorre novamente o processo autorregulativo, ou seja, uma nova interpretação não só da utilização do lixo como trabalho, mas também das pessoas que ali estão.

Logo após, situação (7) em que surgem imagens de pessoas trabalhando na

seleção e coleta de materiais recicláveis; (8) depoimento de outra mulher dizendo que trabalhar no lixo não é bom, mas que precisa sustentar a ela e ao filho; imagem (9) de outra mulher. Lúcia aparece no lixão e, na sequência, em sua casa, a primeira apresen-tada no filme. Uma casa aparentemente limpa e arrumada. Lúcia diz ser duas pessoas: a que trabalha no lixo, que grita e se insere no contexto, e a mãe, que cuida da casa, das duas filhas e de “outra que cria”. O Marido de Lúcia (10) é coletor de lixo e eles se encontram no aterro. Diz que Lúcia trabalha no lixão para aproveitar as coisas e para pegar comida para o porquinho que eles têm. Coutinho questiona se eles comeriam o porco e ela revela que não, que “o bicho é criado com carinho”. Outra tomada (11) apre-senta um mecânico desempregado; outra, ainda, (12) o barbudo, um senhor que diz ter trabalhado em diversos locais do Brasil, e apresenta a sua filosofia “naturalista” de vida, ao dizer que “acredita muito na natureza, que Deus é natureza”. Barbudo mostra os objetos reaproveitados do lixo em sua casa e acrescenta que lixo é o final de tudo, final da limpeza, mas que também continua, referindo-se ao uso que faz dele.

Nas situações de 7 a 12 ocorre o processo de cumulação, que tem como as-pecto central a repetição. Na ocasião, o filme apresenta de diversas formas a apropria-ção do lixo como forma trabalho, inclusive, separando os locais: o lixão, local de traba-lho e a casa das pessoas. O diretor também aproxima o receptor da vida das pessoas, apresentando os nomes, seus sentimentos, histórias, objetos, famílias entre outras si-tuações de proximidade entre receptor e personagem.

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Outras situações também podem provocar o processo cumulativo, como o uso do lixo para alimentação. O diretor finalmente apresenta uma situação (13) em que uma senhora está se alimentando enquanto separa o lixo. Ela grita para a câmera “pode filmar, eu não tenho vergonha”, enquanto a outra esconde o rosto com a camise-ta; imagem (14) de um mecânico desempregado que durante a entrevista come algo do lixo. Em seguida, (15) imagens como as do início do filme: caminhão chega com os restos de alimentos e as pessoas gritam, separando aquilo que pode ser reaproveitado. Mas agora, já familiarizadas com as câmeras de Coutinho, alimentam-se ali mesmo. Nas sequências de 13 a 15, ocorre a cumulação da importância do lixo como principal fonte de alimentação dessas pessoas.

A explicação da demora dessa revelação de forma direta pode ocorrer a partir

do depoimento de Jurema (16), uma mulher jovem, de boa aparência e que reluta para falar com Coutinho. Enquanto está trabalhando no lixão, ela chama a atenção do diretor, dizendo que “eles” colocam no jornal que as pessoas se alimentam do lixo, pas-sando uma ideia errada sobre elas. Frisa que a maioria das pessoas separam alimentos porque possuem porcos em suas casas. Todavia, Coutinho vai até a casa de Jurema e, ao se aproximar de seus sete filhos, marido e mãe, consegue dialogar com a mulher de forma mais aberta, extraindo dela a confissão de que se alimentam do lixo. A situação 16 dá margem para algumas respostas de indagações levantadas ao longo do filme. O discurso repetitivo de que o alimento é destinado aos animais pode revelar que existe um acordo entre essas pessoas que, talvez, assediadas pela imprensa que apresenta suas condições precárias de vida, mas não consegue contribuir com mudanças, prefe-rem esconder o fato, referindo-se ao lixão apenas como fonte de trabalho.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar o filme Boca de Lixo nos permitiu perceber a possibilidade de utilizar as teorias construtivistas do aprendizado para a análise e produção de filmes que tenham como intenção pensar o social. Pu-demos observar que o filme apresenta os processos de construção,

autorregulação e cumulação, mesmo que Eduardo Coutinho não tenha tido a inten-ção de aplicar essas teorias na elaboração do filme.

Entretanto, quando separamos algumas passagens e as analisamos, é possível perceber a intenção do diretor em construir uma sequência de situações que vão, aos poucos, revelando o contexto local sem a pretensão, como apresentamos no início deste trabalho, de expor soluções ou justificar o motivo de aquelas pessoas estarem ali (causa-efeito, problema-solução). Simplesmente Coutinho se ocupa em deixar com que o outro se revele, em seu tempo, mostrando discursos que se convergem em mui-tos casos, mas que também se divergem. Isso faz com que o receptor tenha material para refletir sobre o conteúdo apresentado, pois não é um discurso que induz ao en-tendimento sem reflexão – principal crítica sobre a indústria cultural.

Outro ponto a ser levantando é que, talvez, seja possível extrair de Boca de Lixo algumas posições do autor, mesmo que ele não tenha a intenção de mostrá-las.

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Quando analisamos os processos cumulativos, conseguimos perceber qual é a maior quantidade de situações apresentadas que favorecem uma ideia. No caso, é possível perceber que Coutinho trabalha mais a repetição de que as pessoas que se apropriam do lixo estão mais para a questão do trabalho do que da alimentação sem a intenção da primeira, mesmo que, ao final, revele que a maioria se alimenta do lixo. Como apre-senta Joly (1996, p 44) “[...] o próprio autor não domina toda a significação da imagem que produz”, sendo que,

[...] a matéria-prima para os filmes é extraída de um real socializado, inves-tida de conteúdo ideológico que o filme integra assumindo-o ou contra-dizendo-o [...] o realizador registra, no discurso que produziu a partir da representação que fez do real, sua visão de mundo, sua interpretação das questões retratadas em sua obra, enfim, sua ideologia, sua e/ou dos grupos sociais aos quais faz parte e/ou representa (JOLY, 1996, p. 39).

Posto assim, concordamos que a excelência nas obras de Eduardo Coutinho

está na pluralidade dos discursos e no seu posicionamento perante o outro. Como o diretor revela,

[...] o fundamental é o seguinte: não pode ser nem de baixo para cima nem de cima para baixo. O grande problema é a relação que você tem com o outro na filmagem. A primeira coisa é estabelecer que somos diferentes [...] só a partir de uma diferença clara é que você consegue uma igualdade utó-pica e provisória nas entrevistas. Quando me dizem: as pessoas falam para você. Sim, falam, e eu acho que é por isso: porque sou o curioso que vem de fora, de outro mundo e que aceita, não julga. A primeira coisa, a pessoa não quer ser julgada. A pessoa fala, e se você, como cineasta, diz: essa pessoa é bacana porque ela é típica de um comportamento que pela sociologia... aí acabou [...] (COUTINHO, 2000, p. 65).

Deste modo, entendemos que Coutinho consegue cumprir com sua proposta ao deixar que o entrevistado se mostre, fazendo com que sua obra se torne uma ponte entre o grupo retratado e o restante da sociedade, provocando, em muitos casos, alte-ridade. Todavia, é possível também observar o seu recorte, sua posição perante o todo, a partir das situações que escolheu apresentar aos receptores.

Em suma, este trabalho nos fez pensar sobre a importância de utilizar conteú-dos capazes de analisar os filmes que têm como objetivo pensar o social e contribuir para a reflexão acerca dessas produções. Sabemos que as obras cinematográficas con-sideradas artes não devem ter a obrigação de produzir dessa forma, todavia, aquelas que têm a finalidade de provocar mudanças significativas quanto às questões sociais, podem utilizar teorias de aprendizado para que se aproximem de um cinema que bus-que transformações de forma mais efetiva. No caso do cinema de Eduardo Coutinho, acreditamos que não há produção a partir das teorias, mas conseguimos identificar em Boca de Lixo estruturas que se aproximam delas e que, provavelmente, colabora-ram de forma indireta para a excelência de sua obra.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

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Filmografia

BOCA de Lixo. Direção de Eduardo Couti-nho. Rio Filmes, 1992. DVD (49 min): NTSC, color.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

AS CANÇÕES X JOGO DE CENA: análise comparativa da composição imagética dos documentários

1 INTRODUÇÃO

A grande première do cinema, oficialmente, ocorreu com a exibição do filme dos irmãos franceses Louis e Auguste Lumière: L´arrivée d´un train à la Ciotat. A estreia foi em um salão do Grand Café, em Paris, em 28 de dezembro de 1895, e causou alvoroço e espanto entre os

presentes pelo forte efeito de realidade provocado no público. Tratava-se de um curto filme, que registrou a ação em si, como o próprio título já declara. Por esse ângulo, po-demos dizer que o cinema já teria nascido documental: pelo registro de um fato não encenado.

Antes daquela ocasião, porém, o cinema surgiu como espetáculo ambulante em feiras de novidades, causando curiosidade. Afinal, era possível ver as imagens em

1 Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Possui especialização em Jornalismo cultural na Contemporaneidade pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA); e MBA em Marketing Estratégico e Comunicação pela Universidade Gama Filho (UGF). É graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo e em Rádio e TV (UFMA); e em Letras: Português/Inglês pela Universidade Ceuma. E-mail: [email protected] Discente do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão (PGCult/UFMA). Fotógrafa, possui especialização em Artes Visuais: Cultura e Criação pelo Senac. Cineasta formada em Comunicação Social: Cinema, pela Universidade Federal Fluminese (UFF). Estudou Imagem na École Nationale Supérieure Louis Lumière (Paris). E-mail: [email protected].

Diogo Azoubel1 Maria Thereza Gomes de Figueiredo Soares2

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movimento – característica fundamental dessa arte. Ali, ele dividia o espaço com atra-ções tradicionais de circo ou de teatro: mulheres barbadas, acrobatas e animais ades-trados, entre outros. A novidade resultou em um grande sucesso que vem se modifi-cando ao longo das décadas, mantendo a premissa de despertar a atenção do público. Da mesma forma, não só a tecnologia (filme sonoro, em cores, em cinemascope, 180º e 360º, em terceira dimensão, etc.), mas também a sua própria e peculiar linguagem são reconfiguradas sistematicamente.

Inicialmente, como no caso dos Lumière, e mais próximos da realidade do Brasil, o cinema começa pelas mãos de comerciantes, químicos ou físicos, e não por pessoas ligadas às artes. Aqui, a primeira obra considerada nacional é um tipo de fil-me informalmente chamado de “vistas” ou “tomadas”: registros de paisagens de uma cidade. A primeira película nacional foi realizada também por dois irmãos, os Segretto: Afonso e Paschoal. O episódio foi gravado na viagem do paquete Brésil, na entrada da Baía de Guanabara, em 19 de julho de 1898 (MARTINS, 2004, p. 126).

No que tange às nomenclaturas técnicas, no caso específico da cinematogra-fia, muitas definições se encontram em áreas nebulosas, assim como há limites invisí-veis no que se pode denominar como cinema. Cinema pode ser o fazer de um filme; o filme em si; a sala de exibição. Dentro do conceito do cinema enquanto suporte, observamos que há dois tipos: analógico (emulsão fotossensível) e digital (matriz de captura eletrônica). Anteriormente à era eletrônica, os filmes eram assim chamados por se tratarem de película, como citam Aumont e Marie, no elucidativo Dicionário teórico e crítico de cinema:

Da palavra inglesa film, que significa película – especialmente cinema-tográfica –, criou-se a palavra francesa, que designa, desde as origens do espetáculo cinematográfico, o espetáculo gravado sobre essa película. As estruturas industriais da produção impuseram, além disso, de modo quase universal, classificações e hierarquias que restringem, na prática, o emprego crítico da palavra às obras de ficção de longa-metragem (AUMONT; MARIE, 2003, p. 128).

Os filmes também foram vulgarmente “classificados” por gêneros, visando à sua comercialização. Aqui podemos apontar alguns exemplos rememorando as loca-doras de vídeo: drama, comédia, suspense, faroeste, erótico, ficção científica, terror, infantil, romance, pornográfico, além de termos que são vistos pejorativamente e que estigmatizam determinadas produções: “nacional” e “de arte” ou “cult”. No Brasil, o filme nacional e o filme de arte são comumente percebidos como filmes menores, de menos apelo comercial, de difícil compreensão, cuja distribuição é mais complexa e dispõe de menos recursos financeiros sendo, portanto, de alcance limitado. Alguns desses filmes se afastam do cinema padronizado dos blockbusters hollywoodianos, que transbor-dam nas salas exibidoras brasileiras bem como nas poucas e resistentes locadoras de vídeo ainda em funcionamento no País.

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

2 CLASSIFICAÇÕES

Retomando questões formais do cinema, um filme pode ainda ser clas-sificado de acordo com o tempo de duração, ou seja, curta, média ou longa-metragem. De acordo com os parâmetros da Agência Nacional de Cinema (Ancine), estabelecidos na Medida Provisória de nº 2.228-1,

de 06 de setembro de 2001, curta-metragem é o filme com duração de até 15 minu-tos; média-metragem é aquele com tempo de 15 a 70 minutos; e o longa com tempo acima de 70 minutos. Vale ressaltar que não há regra universal para essa e outras ques-tões formais no cinema sendo, portanto, uma classificação operada no Brasil.

O que vale ressaltar, entretanto, são as diferentes narrativas. Afinal, o que mais poderia diferenciar os filmes entre si? Por oportuno, citamos outra “classificação”, dessa vez em linguagens: ficção, documentário e animação. Cabe a essa última o estigma de marginalização maior em relação às demais. Pois, ainda hoje, a animação é vista por muitos como filme para o público infantil, pensamento principalmente propagado pe-las séries de desenhos animados que preenchem quase integralmente os canais para crianças de televisão paga. Percebemos que se fala em animação como se nelas não coubessem histórias dramáticas, pornográficas ou mesmo aterrorizantes.

Já em relação à ficção e ao documentário, há outro limite enevoado, uma es-pécie de filme híbrido, vulgarmente chamado de “docudrama”: narrativa que envolve parte das cenas gravadas ficcionalmente e a outra parte documentalmente.

O docudrama – termo que foi utilizado pela primeira vez na década de 30 – se enquadra nessa idéia (sic) de Nichols de que o documentário não me-ramente reprodução fiel da realidade, mas uma forma de representação, na qual o cineasta assume o papel de mediador. Para Rosenthal (1999) o docu-drama é um híbrido resultante da fusão entre documentário e drama, que busca reconstruir ou retratar fatos históricos (RICKLI, 2011, p. 2).

Entendemos como ficção tudo o que é encenado por atores, geralmente pro-fissionais, cuja narrativa aborda um roteiro criado em tempo e espaço fictícios, e que não se trata de um registro da realidade em si. Neste estudo, o tipo de filme a analisado é o documentário. Para esclarecer o que se entende por essa terminologia, recorre-se a dois dos cânones em literatura cinematográfica:

Chama-se, portanto, documentário, uma montagem cinematográfica de imagens visuais e sonoras dadas como reais e não fictícias. O filme do-cumentário tem, quase sempre, um caráter didático ou informativo, que visa, principalmente, restituir as aparências da realidade, mostrar as coisas e o mundo tais como eles são. Pressupõe-se que o filme documentário tem o mundo real como referência. O que postula que o mundo representado existe fora do filme e que isso pode ser verificado por outras vias (AUMONT; MARIE, 2003, p. 86, grifo nosso).

Mas, como anteriormente estabelecido, não há regra universal no que diz res-peito ao cinema. Para esses autores, há ainda mais possibilidades no que concerne à

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narrativa documental, uma vez que o documentário abarca, além do problema do uni-verso de referências, modalidades discursivas engendradas pelo uso de reportagens, atualidades, filme didático ou caseiro, etc. (AUMONT; MARIE, 2003, p. 86).

Nessa direção, escolhemos os filmes As Canções (2011) e Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho (1933-2014), como objeto empírico de estudo.

Formado pelo Institut des hautes études cinematographiques (IDHEC), hoje

Foudation européenne pour les métiers de l´image et du son (Femis), Coutinho pode ser percebido como um dos mais relevantes documentaristas brasileiros, tendo deixado a sua marca na forma de narrar o que via pelas lentes.

Passando por experiências como diretor de teatro, tendo dirigido Pluft – o

fantasminha, no final da década de 1950, aos poucos e especificamente no caso dos filmes As Canções e Jogo de Cena, Coutinho vai deixando de lado o controle da direção de cena em si, descontruindo ele próprio do papel de diretor enquanto pessoa que rege os atores e as falas da cena para deixar o espaço livre aos seus colegas: elencos compostos por pessoas comuns, que contam histórias comuns.

Pensando nisso, recorremos ao artigo dedicado ao cineasta e assinado pelo professor e pesquisador brasileiro Ismail Xavier, que aponta que o realizador necessita de uma pureza, alcançada por meio da autonomia do elenco:

O que se quer é a expressão original, uma maneira de fazer-se personagem, narrar, quando é dada ao sujeito a oportunidade de uma ação afirmativa. Tudo o que da personagem se revela vem de sua ação diante da câmera, da conversa com o cineasta e do confronto com o olhar e a escuta do aparato cinematográfico (XAVIER, 2004, p. 181).

Antes de passarmos à análise comparativa da composição imagética dos do-cumentários, se faz necessário, porém, entender do que se trata cada um deles.

2.1 As Canções

Alicerçado em 19 canções que marcaram a vida de pessoas comuns, personagens da vida real, buscamos identificar na aleatoriedade e na espontaneidade quais são as características marcantes deste fil-me na construção do roteiro. Com trilha sonora diegética3, entonada

pelos personagens, e entrevistas espontâneas, percebemos em análise preliminar que, apesar de escritas por compositores, as músicas encontram no cotidiano dos ouvintes terreno fértil para compor as histórias de vida de quem as escuta.

3 “Para Souriau, os fatos ‘diegéticos’ são aqueles relativos à história representada na tela, relativos à apresentação em projeto diante dos espectadores. É diegético tudo o que supostamente se passa conforme a ficção que o filme apresenta, tudo o que essa ficção implicaria se fosse supostamente verdadeira” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 77).

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EDUARDO COUTINHO EM NARRATIVAS

Ao longo de 91 minutos, em As Canções são reveladas experiências pessoais de 18 personagens – homens e mulheres – em situações diversas, que remetem a di-ferentes tipos de músicas brasileiras como elos entre passado e presente em um ciclo emotivo, provocante, íntimo. Este é o último documentário de Coutinho lançado em vida4.

Sobre o cenário, considerado uma marca visual da obra, trata-se de algo pen-sado para ser simples e para reduzir qualquer desvio de atenção possível no entorno do enquadramento. Como resultado, o destaque é dado ao sujeito como centro do olhar do espectador: cadeira preta, fundo preto, piso preto. Seria aquele espaço o pal-co de um teatro? Afinal, entre cortinas de veludo é que se faz ver o quarto elemento do documentário. Os créditos, por outro lado, indicam tratar-se de uma montagem em estúdio.

Nessa direção, a própria realização do roteiro, depois da gravação de todo material, revela a intencionalidade do diretor de proporcionar ao público uma expe-riência imagética diferentemente da ficção, cujo roteiro é pré-estabelecido para guiar o enredo e a equipe. Temos, portanto, uma espécie de jogo no qual o próprio realiza-dor do documentário é surpreendido e destaca o que deve ou não compor seu projeto após a experiência vivida em cena.

2.2 Jogo de Cena

Com 104 minutos, o argumento do filme está baseado na publicação de um anúncio em jornal impresso em junho de 2006 para que mu-lheres contassem suas histórias de vida. Foram recebidas 83 respos-tas, devidamente ouvidas. Posteriormente, 23 mulheres tiveram seus

depoimentos registrados, sendo 13 deles narrados por atrizes e também pelas próprias protagonistas daqueles relatos. O documentário representa uma imersão no universo feminino ao revelar temas pessoais, experimentados dentro ou fora do seio familiar, como homossexualidade, maternidade, fraternidade e fim de relacionamentos.

Com a câmera estática, Eduardo Coutinho convida o espectador a mergulhar na experiência daquelas mulheres e, com elas, desatar os nós em suas jornadas. Gra-vado em setembro do mesmo ano no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro (RJ), o documentário recorre ao uso de uma única cadeira no palco. Ali, as atrizes contam – cada uma a seu modo – as estórias selecionadas para uma plateia vazia e quase não iluminada; espaço no qual é representada a ruptura das linguagens de atuação entre cinema e teatro.

4 O documentário Últimas conversas, lançado em 2015, revela entrevistas de Eduardo Coutinho com estudantes de escolas públicas do Rio de Janeiro. Ao longo de 85 minutos são abordadas partes dos sonhos e desejos dos jovens, bem como detalhes da vida deles. Trata-se de uma obra na qual é possível visualizar a impaciência do idealizador com a criação do próprio documentário, montado por Jordana Berg.

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Seja contando tudo, intercalando narrativas ou mesmo repetindo o que é compartilhado com o público, o documentário permite a construção dos narradores--personagens durante o seu próprio encaminhamento. E uma pergunta se faz: como esse jogo de cena proposto dialoga com a linguagem clássica do documentário? É o que veremos adiante.

3 ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS

Nesta pesquisa, analisamos como os filmes As Canções e Jogo de cena são construídos visualmente – com especial atenção aos planos usa-dos e às sequências de abertura e de fechamento – e quais são os principais pontos de convergência entre as duas obras partindo da

observação e da problematização da técnica de feitura dos documentários.

Para isso, além da observação e análise de frames escolhidos de cada docu-mentário, usamos como base para compreensão das narrativas ali presentes o texto O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de Walter Benjamin (1892-1940). Assim, pensamos ser possível abordar a contextualização do cineasta e da narrativa fílmica, no caso o documentário, bem como problematizar o “ato de contar histórias” por meio do cinema.

Lançamos mão dos métodos de abordagem dialético e de procedimento mo-nográfico, comparativo e analítico e, por meio de revisão bibliográfica sobre o tema, buscamos esmiuçar como, por exemplo, o planejamento da luz e sua contribuição para a construção da narrativa esteticamente simples.

4 APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS

O ato de contar histórias é inerente à própria existência humana. Re-tomar acontecimentos e, por vezes ressignificá-los nesse processo amplia a pluralidade da vivência do homem em sociedade. No caso dos documentários analisados, percebemos que, ao retomarem as

próprias experiências – seja por meio das músicas populares ou pelas vozes de atrizes – os sujeitos que nos são apresentados por Eduardo Coutinho compartilham com o público parte das suas memórias individuais pela janela fílmica que se abre para, en-tão, torná-las, de certa forma, coletivas.

Mas por que, no início desta seção, argumentamos que o ato de contar e de recontar histórias alarga a vivência do homem no seio social? Acreditamos que é nesse compartilhamento que reside a força exercida pelo próprio acontecimento na vida das pessoas. Tal poder é, nesse sentido, maximizado quando “traduzido” para linguagem cinematográfica ao ampliar o alcance das narrativas e reforçá-las enquanto experiên-cias (e memórias) coletivas.

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quan-

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do as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo (BENJAMIN, 1994, p. 204).

Pensando nisso, esquecer-se de si mesmo é, em certa medida, apoderar-se do outro em um jogo de construção do personagem na tela com base nas nossas pró-prias experimentações. Tanto em As Canções quanto em Jogo de Cena, o diálogo entre sujeito e câmera promove a fala como principal recurso narrativo. Como método, a centralização da experiência pessoal foge do óbvio ao arrebatar o público sem que outros recursos narrativos comprometam a subjetividade afirmativa do próprio sujei-to. Isso somado a cinematografia proposta por Jacques Cheiuche, que faz um plano de iluminação de forma simples evidenciando, assim, os personagens e criando um clima dramático que não permita efeitos aleatórios ou alegóricos (a luz é posta de forma honesta e direta). A proposta utilizada pelo diretor de fotografia está fundada no uso de luz lateral de preenchimento (que resulta em uma luz suave, propícia para uso pró-ximo das pessoas, tanto pelo resultado positivo esteticamente quanto pela redução de desconforto por ela provocada) e contraluz no eixo oposto (para efeito cénico de recorte em relação ao fundo do plano – entendido aqui como plano de imagem, como estabelecido adiante); luz de efeito colocada para realçar o volume das cortinas (único elemento mais alegórico até então, apenas para fugir da sensação de que os planos se fundem e pareçam achatados); bem como o enquadramento quase idêntico, no mes-mo eixo. Tais pontos contribuem para a construção da narrativa esteticamente simples.

Para Xavier, essa “expressão original” – oportunizada de maneira afirmativa pela narração de partes da sua própria história – amplia a transformação do sujeito em personagem diante da câmera. Nesse primeiro momento, o que é revelado ao público remete à própria feitura do documentário, sendo a conversa a porta pela qual o olhar e o ouvir se tornam possíveis: a lente e o microfone são o próprio público.

Da mesma forma, continua o autor, a dramaticidade presente nas obras de Coutinho se dá em decorrência do enfrentamento sujeito x cineasta, processado téc-nica e esteticamente:

O documentário de Coutinho, como forma dramática, se faz desse enfren-tamento entre sujeito e cineasta, observados pelo aparato, situação em que se espera que a postura afirmativa e a empatia, o engajamento na situação superem forças reativas, travos de várias ordens. Seguindo diferentes tons e estilos, cada conversa se dá dentro daquela moldura que produz a mistura de espontaneidade e de teatro, de autenticidade e de exibicionismo, de um fazer-se imagem e ser verdadeiro (XAVIER, 2004, p. 180-1).

E é justamente nessa moldura que os momentos presente, passado e futuro se fundem e, de alguma forma, tornam-se simultâneos na tela. Para os interlocutores daquele personagem a memória passa a atuar como elo vivo de uma relação que, aos poucos se estabelece e consolida. É nesse ciclo narrativo sinuoso, não linear, que são

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compartilhadas vivências, histórias, sentimentos.

Memória e transmissão de experiências são faces diferentes de um único cristal que inclui a História. A memória é retenção do passado atualizado pelo tempo presente. Articula-se com a vida através da linguagem, que tem na narrativa uma de suas mais ricas expressões [...] a memória, além de inco-mensurável, é mutante e plena de significados de vida, que algumas vezes se confirmam e usualmente se renovam (NEVES, 2006, p. 59).

Sobre o assunto, Rousso indica que o próprio ato de selecionar o que deve ou não ser revelado na narrativa fílmica constitui elemento-chave para compreensão de toda memória como representação processada coletivamente nas esferas sociais, fato que reverbera na percepção do sujeito sobre o contexto no qual se insere. Trata-se, portanto, de:

[...] uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma repre-sentação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indiví-duo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional. Portanto toda memória é, por definição, “coletiva”, como sugeriu Maurice Halbwachs. Seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao “tempo que muda”, às rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma, ela constitui - eis uma banalidade - um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros (ROUSSO, 2002, p. 94).

Pensando nisso, acreditamos ser possível perceber alguns dos pontos de con-vergência nestas duas obras de Eduardo Coutinho. Os filmes As Canções e Jogo de Cena são, esteticamente, muito próximos. As cartelas são pretas com letras brancas; há só um entrevistado/personagem em cena; o cenário é de locação interna; a câmera se mantém quase todo tempo parada, no tripé; o personagem se posiciona à direita do quadro; o fundo é neutro; não há narração. Ambos os projetos foram realizados pela produtora Videofilmes, fotografados por Jacques Cheuiche e editados por Jordana Berg, pontos que possibilitam a crença em um conceito criativo comum aos dois fil-mes.

No que toca ao encaminhamento narrativo, Coutinho optou pelo uso de lin-guagens mais singelas, mantendo o caráter coloquial das falas dos personagens para concentrar o foco da atenção do espectador nas histórias pessoais compartilhadas, com uma centelha de luz nas emoções vividas. Acreditamos, portanto, tratar-se de recurso técnico pensado para congregar o espectador na construção das memórias anteriormente citadas.

Jogo de Cena é justamente uma espécie de brincadeira ambígua, na qual o espectador tem que descobrir quem é quem nessa representação: atores e não-atores relatam vivências e, com isso, dão força à narrativa. Em As Canções não há interpreta-ção de atores e os nomes dos personagens são escritos em legendas ao lado esquerdo da tela. Ainda assim, acreditamos que a inserção de atrizes em apenas um dos dois documentários abordados funciona muito mais como ponto de convergência do que de tensão entre as obras. Isso porque, ao quebrar o fluxo narrativo temporalmente e

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com o uso de vozes plurais em tempos verbais diversos, Coutinho nos convida a des-construir o visível (especialmente por se tratarem de atrizes conhecidas do “grande público”).

Do ponto de vista cinematográfico, ambos se passam em locais fechados, o que permite controle total de acústica e iluminação artificial, o que se assemelha a um local de representação teatral. Sobre essa aproximação de linguagens, Jacques Au-mont explica em O Olho Interminável: cinema e pintura que:

Cinema e teatro: o tema é tão velho quanto o próprio cinema, e desde as primeiras tentativas de definição de uma especificidade fílmica, o teatro faz aí o papel de contraste, não – como será o caso com a chegada do cinema falado – por causa de seu caráter excessivamente verbal, não-visual, e sim porque ele mobiliza a vista no quadro, julgado estreito, da cena à italiana (AUMONT, 2004, p. 155).

Tanto em As Canções – gravado no Estúdio do Cais – quanto em Jogo de Cena – filmado no Teatro Glauce Rocha – a direção de fotografia de Jacques Cheiuche é cons-tituída, basicamente, por quatro tipos de planos, o que enfatiza o que Jacques Aumont diz sobre o quadro estreitado, levado em consideração pelo fotógrafo dos filmes.

Antes de abordá-los, porém, se faz necessário estabelecer o que viria a ser um plano neste contexto. Para Aumont e Marie, o termo pode remeter a três ideias: a) a imagem cinematográfica projetada em uma superfície plana designando, assim, o pla-no da imagem; b) o sinônimo das palavras quadro ou enquadramento; e c) a imagem fílmica unitária (AUMONT; MARIE, 2003, p. 230-1). Pensando nisso, abordamos neste texto o termo plano de acordo com a segunda definição proposta pelos autores: como sinônimo de quadro e de enquadramento.

Retornando às obras de Coutinho, os planos mais usados nos documentários analisados, segundo o autor Chris Rodrigues exemplificou em O cinema e a produção (2002), os tipos de enquadramentos encontrados nos filmes são: plano geral aberto, plano próximo, plano close e o plano detalhe conforme segue. É importante frisar que não há regras pré-estabelecidas no que tange às nomenclaturas de especificação de tipos de planos cinematográficos.

4.1 Plano geral aberto

O plano geral aberto pode ser entendido como aquele que abarca o enquadramento de grande parte do cenário. Nessa perspectiva, detalhes da cena tornam-se, à primeira vista, difíceis de serem no-tados. A ideia é introduzir o local no qual a narrativa se dá, espécie

de apresentação do espaço ao espectador para que esse se familiarize com a história a ser contada.

Nas imagens abaixo – frames extraídos dos documentários – podemos notar as semelhanças com que o plano é usado nas duas obras. Em As Canções a cadeira

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escura se faz notar à frente do personagem que se aproxima para iniciar o diálogo conosco. Em Jogo de Cena, e mantendo o mesmo encaminhamento, vemos o palco do teatro quase que completamente nu, não fosse, uma vez mais, a presença das cadeiras.

Acreditamos que é por meio deste plano que o diretor amplia a expectativa pelo que está por vir. No que toca à narrativa, as imagens expõem o que Benjamin associa à experiência dos narradores anônimos que, vindos de longe, nos permitem acessar e compreender algumas das histórias deles.

“Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narra-dor como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições” (BENJAMIN, 1994, p. 198-9).

Fonte: Reprodução.

4.2 Plano próximo

Nessa direção, e desejando conhecer as histórias e tradições das quais nos fala o autor, o plano médio, diferentemente do plano geral aber-to, revela partes do cenário ocupado pelo personagem em foco. Nes-se plano o objetivo é tornar mais presente a figura do depoente que

se coloca diante do público.

Nas imagens que seguem o que notamos é que nos dois filmes o uso do plano funciona para chamar a nossa atenção para a expressão dos personagens, ainda que de maneira sutil. A localização deles à direita da tela corrobora tal interpretação uma vez que pode ser associada ao modelo ocidental de leitura, no qual a atenção maior do leitor da imagem é dada aos elementos organizados do lado direito do quatro, tal qual o percurso do olhar na leitura escrita.

Sobre isso, recorremos uma vez mais à obra de Benjamin no sentido de que “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narra-dores” (BENJAMIN, 1994, p. 198). E é nessa intenção de compartilhar que percebemos o quanto a proximidade personagem e público é fundamental, especialmente diante da simbiose que se opera durante a narrativa. Afinal, “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (BENJAMIN, 1994, p. 201).

Figura 1: As Canções Figura 2: As Canções

Fonte: Reprodução.

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4.3 Plano close

Para abordar tal incorporação de vivências passamos ao plano close, no qual o personagem diante de nós ganha ainda mais força. A aproxima-ção das lentes revela seus rostos, suas emoções expressadas das ma-neiras mais agudas possíveis. Com isso a interação se torna ainda mais

intensa. Em As Canções, bem como em Jogo de Cena, isso se faz claro. Nas imagens abaixo podemos, como exemplo, notar das rugas da personagem à esquerda quando de um sorriso contido ao semblante quase vazio da segunda. Interpretamos o uso desse plano como recurso capaz de impregnar a narrativa de significados plurais em uma abordagem subjetiva. Afinal, é a nossa reação diante do que é narrado que nos permite incorporar à nossa própria vivência a memória que está sendo construída.

É possível observar que, com esse tipo de plano, o rosto ocupa aproximada-mente metade do quadro, concentrando a atenção do espectador, no que é mostrado sobre o fundo escuro, com ênfase na expressão facial e oral, sem informações extras e, portanto, sem distrações para o espectador.

Sobre o assunto retomamos a ideia de “dimensão utilitária”, na qual a narra-tiva passa a constituir uma espécie de ensinamento, conselho, “seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (BENJAMIN, 1994, p. 200). Ainda nessa direção, Benjamin denomina as indicações do narrador como sabedoria. Sabedoria essa am-plamente difundida nos dois documentários.

Dessa maneira, percebemos na direção de Eduardo Coutinho uma espécie de terreno fértil para o florescimento das relações personagem x público, narrador x ouvinte, que se processam na emancipação dos personagens do peso das memórias divididas uma vez que essas saem do espaço individual para ocupar o espaço coletivo.

Fonte: Reprodução.Fonte: Reprodução.

Figura 4: As CançõesFigura 3: As Canções

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4.4 Plano detalhe

Por fim, temos o plano detalhe, no qual – como o próprio nome sugere – detalhes do que está sendo narrado são mostrados ao público. Se-jam partes do cenário, objetos ou mesmo partes do corpo dos perso-nagens, as imagens revelam elementos que nos ajudam a incorporar

as histórias que estão sendo compartilhadas. Neste plano a intenção é captar o olhar para um ponto que se julgue relevante à compreensão da narrativa. Como exemplos e no caso das imagens abaixo, o uso do plano funciona para corroborar o que está sendo dito pelos personagens, fato que, acreditamos, potencializa a carga dramática própria da cena em vez de explicá-la.

A ideia não é a transmissão do fato em si mas, buscando as palavras de Benja-

min, permitir um “mergulho” na experiência do narrador para, em seguida, incorporar àquela experiência a nossa própria percepção, pois “assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1994, p. 205).

Pensando nas marcas deixadas pelo narrador na narrativa, passamos agora à abordagem das sequências de abertura e de fechamento dos documentários. Como elas são estruturadas e de que forma contribuem para o compartilhamento de ex-periências entre personagens e público? De acordo com Aumont e Marie, a palavra sequência designa “um momento facilmente isolável da história contada por um filme: um sequenciamento de acontecimentos, em vários planos, cujo conjunto é fortemen-te unitário” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 268).

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

Figura 5: As Canções Figura 6: As Canções

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

Figura 7: As Canções Figura 8: As Canções

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Com essa ideia em mente, buscamos nas palavras de Benjamin os argumen-tos para definir os narradores de Coutinho como capazes de compartilhar suas vidas por meio de fragmentos selecionados para comporem memórias coletivas na narra-tiva fílmica. Assim, explica o autor, o poder deles reside no dom e na dignidade de contar suas vivências, pois “o narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida” (BENJAMIN, 1994, p. 221).

4.5 Sequência de abertura

A sequência de abertura de um filme é fundamental para apresentar e situar o espectador do que tratará a obra. O exemplo mais objetivo é o próprio L´arrivée d´un train à La Ciotat, cuja cartela inicial mostra o título do filme. Por não termos tido acesso ao original deste filme,

não podemos atestar se essa cartela refere-se ao original ou se ela foi adicionada pos-teriormente.

Figura 9: Exemplo de cartela de abertura.

Acreditamos tratar-se de uma objetiva introdução ao que será mostrado ao público: um olhar preliminar do que por nós espera.

4.5.1 As Canções

No caso de As Canções, como é de praxe para os filmes cujo recurso é proveniente de patrocínios via leis de incentivos culturais, o filme começa com cartelas que cumprem obrigações contratuais de apre-sentação de logotipia, seguidas do nome da produtora. O corte, em

sequência é seco, e segue para o plano fixo cujo primeiro personagem aparece para o público cantando uma canção de forma emotiva. Em seguida, no mesmo plano ainda ouve-se a voz em off do diretor, que faz uma pergunta à depoente que, por sua vez, o responde de forma breve. Em seguida, entra a cartela com o nome do título do filme. É importante ressaltar que a escolha do fundo preto sólido para as cartelas já remete à ausência de elementos distrativos que o filme traz, tendo apenas o essencial exposto, centralizando a atenção do espectador desde o início.

Fonte: Reprodução.

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Figura 10: Cartela logotipo Ancine. Figura 11: Cartela Videofilmes Apresenta.

Figura 12: Título do filme. Figura 13: Aparição da primeira personagem.

4.5.2 Jogo de Cena

No caso de As Canções, como é de praxe para os filmes cujo recurso é proveniente de patrocínios via leis de incentivos culturais, o filme começa com cartelas que cumprem obrigações contratuais de apre-sentação de logotipia, seguido do nome da produtora. O corte, em

sequência é seco, e segue para o plano fixo cujo primeiro personagem aparece para o público cantando uma canção de forma emotiva. Em seguida, no mesmo plano ainda ouve-se a voz em off do diretor, que faz uma pergunta à depoente que, por sua vez, o responde de forma breve. Em seguida, entra a cartela com o nome do título do filme. É importante ressaltar que a escolha do fundo preto sólido para as cartelas já remete à ausência de elementos distrativos que o filme traz, tendo apenas o essencial exposto, centralizando a atenção do espectador desde o início.

Figura 14: Cartela Lei de Incen-tivo à Cultura.

Figura 15: Cartela logotipo Ancine.

Figura 16: Cartela logotipo Governo Federal.

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

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Figura 17: Cartela Petrobras. Figura 18: Cartela Petrobras Cultural.

Figura 19: Cartela Videofilmes e Matizar apresentam.

Figura 20: Título do filme. Figura 21: Cartaz convocatório. Figura 22: Aparição da primeira personagem.

Logo a primeira cena, quando acompanhamos a atriz que sobe as escadas e chega ao local de gravação, com os equipamentos de luz e maquinária em quadro, mostra ao espectador o cineasta Eduardo Coutinho na posição de interlocutor. Ali o realizador assume diante do público a presença física por meio de sua imagem, não só pela voz em off, como no filme anterior. A participação é breve, porém, e deixa todo o espaço cênico aos personagens.

Afinal, nas palavras de Benjamin:

Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de suas experiências, como numa esca-da. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens – é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais o pro-fundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento (BENJAMIN, 1994, p. 215).

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

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Figura 23: Narrador e personagem.

4.6 Sequência de fechamento

No que toca à sequência de fechamento dos documentários aborda-dos é importante notar que, tanto quanto no caso das sequências de abertura, elas cumprem papel fundamental na condução na narrati-va fílmica. Trata-se, portanto, de “arrematar” tudo aquilo que com o

público foi compartilhado e de provocar o desejo por mais detalhes das histórias e das memórias tornadas coletivas.

4.6.1 As Canções

Percebemos, finalmente, nas sequências de fechamento de As Canções e de Jogo de Cena na proximidade estética dos dois documentários os argumentos que reforçam as ideias expostas neste trabalho. Nos frames escolhidos a ligação entre as duas obras fica evidente. Abaixo, podemos notar que, logo depois de finalizar o seu relato, a personagem se levanta, dá as costas ao “público” e caminha em direção à saí-da da locação escolhida. Naquele momento os créditos do filme começam a subir em caracteres brancos sobre o fundo preto: um ritual de fechamento do ciclo narrativo.

Figura 24: Despedida. Figura 25: Caminhada.

Fonte: Reprodução.

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

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Figura 26: Cadeira. Figura 27: Créditos em caracteres.

4.6.2 Jogo de cena

Da mesma forma, em Jogo de Cena o ritual é finalizado simbolicamente com a personagem com a mão sobre os olhos, seguida da imagem da locação que, aos pou-cos vai sendo escurecida com a redução da iluminação. Tanto quanto em As Canções, os créditos do filme são dispostos com caracteres brancos sobre o fundo preto.

O espaço escuro é simbólico pictoricamente, pois o preto, enquanto ausência de luz, deixa tudo o que está sendo visto em menor proporção, mas dentro do seu espaço, com uma luz de destaque, um realce. Afinal:

Fazer da luz um material plástico é, em pintura, uma necessidade: o pintor mais naturalista não pode esgotar seu tratamento da luz em efeitos de rea-lidade; é, no filme, uma decisão deliberada e difícil.Partimos do material, e começar a falando da luz é, apesar de tudo, revelar uma escolha, a do cinema, já que a luz pictórica não é evidente a luz, e sim a cor (AUMONT, 2004, p. 181).

Essa ideia de fechamento, de conclusão, nos remete uma vez mais ao pensa-mento benjaminiano no sentido de que “quem escuta uma história está e companhia do narrador; mesmo quem lê partilha dessa companhia” (BENJAMIN, 1994, p. 213). É o fim da interação, daquele momento em diante o espectador está só, já não desfruta da companhia dos interlocutores de outrora: personagens de vidas e experiências antes compartilhadas tornam-se, daquele momento em diante, memórias.

Figura 28: Adeus. Figura 29: Cenário.

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

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Figura 30 – Preparação do fundo preto. Figura 31 – Créditos em caracteres.

De maneira complementar, acreditamos residir nesse ritual de saída a natura-lidade conferida às narrativas. Eles acontecem como na vivência fora da tela, com natu-ralidade e sutileza, permitindo que aquelas experiências sejam gravadas na memória do público de maneira pungente. Dessa forma, explica Benjamin, ali ela vai reverberar e desfrutar de mecanismos para ser assimilada à experiência do ouvinte para, poste-riormente, ser compartilhada dando início a novos ciclos narrativos (BENJAMIN, 1994, p. 204).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de uma breve localização do conceito narrativo do documen-tário, desde sua aparição seminal na origem do próprio cinema, pu-demos observar que todo filme do tipo “vista” é uma obra documen-tal, pois retrata tal qual a realidade se apresenta, sem artifícios, além

do intermédio da máquina. Pudemos ver, também, que há na história e no processo criativo do cineasta Eduardo Coutinho uma quase alteridade de papéis entre ele, o diretor, e os seus personagens. O diretor tenta sumir, ausentar-se para dar lugar os pro-tagonistas que criam o roteiro invisível dos filmes As Canções e Jogo de Cena, e que são os responsáveis pelas suas falas, emoções e praticamente seu próprio mise-en-scène sem tantas regras pré-estabelecidas.

Nessa perspectiva, a narrativa fílmica é, nos documentários analisados, en-riquecida basicamente com o enquadramento das cenas em planos de quatro tipos: plano geral aberto, plano próximo, plano close e o plano detalhe. Juntos, eles ajudam a conferir aos filmes uma identidade estética bem próxima. A análise imagética com-parativa empreendida entre os dois documentários revela ainda alguns pontos de convergência na construção visual dos filmes, como quando da análise das sequên-cias de abertura e de fechamento deles. Por fim, cremos, a problematização da nar-rativa documental destaca a prevalência de uma concepção conceitual fundante do alargamento das vias de diálogo entre as narrativas veiculadas pelos personagens e o público.

Fonte: Reprodução. Fonte: Reprodução.

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Referências

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JOGO de cena. Direção de Eduardo Cou-tinho. Vídeo Documentário, 104 minu-tos, 2007. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=RUasyqVhOuw >. Acesso em: 10 ago. 2015.

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O CANTO AMADOR NO DOCUMENTÁRIO DE EDUARDO COUTINHO1

1 INTRODUÇÃO

Em um ensaio recente, Cláudia Gorbman (2012) analisa, em um conjunto de filmes ficcionais, o que ela chama de canto amador: momentos nos quais o personagem canta em cenas reconhecidas como partes inte-grantes do mundo diegético realista, quando o canto está em algum

lugar entre a fala e a música3. Momento raro nos filmes, o canto amador não é bem “música de cinema”, tampouco é objeto de interesse para os estudiosos dos musicais. Trata-se de situações nas quais se explora, além da música, as qualidades da voz, dos gestos e do olhar do personagem, o trabalho da câmera e a edição, a microfonação, a mixagem de som, etc. Como explica a autora:

Cristiane da Silveira Lima2

1 Este texto corresponde a uma versão reduzida de um dos capítulos da tese de doutorado Música em cena: à escuta do documentário brasileiro (2015), realizada no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nela, investigamos as relações entre os componentes sonoros da escritura do documentário e a escuta do espectador, a partir da análise minuciosa de um conjunto de obras que têm a música como objeto central de sua cena.2 Professora do Curso de Comunicação e Multimeios da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Possui formação livre em Música pela Fundação de Educação Artística (FEA). Contato: [email protected] Texto publicado originalmente em inglês em Music, Sound and the moving image, volume 5, n.2, 2012. A tradução para o português é de José Claúdio S. Castanheira, no livro Som + Imagem, organizado por Simone Pereira Sá e Fernando Morais da Costa (2012), publicado pela editora 7Letras.

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Estes tendem a ser momentos descartáveis, quando as personagens can-tam da forma como as pessoas fazem normalmente na vida real: você pode cantarolar enquanto limpa a cozinha ou acompanhar um tema familiar de programa de TV, ou juntar-se a um amigo cantando uma música cuja letra se encaixa na ocasião ou cujo cantor você está imitando. Eu chamo tais cenas de “canto amador”, por falta de outro termo conciso para um canto que, na concepção de uma história de filme, não é um desempenho profissional, e é feito com o som sincronizado com índices adequados de um realismo espacial, sem o apoio mágico de uma orquestra. É uma organização da voz no filme que pode parecer marginal, mas pode muito bem contribuir para nossa compreensão das possibilidades da fala, música e canções no cinema (GORBMAN, 2012, p. 23).

Interessa-nos aqui situações semelhantes – e bem pouco usuais – que se dão no contexto do documentário brasileiro: quando a música surge no filme ao ser inter-pretada por pessoas comuns, que têm pouca ou nenhuma formação musical, fora de qualquer contexto de trabalho com a música. Pessoas que são ouvintes de músicas feitas por outras pessoas, mas que, por força da própria situação da filmagem, se põem a cantar. Se buscarmos em nossa memória, lembraremos de poucos documentários brasileiros que fizeram uso do canto amador. Destacamos alguns exemplos apenas: na abertura de A Falta que me faz (Marília Rocha, 2009), uma moça canta Cena de Fil-me, uma música romântica de sucesso. Em Vou Rifar meu Coração (Ana Rieper, 2012), algumas pessoas comuns cantam e relatam sua relação com a música brega. Já em Notícias de uma Guerra Particular (João Moreira Salles, 1999), o universo dos traficantes é apresentado por um jovem armado e encapuzado, que canta o Rap das Armas en-quanto percorre as ruas e becos da favela. Todos os outros exemplos que lembramos marcam a obra de um mesmo cineasta: Eduardo Coutinho. É o caso da moça que entoa a canção romântica em Boca de Lixo (1992); de Fátima, também conhecida em sua co-munidade pelo apelido de Janis Joplin, filmada em Babilônia 2000 (2001); de Henrique, o morador do Edifício Master (2002), que canta My Way, um clássico de Frank Sinatra, e de vários outros moradores do mesmo prédio; de Sarita, a mulher que canta Se Esta Rua Fosse Minha, em Jogo de Cena (2007), para citar apenas alguns exemplos.

Em As Canções (2011), um dos últimos filmes realizados pelo diretor, o canto amador deixou de aparecer de forma episódica para aparecer de maneira sistemáti-ca: Coutinho pediu a todos os sujeitos filmados que cantassem e relatassem à equi-pe memórias e histórias de vida marcadas por determinada música. O canto amador transformou-se, assim, em um dispositivo (LINS, 2004, p. 101), isto é, um procedimento estruturador da mise-en-scène e orientador da abordagem escolhida.

2 A CANÇÃO E A CENA

O filme começa com uma mulher, filmada em primeiro plano, enquan-to interpreta a canção Minha Namorada (de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes), cujos versos descrevem uma jura de amor. O enquadra-mento permite ver a expressão do seu rosto, o brilho no olhar. A

postura corporal, o vibratto da voz, a respiração ofegante, as notas ligeiramente desa-finadas denunciam as “imperfeições” do canto e anunciam que o filme dará destaque

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a essa performance não profissional da música4. Ao final da canção, a mulher (que mais tarde saberemos se chamar Sônia) permanece um momento em silêncio, durante aquele breve instante de pânico em que o outro não diz nada (como outrora escreveu Comolli)5, mordendo os lábios, como se indagasse ao diretor: e agora? Ele lhe pergun-ta se ela gostou. Ela responde que sim, que adorou. Há um corte seco. Surge na tela o letreiro indicativo do título do filme.

Mais um corte e veremos uma segunda vez a cadeira negra em que todos os outros entrevistados tomarão assento (dando a ver o fundo do palco e as cortinas que separam as coxias). Essa disposição nos remete a Jogo de Cena, mas de forma invertida: naquele filme, a cadeira estava posicionada de costas para a plateia, permitindo ao espectador ver, atrás de cada entrevistado, as poltronas que poderiam ser ocupadas por outros potenciais espectadores. Além disso, cotejavam-se os relatos de pessoas comuns com o de atrizes profissionais, colocando “sob suspeita os documentários ba-seados na fala como expressão da subjetividade e como relato testemunhal de uma vida” (MARZOCHI, 2012, p. 17).

As Canções também explicita sua dimensão cênica, teatral, ao colocar a cadei-ra novamente em um palco, mostrando que o que está em jogo são corpos colocados em cena diante de um olhar. Como em uma ópera às avessas, sem fosso nem orques-tra, onde cada personagem (o cantor amador) é provisoriamente convidado a ser so-lista e interpretar seu próprio papel para a câmera, para os que filmam e para aqueles a quem o filme se destina.

O filme retorna às pessoas comuns, mas endurecendo as regras do jogo. Res-salta-se a sua dimensão de artifício, porém sem aquela lógica autorreflexiva que con-duzia Jogo de Cena. O que está ao fundo agora é o palco e seus bastidores, ou seja, o espaço em que a performance tem lugar e àquilo que está “por trás”. A coxia é lugar de onde saem os sujeitos e para onde retornam após sua interpretação das canções no palco-filme, mas é também uma metáfora para compreendermos a relação que o documentário estabelece com o que está “por trás dos panos”, escondido ou guardado na memória6 e que é trazido à cena de forma teatralizada ou musicalizada.

4 Tais imperfeições da voz são uma característica marcante do canto amador, conforme explica Gorbman: “Em muitos casos, é a imperfeição na voz – com respiração vacilante e trêmula, notas falsas, cantando fora da faixa confortável, pausas, letras esquecidas ou erradas – que nivelam amadorismo com autenticidade, e que fazem do canto uma expressão natural e sincera da personagem” (GORBMAN, 2012, p. 26).5 “De fato, as pessoas filmadas se encontram em situação de gerir o conteúdo de suas intervenções, de se colocar em cena. Todas as condições estão dadas. Elas se encarregam da mise-en-scène, a tornam pesada ou leve, a realizam com suas insistências, com suas maneiras de dar sinais. E elas não são idiotas, sabem muito bem fazê-lo. E se perguntam, quando ocorre uma dúvida, um leve pânico, por que o outro não fala nada. Nada? ‘Então é a minha vez?’” (COMOLLI, 2008, p. 56).6 Fernando do Nascimento Gonçalves, ao analisar As Canções em vista dos processos de subjetivação que ele agencia, destaca que o filme “não parece falar tanto de canções e histórias que expressam as lembranças de um vivido, mas sim das intensidades e dos devires disso que é guardado na lembrança e que, ao ser transformado em forma-história e forma-canção, se torna matéria expressiva para o filme” (GONÇALVES, 2012, p. 149).

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3 NO FIO DE UMA CANÇÃO

Déa, a segunda entrevistada7, conta sobre um show de calouros apre-sentado por Ary Barroso, no qual ela cantou uma conhecida canção de Noel Rosa (cuja letra ela não sabe totalmente de cor, mas Couti-nho, sim). Quando canta, ela olha para o alto e gesticula muito (fi-

gura 1). Vários outros entrevistados farão gestos semelhantes: abrem os braços e as mãos, fecham os olhos, empostam a voz. Há um excesso na interpretação das músicas, mostrando que os sujeitos filmados estão, de fato, empenhados em oferecer a melhor performance que lhes é possível, engajando corpo e voz nesse provisório papel de cantor amador propiciado pelo filme. Quando Déa termina de cantar a primeira peça, ela olha para o alto e abre os braços, como se aguardasse os aplausos do público. Mas a equipe permanece em silêncio.

7 Além de Déa, que cantava em programas de auditório, há pelo menos outros quatro personagens com alguma experiência prévia com a prática musical (seja porque tocam um instrumento, compõem ou cantam). Contudo, seria inexato dizer que o filme os exibe como “músicos profissionais”. O empenho do filme em tratá-los como pessoas comuns, ordinárias, o que é reforçado também pelos letreiros, que inscrevem apenas seu primeiro nome ou apelido.8 Antecampo se refere a um “fora-de-campo mais radical situado atrás da câmera”, conforme formulação de Jacques Aumont, desdobrada por André Brasil (2013). No cinema documentário, em geral, constitui-se como um recurso estilístico, mas também um espaço ético que permite aos realizadores do filme posicionarem-se no interior da cena, em relação ao outro filmado.

Figura 1: Déa toma assento e canta Roberto Carlos e Noel Rosa.

Fonte: Frames do filme As Canções (Eduardo Coutinho, 2011).

Esse excesso salta aos olhos porque As Canções se constrói a partir de uma economia de elementos. O ambiente é esvaziado de informações e há apenas uma ca-deira e a cortina negra ao fundo. A composição do plano e a movimentação de câmera alteram-se de forma sutil, tendendo à câmera fixa e ao primeiro-plano. Cada perso-nagem é filmado sozinho, em interação verbal com Coutinho, no antecampo8. Tam-bém do ponto de vista sonoro o filme é econômico: esvaziado de ruídos, valorizando a centralidade e a audibilidade absoluta das vozes (mesmo aquela que vem de trás da câmera).

Afastamo-nos, desta forma, daquele canto amador analisado por Gorbman:

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despretensioso, informal, que ocorre no ambiente doméstico, sobretudo, em meio a ações prosaicas. Aqui, o canto foi inteiramente retirado do cotidiano para se tornar o centro da cena: o documentário apresenta o canto amador em um palco, a capella, diante de um aparato voltado exclusivamente para a encenação desse canto, muito diferente de como surgiria, em filmes ficcionais, com um personagem diante da TV ou debaixo do chuveiro, por exemplo (tendo o ruído do mundo como acompanhamento para a melodia). Diante de tamanha depuração de elementos, no filme, todo gesto, por menor que seja, ganha grande proporção, daí talvez a sensação de que, em al-guns momentos, há um excesso nas performances. Se nos valemos do canto amador é também por falta de outro termo conciso – e preciso – que nos permita nomear essas performances musicais realizadas por sujeitos comuns. Adotamos tal expressão – não sem assumir o risco de afastá-la de sua formulação original – porque também nos do-cumentários brasileiros essas situações são marginais, mesmo raras. Além disso, a pa-lavra amador nos permite enfatizar outro aspecto presente em As Canções: ele designa o canto interpretado por aqueles que amam.

4 À BEIRA DO MELODRAMA

Em muitos depoimentos, há um tom de lamento ou nostalgia em relação ao passado. As canções eleitas pelos sujeitos filmados oferecem uma síntese daquilo que é dito: “esta é a música da minha vida”, afirmam, em um esforço de dar coerência ao vivido e ao relato. Mais de uma vez

somos confrontados com depoimentos tomados pela comoção, com sujeitos que têm a voz embargada e os olhos marejados. Não deixa de haver um tom melodramático no filme, o que é reforçado pelo caráter fortemente romântico do repertório trazido pelos entrevistados. Vários, inclusive, não conseguem conter as lágrimas, como é o caso de Gilmar, ao relembrar a canção Esmeralda, que sua mãe cantava quando ele era criança. Lídia, depois de contar a história de um conturbado relacionamento que vivera em sua juventude com um homem mais velho (dono de um Cadillac azul), retira-se da cena e vai chorar atrás das coxias. A câmera permanece mais um tempo filmando a cadeira vazia, enquanto escutamos a mulher em prantos, fora do alcance da objetiva, mas ain-da ao alcance dos microfones. O filme aí parece flertar com as narrativas confessionais midiáticas mais comuns, que valorizam a exposição da intimidade e enfatizam a decla-ração de uma inequívoca “verdade sobre si”9.

Falar em melodrama, no entanto, não deve ser tomado como algo pejorativo. Frisamos que o filme dialoga com certa matriz sentimentalista que busca ou favorece um vínculo emocional estreito com o espectador. Como escreve Mariana Baltar, ao abordar o que ela chama de “imaginação melodramática do documentário”: “As lágri-

9 Tal flerte com o “confessional-midiático” já estava presente em Jogo de Cena, mas lá tal questão se resolve por meio do ensaísmo documental, que privilegia a opacidade, a explicitação da mediação e as tensões entre subjetividade e seus horizontes ficcionais, como destaca Marzochi, no capítulo Na contramão do confessional (2012, p. 21-95).10 Em sua tese de doutorado intitulada Realidade lacrimosa, Mariana Baltar (2007) analisa seis filmes, entre eles, o documentário Edifício Master.

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mas marcam um lugar, para as narrativas melodramáticas, de profunda comunicação, em uma esfera sensorial e sentimental, com o público” (BALTAR, 2007, p. 88)10. Esse ex-cesso que reconhecemos em As Canções dialoga com uma tradição de matriz popular que “vai desde espetáculos populares em feiras e praças, até uma certa literatura de almanaques e cordéis. Espetáculos pautados no engajamento do público, o povo rui-doso, exaltado, nunca contido diante da narrativa” (BALTAR, 2007, p. 88). Como escreve a autora, à narrativa melodramática interessa um engajamento do público, mais do que a simples identificação ou adesão (o melodrama até permite ambiguidades, mas jamais distanciamentos, ela explica). Daí extraímos que o canto amador é não apenas um dispositivo de mise-en-scène, mas um elemento que estabelece um vínculo efetivo e afetivo com o espectador. Não importa tanto que as histórias contadas sejam críveis ou não; espera-se que algo de comovente seja dito sobre essas vidas e canções, mes-mo que elas soem excessivas em alguns momentos.

Além disso, o filme se baseia em um pacto de intimidade, também conforme a formulação de Baltar (2007)11. Ele estabelece uma atmosfera de cumplicidade entre personagens e diretor/equipe que favorece o engajamento dos sujeitos filmados em uma performance de si pautada pela exposição da vida íntima. As intervenções de Coutinho são pontuais, mas fundamentais para que a interação prossiga: sempre com voz branda, ele pede esclarecimentos, provoca desdobramentos de determinados co-mentários feitos pelos depoentes, garantindo que o tom seja mais de conversa do que de uma entrevista formal e estruturada. O efeito sensorial e sentimental dessa relação, para o espectador, é o de uma relativa proximidade.

5 EFEITO CATALISADOR DO CANTO AMADOR

Na maior parte do tempo, o que se vê são sujeitos plenamente cons-cientes de como querem ser filmados, o que ressalta a dimensão de artifício do dispositivo preparado pelo diretor. Como escreve Comol-li (2008) ao falar da mise-en-scène documentária, todo mundo sabe

mais ou menos o que significa ser filmado e, diante de uma câmera, ajustamo-nos à situação de tomada, endereçando-nos ao olhar do outro. Em As Canções isso se dá de forma bastante pronunciada. José Barbosa, oficial reformado da Marinha, antes de deixar o palco, pergunta à equipe: “E agora, saio tristemente ou alegremente?”. Apesar de alguém da equipe dizer “alegre!”, ele deliberadamente opta por sair cabisbaixo. E antes de deixar completamente o palco ele “arremata” sua performance, cantando os últimos versos de uma conhecida canção de Adelino Moreira (A volta do Boêmio), que dá coerência ao relato dado anteriormente.

11 Nem toda narrativa baseada no excesso se aproxima da imaginação melodramática, conforme explica Baltar. O excesso é um traço que pode ser associado ao terror, ao grotesco, ao fantástico e até ao erótico. Além disso, nem toda manifestação da intimidade se configura como um caráter melodramático. É preciso que o pacto de intimidade seja explicitado e reiterado ao longo da narrativa, inclusive para legitimá-la. Um exemplo dado por Baltar é o filme Nelson Freire (2002) de João Moreira Salles: para ela, nesse filme há uma intimidade compartilhada entre sujeito filmado e equipe, mas que não chega a se configurar como um traço do melodrama.

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Gesto semelhante é feito por Maria Aparecida, ao final do filme: depois de falar sobre sua duradoura relação com o marido e de não se importar com as suas possíveis traições, ela levanta de sua cadeira e vai em direção a Coutinho, quebrando o protocolo e obrigando a câmera a se reposicionar, dizendo: “E essa aqui? ‘Os sonhos mais lindos sonhei, de quimeras mil um castelo ergui...’”12. Coutinho começa a cantar junto com ela, mas logo se contém, deixando Maria Aparecida ocupar completamen-te a cena. Sua história é repleta de situações que fazem o relato soar pouco crível, no entanto, ninguém a questiona. Ela canta mais alguns versos e deixa o palco acenan-do “tchau”, já de costas para a câmera, ciente de que agora é hora de partir. O canto amador potencializa uma disposição para a performance, mesmo que cada um tenha margem de liberdade para conduzir sua própria mise-en-scène. Ele funciona como um catalisador.

Quando Coutinho se contém, entretanto, se torna patente que a proximidade em relação aos sujeitos não se confunde com a adesão. Por vezes ele recua, mantém um distanciamento. Outras vezes, é o personagem mesmo quem recua, como é o caso de Ózio: Coutinho não entende bem o que ele diz, chega a pedir maiores explicações, mas o homem, com simplicidade, responde sempre de forma lacônica, recusando o olhar.

Em vez de buscar informações de ordem factual, como “onde você nasceu?”, Coutinho busca informações de ordem afetiva, sensível13. Em vez de fatos, afetos. Não é à toa que as canções eleitas pelos sujeitos, em sua maioria, versam sobre amores, traições, perdas, luto. As músicas são uma contribuição criativa dos sujeitos para o fil-me, mobilizam memórias e narrativas e fazem salientar a dimensão performática do depoimento, dando-nos “acesso à autoimagem de cada um dos intérpretes” (ESCOREL, 2012, s.p.).

Ressaltamos, ainda, a presença do canto amador sem seu relato correspon-dente, sem qualquer pista acerca da história por trás daquela canção. É o caso dos personagens Nilton, José e Fátima, que são vistos apenas cantando. Fátima já havia ganhado destaque em Babilônia 2000, documentário no qual ela aparece guiando a equipe pelo Morro da Babilônia, cantando uma música da Janis Joplin (figura 2). Só que em As Canções, mesmo tendo concedido uma longa entrevista ao diretor, sua participação se dá unicamente ao entoar Ternura14, composição de Renato Correa e

12 Trata-se da canção Fascinação, de F. D. Marchetti e M. de Feraudy, bastante conhecida na interpretação de Elis Regina.13 Como afirmou o diretor: “Sei que a crítica irá dizer que é uma diluição de Jogo de Cena e que não fui adiante, mas existe nele algo sobre música que nenhum outro filme possui, pois é possível entender que a canção e o Brasil têm algo de particular. É também um trabalho em que deixo de perguntar às pessoas coisas como “onde você nasceu”. Não quero fazer mais isso e dessa forma sinto que parei”. (COUTINHO, 2011a, s.p.)14 Segundo o diretor, essa foi a única “fraude” forjada pelo filme, já que esta não seria a música da vida de Fátima (COUTINHO, 2011a, s.p.).

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Figura 2: Fátima cantando em dois filmes de Coutinho.

Fonte: Frames do filme As Canções (Eduardo Coutinho, 2011).

Quando a presença um sujeito se deve exclusivamente a sua performance cantada, tudo se passa como se ele falasse mais por meio do canto do que poderia dizer em um relato verbal: o canto amador se basta. Como em muitos relatos há um ex-cesso e o sujeito filmado está abandonado à sua própria auto-mise-en-scène – o perso-nagem parece “inflar”, ocupando totalmente a cena, inteiramente imerso nesse desejo de se tornar imagem-som para o filme e, ao mesmo tempo, tecendo um relato coeren-te para “justificar” a escolha de determinada canção –, nesses outros momentos, há um recuo, como se o filme se abrisse à imaginação do espectador. “Em ocasiões em que não fazem nada, quando apenas cantam sem se mover, elas [as personagens] parecem despir ainda mais suas almas; em muitos filmes, cantar revela a verdade tão desnuda que o diálogo não pode contê-la de forma crível” (GORBMAN, 2012, p. 24). Os sujeitos, ao cantarem, investem na cena diferentemente da maneira usual pela qual investem em uma entrevista, por exemplo, e este investimento, por vezes, é suficiente para ga-rantir sua inserção no filme. Nessas situações, o espectador não dispõe de maiores informações para contextualizar a canção e a história de vida dos personagens: ele ganha uma margem de liberdade para fazer suas próprias inferências a partir da letra que é cantada e para simplesmente fruir a performance musical.

6 O CANTO AMADOR EM OUTROS DOIS FILMES

As Canções dá continuidade ao método de Coutinho de criar situações em que a entrevista – ou conversa – se torna a forma dramática ex-clusiva para a aproximação aos sujeitos filmados, que não aparecem vinculados a um antes ou depois, nem a uma interação continuada

com outros sujeitos de seu entorno. Nas palavras de Ismail Xavier (2010):

Donaldson Correia, conhecida nas vozes de Roberto Carlos e Wanderléia. Embora o diretor não a interpele no filme, não deixa de ser perceptível para o espectador algo da relação que ela estabelece com a equipe: enquanto Fátima canta, o seu olhar encontra outro olhar ao lado esquerdo, atrás da câmera, a quem ela retribui com um sorriso dis-creto, sem interromper os versos.

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No centro de seu método está a fala de alguém sobre sua própria experiên-cia, alguém escolhido porque se espera que não se prenda ao óbvio, aos clichês relativos a sua condição social. O que se quer é a expressão original, uma maneira de fazer-se personagem, narrar, quando é dada ao sujeito a oportunidade de uma fala afirmativa. Tudo o que da personagem se revela vem de sua ação diante da câmera, da conversa com o cineasta e do con-fronto com o olhar e a escuta do aparato cinematográfico (XAVIER, 2010, p. 66-67)15.

Xavier fala de uma agonia do entrevistado (no sentido de competição, desa-fio) ao encarar o efeito-câmera (XAVIER, 2010, p. 72). Por um lado, há o desejo de falar de si, de apropriar-se do jogo do filme, de endereçar-se a um possível interlocutor. Por outro, há quase sempre um esforço dos sujeitos filmados em obedecer à regra de não olhar para a câmera e atuar como se ela não estivesse ali e focar sua atenção e fala no cineasta e na equipe. Em As canções, curiosamente, vários personagens olham para a câmera, como é o caso de Lídia, ao interpretar O Tempo Vai Apagar16.

Lembremos, com Xavier, da sequência célebre de Edifício Master na qual Cou-tinho entrevista Henrique, um senhor aposentado e solitário, morador do prédio que dá nome ao filme e que vivera um encontro inusitado com o cantor americano Frank Sinatra. Ao final da sequência, Henrique interpreta My Way, canção que conta a histó-ria de sua vida. A gravação da peça começa a tocar enquanto ele canta e lê a canção escrita sobre uma folha de papel. A interpretação começa discreta, mas ganha inten-sidade na medida em que a câmera se aproxima do personagem. Há um crescendo sonoro e também dramático, graças às escolhas da mise-en-scène. Com a entrada da orquestra no acompanhamento da música, Henrique canta ainda mais forte, até cul-minar em um fortíssimo, o ápice de sua performance para a câmera (que a esta altura já se encontra bem próxima e passa a enquadrar uma segunda câmera – explicitando a presença da mediação técnica).

Nesse exemplo de Edifício Master, o canto se constitui como o momento mais expressivo da entrevista, seu ponto culminante. Tudo caminha para esse grand finale reservado à interpretação de My Way, momento em que o personagem é invadido pela música e que algo em sua performance transborda.

O senhor Henrique coroa sua presença no filme com uma performance em que vale o dueto com o Frank Sinatra; lá está a câmera a pôr em foco uma “segunda unidade” que se faz mais invasiva diante da catarse lacrimosa, compondo bem de perto uma imagem que não veremos exatamente da-quele ponto de vista, pois a cena de Edifício Máster requer essa combinação de insistência (na duração) e recuo (na modulação do que há de invasivo no olhar). E requer que o senhor Henrique viva a sua catarse como um ator que ignora a câmera, elegendo o cineasta como mediador (é para ele que olha e é com ele que conversa) (XAVIER, 2010, p. 74-75).

15 O autor refere-se aqui à fase posterior ao filme Santo Forte (1999).16 Autoria de Chiquinho e Marinho, conhecida na interpretação de Roberto Carlos.

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Em Edifício Master, o canto amador acontece em momentos pontuais (são, ao todo, seis inserções), mas fundamentais para a narrativa construída. Se levarmos em consideração a questão da duração – tão cara à música e ao cinema documentário – o que ocorre na entrevista de Henrique é um adensamento da sua performance: ela ad-quire maior intensidade e expressividade na hora do canto. Já em As Canções, o canto amador não necessariamente surge como momento culminante e quase não produz variações nos componentes da mise-en-scène. Se em outros filmes do diretor a canção expandia a cena, por assim dizer, em As Canções ela oscila entre um dispositivo de controle (uma vez que a regra do jogo é clara: todos devem cantar) e de descontrole (algo de singular pode emergir a partir daí). Por aparecer repetidas vezes, a impressão é de que a temporalidade narrativa de As Canções é mais plana, horizontal, sem pontos culminantes (ela oscila entre momentos um pouco mais intensos, outros menos, mas sem grandes arrebatamentos).

Lembremos como o canto amador surge em Boca de Lixo (1992), realização do Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP), filmado no vazadouro de Itaoca, no município de São Gonçalo (a 40 km do Rio de Janeiro). Nesse filme, o canto aparece de modo pontual, mas com enorme expressividade. Entre os vários trabalhadores que tiram seu sustento do lixão, Coutinho entrevista Cícera, uma senhora pernambucana que foi para o Rio acompanhando o marido. Depois de ser vista no lixão, ela chega em casa. Escutamos sua voz off dizendo que a misericórdia de Deus poderá fazer sua vida melhorar. Então vemos a mulher ao lado da filha e do genro, posando juntos para a câmera, em frente à modesta casa de pau-a-pique, como em uma foto de família. Mais um corte. A mulher agora está dentro de casa e evoca novamente a Deus, dizendo que tem esperança de que Ele dará a sua filha uma chance para “seguir o que ela bem quer”. Coutinho pergunta à moça o que ela quer e ela responde prontamente que quer ser cantora.

Do lado de fora, com os pés descalços, a menina entoa a canção romântica Sonho por Sonho (uma conhecida trilha de telenovela). Ela fecha os olhos e canta com vigor.

A figura da adolescente que canta está longe de ser reduzida a um mero exemplo da relação entre a cultura popular e as formas simbólicas midiáti-cas. O que aparece aí é outra coisa. Trata-se da moça-cantora sem palco, es-trelato ou público; a moça-dentro-da-imagem, movendo-se no seu próprio imaginário, sem espetáculo ou afetação. Uma antiestrela tentando fabular seu desejo disparatado (GUIMARÃES, 2010, p. 195).

Ao final do filme, a jovem reaparece cantando a canção e mais uma vez a fa-mília posa para a câmera, mas agora ao som da voz do músico José Augusto (ouvido por um pequeno rádio que a moça tem em mãos). Coutinho incentiva: “canta, canta junto!”. E ela canta.

César Guimarães (2010) observa a dificuldade da menina em encarar a câme-

ra nesse segundo momento. Ela tem a voz embargada e desvia o olhar,

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[...] como se dividida entre duas imagens: aquela primeira, que lhe foi ofe-recida para realizar vicariamente seu desejo de ser cantora, e esta outra, mais incerta, na qual não se encaixa de todo, na qual ainda procura se situar. Descolando-se do seu próprio imaginário, os seus olhos procuram o inter-locutor, que se afastou um pouco para mostrá-la inteira, endereçando-nos sua alteridade irremovível. Aqui a fabulação criadora – que nos filmes de Perrault e Rouch remetem a uma lenda ou a um animal mítico – só pode se desenvolver no ambiente da vida cotidiana, com seus pequenos enfrenta-mentos, sua cota diária de invenção, às vezes mínima, mas capaz de fazer frente à dureza do trabalho e à reificação que ele produz (GUIMARÃES, 2010, p. 196).

Em Boca de Lixo, a canção surge em meio a uma sequência de grande comple-xidade (logo depois o filme termina, em chave irônica, mas ainda diante de um cenário desolador). Cantar se configura como uma possibilidade precária e provisória de fabu-lação, de invenção do cotidiano, de esperança de que a vida pode ser diferente. “Can-tar, como assobiar no escuro, é em essência uma tentativa de organizar algo a partir do caos – música, como um som organizado, dá ou promete uma estrutura reconfortante” (GORBMAN, 2012, p. 29)17.

Em As Canções, a canção assume também seu papel reconfortante, mas tudo se passa de forma um pouco mais simples do que em Boca de Lixo, dentro de uma lógica de fundo explicativo, causal. A inglesa Isabell, com seu sotaque carregado, fala de sua vinda ao Brasil para praticar capoeira angola, onde conheceu um homem com quem se casou. Ela é sucinta em sua narrativa, mas conclui dizendo que, depois de ser “abandonada” pelo marido, foi um samba o ponto de partida para recomeçar a vida. Ózio, por sua vez, precisou compor uma canção para sua falecida esposa para superar o luto. Também é o caso de Ramon, que compôs um lamento, como um pedido de desculpas ao seu falecido pai. Enfim, a relação entre o vivido e a canção muitas vezes é literal: para entender uma vida, bastaria interpretar as canções ao pé da letra.

Sílvia, ao final do filme, após entoar Retrato em Branco e Preto, de Chico Buar-que e Tom Jobim, afirma que cantar diante da câmera é como concluir um ciclo, colo-car um ponto final em uma conturbada história de amor. É “fechar com chave de ouro”, ela conta, encerrando também o filme. No entanto, quando ela se retira de cena, a câmera continua filmando a cadeira vazia, como se dissesse que sempre haverá uma nova história a ser contada/cantada. Por se constituir como um filme-painel em que todas cantam e contam, de forma similar, inferimos que As Canções poderia continuar ad infinitum. O filme termina, mas a possibilidade de narrar e rememorar continua: não

17A formulação da autora assemelha-se, em muito, à formulação de Gilles Deleuze e Félix Guattari, logo no início do platô Acerca do ritornelo: “Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela pára, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada instante. Há sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou o canto de Orfeu” (DELEUZE e GUATARI, 1997, p. 101).

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há fechamento, nem promessa de cura das feridas, embora o diretor acreditasse nisso, como ele mesmo afirmou.

Em todas as entrevistas, eu sabia que as pessoas iam sair da filmagem me-lhores. A música cura ferida. Como a análise. Acho que elas têm uma história que valeu a pena ser contada e que, em certa medida, superaram. Pelo fato de cantarem, você supera essa dor, cicatriza. Música é pra isso. Eu não estou preocupado em saber se isso tudo é verdade. Se me contam bem, é verdade (COUTINHO, 2011b, s.p.).

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitos outros aspectos poderiam ser desdobrados a partir da aná-lise de As Canções (como por exemplo, a escolha deliberada pela sincronia dos sons e imagens, a ausência de trilha sonora, a insis-tência na duração dos planos, etc., aspectos presentes em outros

filmes do diretor e igualmente relevantes para compreendermos a dimensão sonora da escritura fílmica). Na impossibilidade de discorrer sobre todos eles, destacamos ao longo do texto apenas alguns, buscando evidenciar como a canção possui um efeito catalisador e potencializador de performances dos sujeitos, que aí investem com seu corpo e voz.

Mas algumas questões ainda ficam sem resposta: por que, afinal, a imagem continua quando os sujeitos choram? Por que o som continua quando a mulher se re-tira do palco e vai chorar atrás da cortina? Por que o filme precisou de um preparador vocal (aspecto que nos é informado na ficha técnica)? Por que Coutinho se contém e não prossegue cantando junto com sua entrevistada?

O que podemos afirmar é que a canção não surge neste filme como um ele-mento acessório ou pontual. Ela é um elemento central da mise-en-scène documentá-ria. A grande diferença em relação a filmes anteriores se deve ao fato de que, aqui, o corpo que canta já não está imerso no cotidiano, no mundo da vida. O canto foi intro-duzido em um espaço “neutralizado” (o palco), onde todos os sujeitos se converteram igualmente em atores-cantores. Então, o elo com a experiência precisa ser reconstruí-do por meio de um relato verbal coerente (e comovente).

Apesar de ser um recurso periférico ou mesmo raro no cinema documentá-rio, o canto amador é um dispositivo que instiga reflexões sobre elementos impor-tantes da mise-en-scène, tanto no que diz respeito às estratégias de aproximação dos sujeitos filmados, quanto aos modos dos realizadores se manifestarem (dialógica ou

18 Citamos como exemplos ao menos dois outros filmes que se valem desse dispositivo: Z32 (Avi Mograbi, Israel/França, 2008) e Au chic resto pop (Tahani Rached, Quebéc, Canadá, 1990). Ambos são comentados brevemente em nossa tese, ao final do capítulo sobre o canto amador (LIMA, 2015, p. 179-181).

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criticamente) no interior da cena e da escritura fílmica18. Em As Canções, o canto ama-dor surge associado à modalidade da entrevista ou conversação e funciona, a um só tempo, como catalisador de performances de si e como artifício que aciona imagens--lembranças associadas a histórias de vida. Quando narradas e compartilhadas com a equipe e com o filme, tais histórias permitem aos sujeitos apropriarem-se de uma enunciação e engajarem-se na cena com o seu corpo e as imperfeições de sua própria voz, suportando uma dupla agonia: a de enfrentar o projeto do documentário e tam-bém o de encarar um sofrimento ao qual a música de algum modo se vincula. Tudo isso contribui não apenas para uma “verdade da performance” (que alcançaria maior legitimidade ou autenticidade, nas palavras de Baltar), mas também para o estabeleci-mento de um vínculo emocional com o espectador, instado a fruir das interpretações musicais e rememorar sua própria experiência associada às canções (LIMA, 2015, p. 177-178): sejam aquelas que marcaram sua própria vida e que sintetizam momentos emblemáticos do passado, sejam aquelas músicas baratas ou românticas que ele ex-perimenta coletivamente, na vida cotidiana. Canções que, de algum modo, o visitam e o habitam19.

19 Fazemos aqui referência ao poema de Drummond A música barata, que inspirou José Miguel Wisnik em uma breve análise de As Canções.

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Referências

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COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder – A inocência perdida: cinema, televisão, fic-ção, documentário. Belo Horizonte: Edito-ra UFMG, 2008.

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DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. Tradução de Sueli Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997.

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GORBMAN, Claudia. O canto amador. Tra-dução de José Cláudio S. Castanheira. In: SÁ, Simone Pereira de; COSTA, Fernando Morais (org.). Som + Imagem. Rio de Ja-neiro: 7Letras, 2012. p. 23-41.

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MARZOCHI, Ilana Feldman. Jogos de cena: ensaios sobre o documentário bra-sileiro contemporâneo. 2012. Tese (Dou-

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WISNIK, José Miguel. Música barata. O Globo, São Paulo, 17/12/2011. Disponí-vel em: <http://letraspartilhadas.com.br/?p=739>. Acesso: 05 jan. 2015.

XAVIER, Ismail. Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna. In: MIGLIORIN, Cezar (org.). Ensaios no real. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2010. p. 65-79.

Filmografia

BABILÔNIA 2000. Direção de Eduardo Coutinho. Brasil, 2001. (80 min): son. color.

BOCA de lixo. Direção de Eduardo Couti-nho. Brasil, 1992. (48 min): son. color.

CANÇÕES, As. Direção de Eduardo Couti-nho. Brasil, 2011. (92 min): son. color.

CHIC resto pop, Au. Direção de Tahani Ra-ched. Québec, 1990. (85 min): son. color.

EDIFÍCIO Máster. Direção de Eduardo Cou-tinho. Brasil, 2002. (110 min): son. color.

FALTA que me faz, A. Direção de Marília Rocha. Brasil, 2009. (85 min): son. color.

JOGO de cena. Direção de Eduardo Couti-nho. Brasil, 2007. (105 min): son. color.

NELSON Freire – um filme sobre um ho-mem e sua música. Direção de João Mo-reira Salles. Brasil, 2002. (102min): son. color.

NOTÍCIAS de uma guerra particular. Di-

reção: João Moreira Salles. Brasil, 1999. (57min): son. color.

VOU rifar meu coração. Direção de Ana Rieper. Brasil, 2011. (76 min): son. color.

Z32. Direção de Avi Mograbi. Israel; Fran-ça, 2008. (82min): son. color.

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1 INTRODUÇÃO

Eduardo Coutinho sempre teve grande desejo e capacidade de ouvir e, principalmente, trabalhar com o outro. Algo que Pierre Bourdieu (apud Lins, 2004, p. 23) “define como um exercício espiritual, visando obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do olhar que lan-

çamos sobre os outros nas circunstâncias da vida”. Medina (2007) acredita que não é possível conceber que tanto a montagem de um filme quanto o desenvolvimento de uma reportagem tenham uma fluência narrativa criativa centrada somente no enca-deamento das imagens ou textos. Existe, na verdade, todo um processo de captação de informações, de encontro com os personagens, crucial para o que vem depois. Mas por que é tão raro constatar encontros assim no telejornalismo diário ou encontrar es-paço para um jornalismo mais humano e menos engessado nos padrões de televisão, uma área tão marcada pelas pressões de tempo e de espaço? Essa pesquisa se proje-tou no intuito de tentar encontrar respostas para esses questionamentos e sugerir um caminho de reflexão para o telejornalismo atual. O objetivo é compreender como as técnicas de entrevista utilizadas por Eduardo Coutinho podem ser aplicadas ao jorna-lismo de televisão. Além disso, identificar procedimentos e comportamentos do do-

Greici Audibert1 Ilka Goldschmidt2

1 Jornalista e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Processos Socioculturais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó).2 Professora orientadora. Mestra em Comunicação Social.

AS POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÃO ENTRE O MODO DE ENTREVISTAR DE EDUARDO COUTINHO E DOS JORNALISTAS DE TELEVISÃO

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cumentarista que possam significar um legado para a entrevista em profundidade no jornalismo e verificar qual a dificuldade dos jornalistas em utilizar procedimentos que humanizem suas reportagens, com base no trabalho do documentarista.

A análise fílmica do conteúdo dos documentários de Eduardo Coutinho parte das entrevistas realizadas pelo diretor nos filmes Santo Forte (1999), Peões (2004) e O Fim e o Princípio (2005). As produções foram selecionadas levando em consideração um dos períodos mais intensos da produção do documentarista, além do fato do ci-neasta optar pelo que Consuelo Lins (2013) chama de “locação real” ao se inserir no espaço dos personagens.

Para o estudo, foram priorizados aspectos relacionados aos procedimentos e comportamentos de Coutinho enquanto entrevista e provoca a fala dos personagens. A pesquisa complementa-se com as entrevistas dos jornalistas Ariel Palácios, corres-pondente da Globo News em Buenos Aires, e Domingos Meirelles, hoje apresentador do programa Repórter Record Investigação. A escolha dos profissionais se sustenta na ampla experiência de ambos como repórteres de televisão. As perguntas feitas aos jornalistas foram elaboradas a partir da análise dos documentários e estão, portanto, associadas ao modo de entrevistar de Eduardo Coutinho.

2 SANTO FORTE: O ENCONTRO COM A PALAVRA

O documentário de longa-metragem Santo Forte, de 80 minutos, é baseado na fala dos personagens que abordam suas trajetórias reli-giosas. O filme de 1999 é centrado na favela Vila Parque da Cidade, na Gávea, no Rio de Janeiro. Coutinho se concentra no imaginário

religioso que atravessa o cotidiano popular (LINS, 2004).

No filme, Coutinho (C) utiliza uma maneira muito particular de perguntar ao tomar para a si o interesse pela vida das pessoas. Como em seus demais documentá-rios, tem o hábito de usar os termos: “me conta mais sobre isso”; “me explica”; “conta para mim”. Desta forma demonstra um interesse primeiramente pessoal em saber o que está por trás do personagem. Por saber que histórias interessantes podem não surgir naturalmente na entrevista, ele faz perguntas que indicam para a fonte e para o espectador que ela sabe mais do que aparenta. Como descreve Lins (2004, p. 103), “sentindo que aquela história é boa, que há um interesse especial por ela, o entrevis-tado se esmera em contá-la”. É dessa forma que ele entrevista Dona Thereza (D), con-siderada a personagem central do documentário.

C: O que são essas pulseiras no seu braço?D: Essa é dos meus guias.C: O que quer dizer cada guia dessas?D: Cada guia dessas pertence a um orixá.C: Pode mostrar cada uma delas e qual o orixá?

Dona Thereza aponta então para as pulseiras e explica a função de cada uma

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delas. Coutinho observa os detalhes da cena. Por meio desse olhar atento ao ambiente e aos elementos que cercam a entrevistada, ele traz o inesperado e, assim, se aproxima com naturalidade da personagem. Desestabiliza a fonte, não com o objetivo de des-norteá-la, mas com a ideia de criar uma estratégia e obter respostas mais autênticas. Um exercício que qualifica o diálogo, ao contrário da situação em que o entrevistador imprime o seu ritmo, inclusive estabelecendo respostas, como ocorre na maior parte das situações de entrevista, segundo Cremilda Medina (2001).

Para a autora, só o diálogo consegue trabalhar para a comunicação humana. O modo como Eduardo Coutinho se relaciona com seus entrevistados faz com que os pontos de vista se revelem por meio dessa interação. Uma troca que Bakhtin (apud LINS, 2004) chama de “dialogismo”, onde o “eu” nunca está completo, mas em diálogo com o que é o outro.

C: A senhora criou seis filhos sozinha?D: Sozinha. Criei oito netos também sozinha.C: Por quê?

“Por quê?” é uma pergunta simples. Mas como nas entrevistas de Coutinho a riqueza está na simplicidade, ganha uma relevância maior. O momento e o modo como os “porquês” são inseridos conseguem instigar a fonte a ir além. Em nenhum momento ele interfere nas respostas de Dona Thereza. Nem mesmo quando há lon-gas pausas. Tampouco insiste em obter respostas mais complexas. A simplicidade é o carro-chefe do diálogo.

O que de fato importa para provocar a fala dos personagens é a postura de Coutinho nas entrevistas, que de filme em filme ganha novas dimensões. Pouco importa que ele seja crente, ateu ou agnóstico, o que não quer dizer que escamoteie a diferença social entre os dois lados da câmera, essencial para fazer do ato da filmagem ‘uma experiência de igualdade utópica e pro-visória, como diz. O diretor tenta compreender o imaginário do outro sem aderir a ele, mas também sem julgamentos ou avaliações de qualquer or-dem, ironias ou ceticismos, sem achar que o que está sendo dito é loucura (LINS, 2004, p. 107).

C: Gosta de música?D: Adoro música, adoro Beethoven. Eu já passei uma vida lá na terra onde ele nasceu.C: A senhora acha que teve uma vida no tempo de Beethoven?D: Por isso que eu gosto. Eu sou analfabeta, eu não sei ler, não entendo nada. Como é que posso gostar de Beethoven? O senhor não acha difícil isso?

É perceptível já uma inversão de papéis. A entrevistada, antes tímida e “mo-nossilábica”, começa a lançar perguntas para o seu entrevistador. O cineasta não res-ponde, e o corte encaminha a conversa para outro rumo. Dona Thereza diz que não botou café para a “velha” naquele dia. Botou vinho, moscatel.

D: Vovó Cambina, não esqueça esse nome. Vovó Cambina. Ela foi do tempo da escravidão.C: A senhora não vê a cara dela, a senhora sente só?

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D: Não. Eu vejo. Ela é velhinha, mas uma velha bonita.

A personagem então se solta. Quer falar. Lins acredita que a conversa com Dona Thereza é um exemplo de como se reflete a influência de Coutinho na fala dos outros.

A avaliação que Dona Thereza faz dessa escuta a estimula: ela capricha, escolhe as palavras, encontra um tom. Coutinho não é um interlocutor co-mum porque não está ali para debater o que ela diz, nem dar sua opinião – e é essa atitude o que diferencia totalmente do que ele faz do que é feito em muitos documentários e matérias para a televisão. Sua escuta é extre-mamente ativa, sem colocar em questão, no entanto, o que está sendo dito (LINS, 2004, p. 109).

D: E a minha operação? Quer saber não? Posso falar?C: Pode.D: No dia da operação eu subi oito horas da manhã. Quando eu desci lá de cima era quase nove horas da noite. As donas que limpavam o chão falavam pra minha filha assim: vai embora porque ela vai morrer. Olha, o senhor sabe que depois deu meia noite e meia as visitas que eu tive? Mas chegou todo mundo. Os espíritos chegaram na beira da minha cama.C: Espíritos, guias, pessoas mortas, todos lá?D: Todos chegaram na beira da minha cama.C: A Vovó Cambina tava?

Aqui, ao lembrar da Vovó Cambina, Coutinho demonstra total imersão e au-têntica curiosidade na vida de Dona Theresa. Segundo Lins (2004), ele abre um vazio para que o entrevistado possa preencher. Não se trata, no entanto, de apenas dar voz ao outro. O diretor, na verdade, tanto em Santo Forte como nos demais documentários, não fez filmes sobre os outros, mas “com os outros”.

3 PEÕES: A MELANCOLIA REVELADA

Peões, também um documentário de longa duração de 85 minutos, representou a realização de um velho sonho de Eduardo Coutinho: saber aonde foram parar as pessoas comuns que participaram dos movimentos sindicais do ABC em 1978, 1979 e 1980. Interessava ao

documentarista não quem estava no palanque, quem estava à frente dos discursos, mas sim quem assistia. De onde vieram e por quê estavam lá. As eleições para presi-dência de 2002, com Luiz Inácio Lula da Silva se candidatando pela quarta vez, foram o momento escolhido para realização do filme, feito em parceria com o documentarista João Moreira Salles.

O documentário foi rodado em São Bernardo do Campo, em São Paulo, e em Várzea Grande, no Ceará, com base na história de vida dos metalúrgicos que participa-ram das mobilizações operárias. No filme, Coutinho se volta ao que Lins (2004) chama de mais místico no cinema político – e no pensamento de esquerda: a classe operária, os trabalhadores assalariados, a quem depositaram no século vinte a esperança de

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um mundo novo. O filme, por fim, se transforma em um documentário melancólico. O mais melancólico, segundo a autora, justamente por mostrar indícios do enfraqueci-mento e a fragmentação da classe operária.

C: A senhora falou ali que tinha um sonho de metalúrgica. Explica isso pra mim.DS: É que eu achava muito bonito. Ficava muito emocionada quando na época, na época das greves de 79, a gente não tinha televisão, mas eu escu-tava no rádio. E eu achava aquilo tão bonito, quando alguém tava lutando para conseguir alguma coisa né. Que até naquele tempo, lutar, brigar pelos seus direitos era proibido, né?

Dona Socorro (DS) é de Várzea Grande e segue falando de sua trajetória como metalúrgica entre 1985 e 1994, em São Paulo, e como membro da diretoria do Sindica-to dos Metalúrgicos do ABC. Ela voltou para o Ceará por causa do filho.

C: E a senhora voltou pra cá e tá vivendo de que? DS: Agora eu sou simplesmente dona de casa.C: E vive de que? DS: Vivo da pensão desse menino. Responde a entrevistada, referindo-se ao filho.

Apesar da personagem não responder à primeira questão de Coutinho, por trazer à conversa uma certa insatisfação de ser “simplesmente” uma dona de casa, o cineasta não deixa de refazer a pergunta. Não antes de valorizar o silêncio e o olhar de Dona Socorro. Sua sensibilidade e capacidade de observação foram capazes de captar a sensação da ex-operária. “É nesse espaço vazio da composição que também ganham forma sutis meneios de cabeça de Dona Socorro. Inscrevendo, num átimo, toda a me-lancolia do filme” (GUIMARÃES; MESQUITA, 2013, p. 597).

Para Coutinho (apud LINS 2004), o entrevistador pode até errar, equivocar-se na pergunta, fazer um questionamento imbecil e ter como resultado uma resposta fantástica. O pior de tudo, no entanto, é não conseguir respeitar o silêncio. Como des-creve Medina (2001, p. 83) “a emoção deve passar por meio da atmosfera narrativa, da penetração sutil nas entrelinhas do diálogo, nos silêncios, nos ritmos de cada pessoa.” Com Luiza, também ex-metalúrgica, o diretor começa a falar sobre família, outra carac-terística de Eduardo Coutinho. Em uma entrevista concedida a Maria Campaña Ramia (2013), o cineasta diz que a vida é ter origem, família e as lembranças do passado. Por essa razão, seus questionamentos são feitos de uma maneira que todos possam responder a partir de suas próprias trajetórias. “Em suma, faz perguntas que qualquer pessoa pode responder a partir da sua experiência de vida” (LINS, 2004, p. 148). Segun-do a produtora, quando as pessoas se narram a partir de suas experiências de vida, as chances de se obter uma fala mais viva aumentam consideravelmente. É por meio da história pessoal de Luíza (L) que sua participação ganha dimensão no filme.

C: Com filho, a senhora ficou?L: Fiquei. C: Quantos?L: Fiquei com sete filhos. Com uns três anos eu conheci o Zito.

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C: O que fazia o Zito?L: O Zito dormia. Nessa época ele dormia bem. Não trabalhava ainda, vivia numa pensão de um tio dele. Nós fomos casados 22 anos.C: Mas o Zito não era metalúrgico não?L: Zito era metalúrgico da Volkswagen, mas depois que me conheceu. Ele queria furar a greve e nós brigou muito, tivemos um grande desentendi-mento. Não tanto por causa de outra coisa. Só foi por porque eu joguei uma pedra nele e machuquei. E ele disse que desse jeito não dava pra viver co-migo e ele bebia muito. C: E a senhora conseguiu se ver livre disso?L: Eu sou livre, sempre fui. Em tudo. Eu sou livre em namoro, política, filho, cozinhar, lavar. Eu tenho minha mágoa, às vezes eu choro, chingo, mas eu sou livre. Eu saio ali fora, eu sou livre.

O depoimento de Luiza ganha força conforme ela menciona a satisfação em ser uma mulher livre. Ao formular uma pergunta pontual e sensível, Coutinho pro-voca o sentimento de liberdade em Luiza. Trata-se do conteúdo emocional de uma conversa e que Lage (2003) afirma ser suprimido pelos repórteres, principalmente de televisão. Momentos que, segundo autor, podem ser os mais significativos e valorosos de uma entrevista.

Geraldo (G), último dos entrevistados, ainda trabalha como metalúrgico. Em

certo momento, Coutinho pergunta sobre os dois filhos do personagem e, assim, de-senvolve o diálogo que dá origem ao nome do filme.

C: Você gostaria que eles fossem o quê?G: Eu não queria que eles passassem pelo que hoje eu passei não, um peão de montagem. C: O que quer dizer peão?G: O peão na época de 70 era assim. O peão de fábrica existiu na década de 70. O peão é aquele que, no meu caso mesmo, hoje tava aqui, amanhã a firma diz que você vai trabalhar na Bahia. A sede era aqui. Aí terminei aquela obra lá na Bahia, amanhã você vai viajar para o Rio Grande do Sul. Então peão é por causa disso. Peão rodava. Aí chega na década de 80 e tudo ficou peão. Englobou tudo o peão. O peão do trecho o e o peão de fábrica.C: O que que é peão da fábrica?G: É aquele que trabalha com o pé no chão né. C: O que quer dizer pé no chão?G: Trabalha à frente de uma máquina.C: Ferramenteiro também?G: É peão.C: Até o que ganha melhor é peão?G: É. Vestiu o uniforme é peão. Aquele que cumpre o horário, bate o cartão, é peão. O que não é peão é aquele engenheiro, mensalista que chega oito horas, sai mais cedo às vezes, pede a licença, não bate o cartão. E o peão é aquele que bate o cartão. Chega, passou o cartão, bateu. Esse é o peão.

Em meio ao pensamento e ao imaginário que cerca o metalúrgico, algumas vezes com lágrimas nos olhos, surge a bela definição do ser peão. A entrevista nesse caso é resultado de algo que ultrapassa a ideia de interação. É onde se estabelece uma relação. No livro Por trás da entrevista, a jornalista Carla Mühlhaus (2007) lembra que

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“a entrevista ganha contornos humanos imprevisíveis quando se revela, antes de mais nada, uma relação”. Quando isso acontece, pode transcender à categoria de arte.

4 O FIM E O PRINCÍPIO: OS SÁBIOS NARRADORES DO SERTÃO

O filme O fim e o princípio é um documentário de longa-metragem de 101 minutos lançado em 2005. O cineasta, na verdade, não tinha personagens, nem locações. Tampouco sabia o que exatamente ia gravar. Ele vai ao encontro de uma comunidade rural no sítio do

Araçás, no interior da Paraíba, e dialoga com as pessoas, narrando histórias sertanejas. No início do documentário, Coutinho contextualiza a situação:

C: Viemos à Paraíba para tentar fazer um filme sem nenhum tipo de pes-quisa prévia. Nenhum tema em particular, nenhuma locação em particu-lar. Queremos achar uma comunidade rural de que a gente goste, que nos aceite. Pode ser que a gente não ache logo e continue a procura em outros sítios e povoados. Talvez a gente não ache nenhum e aí o filme se torne essa procura de uma locação, de um tema e sobretudo de personagens.

Ao destacar os personagens, o diretor reforça a ideia de Fernão Ramos, para quem “o documentário aparece quando descobre a potencialidade de singularizar personagens que corporificam as asserções sobre o mundo” (RAMOS, 2013, p. 26). Na localidade composta de 86 famílias, são as histórias dos mais velhos, de pele marcada pela vida no sertão, que imprimem o ritmo do filme.

Coutinho participa de todas as etapas da produção. É um dos filmes no qual mais aparece. Pergunta muito desde o início, quando literalmente sai à procura do seu documentário. É justamente nesse processo de busca que o filme se desenvolve. É como se os processos de apuração, negociação e percepção estivessem sutilmente representados em um documentário. Presentes no encontro, no intervalo entre uma entrevista e outra, nas perguntas, nos silêncios, nas respostas ou na falta de respostas. Mauro Araújo (2011) até relaciona o nome do filme ao fato de ser a última produção de Coutinho com resquícios de uma reportagem. Por isso, talvez, o título O Fim e o Princípio.

A primeira personagem é Mariquinha (M).

C: Como é que foi o casamento?M: Casamento foi ruim. C: Por que?M: Ele era um cachaceiro e judiava com eu. C: E durou quanto tempo o casamento?M: Dezessete anos. C: Judiava?M: Judiava muito. Aí ele bebeu uma cachaça e mataram ele.C: E quantos filhos a senhora teve com ele?M: Quatorze.

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C: Quantos criaram?M: Dois. E foi felicidade não ter se criado. C: Por quê?M: Homem do bem. Um que eu criei tá em Porto Velho, Rondônia, Amazo-nas nesse mundo. Só vejo ele de cinco em cinco anos. C: Ele lembra da senhora?M: Se lembra. C: Escreve? Telefona?M: É. C: A senhora sente falta dele?M: Saudade muita.

O trecho é composto de perguntas simples e respostas curtas. Porém, não carentes de intensidade. João Moreira Salles (2004) explica que não basta apontar a câmera para fonte e ordenar uma conversa, como pensaria um expectador desatento. “O segredo parece ser o de não se deixar seduzir pela parafernália do cinema. Ao ado-tar uma espécie de franciscanismo, Coutinho teria descoberto virtudes estéticas da escassez” (Salles, 2004, p. 7).

A escassez a que Salles se refere também está presente na escolha das pala-vras e na formulação das frases, geralmente curtas e diretas. Luiz Cláudio Cunha (2012) chama atenção para entrevistadores que se demoram a desenvolver raciocínios ou concluir questionamentos, pois dessa maneira revelam menos das fontes e mais sobre si mesmos e suas cabeças, por vezes, confusas. Em um pequeno momento de conver-sa com Mariquinha o cineasta trata de temas complexos sem conceber ideias precon-ceituosas ou reafirmar estereótipos. Para Medina (2001), essas características podem ser atribuídas ao perfil humanizado da entrevista.

O próximo entrevistado é Assis (A). Ele puxa as cadeiras para a equipe, pede que seja preparado um café e avisa à produção que pobreza não se pega. Assim, apre-senta um dos clássicos perfis do cinema de Coutinho: o personagem performático.

A: A vida é um parafuso que só quem destroça é Jesus, né?C: Como é que é isso? Explica de novo.A: Eu digo a nossa vida. É um parafuso que só quem destroça é Jesus no dia que chegar a hora, né?

A performance que acontece durante a entrevista, na verdade, é uma das vá-rias que podem ser assimiladas às pessoas presentes nos filmes de Coutinho. Cláudio Bezerra (2013) relaciona esse tipo de performance às particularidades das fontes que não se prendem aos clichês de suas condições sociais. Que inventam um roteiro pró-prio, cheios de expressões, gestos e espontaneidade. Entre os filmes do cineasta, O Fim e o Princípio concentra a maior parte desses legítimos narradores da tradição oral, acredita o autor.

Quando ele chega até Zé de Souza (Z), Coutinho revela a dimensão de sua capacidade em dialogar, mesmo quando encontra dificuldades em colocar a comuni-cação em prática. Zé perdeu a audição. Passa o dia sentado em uma cadeira na sombra

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de uma árvore observando o movimento da rua. Diante da câmera, ele lê e responde vagarosamente às questões elaboradas pelo diretor, escritas em um caderninho.

Z: Estamos fazendo um filme. Como ficou surdo? Como se sente assim? Ho-mem, é o jeito. Cabra não ouvir, mas graças a Deus minha vista tá bem. Mas eu ainda lê uma besteirinha, tô sabendo das coisas né. Fico todo satisfeito quando o camarada vem escrever para mim.

O personagem se emociona. Enche os olhos de lágrimas em vários momentos da entrevista. Enquanto Zé da Souza não ouve, Coutinho não fala. E, mesmo assim, o diálogo acontece. É como diz Medina (2001): o toque criador se reforça diante de situações imprevisíveis.

5 POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÃO

Oito anos atrás, Antônio Cláudio Brasil (2007) já falava da necessida-de de serem criados formatos inovadores na busca de conteúdos para televisão, especialmente por meio de novas linguagens audio-visuais. O autor se referia, principalmente, aos novos consumidores

da mídia caracterizados por um público jovem e de acesso facilitado às informações, devido à internet. Contudo, para cativar as gerações mais recentes por meio de al-ternativas que possam resgatar o interesse pelo noticiário, é importante que sejam regulares os conteúdos diferenciados e criativos. Para tanto, Brasil indica o resgate da conversa com o telespectador no lugar do texto didático e professoral.

De acordo com Brasil (2007), o público anseia por um jornalismo menos hie-

rárquico. Entre as referências citadas pelo autor, está aquilo que Coutinho pratica em seus documentários e que Medina tanto afirma em suas obras: o possível diálogo. O telespectador atual “prefere algo mais no estilo de uma conversa, um diálogo entre pares, em que o público contribua a acrescente valor às notícias” (BRASIL, 2007, p. 58). O autor diz ser algo difícil, porém não impossível de fazer, como confirma o jornalista Domingos Meirelles ao dizer que “se não houver diálogo, não há entrevista. O suces-so depende sempre do nível de entrosamento entre repórter e entrevistado”3. Assim como o jornalista Ariel Palacios4, que vê potencial no diálogo desde que não seja algo unilateral. Por essa razão, ele acredita que uma boa conversa, uma boa entrevista “de-pende por um lado que o entrevistador seja muito ágil, esteja concentrado, prestando atenção em tudo aquilo que a pessoa está falando e que o entrevistado se sinta à von-tade e se interesse pela conversa”.

A melhor entrevista, na visão de Meirelles, é aquela em que o repórter se colo-ca no lugar do outro – justamente uma das grandes características de Eduardo Couti-

3 Todas as referências a Domingos Meirelles, a partir daqui, correspondem ao conteúdo de uma entrevista realizada por Greici Audibert, em 27 de setembro de 2015.4 Todas as referências a Ariel Palacios, a partir daqui, correspondem ao conteúdo de uma entrevista realizada por Greici Audibert, em 21 de setembro de 2015.

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nho enquanto entrevistador. “Os manuais de redação podem dar dicas, mas é o domí-nio da pauta e a percepção do repórter, aliados a uma boa fonte, que vão determinar o resultado final”, garante o apresentador. Na televisão, no entanto, isso somente acon-tece quando o repórter está bem preparado, acredita Palacios. E estar bem preparado significa estudar sobre a fonte, estudar o assunto e ter poder de observação. “A obser-vação em relação à pessoa também é crucial. Os gestos dela, como ela se mexe, fala, como está vestida ou como ela se comporta em relação ao lugar onde está”, explica o correspondente.

Com base nas análises dos três documentários presentes nessa pesquisa, é possível dizer que a observação que Palacios menciona é também uma das marcas nas entrevistas de Coutinho. Algo igualmente possível de ser feito no telejornalismo diário e que, na visão do jornalista, independe de tempo.

O documentário, devido ao seu formato, permite que o entrevistado tenha mais tempo para dialogar com seus personagens, enquanto o modelo da televisão impõe algumas dificuldades para o jornalista administrar o tempo. O fato dos temas serem factuais, o número de pautas, a pressão por resposta, o tempo disponível às fontes e a agilidade que o formato de mídia exige podem interferir no período destina-do às entrevistas. No entanto, apesar de ter a sua importância, não é a quantidade de minutos ou horas que define uma boa entrevista, segundo os jornalistas. Para Palacios,

[...] não depende tanto do tempo, eu acho que depende de outra coisa. O que importa é que o repórter tenha estudado bem sobre a pessoa. Para chegar lá e não ficar perdido nas perguntas. O que eu noto às vezes é que as pessoas vão sem estarem preparadas sobre quem é a pessoa que estão entrevistando ou não conhecem bem o assunto. Ou até preparam uma série de perguntas, mas essas perguntas são muito vagas. Se você chega bem preparado, é incrível como a entrevista rende muito mais. E nesse caso, até uma entrevista rápida rende muito mais. Uma entrevista de 15 minu-tos pode render impressionantemente mais do que uma entrevista de uma hora.

Domingos Meirelles concorda com Ariel quando diz que o fator determinante de uma boa entrevista não é o tempo que o repórter ou o entrevistado dispõem, mas sim se os dois estão realmente preparados para conversarem sobre o tema. Segundo Meirelles,

O repórter, entretanto, deve sempre estudar os pontos cardeais que vão nortear a entrevista. Não precisa passar horas debruçado sobre o material de pesquisa, mas ter uma noção clara do que vai perguntar. Ele deve se questionar, se as perguntas e o tema são relevantes do ponto de vista do telespectador.

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Com base na reflexão dos jornalistas, o tempo não é crucial para determinar uma reportagem de qualidade. Portanto, os prazos geralmente curtos dos repórteres de televisão não necessariamente atravancam uma boa entrevista, desde que os pro-fissionais estejam bem preparados. Meirelles lembra que o telejornalismo diário, de fato, tem um timming próprio, em que muitas vezes o repórter é obrigado a ser mais objetivo no seu contato com o entrevistado. Isso, porém, não quer dizer que não é possível fazer algo com mais profundidade. “Ser objetivo, entretanto, não significa ser despojado de sentimentos. Deve-se dar sempre uma dimensão humana aos entrevis-tados, mesmo durante a rotina do dia a dia, através de uma série de recursos que só a experiência é capaz de ensinar”, diz Meirelles. O apresentador, porém, chama atenção para duas posturas diametralmente opostas, como documentário e televisão, já que o telejornalismo diário tem regras muito rígidas, ao contrário do modelo de documentá-rio, que possui uma abordagem muito mais autoral. “[A televisão] exige um comporta-mento austero e, ao mesmo tempo, impõe liturgia pasteurizada na sua linha editorial com o objetivo de não contrariar determinados interesses”, afirma Meirelles.

Nesses casos, Palacios pensa que, se o assunto for interessante, pode haver negociação entre repórter e editor. E mesmo que algumas vezes os editores prefiram seguir a burocrática liturgia do fechamento, uma entrevista bem estruturada, com re-pórter e entrevistado cumprindo seu papel pode romper qualquer padrão tradicional de edição, considera Meirelles: “Não foram poucas as vezes em que transformei pautas ligeiras para o Jornal Nacional em matérias de três a quatro minutos”. O que acontece no telejornalismo diário, pelo que observa o apresentador, é que a maioria dos repór-teres não consegue desenvolver a mesma delicadeza de sentimentos que Coutinho fazia questão de expressar em relação aos seus personagens. Logo, o interesse pelos entrevistados, muito espontâneo nos documentários do diretor, não tem a mesma re-presentatividade no telejornalismo. Para Meirelles,

[...] os jovens profissionais que povoam as redações, nos dias de hoje, não foram treinados durante sua formação acadêmica a estabelecer laços de cumplicidade e afeto com seus entrevistados. O resultado, quase sempre, é uma entrevista fria, ligeira e sem emoção. Na maioria das vezes, em que se tenta corrigir essa frieza, na ilha de edição, acaba-se chamando ainda mais a atenção para o que se tentou dissimular.

Isso também acontece porque, na opinião de Meirelles, os telejornais “trans-formaram-se em pizzarias engorduradas, onde o que menos importa é a cobertura ou o tônus da massa, mas a rapidez com que sai do forno para ser consumida por uma freguesia que há muito perdeu o paladar”. É nesse cenário que se encontram as entrevistas prontas, com perguntas pré-definidas e respostas esperadas. Ao contrário de Coutinho, que dispensava roteiros, o que muito se observa no jornalismo de tele-visão é uma ânsia por respostas, excesso de objetividade e, consequentemente, uma superficialidade nas perguntas. Algo que Palacios diz presenciar com regularidade e que atribui novamente à falta de preparo e ainda à falta de cultura: “Acho que falta ba-gagem cultural. Falta de preparação na faculdade e continuar sem preparação durante a vida profissional. É incrível, mas a gente vê isso com muita frequência e em todas as idades”, constata o jornalista. A falta de informação dos profissionais, na opinião do

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correspondente, também faz com que alguns jornalistas, ao contrário de Coutinho, realizem as entrevistas baseados em estereótipos e ideias pré-concebidas. “A falta de cultura, a falta de informação dá nisso. Dá nesses clichês”, complementa Palacios.

Mas, apesar da superficialidade e da ligeireza, que são marcas do telejornalis-mo diário, e do contraste entre o estilo documentário e televisão, Meirelles assegura que existem possibilidades de tirar partido de algumas situações valorizadas pela nar-rativa do documentário de Coutinho. Algo, porém, que exige sensibilidade, além de muito trabalho. O intimismo usado pelo diretor para se aproximar da realidade dos seus entrevistados é próprio da estrutura narrativa do documentário. Mas isso não im-pede que a mesma abordagem seja usada em determinadas matérias do telejornalis-mo diário, acredita o apresentador.

A questão é que são poucos os repórteres que desenvolveram essa habilida-de nas emissoras, principalmente nos noticiários, que seguem determinados cânones: deve ser ágil, objetivo e compacto. “A forma como Eduardo Coutinho via o mundo e os personagens exibe um olhar que conflita com os interesses políticos e econômicos da televisão aberta”, expõe Meirelles. Por essa razão, observa que as técnicas e os truques do documentarista não podem ser usados na sua integralidade, apesar de serem um norte e referência para um jornalismo mais humanizado.

Palacios, contudo, vê o futuro da televisão com um formato cada vez mais aberto, com programas que utilizem abordagens mais objetivas e outras mais inten-sas ou complexas, como é o caso do documentário. “Vai depender de como vai ser o consumidor do futuro. Mas eu acho que tem espaço para tudo”, acredita o jornalista.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto o futuro não chega, Antônio Claudio Brasil (2007, p. 63) lembra que “o cenário de mudanças não poupa grandes nem pequenos. Quem não ousar corre o risco de ser derrotado ou de virar dinossauro”. Como sugestão, o autor indica flexibilizar os horários dos telejornais, viabili-

zar o acesso a versões integrais de entrevistas, conhecer novas culturas, tornar mais transparente o processo de produção jornalística, apostar no diálogo, na conversa, nas novas linguagens e mostrar um Brasil que o brasileiro ainda não conhece. E é nessa conjuntura que entram as técnicas de Eduardo Coutinho.

Por meio da análise dos três documentários, foi possível elencar algumas das técnicas de entrevistas de Coutinho, como interesse pelos personagens e suas histó-rias; maneira simples de formular as perguntas; informalidade no uso de vocábulos e estruturação das frases; diálogo informal estabelecido com as fontes; interesse pelo outro e pela vida pessoal dos entrevistados; falta de condução ideológica das en-trevistas; tempo maior destinado aos diálogos; sensibilidade e percepção frente aos entrevistados; atenção aos detalhes e ao contexto das entrevistas; e valorização do trabalhador, do homem comum. Com base no estudo dos diálogos selecionados e extraídos dos filmes, nos conceitos teóricos presentes nessa pesquisa e nas entrevistas

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realizadas com os jornalistas, percebe-se que as técnicas utilizadas pelo diretor tam-bém podem ser usadas no telejornalismo. Com exceção do tempo destinado às entre-vistas que esbarra nas rotinas dos profissionais e no formato televisivo.

Enquanto, por um lado, os jornalistas entrevistados reconhecem um descom-passo por conta dos interesses econômicos e editoriais das emissoras de televisão, por outro, eles afirmam algo surpreendente: o tempo, ou a falta dele no telejornalismo, geralmente o vilão, apontado como o principal impedimento para entrevistas mais au-tênticas, intensas, sensíveis e aprofundadas não é o responsável pela superficialidade delas. De acordo com os jornalistas, o olhar diferenciado, atento, sensível independe do tempo que se tem para produzir. Dependem muito mais da percepção, da prepara-ção do jornalista e da habilidade de cada um; da capacidade de perceber o outro, de se colocar no lugar do outro; de abrir mão da vaidade e dar espaço para o encontro, para o diálogo, para a vida das pessoas. Ser sensível aos gestos, aos olhares, respeitar os silêncios e as diferentes opiniões. Para tanto não, não se precisa de muito, como é possível perceber nas entrevistas de Eduardo Coutinho.

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Referências

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SALLES, João Moreira. Prefácio. In: LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho. Televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

Equipe

Míriam Cristina Carlos Silva, professora do Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso). Graduada em Letras, com especialização em Teoria Literária. Doutora em Comunicação e Semiótica. Realizou estágio pós doutoral em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Famecos-PUCRS), com a pesquisa “Narrativas Midiáticas: entre o fato e o acontecimento, nas pautas de João da Filmadora”. Colíder do Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Nami-Uniso/CNPq). Atua como roteirista e documentarista. Consultora do projeto Provocare de mídia alternativa, que propõe experimentos com comunicação inclusiva.

Monica Martinez, professora do Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso). Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Fez pós-doutorado em Narrativas Digitais pela Umesp. Realizou estágio pós doutoral no departamento de Rádio, Televisão e Cinema da Universidade do Texas em Austin. Colíder do Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Nami-Uniso/CNPq). É diretora científica da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), na qual colidera a Rede de Narrativas Contemporâneas. É coordenadora adjunta do Grupo de Pesquisa em Teorias do Jornalismo da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e autora de vários artigos científicos e livros, entre eles “Jornada do Herói: a estrutura narrativa mítica na construção de histórias de vida em jornalismo” (Annablume/Fapesp, 2008).

Diogo Azoubel, professor da Secretaria de Estado da Educação do Maranhão (Seduc-MA). Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Possui especialização em Jornalismo cultural na Contemporaneidade pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA); e MBA em Marketing Estratégico e Comunicação pela Universidade Gama Filho (UGF). É graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo e em Rádio e TV (UFMA); e em Letras: Português/Inglês pela Universidade Ceuma. Membro do Grupo de Pesquisa Narrativas Midiáticas (Nami-Uniso/CNPq). Dedica-se à pesquisa da história e da configuração do fotojornalismo no Brasil.

Luiz Guilherme Amaral, destrando em Comunicação e Cultura (bolsa PROSUP/CAPES) pela Universidade de Sorocaba. Graduado em Comunicação Social pela Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação de Sorocaba (2007).

João Paulo Hergesel, doutorando em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROSUP/Capes). Mestre em Comunicação e Cultura e licenciado em Letras: Português/Inglês pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Membro dos Grupos de Pesquisa Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira (UAM/CNPq) e Narrativas Midiáticas (Nami-Uniso/CNPq). Dedica-se à produção literária, com foco na literatura infantojuvenil, e à pesquisa na área de narrativas, com enfoque no estudo do estilo.

Carlos Augusto, graduado em Comunicação Social, com habilitação em publicidade e propaganda pelo Instituto Maranhense de Ensino e Cultura (IMEC), Diretor de Arte da Assessoria de Comunicação da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Dedica-se a trabalhos de Graffiti e Design.

Conselho EditorialProvocare

Antonio Carlos Hohlfeldt Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Arquimedes Pessoni

Universidade Municipal de São Caetano do Sul

Jorge MiklosUniversidade Paulista

José Eugenio de Oliveira Menezes

Faculdade Cásper Líbero

Paulo Celso da SilvaUniversidade de Sorocaba

Valdenise Leziér Martyniuk

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Livro digital produzido em caráter de divulgação científica, sem fins lucrativos.É permitida a reprodução total ou parcial da obra, desde que mencionada a fonte.

Obra confeccionada em Myriad Pro, em setembro de 2016, exclusivamente para a Provocare Editora.

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