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18 /IMPROVáVEL /OUTUBRO/NOVEMBRO 2013 PHILIPPE STARCK /ART R Saint Étienne Festival das Artes Quinta do Vallado Rota das Estrelas Pensão Flor •••

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/MOVE Saint-Étienne / Raia histórica / O sabão / Palácio Nacional de Sintra / Le Cordon Bleu /unique La Boulangerie by Stef / Dux Beer /TRENDY Ideal&Co / Melissa /art Philippe Stark / Ana Seia de Matos / Philippe Pasqua / Hernâni Duarte Maria / Pedro E. Santos e Rosa Feijão /NEW Pensão Flor / Noiserv / Rodrigo Costa Félix e Marta Pereira da Costa /TODAY Festival das Artes com José Miguel Júdice / Coimbra da Unesco / Chef Vitor Matos /EXPERIENCE Quinta do Vallado / Rota das Estrela no Feitoria / Eritreia

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18/improvável

/outubro/novembro 2013

philippe Starck

/art

RSaint Étienne

Festival das ArtesQuinta do ValladoRota das Estrelas

Pensão Flor•••

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improvávelProvavelmente é pouco provável que seja provável que a probabilidade do prováveldeixar de ser provável seja mais que provável.Porquê? Somos mutantes. Dizemos improvável!

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editorialmais uns meses, mais um número, mais um tema. É improvável pararmos com esta trilogia de tempo, edição, temática. está no nosso có-digo genético sermos improváveis mutantes.A nossa missão, nesta nova viagem, levanta voo em Saint-Étienne apanhando, a meio ca-minho, o assumido mutante Starck porque... we needed a Captain on this ship! visitámos mundos já visitados dando-lhes novas leitu-ras como em Sintra, no Palácio nacional, ou na Coimbra da uneSCo, ou até na bela Quinta do vallado. Desafiámos tripulantes de outras na-ves a serem improváveis e com eles fomos à eritreia, ao Le Cordon bleu de Paris, ao cinema, ao Festival das Artes... até tivémos com uma improvável mousse ilustrada de viseu e vimos estrelas no Feitoria! nos intervalos, aterrámos em solos díspares para testar novos sabores e conversar com um chef do paladar. todo o improvável tem o seu lado provável e a nos-sa enterprise não escapa a tal facto, os sabo-res são inevitáveis. Como diz? banda sonora? Claro. uma viagem é sempre melhor quando acompanhada de bons sons e esta nova mis-são mutante ficou a cargo de uma Pensão, Flor de nome, e não só, mas seria improvável des-vendarmos tudo aqui… já tanto dissemos.A todos, desejamos uma boa viagem pelo es-paço mutante.

e já agora, o que é improvável no seu mundo?

/DiretorJoão Pedro [email protected]

/eDiçãoPatrícia [email protected] Quaresma Capitã[email protected]

/Direção De ArteJoão Pedro Rato

/mArketing / ADvertiSingMaria [email protected] [email protected]

/CoLAborADoreS neStA eDiçãoAndréa PostigaDulce AlvesHelena Ales PereiraHernâni Duarte MariaMaria PratasPedro Emanuel Santos

/FotogrAFiABruno PiresJoão Pedro RatoRicardo Junqueira

/iLuStrAçãoAna Seia de MatosRosa FeijãoSara Quaresma Capitão

/FotogrAFiA CAPAPhilippe Starck por Rainer Hosch

/tiPogrAFiALeitura • www.dstype.com

/reDAçãorua Manuela Porto 4, 3º esq.1500-422 Lisboainfo@mutante.ptwww.mutante.ptwww.mutantemagazine.blogspot.ptwww.facebook/MutanteMag

Mutante é uma marca registada.

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06 move/Saint-Étienne/raia histórica/o sabão/Palácio n. de Sintra/Le Cordon bleu

62 art/PhiLiPPe StArCk/Ana Seia de matos/Philippe Pasqua/Hernâni Duarte Maria • Cinema/Pedro E. Santos • Rosa Feijão

44 unique/La boulangerie by Stef/Dux beer

132 experience/Quinta do vallado/Rota das Estrelas • Feitoria/eritreia

90 new/Pensão Flor/noiserv/Rodrigo Costa Félix • marta Pereira da Costa

18 /improvável /outubro/novembro 2013

50 trendy/ideal&Co/melissa

108 today/Festival das Artes/Coimbra da uneSCo/Chef vítor matos

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Saint-ÉtienneA tEoRIA Do DESIgn nA CIDADEteXto patrícia Serrado FotogrAFiA joão pedro rato

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a cité do design / saint-étienne

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Uma hora de viagem de carro depois, sem que se desse tréguasàs palavras, chegamos a Saint-Étienne. Berço da indústria das fitas de seda, das armas e das bicicletas. A ilustre vizinha de Firminy, sinónimo de património de tão célebre arquiteto, Le Corbusier.A única “ville” de França, e a segunda da Europa, a tornar-semembro da rede da UNESCO das cidades criativas, com a classificação de Cité du Design, atribuída em novembro de 2010.

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a Seda, aS biclaS e aS armaS

reza a lenda que uma imperatriz chinesa descobriu a seda quando um casulo de um bicho da seda caiu na sua chávena enquanto tomava chá debaixo de uma amoreira. reza a história que o fabrico da seda, fechado a sete chaves, foi des-vendado pelos romanos, que enviaram dois homens à China, de onde levam dois casulos num pau de bambú para roma… A metrópole torna-se, assim, a porta de entrada da seda na europa. eis o início de um novo percurso da seda refletido no espólio traduzido na primeira coleção mundial de fitas de seda no museu da Ar-te e da indústria que, em 2001, reabre as portas após uma intervenção assinada pelo arquiteto francês Jean-michel Wil-motte, o qual contempla a evolução do produção de mui nobre acessório. Desde

a criação artesanal, em casa, aos arte-fatos e mecanismos usados nas fábricas, como o Jacquard, o tecido criado em ho-menagem a Joseph-marie Jacquard, in-ventor do tear mecânico. A visita prossegue, desta vez, sobre duas rodas ou não fosse Saint-Étienne a cidade francesa onde foi fabricada a primeira bicicleta. A exposição, orga-nizada no piso subterrâneo do edifício, centra-se no alinhamento de constante evolução, desde o monociclo ao velocí-pede e à bicicleta atual, com a “grand bi” e o cavaleiro em destaque, apesar das quedas e dos passeios atribulados que protagonizaram outrora… e termina na sala das armas de caça, ornamentadas ao gosto da nobreza e da realeza, e de guerra, fabricadas na cidade.

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museu da arte e da indústria

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tear jacquard

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quadro em tecido jacquard

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bicicleta em exposição

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a Firminy de le corbuSier

na vizinha Firminy sobrepõem-se os traços da acrópole de Atenas, composta por casa da cultura (espaço Le Corbu-sier), estádio, igreja e piscinas, visíveis do terraço da unidade de habitação da cidade, conceito demarcado pelo traço do arquiteto, urbanista e pintor franco--suíço Le Corbusier. um visionário na conceção do conceito de habitação so-cial, que implementa as linhas decisi-vas da arquitetura moderna, retilíneas, depuradas… numa construção feita em betão armado, sustentada em pilares, com uma fachada horizontal, ergui-da sob orientação este/oeste, onde as varandas ostentam o vermelho, ora na parede, ora no teto. Firminy-vert foi a última “unité d’habitacion” de Le Corbusier, inaugu-rada em 1967, isto é, 15 anos após a pri-meira, esta em marselha, em 1952. Das três unidades projetadas para Firminy, apenas uma foi erigida e habitada, no presente, por cerca de dez por cento da população da cidade. Assente em três pilares fundamentais do pensamento do arquiteto – sol, espaço e verde –, o monumental edifício de 33 pisos, todos diferentes, ostenta só uma porta de acesso, para que os vizinhos se conhecessem. os corredores largos e compridos são identificados, asseme-

lhando-se às ruas das cidades, onde as portas contemplam as cores primárias: vermelho, verde, azul e amarelo. De am-bos os lados, estão os apartamentos dú-plex decorados com peças de mobiliário desenhadas por Le Corbusier. À entrada, atrás da porta, há uma caixa com uma porta para o exterior onde, há décadas, era colocado o jornal do dia, o pão e o correio, uma ideia que caiu em desuso… em frente, o open space soalheiro, com-posto por kitchnet e sala de estar, com uma janela imensa a rasgar a parede, desenhadas com base no seu modulor. A escada de acesso ao andar de cima foi pensada ao mínimo detalhe, com dois corrimões, um para adultos, e outro pa-ra crianças, e cujos degraus apresentam um rasgo no meio para que os bebés possam gatinhar até ao piso superior sem dificuldade. em cima, a mezzanine acolhe o quarto de casal, com entrada para a casa de banho e acesso ao corre-dor para os quartos das crianças, dividido por uma porta de correr que, de ambos os lados, é decorada por um quadro de ardósia, em jeito de desafio à imaginação dos mais novos.

unité d’habitacion de le corbusier / firminy

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no último piso do interior do edifício, o jardim escola, agora entregue ao silêncio, manteve as portas abertas entre 1968 e 1988. Com uma entrada ampla, decora-da com uma fonte, reservada ao recreio em dias de mau tempo, o espaço desti-nado ao ensino dos mais novos mantém as linhas de Le Corbusier, com pequenas janelas que ostentam as cores preferidas do autor, as quais pintam o chão de to-nalidade subtis em dias de sol; pequenos recintos de trabalho para os mais novos; e salas de aula equipadas por sistemas de aquecimento sustentados por pedras re-tangulares e onde os quadros de ardósia se ensontram nas portas de correr, para dividir as divisões destinadas à aprendi-zagem. no cimo, o terraço, para os dias de bom tempo, a piscina e o anfiteatro, dois núcleos destinados ao lazer e à cultura. Já no centro cívico, a curiosidade volta-se

para a igreja de São Pedro, inaugurada a 25 de novembro de 2006, após um lon-go período de interregno, e apesar dos esquiços com a assinatura de Corbusier datarem de 1962. o acesso é feito por uma rampa exterior em forma espiral, que converte o local de culto da religião católica numa inusitada pirâmide. ins-pirado num anfiteatro com janelas ho-rizontais, de onde sobressaem o verde, o azul e o amarelo, presença constante no trabalho de Le Corbusier.

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terraço da unité d’habitacion / firminy

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escada dos dúplex daunité d’habitacion / firminy

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corredor daunité d’habitacion / firminy

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igreja de são pedro / firminy

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de Fábrica de armaSa plataForma de deSign

no coração de Saint-Étienne, outrora um recinto fechado e rodeado por muros altos e três imperiosos portões, a antiga fábrica de armas converte-se, no pre-sente, na “Cité du Design”. A platafor-ma de investigação, experimentação e criação em ateliers destinados às várias vertentes do design que, hoje, abrange um enorme quarteirão, onde o ofício do design sustenta a criatividade e a ino-vação apresentadas na bienal interna-cional de Design de Saint-Étienne cuja primeira edição, promovida, em 1998, pela escola Superior de Arte e Design de Saint-Étienne, impulsionou a conceção da Cidade do Design. em suma, suprime-se grande parte do mural e dá-se vida ao projeto assinado pelos arquitetos Finn geipel & giulia An-di da agência Lin. o resultado confere a

renovação de edifícios, com destaque para o La Platine, nome atribuído em homenagem à platina, matéria prima usada no fabrico de armas, o qual invade um enorme espaço em frente ao portão principal. Dividido em cinco parte, alber-ga a biblioteca, duas salas de exposições – numa das quais esteva a exposição da bienal internacional de Design de 2013, a qual visitámos –, a mediateca, uma ofi-cina de design e o restaurante La Platine, que recomendamos! mas já lá vamos… Sem esquecer a livraria, nem a torre de observação de 32 metros de altura, que promete uma vista única sobre a cida-de e as colinas que a rodeiam num olhar atento a 360°; nem as oficinas que os-tentam gigantescas janelas de vidro, através do qual se vislumbram os alunos a porem em prática o seu trabalho.

portão de acesso à cité du design / saint-étienne

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arte no muSeu…

Quem procura as tendências da arte en-contra-as no museu de Arte moderna, detentor de uma coleção considerada uma das mais importantes de França, e onde esteve patente a excelente mos-tra intitulada “Charlotte Perriand et le Japon”. A designer francesa que privou com Le Corbusier e Pierre Jeannerett, relação de amizade que gera o trio Le Corbusier–Jeannerett–Perriand, da qual resulta a criação da icónica chaise lon-gue basculante, e demais peças de mo-biliário. o percurso de Charlotte Perriand,

que integrou o Congresso internacional de Arquitetura moderna, presidido pelo arquiteto franco-suíço, travando co-nhecimento com os pintores espanhóis Juan miró e Pablo Picasso e com Jean Prouvé, fez-se acompanhar, ao longo da mostra, por documentos escritos, fotografias de arquivo e da exposição de Perriand em tóquio, bem como pelo mobiliário usado nas reproduções céni-cas de interiores, como o jardim zen das casas nipónicas, com especial destaque para os objetos em bambu criados pela

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designer, que visita o Japão por ocasião da ii guerra mundial. De regresso a Paris, integra a equipa de Corbusier, encarre-gada de projetar, por exemplo, a arqui-tetura de interiores e o equipamento das salas comuns, do refeitório e dos quartos da residência universitária de Antony ou dos espaços coletivos da Cidade univer-sitária de Paris, ao lado de Corbusier e do urbanista Lúcio Costa, que reencontra, mais tarde, numa das suas viagens ao brasil, onde conhece oscar niemeyer e maria elisa Costa, filha de Lúcio Costa.

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charlotte perriand (foto de arquivo da designer) / fotografia patente no museu de arte moderna de saint-étienne, no âmbito da exposição “charlotte perriand et le japon”

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exposição “charlotte perriand et le japon”© Succession Charlotte Perriand © ADAgP, Paris, 2013Photo Yves bresson / mAm Saint-etienne métropole

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… e à meSa

De novo pelas ruas, o roteiro pela cidade contempla a passagem pelo majesto-so Zénith, assinado pelo arquiteto bri-tânico norman Foster; a Ïlot grüner, de manuelle gautrand, um enorme edifício amarelo, cravejado de pequenas janelas desalinhadas entre si, dentro da lingua-gem interpretada pela arquitetura do edifício; e a estação Châteaucreux. Pe-las ruas, as esculturas interagem com o espaço público, não passando mesmo despercebidas.e porque as palavras alimentam a alma, há que dar alento ao palato. Até porque a gastronomia também é arte. Sugestões? o La Platine, na Cité du Design, com uma cozinha criativa e inovadora, em respos-ta ao desafio apresentado aos jovens de-signers, sem que o sabor ficasse, de todo, esquecido, servida num ambiente mini-mal e ecológico. ou o mon Jardin Secret, próximo do museu da Arte e da indústria, o qual, em 2011, venceu o concurso “Co-mércio e Design”. Distinção merecida. Afinal, o kitsh e o romantismo cénico espelha a sensibilidade feminina numa sala de jantar à antiga, com um imensa biblioteca clássica ao fundo, e um terra-ço com um jardim aromático, onde ape-tece preguiçar… e, claro, degustar um

repasto confecionado com imaginação. ou, porque não, o L’Absinthe Café, em Saint-Étienne, com arte assinada num repasto tentador, convertido num mi-mo, para rematar. Só mais uma recomendação: a Weiss. uma encantadora boutique de choco-lates, onde a imaginação ultrapassa o limite da tentação. o fundador é eugene Weiss, fabricante de chocolate prove-niente da Alsácia que, em 1992 abriu a primeira loja; em 1907, inaugura a fábri-ca de produção de chocolate em Saint--Étienne; e em 1965 expande a marca para Lyon e Paris. Ao fim do dia, o descanso merecido no La belle etoille, uma guest-house com-posta dois quartos recuperados num antigo prédio da cidade, convertida num sonho… e a viagem prossegue no regres-so a Saint-Étienne. d

A mutante agradece ao turismo de França:R pt.rendezvousenfrance.comR www.facebook.com/turismodefrancaR www.twitter.com/turismofrances

A mutante agradece à easyJet. www.easyJet.com

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zénith, de norman foster / saint-étienne

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ïlot grúner, de manuelle gautrand / saint-étienne

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o remate do jantar no l’absinthe café / saint-étienne

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na rota da raia hiStóricateXto patrícia Serrado FotogrAFiA joão pedro rato

Trancoso. Pinhel. Castelo Rodrigo. Almeida. Os quatro destinos compõem o roteiro de dois dias de viagem pela

Beira Alta, sob um sol de verão que já deixa saudades… numa viagem à descoberta dos encantos recitados pelos

anais. Um encontro entre culturas ancestrais e sabores ímpares de uma gastronomia versada pela tradição.

Nas “Aldeias Históricas de Portugal”.

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gelado de baunilha. um final feliz para um primeiro almoço em terras beirãs!A tarde começa com um passeio pelas ruas seculares da antiga vila. Defron-te de uma das imponentes portas im-põem-se as possantes estátuas de D. Dinis e da rainha Santa isabel, em me-mória dos laços do matrimónio de tão célebre reis aqui celebrado. no reverso dos ponteiros do relógio, que ditam o tempo, fica o registo de um passado ligado à presença hebraica na região, hoje convergido no Centro de interpretação Judaico isaac Cardoso, no antigo bairro judeu; assim como num presente assente nos traços físicos e reais assinados pelo arquiteto gonçalo

À saída do comboio, em vila Franca das naves, o calor substima quem, há meses atrás, profetizava o verão mais frio dos últimos dois séculos. A via-gem prossegue até à tranquila cidade de trancoso, uma antiga vila medieval abraçada pelas muralhas e encimada pelo seu castelo, na qual nos espera um repasto dos deuses, no restaurante D. gabriel, rematado com um folhado re-cheado com mel, papas de milho e cas-tanha, acompanhado por duas bolas de

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castelo de trancoso

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estátuas de d. dinis e d. isabel de aragão

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o pelourinho, marco da história deste lugar arrancado aos muçulmanos já na segunda metado do século Xi. mudemos, porém de rumo, desta feita para o néctar dos deuseus, a.k.a. vi-nho. Começamos a rota pela Quinta va-le d’Aldeia, o projeto vitivinícola de dois irmãos de meda, no Douro Superior. os nomes: José e João Amado. A propósito, Xaino e Forla de meda dizem-lhe algu-ma coisa? A reter na memória.e na memória fica a visita às termas de Longrovia…o dia termina em Pinhel, num refúgio acolhedor da aldeia da Quinta nova. o turismo rural encostas do Côa, com ex-periências gastronómicas que remetem para as reminiscências de sabores ge-nuínos dos produtos regionais.

byrne cujas obras são obrigatórias num roteiro pela cidade. tempo há, ainda, para experimentar “sangue de judeu”, nome atribuído à aguardente típica, no retiro do Castiço, assim como as tra-dicionais sardinhas doces de trancoso sem escamas nem espinhas, desta vez na Casa da Prisca.Daqui partimos para a aldeia histórica de marialva, com o seu castelo alta-neiro, erigido no alto de um penhasco, envolto em muralhas perdidas algures no tempo. As oliveiras, hoje sob a al-çada das tarefas dos habitantes desta pequena aldeia do concelho de meda, completam a paisagem intramuros, palco da crença religiosa subordina-da ao cristianismo, testemunhada pela igreja de Santiago, sem deixar para trás

marialva

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gião. o mesmo castelo é reedificado no tempo de D. Dinis, o monarca que põe termo nas disputas com os árabes do la-do espanhol e manda erguer a muralha na cidadela, e duas torres guarnecidas de ameias – a este e a oeste. A primeira, a mais alta, aufere um caráter relevante, devido à localização e às alterações ar-quitetónicas do reinado de D. manuel i. Da história passamos para a arte sacra, exposta ao olhar dos amantes fiéis de tão secular ofício acolhido entre pare-des do museu municipal de Pinhel. Casa instalada nos antigos paços do conce-lho, um edifício mandado construir por vicente Pereira da Cunha, o corregedor da comarca de Pinhel.

De um lado, a ribeira do massueime de-limita a fronteira do concelho, a poente; do outro, o rio Côa traça a linha de se-paração, a nascente. estamos em Pinhel, sede de concelho cuja origem remonta à pré-história. mais tarde, no período me-dieval, Pinhel ostenta um importante desempenho no contexto histórico, gra-ças à aproximidade com o reino vizinho, sendo o castelo o ponto estratégico de vigia das gentes que povoavam esta re-

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castelo de pinhel

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castelo rodrigo

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passado repleto de sabedoria no que toca à doce provocação do palato.De aldeia em aldeia, com o sol a acom-panhar, chegamos a vermiosa de Fi-gueira de Castelo rodrigo, com uma altitude a roçar os 700 metros, entre solos de granito e de xisto, com filões de quartzo, dotada de um património vitivinícola ainda por revelar. Falamos da beyra, marca de vinhos de rui robo-redo madeira, enólogo, nascido em Lis-boa e com raízes na beira interior, com quem conversamos sobre a arte de de-senhar e produzir o néctar dos deuses que representa. A recordar…

De volta aos pontos cardeais, é pre-cisamente para leste que vamos. em direção a Castelo rodrigo. uma aldeia histórica ímpar da beira interior norte, sita a mais de 800 metros de altitude, com uma vista de 360° ornamenta-da pelo verde das serras que sobres- saem em redor. Por lá, calcorreamos as ruas e as ruelas empedradas orna-mentadas de ruínas misteriosas, teste-munho de uma herança guardada com afinco, de um reinado delimitado, pelos nosso antepassados, no mapa que se diz do mundo; e conhecemos as igua-rias de uma tradição que remonta a um

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uma vez mais, o almoço aguarda-nos, desta vez, na Casa d`irene, em malpar-tida, aldeia do concelho de Almeida. es-paço acolhedor, com certeza, com um repasto digno de reis em terras raianas.e nada faria mais sentido que preguiçar durante a tarde nas termas de Almeida, uma experiência adiada no tempo…

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almeida

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Dos anais, a visita contempla o museu histórico militar acolhido pelas casa-matas, espaço associada a um passado aliado à guerra e à sobrevivência; e o pi-cadeiro d’el rei que, na sua origem, fora um lugar ligado à artilharia ou não fosse Almeida uma importante vila com um forte cunho militar, rodeada por uma

dupla de muralhas, com uma enigmá-tica forma de estrela de seis pontas, si-tuada a mais de 700 metros de altitude. e mais houve por receber a nossa visita. Até ao nosso próxima regresso…

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Conversei com a artista plástica que gos-ta de pôr as mãos na massa, que produz estes sabões há dois anos e que gosta de trabalhar texturas e formas. Foi o traba-lho enquanto artista plástica que a le-vou a produzir este sabão. As mãos que tantas vezes tem de lavar precisavam de um produto não agressivo e que fosse também hidratante para a sua pele, feito com ingredientes suaves e naturais. A saboaria tem um lugar importante na história da vida portuguesa. Desde o princípio do século passado, havia uma poderosa indústria que produzia sabões,

o Sabão

made in portugaltExto E FotogrAFiA maria prataS

algumas fábricas “ensaboavam” o mer-cado, através de diversas empresas, apresentando um produto que apesar de grosseiro, tinha múltiplas variantes. um produto funciona quando cumpre a sua função e, um sabão na mão, é um guerreiro contra a sujidade do soalho de madeira, da roupa, da loiça e revela-se o melhor amigo da higiene. Assim era nos anos 50, numa casa portuguesa, com o sabão Clarim ou o sabão Azul e branco.no atelier de Sara Domingos conversámos sobre a produção artesanal de Sabão olí-via e de como surgem as formas, as tex-

Transformar azeite num objecto que não é gastronómico é fazer alquimia pura. Encontrar bolas e uns cubos que cheiram a canela e uns paus de gelado num armário de gavetas, não significa que estejamos perante uma montra de iguarias comestíveis, mas estamos perto disso. O Sabão Olívia é um sabão feito com azeite, é artesanal, e tem aromas e texturas mediterrânicos.Saem das mãos de Sara Domingos e voltam para as suas mãos.

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turas e os aromas. É esta a ordem da sua preferência, já que o cheiro não é o que mais define este sabão. Fez experiências, equilibrou os ingredientes e, se no início só ela os usava, quem os experimentou, gostou e começou a usar também. Sara Domingos tem vindo a aumentar a produção e passou a vender o sabão no seu atelier que se encontra numa rua da baixa de Lisboa junto à Sé, numa rua onde se cruza o velho comércio com as novas lojas renovadas. Foi motivo para justificar uma paragem e entrar. Ser tu-rista numa cidade que se conhece pelo

coração é uma aventura que procuro regularmente, andando horas nas ruas e, assim, descobrir pelos meus pés, es-paços, casas, lojas, becos, vãos de esca-das e pessoas com quem perco e ganho tempo, a conversar. “Olivia vem de oli-va, associado ao azeite, e também de uma tentativa de encontrar um nome universal, que funcionasse tanto para Portugal como para o estrangeiro”. Parei algum tempo a olhar para as gavetas que mostram e guardam a última produ-ção, enquanto ouvia a explicação sobre os benefícios de cada um. Aviso, que não

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é fácil escolher um sabão. Apresentam--se em forma de cubos, de esferas ou com forma de gelado de pau. As cores vão do creme ao castanho, do branco ao cinza escuro. escolhi em função das for-mas e trouxe para casa um de cada.enquanto os sabões eram embrulhados, contava-me quais os ingredientes uti-lizados no processo de fabrico: azeite,

água, urtigas, ou canela, ou carvão, ou alfazema, ou mangericão, ou flor de la-ranjeira ou rosas... e esperar um mês pa-ra ser usado. “Sou eu que faço tudo, e o processo é todo manual”. explicou ainda: “É a reacção química entre a base alca-lina e a gordura, neste caso o azeite, que tem o nome de saponificação, que produz o sabão. Depois precisa de curar durante

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um mês e, a partir desse momento, es-tá pronto a usar”. Parece-me que nada é deixado ao acaso. Cada etapa da sua pro-dução origina sempre um produto único. tudo parece muito simples. não é. Durante o tempo de secagem, Sara Do-mingos também produz as embalagens. o papel grosso e cru que embrulha ca-da sabão, é serigrafado com uma fo-

R saradomingos.blogspot.pt

R rua de São Julião 8, 1100 Lisboa

lhagem de oliveira, artesanalmente, a tinta branca. Como os sabões, o papel não tem aditivos, só a água é o elemen-to comum ao fabrico de ambos. Afinal, água e sabão lavam tudo.

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palácio nacionalde Sintra REALEzAD’ALMA

E CoRAção MuçuLMAno

teXto patrícia SerradoiLuStrAção Sara quareSma capitão

Paço Real. Palácio da Vila.Ou Palácio Nacional de Sintra.

Monumento de excelênciada arte da azulejaria mudéjar,do traçar da reinterpretação

sucessiva da arquiteturaao longo de oito séculosde história da residênciada realeza portuguesa.

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Da dinastia Afonsina à de bragança. Desde D. Dinis a Dona Amélia de orleães, muitos foram os reis e rainhas que pas-saram pelo Paço real da poética vila de Sintra. o refúgio da corte portuguesa, de onde se guardam segredos e estó-rias por detrás da história (re)criadas em frescos. narrativas lendárias que contam a história de uma princesa que recebera um casal de cisnes como pre-sente de casamento, e de tão graciosas que eram as aves de pescoço longo e plumagem branca, foram pintadas no texto da Sala dos Cisnes, retrato exu-berante da renascença italiana, em re-presentação da jovem com o propósito de nunca ser esquecida; ou a conotada maledicência na Sala das Pegas, que in-vadem o teto com a divisa de D. João i no bico. “Por bem”. ou serão as senho-ras da corte do tempo do primeiro rei da Dinastia de Aviz a murmurar “por bem”, palavras proferidas pel’ “o de boa me-

mória” num momento muito delicado de sua intimidade com uma dama da corte quando fora descoberto por Dona Filipa de Lencastre, sua mulher… voltemos à nobreza do al-zuleique ou azulejo, designação para a peque-na placa ou pedra polida que, na idade média, é dada a conhecer pelos muçul-manos ao reino de Portugal. Arte em permanente exibição pública por todo o palácio numa escala superlativa de mo-numentalidade. no chão e na parede. Alicatados, corda-seca, esgrafitados… Definições integradas no alinhamento da geometria tão particular no universo árabe. Sem perder de vista o tão singular “tapete” da Capela Palatina, erigida no tempo de D. Dinis em nome do espírito Santo, legado árabe no Palácio nacional de Sintra, o qual remete para os alica-tados andaluzes, segundo os registos da história, sendo Sevilha a proveniên-cia de tão meticuloso ofício, assim co-

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mo para o exuberante alfarge, o teto de madeira em laçaria. ou o chão do quarto D. Afonso vi, ornamentado por padrões mouriscos dominados por um castanho avermelhado e pelos amarelos e pelos verdes. os ladrilhos cerâmicos esgrafi-tados ornamentados de arabescos, téc-nica corrente em marrocos elevam, por sua vez, a insólita decoração da Sala das Sereias, pois levam a crer, uma vez mais, que existiria, na vila de Sintra de outro-ra, um mestre detentor de tão primoro-sa arte. ou a azulejaria do antigo quarto de dormir de D. João i, com a decoração de D. manuel i, adornada pela geometria e encimada por frisos com maçarocas inseridas em flores-de-lis, e a fonte ao centro, revelam, uma vez mais, a forte carga muçulmana neste Paço de reis e rainhas de um reino em terra mourisca.A imponência superlativa da corte ex-cede na megalomania de dois reinados. Depois de D. Dinis, que manda erguer a

parte mais alta do edifício da realeza, D. João i providencia a construção de um corpo independente com uma cozinha gigantesca, de onde sobressaem a du-pla de chaminés cónicas de 33 metros de altura. o ex-libris da vila de Sintra. A arquitetura de estado, intenção de os-tentação e poder do início de uma nova dinastia. inigualável, contudo, peran-te tão magnificente Sala dos brasões, a mais importante sala heráldica da velha europa, com as armas portuguesas, en-cimadas por um dragão alado, a fechar a cúpula oitava. Alegoria sumptuosa ao poder de D. manuel i cujos oito brasões circundantes representam os seus filhos. Seguidos por fileiras de veados que, nas hastes exibem os apelidos das 72 famílias nobres mais influentes do reino, glórias a conservar pelas gerações vindouras… d

R www.parquesdesintra.pt

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o Sabore o Saber

FranceSeSuMA

DEMonStRAçãoDE ARtE

E tRADIção

tExto E FotogrAFiA andrÉa rocha poStiga

Um regalo aos sentidos:Cores, sabores e perfumes

mesclam-se em uma demonstração de cultura, tradição e conhecimento

no coração de Paris.

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A imersão em uma cozinha profissio-nal nunca esteve tão perto. Apaixona-da pela gastronomia e encantada pelo savoir-faire francês, as palavras má-gicas “Paris” e “férias” levaram-me a alimentar estas paixões no célebre Le Cordon bleu.no coração do 15ème arrondissement, a escola de gastronomia, responsável pela formação de grande parte dos chefs que hoje comandam as mais exigentes e re-nomadas cozinhas do mundo, propõe, além de sua tradicional formação, ate-liês com temáticas e durações variadas. As aulas são ministradas por professo-res chefs do LCb, aproximando os alu-nos do universo gastronômico. minha

exígua passagem pela capital permitiu--me não só cursar o ateliê “Marché de Paris”, mas também alimentar o proje-to futuro da formação completa.na cultura francesa, o marché, ou a feira, é muito mais do que um local de compras: trata-se do encontro com o produtor, representante da tradição e do savoir-faire. É o contato mais próxi-mo com a origem do que se leva à mesa que proporciona a necessária harmonia com a natureza: os produtos disponí-veis são o retrato da sazonalidade, que determinará o resultado final obtido. o ateliê começa com a visita ao marché e segue na degustação dos produtos ad-quiridos. À tarde, uma demonstração

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de alta gastronomia, com o preparo de um menu completo pelo chef.Aurélien Légué, chef e professor do LCb, leva o grupo ao marché Saint-Charles (15ème) e atribui didática da visita. Pe-quenas explicações e uma palavra do produtor sobre a safra auxiliam o chef a selecionar os produtos que melhor ex-pressam o terroir, a tradição e a esta-ção para degustarmos. A riqueza estival materializa-se na variedade de frutas legumes, viçosos e saborosos.Com razão, Charles de gaulle, quando se perguntava como governar um país com tantas variedades de queijos. oscilam entre 350 e 400 os tipos produzidos no país, do roquefort ao reblochon, pas-

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sando por todas as nuances de chèvre, que se somaram ao tour de sabores.De volta à escola, Côtes du rhône, branco e tinto, harmonizaram com a variedade de “símbolos nacionais” de-gustados, coroando-se a degustação com as finas pâtisseries. A riqueza do terroir e do savoir-faire sobre a mesa!na sala de curso do Le Cordon bleu, estru-turada em forma de auditório, com espe-lhos que refletem o trabalho na cozinha, os alunos presenciam a transformação da matéria prima em arte na demonstração de alta gastronomia. uma verdadeira ex-plosão de cores, sabores e texturas.

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Da espuma à confeitaria fina, a maestria na sincronização revela a importância domínio do tempo na combinação de processos. técnicas de diferentes níveis de dificuldade e pressupostos básicos são expostos de maneira clara.Como resultado, um esplêndido menu. Sopa fria de cenouras com anis e mozza-rella, de entrada. o prato principal ganhou vida no filé de cordeiro, com azeitonas Pi-choline, confit de legumes e polenta cre-mosa. o toque de açúcar ficou por conta da torta de morangos acompanhada pelo sorbet de morangos e balsâmico. um afa-go aos sentidos e uma genuína inspiração.

Destaco: a técnica varia, mas a tradição é transmitida de geração em geração, na valorização do patrimônio nacional. Cada povo em sua individualidade deve primar pela origem e preservar a essência. A visão muda, mas o amor pelo terroir é perene. na simplicidade de um dia, o ateliê Mar-ché de Paris é mais do que uma aula; afinal, uma das formas mais profundas de se aproximar da cultura de um povo é explorar o sublime prazer daquilo que lhe chama à mesa. o LCb aborda com arte este aspecto. minha experiência foi o primeiro passo para uma caminhada um pouco maior na próxima vez. d

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la boulangerie by SteFA PADARIADE PARISEM LISBoAteXto patrícia SerradoFotogrAFiA ricardo junqueira

Assim que os ponteiros do relógio mar-cam as 7 horas da manhã, Stéphanie inicia a ordem dos trabalhos na sua bou-langerie pondo, literalmente, as mãos na massa, a repousar em câmara fria desde o dia anterior, para fazer pão: baguette simples, rústica ou de cereais com caril, bola rústica, pão intergral, pão de ce-reais, pão de azeitonas com especiarias marroquinas… Para levar ou partilhar à mesa de La boulangerie by Stef. em fa-mília ou com os amigos. A compota, a manteiga e o creme de chocolate para barrar são oferta da casa.

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mas há mais neste espaço convidativo e muito agradável entre a baixa lisboeta e Alfama, na esquina que marca encontro entre a rua da madalena e a rua de São Julião, em Lisboa. De janelas a rasgar as paredes, num claro gesto de boas vin-das à luz do sol, sonho concretizado por Stéphanie, a padaria parisiense está a escassos meses de completar dois anos de existência, a celebrar em dezembro próximo. Do cenário sobressai a deco-ração vintage, com peças de mobiliário adquiridas em feiras de velharias e pos-teriormente restauradas; e uma parede envidraçada, atrás da qual a dona da casa trabalha com afinco nas iguarias de fabrico da casa, até porque, além do pão, Stéphanie faz os deleitosos crois-sants de massa folhada.no alinhamento das suas criações es-tão também os salgados, preparados a meio da manhã, bem como as saladas,

as quiches… ou o brunch, com o qual “conseguimos trazer pessoas à rua da Madalena, em Lisboa, num domingo ou num feriado, algumas das quais de Cascais, graças à qualidade do serviço e dos produtos, apesar de estar tudo fechado por aqui. Em média servimos entre 60 a 70 brunchs nesses dias”, assegura. Para durante a semana, fica a sugestão do pequeno almoço, sem hora marcada. e caso surja uma ideia nova, Stéphanie materializa-a duran-te as horas que forem necessárias. et voilá! no dia seguinte a ementa é com-plementada com uma surpresa. o que não dispensa na despensa? “Compotas biológicas de Azeitão (à mesa), Nutela, manteiga dos Açores, chás biológicos, o néctar dos deuses da Quinta dos Ter-mos, da Beira Interior, vinho e queijos franceses, presunto português… a me-lhor oferta de dois mundos.” A provar. d

R www.laboulangeriebystef.com

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dux beerCERvEJA vEtERAnoRuM!teXto e FotogrAFiA Sara quareSma capitão

DuX. Palavra do latim. título do exér-cito do império romano, designando quem liderava. Para quem de Coimbra é, um nome tão familiar. inevitável re-conhecer. Ligada às tradições acadé-micas, sempre tão fortes na Aeminium: Dux veteranorum. expoente máximo da Praxe Académica, chefe máximo de uma Academia. Assim dito, para uma cerveja nascida em Coimbra, cidade de Criptopórticos e Fóruns, de estudantes de praxes ou não praxes, DuX beer é um nome sábio e perfeito, para quem quer ser chefe veterano na arte da cerveja. DuX beer é uma cerveja artesanal fei-ta com produtos 100% naturais; uma cerveja que não é filtrada nem pasteu-rizada, sem corantes e sem conservan-tes, com gás (Co2) natural produzido a partir da fermentação das levedu-ras. resultado de uma amizade entre dois amigos, José miguel Faria (mestre Cervejeiro de César) e Pedro Domingos (Provador de César), ambos bons apre-ciadores de boa cerveja – um produzia--a, outro consumia-a, método exímio

– que se aperceberam que a cerveja que os unia era mui apreciada pelos militan-tes da bebida dourada e que tinham, a bem da tranquilidade de César, de lan-çar uma cerveja de qualidade e varie-dade. haverá maior segurança do que uma amizade consumada na ingestão de cerveja? César esteja descansado, pode beber sem temer. Para garantirem o sucesso, a César só o êxito conta, não só criam a DuX beer, como lhe dão três travos, para três gostos diferentes: Pils-ner (cerveja de baixa fermentação e cor clara), Weiss (cerveja de trigo, pouco amarga, espuma cremosa e pronuncia-da) e Stout (cerveja preta, encorpada, espuma branca e densa). Chamar-lhe--emos as ninfas inspiradoras de César... DuX beer, chegada ao mercado em ou-tubro, promete muito. A si, caro leitor, só lhe resta combinar um copo com os seus comparsas da boa cerveja e Prost! nota final: o César, somos todos nós...d

R www.facebook.com/Duxbeer

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ideal&coA PRESEntE REIntERPREtAçãoDE uMA HERAnçAteXto patrícia Serrado FotogrAFiA ideal&co

Reinterpretar, preservar, partilhara genuinidade portuguesa de um legado cultural com história que, hoje,entrelaça a tradição com a modernidade.

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A idealização de cada peça é recriada pelo traço de designers. A materializa-ção de cada objeto emerge das mãos hábeis de pequenos artesãos. A maté-ria prima sustenta na nobreza da sua origem. o processo de transformação é ecológico e sustentável. o resultado assenta na forma dada a artigos exclu-sivos, concebidos, um a um, nas peque-nas oficinas de artesanato das Serras de Aire e Candeeiros. ofício dominado por critérios bem definidos – qualidade, funcionalidade e durabilidade. Assim é a ideal&Co. marca portuguesa que nasceu há um ano do amor e da cumplicidade de rute vieira e José Lima, que desejam revitalizar a vetusta indústria de curtu-mes, e cuja formação na área de design

remete para a fusão da indústria têxtil e não só: José apresenta um passado as-sociado às bicicletas no seu curriculum profissional; rute detém da sua heran-ça familiar a indústria de curtumes, por parte do avô, António vieira que, em 1959, funda a Fábrica de Curtumes ide-al, nome que dá origem a ideal&Co.

A ideal&Co surgiu em setembro de 2012 e já marca a tendência do vintage no universo do design de moda. Ambos acreditam que a genuinidade advém do coração e das ideias sólidas. Concreti-zam-se na partilha de sonhos e valores e resultados. Qual o balanço dos primeiros 12 meses? o balanço deste primeiro ano de vida da ideal&Co é bastante positivo.

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tem sido um ano sorridente! Desde o primeiro momento sentimos uma rece-tividade e entusiasmo, de todos, absolu-tamente surpreendente. Criamos laços e fizemos amigos, temos conhecido pes-soas incríveis que nos têm apoiado e aju-dado, com verdadeira paixão, a divulgar a marca dentro e fora de portas. os con-tactos tanto de lojas, como de agentes, e mesmo do público em geral, tem sido muito positivo e construtivo. Sentimos que a marca e os produtos conseguem distinguir-se e captar a atenção no meio de tanta concorrência.

A excelência do detalhe cruzado com a originalidade e a qualidade dos produ-tos da marca nacional, nascida entre o

Porto e o Parque natural das Serras de Aires e Candeeiros, merece reconheci-mento. Quais as estratégias utilizadas para o incremento da ideal&Co dentro e fora de portas? A página do facebook da ideal&Co foi a plataforma que elegemos para divulgar a marca neste primeiro ano. uma aposta que se tem revelado acertada, pois permitiu estabelecer as primeiras relações e contactos tanto a nível nacional como internacional. A partir daqui temos conseguido dar-nos a conhecer e chegar exatamente ao pú-blico que era nosso objectivo conquis-tar. isso reflete-se nas vendas que têm superado as nossas perspetivas iniciais, tanto em Portugal, como um pouco por toda a europa, em hong kong, em Sin-

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gapura e na Austrália. A imprensa na-cional tem-nos dado muito apoio, com reportagens e artigos sobre a marca e a coleção. A nível internacional saímos na revista inglesa monocle, em março, o que foi fundamental para o mercado asiático nos conhecer e estabelecermos alguns contactos comerciais. estamos a crescer e não pensamos em frontei-ras, queremos chegar longe e senti-mos, com este primeiro ano, que isso é absolutamente possível. A coleção tem características ecléticas capazes de agradar a mercados e públicos muito distintos, que se deixam conquistar pe-lo look intemporal e pela qualidade dos materiais e dos acabamentos, o que nos deixa muito felizes.

As ideias florescem são passadas pa-ra o papel por meio do traço desenfre-ado, na ânsia de concluir o objeto, em busca da perfeição e da funcionalidade. Quanto tempo demora, em média, uma peça desde o esboço à concepção? o processo pode demorar entre um a três meses, em média, dependendo das pe-ça em questão. no início de cada cole-ção/produção fazemos nós próprios a encomenda das peles, que são curtidas de propósito para a nossa marca com um acabamento e tom específico, atra-vés de um processo ecológico que usa taninos vegetais, em vez de crómio, o

qual se chama curtimenta vegetal. tam-bém o canvas em 100 por cento algodão é por nós acabado, por um processo de termocolagem onde, entre 2 camadas de canvas, é colada uma película mui-to fina de Pu que impermeabiliza a tela e lhe dá resistência. Depois temos todos os acessórios metálicos e per-cintas pa-ra alças, que também são definidos por nós e mandados fazer em Portugal. Com todos os ingredientes à nossa disposi-ção, começamos a analisar os nossos esboços e a definir ideias de produto. Após a idealização e conceção da peça no nosso escritório no Porto, fazemos todos os moldes em cartão e passamos para a construção do primeiro protó-tipo, o qual, normalmente, em diálogo com o artesão, sofre alguns ajustes que permitem uma melhor funcionalidade e qualidade de acabamentos, costuras, colagens, etc.. Quando a peça fica con-cluída, é inserida na coleção para venda. Procuramos ter sempre as matérias pri-mas em stock, para responder aos pedi-dos urgentes, demorando, cada artesão, uma média entre um a três dias a cortar, colar e costurar uma peça que, no fim, é datada e assinada.

uma vez que ambos, José e rute, vivem no Porto, como conseguem estabele-cer “a ponte” entre a cidade invicta e a região do Parque natural das Serras de

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Aires e Candeeiro, onde se encontram as oficinas que concebem as peças da ideal & Co? A família da rute, que esta-va ligada à indústria de curtumes, con-tinua a viver em vila moreira, Alcanena. É aqui que compramos as peles e traba-lhamos com os artesãos que, no Parque natural das Serras de Aire e Candeei-ros, têm as oficinas onde produzimos as nossas peças. Dependendo da fase de trabalho em que estamos, podemos ter de passar uma semana inteira ou 15 dias em vila moreira, ou apenas ir por dois ou três dias, para acompanhar e dar apoio a alguma encomenda que esteja a ser feita. Procuramos conciliar tudo e gerir o nosso trabalho como designers no Porto, conforme os timmings da ideal&Co, que é a nossa grande aposta e prioridade. viver numa cidade como o Porto, mantermos o nosso núcleo de amigos, o contacto com determinados ambientes/projetos e marcas que estão a acontecer à nossa volta, é fundamen-tal para nos mantermos atualizados e ligados com o público que queremos conquistar. este trabalho pêndular en-tre norte e centro é o que dá à ideal&Co o caráter que a distingue: Design urba-no, contemporâneo, mas intemporal, aliado a matérias primas de qualidade superior e a uma construção artesanal única, com origem no saber-fazer dos artesãos que, durante anos, trabalha-

ram os artigos em pele para a caça e a equitação produzidos na região do Par-que natural das Serras de Aire e Cande-eiros.

Para terminar, e porque a ocasião é de festa, vão apresentar uma peça especial pela ocasião do primeiro aniversário da marca? vamos ter novidades, sem dú-vida. há uma evolução na coleção com upgrades em alguns modelos. Assim como a apresentação dos novos tama-nhos da mochila Candeeiros e da Aire messenger, agora também disponíveis num tamanho mais pequeno a pedido de algumas clientes, que se apaixona-ram por estes modelos mais masculinos. A isto acrescentamos novas opções de cor, tanto em canvas, como nas peças de pele, com a introdução da cor preta. outra novidade é o lançamento de uma peça em edição especial da ideal&Co para o eDitoriAL, blogue de design e li-festyle do Álvaro tavares ramos. e, por último, o lançamento do nosso site, on-de todos vão poder ter acesso à história e às pessoas por detrás da ideal&Co e, claro, conhecer toda a coleção.

Porque “some things stay with you fo-rever!” d

R www.idealandco.com

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meliSSaEStILo D’AnDARteXto Sara quareSma capitão eSQuiSSoS karl lagerFeld

Plástico? Fantástico!Dos mais simples aos mais ousados. Dos mais cool ao mais haute couture. Dos mais minimais aos mais barrocos. Dos nude neutros aos arco-íris garri-dos de brilho... Melissa, de sabor a Bra-sil, há muito se afirmou no exigente e implacável mundo da moda com o seu calçado bem trendy, ultra-fashion. A sua inusitada matéria – um imprová-vel plástico bem maleável, resistente e 100% reciclável – criou e ditou um no-vo estilo d’andar, uma moda, um must have para quem tem no estar na moda um modo natural de ser, no be stylish uma afirmação.

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mais do que ser apenas calçado, melissa cresceu e rápido passou a modo de vida, a ser um acessório de culto, um univer-so. É blog, é galeria d’arte, é pinterest, é facebook, é site, é loja virtual, é loja real, é instagram, é youtube, é twitter, é revista, é clube, é um vício que, a ca-da nova estação, nos faz sonhar com as futuras, deixando os pés a baterem de nervoso e espírito curioso.e cada nova coleção, com pés inquietos, melissa tem sido um palco constante onde artistas e estilistas têm dado asas largas à criatividade e imaginação sem par, sem fim. Certamente que se lembra dos modelos criados por Jean Paul gaul-tier, Zaha hadid, Thierry mugler, Patrick

Cox... e os que ainda agora pela melissa caminham, citemos os irmãos Campana e seu entrelaçado expressionista, Jason Wu e rendas fictícias, J. maskey e trans-parências brilhantes, viviene Westwood e laços e corações, e a última aliança a sair para os holofotes, na próxima esta-ção, karl Lagerfeld e doçuras geometri-zadas. resultado? Coleções únicas que são objeto de desejo, de exclusividade, que são objeto de coleção. melissa é sa-ber de moda. onde nos leva a melissa neste outono? Ao cinema. A 7.ª arte é a inspiração e o calçado melissa é o pro-tagonista desta longa metragem que quer fazer de nós divas, musas, estrelas de um mundo hollywoodesco.

vamos às compras?

R www.melissa.com.br

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philippe StarckIMPRoBABILIDADE

PRovávELteXto Sara quareSma capitão

Loucura infinita. Filosofia peculiar. Imaginário surrealista. É o que se põe e dispõe.

O designer arquiteto. O improvável.O texto podia ser calmo, descritivo.

Podia dizer que Starck nasceu em 1949,em Paris, que estudou na Notre Dame

de Sainte Croix, em Neuilly, e na École Nissim de Camondo de Paris.

Que é, sem exageros ou gabarolices,o designer contemporâneo mais aclamado,

premiado e desejado, no mundo.

philippe starck by lucie loret, baccarat

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Acrescentar que não chegaria uma dú-zia de páginas para escrever o seu cur-riculum vitae, em lista. Podia expor que já desenhou, projetou e criou de tudo um pouco, até uma aparentemente ba-nal escova de dentes; que na arquitetu-ra de interiores se destaca na hotelaria e restauração tendo só, neste ano de 2013, terminado três mundos unique

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restaurante / miss ko, paris

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para nossa tentação – mama Shelter Lyon, mama Shelter istambul e miss ko Paris; que no design e no design indus-trial desenvolve veículos, roupa, louça sanitária, candeeiros, mobiliário, uten-sílios de mesa, cozinhas, bagagem... e falar sucintamente de cada série, obje-to, projeto; e, certamente e porventura, seria um texto sobre um outro criativo

mais constante, menos exótico, mais neutral. Philippe Starck é, em si mesmo, uma marca, um sinónimo de design, um designer de referência estética. É uma marca desejada por outras como baccarat (reinvenção do lustre com Zé-nith...), Cassina (sofá bem apetrecha-do), Flos (domínio da forma da luz...), kartell (uma família de cadeiras...), ma-

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gis (aquele último chien...), Fossil (tem horas?)... todas estas com trabalhos, vários, assinados por alguém que diz de si mesmo: “I have this mental sickness called creativity” (abençoada doença). É convidado de luxo, senhor de um im-pério. É criatividade em estado puro. É um filósofo das formas de amanhã, é design de humor refinado.num texto sobre Starck há que extrava-sar no sincopado, no gongórico e até se for preciso colocar Duchamp com Dali a disputarem metáforas, não subesti-mando o Chirico. Quiçá chamar o Warhol misturando-o com Pollock para a ceia e bem traçado mesmo, era propor ea-mes como mediador da mesa de debate e Corbusier na análise... vejamos então como poderemos, da mais inebriante

forma, definir o designer arquiteto, avi-sando que é provável olvidar uma defi-nição. rigor e simplicidade. Criatividade e qualidade. genialidade inesgotável. Frágil e forte. Ambiente e (re)evolução. impertinente e agradável. elegância e delicadeza. Dinâmica e funcionalidade. não esquecer: originalidade. imagina-ção, em dose nada espartana. inusitado e barroco. Delacroix e mary Poppins, o surrealismo nunca terminou. Consen-sual? não. mestre de excelência? Sim. Provocador? Depende. Autenticidade? obrigatória. intensidade premissa. um veado nas escadas e um candelabro com um guarda-chuva? Feito. ou não terá um lustre o direito de “I’m singing in the rain!”? não há dúvidas, gene kelly ia gostar de marie Coquine.

sofá / cassina, my world with philippe starck

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lustre / marie coquine, baccarat

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Monsieur Starck tem o dom inato de nos cativar, de nos fazer render, sis-tematicamente, ao seu luxo imbuído de espírito francês em peças orgânicas que são prolongamentos do nosso cor-po, apoiando-nos o espírito seja num garfo, numa bicicleta, num banco al-to ou num casaco de fecho em viés; de nos dar o exagero do brilho sem nunca nos cegar, pois o mais pode ser mais, quando a loucura é starckiana; tem o hábito tremendo de nos fazer desejar ambientes que nos fazem viajar para universos paralelos, onde o arrojo do desenho, na ousadia de um plano, não perde equilíbrio por mais solto ou in-clinado que esteja; não houvesse nos interiores um certo kitsch sofisticado ou um contemporâneo garrido, com elementos inusitados que lhes que-bram qualquer tendência minimalista que possa querer sobressair. em todos

os objetos, a excentricidade é espinhal medula do corpo traçado. em todos os espaços, a arte é artéria nos corpos criados. Que seja permitida a heresia de dizermos que existe, no hoje e des-de ontem, um novo toque, o toque de Starck. Com o designer arquiteto em causa, não é para procurarmos retân-gulos de ouro ou espirais de Fibonacci, não é para questionarmos a sua cria-tividade ou formas, não é para enten-der o porquê daquela bóia na parede ou daquele braço na poltrona. É para se viver o espaço, sentir a forma. É pa-ra nos deixarmos levar numa impro-babilidade surrealista que é realidade imaginada. Philippe Starck é a concre-tização do improvável provável, ele ser mutante que diz, sem hesitar, “we are mutants”, não fosse o mundo criativo uma constante mutação e nós, seres mutante(s)... Savoir-faire, monsieur! d

R www.starck.comcandeeiro / libro foto, flos

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improváveladj.2g. 1 que tem poucas hipóteses de acontecer2 que não se pode provar

alergia

- Como, não consegues provar?- não é tanto não conseguir, é mais não poder.- nunca ouvi tal coisa. o que dizes não faz sentido.- Faz para mim. todo o sentido.- no entanto, não parece possível, que algo assim exista.- Pois eu sou a prova que prova o contrário.- (suspiro) Pesados todos os prós e contras, é essa a tua última decisão?- Desculpa-me mas…essa mousse é altamente improvável.

tExto E ILuStRAção ana Seia de matoS

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teXto patrícia Serrado FotogrAFiA joão pedro rato

É um livro de Francis bacon que vê na montra de uma livraria durante a ado-lescência que o leva a pegar em pin-céis, trinchas, tinta… e transbordar a imaginação na tela. Alva. onde os tra-ços, carregados a negro, se apoderam com vivacidade e encarnam a realidade nua e crua dominada pelo vermelho da carne, pela pele nos rostos de retratos pintados numa imensidão vincada pela expressividade do ser humano, com-posta em quadros concebidos numa escala monumental.

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Porque “a monumentalidade faz parte do meu trabalho, simplesmente pelo prazer que me proporciona”. Ato contí-nuo num percurso artístico desprovido da imposição de uma formação acadé-mica em arte, pano de fundo de uma realidade assinada por um autodidata que, há seis anos, troca a cosmopolita Paris pela exuberante malveira da Serra, em Sintra, “pela natureza e serenida-de que emana este lugar maravilho-so”. Palavras de Philippe Pasqua, artista plástico francês, de 48 anos, que aplica o ofício das artes num atelier-caserna cujo tecido camuflado se funde no co-ração de um jardim adormecido no si-lêncio infundido pela veemência do mundo exterior ao homem.

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um ser humano absorto numa cons-tante reflexão sobre a morte: “A mor-te é, para mim, uma obsessão desde o meu nascimento.” ou não-morte re-presentada pelo crânio, objeto de arte sublime apresentada em pintura e em obra escultórica, ornamentada com elementos da natureza viva – folhas, borboletas… uma obsessão que emerge nos anos 1980’ e que simboliza o tra-balho do artista. o retrato da vaidade, “que é efetivamente, uma provocação à vida” e a quem passa o portão da sua casa, na malveira da Serra, onde uma caveira concebida numa escala mega-lómana, ornamentada com borboletas, absorve o olhar.De novo o homem, o ser composto por matéria e espírito. ou a exposição da vulnerabilidade humana, com a figu-ração de transexuais, de pessoas com mobilidade reduzida, invisuais… “cer-tamente pelas suas diferentes sen-sibilidades, juntamente com os seus prazeres de viver o momento.” Sempre envolto na imponência, sinónimo de uma arte da autoria de Philippe Pasqua. A conhecer. d

R www.pasquaphilippe.com

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“Ceci est l’histoire d’un homme marqué par une image d’enfance”

demos usar a máquina para revelar o modo como o nosso universo pessoal é construído, desenhado e modelado.Chris marker constrói um filme descon-certante e, ao mesmo tempo, intemporal. A narrativa assenta em fotografias, foto-gramas estáticos com narração em voz off, uma montagem e enquadramentos geniais, um texto crítico e, em certas al-turas, violento. A violência verbal é uma violência crítica do narrador para com as imagens, fotografias apresentadas no filme… Diria que se trata de um ensaio cinematográfico de marker criticando o próprio marker. o cineasta escondido do cinema experimental contemporâneo, do ensaio. marker através da sua visão futurista redefine o conceito do cinema documental elevando-o a outro patamar de maior visibilidade. em “La Jetée”, de 1962 , fotograma por fotograma, marker constrói um filme visualmente extraor-

esta frase de subtítulo abre o filme, uma curta-metragem, de Chris marker. “La Jetée”, de 1962. Cineasta francês, fo-tógrafo, escritor, artista de multimédia, marcou vincadamente a história da arte cinematográfica.Considerado um dos mais importantes filmes da história do cinema, “La Jettée” conta-nos a história de um sobreviven-te da 3.ª guerra mundial, que vive como prisioneiro nos subterrâneos da cidade. raymond bellour afirma: “Em 29 minu-tos, Marker condensa uma história de amor, uma trajectória rumo à infância, um fascínio violento, uma homenagem ao cinema, à fotografia, um sentido agudo do instante.” na memória des-te sobrevivente, surgem as lembranças de sua infância. Chris marker investiga o desejo ligado à memória, sendo um filme sobre cinema também o é sobre fotografia. marker argumenta que po-

tExto hernâni duarte maria

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dinário, uma experiência fotográfica em que a montagem e os enquadramentos meticulosamente feitos são o elo de liga-ção entre a imagem, a narração e a mú-sica. A visão de marker em “La Jetée” é o futuro, a memória fotográfica, uma ex-periência apocalíptica, as cobaias huma-nas, a destruição mas, ao mesmo tempo, a reflexão sobre os humanos, o amor, a terra… o caminhar no limbo entre a reali-dade e um futuro surreal, mas real…“La Jetée” a obra maior de marker que influenciou vários cineastas e outros tantos filmes, um dos mais conhecidos: “12 monkeys”, de terry gillian.“La Jetée” uma curta-metragem de fic-ção científica, que se tornou um clássi-co do género. Filmado a preto e branco e montado a partir de imagens estáticas individuais, este “romance de fotogra-fia” retrata a busca de um homem não identificado, por uma mulher, ou melhor,

la jetée argos film 1962 fonte: culturgest

para a imagem de uma mulher que ficou registada na sua memória desde a infân-cia. A narração acompanha o protagonis-ta no seu caminho através de um cenário pós-apocalíptico e forma o fio narrativo da história fragmentada.Além da questão do conteúdo a realida-de da memória e da imaginação, “La Je-tée” lida com a progressão contínua do tempo. A associação de Chris marker ao documentário é uma realidade e uma associação mas, na verdade, mesmo os seus filmes, diria, menos estranhos, su-peram o relato dos factos e enveredam por grandes ensaios poéticos.e termino com uma frase emblemática da curta “La Jetée”: “nothing distinguishes memories from ordinary moments…” d

“La jetée”, 1962 realização: Chris markerDuração: 29 minutos

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improvável[mente]

tExto pedro emanuel SantoSILuStRAção roSa Feijão

havia uma homem que tinha uma casa dentro dele. havia fantasmas que ha-bitavam essa casa; e essa casa estava dentro do homem. não sabia se era uma casa assombrada ou, se era ele, em si, um homem assombrado. talvez fossem ambas - uma dentro da outra - reais.

Por vezes, os fantasmas pareciam ador--mecidos, deixando-se ficar na casa, quietos, embora o homem soubesse que eles não precisavam de dormir. ou talvez tentassem dormir, para convencerem a si próprios, que não eram fantasmas, mas sim, reais - pensava o homem.outras vezes, estavam dias e dias bem despertos, tirando-lhe também o sono, cansando-o, atormentando-o.

enquanto isso, o homem estudava-os, tentando perceber o porquê de existi-rem, dentro dele. Analisou e experimen-tou várias formas de os expulsar: tomou medicamentos, químicos, procurando matá-los - mas não se mata o que não está vivo. Começou então a beber. be-beu até não poder mais, na tentativa de os embriagar também, mas não resul-tou. tentou ainda correr, correr e correr sem parar, para os tentar cansar. Pen-sava que assim deixariam de gostar de habitar nele, e o deixariam. mas o ho-mem cansou-se até quase desmaiar, e a eles nem o suor lhes chegou.

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Com o passar do tempo, foi ficando ca-da vez mais cansado, desmotivado e triste... reparou então que quanto mais em baixo ficava, menos fazia, menos saía, e os fantasmas iam ficando tam-bém mais calmos. Descobrindo essa relação, deixou de lutar. Deitou-se e deixou-se ficar quieto, sem se mexer na expectativa de conseguir, finalmen-te, paz dentro dele. e assim foi ficando, dias e dias. Passou muito tempo, tanto tempo que ele não sabe contar. Passou tanto tempo que deixou de pensar nos fantasmas. nessa altura já não sabia se existiam ou não. Perdeu as forças, per-deu o emprego e foi perdendo pessoas...

Pouco antes de se perder a si mesmo, resolveu aceitar tudo. não se podia per-der a si próprio e, com ele, as pessoas… e com elas o amor. Pensou que talvez a felicidade seja isso: aceitação. não acei-tar com conformidade ou derrotismo mas sim, aceitar o que nos chega, como chega, ou que vive em nós… e continuar.

Levantou-se. talvez os fantasmas se tenham erguido também. mas não se importou.

*Este texto pode não ser apenas ficção e qualquer semelhança com a reali-dade, não será pura coincidência. d

R www.pedroemanuelsantos.com

R www.facebook.com/Feijao.illustrateddreams

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penSão FloruM CASo D’AMoRteXto Sara quareSma capitão Com tiago curado de almeidaFotogrAFiA henrique patrício (hp) e Sara quareSma capitão (Sqc)

As portas abriram-se há pouco, este ano. A pauta, inspirada na estética tra-dicional, respeitando os acordes de um traço tipo, tem nos acabamentos no-tas de gramática diversa. É composição tradicional que veste a rigor contem-poraneidade do mundo. Porquê abrir as portas da Pensão Flor? Que vos é ela para vos ser nome? As portas foram abertas por uma circunstância tão simples, gos-to de trabalhar em equipa e há sempre alguém que tem de dar o ímpeto, acabei por ser eu... há 1 ano, ou dois, comecei a escrever e a compor. “Ganhei-lhe o bicho”, entendes? Com o tempo, for-mei um conjunto de canções, algumas completas, algumas esboços. material

reunido, propus, sem mais nem menos, ao manuel Portugal “Olha, queres gra-var um álbum? – Está bem! “, nem he-sitou. Foi assim, que tudo começou. Já tocávamos juntos há muito, ganhamos maturidade, aprendemos fazer síntese do que queríamos. Depois, conforme ía-mos trabalhando, percebemos que era melhor chamar mais alguém. tinha de ser o Luís garção porque...

As portas, tiago... Já estás a entrar na Pensão! eu paro. Avisa-me que eu paro! (risos). em suma, abrimos as portas pe-la vontade de fazermos algo nosso, de fazermos música. o porquê do nome... Porque, muito rapidamente, quando

Fim de tarde. A noite ainda não caía na Pensão.O Tiago, ainda era só Tiago. Ele, coração da Pensão. Uma mesa. Duas cadeiras.Um café, um cigarro. E os segredos contados.

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eu estava no Porto, trabalhei com uma companhia de teatro e fiz a banda so-nora para uma peça, “Déjà vu”. Fiquei interessado em tudo o que mexe à volta do teatro, a sua dinâmica, e fiquei par-ticularmente motivado para escrever uma história. Quando apareceu esta oportunidade de gravar um álbum, quis construir algo que não fosse só canções, queria algo que contasse uma história, talvez vindo do meu fascínio por melo-dias simples com histórias trágicas, por ópera e Puccini. Criámos uma história com várias personagens, um grande enredo. tínhamos tudo, mas não tí-nhamos um nome, nada encaixava. eu, aqui confesso, não tenho jeito para no-mes! A dado momento, estávamos com

o Quim reis, repórter da Antena1, e sur-giu o nome. Disse-nos o Quim: “há um nome perfeito para essa história: Pen-são Flor!”. era tudo o que queríamos. Ficou Pensão Flor. e foi assim, o Quim a dar-nos nome.

A receber-nos, na Pensão, sete nomes, sete vidas, sete notas. Diferentes idades, diferentes percursos, diferentes mundos. Fado, transversal a quase todos. vivên-cia musical, a todos. Amigos daqui e da-li. Caminhos cruzados. o coração, és tu. Deste o mote. Com que artes conquis-taste seis mundos? bom, com o manuel eu conquistei-o e ele conquistou-me. Já tínhamos uma longa amizade, somos um do outro. espera. Afinal, vou res-

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ponder-te da seguinte forma: aconteceu tudo de forma muito genuína. há uma componente forte no nosso grupo que é a amizade. o Luís garção, de nós o que tem mais experiência de palco e de mú-sica, aceitou o convite assim: “Luís, que-res vir tocar connosco? – Quero!”, sem sequer ouvir temas. estes dois primeiros elementos: pura amizade. todo o resto foi por sugestão do manuel. o Pedro Lopes apareceu-me em casa sem eu o conhe-cer de lado nenhum, nunca o tinha visto. Aceitou, se calhar, porque viu aqui o fu-gir da rotina do fado e “vamos lá arriscar que pode ser que seja desta”. Com o Luís Pedro madeira foi exactamente a mesma coisa, se bem que ele entrou numa fase posterior, com os temas quase comple-tos, “Luís Pedro gostas disto? – Gosto. Queres produzir? – Quero.”. o gonçalo foi filho não programado. Íamos gravar e à última ficamos sem o nosso baixo. tive-mos de o chamar em cima do tempo. e digo-te, foi a melhor coisa que fizemos! Adoro tocar com o gonçalo. É um músico admirável, com uma intuição fora de sé-rie. ele há percalços que vêm por bem... A vânia foi espectacular, foi lindo! eu estava a trabalhar com o Luís Pedro, num outro projeto. estávamos no geFAC, eles esta-vam a chegar de um ensaio de teatro e meteram-se a ver um vídeo do ensaio. eu estava a fazer um intervalo. À por-

ta, a fumar o meu cigarro, a descansar e ouço cantar. esqueci o cigarro. olhei. escutei. uma voz intensa, que não era de fadista, mas tinha o fado lá dentro, cantava com uma garra... A vânia! ela transforma-se, encarna personagens, interpreta os temas. Foi como o nome, amor à primeira escuta.

“o Caso da Pensão Flor” é, creio, resolvi-do no check in. trata-se de uma sequên-cia de 11 indícios, díspares, que indicam coração perdido, achado, desencontra-do; beijos dados, não dados, desejados; mãos vazias, cheias, quase tocadas; noi-tes despidas, vestidas, quase dia... É um toar dos improváveis do amor, de histó-rias cantadas d’amor. É um caso eviden-te de amor? Claro que é. É isso mesmo: Amor. Se há uma coisa sobre a qual vale a pena escrever é sobre o amor. É uma coisa comum a toda a gente, é uma coi-sa que nos põe tristes, nos põe alegres, nos muda, nos acontece e isso é mara-vilhoso. Para quê para fugir dele? É como te digo, ainda não encontrei mais nada que valesse a pena escrever, para as mi-nhas letras, além do amor.

esmiuçando as vossas letras e as en-treletras. É caso que me faz (re)ouvir, voltar atrás, indagar quem ama quem, quem chora por quem, quem quer os

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braços de quem. há lágrimas que são marés, há beijos cravados no peito, há alguém que se quer, não se tem e será que vem?! e há, no contraponto, o nada saber sobre o amor. Donde vêm tantos poemas? vêm, naturalmente, da essên-cia de cada um, o que cada um gostava de contar, de dizer... histórias passadas, sonhadas ou simplesmente desejos. Se o tema é o amor a expressão é o desejo, a paixão... e ainda esperança, talvez.

A terapêutica, a existir, para estes casos sintomáticos do amor é escrever e tocar poemas d’amor. impõe-se a questão de como se inicia a cura: primeiro letra de-pois acordes ou o inverso? Primeiro os acordes e a melodia. Depois a letra. Sem-

pre. Comigo acontece assim, sou eterno apaixonado pela melodia. Com a vânia talvez o inverso, ou não... Agora que me perguntas (risos), fugiu-me a certeza.

A vossa prescrição, continuo crente que são uma espécie de cura, passa, indu-bitavelmente, pelo fado, por travos de tango, por ritmos vários apontados – a vânia a deixar-nos a clamar por ar – e sente-se, em momentos, a morna. Pos-so acusar, em parte, a tua voz disso? tenho uma tendência, inexplicável, que me leva a África e sou completamente apaixonado por mornas, e como eu gos-tava de saber dançá-las... Creio que isto tudo explica. A minha voz é o contra-ponto da vânia. É muito mais baixa por

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isso talvez mais próxima. A verdade é que eu não canto, digo coisas ao micro-fone. Fui convencido a cantar no álbum e acabei por dar um coisa fantástica à vânia: o renascer. Canta a vânia, sai a vânia, entra o tiago, sai o tiago, e de-pois ela regressa. nos espetáculos isso acontece, tu sentes a mudança e o pú-blico reage tão bem. Foi uma coisa bem pensada. há uma acalmia? Sim, uma re-dução da intensidade. não estou a des-valorizar o teu canto. Sim, entendo. eu não sou particularmente convencido da minha voz. no cantar tenho de me refu-giar no facto de eu não saber cantar, de eu não dominar a voz. não tenho uma voz forte, nem sequer pretendo ter, nem pretendo cantar... resultou.

nove instrumentos e um décimo. to-dos componentes indispensáveis, mas a guitarra portuguesa é encanto máximo. Sobressai. É o pulsar mais forte. É ela, a guitarra, o átrio da Pensão? É, logo pelo simples facto de ser uma guitarra por-tuguesa que, por si, tem um som que se evidencia... e tudo isto, a Pensão Flor, co-meçou com guitarras portuguesas. Por-tanto, foi um assumir consciente. o Fado tem uma magia. Percebo que não seja fá-cil gostar de Fado, mas quem toca guitar-ra portuguesa sente uma magia especial, não consigo explicar, mas sei que quando

toco e quando acompanho, sinto o que não sinto com mais nenhum instrumento.

voltando atrás, ao mundo da pena, te-nho uma cisma. Começam no Profano, acabam na maria madalena e a meio contornam o Santo António indo ao ai Jesus do São João, com um balão. es-te caso d’amor, transversal ao álbum, é profano ou divino? e a vossa música? Profano! Se eu tiver de escolher, é pro-fano. tem mais piada. A nossa música não é tão profana assim. Se nós formos ao tema de Coimbra, que nada teve a ver com o projeto a não ser a nossa relação histórico-musical com a cidade, talvez tenhamos profanado um bocadinho. tocamos guitarra portuguesa de forma não tradicional, acho que é o único pro-fanar que pode haver na nossa música.

Caminhando para o check out, há um pormenor que vos torna distintos: o concerto. Quando ao vivo nos convi-dam a entrar dão-nos vídeos com es-tórias carregadas de mistério, contadas por personagem que tudo viu, ouviu e sabe; dão-nos uma dança envolven-te; dão-nos ruas decoradas. há, aqui, a preocupação em dar aos vossos amores uma encenação, uma voz que vos une os poemas... Certo? o nosso recepcio-nista é o fio condutor, é ele que agar-

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ra e o vídeo é complemento com os tais ambientes que nós traçamos. não há concerto sem esta carga cénica. e o bailarino... o bailarino? Ah! o Javier é o maior! nasceu com ritmo no corpo. Para mim é o momento mais bonito do espe-táculo, onde entra a morna. eles dançam parados, mas dançam. A única indica-ção que lhe demos foi que imaginasse que queria dançar, mas estava preso. Dá sensualidade ao projeto. A sensualidade é cativante... e é onde eu quero chegar como compositor, à sensualidade.

Como não existe amor sem o beijo, há a importância do beijo, em várias letras. o single de estreia foi “Na Volta de um Beijo”. Andamos nas voltas e contravol-tas de um beijo e, porém, não poderia “Basta(r) um Sorriso” para não dizer-mos adeus... Que é mais forte o acorde de um sorriso ou o ritmo de um beijo? o ritmo de um beijo. É ali que tu vês se funciona ou não. Sorriso não basta? es-tou a questionar a Pensão... (risos) Sim, eu sei. Se um sorriso não basta... não, temos de ir mais longe do que isso. o sorriso pode ser aquilo que te chama, mas o que te faz ficar é o beijo. Quando se diz “basta um sorriso para não dizer adeus” é porque o beijo está lá atrás, implícito. tu libertas-te num beijo, não é num sorriso. o beijo é...

na esperança de mais vezes entrar na Pensão Flor e como sou crente que, por vezes, pode bastar um sorriso, sorrio, check out e não te digo adeus! Que me diz a Pensão? espero que tenhas gosta-do da estadia. volta sempre!

e os segredos, contados, ficam guarda-dos numa “Caixinha de mão”... d

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penSão Florvânia Couto (voz); tiago Curado de Almeida (voz, guitarra portuguesa, guitarra clássica); Luís Pedro madeira (piano, acordeão, guitarra de aço, cavaquinho); manuel Portugal (guitarra portuguesa); Luís garção nunes (guitarra clássica, guitarra de aço, viola beiroa); Pedro Lopes (viola fado); gonçalo Leonardo (contrabaixo).

R www.pensaoflor.pt

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noiServA.v.o. IMPRovávEL...teXto Sara quareSma capitão FotogrAFiA vera marmelo

novo álbum. novas melodias. São os sons que nos levam para um universo de equilíbrio sensível entre o sonho e a realidade de noiserv com novas sur-presas no meio de músicas – “i’m not afraid of what i can do” a voz digital que nos desperta curiosidade ao lado da despida de noiserv; ritmos de embalar – sons simples do berço e não só; músicas tão curtas e tão cheias – “47 seconds are enough if you have one thing to do”. 47 e nem mais meio segundo; letras que são histórias contadas de factos – “it’s easy to be a marathoner even if you are a carpenter”, onde o desistir não cabe, nem nas palavras nem na melodia; no-vas interpretações e arranjos a serem ouvidos da primeira à última música, sem tropeços. Já vão mais de dez anos nas lides musicais e noiserv, a.k.a. Da-vid Santos, continua a criar um mundo de sonoridades com um estilo e timbre tão seus, no ponto exato para o mundo que constrói com as suas melodias e le-tras singulares. Sob o improvável título de A.v.o. / Almost visible orchestra, fi-gurando dez canções e com os precisos

30 minutos de duração, este segundo trabalho de originais reserva-nos, ain-da, uma agradável e inesperada surpre-sa. Pela primeira vez, noiserv deixa a solidão para chamar rita redShoes, Lu-ísa Sobral, Francisca Cortesão (minta), Luís nunes (Walter benjamim), Afonso Cabral e Salvador menezes (You can’t win, Charlie brown) e esperi, todos, ao mesmo tempo, numa música – “i was trying to sleep when everyone woke up”, vozes que dão embalo especial a esta música, já quase no fim do álbum. Será que estes convidados acordaram, num dia destes, o David? É um bom (re)acordar, garantidamente. A ser edi-tado dia 7 de outubro, A.v.o. junta, na edição física, ao trabalho musical seguro uma ilustração (de Diana mascarenhas) num puzzle de dois lados, impossível de não desmontar e montar. Sons a des-cobrir e a ouvir porque o lema deve ser “Don’t say hi if you don’t have time for a nice goodbye”. (e nestes 30 minutos há tempo, do bom!) d

R www.noiserv.net

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rodrigo coSta FÉlixmarta pereira da coStaDuEto IMPRovávELteXto helena aleS pereira FotogrAFiA ricardo junqueira

Imagine o cenário do fado: uma mulher que cantacom um xaile aos ombros, um homem que dedilhaa guitarra portuguesa. Agora, ouse pensar ao contrário: uma voz masculina que canta o fadoe umas mãos femininas que percorrem a durezadas cordas daquele instrumento. O fadista Rodrigo Costa Félix e a guitarrista Marta Pereira da Costa são o retrato desta improbabilidade. Senhorese senhoras, silêncio, que vamos falar sobre fado.

“Fados de Amor”, o mais recente tra-balho de rodrigo Costa Félix, com marta Pereira da Costa na guitarra portuguesa, é um disco de histórias quase autobio-gráficas, porque só assim fazia sentido para o fadista. “Na sua génese, eu queria um trabalho dedicado às mulheres e que todos os temas falassem da minha rela-ção e das minhas experiências com elas:

a mãe, a mulher, a irmã... Porque sempre cresci rodeado de mulheres e não paro de lhes reconhecer o valor”, conta ro-drigo. Destas histórias surgiu um projeto que mais do que uma mistura de diferen-tes histórias, oferece canções de amor. “Quando ouvimos os temas, todos eles falavam de uma coisa só: o amor. Daí até ao título foi muito simples”, explica.

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o prémio de melhor álbum atribuído pela Fundação Amália rodrigues, este ano, trouxe-lhe mais força, que já vinha do facto de ser o primeiro disco de fado inteiramente gravado com uma mulher a tocar guitarra portuguesa. Se para rodrigo não é um estímulo de início de carreira, para marta pode ser uma es-pécie de empurrão para descobrir que este é seu novo mundo. “O momento de viragem foi a grava-ção do disco porque, até aí, encarava a guitarra como um hobbie”, conta marta que, entretanto, largou o seu emprego na área da engenharia civil. Quando ro-drigo a desafiou para gravar este disco, marta, confessa, entrou em pânico. mas aos poucos deixou-se levar por esta nova aventura: a de poder dedicar-se em exclusivo à guitarra. ouviu outros guitarristas, seguiu os conselhos do produtor rodrigo Serrão, que lhe expli-cou como deveria reagir à voz e, assim,

nasceu uma guitarrista a tempo inteiro. Durante este processo, marta cresceu e percebeu que era por aqui que queria continuar a viajar. A música já era par-ceira de vida desde muito cedo - tocava piano e guitarra clássica desde os 4 anos -, mas agora a guitarrista via na música um dos seus principais propósitos.

A cantar vamo-nos entendendo.tinha 18 anos quando o pai, amante do fado, a incitou a estudar este instru-mento. “O pai via ali uma oportunida-de de a Marta fazer algo diferente: ser a única mulher a tocar guitarra portu-guesa”, conta rodrigo. Começou a estu-dar com Carlos gonçalves, guitarrista de Amália rodrigues, o que se viria a tornar fulcral nesta nova caminhada, porque “ele foi ótimo nas primeiras aulas a mo-tivar-me”, recorda marta. Pouco tempo depois, vieram as casas de fado, onde o

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professor a levou a conhecer os músicos e o ambiente. “Era tudo uma descoberta, uma novidade...”, conta marta. “A co-meçar por ti, que eras a maior novidade de todas”, interrompe rodrigo, com um sorriso. Foi nessa altura que os caminhos de rodrigo e marta se cruzaram. ela com 19 anos, ele, mais velho, com 30. entre-tanto, passaram 10 anos e nasceram os gémeos Constança e vicente, de 4 anos.hoje, marta dedica 6 a 8 horas por dia à guitarra e a ponta dos dedos calejados são a prova desta entrega a uma gui-

tarra de seis cordas duplas. “Se for uma semana à praia, os calos desaparecem e custa muito voltar a adaptar-me às cordas, porque são muito finas e estão sob uma tensão muito grande. Parecem agulhas a espetarem-se nos dedos, mas vale a pena”, ri-se marta. A composição é a nota que se segue e marta já tem três temas preparados, que incluem referências aos estilos mu-sicais de Coimbra e de Lisboa, a músicos como Armandinho, José nunes, Fontes rocha e mário Pacheco; e outros qua-

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tro temas em preparação. A gravação de um disco em nome próprio, onde a guitarra pode brilhar sozinha, é um dos próximos objetivos. “Quando a guitarra acompanha o fadista está sempre em segundo plano, mesmo quando se fala de guitarristas como Mário Pacheco ou José Manuel Neto. Eu gostava de ter um trabalho que lhe permitisse dar mais destaque”, conta marta. “Carlos Paredes foi o único guitarrista que lhe conseguiu dar outra projeção”, continua rodrigo. “Houve outros guitar-

ristas que conseguiram libertar a guitarra portuguesa do fado, como Pedro Caldeira Cabral, Ricardo Rocha, Mário Pacheco ou António Chaínho... Mas não conseguiram, à dimensão do Carlos Paredes, que a gui-tarra-solista ganhasse uma popularida-de que lhe permitisse ser a protagonista de um espetáculo”, refere rodrigo. mas o fado é mais do que a voz, mais do que a guitarra, e prova disso foi a refe-rência ao tema “Amigo Aprendiz”, pela revista norte-americana The Atlantic, como uma das baladas a ouvir em 2012.

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o poema, originalmente atribuído a Fernando Pessoa, veio a revelar-se ser da autoria de padre Zezinho, um poeta e músico cristão brasileiro. A canção foi gravada e apresentada como single de “Fados de Amor”, mas só quando sur-giu a referência à canção na revista The Atlantic se percebeu o equívoco. “Co-meçámos a receber mensagens a dizer que o poema não era de Fernando Pes-soa. Movido pela curiosidade, fui à pro-cura e descobri que esse texto era uma adaptação livre de um poema da au-toria do padre Zezinho”, conta rodrigo. A canção, musicada ao piano por tiago bettencourt foi, mais tarde, adaptada para guitarra portuguesa por marta.Quando começou a cantar, rodrigo Cos-ta Félix lembra-se das salas frequentadas apenas por pessoas mais velhas. As mais novas viam no fado ou uma coisa de ou-tros tempos, marcada ainda pelo peso do antigo regime, ou para outras idades. mas graças a vozes como Camané, rodrigo Costa Félix ou maria Ana bobone o mer-

cado abriu-se para revelar nomes como kátia guerreiro, mafalda Arnauth, Ana moura, mariza, marco rodrigues, ricardo ribeiro e gisela João, entre muitos outros. “Acho que o fado nunca esteve em risco de desaparecer, mas a distinção como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO fez com que os portugue-ses olhassem para ele de outra forma. Agora, já não é vergonha para nin-guém, como era quando comecei, dizer que se é fadista ou se gosta de fado. O próprio Camané referiu numa entrevis-ta que, quando era mais novo, escondia que cantava fado”, explica rodrigo.mas os músicos vivem ainda na som-bra do fundo do palco, vestidos de pre-to, talvez numa referência à tristeza, à fatalidade do fado. “Se o fado ganhou muito nos últimos anos, foi também devido à evolução dos instrumentistas. Fala-se muito de novos fadistas. En-tão e a nova geração de músicos que é brilhante e reconhecida internacional-mente como tal?”, pergunta o fadista.

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Ângelo Freiro, Diogo Clemente, José manuel neto e Luís guerreiro são alguns dos músicos que marta Pereira da Costa e rodrigo Costa Félix destacam entre a nova geração de guitarristas e violistas e devem, na perspetiva de ambos, estar lado a lado com o fadista, porque o fado só acontece quando existe uma ligação

plena entre quem canta e quem toca, conforme explica rodrigo.essa mesma ligação é uma das maio-res vantagens que rodrigo e marta apontam enquanto casal, no palco e fora dele. os dois são o oposto de ca-sais, como Carminho e Diogo Clemen-te, Luísa rocha e guilherme banza ou

“Um músico é tanto uma viola ou uma guitarracomo um fadista é um fado.” Rodrigo Costa Félix

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Célia Leiria e Pedro Amendoeira, uma vez que, aqui, é rodrigo quem canta e marta quem toca e assim, nos seus concertos, há sempre dois protagonis-tas, conforme realça rodrigo.marta Pereira da Costa, ao contrário dos outros músicos, não se veste de preto. e nessa exuberância de cor e de origina-

lidade que as mãos femininas trazem à guitarra portuguesa há uma marca di-fícil de ignorar à qual a voz de rodrigo Costa Félix traz uma ligação e encanta-mentos únicos. d

R www.rodrigocostafelix.com

A mutante agradece ao Chef vitor Claro a genti-leza com que nos recebeu no restaurante Claro!

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teXto patrícia Serrado FotogrAFiA joão pedro rato

joSÉ miguel júdice“o FEStIvAL DAS ARtES

é uMA AtMoSFERADE EMoçõES”

O compêndio das artes brota da partilha do sonho entre José Miguel Júdice, membro do Concelho Executivo da Fundação Inês de Castro, e a mulher, a arquiteta pai-sagista Cristina Castel-Branco, presidente da Fundação Inês de Castro, de conceber um evento cultural num es-paço ao ar livre, o Anfiteatro Colina de Camões, outrora palco de paixões avassaladoras retratadas na história de uma cidade erudita, centro do amor à arte. Com uma envolvente paisagista que, este ano converteu-se num constante diálogo com a natureza. Eis o tema da 5.ª edi-ção do Festival das Artes, que desponta a plasticidade dos ofícios supremos, desde o clássico ao moderno, com a música, a dança, o teatro, o cinema, a escrita, a gas-tronomia, a ciência e as conferências, na poética Quinta das Lágrimas, em Coimbra, numa incansável exaltação da arte no seu todo. Ou na essência dos ofícios…

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Porquê um evento associado às artes em Coimbra? Primeiro porque Coimbra é uma cidade – e a sua região – com um grande grau de exigência cultural – as pessoas detêm uma formação intelec-tual, comparada com outras zonas do país, acima da média. e porque é uma opção da Fundação inês de Castro, que tem como objetivo renovar o tema, re-novar o mito, renovar a história de inês de Castro – ainda agora foram publi-cadas as atas de um congresso sobre “inês de Castro: o passado do futuro” três volumes de trabalhos de cientistas, historiadores, arqueólogos, arquitetos, botânicos, enfim, especialistas das mais variadas ciências que falaram sobre inês de Castro. É uma fundação de caráter cultural sediada em Coimbra, portanto, era natural que o festival decorresse em Coimbra.em segundo lugar, porque não é uma grande metrópole como Lisboa ou o Porto. Portanto, há público para to-das as artes. mas achávamos nós que não havia público para um ciclo de ar-tes, pelo que se justificava um festival da música apenas. Porém, a lógica das artes, na sua globalidade, é uma lógi-ca muito renascentista, muito clássica, isto é, as artes têm todas a ver umas com as outras e, portanto, a aposta foi diferenciar esse festival, fazer uma coi-sa que, creio, ninguém faz em Portugal

e poucos festivais destes há no mundo. o diretor da gulbenkian para a música disse-nos que na Finlândia há um deste género. reunir as sete artes clássicas e as artes modernas.

A eleição dos temas e a composição de cada ciclo do Festival das Artes têm de superar as expetativas do público. Co-mo é e por quem é feito este processo?este festival tem várias características. uma é ser multiartes; outro é ter sem-pre um tema. A terceira grande carac-terística é não ter um diretor artístico. Foi uma opção. nós temos uma direção com pessoas com formações variadas que, em conjunto têm decidido tudo. isso tem sido o segredo do sucesso, porque há os grandes especialistas em música, mas que podem tender para um festival demasiado elitista; outros percebem muito de fotografia, mas são partidários de um certo tipo de foto-grafia. há, digamos, um caldear de uma equipa a trabalhar em conjunto. Além disso, todos os anos, em regra, con-sultamos um conjunto de pessoas es-pecialistas em várias artes para, sobre o tema que escolhemos, nos darem sugestões. e nos ajudarem. Portan-to, temos podido mobilizar gente com muita qualidade, que não faz parte da direção, mas que, graciosamente, por entusiasmo, também, nos ajuda a es-

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colher o programa. A escolha do tema é uma decisão colegial. o primeiro foi a noite, e não podia ser outro, porque é um festival noturno; sendo a Quinta das Lágrimas um sítio com água, fazia todo o sentido que o segundo tema fosse a Água; depois, era o aniversário dos 650 anos da transladação dos restos mor-tais de inês de Castro para o mosteiro de Alcobaça, o que deu o mote para as Pai-xões; como é um sítio com pessoas que vêm de todo o mundo e, no ano passa-do, comemoraram-se os 440 anos dos Lusíadas – a epopeia da viagem do povo português na histó-ria e da viagem para a Índia –, o tema foi viagens; é um espa-ço deslumbrante nos termos da natureza, ecológico, pelo que o tema escolhido foi a natureza; e, como uma semana antes do festival deste ano a universidade de Coimbra foi classifi-cada de Património mundial da huma-nidade pela uneSCo, para o ano o tema terá a ver com essa distinção atribuída a Coimbra.

A edição de 2013 do Festival das Artes saúda a natureza. Poder-se-á dizer que estivemos perante o regresso à essên-cia dos ofícios ou apenas à natureza no seu todo? Se me perguntar se há uma

visão panteísta por detrás do festival… o Professor gomes Canotilho, Professor da Faculdade de Direito da universidade de Coimbra, dizia que aquele anfiteatro é uma expressão de panteísmo, uma expressão muito curiosa, porque há al-go de xintoísmo nas Lágrimas – eu sou muito xintoísta. os ecologistas acabam por o ser sem saber. De facto, o cuidado que temos com aquele espaço, aquele microcosmos ecológico exprime es-se gosto pela natureza. e o xintoísmo é, como sabe, a sacralização da natu-reza, os deuses são a natureza. Por-

tanto, há qualquer coisa de essencial inconscientemente na ideia mas, evi-dentemente, não lhe posso dizer que havia um progra-

ma estratégico à procura da essência das coisas, embora vendo agora, e a sua pergunta fez-me pensar… Quan-do temos a exposição, patrocinada pela eDP, das fotografias sobre a arquite-tura tradicional portuguesa – era uma arquitetura embuida na natureza, uma arquitetura essencial. hoje em dia, a ar-quitetura é demiúrgica, é feita por pes-soas que querem desafiar os deuses, querem demonstrar, muitos deles, que o impossível é possível; conseguem fa-zer o impossível, o que tem dado obras

“O cuidado que temos com aquele espaço, aquele microcosmos ecológico exprime esse gosto pela natureza.”

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de arte geniais, mas também tem des-truído muito a natureza, porque não é adequada ao ecossistema. A exposição sobre a arquitetura tradicional portu-guesa traduz o contrário – é uma expo-sição com fotografias que foram tiradas quando estava a ser feito esse levanta-mento… A ideia de que as construções humanas devem interagir bem com a natureza é uma busca do essencial. Ai está o exemplo de que encontrámos o essencial sem termos consciência disso.

o constante diálogo com o exterior deu vida à música clássica, no Anfiteatro Colina de Camões, onde a envolvente paisagísta confere momentos memorá-veis. Assim como os bons sons do jazz a ouvir no mondego. São estes os eternos lugares das sonoridades do Festival das Artes? É um festival ao ar livre, que tira partido do enquadramento paisagístico. São momentos de alegria, de convívio, de partilha, são momentos menos formais. Aquele espaço é mágico, todos o dizem. É o ex-libris do festival. É evidente que poderíamos fazer, e já fizemos – para o ano é provável que façamos –, uma pe-ça de música medieval relacionada com

Coimbra, provavelmente na Sé velha ou numa igreja… o festival nasce à volta daquele espaço e da Fundação inês de Castro, que detém o território histórico da Quinta das Lágrimas; é, portanto, um festival da cidade e não apenas da Fun-dação inês de Castro.

Desde “os sinos da macieira” e um “So-nho de uma noite de verão” a “os pás-saros” e “As flores”, os sons em palco fizeram-se ouvir por um público muito diversificado. É fácil fazer esta seleção?não, não é. uma das coisas mais diver-tidas é ter seis ou sete pessoas – alguns que sabem tudo sobre música e outros, como eu, que sabem muito pouco – à procura da que melhor se adequa ao te-ma, porque há muita excelente músi-ca que não tem um tema. Por exemplo, “A galinha”, passou a chamar-se assim porque o som, para algum crítico, fez lembrar o de uma galinha. no caso de “As flores” é uma peça magnífica, mas que raríssimas vezes é tocada. Para quem sabe muito de música, às vezes, estes festivais, onde aparecem coisas pouco vulgares, tornam-se mais estimulan-tes. Porém, temos de fazer um equilí-brio, arranjar peças cimeiras da cultura mundial, que todos conhecem, e outras

“Para quem sabe muito de música, às vezes, estes festivais, onde aparecem coisas pouco vulgares, tornam-se mais estimulantes.”

“sermão de santo antónio aos peixes” por joão reisfotografia: daniel palos

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menos conhecidas, mais ocultas e que interessam aos melómanos. o sucesso do festival tem a ver com as centenas de pessoas que vêm do resto do país e as centenas de pessoas que simplesmente gostam de música. A noite sobre o mon-te sagrado da universidade [de Coimbra], envolto naquelas árvores centenárias, fica muito bonita. É um bocadinho disto tudo que faz a força do festival.

Da música passamos para as Artes do Palco, ciclo que integrou “A sagração da primavera”, pela Companhia nacional de bailado. o casamento perfeito entre o es-paço e a obra. Alguém nos disse que iam comemorar-se os 100 anos de “A sa-gração da primavera”. não há tema mais próximo da natureza que este. e quando falámos com a Companhia nacional de bailado sobre esse assunto, propuseram o programa que estavam a preparar. nós achámos muito bem, porque se enquadra perfeitamente numa atmosfera de emo-ções. o festival das artes é uma atmosfera de emoções, porque o espaço é emocio-nante, porque é feito por amadores, no bom sentido da palavra, porque mobiliza-mos as pessoas, as boas vontades, porque conseguimos que os patrocinadores não se limitem a dar dinheiro, estão connosco, dão ideias, vivem intensamente o festi-val e a cidade de Coimbra. Coimbra aderiu emocionalmente ao festival.

A natureza foi também aclamada na es-colha de dois clássicos do cinema – “A águia das estepes”, de Akira kurosava, e “o urso”, de Jean Jacques Annaud –, de um ciclo de cinema comissariado por António mega Ferreira. É fácil conseguir bons filmes? tiveram poucas pesso-as, porque são filmes pouco conheci-dos, mas é uma ajuda de António mega Ferreira. mais um exemplo de apoio, de emoções, de amizade. no ano passado, o António, que é um bom amigo nos-so, quando soube que estávamos com algumas dificuldades, telefonou-nos a oferecer ajuda. Fez um pequeno ciclo de cinema, o que voltou a repetir-se este ano, desta vez com dois filmes, que fa-zem parte da história da humanidade e que têm a ver com a natureza.

“A arte não é mais do que a transformação em sublime daquilo que faz parte da essência do ser humano.”

Porque a essência de cada um de nós depende sempre de um bom repasto, o Festival das Artes juntou três chefs: Al-bano Jerónimo, Joachim koerper e José Cordeiro. A gastronomia é, portanto, ou-tra forma de arte. outra forma de arte. A arte, em geral é, digamos, a hipostasia-ção, a criação de uma dimensão metafí-sica da nossa existência diária. todos nós

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gostamos de tirar fotografias, de sermos fotografados… as fotografias não são ne-cessariamente uma arte, mas há uma arte que é a fotografia. muitos gostam de pin-tar; desde os tempos da pré-história que

se pinta – a arte nasce ai. Comer, todos comemos – a arte nasce ai. A arte não é mais do que a transformação em sublime daquilo que faz parte da essência do ser humano. Portanto, a gastronomia é uma

“sonho de uma noite de verão” pela orquestra gulbenkian

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com ela. e, na realidade, há sítios lindís-simos. Coimbra é um paraíso ecológico, à volta… Pense na Serra da Lousã, na zo-na de Penacova, no buçaco, no Choupal, no Jardim botânico, nas margens do rio mondego. o que não faltam são espaços com uma forte carga ecológica e a Quinta das Lágrimas é um deles.

o desafio à imaginação foi lançado num workshop dirigido por mário Cláudio. Foi um sucesso. esgotou num dia ou dois. ele adorou! É membro do concelho ge-ral da Fundação inês de Castro. o mário Cláudio é um homem deslumbrante, co-mo pessoa, fascinante, encantador, de uma simplicidade muito grande, ape-sar da sua enorme qualidade; é um dos grandes escritores portugueses dos sé-culos XX e Xi. Quanto ao workshop, este foi o que teve, até hoje, mais sucesso e maior gratificação por parte das pesso-as. vai ser, em colaboração com a Casa da escrita [em Coimbra], um dos pratos fortes do festival, com um workshop de escrita sobre património cultural ou so-bre Coimbra. temos de pensar… d

R www.festivaldasartes.com

das artes com cada vez mais importância na humanidade. uma das coisas que mais distingue a gastronomia de alta qualida-de é a tentativa de trabalhar com produ-tos naturais, produtos frescos, biológicos. temos um jardim medieval na Quinta das Lágrimas que é, no fundo, uma recons-tituição de um jardim medieval, com plantas medicinais, plantas ornamentais e plantas comestíveis. As refeições no restaurante gastronómico das Lágrimas utilizam imenso esses produtos.

Além da música de um ciclo destinado a todas as idades, o alinhamento do pro-grama contou com a peça de teatro ao ar livre “o jardineiro do sol” destinado aos mais novos. mal anunciámos a venda dos bilhetes na internet, os bilhetes esgota-ram nesse mesmo dia! mas havia pes-soas a quererem mais, então optou-se por fazer mais um, mais dois… mais cin-co sessões. na última tivemos cerca de 80 crianças, mais do que deveria ter. Por isso, em princípio, vamos repetir a peça ao longo do ano ou num sábado de ca-da mês – vamos ver se mais –, para que as crianças de Coimbra possam usufruir da natureza da Quinta da Lágrimas. A natureza acalma, aprende-se, não ape-nas na escola, mas estando em contacto

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coimbra da uneScoPAtRIMónIoDE CAPA tRAçADAteXto Sara quareSma capitão FotogrAFiA bruno pireS

É universidade, saber que quase se fun-de, confunde, com a Fundação de Por-tugal. São as pancadas de um molière, em 1290, pela pena d’ el rei D. Dinis. É o documento “Scientiae thesaurus mi-rabilis” assinado pelo autor de Cantigas d’Amor. É o século Xiii com as Faculda-des de Artes, Leis, Cânones e medicina. É a universidade mais antiga da nação e das mais antigas a mover-se além fronteiras. É um complexo vário, denso, cheio do material e imaterial. É a língua

Folha branca, séculos de história, estórias e vidas para contar.Síntese, suma, resumo, contenção é tudo negação. Método. Discurso. Começar. Acabar. E não ousar tentar.E o que é afinal Património na minha matriz?

portuguesa, pátria de Pessoa e nossa. É cultura e saber. É a arquitetura que tudo alberga, guarda e separa. São as escadas monumentais que nos tiram o fôlego; é el rei D. Dinis que nos recebe; é um conjunto arquitetónico moderno retilíneo, racional, de eixos definidos, de uma arquitetura de estado (novo). É, à direita, mirar o Colégio de São Jeróni-mo e o das Artes, seguir e ver o Chimi-co. É no meio de tanta razão e exatidão tentar acreditar no etéreo, diluindo-nos

panteão nacional - igreja de santa cruz

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na Sé, que é nova. É o desejo travado de encontrar o Cardus e o Decumanus que se cruzam no machado de Castro, de sua loggia amante. É recuar sem andar para trás e retomar o eixo moderno, e seguir. É de frente ver a Férrea que é a Porta de encantos, arrepios e saudades... É passar e método, contenção, suma. É inspirar e sentir o Pátio das escolas, é na via Latina subir as escadas que quando em miúdos são monumentais na escala, é descer as escadas que quando em graúdos são monumentais no saber. É desejar ou-vir a Cabra tocar na sua altaneira torre.

É ir aos Capelos e pensar nas borlas. É a síntese que quer fugir ao ver D. João iii e à porta da Capela fica porque a síntese, fiquem a saber, não é crente nem des-crente, mas na Capela diz que não en-tra. É, para quem os livros são alma, vida e desejo, entrar na biblioteca Joaninha e ficar em suspenso e recordar Almada a falar “Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida... Não chegam! Não duro nem para metade da livraria! Deve haver certamente outra maneira de se salvar uma pessoa, senão estarei perdido”.

alta de coimbra

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pátio das escolas - universidade de coimbra

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É acenar à trindade. É deixar a univer-sidade na toada e é sentir a Alta. É des-cer sinuosas vielas, é querer ouvir um tunante e desejar sentir uma guitarra. É o nosso Fado... É chegar à Sé. Senho-ra velha de nome, velha de idade e es-peciosa de Porta. São mais de mil anos, cem serenatas, dez histórias. É descer pelo Largo da Sé e olhar alto a torre que não nos abandona. É descer sem quebrar, é descer pelo Quebra Costas. É olhar a tricana com o Fado de Coim-bra traçado na capa. É passar o Arco d’Almedina e a barbacã. É descer a Alta que é trama entramada de cantos, re-cantos e encantos. É, na saudade, sentir Aeminium de outrora, Lusa Atenas de sempre, Coimbra de hoje.

É deixar a encosta íngreme e seguir pe-lo eixo que é Luz e passar Santa Cruz. É parar na cruz. É saber quem ali dorme sono eterno, quem nos fez portugueses e é continuar o caminho. É entrar, de-vagar, na Sofia dos Colégios: boaventu-ra e São Domingos, São Pedro ao lado do da graça seguido do Carmo e do espírito Santo... e o das Artes, de outrora, que a inquisição arrecadou; e um Pombal que todos esvaziou. É a cada passo dado um Colégio acabado, uma lição aprendida de saber e ensino. É, numa contenção dissimulada, a universidade de Coim-bra, a Alta e rua da Sofia da uneSCo, na cidade de Coimbra. A (re)visitar para (re)descobrir... d

rua da sofia e a alta

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teXto patrícia Serrado FotogrAFiA joão pedro rato

cheF vítor matoS“oS MEuS PRAtoS São

oS MEuS QuADRoS”

A cozinha é uma arte intrínseca das tendênciasda gastronomia. O culto de uma criação nobre, ávida de experiências sensoriais à mesa, de partilha entre familiares, amigos e colegas de trabalho,e desconhecidos. Uma paixão despertada nos primeiros anos de vida, concretizada com realismo fora de portas. Na Suíça. O país de uma Europa determinante, exigente, com bases de um ofício em permanente ebulição numa mutação constante de saberes enraizados em tradições, costumes, sabores, cores… memórias indissociáveis à origem do ser humano. Às origens de um Portugal intemporal, tão ligado à terra e ao mar, reinventado pelas mãos de Vítor Matos, o chef executivo do Largo do Paço, o restaurante da Casa da Calçada Relais & Chateaux, em Amarante, que fomos encontrar no Cais da Villa, em Vila Real, onde tivemos o prazer de degustar um harmonioso repasto desenhado com mestria.

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o gosto pela arte de cozinhar está asso-ciado à família. À avó. À mãe. A vila real, a terra que o viu nascer e crescer ao lon-go da primeira década, até ao momen-to em que os pais decidiram calcurrear novos caminhos, juntos, longe do país que levavam na alma e no coração. o meu pai teve de emigrar para a Suíça. Foi o primeiro. Depois fomos nós. A fal-ta que senti do meu país… Para nós, o regressar a Portugal era muito impor-tante. Frequentei a escola, tive boas notas para seguir outro percurso pro-fissional que não este, mas não quis; preferi experimentar a cozinha, uma escolha que fiz com apoio do meu pai e da minha mãe. Chegava da escola e ex-perimentava fazer tudo na cozinha. ex-perimentei esta “carreira” com o apoio do meu pai e da minha mãe. hoje pos-so, portanto, dizer que gosto do que fa-ço. vivo e respiro cozinha. não consigo desligar! É tema de conversa em casa, com os amigos… mas esta cozinha não é de sobrevivência. É uma cozinha com terroir, com uma história por trás.

inicia o curso de cozinha com apenas 16 anos, num país muito diferente do nosso, onde o grau de dificuldade é su-perado com a vontade superlativa de melhorar o seu desempenho e de ser o melhor. A Suíça é muito exigente, mui-to contida. não é fácil para um portu-

guês, com sangue quente, estar num país que não é o nosso. Além de que o meu chef não gostava de portugueses. independentemente disso, quis sempre ser o melhor e fazer o melhor possível, porque se não fizermos mais e cada vez melhor, não vale a pena termos objeti-vos de vida. Com isto ganhei mais es-tímulo, mais gosto pela cozinha, mais determinação. o mal que me aconteceu foi o melhor que me aconteceu. A mi-nha forma de estar na cozinha é muito diferente da dos miúdos de hoje em dia, que não estão habituados nem prepa-rados para novos desafios. no entanto, veem a cozinha como uma arte, está na moda. não é bem assim, pois têm de aguentar a exigência do serviço, o que nem sempre acontece. há pessoas que, ao fim de dois dias, se vão embora, por-que não aguentam tanta pressão. não são apenas as horas, tem de sair tudo perfeito. Se há falhas, não entra.

o percurso pela cozinha valeu-lhe a participação em concursos, a fórmula aplicada para se obrigar a aprimorar a arte de bem cozinhar, sendo distingui-do com a medalha de ouro no concurso Chefe Cozinheiro do Ano de 2003. há um momento da vida em que acontece uma viragem. Porque, ou fazemos sempre a mesma coisa até morrer – o que acon-tece com a maioria – ou fazemos como

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eu que, a partir de um momento da mi-nha vida disse “Alto! Quero fazer mais”. Por isso, participei em muito concursos, que trazem mais valia, trazem know--how. É uma oportunidade de ver o que os outros fazem, de aprender com eles. Ao vê-los só pensava que não valia na-da ao lado deles. mas eu quero ser me-lhor do que eles. no bom sentido, que fique bem claro. Queria sempre mais e

melhor. É um investimento para o fu-turo, uma forma de abrir a nossa men-talidade perante a cozinha. Agora estou numa fase diferente. o meu concurso é o meu dia a dia.

os sabores numa cozinha são o prefácio de uma viagem ao passado. um misto de experiências vividas em momentos tão díspares, como uma conversa com

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um amigo ou a contemplação de uma paisagem. Quem fala de sabores fala de experiências, de partilhas, dos momen-tos em que estou com os meus amigos, com os meu colegas, de uma paisa-gem… os Alpes, os pastos… tudo isto serve de inspiração para os pratos da minha cozinha. Só para dar um exem-plo, na minha carta há os caramelos moles, a sobremesa inspirada nos ca-ramelos que comia quando estava mais nervoso. gostava tanto! Depois das au-las na escola ainda tinha as aulas do curso de cozinha [em neuchâtel] e, nos momentos em que estava mais stres-sado comia caramelos moles. A cavala marinada com granizado de gaspacho [dada a provar num jantar especial, no Cais da villa], por exemplo, tem muito o sabor de terra e de mar. É um prato de verão. o salmonete com molho de ou-riço do mar, canelonne de carabineiro e percebes sabe muito a mar. na cozinha há que reiventar sabores, não podemos ficarmos presos ao que já sabemos; te-nho de vender sabor, produto, vender alma. Portanto, tudo tem de ser bom, tudo tem de estar bem feito, tem de ter muita cor, ser fresco… é uma cozinha de autor, servida ao momento.

A liberdade de criar é a interpretação concreta do ofício do chef vítor matos, sendo aquela um dos principais ingre-

dientes da sua cozinha, assim como a experiência sensorial provocada pelos sabores, pelas texturas, pelas cores, pe-los aromas… isso é cozinha! e está tam-bém muito ligada às novas tecnologias, que permitem que a cozinha seja mais aromática e tenha mais sabor e mais cor. o ponto de cozedura de um legume ou o ponto de textura de uma carne ou de um peixe é que permite conhecer os verdadeiros sabores. tudo tem de estar no ponto, tudo tem de estar perfeito. A cozinha é uma experiência e as pessoas estão sempre à espera do melhor.

A sua cozinha é um autêntico laborató-rio de experiências cujas cobaias são os comensais do Largo do Paço. As cobaias são os clientes que vão com frequên-cia à Casa Calçada. ou seja, lançamos os pratos todos muito antes de elabo-rarmos a nova carta [são duas por ano: primavera/verão e outono/inverno], em relação aos quais recebemos o fee-dback. neste momento já sei o que vou ter na minha carta de outono/inverno. Parece simples, mas não é. ideias temos nós todos os dias. Anoto-as num blo-co de notas no momento em que estou a idealizar um prato – tenho um bloco de apontamentos à cabeceira da cama –, as quais passo para o computador. Quando tiver de elaborar a carta nova, risco as que não interessam, as que são

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melhores confeciono-as na cozinha, depois faço nova seleção em função dos produtos da época, se contém ou não flores… uma carta provém de vá-rias ideias, de momentos, de experiên-cias. tudo isso faz um prato.

e um repasto incita cada um a viver uma experiência multisensorial, até porque, para o chef, comer é uma religião. o po-

vo português tem um culto à mesa muito curioso. gosta de comer. É como ir à igre-ja. Quando vai à igreja o que acontece? tentamos esquecer os maus momentos. Portanto, comer é uma experiência, que suprime os maus momentos.

Considera a cozinha uma das mais belas artes do mundo. A cozinha é uma ar-te. Quando alguém faz um prato, isso

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R www.vitormatos.com

é arte. os meus quadros são os meus pratos. Quando um pintor pinta um quadro é para as pessoas verem. A gas-tronomia, por sua vez, tem uma van-tagem: Primeiro estranha-se, depois entranha-se, como diz Fernando Pes-soa. Por exemplo, o pudim de Abade de Priscos da carta da Casa da Calçada é descrito como “era uma vez o Abade de Priscos”, uma hostia com a história do

senhor Abade de Priscos, impregnada numa calda de açúcar, canela e limão, a qual é comida. Quem a come, come a história, come a sobremesa. Come o pudim de Abade de Priscos do futuro – mais leve, mais moderno, mais arroja-do. É uma arte assinada. d

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quinta do valladouM REFúgIo CoM HIStóRIAteXto patrícia Serrado FotogrAFiA joão pedro rato

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A paisagem ornamentada por socalcos traçados pelos saberes ancestrais da mão humana emerge do vale profun-do rasgado por um rio que, segundo as estórias da história contada nas minhas primeiras instruções letivas, atravessou o país, desnorteado e feio, alheio às suas origens, até desaguar na foz de encon-tro com o grande Atlântico. em sinal de protesto, refuto com adjetivos sinóni-mos de beleza, esta sim, imensa, graças à grandiosidade de um Douro dono de um quadro encantador, cujo leito banha

o terroir de centenários vinhedos ver-des entrecortado pelos tons terra, que presenteiam os deuses, e os homens, com um vinho a preceito, feito a partir de castas portuguesas, colhidas à moda antiga. na encosta do vale tomado, lá no fundo, pelo Corgo, e enaltecido pe-la fusão do xisto com o amarelo torrado do casario, cenário que compõe a quin-ta datada de 1716, pertencente a Dona Antónia Adelaide Ferreira, e cujo nome preserva até à data, com a excelência dos tempos: a Quinta do vallado.

A experiência é vivida com intensidade numa quinta. Onde o Douro é sinónimo de tradição, de pessoas,de genuinidade, de gastronomia, de vinho… de tempos idos e da contemporaneidade dos tempos. A norte.

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A manhã vai a meio quando chegamos ao destino assinalado no mapa da era digital num dia em que o calor não dá tréguas. num lugar onde o passado e o presente se conjugam com sabedoria e uma elegância irrepreensíveis de um legado com uma história contada há seis gerações. e de onde a vista embala a alma com uma paisagem protagoni-zada pelo vinhedo, que se estende até ao infinito, envolto num silêncio que me

apraz enaltecer, no coração do Douro. A região vinícola demarcada mais antiga do mundo, título decretado pelo mar-quês de Pombal, em 1756.

De linhas direitas, depuradas, o novo wine hotel Quinta do vallado remete e excelência do produto português para o exterior, revestido a xisto, a matéria nobre da região, assim como o pinho e o carvalho portugueses, que compõem o

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ofício do carpinteiro no edifício assinado pelo arquiteto Francisco vieira de Cam-pos. o interior da casa está decorado a preceito, com distintas peças de mobi-liário vintage nórdico, escolha criteriosa dos proprietários – João Álvares ribeiro e Francisco Ferreira, descendentes de Do-na Antónia Adelaide Ferreira – em con-sonância com o conceito do arquiteto e coordenadas com as fotografias a preto e branco das paisagens marcantes do

Douro e do Douro Superior, da autoria de guilherme Álvares ribeiro, pai de João Álvares ribeiro. Detalhes que rimam com a arquitetura ímpar e funcional, sem es-quecer a lareira da acolhedora sala de es-tar ou a estante da biblioteca com livros de várias décadas. um convite irrecusá-vel para pôr a leitura em dia, sobretudo quando o sol insiste em não dar tréguas…

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no quarto, a presença de produtos na-cionais é marcante. A começar pelo Quinta do vallado tinto, à nossa espera, e uma mão cheia de ameixas, colhidas no pomar, junto à piscina, a fruta da época com que mimam os hóspedes da Quin-ta do vallado; acabando nos candeeiros

desenhados pelo arquiteto e concebidos por osvaldo matos. Da varanda, o qua-dro paisagistíco vitivinícola reconquis-ta o olhar assim que a portada se abre. Apetece preguiçar, mas os ponteiros do relógio apontam a hora marcada para a visita à adega.

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recebidas as instruções, caminhamos em direção à adega, concebida dentro no alinhamento arquitetónico do wine hotel pelos traços de Francisco vieira de Campos. Com o rigor da geometria, o novo edifício alia a tecnologia mais avançada no campo da vitivinicultura à tradição na produção do vinho Quin-

ta do vallado, que pode ser adquirido na wine shop, espaço reservado ao encon-tro, seguido de uma visita descontraída e carregada de boa disposição. Da ex-posição histórica, ressalta a importância de Dona Antónia, figura emblemática do Alto Douro vinhateiro, e da criação da marca Quinta do vallado, em 1993. Ano

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a partir do qual se pôs as mãos à obra e se reestruturou o vinhedo, com a re-plantação das vinhas monovarietais e a plantação de castas para a produção de vinhos de mesa. Para o fim, após a ida à adega rasgada pelos arcos desenhados a compasso pelas mãos do arquiteto, fi-cam as provas do bom vinho.

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Com o sol a marcar o compasso do tem-po, damos com as horas a passar os li-mites. e que tal fazermos um piquenique junto ao Corgo? Sugestão aceite, com agrado, claro está! Feitos os preparati-vos para o tão aguardado repasto à beira rio, partimos para o nosso destino, numa viagem curta e aventureira, a bordo de um jipe. um pequeno passeio pelos so-calcos vinhateiros onde abundam as ár-vores de fruto de tão apetecível refúgio, a norte. Depois de tão deleitosa refeição, acompanhada por um vallado touriga nacional rosé Douro 2012. Depois, nada melhor que passear calmamente pelo rio numa canoa durante a tarde…A rematar o dia, é servido o jantar no terraço do hotel. Ao ar livre. Com uma ementa recheada de iguarias e sabores

das terras do Douro, elaborada pelas mãos das senhoras da região e, por isso, conhecedoras da arte de bem cozinhar. “Sem a pretensão de recriar a gastro-nomia”, segundo as palavras de Cláudia Ferreira, a diretora do hotel, mas pro-porcionar uma experiência sensorial, acompanhada pelo vinho adequado da Quinta do vallado, sem esquecer o azei-te da propriedade. Segundo a diretora do wine hotel, os jantares não constavam no projeto, passando a fazer parte da rotina diária da casa devido à procura intensiva por parte dos hóspedes. “Uma boa sur-presa” para complementar um espaço tão acolhedor. uma decisão bem tomada. e aos que não abdicam de um bom almo-ço, recomendamos, por sua vez, as igua-rias da carta solicitadas sob pedido prévio.

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Porque o pequeno almoço aguarda pela nossa chegada e o raiar do sol já conta com algumas horas, o convite para um passeio de jipe até ao Alto das Devesas – analogia feita a uma casta da Quinta do vallado – é aceite sem pestanejar. De jipe, porque o passeio pedestre fica pa-ra outra altura. Do cume da montanha a vista alcança a serra do marão e fica rendida à beleza magistral dos vinhedos da encosta banhada pelo rio Douro.e eis a tão aguardada hora de experi-mentar a piscina. Preguiçar na relva. Ler um livro debaixo das laranjeiras no balcão contíguo ao telheiro… Desfrutar do silêncio alheio ao pensamento. mas também podemos optar por um passeio de bicicleta… A piscina fica junto à antiga casa de fa-mília da Quinta do vallado, onde morou a tão célebre figura. recuperada em 2005, com um terraço coberto, assi-nado pelo arquiteto Souto de moura, a casa reabre as portas aos hóspedes que elegem o Douro tradicional para as

umas férias longe do reboliço da cidade, com uma oferta de cinco quartos nas cores verde, azul mar, amarelo, azul e a suite terracota. todos decorados a pre-ceito, com peças de mobiliário antigo, namoradeiras à janela. e uma capela alva, serena.…A tarde já vai longa. no Peso da régua, o barco está pronto para um magnífico passeio pelas águas do Douro, que rom-pe a paisagem delineada por majesto-sas montanhas rasgadas por infindáveis socalcos, acompanhado por uma boa conversa e, claro, um bom vinho. Salut!o final fica para a despedida com o de-sejo de voltar. Aguardamos por Dona Antónia, pelo marido, José da Silva tor-res, e pelo barão de Forrester na próxi-ma visita. Quem sabe… d

R www.quintadovallado.com

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rota daS eStrelaS 2013FeitoriaA ConStELAção{IM}PRovávEL...teXto patrícia Serrado FotogrAFiA joão pedro rato

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Numa noite bafejada de sorte, embarcamos numa viagemà descoberta dos sabores numa rota cinco estrelas, com cinco chefs d'aquém e d'além mar. O cais fica no restaurante Feitoria, na Doca do Bom Sucesso, do Altis Belém Hotel & Spa, a alma dos nossos pátrios, com a dupla de chefs João Rodrigues e José Cordeiro ao leme, e Hans Neuner, Leonel Pereira e Miguel Vieira na proa. Falamos da 4.ª edição da Rota das Estrelas, o festival gastronómico internacional que, em setembro, lançou a âncora à beira Tejo e se rendeu aos encantos de Lisboa…

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e nada melhor que comemorar a estação mais soalheira do ano, ou o final desta, com a sardinha enrolada em pão e saltea-da em azeite e alho, a lula e o carabineiro. tudo metido numa caldeirada! Acompa-nhada por um champanhe que dispensa apresentações: möet & Chandon brut. eis a saudação do Feitoria (uma estrela mi-chelin), numa viagem a preceito rumo à descoberta dos sabores de Portugal e do mundo, da terra e do mar. A fusão mais do que provável na criação de hans neuner, chef do restaurante ocean (duas estrelas michelin), no vila vita Parc, em Porches, repetente do rota das estrelas do Feitoria. no prato, a aliança entre a acidez e o do-ce é excelente e, à primeira vista, simples, mas dono de um sabor premium, com-posto por lagostim, lima kaffir, granny smith e iogurte. Para ajustar os sabores, foi servido o il terroir branco 2012, um Al-varinho reserva da região dos vinhos ver-des, melgaço e Douro.

… uma cidade representada com mag-nificência na noite de sexta feira 13. os protagonistas foram os conceituados representantes da haute cuisine nacio-nal presentes no Feitoria, a propósito do evento traduzido num roteiro que abar-ca os restaurantes do restrito círculo do prestigiado guia michelin: a rota das es-trelas. ou terão sido os pratos, concebidos com uma superlativa criatividade, numa elementar provocação aos sentidos… missão desempenhada com elegância e mestria. nas palavras de José Cordeiro, o chef consultor do Feitoria, que compõe a dupla com João rodrigues, o chef exe-cutivo, “no fundo, a cozinha é o estilo de cada um”, o savoir-faire partilhado com os demais chefs e aprendizes, que estive-ram à altura, nas duas noites (13 e 14 de setembro) dedicadas à celebração do ve-rão, depois de quatro longos meses de reuniões, para que repetições de pro-dutos não houvesse na carta final.

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sardinha, lula e carabineiro metidos numa caldeirada / Feitoriachampanhe möet & chandon brut

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lagostim, lima kaffir, granny smith, iogurte / chef hans neuneril terroir branco 2012

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cerejas e foie-gras / feitoriaconde de oeiras licoroso

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salmonete com laranja queimada em 40 dias de cura de sal fumado. jus de lúcia lima / chef leonel pereirareserva do comendador branco 2011

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robalo salteado com nabiças, shimengi e lingueirão. caldo dashi / feitoriavale das areias branco fernão pires 2012

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pombo assado com mel e alfazema, cogumelo recheado com trigo, cogolho, granola e figos pretos / feitoriavale das areias tinto syrah 2010

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no itinerário do empratamento, o Fei-toria apresenta cerejas e foie-gras. A analogia perfeita ao fruto mais apetecido verão fora. Aqui, o preparado de fígado é regado com um caldo de cereja, acom-panhado por foie-gras fresco salteado, e apresentado sob uma falsa terra de pão de especiarias, em harmonização com as notas mais doces de um vinho de Carca-velos, o licoroso Conde de oeiras.Do sul, o chef Leonel Pereira, do restau-rante São gabriel (uma estrela michelin), em Almancil, “admirador incondicio-nal e comensal da comida tradicional portuguesa”, surpreendeu o palato dos mais exigentes com um salmonente combinado com um puré de aipo, e cí-tricos (laranja e lima) com uma cura de 40 dias em sal fumado, a “lembrar um pouco Marrocos”, e jus leve de lúcia li-ma, a dar o toque final. uma verdadeira obra de arte à mesa conciliada com re-serva do Comendador branco 2011, um néctar dos deuses do Alentejo.

A viagem prossegue por mares navega-dos pelos nossos antepassados, desta vez com um robalo acompanhado por nabiças cozinhadas ao vapor, shimengi e lingueirão, envolvido em caldo dashi, da dupla de chefes do Feitoria lisboe-ta, em honra dos Descobrimentos. Para unir o prato ao vinho, a escolha recaiu num monocasta da Sociedade Agrícola da Labrugeira, na região de vinhos Lis-boa. um vinho cujo nome merece uma atenção especial: vale das Areias bran-co Fernão Pires 2012. Já em terra, e pelas mãos dos chefs João rodrigues e José Cordeiro, a presença dos deleitosos figos pretos enaltece o sabor do pombo assado com mel e al-fazema, e cogumelo recheado com tri-go e granola. uma obra de arte efémera eternamente gravada na memória, fi-namente casada com vale das Areias tinto Syrah 2010, considerado o melhor vinho do Ano, no Concurso vinhos de Portugal 2013 da viniportugal.

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e porque o brilho das estrelas mais além dispensa o uso do astrolábio, um convi-te irrecusável viajou até budapeste, de onde veio o chef do Costes restaurant (uma estrela michelin), uma cozinha de referência da hungria: miguel vieira. À mesa, chega uma verdadeira surpresa: Pêssegos escalfados, framboesa coa-lhada e sorvete de verbena limão. A pri-morosa rima com oresmus tokaji Aszú 5 Puttonyos, um licor húngaro que ape-teceu degustar noite dentro. o deleitoso sabor do açúcar marcou, de novo, a presença num prato dominado pelos tons chocolate em pleno louvor à avelã, à fava tonka e ao toffee, criado exclusivamente para unir com Quin-ta da Casa Amarela vintage Porto 2011.

Para beber fresco… uma combina-ção elegante nesta noite de despedida do verão, que terminou no terraço do Feitoria, com petit fours. uma admirá-vel composição alusiva ao relvado que preguiça à frente do restaurante, enci-mada por delicadas iguarias da autoria do Feitoria que, uma vez mais, abordou a magnificência dos Descobrimentos num repasto concretizado por “chefs que não são tão habituais nestes circui-tos”, pois “a ideia era trazer portugue-ses que estão espalhados no mundo”, revela João rodrigues, e “fazer algo que marque a cozinha”, complementa José Cordeiro. A ideia é mostrar a nossa co-mida haute couture ao mundo. um de-sejo tornado realidade.

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pêssegos escalfados, framboesa coalhada, sorvete de verbena limão / chef miguel vieiraoremus tokaji aszú 5 puttonyos licoroso

chocolate, avelã, fava tonka e toffe / feitoriaquinta da casa amarela vintage porto 2011

petit fours / feitoria

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JóIA DE áFRICA

não é um destino provável, tampouco paradisíaco - ainda que banhada pe-lo mar vermelho. Longe da costa e das águas cor de esmeralda, este país que vem recuperando de trinta anos de guerra conta, porém, com uma capital que é um verdadeiro tesouro esquecido em solo africano. A colonização italiana dos finais do séc.XiX e início do séc. XX deixou impressas marcas indeléveis que, ainda hoje, mol-dam o quotidiano dos seus habitantes e fazem de Asmara uma cidade insinu-ante, que se entranha nas nossas emo-ções com a mesma audácia com que os ventos arenosos se colam à nossa pele. A elegância de Asmara começa, des-de logo, nos autóctones. gente de tra-ços finos, olhos meigos, lânguidos, que esboça sorrisos graciosos e distribui cortesia ao passar. gente que passa,

Com apenas duas décadas de

independência e localizada no

instável Corno de África, a Eritreia

passa despercebida no mapa e nas rotas

da maioria.

teXto e FotogrAFiA dulce alveS

aSmara

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devagar, com uma tranquilidade que se propaga no tempo e no espaço. uns en-carnando a elegância ocidental, de fato completo e borsalino, outros ao estilo árabe, envergando compridas vestes; no fundo, todos impedindo que o sol escal-dante queime a sua pele (já) trigueira. É precisamente a estrela-maior que parece ditar o ritmo de vida da cidade. Quando os primeiros raios surgem, pe-la manhã, a cidade agita-se. Porém, ao meio dia, o incómodo calor obriga a que muitos se refugiem. os que permane-cem nas ruas, deixam-se levar por uma certa lassidão. Procuram caminhar pela sombra, pedalam nas suas bicicletas de modo pachorrento ou encostam-se es-perando que o sol lhes dê folga. A letar-gia que se apodera da cidade torna difícil acreditar que estamos numa capital. Quando, por fim, o sol se põe, a passe-giatta herdada de outros tempos é ritual sagrado a que ninguém fica indiferente. Saem à rua, aprumados e sequiosos dos espressos e machiattos oferecidos pe-las cafetarias que se espraiam ao longo da cidade. Partilham mesas e (in)confi-dências. Jogam cartas e xadrez. Lêem as últimas no vespertino. Saboreiam café e trincam fina pastelaria, transportando-

-se temporariamente para aquele es-tado de dolce far niente que os italianos se empenharam em legar.os mais pequenos não resistem às ge-lattarias e fazem fila para conseguir um cone com tantas cores quantas as dos néons publicitários que anunciam ora gelados, ora pizzas - e quase nos fazem crer que estamos na vera italia! Contudo, não se fica por aqui a influência da cultura europeia. na verdade, Asma-ra é apelidada de capital do modernismo em África por ter sido uma espécie de laboratório para os arquitectos italianos. não duvidamos disso à medida que per-corremos a cidade e admiramos edifícios ao estilo Art Déco, Futurista e modernis-ta, com fachadas e deliciosos porme-nores arquitectónicos que não deixam dúvida nem ao mais leigo dos seres.Ópera, cinemas, cineteatros - como o odeon, impero ou roma. edifícios de serviço público, como o Posto dos Cor-reios, a Piscina municipal, tribunais e Câmara. e também edifícios privados, como encantadoras villas construídas no registo de outros tempos.uns mais resistentes à passagem do tempo que outros, mas todos impassí-veis às escassas alterações que a cidade

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foi sofrendo. Convivem com a imponente catedral e a sua torre sineira ao estilo gó-tico, com a sobranceira mesquita erigida em mármore Carrara (que outro podia ser?) e até com excêntricas construções, como o emblemático Fiat tagliero, uma estação de serviço construída em 1938, em forma de avião, com duas asas de betão que atingem os 15 metros.

toda esta amálgama faz com que As-mara seja uma cidade singular, única no registo africano pela hospitalidade que a caracteriza, pela segurança que garante, pela multiplicidade de etnias e culturas que ali subsistem e tão bem se entrosam. e ainda, naturalmente, pelas experiên-cias distintas que proporciona. Comer injera com as mãos, perscrutar à soca-

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pa os corredores dos cinemas quase--abandonados, partilhar mesas de café com os locais, calcorrear o confuso e mirabolante mercado ou apanhar um táxi – por certo um cinquecento – são apenas algumas das que recordo. re-cordações tão valiosas quanto jóias. Jóias tão preciosas como o é Asmara. d

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