nada na língua é por acaso - bagno

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Nada é por MARCOS BAGNO * na Língua acaso 22 PRESENÇA PEDAGÓGICA v .12 n.71 set./out. 2006 FURI, Ilustrações Dimensão Sem título, Milton Jeron, s/d.

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Page 1: Nada na Língua é Por Acaso - BAGNO

Nadaé por

MARCOS BAGNO *

na Línguaacaso

22 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.12 • n.71 • set./out. 2006

FURI,

Ilustrações

Dimensão

Sem

título,MiltonJeron,s/d.

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“Atentado contra o idioma”, “pecado contra a língua”, “atropelar

a gramática”. Todo esse discurso dá a entender (enganosamente)

que a língua está fora de nós, é um objeto externo, alguma coisa que

não nos pertence e que, para piorar, é de difícil acesso. A criação de

um padrão de língua muito distante da realidade dos usos atuais fez

surgir, nas sociedades ocidentais, uma milenar “tradição da queixa”.

Em todos os países, em todos os períodos históricos, sempre apare-

cem as manifestações daqueles que lamentam e deploram a “ruína”

e a “corrupção” do idioma

QQuando o assunto é língua, existem na sociedade A noção de erro em língua nasce, no mundo oci-dental, junto com as primeiras descrições sistemáticas deuma língua (a grega), empreendidas no mundo de cultu-ra helenística, particularmente na cidade de Alexandria(Egito), que era o mais importante centro de cultura gregano século III a.C.

Como a língua grega tinha se tornado o idioma ofi-cial do grande império formado pelas conquistas deAlexandre (356-323 a.C.), surgiu a necessidade de nor-matizar essa língua, ou seja, de criar um padrão uniformee homogêneo que se erguesse acima das diferenças regio-nais e sociais para se transformar num instrumento de uni-ficação política e cultural.

Data desse período o surgimento daquilo que hojese chama, nos estudos lingüísticos, de GramáticaTradicional— um conjunto de noções acerca da língua e da lingua-gem que representou o início dos estudos lingüísticos noOcidente. Sendo uma abordagem não-científica, nos ter-mos modernos de ciência, a Gramática Tradicional com-binava intuições filosóficas e preconceitos sociais.

duas ordens de discurso que se contrapõem: 1- o discur-so científico, embasado nas teorias da Lingüística moder-na, que trabalha com as noções de variação e mudança;2- o discurso do senso comum, impregnado de concep-ções arcaicas sobre a linguagem e de preconceitos sociaisfortemente arraigados, que opera com a noção de erro.

Para as ciências da linguagem, não existe erro na lín-gua. Se a língua é entendida como um sistema de sons esignificados que se organizam sintaticamente para permi-tir a interação humana, toda e qualquer manifestação lin-güística cumpre essa função plenamente. A noção de errose prende a fenômenos sociais e culturais, que não estãoincluídos no campo de interesse da Lingüística propriamen-te dita, isto é, da ciência que estuda a língua “em si mesma”,em seus aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos. Paraanalisar as origens e as conseqüências da noção de erro nahistória das línguas será preciso recorrer a uma outra ciên-cia, necessariamente interdisciplinar, a Sociolingüística,entendida aqui em sentido muito amplo, como o estudodas relações sociais intermediadas pela linguagem.

* Professor de Lingüística da Universidade de Brasília, UnB.E-mail: [email protected]

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Nada na Língua é por acaso

As intuições filosóficas que sustentam a GramáticaTradicional estão presentes até hoje na nomenclatura gra-matical e nas definições que aparecem ali. Por exemplo, anoção de sujeito que encontramos em importantes com-pêndios normativos se expressa como “o sujeito é o ser sobreo qual se faz uma declaração”, ou coisa equivalente. Comoé fácil perceber, não se trata de uma definição lingüística– nada se diz aí a respeito das funções do sujeito na sin-taxe nem das características morfológicas do sujeito –,mas sim de uma definição metafísica, em que o própriouso da palavra “ser” denuncia uma análise de cunho filo-sófico. Com isso, o emprego dessa noção para um estudopropriamente lingüístico fica comprometido. Para com-provar isso, vamos examinar o seguinte enunciado: “Nestasala cabem duzentas pessoas”.

Se tivermos de considerar a definição tradicional,seremos obrigados a classificar como sujeito o elemento“sala” do enunciado acima, já que é sobre a sala que seestá “dizendo alguma coisa”, se está “declarando algo”.Ora, no enunciado o sujeito é “duzentas pessoas”, por-que, numa definição propriamente lingüística, o sujeitoé o termo sobre o qual recai a predicação da oração ecom o qual o verbo concorda.

Dificuldades semelhantes de lidar com as defini-ções tradicionais aparecem quase a cada passo quando asestudamos com cuidado. Isso porque, repito, aGramática Tradicional, ao se formar no século III a.C.como uma disciplina com pretensões ao estudo da lín-gua, não produziu um corpo teórico propriamente lin-güístico, mas se valeu de um importante aparato de espe-culações filosóficas que vinha se gestando na culturagrega desde o século V a.C., graças ao trabalho dos sofis-tas, de Platão, de Aristóteles, dos estóicos e de outrosgrandes pensadores, para os quais o estudo da linguagemhumana (logos) era só uma etapa inicial para a com-preensão de fenômenos de outra natureza, como o fun-cionamento da mente humana (psique) e sua correspon-

dência com o funcionamento-organização do própriouniverso (cosmo). Por tudo isso, a Gramática Tradicionalmerece ser estudada, como um importante patrimôniocultural do Ocidente, mas não para ser aplicada cega-mente como única teoria lingüística válida nem, muitomenos, como instrumental adequado para o ensino.

Além de ser anacrônica como teoria lingüística, aGramática Tradicional também se constituiu com baseem preconceitos sociais que revelam o tipo de sociedadeem que ela surgiu – preconceitos que vêm sendo siste-maticamente denunciados e combatidos desde o inícioda era moderna e mais enfaticamente nos últimos cemanos. Como produto intelectual de uma sociedade aris-tocrática, escravagista, oligárquica, fortemente hierar-quizada, a Gramática Tradicional adotou como modelode língua “exemplar” o uso característico de um gruporestrito de falantes:

••••••

do sexo masculino;livres (não-escravos);membros da elite cultural (letrados);cidadãos (eleitores e elegíveis);membros da aristocracia política;detentores da riqueza econômica.

Os formuladores da Gramática Tradicional foramos primeiros a perceber as duas grandes característicasdas línguas humanas: a variação (no tempo presente) e amudança (com o passar do tempo). No entanto, a per-cepção que eles tiveram da variação e da mudança lin-güísticas foi essencialmente negativa.

Por causa de seus preconceitos sociais, os primei-ros gramáticos consideravam que somente os cidadãosdo sexo masculino, membros da elite urbana, letrada earistocrática falavam bem a língua. Com isso, todas asdemais variedades regionais e sociais foram consideradasfeias, corrompidas, defeituosas, pobres etc.

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Ainda na questão da variação, os primeiros gramá-ticos, comparando a língua escrita dos grandes escritoresdo passado e a língua falada espontânea, concluíram quea língua falada era caótica, sem regras, ilógica, e quesomente a língua escrita literária merecia ser estudada,analisada e servir de base para o modelo do “bom uso” doidioma. Essa separação rígida entre fala e escrita é rejeita-da pelos estudos lingüísticos contemporâneos, mas conti-nua viva na mentalidade da grande maioria das pessoas.

Comparando também a língua falada de seuscontemporâneos e a língua escrita das grandes obras lite-rárias do passado, eles concluíram que, com o tempo, alíngua tinha se degenerado, se corrompido e que era pre-ciso preservá-la da ruína e da deterioração. Tinham, por-tanto, uma visão pessimista da mudança, resultante doequívoco metodológico – que só veio a ser detectado eabandonado muito recentemente – de comparar duasmodalidades muito distintas de uso da língua (a escritaliterária e a fala espontânea), desconsiderando a existên-cia de um amplo espectro contínuo de gêneros discursi-vos entre esses dois extremos.

Com isso, os elaboradores das primeiras obras gra-maticais do mundo ocidental definiram os rumos dos estu-dos lingüísticos que iam perdurar por mais de 2.000 anos:

Com isso, passa a ser visto como erro todo e qual-quer uso que escape desse modelo idealizado, toda equalquer opção que esteja distante da linguagem literá-ria consagrada; toda pronúncia, todo vocabulário e todasintaxe que revelem a origem social desprestigiada dofalante; tudo o que não conste dos usos das classes sociaisletradas urbanas com acesso à escolarização formal e àcultura legitimada. Assim, fica excluída do “bem falar” aimensa maioria das pessoas – um tipo de exclusão que seperpetua em boa medida até a atualidade.

Os preceitos e preconceitos da GramáticaTradicional só começaram a ser questionados a partir doséculo XIX, com o surgimento das primeiras investiga-ções lingüísticas de caráter propriamente científico.Embora contestada pela ciência moderna, aquela visãoarcaica e preconceituosa de língua e de linguagem pene-trou no senso comum ocidental e ali permanece firme eforte até hoje.

• desprezo pela língua falada e supervalorização dalíngua escrita literária;estigmatização das variedades não-urbanas, não-letradas, usadas por falantes excluídos das cama-das sociais de prestígio (exclusão que atingia todasas mulheres);criação de um modelo idealizado de língua, dis-tante da fala real contemporânea, baseado emopções já obsoletas (extraídas da literatura dopassado) e transmitido apenas a um grupo res-trito de falantes, os que tinham acesso à escola-rização formal.

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S/t,Acrílica,MiltonJeron,s/d.

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Nada na Língua é por acaso

O processo de normatização, ou padronização,retira a língua de sua realidade social, complexa e dinâ-mica, para transformá-la num objeto externo aosfalantes, numa entidade com “vida própria”, (suposta-mente) independente dos seres humanos que a falam,escrevem, lêem e interagem por meio dela.

Isso torna possível falar de “atentado contra oidioma”, de “pecado contra a língua”, de “atropelar agramática” ou “tropeçar” no uso do vernáculo. Todoesse discurso dá a entender (enganosamente) que a lín-gua está fora de nós, é um objeto externo, algumacoisa que não nos pertence e que, para piorar, é dedifícil acesso.

A criação de um padrão de língua muito dis-tante da realidade dos usos atuais fez surgir, em todasas sociedades ocidentais, uma milenar “tradição daqueixa”. Em todos os países, em todos os períodos his-tóricos, sempre aparecem as manifestações daquelesque lamentam e deploram a “ruína” da língua, a “cor-rupção” do idioma etc. Acerca da suposta decadênciada língua portuguesa, sirvam de exemplos as seguintesdeclarações apocalípticas, que se desdobram ao longode quase trezentos anos:

língua materna” (Mario Sabino, Veja,10/9/1997).“Não fique nenhuma dúvida, o português doBrasil caminha para a degradação total” (Marcosde Castro, A imprensa e o caos na ortografia, Ed.Record, 1998, p. 10-11).“Que língua falamos? A resposta veio das terraslusitanas. Falamos o caipirês. Sem nenhum com-promisso com a gramática portuguesa. Vale tudo[...]” (Dad Squarisi, Correio Braziliense,22/7/1996).“Nunca se escreveu e falou tão mal o idioma deRuy Barbosa” (Arnaldo Niskier, Folha de S. Paulo,15/1/1998).“[...] o usuário brasileiro da língua [...] cometeerros, impropriedades, idiotismos, solecismos,barbarismos e, principalmente, barbaridades”(Luís Antônio Giron, revista Cult, nº 58, junhode 2002, p. 37).

• “Se não existissem livros compostos por frades,em que o tesouro está conservado, dentro empouco podíamos dizer: ora morreu a língua por-tuguesa, e não descansa em paz” (José Agostinhode Macedo [1761-1831], escritor português).“Temos a prosa histérica, abastardada, exangue edesfalecida de uma raça moribunda. A nossapobre geração de anémicos dá à história das letrasum ciclo de tatibitates” (Ramalho Ortigão [1836-1915], escritor e político português).“[...] português – um idioma que de tão maltrata-do no dia-a-dia dos brasileiros precisa ser divulga-do e explicado para os milhões que o têm como

Em contraposição à noção de erro, e à “tradiçãoda queixa” dela derivada, a ciência lingüística oferece osconceitos de variação e mudança. Enquanto a GramáticaTradicional tenta definir a “língua” como uma entidade

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S/t,MiltonJeron,s/d.

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abstrata e homogêna, a Lingüística concebe a línguacomo uma realidade intrinsecamente heterogênea, variá-vel, mutante, em estreito vínculo com a realidade sociale com os usos que dela fazem os seus falantes. Umasociedade extremamente dinâmica e multifacetada sópode apresentar uma língua igualmente dinâmica e mul-tifacetada.

Ao contrário da Gramática Tradicional, que afir-ma existir apenas uma forma certa de dizer as coisas, aLingüística demonstra que todas as formas de expressãoverbal têm organização gramatical, seguem regras e têmuma lógica lingüística perfeitamente demonstrável. Ouseja: nada na língua é por acaso.

Por exemplo: para os falantes urbanos escolariza-dos, pronúncias como broco, ingrês, chicrete, pranta etc.são feias, erradas e toscas. Essa avaliação se prende essen-cialmente ao fato de essas pronúncias caracterizaremfalantes socialmente desprestigiados (analfabetos,pobres, moradores da zona rural etc.). No entanto, atransformação do “L” em “R” nos encontros consonan-tais ocorreu amplamente na história da língua portugue-sa. Muitas palavras que hoje têm um “R” apresentavamum “L” na origem:

Assim, o suposto erro é na verdade perfeitamenteexplicável: trata-se do prosseguimento de uma tendênciamuito antiga no português (e em outras línguas) que osfalantes rurais ou não-escolarizados levam adiante. Essefenômeno tem até um nome técnico na lingüística his-tórica: rotacismo.

Esse é só um mínimo exemplo de que tudo oque é chamado de erro tem uma explicação científica,tem uma razão de ser, que pode ser de ordem fonética,semântica, sintática, pragmática, discursiva, cognitivaetc. Falar em erro na língua, dentro do ambiente peda-gógico, é negar o valor das teorias científicas e dabusca de explicações racionais para os fenômenos quenos cercam.

O exemplo apresentado acima (mudança de “L”para “R” em encontros consonantais) não deve levarninguém a supor que esses fenômenos variáveis e mutan-tes só ocorrem na língua dos falantes rurais, sem escola-rização, pobres etc. Eles também ocorrem na língua dosfalantes “cultos”, urbanos, letrados etc., muito emboraesses mesmos falantes acreditem ser os legítimos repre-sentantes da língua certa.

Alugam-se salas ou aluga-se salas? Apesar de a gra-mática normativa exigir o verbo no plural, a grandemaioria dos brasileiros mantém o verbo no singular. Enão é por ignorância nem por preguiça nem por qual-quer outra explicação preconceituosa desse tipo. A aná-lise sintática tradicional é que é ilógica, ao atribuir opapel de sujeito a “salas”, como se “salas” pudessem alu-gar alguma coisa, um verbo que só pode ser desempe-nhado por seres humanos. O falante, intuitivamente,analisa “salas” como objeto direto e o pronome “se”como o verdadeiro sujeito da oração, semanticamenteindeterminado – e como não existe concordância deverbo com objeto, fica o verbo no singular.

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LATIM PORTUGUÊS

blandu- brando

clavu- cravo

duplu- dobro

flaccu- fraco

fluxu- frouxo

obligare obrigar

placere- prazer

plicare- pregar

plumbu- prumo

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Nada na Língua é por acaso

Essa mudança já está presente até mesmo na lín-gua escrita mais monitorada:

A opção (a), embora apareça quase diariamentena mídia, defendida pelos atuais “defensores” da línguaque se apoderaram dos meios de comunicação, tem deser veementemente rejeitada por causa de seu caráterobscurantista, autoritário e, muitas vezes, irracional.

A opção (b), apesar de sua aparência de posturainovadora e progressista, na verdade despreza uma análi-se da dinâmica social e da complexidade das relaçõesentre as pessoas por meio da linguagem.

Acreditamos que a opção (c) é aquela que melhornos orienta para um tratamento sereno e equilibrado dointrincado relacionamento entre linguagem-sociedade-ensino. Essa opção nos ajuda a compreender a “duplaface” do que se chama, no senso comum, de “erro deportuguês”:

(1) “Por falta de trigo, durante séculos comeu-seaqui, como substitutivo do pão, bolos e bolachasfeitos à base de mandioca, milho e outros produ-tos da terra”. (Nossa História, ano 2, n.15, p. 89,janeiro de 2005).“Procura-se intérpretes de klingon, o dialeto cria-do para o seriado Jornada nas Estrelas. O anúnciofoi feito por um manicômio em Oregon, EUA.Alguns de seus pacientes só se comunicam usan-do a linguagem estrelar.” (IstoÉ, 21/5/2003, n.1755, p. 20).“Mas a efeméride dos 95 anos [de Noel Rosa]parece que, de fato, passará em silêncio. Espera-seas maiores homenagens para o seu centenário, em2010 [...]” (Revista de História da Biblioteca

Nacional, n. 6, dez. 2005, p. 11).

(2)

(3)

Diante de tudo o que se argumentou até agora,como devemos tratar os fenômenos de variação emudança na educação em língua materna?

Existem três respostas possíveis:desconsiderar as contribuições da ciência lingüísticae levar adiante a noção de erro, insistindo no ensi-no da gramática normativa e da norma-padrão tra-dicional como única forma certa de uso da língua;aceitar as contribuições da ciência lingüística e

(a)

Qualquer análise que desconsidere um dessespontos de vista – o científico e o do senso-comum –será, fatalmente, incompleta e não permitirá uma refle-xão que permita analisar a realidade lingüístico-socialnem a elaboração de políticas que auxiliem na constitui-ção de um ensino verdadeiramente democrático e for-mador de cidadãos.

A escola não pode desconsiderar um fato incon-tornável: os comportamentos sociais não são ditadospelo conhecimento científico, mas por outra ordem de

(b)desprezar totalmentesubstituindo-a pelosmudança;

a antiga noção de erro,conceitos de variação e

(c) reconhecer que a escola é o lugar de interseçãoinevitável entre o saber erudito-científico e osenso comum, e que isso deve ser empregado emfavor do aluno e da formação de sua cidadania.

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ERRO DE PORTUGUÊS

FACE LINGÜÍSTICA

Não existe, não é

considerado erro, mas

um fenômeno lingüístico

passível de ser explicado

por teorias científicas.

FACE SOCIOCULTURAL

Existe, é decorrente das

avaliações lançadas sobre os

falantes, segundo critérios

(preconceitos) puramente

sociais.

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saberes (representações, ideologias, preconceitos, mitos,superstições, crenças tradicionais, folclore etc.). Essaoutra ordem de saberes pode sofrer influência dos avan-ços científicos, mas quase sempre essa influência se fazde forma parcial, redutora e distorcida. Querer fazerciência a todo custo sem levar em conta a dinâmicasocial, com suas demandas e seus conflitos, é uma lutafadada ao fracasso.

A Sociolingüística nos ensina que onde tem varia-ção (lingüística) sempre tem avaliação (social). Nossasociedade é profundamente hierarquizada e, conseqüen-temente, todos os valores culturais e simbólicos que nelacirculam também estão dispostos em categorias hierár-quicas que vão do “bom” ao “ruim”, do “certo” ao “erra-do”, do “feio” ao “bonito” etc. E entre esses valores cul-turais e simbólicos está a língua, certamente o maisimportante deles. Por mais que os lingüistas rejeitem anorma-padrão tradicional, por não corresponder às rea-lidades de uso da língua, eles não podem desprezar o fatode que, como bem simbólico, existe uma demanda socialpor essa “língua certa”, identificada como um instru-mento que permite acesso ao círculo dos poderosos, dosque gozam de prestígio na sociedade.

Uma das tarefas do ensino de língua na escolaseria, portanto, discutir criticamente os valores sociaisatribuídos a cada variante lingüística, chamando a aten-ção para a carga de discriminação que pesa sobre deter-minados usos da língua, de modo a conscientizar oaluno de que sua produção lingüística, oral ou escrita,estará sempre sujeita a uma avaliação social, positiva ounegativa.

Podemos, por exemplo, ao encontrar formas não-padrão na produção oral e escrita de nossos alunos, ofe-recer a eles a opção de “traduzir” seus enunciados para aforma que goza de prestígio, para que eles se conscienti-zem da existência dessas regras. A consciência gera res-ponsabilidade. E é ao usuário da língua, ao falante/escre-

vente bom conhecedor das opções oferecidas pelo idio-ma, que caberá fazer a escolha dele, eleger as opções dele,mesmo que elas sejam menos aceitáveis por parte demembros de outras camadas sociais diferentes da dele. Oque não podemos é negar a ele o conhecimento de todasas opções possíveis.

Para realizar essa tarefa, o docente precisa seapoderar do instrumental que a ciência lingüística, emais especificamente a Sociolingüística, oferece para aanálise criteriosa dos fenômenos de variação e mudan-ça lingüística.

O profissional da educação tem que saber reco-nhecer os fenômenos lingüísticos que ocorrem em salade aula, reconhecer o perfil sociolingüístico de seus alu-nos para, junto com eles, empreender uma educação emlíngua materna que leve em conta o grande saber lingüís-tico prévio dos aprendizes e que possibilite a ampliaçãoincessante do seu repertório verbal e de sua competênciacomunicativa, na construção de relações sociais permea-das pela linguagem cada vez mais democráticas e não-discriminadoras.

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ReferênciasSugestões de leituras

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em línguamaterna: a socilingüística na sala de aula. São Paulo:Parábola, 2004.

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. O português são dois. SãoPaulo: Parábola, 2004.

SOARES, Magda Becker. Letramento: um tema em trêsgêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação.São Paulo: Parábola, 2004.

ILARI, Rodolfo & BASSO, Renato. O português da gente.São Paulo: Contexto, 2006.