mÚsica e disco no brasil: a trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90

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Texto original de minha tese de doutorado, defendida na ECA/USP em fevereiro de 2002. Versão não atualizada ou revisada.

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MSICA E DISCO NO BRASIL:A trajetria da indstria nas dcadas de 80 e 90

Autor: Eduardo Vicente

Tese apresentada Escola de Comunicaes e Artes, da

Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Doutor no curso de Comunicaes.

Orientador: Prof Dr Waldenyr Caldas

So Paulo, Maro de 2002

MSICA E DISCO NO BRASIL: A trajetria da indstria nas dcadas de 80 e 90

Autor: Eduardo Vicente

Tese apresentada Escola de Comunicaes e Artes, da Universidade de So Paulo,

como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Doutor no curso de Comunicaes.

Orientador: Prof. Dr. Waldenyr Caldas

ii

ASSINATURAS DOS MEMBROS DA COMISSO JULGADORA

__________________________________

__________________________________

__________________________________

__________________________________

__________________________________

__________________________________

iii

MSICA E DISCO NO BRASIL: A trajetria da indstria nas dcadas de 80 e 90

RESUMO: O objetivo da presente tese oferecer uma viso panormica do cenrio da indstria fonogrfica brasileira desde os anos 80 at o presente buscando, nesse itinerrio, estabelecer uma articulao entre a produo musical ento desenvolvida e as condies materiais predominantes (tecnolgicas, econmicas e organizacionais). Nesse contexto, a pesquisa enfatiza a importncia da anlise da relao entre grandes e pequenas gravadoras (majors e indies) para a compreenso da dinmica da indstria, bem como o papel desempenhado pelas duas grandes crises que atingiram o setor durante o perodo analisado.

iv

Marta Orlando Ivone e Leonello,

que me situam na teia

v

AGRADECIMENTOS

Foram muitos os profissionais do mercado fonogrfico a me auxiliarem nessa pesquisa enviando dados e informaes, partilhando experincias, dvidas e conhecimentos. Embora as entrevistas que alguns deles me concederam tenham sido pouco utilizadas nesse texto final, foram absolutamente fundamentais para a determinao dos rumos dessa pesquisa, bem como para a verificao de muitas das hipteses levantadas. Por tudo isso e muito mais, quero registrar aqui meu agradecimento especial a:

Nilson Pamplona e Isabel Blanco (Nopem); Pena Schmidt (Tinitus); Biaggio Baccarin (Dr. Brs da Chantecler); Wilson Souto Jr (Continental East West); Emma Northover (IFPI); Francisca (ABPD); Isckui, Joo Carlos e Marina (APDIF); Ana, Vilma, Mila e Juliana (Atrao Fonogrfica); Edson Natale (Instituto Cultural Ita); Mnica (CPC-Umes); Srgio (Studio Visom); Isabh; Biba Fonseca (Trama); Carolina e Luiz Carlos Calanca (Baratos Afins); Carlos Verginiano (Planet Music); Antnio Carlos Curado (Credi Curadinho); Odair (All Disc); Joo Lara Mesquita (Eldorado); Paulo Cavalcanti (Shopping Music); Rafael Gomide (SucessoCD); Edwin Pitre (Velas); Jos Carlos Costa Netto (Dabli); Irm Renilda (Paulinas-Comep); Regina Nicola (Gospel Records); Marcelo Duran (MD Music Service) e Antonio Adolfo.

Tambm quero destacar a ateno e generosidade com que fui atendido pelos funcionrios do Dedoc da Folha, da Abril Imagem, do Centro Cultural So Paulo, do Arquivo Edgar Leuenroth (Unicamp), da secretaria de ps-graduao da ECA e das vrias bibliotecas da USP e Unicamp.

vi

MSICA E DISCO NO BRASIL: A trajetria da indstria nas dcadas de 80 e 90

NDICEPg. Introduo ....................................................................................................... 01

Parte I A Organizao do Mercado Fonogrfico Internacional ................ Introduo ......................................................................................... 1 Organizao Econmica ............................................................ 2 A Consolidao da Indstria ..................................................... 3 A Internacionalizao do Consumo .......................................... 4 O Cenrio Atual ......................................................................... 4.1 A Concentrao Econmica ............................................ 4.2 Majors e Indies ................................................................. 4.2.1 Padres de distribuio, produo e consumo .. 4.2.2 Rudos na engrenagem ........................................ 5 As Tecnologias Digitais de Produo e Distribuio Musical. 5.1 As Tecnologias Digitais de Produo Musical ............... 5.2 As Tecnologias Digitais de Distribuio Musical ..........

13 13 14 20 25 28 29 35 37 38 42 42 45

I

Parte II A Consolidao da Indstria Fonogrfica no Brasil .................... 1 A Consolidao do Mercado de Bens Simblicos no Pas ..... 2 A Indstria do Disco nas Dcadas de 60 e 70 ......................... 2.1 O Compacto ..................................................................... 2.2 A Racionalizao da Atuao ......................................... 2.3 Nacionais, Mltis e Conglomerados .............................. 2.4 A Segmentao do Mercado ........................................... 2.5 O Campo de Produo da Msica Popular .................. 2.6 Concluses .......................................................................

49 49 53 60 62 68 74 77 85

Parte III Os Anos 80 ...................................................................................... 1 Crise e Reestruturao ........................................................... 1.1 A Crise Se Instala ............................................................ 1.2 Reavaliando o Mercado .................................................. 2 A Cena Musical ....................................................................... 2.1 O Popular-Romntico ..................................................... 2.2 O Sertanejo ...................................................................... 2.3 A Msica Infantil ............................................................ 2.4 O BRock dos Anos 80 ..................................................... 2.5 A Cena Independente ..................................................... 3 O Balano da Dcada .............................................................

87 87 88 92 97 97 106 114 118 124 135

Parte IV Os Anos 90 ......................................................................................

141

II

Introduo ..................................................................................... 1 A Crise de 1990 ....................................................................... 1.1 A Recuperao da Indstria .......................................... 2 A Consolidao do Sistema Aberto ....................................... 2.1 A Organizao das Indies .............................................. 3 Os Circuitos Autnomos ........................................................ 3.1 O Rock Alternativo ......................................................... 3.2 Os CTGs .......................................................................... 3.3 O Forr Eletrificado de Fortaleza ................................. 3.4 O Mangue Beat ............................................................... 3.5 O Movimento Hip Hop ................................................... 3.6 O Funk Carioca ............................................................... 3.7 A Cena Baiana ................................................................. 4 Segmentao, Padronizao e Concentrao Econmica ... 4.1 A Crise do Final da Dcada ............................................ 4.2 Concluso ......................................................................... 5 Distribuio e Novos Produtos .............................................. 5.1 Distribuidores e Atacadistas .......................................... 5.2 O Ponto de Vendas ......................................................... 5.3 Perspectivas Futuras ...................................................... 6 Pirataria .................................................................................. 6.1 A Pirataria na Era Digital ............................................. 6.2 A Pirataria em CDs no Brasil ....................................... 6.3 Sampler e MP3 ...............................................................

141 143 147 154 164 169 170 173 174 175 177 180 184 189 194 199 201 201 205 211 213 215 216 219

III

Parte V A Produo Musical Brasileira ...................................................... 1 Vendas por Segmento .............................................................. 2 Anlise dos Segmentos .............................................................

224 224 229

2.1 Repertrio Internacional .................................................. 229 2.2 Trilhas de Novelas ............................................................. 230 2.3 Pop Romntico .................................................................. 231

2.4 Romntico .......................................................................... 232 2.5 MPB ................................................................................... 233

2.6 Samba ................................................................................. 235 2.7 Rock ................................................................................... 2.8 Infantil ............................................................................... 2.9 Sertanejo ........................................................................... 2.10 Disco ................................................................................ 2.11 Soul/Funk/Rap ................................................................ 2.12 Ax/Bahia ........................................................................ 2.13 Religioso ......................................................................... 241 243 244 245 245 247 247

IV

Msica Religiosa ...................................................................... 249 3.1 A Msica Catlica ............................................................ 249 3.2 A Msica Gospel .............................................................. 252 4 Roteiros Sonoros ..................................................................... 262

4.1 CD 1: Msica Independente .......................................... 262 4.2 CD 2: Msica Religiosa .................................................. 268

Concluso .......................................................................................................... 272

Bibliografia ......................................................................................................... Anexo I Levantamentos Estatsticos ..........................................................

282 293

Anexo II As Gravadoras e suas Associaes ............................................... 1 Associaes .............................................................................. 2 Gravadoras e Selos ................................................................. 2.1 Majors ............................................................................. 2.2 Indies .............................................................................. 3 Eventos e Premiaes ............................................................. 4 Fabricantes de Discos e Fitas ................................................. 5 Empresas Relacionadas ..........................................................

304 305 308 308 315 332 334 335

V

NDICE DE TABELAS E GRFICOS

Pg. Tab.I Tab. II Tab. III Vendas da indstria fonogrfica mundial 1991/1999............................... Vendas da Indstria Fonogrfica Nacional por Unidade 1966/1979 ..... Participao do Repertrio Internacional na Listagem dos 50 LPs mais Vendidos no Eixo Rio/So Paulo 1965/1979 .................................... Brasil: Singles x lbuns 1966/1979 ........................................................... Participao dos LPs de gravadoras nacionais na listagem dos 50 mais vendidos no eixo Rio/So Paulo 1965/1971 ............................................... Participao dos LPs de gravadoras nacionais na listagem dos 50 mais vendidos no eixo Rio/So Paulo x Participao individual da Som Livre 1972/1999 ........................................................................................... Vendas da indstria fonogrfica nacional por formato 1980/1989 ........ Participao do Repertrio Internacional na Listagem dos 50 LPs mais Vendidos no Eixo Rio/So Paulo 1980/1989 .................................... 28 53

57 61

Graf. I Tab. IV

71

Tab. V

71 87

Tab. VI Tab. VII

93

Tab. VIII

Segmento mais presentes dentre os 50 lbuns mais vendidos anualmente no eixo Rio/So Paulo 1965/1979 .......................................... 137 Segmento mais presentes dentre os 50 lbuns mais vendidos anualmente no eixo Rio/So Paulo 1980/1989 ..........................................

Tab. IX

138

Tab. X

Vendas da indstria fonogrfica nacional por formato (milhes de unidades) e faturamento em dlares (US$ mi) 1990/1999 ....................... 141 Vendas por Formato 1966/1999 ................................................................. 147

Grf. II Tab. XI

Segmentos mais presentes dentre os 50 lbuns mais vendidos anualmente no eixo Rio/So Paulo 1990/1999 .......................................... 189 Participao Percentual do Repertrio Nacional no Mercado dos Principais Pases Latino-Americanos 1991/1999 ...................................... 191 Ranking Mundial da Pirataria em Suportes Musicais 1999 ................... Pirataria no Brasil: Autuaes Realizadas 1998/2000 ............................. 216 218

Tab. XII

Tab. XIII Tab. XIV

VI

Tab. XV

Distribuio por Segmento dos 50 lbuns Mais Vendidos Anualmente 1965/1979 ...................................................................................................... 226 Distribuio por Segmento dos 50 lbuns Mais Vendidos Anualmente 1980/1999 ...................................................................................................... 227

Tab. XVI

ANEXO I

Tab. I Grf. I Grf. II Grf. III Tab. II

Vendas da Indstria Fonogrfica Nacional por Unidade 1966/1999 ..... Vendas por Formato 1966/1999 ................................................................. Brasil: Singles x lbuns 1966/1999 ............................................................ Variao percentual da produo fonogrfica brasileira 1966/1999 .....

292 293 294 294

Participao dos LPs de gravadoras nacionais na listagem dos 50 mais vendidos no eixo Rio/So Paulo 1965/1979 ............................................... 295 Participao dos LPs de gravadoras nacionais na listagem dos 50 mais vendidos no eixo Rio/So Paulo 1980/1999 ............................................... 296 Faturamento da Indstria Fonogrfica Nacional 1991/1999 .................. Faturamento da Indstria Fonogrfica Nacional 1991/1999 .................. 297 297

Tab. III

Tab. IV Grf. IV Tab. V

Faturamento dos Principais Mercados Mundiais e Latino-Americanos em 1999 ......................................................................................................... 298 Faturamento dos Principais Mercados Mundiais e LatinoAmericanos em 1999 ................................................................................... 298 Brasil: Percentuais de Venda por Repertrio (Nacional, Internacional e Erudito) 1991/1999 ................................................................................... 299

Grf. V

Tab. VI

VII

Grf. VI Tab. VII

Percentuais de Venda por Repertrio 1991/1999 ...................................

299

Participao Percentual do Repertrio Nacional no Mercado dos Principais Pases LatinoAmericanos 1991/1999 ....................................... 300 Perdas Estimadas (US$ Mi) e Nvel da Pirataria em Suportes nas Diversas reas: Brasil 1995/1999 .............................................................. 300

Tab. IX

VIII

MSICA E DISCO NO BRASIL: A trajetria da indstria nas dcadas de 80 e 90

INTRODUO

A inteno desse trabalho de pesquisa o de oferecer um cenrio da indstria fonogrfica brasileira dos anos 80 at o presente que relacione as condies materiais predominantes aparato tecnolgico, organizao administrativa, insero

internacional, nvel de concentrao econmica, etc com a produo musical efetivamente desenvolvida. So vrias as razes que, a meu ver, justificam a escolha do objeto. Segundo pesquisa encomendada pelo Ministrio da Cultura, em 1994 havia 510 mil pessoas empregadas na produo cultural brasileira, considerando-se todos os seus setores e reas; elas distribuam-se da seguinte forma: 391 mil empregadas no setor privado do mercado cultural (76,7% do total), 69 mil como trabalhadores autnomos (13,6%) e 49 mil ocupados nas administraes pblicas, isto , Unio, Estados e Municpios (9,7%). Esse contingente era 90% maior do que o empregado pelas atividades de fabricao de equipamentos e material eltrico e eletrnico; 53% superior ao da indstria automobilstica, de autopeas e de fabricao de outros veculos e 78% superior do que o empregado em servios industriais de utilidade pblica (energia eltrica, distribuio de gua e esgotos e equipamentos sanitrios) 1 .

A mesma pesquisa projetava que, em 1997, a produo cultural brasileira havia movimentado cerca de 6,5 bilhes de reais, respondendo por aproximadamente 0,8% do

A Economia da Cultura, texto produzido por Jos lvaro Moiss e Roberto Chacon de Albuquerque, com base em pesquisa realizada pela Fundao Joo Pinheiro, para ser distribudo no Encontro do Conselho de Cultura da Associao Comercial do Rio de Janeiro, dia 05 de agosto de 1998. Utilizo-me da verso on line disponvel em www.minc.gov.br.

1

1

PIB brasileiro, sendo que para cada milho de reais gasto em cultura, o pas gera 160 postos de trabalho diretos e indiretos 2 .

impossvel desconsiderar a importncia da indstria fonogrfica nacional dentro desse contexto. Nesse mesmo ano de 1997 ela havia faturado, segundo dados do IFPI (International Federation of the Phonographic Industry), US$ 1,275 bilhes atravs da venda de 107,9 milhes de unidades (basicamente CDs) e se mantinha, pelo terceiro ano consecutivo, como o sexto maior mercado mundial. Outro dado relevante que a obteno de nmeros to expressiva vem se dando, majoritariamente, a partir do consumo de repertrio nacional, que atualmente responde por mais 70% do total das vendas um dos mais altos ndices do mundo 3 .

Mas para alm do crescimento das vendas, que alcanaram entre 1996 e 1999 os mais altos ndices da histria da indstria no pas, outros h outros fatores a merecerem ateno. Um deles o de que o perodo de minha anlise marca um intenso processo de desnacionalizao e concentrao da produo, tanto atravs da instalao e/ou consolidao no pas de todas as grandes gravadoras internacionais (as chamadas majors) que detm, atualmente, o controle sobre mais de 80% da msica produzida no mundo 4 , como da absoro pelo capital estrangeiro da Copacabana e da Continental: as duas maiores e mais tradicionais empresas brasileiras de orientao nica do setor.

Tambm por isso, considero o perodo como o da efetiva globalizao da indstria fonogrfica brasileira, com uma considervel adequao de seu patamar tecnolgico, estratgias de atuao e prticas administrativas s tendncias mundialmente predominantes. Tal processo que ser amplamente discutido ao longo desse trabalho tem momentos particularmente importantes com a chegada do CD ao2

Idem, ibidem.

Dados extrados de The Recording Industry in Numbers 2000: the definitive source of global music market information, IFPI, London, 2000.4

3

So consideradas majors transnacionais as gravadoras Universal, BMG, EMI, Sony e Warner. Com exceo da EMI, todas so vinculadas a conglomerados de comunicao envolvidos em mltiplas reas. No caso brasileiro, possvel incluir nessa relao tambm a gravadora Som Livre, pertencente Rede Globo, e a Abril Music, ligada ao grupo de mesmo nome.

2

mercado nacional (1987), a inaugurao da MTV Brasil (1990) e todo o processo de pulverizao e flexibilizao da produo verificado ao longo dos anos 90 sob o forte impulso da difuso no pas das tecnologias digitais de produo musical surgindo a abertura comercial iniciada na Era Collor e a estabilidade econmica propiciada pelos primeiros anos do Plano Real como o evidente pano de fundo a todo esse cenrio.

Outra marca muito presente da produo fonogrfica recente do pas parece ter sido a da integrao ao mercado consumidor e classe artstica tanto de grupos etrios mais jovens quanto das camadas de menor poder aquisitivo da populao. No primeiro caso, tivemos o surgimento do BRock e da msica infantil, nos anos 80, e dos grupos e cantores adolescentes dos anos 90. No segundo, o surgimento e/ou crescimento de segmentos como o do sertanejo, do rap e do pagode, entre muitos outros. Em relao msica produzida, possvel constatar tambm a ocorrncia de um extenso processo de segmentao do mercado, movido tanto pela revalorizao de artistas e segmentos mais tradicionais notadamente os oriundos de movimentos surgidos na dcada de 60 como a Jovem Guarda, o Tropicalismo e a MPB 5 quanto pelo surgimento de segmentos ligados a identidades culturais locais, freqentemente com fortes matizes tnicas, religiosas, scio-econmicas ou geogrficas. So muitos os exemplos desse ltimo processo: as produes musicais relacionadas cena baiana, ligadas principalmente tradio dos trios eltricos e dos blocos de afox; as ligadas Festa do Boi de Parintins; as vrias matizes do forr; o reggae de So Luiz, Salvador e tantas outras cidades; o Mangue Beat recifense; o funk carioca; o rap das periferias (de So Paulo, Braslia, Belo Horizonte, etc); as mltiplas vertentes da msica religiosa e do rock alternativo, etc. foroso constatar em todas essas manifestaes a presena em maior ou menor grau de referenciais musicais mundializados, mostrando as estreitas articulaes que, dentro do processo de mundializao da cultura, tendem a se estabelecer entre o local e o global. To ampla regionalizao e segmentao sugerem ainda que os meios de produo, legitimao e difuso de msica no pas, tradicionalmente confinados ao eixo Rio-So Paulo, encontram-se atualmente muito mais descentrados e pulverizados outra situao nova que me parecia merecer uma discusso mais detalhada.5

Todos eles favorecidos, em algum nvel, pelo amplo leque de relanamentos que acompanhou o surgimento do CD.

3

Paralelamente a esta ampla diversificao da msica produzida preciso, ainda, assinalar um considervel aumento da eficcia da indstria no sentido da promoo e distribuio de suas produes. Os novos espaos de consumo que passaram a ser explorados, assim como os segmentos musicais de maior penetrao no mercado que ento surgiram (como a ax music, o sertanejo e o pagode, entre outros), desenvolveram-se apoiados em eficientes estratgias de marketing e numa participao cada vez maior dos produtores e executivos na definio do perfil musical e visual dos artistas dando grande complexidade diviso do trabalho de produo e divulgao musical. A esta atuao relaciona-se, tambm, uma maior concentrao das empresas em conglomerados e, como sua consequncia, uma crescente integrao sinrgica de suas estratgias promocionais.

Tudo somado forosa a concluso de que estamos nos referindo a um cenrio de dualidades aparentemente paradoxais como local/global e concentrao/segmentao que no apenas no so exclusivas do campo da produo musical mas, muito ao contrrio disso, poderiam ser consideradas caractersticas marcantes de praticamente todo o cenrio econmico e cultural atual. Em funo disso, acredito que falar da indstria fonogrfica tambm , em alguma medida, falar de processos mais gerais da sociedade razo pela qual assumi, entre vrias outras, a pretenso de que minha pesquisa pudesse se constituir ainda como uma espcie de estudo de caso da globalizao, evidenciando as formas particulares que algumas das suas postulaes gerais podem acabar por adquirir (ou no) num contexto especfico.

Para uma melhor compreenso do perodo analisado, senti necessidade de ampliar minha pesquisa em dois sentidos. O primeiro foi o de constituir um relato acerca do perodo de produo imediatamente anterior, ou seja, as dcadas de 60 e 70. Naturalmente, a apresentao de um breve cenrio do perodo seria oportuna para uma compreenso mais clara das modificaes ocorridas posteriormente, mas eu tive de ir alm disso: tanto a insuficincia dos relatos existentes quanto a importncia crucial dessas duas dcadas para a organizao da indstria e para a prpria histria musical do pas, levaram-me elaborao de um texto muito mais abrangente do que inicialmente

4

imaginara, o que pode confundir os leitores em relao nfase de minha anlise. Confesso, nesse sentido, ter considerado seriamente a hiptese de redefinir o objetivo de minha pesquisa transformando-a numa anlise da dcada de 60 at o presente. Mas conservo a convico de que a originalidade de minha contribuio est realmente na anlise do cenrio mais recente e na discusso da dinmica atual da indstria, razo pela qual acabei por manter a inteno original do projeto. Alm dessa ampliao de carter histrico, acabei transpondo tambm o espao geogrfico previamente definido para a anlise e desenvolvendo uma discusso acerca da organizao da indstria fonogrfica norte-americana ao longo de praticamente toda a segunda metade do sculo XX. Fiz isso por vrios motivos. O primeiro, foi o de entender que essa anlise poderia iluminar, num cenrio crescentemente globalizado, o momento e a forma pela qual a indstria fonogrfica nacional passou a acertar seu passo com as tendncias internacionalmente dominantes. O segundo foi o de que essa discusso forneceu-me a oportunidade para uma primeira aproximao do tema da indstria e, portanto, para a introduo de conceitos e informaes gerais acerca de sua dinmica e aparato tecnolgico que, se deixados para a discusso do quadro nacional, acabariam por sobrecarregar o texto. Finalmente, pareceu-me que a perspectiva a partir da qual anlises consagradas no cenrio anglo-saxo como as de Peterson & Berger (1975) e Paul Lopes (1992), entre outros abordam o desenvolvimento da indstria fonogrfica do eixo USA-UK, dando grande destaque s crises ocorridas nas dcadas de 50 e 70, oferecia um interessante paralelo minha anlise da indstria nacional, onde igualmente enfatizei o papel das duas crises que atingiram o setor (no caso, nos anos de 1980 e 1990) dentro do seu processo de organizao.

...............................................

Em funo de tudo isso, acabei dividindo essa tese em 5 partes, sendo a primeira delas dedicada a esta discusso do cenrio mundial da indstria. Aps uma breve reflexo acerca da atual configurao do capitalismo global, em que enfatizado o papel desempenhado pelos grandes conglomerados transnacionais (CTNs), particularmente os de comunicao, apresento uma anlise j clssica do cenrio

5

fonogrfico norte-americano onde ganha destaque a questo da concentrao econmica da indstria e, nesse sentido, do relacionamento entre majors (grandes gravadoras que so, frequentemente, partes de conglomerados de comunicao de atuao mltipla) e indies (gravadoras independentes de pequeno ou mdio porte). Tal relacionamento ser fortemente influenciado tanto pela inovao tecnolgica como grandes pelas crises verificadas no setor e que foram, como se ver, decisivas na definio das estratgias globais de atuao da indstria. No cenrio presente, so destacadas as possibilidades para a desmaterializao dos suportes e distribuio digital de msica abertas pela Internet que, embora ainda pouco relevantes em nosso pas, parecem ter se tornado determinantes at para as recentes decises acerca de fuses, aquisies e alianas estratgicas tomadas pelos grandes conglomerados de comunicao.

Fecha essa primeira parte um captulo mais ou menos autnomo em que ofereo uma breve descrio das tecnologias digitais de produo e distribuio musical atualmente empregadas pela indstria. Embora o tema seja um tanto rido e j tenha sido objeto de minha dissertao de mestrado, considero-o decisivo para uma compreenso realmente efetiva do mercado fonogrfico nacional e mundial.

J a segunda parte da tese dedicada discusso da consolidao do mercado de bens culturais e, especialmente, da indstria fonogrfica nacional nos anos 60 e 70. No primeiro caso, o livro Moderna Tradio Brasileira (1988), de Renato Ortiz, surge como o principal condutor da anlise, que busca compreender como o processo de modernizao capitalista do pas e os objetivos de integrao nacional do regime militar passam a se dar, sob a gide autoritria e conservadora desse ltimo, a partir da atuao dos empreendedores privados e no mais do Estado. No segundo, alm de tentar avanar a anlise de Ortiz e a discusso de seus prognsticos ao terreno especfico da indstria fonogrfica, tento envolver nesse debate tanto a produo de outros pesquisadores que trabalharam mais diretamente com esse objeto (especialmente Morelli, 1991) como a anlise de fontes originais (principalmente jornais e revistas da poca).

6

Aqui, so vrios os aspectos a merecerem destaque. Em relao organizao da indstria em si, vale citar a questo da implantao das indstrias internacionais e dos conglomerados de comunicao no pas e a relao, permeada de conflitos, que se estabelece entre esses novos agentes e as empresas nacionais de orientao nica j instaladas. Ressaltaria tambm a discusso do papel da lei de incentivos fiscais criada em 1967 e que, embora tenha realmente promovido a produo de msica brasileira, paradoxalmente parece ter acabado por favorecer fortemente o investimento de capital internacional no setor.

J no mbito da produo musical desenvolvida, e embora no me detendo numa anlise pormenorizada da mesma, busco destacar a relao entre o consumo de repertrio internacional e domstico, a importncia do processo de estratificao do mercado que ento se consolida e a forma pela qual se d a modernizao dos gneros musicais desenvolvidos no perodo e que passaro a se constituir, como assinala Jos Roberto Zan (1998), numa espcie de reserva estilstica da msica popular, fornecendo muitos dos patterns musicais e de performance artstica at hoje vlidos.

As partes III e IV compem o corpo principal da tese e so dedicadas anlise da indstria fonogrfica nacional nos anos 80 e 90, respectivamente. Inicia a anlise da dcada de 80 uma descrio da crise que interrompeu, j no ano de 1980, um ciclo de crescimento ininterrupto da indstria que vinha desde pelo menos 1966 6 . A anlise das causas e, principalmente, das aes da indstria para superar essa crise, torna-se decisiva para uma real compreenso do cenrio da dcada em que se verifica uma abrupta intensificao da racionalizao e orientao mercadolgica da produo musical e da concentrao econmica do mercado em todos os nveis. Na busca de ampliar seu pblico alvo antes restrito prioritariamente classe mdia as majors voltam-se para segmentos de maior apelo popular e anteriormente desprezados, como o da msica sertaneja e do brega-romntico, bem como para as faixas etrias mais jovens que so incorporadas principalmente atravs do BRock (rock dos anos 80) e do desenvolvimento da msica infantil. Alm de oferecer anlises de cada um destes segmentos, busco apresentar tambm uma discusso mais pormenorizada acerca do6

Este o primeiro ano para o qual esto disponveis dados confiveis sobre a produo.

7

importante movimento musical independente que surgiu ao final dos anos 70 e se constituiu, numa certa medida, enquanto uma resposta a essa maior seletividade e padronizao da atuao da grande indstria, que acabava por reduzir os espaos para a realizao de produes mais diferenciadas.

O cenrio dos anos 90, retratado na parte IV, menos de ruptura do que de consolidao. Impulsionada pela crise que inicia o perodo (a partir do confisco operado pelo Plano Collor), a indstria aprofunda a implantao de seu modelo de atuao e, com a disseminao no pas das novas tecnologias de produo musical, passa a adotar de forma cada vez mais ampla as prticas j dominantes no cenrio internacional de flexibilizao da produo e segmentao da demanda. Favorecido pela estabilidade econmica dos primeiros anos do Plano Real, o mercado fonogrfico experimenta um crescimento vertiginoso, que favorece tanto a criao de novos empreendimentos nacionais como a vinda de numerosas empresas e investidores externos. Nesse

contexto, ao mesmo tempo em que a dcada de 90 marca a definitiva capitulao das grandes empresas nacionais de orientao nica e o predomnio da forma conglomerado (assumida por praticamente todas as grandes empresas do setor), ela assiste a um intenso revigoramento da cena independente, com o surgimento de centenas de novos selos, normalmente com atuao regional ou ligado a segmentos musicais especficos. Ser nessa relao entre majors e indies que se fundamentar uma nova ecologia do mercado fonogrfico, onde as pequenas empresas passam a responsabilizar-se por grande parcela das atividades de produo e formao de novos artistas, atendimento a segmentos marginais e explorao de novos nichos de mercado, enquanto a grande indstria concentra suas atenes na promoo e distribuio macia de um conjunto cada vez mais restrito de artistas, segmentos e produes normalmente escolhidos dentre aqueles que j provaram sua viabilidade comercial em indies.

De qualquer forma, essa situao abrir espao para novas possibilidades de atuao e organizao por parte dos produtores independentes, bem como para a emergncia daquilo que eu denomino como circuitos autnomos de produo, exibio

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e consumo musical local 7 , de grande relevncia cultural, econmica e social. Tento ilustrar esse cenrio e sua relao com o grande mercado a partir da descrio de alguns desses circuitos, como o do rock alternativo, dos CTGs (Centros de Tradies Gachas), do forr eletrificado de Fortaleza, do mangue beat, do movimento hip hop, do funk carioca e da cena baiana.

Embora durante os anos 90 a indstria do disco tenha alcanado extraordinrio desenvolvimento no pas e atingido, como vimos no incio dessa introduo, os mais altos nveis de produo de sua histria, uma nova e grave crise marca o final da dcada, prolongando-se at o presente. Por isso, busquei tambm empreender uma breve discusso acerca dessa nova crise, refletindo acerca de seu impacto sobre a dinmica atual da indstria e sobre o modelo de crescimento consolidado na ltima dcada. Encerram essa quarta parte dois textos relativamente autnomos dedicados aos temas da da Distribuio e da Pirataria cruciais para a compreenso do cenrio nacional com que busco fechar toda a minha discusso acerca da indstria.

A ltima parte da tese dedica-se basicamente a uma apresentao da produo musical em si. Ela iniciada com uma tabela que, constituda por mim a partir de dados do Nopem 8 relativos aos 50 discos mais vendidos anualmente no eixo Rio-So Paulo (cidades) entre 1965 e 1999, busca identificar os principais segmentos do mercado fonogrfico nacional durante o perodo. A partir desses dados, ofereo uma breve descrio de cada segmento, de seus principais artistas, dos perodos de maior presena no mercado, etc.

Segue-se a essa descrio, um texto dedicado especificamente produo da msica religiosa nacional. Certamente o mais tradicional e bem estruturado dos circuitos autnomos nacionais, a msica religiosa parece constituir-se como uma

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Entendo o termo local aqui no apenas num sentido geogrfico, mas tambm religioso, socioeconmico, tnico, etc. O Nopem uma empresa carioca de pesquisa de mercado criada em 1965 que trabalha exclusivamente com a rea fonogrfica.

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espcie de microcosmo do mercado de discos, sintetizando muitas das tendncias discutidas ao longo desse trabalho.

Finaliza essa parte a despretensiosa banda sonora que acabei elaborando ao longo de pesquisa. O primeiro dos 2 CDs que a integram dedicado a oferecer uma breve amostra da extraordinria diversidade musical que o pas, ainda que de modo pouco visvel, tem a nos oferecer. J o segundo contm vrios exemplos da msica religiosa produzida atualmente no pas (tanto catlica quanto protestante) e serve, basicamente, como uma ilustrao do texto apresentado.

A tese complementada, ainda, por dois anexos. O primeiro deles dedicado reunio de um amplo conjunto de dados estatsticos relacionados indstria fonogrfica nacional e mundial, inclusive aqueles que foram apresentados de forma fragmentada ao longo do trabalho. O segundo, intitulado As Gravadoras e Suas Associaes, oferece uma rpida descrio de muitas das gravadoras atuantes do pas, de empresas a elas relacionadas e das principais entidades nacionais e internacionais que as congregam ou regulamentam o mercado musical.

H duas observaes complementares a serem feitas. A primeira refere-se ao termo selo (label), que ser utilizado amplamente ao longo desse texto. A expresso derivada dos rtulos coloridos e chamativos que eram afixados aos compactos de 45 rpm que comearam a ser utilizados nos EUA e na Inglaterra em finais dos anos 50 como estratgia de promoo dos LPs. (Posteriormente), o termo passou a distinguir os vrios departamentos que estavam sendo criados na poca para cuidar dentro das gravadoras de diferentes gneros musicais como o jazz, o rock, o pop, a msica erudita, etc (Gueiros, 1999: 377). No mercado nacional, entretanto, muito comum que se denomine como selos tambm s pequenas empresas independentes, ficando gravadora reservado para as mdias e grandes. Em funo disso, o termo acabou sendo utilizado nesses seus dois sentidos ao longo do presente texto.

A segunda observao diz respeito aos dados estatsticos que apresento. As gravadoras usualmente no tornam pblicos os dados relativos ao seu faturamento.

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Quando muito, limitam-se a divulgar as vendagens de artistas especficos casos em que as possibilidades de ocorrerem exageros e manipulaes no podem, jamais, ser descartadas. Em funo disso, nunca tive a pretenso de apresentar dados de empresas individuais nesse trabalho, baseando-me sempre em relao aos nveis de produo e s vendas nas estatsticas fornecidas pela ABPD (Associao Brasileira dos Produtores de Discos) e pelo IFPI. Tive o cuidado, ainda, de assinalar as restries a esses dados que considerei relevantes 9 . J sobre as paradas de discos, utilizei-me exclusivamente os dados do Nopem, j que os do Ibope (ao que eu saiba, nica outra fonte existente) ainda no se encontram totalmente disponibilizados para consulta no Arquivo Edgar Leuenroth, da Unicamp.

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No fcil falar de msica num tempo e num pas de tantas dores. Tive esse privilgio graas a confiana e ao apoio irrestrito de Waldenyr Caldas, meu orientador. Espero ter estado altura de suas expectativas. O longo e indigesto (mas, espero eu, consistente) texto que se segue s pde vir luz graas ao excepcional apoio financeiro da FAPESP Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo que no apenas me garantiu tempo e segurana suficientes para abraar essa empreitada, como os meios necessrios para a aquisio dos livros e levantamentos aqui utilizados.

Tive a honra de abusar mais uma vez a exemplo do que venho fazendo desde a poca de minha iniciao cientfica, no curso de Msica Popular da Unicamp da enorme generosidade e apoio de Jos Roberto Zan, traduzida em crticas e sugestes extremamente valiosas. Alm dele, Cristina Costa (ECA), George Ydice (NYU) e Renato Ortiz (Unicamp) transmitiram-me o melhor sentido da tradio acadmica na forma de sua considerao, disponibilidade, respeito pela divergncia e desprendimento na partilha de seu conhecimento.

Aos meus professores do Mestrado em Sociologia da Unicamp Octvio Ianni, lide Rugai Bastos, Walquria Freitas e o prprio Renato com quem descobri nos9

E que me levaram, por exemplo, a s incluir dados relativos a faturamento a partir do ano de 1991.

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textos tericos o mesmo rigor (e prazer) esttico que transpira das fugas de Bach, manifesto mais uma vez a minha permanente gratido.

No foram poucas as vezes em que me senti culpado, nos ltimos 4 anos, por viver satisfatoriamente enquanto fazia o que me deixava feliz. No afasto esse sentimento, nem rejeito o peso da responsabilidade social que me impe.

A viagem est finda, o portulano entregue.

So Paulo, outubro de 2001

Eduardo Vicente

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PARTE I A ORGANIZAO DO MERCADO FONOGRFICO INTERNACIONAL

The ultimate goal of corporate multinationals was expressed in a chilling statement by the president of Nabisco Corporation: "One world of homogeneous consumption. . . [I am] looking forward to the day when Arabs and Americans, Latinos and Scandinavians, will be munching Ritz crackers as enthusiastically as they already drink Coke or brush their teeth with Colgate." Peter Spellman

INTRODUO

Como j observei, a discusso que pretendo fazer acerca da indstria fonogrfica nacional parte da perspectiva da sua globalizao, ou seja, do seu acerto de passo com o padro tecnolgico, a configurao econmica e as estratgias de atuao mundialmente predominantes. Por isso, dedicarei essa primeira parte de minha pesquisa a uma discusso da atual configurao da indstria fonogrfica mundial, etapa que considero importante para uma melhor contextualizao do desenvolvimento da indstria do disco no Brasil e para a compreenso de sua dinmica atual.

Ao mesmo tempo, como entendo que muitas das mudanas pelas quais esse cenrio passou nas ltimas dcadas esto diretamente relacionadas a movimentos mais gerais da sociedade e da economia mundial, irei inicialmente discutir alguns de seus aspectos especialmente no que se refere ao papel cada vez mais central ocupado pelo aparato tecnolgico e expanso e reconfigurao das grandes corporaes transnacionais.

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1 A ORGANIZAO ECONMICAO conjunto de modificaes pelas quais a sociedade mundial tem passado nas ltimas dcadas tem sido discutido dentro de vrias tradies e merecido diferentes definies 10 . No por acaso, o tema da organizao econmica e, dentro dele, o papel das Corporaes Transnacionais (CTNs), tem sido destacado por vrios autores 11 . Mattelart as enfocou dentro do contexto do imperialismo, ou seja, a partir de seu papel como agentes das naes centrais promovendo a dominao cultural e ideolgica do mundo, proporcionando uma coerncia do universo da agresso econmica, militar e cultural (Mattelart, 1976: 143). J Galbraith define a sociedade industrial moderna como aquela onde o poder exercido no pelo capital, porm pela empresa, no pelo capitalista, porm pelo burocrata industrial (Galbraith, 1977: XXI). Entendo que a questo do imperialismo no seria um bom roteiro para a viagem atual. No se trata de negar o evidente desequilbrio entre pases, empresas e blocos, mas de entender o modo pelo qual corporaes como Time-Warner, Cisneros, Televisa, Rede Globo, etc, partilham vises estratgicas, modos de atuao, exportam valores culturais e, simultaneamente, exploram o repertrio musical domstico e distribuem o internacional nos pases onde atuam, em situaes nas quais predomnio cultural norte-americano e a centralidade do ingls surgem muito mais como elementos a serem levados em conta nas suas estratgias de atuao do que como objetivos a serem defendidos ou atacados. Alm disso, a questo do imperialismo tende como nos lembra Ortiz (1994) a dificultar nossa compreenso do processo de modernizao de sociedades perifricas.

J em Galbraith, a preocupao central a de tratar da questo dos grandes conglomerados industriais no sentido de apontar para o desequilbrio que tendem a provocar na estrutura da sociedade por sua crescente concentrao de poder refletida em maior controle sobre a regulao do mercado, sobre os hbitos do consumidor e sobre as polticas de Estado. Claramente preocupado com o futuro da revoluo keinesiana, Galbraith salienta ainda o crescente anonimato, burocratizao e10

Ortiz (1994) oferece uma boa introduo ao tema, principalmente no cap. I. Adoto a sigla CTN, cuja correspondente em ingls TNC, em conformidade com Sklair (1995).

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sofisticao tcnica da estrutura administrativa das empresas ou tecnoestruturas, como ele as denomina em oposio flagrante aos grandes imprios pessoais controlados por magnatas centralizadores como Ford, Rockefeller e Morgan, entre outros, que caracterizaram uma fase anterior do capitalismo.

Sabemos, evidentemente, que os temores de Galbraith concretizaram-se em ampla medida, levando a um importante rearranjo das esferas de poder na sociedade moderna. Seria preciso, ento, avaliar em que moldes ocorreu essa transio e quais suas implicaes dentro do universo das CTNs. David Harvey a descreve como sendo de um modo de produo fordista para um de acumulao flexvel. O quadro comparativo que nos oferece (Harvey, 1993: 165-169) bastante sugestivo e tomo a liberdade de reproduz-lo a seguir de forma parcial e condensada:

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Transio de:

Para:

FORDISMO

ACUMULAO FLEXVEL

Concentrao e centralizao do capital industrial, bancrio e comercial em mercados nacionais.

Desconcentrao do poder corporativo em rpido crescimento com relao aos mercados nacionais. Crescente internacionalizao do capital

Estreita articulao entre os interesses do Estado e os do capital dos grandes monoplios...

Crescente independncia dos grandes monoplios com relao aos regulamentos estatais...

Expanso de imprios econmicos e controle da produo e de mercados no exterior.

Industrializao de pases do Terceiro Mundo e desindustrializao de pases centrais, que se voltam para a especializao em servios

Busca de economias de escala atravs do aumento da dimenso da fbrica (fora de trabalho).

Declnio da dimenso da fbrica propiciado pela disperso geogrfica, pelo aumento da subcontratao e por sistemas de produo global.

Produo em massa de bens homogneos.

Produo flexvel e em pequenos lotes de uma variedade de tipos de produtos

Consumo de massa de bens durveis: a sociedade de consumo

Consumo individualizado.

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Embora essa reflexo de Harvey acerca da economia seja feita como embasamento para uma tese polmica e da qual pretendo me distanciar ou seja, a da transio cultural do modernismo para o ps-modernismo 12 entendo que ela ilustra bem vrios aspectos relevantes para a compreenso do cenrio. Renato Ortiz, ao discutir a viso dos intelectuais das grandes corporaes entende que, para eles, a passagem do fordismo para o capitalismo flexvel determinaria uma mudana do consumo e da administrao em escala mundial (Ortiz, 1994: 149). Teramos, no mbito do consumo, uma globalizao do mercado caracterizada pela passagem do capitalismo de uma fase de high volume para de high value, onde o que conta a fabricao de produtos especializados a serem consumidos por mercados exigentes e segmentados. Da a importncia de se incorporar novas tecnologias. Mas esses mercados, embora segmentados, so inequivocamente globais. Produo e marketing so redirecionados para a criao de demandas e produtos que sejam identicamente recebidos por consumidores de perfil semelhante em qualquer parte do globo. Com a produo pulverizada em unidades fabris espalhadas por todo o planeta (em especial nas regies onde a flexibilidade das legislaes trabalhistas e ambientais sejam favorveis aos interesses corporativos) e o consumo desterritorializado, a descentralizao hierrquica das administraes torna-se uma exigncia. Ao invs da pirmide de poder das multinacionais, com a maior parte da autoridade decisria emanando de um centro instaladado no pas sede da empresa, temos a administrao em rede das transnacionais, sem centro ou lealdade nacional definidos.

Mas essa capacidade de impor produtos e coordenar redes de produo, difuso e distribuio globalizadas exige um nvel extremamente alto de concentrao de poder e de eficincia administrativa por parte de cada empresa. Em tal contexto, a forma conglomerado acaba por se tornar a resposta natural s exigncias do mercado, com a concentrao das empresas tomando dois sentidos. De um lado, permitindo o controle oligopolista sobre as reas da produo e distribuio. De outro, possibilitando a associao de empresas diferenciadas, mas afins, (o que) multiplica a capacidade de

Giddens, no que seguido por Ortiz, v esse processo de mudanas no como ruptura, mas como a chegada a um perodo em que as consequncia da modernidade esto se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes (Giddens, 1991: 13).

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ao global (Ortiz, 1994: 165). Nesse segundo caso especialmente verdadeiro no que se refere produo de bens culturais o conceito-chave o de sinergia, com companhias capazes de usar o visual para vender o sonoro, filmes para vender livros, ou softwares para vender hardwares tornando-se as vitoriosas na nova ordem comercial global (Barnet e Cavanagh, 1994: 131). Estes objetivos alimentam um acelerado processo de fuses e aquisies que pode ser testemunhado quase diariamente tanto em mbito nacional quanto internacional. No caso especfico da indstria musical, o processo no s reduziu para apenas 5 o nmero de grandes gravadoras transnacionais que controlam o mercado mundial como associou praticamente todas elas a gigantescos conglomerados de comunicao 13 .

Um ltimo aspecto a ser ressaltado aqui o da tecnologia. Um amplo suporte tecnolgico assume fundamental importncia no s diante do imperativo da coordenao internacional e da flexibilizao produtiva, mas tambm enquanto fonte de uma ampla gama de novos produtos e servios, bem como de novas vias para a distribuio da produo (especialmente da cultural). A Internet um exemplo paradigmtico. A primeira experincia de interconexo entre computadores foi realizada nos EUA, com finalidades exclusivamente militares, ainda em 1968. Em 1989, mais de 20 anos depois, a rede atendia a um pblico predominantemente acadmico mas contava ainda com pouco mais de 50.000 usurios. Porm, a partir da, sua expanso acelera-se enormemente: em 1992 era superada a barreira de um milho de usurios e, em 1994, quando se chegava prximo a casa dos 4 milhes, o nmero de domnios comerciais (.com) superou o de educacionais (.edu) e empresas como a Pizza Hut, por exemplo, comeavam a oferecer servios comerciais atravs da rede (Kristula, 1997). Os anos seguintes testemunharam o crescimento exponencial da rede, com o surgimento de milhares de empresas ligadas produo de equipamentos e softwares de acesso, prestao de servios, etc. No caso especfico da msica, tanto o uso das tecnologias digitais de produo quanto das possibilidades de distribuio abertas pela Internet tm sido determinantes para a criao de novos segmentos musicais, formatos de udio, vias de distribuio e at mesmo para a definio das estratgias de atuao e para a poltica

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Apresentarei mais adiante a descrio dessas empresas.

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de fuses e aquisies das empresas temas que sero amplamente discutidos ao longo desse trabalho.

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2 A CONSOLIDAO DA INDSTRIA

Em minha dissertao de mestrado dediquei-me a uma descrio da constituio da indstria fonogrfica desde os seus primrdios. Meu foco, naquele momento, centrava-se na evoluo do aparato tecnolgico da indstria, cujo desenvolvimento poderia ser dividido em 4 fases: a mecnica, relacionada aos aparelhos reprodutores de cilindros e discos distribudos comercialmente a partir das ltimas dcadas do sculo passado; a eltrica, que se inicia a partir de 1925 com as primeiras gravaes das empresas Victor e Colmbia e marcada pelo desenvolvimento de tecnologias como a estereofonia (1931), o microssulco (que permite o surgimento dos LPs) e a gravao em fita; a eletrnica, que resultou da criao dos transistores e levou ao aprimoramento das tcnicas de high fidelity, ao desenvolvimento dos estdios multi-canais e de equipamentos portteis como os walkmans e os tapes automotivos e, finalmente, a digital objeto central de minha pesquisa caracterizada no s pelo surgimento do Compact Disc e de outros equipamentos digitais de gravao e reproduo de udio como tambm de uma vasta gama de hardwares e softwares que pulverizaram e, em boa medida, virtualizaram as atividades de produo musical (Vicente, 1996).

Ao longo desse itinerrio, tentei compreender tambm o impacto desses desenvolvimentos sobre a organizao da indstria e a diviso do trabalho de produo; sobre a criao de novos segmentos musicais; sobre a relao do msico com o aparato tecnolgico; etc. Busquei discutir estes temas a partir de uma perspectiva global, dando pouca nfase ao caso especfico do Brasil e de sua produo. mais ou menos esse o percurso que irei refazer nessa primeira parte de minha pesquisa, devendo inclusive retomar e atualizar alguns dos debates j citados. Porm, farei um corte histrico distinto do de minha dissertao, retomando essa discusso a partir j da segunda metade do sculo XX e enfatizando o papel das duas grandes crises que, a meu ver, marcaram o desenvolvimento da indstria, ajudando a determinar muitas das tendncias que caracterizam o cenrio atual.

A primeira dessas crises ocorreu ao final dos anos 50 e parece ter sido resultado da ineficincia do modelo de atuao da indstria em responder ao crescimento do

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mercado determinado pela expanso econmica do ps-guerra. Segundo Peterson e Berger, no perodo entre 1948 e 1955 de grande crescimento para o setor fonogrfico norte-americano as 4 maiores companhias do pas 14 controlavam 75% do mercado atravs de uma integrao vertical (vertical integration), onde a concentrao oligopolista da indstria fonogrfica era mantida por via do controle total do fluxo de produo, do material bruto venda atacadista e no atravs da contnua oferta dos produtos que os consumidores mais desejavam adquirir (Peterson e Berger, 1975: 161/162). Mas teremos, de 1956 1959, um desafio a esse predomnio: selos independentes como Atlantic, Chess, Dot, Imperial, Monument e Sun Records, atuando em segmentos desprezados pelas grandes gravadoras (como o Jazz, o Soul, o Gospel, o Rhythm & Blues e o Country & Western), vo passar a ocupar maiores parcelas do mercado e levar novos artistas como Little Richard, Fats Domino, Chuck Berry e Bo Diddley, entre outros, s posies predominantes no cenrio musical (idem, 164). Esse momento de redefinio de posies no meio fonogrfico deve-se a diversos fatores. No mbito da produo musical, teremos o surgimento dos primeiros gravadores que, reduzindo os custos de produo, facilitam a criao de novos selos 15 . Alm disso, Peterson e Berger vinculam o sucesso destas empresas tambm ao surgimento da televiso e entrada das empresas cinematogrficas no campo da produo musical fatores que acabaram por tirar das 4 maiores gravadoras significativa parcela de seu controle sobre os meios de divulgao. Mas a concluso principal desses autores a de que a integrao vertical acabou por se mostrar uma estratgia ineficiente para o atendimento a um mercado mais segmentado gerando, como consequncia, uma situao de demanda insatisfeita que criou condies para a atuao e consolidao de novas empresas no cenrio.

De 1956 at o final da dcada de 60, o afluxo de novos artistas e empresas ao mercado ser intenso e vale aqui deixando um pouco de lado a questo da concentrao atentar para algumas caractersticas do extraordinrio crescimento ento experimentado pela indstria fonogrfica. O dado mais evidente o de que teremos, no

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Essas empresas eram RCA Victor, Columbia, Decca e Capitol (Peterson e Berger, 1975: 160). Entre 1948 e 1954 surgiram nos EUA mais de mil selos (Paiano, 1994: 183).

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contexto da prosperidade econmica do ps-guerra e da agitao contracultural dos anos 60, a emergncia de um mercado jovem que se tornar o espao privilegiado do consumo musical 16 . O crescimento ser realmente impressionante, com as vendas no mercado norte-americano saltando de US$ 48 milhes em 1948 para US$ 2 bilhes em 1973 ((Peterson e Berger, 1975: 163). Alm disso, a expanso mundial da televiso, o surgimento dos primeiros satlites de comunicao e fenmenos como a beatlemania daro uma feio mundializada a esse crescimento, influenciando os padres de produo e consumo musical em praticamente todo o mundo. Teremos ainda uma intensa experimentao e diversificao musical dentro do prprio rock, da qual o lbum Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles, o exemplo mais emblemtico. Este trabalho ser marcante em diversos sentidos. Em primeiro lugar, o primeiro disco de repercusso a lanar mo sistematicamente das tcnicas de gravao em multicanais 17 . Em segundo, faz uso desses recursos dentro da concepo inovadora de criar um trabalho fonogrfico que no pode ser reproduzido em apresentaes ao vivo. Tal opo confere uma maior autonomia tcnica e artstica produo do disco, abrindo uma nova etapa na relao entre msica e tecnologia 18 . Finalmente, o lbum apresenta uma integrao temtica e sonora entre suas faixas que o torna, provavelmente, o primeiro disco conceitual j produzido 19 . Alm de seus mltiplos sentidos artsticos e musicais, tal inovao tem tambm um importante significado comercial: o do crescimento da importncia do LP em relao ao compacto simples (single) no mercado jovem. Os compactos haviam sido, desde o incio, o principal formato para a venda de rock. Porm, a partir de 67, teremos um constante declnio de

Em 1950 o comprador mdio de discos no pas tinha 30 anos; em 1958, 70% dos discos so vendidos para teenagers (13 a 19 anos) (Paiano, 1994: 184). Fao uma descrio pormenorizada dessas tcnicas, cujo uso se tornar predominante da em diante, no captulo I de minha dissertao de mestrado. Um agradvel relato sobre a gravao do disco fornecido por George Martin, seu produtor, e por William Pearson em Paz, Amor e Sgt. Pepper, Rio de Janeiro, Relume Dumar, 1995. Tal recurso ser, como sabemos, adotado e radicalizado por diversos outros artistas e grupos musicais a partir dos anos 70.19 18 17

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suas vendas em relao aos LPs e um correspondente aumento da lucratividade da indstria (Paiano, 1994: 188) 20 .

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No prspero cenrio dos anos 60, a ao das grandes companhias para restabelecer seu controle sobre o mercado ser desenvolvida tanto atravs da contratao dos novos artistas surgidos em gravadoras independentes quanto da aquisio das prprias gravadoras, que acabam por se tornar departamentos relativamente autnomos (selos) dentro das majors. Como resultado desse processo de reconcentrao da indstria, em 1973 apenas duas indies (a Motown e a A&M Records) ainda conseguem se manter entre as 8 maiores companhias norte-americanas (Peterson e Berger, 1975: 169) 21 . O controle dessas grandes empresas sobre o mercado, porm, no ser mais mantido atravs da estratgia de integrao vertical. Ao contrrio, as majors passam a contar agora com uma ampla gama de artistas sob contrato atravs de seus selos subsidirios podendo, (assim), tirar vantagem de toda mudana de gosto dos consumidores (idem, 169). Assim, em vez do sistema fechado de produzir tudo em casa dos anos 40 e 50, (as grandes empresas) estabelecem agora um sistema aberto, atravs do qual incorporam ou distribuem a produo de selos semi-autnomos ou estabelecem um vnculo com selos independentes menores e produtores de discos independentes (Lopes, 1992: 57). Essa estratgia lhes garante tanto o monoplio da fase final da produo e distribuio de msica popular quanto as condies para atender ao imprevisvel do mercado musical e assegurar que novos artistas e gneros sejam rapidamente colocados sob seu efetivo controle (idem: 57).

No mercado britnico as vendas de LPs superaram as de singles em 1968 (Paiano, 1994: 188). No norte-americano, a participao dos singles no mercado caiu de 37% em 1973 para 24% em 1980 e 12% em 1988 (Lopes, 1992: 58).21

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Posteriormente ambas foram vendidas e hoje integram a Universal Music Group. Dentre as estratgias para a retomada do controle do mercado por parte das majors Fredric Dannen (1991) aponta ao menos indiretamente a institucionalizao e encarecimento da payola, ou seja, do pagamento de gratificaes aos DJs para a veiculao das msicas. Subentende-se, pelo relato de Dannen, que a exagerada elevao dos valores pagos transformou o mecanismo da payola muito mais numa barreira ao acesso das indies s maiores rdios do que propriamente numa forma (ilegal) de divulgao musical.

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Alm do inegvel sucesso da estratgia do sistema aberto, tambm favoreceu o processo de reconcentrao monopolstica da indstria a pesada crise que, ao final dos anos 70, interrompeu aquele que havia sido o seu mais longo perodo de prosperidade. A partir de uma pesquisa baseada na lista de discos mais vendidos da revista Billboard, Paul Lopes constata que o mercado de LPs mostrou, entre 1969 e 1990, o crescimento da participao das 4 maiores empresas de 54,5% para 80,5%, e das 8 maiores de 80,5% para 96% (Lopes, 1992: 60). Alm disso, os maiores selos independentes remanescentes... entregaram sua distribuio e cederam direitos de produo s grandes gravadoras. O controle por parte das 6 maiores companhias de discos sobre os direitos de distribuio estendeu-se sobre virtualmente toda a msica gravada que se produziu nos Estados Unidos (idem, 60).

Mas, uma vez reconhecido o processo de reconcentrao do mercado, gostaria de voltar-me agora para uma anlise mais minuciosa dessa nova crise da indstria e das estratgias desenvolvidas pelas majors para a sua superao.

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3 A INTERNACIONALIZAO DO CONSUMO

Diferentemente do que havia ocorrido nos anos 50, o que se diagnosticava agora no era a formao de uma demanda insatisfeita, mas sim uma saturao do mercado domstico. Vrias razes so apontadas para explic-la. Simon Frith fala no envelhecimento da populao, no desemprego acarretado pela recesso econmica e mesmo em mudanas nos hbitos de consumo dos jovens, que no apenas passaram a registrar em seus gravadores domsticos muito da msica que ouviam (em lugar de adquirir LPs) como tambm a dividir recursos antes canalizados prioritariamente para a msica entre diversas fontes de entretenimento como computadores pessoais, videocassetes e videogames (Frith, 1992: 67). Musicalmente, o perodo da crise reflete ainda tanto o desmantelamento do cenrio do rock provocado pela onda punk quanto a emergncia e rpido esvaziamento da era disco.

De qualquer forma, os nmeros da crise so expressivos: o faturamento da indstria caiu em 12%, de mais de US$ 4,1 bi em 1978 para menos de US$ 3,6 bi em 1982. No resto do mundo ocorreu o mesmo, com uma queda de 18% no faturamento (de US$ 11,4 bi em 1980 para US$ 9,3 bi em 1983). Era uma retrao dramtica para uma indstria que mais que dobrara seu faturamento nos 5 anos anteriores (Garofalo, 1993: 20).

A recuperao econmica da indstria, que se d a partir de 84, envolve diversos fatores pertinentes para este debate. O primeiro deles ser o da sistemtica explorao do mercado externo como condio intrnseca de crescimento (idem: 19) de modo que, ao longo dos anos 80, gravadoras como CBS, WEA, EMI e PolyGram j anunciavam que mais da metade de seu faturamente vinha de suas divises internacionais (Burnett, 1996: 48). Essa investida ao mercado externo acontecia de duas maneiras. De um lado, pela explorao do repertrio domstico destes pases atravs das vendas de artistas como Julio Iglesias, Roberto Carlos, etc, de grande repercusso local mas inexpressivos dentro do mercado norte-americano. Do outro, atravs de artistas e lbuns que no mais visavam especificamente o mercado norte-americano (como usualmente acontecia), mas que obtinham enorme alcance internacional. Nomes como Michael Jackson, Madonna e

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Whitney Houston, por exemplo, atingiram esse objetivo realizando grandes turns mundiais e produzindo lbuns de vendagem internacional macia. Thriller, de Michael Jackson, lanado em 1983, foi o mais bem sucedido destes trabalhos, vendendo mais de 40 milhes de cpias em todo o mundo (Garofalo, 1992: 20). Nesse sentido, a recuperao da indstria ocorreu muito mais atravs das vendas macias dos trabalhos de uns poucos artistas (blockbusters) do que propriamente de um fortalecimento da cena musical como um todo (Burnett, 1996: 45).

O alcance internacional e a dimenso do sucesso desses artistas valeu-se tanto dos vultuosos gastos em divulgao que a grande concentrao econmica do mercado musical tornava possvel quanto da penetrao mundial das tecnologias de comunicao e consumo musical (satlites, televises cabo, gravadores, videocassetes, CD players, etc). Verificou-se, ainda, um nvel indito de integrao entre som e imagem

sintetizado pelo uso intensivo videoclipe. Embora as principais gravadoras norteamericanas fizessem videoclipes desde os anos 70 para promover seus artistas no Reino Unido e na Europa Ocidental, onde shows televisivos eram a mais importante forma de promoo musical, o formato s se tornou dominante no prprio mercado norteamericano a partir do surgimente da MTV uma emissora por cabo que transmite videos musicais 24 horas por dia ocorrido em agosto de 1981 (Banks, 1998: 293) 22 . Ao impulsionar fortemente a revitalizao do mercado, o videoclipe iria assumir grande importncia dentro do mbito da indstria, levando inclusive criao de departamentos especficos para a sua produo. Como consequncia, o apelo visual dos artistas adquiriu um peso bem mais significativo na constituio do star sistem, de forma que enquanto somente 23 dos Top 100 Hit Singles listados pela Billboard em maio de 1981 possuam clipes, este nmero chegava a 82 em maio de 1986 e a 97 em dezembro de 1989 (idem: 293) 23 .A MTV controlada pela Viacom e tornou-se a TV a cabo de mais rpido crescimento no mundo. At a metade dos anos 90 ela atingia 320 milhes de lares em 90 pases e nos 5 continentes. Alm da norteamericana, fazem parte da rede as MTVs da Europa (surgida em 1987), Brasil (1990), sia (1991), Japo (1992) e Amrica Latina (1993) (Burnett, 1996: 96). Banks (1998) destaca ainda que a nova forma de divulgao ligada ao advento da MTV levou a uma concentrao ainda maior do mercado pois, alm dos altos custos envolvidos na produo dos videoclipes, acordos entre as majors e a MTV limitaram fortemente o acesso das indies ao novo veculo de divulgao.23 22

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Finalmente, preciso destacar que outro fator de extrema importncia para a recuperao da indstria foi o lanamento do compact disc. Chegando ao mercado no incio dos anos 80, os CDs possibilitaram tanto o relanamento dos catlogos antigos das grandes gravadoras quanto um aumento nos preos dos produtos vendidos, de modo que em 1988 quando a indstria j se mostrava em franca recuperao o nmero de CDs vendidos mundialmente superava pela primeira vez o de LPs 24 .

4 O CENRIO ATUAL

O quadro de desenvolvimento seguro da indstria, verificado a partir de 84, no se alterou significativamente at o presente. Embora tenham sido registradas pequenas perdas de volume e valor nos ltimos anos, os levantamentos de 99 do conta de vendas mundiais da ordem de quase 3,5 bilhes de suportes, com um valor de varejo estimado em 38,5 bilhes de dlares. Em relao ao ano de 1991 esses nmeros representam um crescimento de 19,5% em unidades e 40,1% em valor (IFPI, 2000: 7) 25 . A tabela abaixo ilustra melhor esse cenrio:

Em 91, no mercado norte-americano, foram vendidos apenas 14,8 milhes LPs contra 362,9 milhes de CDs. As vendas mundiais de LPs foram, no mesmo ano, de 291,6 milhes de unidades, contra os 1,2 bilhes alcanados em 1981. Em 1999, o volume mundial de vendas caiu ainda mais, para apenas 15,6 milhes de unidades (IFPI, 1999: 9).25

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A diferena entre os percentuais de crescimento em unidade e valor explicada pela maior participao alcanada pelo CD que mais caro do que o vinil no mercado mundial. Essa participao, que era de 34,4% das unidades em 1991, chegou a 70,4% em 1999 (IFPI, 2000: 7).

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Tabela I - Vendas da indstria fonogrfica mundial 1991-1999 (Fonte: IFPI)

Ano 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999

Total unidades (mi) 2,893.3 2,953.6 3,045.5 3,317.8 3,360.3 3,526.9 3,488.0 3,462.1 3,459.4

Total vendas (U$ mi) 27,476.2 29,464.1 31,158.0 36,124.0 39,717.3 39,812.0 38,530.2 38,236.7 38,506.5

Embora esse quadro promissor tenha sido basicamente construdo a partir das estratgias j discutidas, ser necessrio ainda atualizar o cenrio da indstria em alguns aspectos. Com esse objetivo, gostaria de iniciar esse captulo retomando o debate acerca da concentrao econmica na indstria do disco e tentando, agora, discutir o sentido tomado pelas estratgias de fuso e aquisio das grandes empresas. Depois, gostaria de discutir a forma pela qual o sistema aberto tem se consolidado dentro do modelo atual principalmente em funo dos recursos tecnolgicos hoje disponveis e qual o seu impacto na relao entre majors e indies. Finalmente, gostaria de analisar as possveis crises e pontos de tenso que podem estar se desenvolvendo dentro do modelo atual.

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4.1 A Concentrao Econmica 26

A concentrao econmica no campo da produo musical (e do audiovisual como um todo) no um fenmeno recente, sendo que em princpios do sculo XX cinco companhias dominavam o mercado mundial de msica gravada (Flichy, 1982: 23). Estas grandes companhias se caracterizavam pela integrao hardware/software, fabricando tanto os discos e/ou cilindros como seus aparelhos leitores 27 . Vale observar que, nestes primeiros momentos da indstria, a venda de suportes sonoros funcionava muito mais como um atrativo para a comercializao dos aparelhos reprodutores do que como negcio autnomo. No havia, portanto, grande preocupao com respeito a escolha do que tocar, uma vez que qualquer som mecanicamente reproduzido apresentava interesse para os ouvintes.

Porm, mesmo quando a consolidao do mercado aumentou a importncia da contratao e gravao de novos artistas e, portanto, da montagem do catlogo da gravadora, a integrao hardware/software permaneceu. Foi, como vimos, o perodo da integrao vertical das empresas, quando elas controlavam todas as fases da produo musical, fabricao e distribuio dos discos. Assim, Flichy observa que, quando da primeira mudana importante de padro dos suportes de 78 para 33.1/3 rpm, ocorrida em 1948 mantinha-se um cenrio onde os grandes editores fonogrficos da poca que pertenciam, tambm, a grandes grupos fabricantes de produtos eltricos e eletrnicos puderam, efetivamente, lanar simultaneamente no mercado o disco e seu aparelho de leitura (Flichy, 1982: 24).

Mas se nessas dcadas iniciais a integrao foi necessria para o desenvolvimento simultneo dos equipamentos e suportes musicais, posteriormente, as empresas abandonaram as atividades bidirecionais em favor da difuso unidirecional,

Estou, neste tpico, retomando de forma resumida e atualizada um debate j desenvolvido em minha dissertao de mestrado (Vicente, 1996: cap. II).27

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Edson, nos EUA, e Path, na Frana, comercializavam cilindros. A Victor Records (EUA) e o grupo Gramophone (com sedes na Inglaterra e Alemanha) haviam se especializado no campo discogrfico. J a Columbia norte-americana comercializava ambos os suportes (Flichy, 1982: 23).

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com o objetivo de alcanar mais rapidamente um mercado de massas... Ainda que Edson ou Path se vissem obrigados a produzir o software necessrio para que suas mquinas pudessem ser utilizadas, atualmente os empresrios da eletrnica podem apoiar-se no software existente (disco, rdio, televiso) para comercializar suas novas tecnologias (Flichy, 1982: 123). Desse modo, no final dos anos 70, apenas dois dos 10 editores fonogrficos mais importantes (Phillips e RCA), haviam mantido a integrao das atividades de produo de hardware e software e esta no parecia constituir vantagem decisiva com respeito aos outros grupos (Idem: 41).

Talvez num primeiro momento o prognstico de Flichy tenha se mostrado acertado, mas uma anlise das duas dcadas seguintes expe uma realidade bem mais complexa. Primeiramente, a integrao entre hardware e software parece ter sido decisiva para o sucesso da Phillips na disputa que esta e a Sony empreenderam, ao final dos anos 70, pela consolidao de um padro de vdeo domstico 28 . Posteriormente, a Sony adquiriu a CBS Records (1987) tornando-se, ela prpria, uma empresa integrada deciso estratgica que parece ter preparado o lanamento no mercado de seus novos formatos digitais de udio gravveis: o DAT e, posteriormente, o MD (Barnet e Cavanagh, 1994). Escrevendo nos anos 90, Renato Ortiz no s sustenta que a associao de empresas diferenciadas, mas afins, multiplica a capacidade de ao global como tambm que provavelmente, o exemplo mais significativo deste tipo de fuso seja o casamento hardware/software. Sony/Columbia, Matsushita/MCA e Phillips/A&M Records conjugam a dinmica de grupos dominantes do setor eletrnico com a mdia. Cultura e infra-estrutura se apiam mutuamente (Ortiz, 1994: 165).

Atualmente, dos 3 exemplos apresentados por Ortiz, apenas a Sony mantm o casamento 29 , mas gostaria de deixar para discutir mais adiante esse que aparenta ser um novo enfraquecimento na relao hardware/software. Mais do que essa relao, o que Ortiz nos coloca aqui o tema da sinergia, ou seja, da integrao das empresasA Sony defendia o padro Betamax e a Phillips o VHS. O sucesso dessa ltima atribudo ao fato de que haviam, na poca, mais ttulos disponveis para distribuio em VHS do que em Betamax (Dannen, 1991: 137). Tanto a Matsushita quanto a Phillips se desfizeram de suas divises musicais. Adquiridas pela Seagram elas passaram a integrar a Universal Music.29 28

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em conglomerados de atuao mltipla. E sob esse aspecto mais amplo que deve ser repensado o debate da concentrao econmica no cenrio atual. Como observa George Ydice, as grandes gravadoras j no podem mais ser compreendidas como simples produtoras e distribuidoras de msica, mas sim como conglomerados globais de entretenimento integrado que incluem a televiso, o cinema, as redes de lojas de discos, produtoras de espetculos e, mais recentemente, a Internet e os sistemas de difuso por cabo e por satlite (Ydice, 1998). E de fato, ao final de 1998, das 5 majors que controlavam de 70 a 80% das vendas mundiais de discos, 4 pertenciam a conglomerados de atuao mltipla (Burnett, 1996: 18). Eram estes:

Sony Corporation (Japo): O grupo dividido entre a Sony Electronics Corporation, formada por fbricas de equipamentos eletrnicos como TVs, video games, VCRs, MDs, walkmans, etc, e a Sony Software Corporation composta, entre outros empreendimentos, pela Sony Music (antiga CBS norte-americana), pela Columbia Pictures e por emissoras de TV.

Bertelsman AG (Alemanha): O forte de sua atuao na rea de publicaes, editando revistas (como a Stern), jornais e livros 30 . Controla os canais de TV europeus RTL-Plus e Premire e a gravadora BMG (Bertelsman Music Group, cuja maior parte foi

composta atravs da compra da norte-americana RCA) (Burnett, 1996: 21).

Seagram (Canad), responsvel pela distribuio de bebidas como a vodka Absolut e o whisky Chivas Regal, o grupo constitudo ainda pela gravadora Universal Music (que, nascida da unio da PolyGram com a MCA, considerada a maior gravadora do mundo), pela Universal Studios e por emissoras e produtoras de TV.

Time-Warner Inc. (USA): Alm de ser o controlador da gravadora Warner Music e da editora musical Warner Chapell, o grupo atua no ramo editorial atravs de empresas como a Warner Books e a Time-Life Books e da publicao de revistas como Asiaweek, DC Comics, Fortune, Life, Money, People, Sports Ilustrated e Time entre muitas outras. Na produo cinematogrfica, atua atravs da Warner Bros, da Castle Rock

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Entertainment e da New Line Cinema, entre outras empresas. Na televiso (aberta, por cabo e satlite) atravs de canais e produtoras como Lorimar Telepictures, Warner Television, Hanna-Barbera Cartoon, CNN, Superstation, Cinemax, Turner Classic Movies, TNT, Cartoon Network, HBO, etc. Atua ainda na distribuio de filmes e discos e na fabricao de CDs, alm de possuir cadeias de lojas, rede de TV a cabo, satlites de comunicao, parques temticos, equipes esportivas e uma srie de outros empreendimentos 31 .

A nica das majors a ser apenas uma gravadora era (e continua sendo) a britnica EMI Music, responsvel por grande parte da produo fonogrfica europia. A empresa era, originalmente, parte do grupo Thorn-EMI Ltd surgido da aquisio do grupo de entretenimento EMI Ltd pela Thorn Electrical, em 1979 32 . Porm, em 96, como resultado de um longo processo de venda de ativos, a diviso de msica acabou por se desmembrar do grupo, passando a dedicar-se exclusivamente ao mercado fonogrfico 33 .

Esse quadro sofreria, no entanto, mudanas bastante expressivas nos anos seguintes. Em primeiro lugar, evidenciou a fragilidade da EMI (enquanto empresa de orientao nica) diante dos grandes conglomerados. Em 98, por exemplo, comearam a surgir boatos (no confirmados) acerca sua aquisio por parte da Seagram. No incio de 2000, a empresa foi envolvida em uma frustrada tentativa de fuso com a Time Warner 34 e, ao final do mesmo ano, iniciaram-se os entendimentos para uma nova

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A Bertelsman proprietria da Editora Crculo do Livro, presente em diversos pases. Este resumo foi extrado da relao completa de empresas do grupo fornecida por YDICE, George: La Industria de la Musica en el Marco de la Integracin Amrica Latina Estados Unidos: Conferncia apresentada no seminrio Integracin Econmica e Industrias Culturales en Amrica Latina y el Caribe, Buenos Aires, jul/98.

A Thorn Electrical a nova proprietria da marca EMI, Gazeta Mercantil, 08/11/79. A EMI atuava no s na rea de msica como tambm na de equipamentos mdicos de raio X.33

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EMI anuncia sua separao da Thorn, O Estado de So Paulo, 21/02/96. EMI e Time Warner desistem da fuso, Associated Press, 23/01/2000

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tentativa, dessa vez com a BMG 35 . O fracasso desse segundo empreendimento, noticiado no incio de 2001, deixou a empresa numa situao bastante vulnervel, tornando-se incertas as suas condies de sobrevivncia enquanto empresa independente no cenrio atual.

Alm disso, os ltimos anos do sculo forma marcados tambm pelo desenvolvimento do protocolo Mp3 que, ao permitir a digitalizao e transmisso de msica atravs da Internet, parece ter tido radical influncia sobre o sentido das estratgias de fuso das empresas fonogrficas 36 . A partir do Mp3, a relao software/hardware parece ter tomado um novo sentido o de uma relao entre os meios de acesso rede e a disponibilidade de contedos para distribuio digital 37 . Dois exemplos so significativos. Em primeiro lugar a fuso ocorrida em janeiro de 2000 entre a AOL (America On Line, o maior provedor de Internet do mundo) e o grupo Time-Warner. Esta unio congrega a Internet, a rede de TVs por cabo que pode possibilitar seu acesso em alta velocidade e os contedos publicaes, filmes, desenhos, seriados, informativos e, claro, msica a serem comercializados. Como uma aparente resposta estratgica a ela tivemos, em junho do mesmo ano, a compra do controle de todo o grupo canadense Seagram pelo grupo francs Vivendi. A Vivendi, alm de ser lder mundial em distribuio de gua (a empresa se chamou Generale des Eaux at 98) atua, entre outros, tambm nos setores de cinema, televiso e Internet destacando-se, nestes dois ltimos casos, a rede de TV a cabo europia Canal Plus e o portal de acesso Vizzavi 38 . Essas tendncias caminham no sentido da desmaterializao dos suportes e de uma indstria que dever passar a se concentrar muito mais na comercializao de direitos musicais e na obteno de royalties do que propriamente na venda de produtos (Burnett, 1996:46). Entendo que o acirramento das batalhas legaisBMG e EMI discutem fuso em Nova York, http://www.uol.com.br/folha/informatica, 14/11/2000 e EMI sacrifica sua independncia para ser mais do que uma simples gravadoras, O Estado de So Paulo, 25/01/00.36 35

Oferecerei mais adiante uma descrio mais detalhada acerca do MP3.

Evidentemente, as possibilidades de distribuio digital no se restringem msica e envolvem tambm vdeos, filmes, livros, etc. Foi o Mp3, no entanto, que desencadeou todo essa debate e, como veremos adiante, tambm a discusso acerca do controle sobre direitos autorais no mbito da rede.38

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Fuso do Grupo Vivendi-Seagram deve sair hoje, Folha de So Paulo, 20/06/00.

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em torno do controle sobre os direitos autorais e de distribuio musical verificado nos ltimos anos 39 vem confirmar essa tendncia de desmaterializao e, portanto, de transformao das gravadoras muito mais em provedoras de servios do que propriamente em indstrias de discos.

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Independente dos fatores que a influenciaram, foroso constatar que a constituio dos conglomerados favoreceu de forma ainda mais acentuada a integrao entre udio e vdeo e a promoo intensificada de uns poucos artistas e segmentos. Como observa George Ydice, a nova configurao das gravadoras em conglomerados de entretenimento a partir dos anos 80 tem sido acompanhada, como no cinema, por uma crescente lgica do blockbuster. Em lugar de aspirar a mltiplos lbuns que vendam bem, ou seja, recuperem seus investimentos e produzam um ganho regular, as majors preferem acertar com alguns poucos hits que vendam mais de US$ 100 milhes, como Jagged Little Pill de Alanis Morissette ou Lets Talk About Love, de Celine Dion... Para que um lbum venda nestas propores requerido um enorme investimento para promov-lo e integr-lo a uma variedade de formatos como pelculas, programas de televiso, videoclips, sites na Internet, etc (Ydice, 1998). As estatsticas de vendas de discos no mercado norte-americano ao longo de 1998 atestam a eficincia das estratgias sinrgicas e da integrao de udio e vdeo. Dos 10 lbuns mais vendidos no pas segundo o IFPI 40 , 5 estavam ligados de alguma forma a pelculas cinematogrficas de sucesso. Eram eles as trilhas dos filmes Titanic (Sony, 1 lugar), City of Angels (Warner, 6) e Armageddon (Sony, 10), alm dos lbuns de Celine Dion (Sony, 2) e Will Smith (Sony, 8) respectivamente a intrprete da cano tema de Titanic e um dos atores mais populares de Hollywood.

Msica na Internet acirra disputas judiciais Folha de S. Paulo, 26/04/2000; Novos softwares podem inviabilizar direito autoral, New York Times, 10/05/2000; Pirataria na Net ameaa indstria fonogrfica, Reuters, 03/03/2000; MP3.com considerada culpada por violao de copyright, IDG Now, 28/04/2000 e Artistas debatem direito autoral no Congresso, New York Times, 25/05/00. The Recording Industry in Numbers 99: the definitive source of global music market information, London, IFPI, 1999. Vale acrescentar que os EUA tm respondido, nos ltimos anos, por mais de 1/3 do consumo mundial de discos.40

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4.2 Majors e Indies

Como vimos, as gravadoras independentes passaram a ter grande importncia no cenrio musical a partir do final dos anos 50, com o surgimento do rock e a ruptura do sistema fechado. Acredito que tanto neste caso como em outros posteriores, o crescimento do cenrio independente possa ser diretamente relacionado a mudanas no patamar tecnolgico da indstria que provocam, via de regra, dramticas quedas nos custos de gravao e impresso de discos 41 . Simon Frith, por exemplo, aponta que foi o surgimento dos primeiros gravadores magnticos, ocorrido ao final dos anos 40, que permitiu a entrada de novos produtores independentes no mercado... Na metade dos anos 50, selos independentes dos EUA como o Sun Records eram to dependentes da queda dos custos de estdio como os selos punk britnicos do final dos anos 70, estes ltimos beneficiados pelos avanos tecnolgicos constantes e quedas dos preos de gravao (Frith, 1992: 61) 42 .

Ao mesmo tempo em que constatamos essa relao entre a vitalidade da cena independente e o patamar tecnolgico da indstria, acho foroso refletir sobre como as estratgias de sistema aberto adotadas pelas majors dependem, para o seu sucesso, de uma estrutura de produo independente bem articulada. Por conta disso, preciso compreender que tanto o fortalecimento da cena independente quanto a inovao tecnolgica no so necessariamente contraditrias com a concentrao do mercado e os interesses da grande indstria, j que as estratgias de atuao das majors claramente levam em considerao tais fatores. sob esse prisma que quero colocar tanto o desenvolvimento das tecnologias digitais de produo musical ocorrido a partir dos anos 80, quanto o extraordinrio crescimento da cena independente que o acompanhou. O que tivemos desde ento foi uma radicalizao do sistema aberto, com a grande indstria no apenas se associando a selos independentes na condio de divulgadora e

No se trata, obviamente, de negar a importncia de fatores econmicos, sociais e culturais envolvidos, mas de enfocar mais objetivamente a base tecnolgica sobre a qual se expressaram as mudanas. O autor refere-se aqui linha semi-profissional de gravadores multi-canais lanada em 1974 pela empresa norte-americana Teac-Tascam (Vicente, 1996: 69).42

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distribuidora de suas produes, como tambm iniciando um processo de desmantelamento de sua prpria capacidade de produo e terceirizando a quase totalidade dessa atividade. , portanto, no mbito do sistema aberto e da terceirizao da produo que o relacionamento entre majors e indies deve ser compreendido no cenrio atual.

Hesmondhalgh (1996), analisando a indstria fonogrfica britnica, identifica como sendo 4 as formas mais frequentes pelas quais se d essa relao: atravs do licenciamento internacional, por parte das majors, de artistas produzidos pelas indies; atravs de acordos de distribuio nacionais e internacionais; atravs da aquisio de parte do controle das empresas com manuteno da administrao original, ou ainda pela pura e simples incorporao das indies por parte das grandes gravadoras.

Embora seja uma relao de interdependncia ela , como se v, operada em termos claramente desiguais. A diviso de trabalho proposta por tal cenrio leva a um contexto no qual as indies prospectam mercados crescentemente especializados, cuidando da formao e promoo local de novos artistas 43 , enquanto as majors cuidam da divulgao e distribuio nacional e mundial daqueles que se destacarem. Porm, a partir do momento em que o nicho visado pela indie adquire relevncia no contexto global do mercado, a major pode simplesmente assumir o negcio 44 . Em qualquer caso, o crescimento das empresas independentes passa quase que inevitavelmente pelo estabelecimento de acordos de licenciamento ou distribuio com majors e, portanto, do aprofundamento da dependncia. Assim, embora as indies respondam por parcela cada vez maior da produo musical em si, isso no implica necessariamente numa condio de autonomia. Vejamos agora as condies em que essa situao se d.

Os altos custos de promoo levam muitos selos independentes da Europa e EUA a concentrarem-se na dance music que, por ser muito mais executada em clubes do que em rdios pode, a baixos custos, ser promovida e distribuda junto aos DJs (Burnett, 1996: 59). Stephen Lee (1995), oferece um relato bastante sugestivo sobre a relao entre majors e indies em seu estudo de caso acerca do selo independente norte-americano Wax Trax. Em relao ao caso brasileiro, diversos exemplos de relacionamentos sero oferecidos adiante.44

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4.2.1 Padres de distribuio, produo e consumo

A questo da distribuio um fator fundamental a ser considerado para a compreenso da atual estrutura do mercado fonogrfico internacional e ajuda a explicar porque a integrao vertical to frequentemente observada na indstria cultural (Hesmondhalgh, 1996: 481). Para Paul Lopes, a estratgia atual das principais companhias implica em seu exclusivo controle sobre a fabricao, a distribuio e o acesso aos meios de lanamento de discos (Lopes, 1992: 70). J Burnett aponta que, se nos anos 70, a indstria do disco confiou em larga medida numa srie de distribuidores independentes que agiam como intermedirios entre os fabricantes e os varejistas. Nos anos 80, o sistema de distribuio independente comeou a enfraquecer e cada vez mais selos pequenos e independentes como Arista, Motown e A&M passaram a ser distribudos por um dos grandes distribuidores (Burnett, 1996: 61). Pesquisas mais recentes apontam tanto para a crescente concentrao dos pontos de vendas sob o controle de grandes redes especializadas (du Gay & Negus, 1994), como para a concentrao das vendas em grandes magazines: fatores que favorecem ainda mais a atuao das majors.

J as estratgias sinrgicas de promoo macia, bem como o relacionamento privilegiado entre as majors e a MTV, garantem o controle destas tambm sobre as principais vias de acesso ao mercado e, portanto, primazia na definio dos padres de consumo. Alm disso, a integrao hardware/software em suas diferentes modalidades fornece-lhes, em razovel medida, as condies para definir os rumos da inovao tecnolgica, provendo novas oportunidades para o relanamento de seus catlogos responsveis por aproximadamente 40% de seu faturamento global (Burnett, 1996: 26) e a divulgao de seus contratados.

Desse modo, as majors estabelecem-se, inquestionavelmente, como as grandes instncias organizadoras do mercado fonogrfico mundial. Suas estratgias de atuao definem os espaos passveis de ocupao e a forma de ao das gravadoras independentes. Os gneros e artistas que privilegia em suas campanhas de divulgao macia to