murro em ponta de faca

36
OUT/2011 ANA TEIXEIRA / GAL OPPIDO / HÉLVIO TAMOIO / KISSO / BALLET STAGIUM / KURT JOOSS /

Upload: gustavo-domingues

Post on 28-Mar-2016

246 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

revista de arte, cultura e dança

TRANSCRIPT

Page 1: murro em ponta de faca

OUT/2011

ANA TEIXEIRA /GAL OPPIDO /HÉLVIO TAMOIO /KISSO /BALLET STAGIUM /KURT JOOSS /

Page 2: murro em ponta de faca

ÍNDICE/MURRO#01

02

CONSELHO EDITORIALGustavo DominguesMauro FernandoSandro Borelli

EDITORMauro Fernando

EDITOR DE ARTEGustavo Domingues

REPORTAGEMAna Carolina F. NunesIsabella Holanda

FOTOGRAFIALuciana Temer

COLABORADORESAna TeixeiraGal OppidoHélvio TamoioKisso

PRODUÇÃO EDITORIALCristiane Klein

04/ARTIGO DEFINIDO

Por Ana Teixeira

06/TRANSGRESSÃO Nº1

Kurt Jooss

08/TRANSGRESSÃO Nº2

Ballet Stagium

10/CAPA - POLÍTICAS PÚBLICAS

Por Mauro Fernando

20/INTERSECÇÃO

Por Mauro Fernando

22/DIAFRAGMA

Por Gal Oppido

28/ENTREVISTA

Fabiano Carneiro

32/OUTRA MARGEM

Por Hélvio Tamoio

34/BIBLIOTECA

35/EPÍLOGO

Por Kisso

Revista Murro em Ponta de Faca Rua Sousa Lima, 300B, Santa Cecília, São Paulo/SP, CEP 01153-020+55 11 3666 7238

Esta publicação integra o projeto “Muro de Arrimo”, contemplado pela 10ª Edição do Programa de Fomento à Dança / 2011.

Produção:

Realização:

Apoio:

Sugestões, reclamações, colaborações e comentários para Murro são bem-vindos pelo e-mail: [email protected]

Veja também a versão on-line da Revista Murro em Ponta de Faca:www.murroempontadefaca.com.br

Siga-nos no Facebook:facebook.com/murroempontadefaca

Foto capa: Gal Oppido

Page 3: murro em ponta de faca

EDITORIAL/MURRO#01

03

A DANÇA é uma das manifestações artísti-cas de menor visibilidade na mídia, tanto a impressa quanto a eletrônica. Os veículos de comunicação de expressão nacional dedicam pouca atenção à dança – o que não significa que ela seja uma arte menor, evidentemente –, e é preciso expandir o espaço existente.

Murro em Ponta de Faca, pois, visa preencher uma lacuna aberta pela mídia mais interessada em assuntos cujo imedia-tismo insano atrai leitores, ouvintes e teles-pectadores ávidos pelo consumo superficial da informação. Trata-se de um processo que revela uma sociedade apartada de valores humanistas e que a revista pretende questio-nar. O objetivo é estabelecer um debate que jogue luz sobre as especificidades da dança e que conduza a uma compreensão mais am-pla sobre suas necessidades.

Incluída em projeto da Cia. Borelli de Dança contemplado pelo Programa Munici-pal de Fomento à Dança da Cidade de São Paulo, a revista pretende discutir com pro-fundidade os aspectos que entrelaçam a dan-ça, em todos os seus estilos, características, etc., à sociedade contemporânea. Murro em Ponta de Faca entende que a dança utiliza como matéria-prima as patologias sociais contemporâneas – como fenômeno de subli-mação e como ato de reprodução – e se pro-põe como veículo que auxilie a detectar e a sobrepujar impasses.

A revista, enfim, não abre mão de abor-dar os assuntos com espírito crítico. É o caso da reportagem principal do primeiro núme-ro, que trata das políticas culturais públicas praticadas nos níveis paulistano, paulista e federal. Murro em Ponta de Faca detecta falhas graves na condução das políticas cul-turais relativas à dança – como a escassez de verba e a pouca inclinação ao diálogo – que inibem a produção dos artistas. E se posicio-na pela reelaboração das práticas nessas três esferas a fim de que se evite um estado de abandono completo.

A revista, que conta também com versão eletrônica (www.murroempontadefaca.com.br), traz colaboradores fixos e convidados. Os fixos são o fotógrafo Gal Oppido e o ex-coordenador da Representação da Fundação Nacional de Artes (Funarte) em São Paulo, Hélvio Tamoio.

Além de ser o responsável pelas fotos de capa e contracapa, Oppido responde pela sessão Diafragma, na qual mostra um recorte de sua obra. Profissional com diversas expo-sições no currículo e requisitado por artistas de variadas linguagens – assina, por exem-plo, a capa de CDs –, Oppido possui antiga ligação, como fotógrafo, com a dança.

Oppido também materializa a concepção de um personagem que irá percorrer as qua-tro edições planejadas conforme o projeto aprovado pelo Fomento. Interpretado por

Roberto Alencar, Vaslav surge na capa e na contracapa como uma figura algo inadequa-da, algo patética à procura de saídas para a crise estrutural em que a dança contemporâ-nea se encontra. Representa um rompimen-to com a estética tradicional do bailarino e sugere a necessidade de tomar posições.

Tamoio é o titular da coluna Outros Can-tos, na qual aborda as condições do fazer ar-tístico – da dança, especificamente – no in-terior paulista. Proprietário de texto jovial e inteligente – que guarda parentesco com um gênero literário de especial colorido, a crôni-ca –, Tamoio confirma a verve que o tornou conhecido na dança brasileira.

A ex-diretora assistente do Balé da Cida-de de São Paulo Ana Teixeira e o ilustrador Kisso são os convidados deste número. Com coragem, Ana analisa a questão das compa-nhias 2 de corpos oficiais. Kisso coloca seu traço a serviço de uma ideia política, em con-sonância com a reportagem principal.

Também alinhada com a reportagem so-bre políticas públicas está a entrevista com o coordenador de Dança da Funarte, Fabiano Carneiro. Murro em Ponta de Faca ain-da apresenta as sessões Transgressão 1 e 2, dedicada a iconoclastas dos palcos – Kurt Jooss e Ballet Stagium nesta edição –, e In-tersecção, voltada à conexão entre a dança e outras expressões artísticas. Além disso, há Biblioteca, com sugestões de leitura.

MURRO EM PONTA DE FACA

Page 4: murro em ponta de faca

ARTIGO DEFINIDO/MURRO#01

POR/ANA TEIXEIRA

04

LANÇAR LUZ sobre uma realidade bastan-te particular, no contexto das companhias públicas de dança brasileiras, que começa a se delinear a partir do final dos anos 1990, é a intenção deste texto. Trata-se de assunto delicado, que ficou à margem das discussões que norteiam o universo da dança dessas companhias: o surgimento das companhias 2(1), matrizes de uma nova forma de organi-zação profissional de bailarinos que atingem idade em torno de 40 anos. Implementadas, em geral, nesta época, pelos seus diretores, essas companhias se constituem com o bai-larino denominado de “intérprete-criador”, que faz da sua maturidade artística uma igni-ção para a conquista de novos caminhos para a sua carreira.

No Brasil, três companhias colocaram em prática esse perfil: o Balé da Cidade de São Paulo (BCSP/1968), o Balé Teatro Gua-íra (BTG-PR/1969) e o Balé Teatro Castro

Alves (BTCA-BA/1981). As rubricas desse novo espaço são respectivamente: Cia. 2 do BCSP, criada em 1999 (2) e extinta em 2009; Guaíra 2 Cia. de Dança (G2), também de 1999 (3); e BTCA 2, originado em 2004 e ex-tinto em 2007 (4) .

A problemática se inicia ao se observar a importância do posicionamento e do enga-jamento de uma instituição pública, de seus dirigentes e bailarinos em criar um segundo grupo, percebendo-se que, ao longo de suas trajetórias, ele nasce para justificar uma defi-ciência estrutural da administração pública, e não para dar continuidade, de fato, à atu-ação dos artistas veteranos. Tanto a Cia. 2 como o G2 e o BTCA 2 valeram-se da mesma atitude quanto às suas identificações: apro-priaram-se da mesma denominação da com-panhia-mãe, distinguindo-se delas apenas pela utilização do número “2” (5) ao final de sua designação. Nasceram tendo como mol-

de artístico o do NDT III (Nederlands Dans Theater III), da Holanda, que surge em 1991 e encerra suas atividades em 2006. Para o coreógrafo Jiri Kylián, diretor nesse perío-do, o grupo foi criado para dançarinos ex-perientes treinados na técnica clássica, com idade acima de 40 anos, com o objetivo de propor desafios artísticos apropriados para seus corpos em transformação, ampliando, assim, suas carreiras.

Ao longo da existência da Cia. 2, do G2 Cia. de Dança e do BTCA 2, pouco se soube ou se falou dessas companhias, para além do seu surgimento ou quando alguma criação ganhava destaque na cena da dança de suas localidades. Viviam em regime de pouca vi-sibilidade, pois a luz dos holofotes incidia, geralmente, sobre a companhia-mãe. Os re-gistros são vagos e insuficientes, e a maior parte das informações se encontra nos sites, em poucas críticas de jornais ou em alguns

A luta pela sobrevivência artística nas baias da administração pública

COMPANHIAS 2: UM PROJETO ARTÍSTICO OU UMA ARMADILHA?

Page 5: murro em ponta de faca

05

05

artigos dos livros comemorativos dessas companhias. Um fator determinante para o surgimento desse modelo vincula-se à forma de contratação dos artistas. No G2 Cia. de Dança, bem como no BTCA 2, os integran-tes, na grande maioria, são estatutários, quer dizer, funcionários públicos. Nesse caso, tanto no G2 como no BTCA 2, a companhia devia encontrar uma forma de propor a con-tinuidade dos bailarinos veteranos, sendo a criação da companhia 2 uma saída. Já na companhia 2 paulistana, o caso foi diferente: como a maioria dos artistas era contratada com “verba de terceiros”, ou seja, eram pres-tadores de serviço, sem vínculo empregatício com a municipalidade, o tempo de casa lhes conferia um paralelo ao regime estatutário, pois muitos lá estavam há mais de 20 anos.

Nos trechos extraídos de textos nas mí-dias eletrônicas de cada instituição, bem como de programas dos espetáculos, as ex-pressões “dança contemporânea”, “experiên-cia”, “intérprete-criador”, “criação coletiva”, “pesquisa de linguagem”, entre outras, são recorrentes, uma forma de justificar a sua existência no cenário artístico em vigor, ope-rando como uma espécie de passaporte que, muitas vezes, não legitimava, mas mascarava a natureza artística delas. A falta de um su-porte conceitual fez com que as companhias 2 se tornassem somente estoques de boas intenções, em vez de se constituírem em al-ternativa político-artística para a chamada longevidade, maturidade e continuidade de seus artistas. O fulcro dessa problemática parece estar na natureza da companhia- mãe e na complexidade da relação entre artistas, direções e a instituição pública.

Muitas questões são pertinentes e de-vem ser levantadas no intento de construir um projeto artístico para que o surgimento de companhias dessa natureza tenha uma função efetiva para a dança pública brasilei-

ra. Tornam-se fundamentais as perguntas: poder-se-ia almejar a criação de um espa-ço que tivesse outra função dentro dessas companhias? Isso realmente é necessário? O que pretendem os bailarinos que inte-gram esse tipo de estrutura oficial, no que diz respeito ao desdobramento de sua car-reira artística? Se eles estão há tanto tem-po no mesmo lugar, fazendo os mesmos trabalhos, discutindo a partir do padrão de conhecimentos inerentes a essas institui-ções, o que se poderá esperar deles nessa outra companhia? Será a idade condição suficiente para desenvolver um projeto que tenha na pesquisa o seu principal alicerce? Presumir que um estabelecimento público que mantém duas companhias deve consi-derar os mesmos modos de atuação artís-tica para elas, considerando unicamente como diferença entre elas o fator da idade, é desprezar a arte em suas possibilidades de produzir conhecimento. Ao mesmo tempo, querer vislumbrar um processo artístico que evidencie outro modo de fazer dança é não entender a singularidade dos bailarinos que compõem essas companhias.

É nesse panorama estrutural de com-panhia oficial que se pretendeu criar uma companhia 2. De 1999 até 2011, duas foram extintas e a única que sobrevive é o G2 Cia. de Dança, que mantém suas atividades em completa invisibilidade. Se houver interes-se de todos os envolvidos nessas questões, é possível que o sistema da oficialidade e os artistas deixem a contramão dos modelos que optaram por implementar, descorti-nando a deficiência estrutural que os rege e passando a fluir a partir de outros princí-pios. Assim, foge-se da pasteurização e faz-se emergir um referencial direcionador que contemple pluralidades em um sistema sin-gular, regido por descobertas que legitimem a importância de sua existência.

Ana Teixeira é artista, consultora e pesquisadora

na área da dança. Doutoranda em Comunicação e

Semiótica (PUC-SP – CNPq) e mestre pela mesma

instituição.

(1) - Salienta-se que, quando a

referência for relacionada à Companhia

2, como designação geral, manter-se-á

por extenso.

(2) - Criada pela ex-diretora da

companhia, Ivonice Satie (1951-2008).

O motivo que levou a Procuradoria

da Secretaria Municipal de Cultura a

interromper as atividades do grupo foi

por esta não ter sido constituída em

forma de lei.

(3) - Criado pela ex-diretora do Balé

Teatro Guaíra, Carla Heinecke.

(4) - Criada na gestão de Antonio

Carlos Cardoso, inicialmente era

chamada de Cia. Ilimitada e dirigida

por Carlos Moraes e Ivete Ramos. Em

2007, o Secretário de Cultura decidiu

permanecer somente com os bailarinos

estatutários, assim, fundiu-se as duas

comapnhias.

(5) - Ao empregarem o número “2” a

companhia matriz passa ser designada

com o número “1”.

A falta de um suporte conceitual fez com que as companhias 2 se tornassem somente estoques de boas intenções, em vez de se constituírem em alternativa político-artística para a chamada longevidade, maturidade e continuidade de seus artistas

Page 6: murro em ponta de faca

TRANSGRESSÃO Nº1/MURRO#01

POR/ANA CAROLINA F. NUNES

KURT JOOSS

06

DIZEM QUE das adversidades nasce a criatividade. A história da dança-teatro com-prova essa teoria popular. No cerne de uma Alemanha em ebulição sob a República de Weimar e um período pré-hitlerista, o co-reógrafo alemão Kurt Jooss (1901-1979) dá impulso a uma forma de exteriorizar, por meio da dança, angústias, sentimentos e in-certezas daquele período. A Tanztheater, ou dança-teatro, já havia dado seus primeiros passos por volta de 1917, pegando carona no forte movimento expressionista alemão, que teve como expoentes Bertolt Brecht (1898-1956) e Max Reinhardt (1873-1943).

Jooss, Rudolf Von Laban (1879-1958) e Mary Wigman (1886-1973) formam o tripé que fez o estilo dar um salto no fim dos anos 1920. Entre as escolas fundadas por Jooss, a que mais se destacou foi a Folkwang Schu-le, em Essen. Logo em suas primeiras pe-ças, Jooss já mostrava uma crítica à ordem social, levantando a bandeira das diferenças de classe em Big City. Em um período que a sociedade aplaudia o charleston, não foi difícil encontrar quem rejeitasse críticas tão diretas.

O ano de 1932 registra um marco para o estilo. Foi quando Jooss apresentou o espe-táculo A Mesa Verde, conquistando prêmio em Paris, posicionando-se politicamente e elevando a dança como forma de expressão do momento histórico e do pensamento, e adicionando ainda um toque de sátira. “Ti-nha de acontecer”, sentencia a bailarina, co-reógrafa e professora Sônia Mota. De acordo com ela, a peça deu-se “no momento certo, no contexto ideal e com equipe e encenações perfeitas”.

A Mesa Verde teve como cenário real um período posterior à maior crise econômico-financeira registrada no mundo e o início de um movimento político que culminou com a Segunda Guerra Mundial. Material abun-

AS QUESTÕES DA VIDA TRABALHADAS PELO CORPO

Page 7: murro em ponta de faca

07

dante para rechear o enredo da peça com guerra, dinheiro, morte e política. Na peça os bailarinos jogam o destino das nações sobre o pano verde. “É uma metáfora mui-to forte do panorama europeu daquele mo-mento”, explica a pesquisadora e professora Cássia Navas.

Sônia lembra que a dança-teatro traba-lha a cena por um ângulo mais psicológico do indivíduo, envolvendo questões pessoais e filosóficas, baseando-se em temas mais concretos e cotidianos. Nada mais concreto para os alemães daquela época que a guerra iminente e um horizonte sombrio.

Cássia conta que a companhia de Jooss, o Ballets Jooss, estava em Santiago, no Chile, quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial e não pode viajar logo de volta à Europa. “Al-guns de seus bailarinos se fixaram no Chile e fundaram, entre outros, a primeira gradua-ção em dança da América do Sul, na Facul-dade Nacional do Chile”, revela.

Claro que todo o envolvimento político e social do coreógrafo teria um preço. Até por-que juntou-se ao perfil vanguardista de Jooss uma parceria nada bem vista à época de uma Alemanha dominada pelo nazismo – o com-positor judeu Fritz Cohen, que assina a trilha de A Mesa Verde. Após receber a determi-nação de demitir e desfazer qualquer relação com judeus, Jooss se viu forçado a sair da Alemanha ao lado de outros companheiros, entre eles Cohen. Foi quando, em 1933, foi viver na Inglaterra, ajudando a disseminar a dança-teatro na ilha, retornando ao seu país natal somente em 1949.

Se Jooss abriu o caminho para que a dan-ça-teatro conquistasse seu espaço, sua aluna

mais ilustre, Pina Bausch (1940-2009), o pavimentou. A dançarina e coreógrafa ale-mã, que carinhosamente chamava seu tutor de Papa Jooss, apresentou o estilo ao mun-do ao incorporar elementos mais universais e populares, como dança de rua, política e cultura. “Ela agregou à dança-teatro ca-racterísticas mais modernas, mais atuais, reduzindo a mão pesada do expressionis-mo alemão e suavizando a maneira de se expressar pela dança”, explica Sônia. “Ela acreditava que Jooss lhe passou o rigor da comunicação de temas do homem e da mu-lher de cada tempo e o rigor na forma de expressá-los”, comenta Cássia.

Críticos são unânimes em afirmar que a pupila de Jooss soube dosar perfeitamente teatro e dança, transformando a expressão moderna do dançar a um ponto que não era mais o passo de dança que conduzia a narra-tiva, mas sim a psicologia, a filosofia e a cul-tura do momento encenado.

“Essa inclusão do viés psicológico teve sua virada no início dos anos 1930, quando Mary Wigman teve de adaptar-se à nova or-dem imposta pela Alemanha nazista, uma vez que não emigrou, e Pina soube explorar esse mote com maestria”, afirma Sônia.

Cássia classifica Pina como a grande criadora do século XX. “Não podemos ava-liar sua obra em separado, mas vale dizer que Café Muller teve sua importância por ser um marco introdutório, de uma beleza inaugural para todos”, detalha. “Para nós, brasileiros, apontaria como sua obra im-portante Água, que ela constrói a partir do Brasil, mas não sobre ele”, lembra.

Apesar de se manifestar no mundo in-

teiro e interferir no cinema e no teatro, o es-tilo ainda não encontra um expoente forte no Brasil, sendo mais frequente em países como Alemanha, Noruega e Dinamarca. “Na Alemanha a popularidade de Jooss é enorme, com biblioteca e museu dedicados a ele”, conta Sônia, que viveu por mais de duas décadas em Colônia. Ela destaca que o Japão é um dos países fora desse eixo que abraçou intensamente a dança-teatro.

Em território verde-amarelo, a dança-teatro pode não ter uma adesão massifica-da, mas Sônia aponta algumas das compa-nhias que fazem uso maior dos elementos do estilo, como 1° Ato e Zikzira, de Belo Horizonte, Terpsí, de Porto Alegre, Regina Miranda, do Rio de Janeiro, e Cisne Negro, de São Paulo.

“No Brasil as manifestações geralmen-te fazem apropriações de múltiplos estilos e elementos. É uma característica da nossa cultura produzir coisas miscigenadas e na dança não é diferente, por isso há muito espaço ainda para desenvolver algo funda-mentado na dança-teatro”, diz Sônia.

Já para Cássia existem criadores brasi-leiros que têm forte ligação com aspectos de uma narrativa teatral, como Sandro Borelli, de São Paulo, Renato Vieira, do Rio de Ja-neiro, e Lenora Lobo, de Brasília. “Algumas vezes, algum criador segue por essa verten-te, fazendo dela uma fase de sua trajetória, como Márcia Milhazes, no Rio”, aponta. Em São Paulo, diz, “temos uma emergência da dança-teatro pelas mãos da grande mestra Marilena Ansaldi, que trabalha peças de re-ferência como Escuta Zé Ninguém, baseado em Wilhelm Reich [1897-1957]”.

Se Jooss abriu o caminho para que a dança-teatro conquistasse seu espaço, sua aluna mais ilustre, Pina Bausch, o pavimentou

A Mesa Verde Pina Bausch

Page 8: murro em ponta de faca

TRANSGRESSÃO Nº2/MURRO#01

POR/ISABELLA HOLANDA

BALLET STAGIUM

08

A VOCAÇÃO DESBRAVADORA DO STAGIUM

POUCAS COMPANHIAS tiveram o pri-vilégio de integrar-se tão profundamente à história e à cultura brasileira quanto o Ballet Stagium. Fundado em São Paulo pelo casal Marika Guidali e Décio Otero, o grupo com-pleta 40 anos em outubro. Nas palavras da professora da PUC-SP e crítica de dança de O Estado de São Paulo, Helena Katz, o Stagium foi a primeira companhia a “dançar o Brasil”, levando espetáculos para os luga-res mais remotos e menos explorados ou que nunca haviam tido contato com a dança.

Helena afirma que a história da dança no Brasil se divide em antes e depois do Stagium e que suas influências são sentidas até hoje em outras companhias, como o Grupo Corpo. O Stagium difundiu a dança pelo país, promo-vendo a montagem de espetáculos de norte a sul. Ao incorporar a linguagem universal da dança com elementos das culturais locais, misturando-os às técnicas do balé e da dança moderna, o Stagium revolucionou padrões.

Para os integrantes da companhia, não importava se o palco era de chão batido, uma barca no Rio São Francisco, um hospital, um presídio, os rincões mais desconhecidos do Nordeste ou a periferia de São Paulo. O es-pírito de nacionalidade estava enraizado na origem da filosofia da companhia, e era dele que nascia a inspiração para as montagens. Nesse sentido, um das experiências mais marcantes ocorreu em pleno Xingu, quando os bailarinos exibiram-se para uma plateia de 400 índios em um improvisado palco de chão batido.

Page 9: murro em ponta de faca

09

da Orquestra Jovem do Teatro Municipal, da Universidade Federal de Juiz de Fora, do Te-atro do Estudante do Paraná e outros, entre os quais o maestro Carlos Eduardo Prates, regente, na ocasião, da Orquestra Filarmôni-ca de Berlim.

A partir daí, surgiram inúmeros proje-tos: Stagium Vai à Escola, Projeto Dança a Serviço da Educação e Projeto Stagium Leva Estudantes ao Teatro. O Projeto Joaninha, direcionado a estudantes de 7 a 14 anos de escolas públicas da periferia de São Paulo, nasceu em 1999. Em 1986, em comemora-ção aos 25 anos da companhia, outro sonho de Marika tornou-se realidade: a criação da Rede Stagium. Sob a coordenação da pesqui-sadora Cássia Navas, a ideia era implantar um projeto de incentivo à pesquisa e exten-são e de troca informações sobre dança.

O Stagium, aos 40 anos e com mais de 80 coreografias realizadas, decidiu voltar às raízes paulistanas e prestar homenagem a Adoniran Barbosa (1910-1982), em mon-tagem alusiva ao centenário de nascimento do músico que melhor cantou a urbanidade. Adoniran traduz, de forma brejeira e bem-humorada, o progresso, as dificuldades e as mudanças geradas pelo desenvolvimento da cidade de São Paulo. As comemorações em torno dos 40 anos devem prosseguir no de-correr deste ano, o que inclui Tangamente, espetáculo sobre a obra do bandoneonista e compositor argentino Astor Piazzolla (1921-1992). Mas, segundo a própria Marika, “ain-da são novidades”.

Na época, a convivência com as tribos indígenas provocou reflexões profundas no grupo, traduzidas no livro Marika Gidali, Singular e Plural, de Otero, escrito em ho-menagem à trajetória da artista. A própria Marika relembra a experiência no Norte do País, realizada em meados dos anos 1970: “Já dancei para gente pobre, miserável, gente que não tinha nada a não ser o seu trabalho. Mas essa foi uma experiência diferente, uma coisa mais pesada. Vi então que estamos no mesmo barco, que somos todos oprimidos”, revelou.

Com o título Kuarup ou A Questão do Índio, o espetáculo foi levado aos palcos das grandes cidades, percorrendo o território nacional e vários países. Estreou em 1977 – coreografia de Otero, direção de Marika e fi-gurino de Clodovil Hernandes (1937-2009).

A peça Navalha na Carne – o estilo cru do escritor e dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999) – entrou em cena em 1975, no Teatro Municipal de São Paulo. O texto, de 1967, foi transferido para a linguagem da dança antes de chegar aos palcos teatrais, traçando um retrato dos excluídos, dos bas-tidores do submundo e das mazelas do meio social. Censurado pelo conteúdo “altamen-te subversivo” pela ditadura militar (1964-1985), a obra chegou aos palcos da dança sob a direção de Ademar Guerra (1933-1993) e com outro nome: Quebradas do Mundaréu.

“Nessa época todo mundo estava calado. O próprio Plínio estava calado. Por isso, era preciso usar a inteligência para driblar a cen-

sura. Nunca fomos censurados. A dança era encarada de outra forma pela ditadura. Mas tivemos de usar a criatividade para evitar isso”, relembra Marika, que atribui a exis-tência do Stagium a fatores circunstanciais. “Precisávamos sobreviver, e a conjuntura histórica nos permitiu construir essa traje-tória. Tivemos a história ao nosso favor. O estilo do Stagium era justamente não seguir uma definição, mas o de difundir e de levar a dança aos vários públicos e lugares.”

O Stagium foi a primeira companhia a tocar em assuntos sensíveis em pleno regi-me militar, em tempos nos quais as limita-ções impostas pela censura impediam a livre manifestação artística. “Temas pouco discu-tidos, como racismo, violência, direitos hu-manos e até mesmo as questões da América Latina, faziam parte do repertório da com-panhia e tornaram-se revolucionários para os padrões da época. Foi também o primeiro grupo a dar voz aos grupos de excluídos, mis-turando as técnicas do balé clássico com as das danças populares”, explica Helena.

À companhia também coube o pionei-rismo de valorizar o papel educacional da dança e o seu potencial transformador, es-pecialmente em ambientes de risco. Foi em 1974, durante a turnê de 15 dias sobre a bar-ca Juarez Távora, no Rio São Francisco, que surgiu a consciência de se utilizar a dança como instrumento socioeducativo. De ôni-bus, a companhia viajou de São Paulo até Pirapora (MG), onde a barca já esperava. A navegação incluiu 150 artistas do Stagium,

Temas pouco discutidos como racismo, violência, direitos humanos e até mesmo as questões da América Latina, faziam parte do repertório da companhia e tornaram-se revolucionários para os padrões da época

Page 10: murro em ponta de faca

POLÍTICAS PÚBLICAS/MURRO#01

10

LUZ NO FIM DO TÚNEL?Artistas questionam políticas públicas para dança e vereador apresenta projetos

POR/MAURO FERNANDO

Page 11: murro em ponta de faca

11

INSATISFEITOS com a política cultural nos níveis paulistano, paulista e brasileiro, artistas da dança procuram alternativas – modificar as estruturas, eis o mote. A Coo-perativa Paulista de Dança e o Movimento Mobilização Dança lideram os Encontros A Dança se Move, realizados desde maio com o objetivo de discutir – questionar, sobretu-do – as políticas públicas. E propor mudanças que contemplem a melhoria das condições do fazer artístico. O Seminário A Dança se Move precedeu os Encontros, o que demonstra uma postura pró-ativa – pelo menos, de parte da classe da dança.

O coreógrafo e bailarino Marcos Mora-es, do Núcleo Marcos Moraes, mantém uma postura ácida e detecta uma ausência de polí-ticas públicas para a dança. “O Estado é ine-ficiente, burocrático e dominado pela lógica política perversa”, critica. Para ele, a falta de planejamento constitui empecilho sério para o equacionamento de questões como a fixação de programas permanentes que reduzam as preocupações dos artistas.

“O Estado tem respostas para demandas emergenciais”, diz. Prevalece, pois, o ime-diatismo em detrimento da edificação de um pensamento coerente sobre a dança que não envolva apenas o subsídio a companhias – a despeito do “esforço [da classe artística] de construção de um marco de políticas institu-cionais”. Ou seja, o Estado não cumpre o pa-pel de indutor da produção cultural.

O coreógrafo José Maria Carvalho, do Es-paço Viver Dança & Cia., aponta uma dívida “enorme” do poder público não apenas com a dança, mas com a cultura em geral, “que bei-ra o desrespeito com a população”. “A cultura está completamente abandonada. Não falo da indústria cultural, mas da arte enquanto ma-neira de ver o mundo, como mecanismo de transformação da vida.”

Moraes reconhece que mudar as estrutu-ras é “um processo complexo e difícil”, espe-cialmente em um país “que precisa amadure-cer”. “Vivemos em um lugar arcaico, no qual o gestor público acha que seu gosto pessoal se sobrepõe ao funcionamento da sociedade. E cultura não significa uma oportunidade para

desviar dinheiro”, dispara.É nesse contexto que os Encontros A Dan-

ça se Move, realizados em sala da Câmara Municipal de São Paulo, se encaixam. A tô-nica: formular estratégias para desenvolver a dança. Nas – por enquanto – três reuniões debateram-se, por exemplo, propostas para reformar o Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo, instutuí-do por lei em 2005.

O consenso entre os artistas indica que o Fomento, tratado como importante antídoto contra a marginalização de criadores, não dá conta de toda a produção contemporânea. “Há a necessidade, por exemplo, de prêmios para artistas emergentes e de difusão para ou-tras cidades e Estados”, argumenta a coreó-grafa Sofia Cavalcante, do Núcleo Passo Livre. “É preciso formular políticas de longo prazo, de Estado e não de governo, programas pen-sados não para matar a fome, mas integrados a um pensamento maior, voltado à cidadania, à ética”, reflete Carvalho.

O Fomento à Dança, por sinal, nasceu sob polêmica. Ao contrário do Programa Munici-pal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, criado por lei em 2002, o Fomento à Dança não prevê dotação orçamentária fixa. Os recursos destinados à pesquisa, produção, circulação e manutenção de grupos flutuam, portanto, conforme os humores da Secretaria de Cultura.

Mesmo assim, aponta Carvalho, o Fomen-to permitiu a formação de companhias mais consistentes, com a confecção de projetos de mais qualidade. Em termos artísticos, indica Sofia, o Programa “é fantástico”: proporciona mais segurança financeira às trupes e possibi-lita o estabelecimento de sedes, o que garante “a multiplicação da qualidade dos trabalhos”.

Na comparação com os planos federal e paulista, a situação no município de São Pau-lo é a melhor. “O Fomento evidencia isso”, afirma Moraes. Com uma ressalva: as condi-ções ainda estão “longe do ideal”. O coreógra-fo e bailarino enxerga um “bom momento, de efervescência, de troca, dentro da categoria”. “Há visões políticas e estéticas diferentes con-versando.” Da pluralidade de ideias renasce,

“O Estado é ineficiente, burocrático e dominado pela lógica política perversa”

Page 12: murro em ponta de faca

POLÍTICAS PÚBLICAS/MURRO#01

12

então, “um ambiente de dança” que tira os artistas do marasmo e faz as coisas avan-çarem.

Os Encontros A Dança se Move debatem o estabelecimento de programas que abriguem profissionais em início de trajetória autoral, que contemplem a estabilidade de criadores com percurso superior a 15 anos e que favore-çam a circulação de companhias paulistanas. São lacunas que o Fomento mantém abertas.

Além disso, os artistas pleiteiam mu-danças na lei, como a ampliação do prazo de realização dos projetos de um ano para dois e o aumento do teto de recursos monetários que cada projeto pode solicitar, atualmente no patamar de R$ 300 mil. Moraes defende ainda a formulação de programa de forma-ção de público e a ampliação da presença da dança em escolas públicas.

As demandas da categoria, porém, esbar-ram na questão da mobilização. A classe está atenta o suficiente para fazer com que seus pleitos sejam considerados? Moraes demons-tra certo ceticismo: “Há um limitador nesse embate com os mobilizados profissionais, que são os políticos. O artista precisa conciliar suas atividades [criativas com a participação na vida pública]”. Segundo Sofia, a classe não é suficientemente mobilizada: “Melhorou, mas precisa ser mais”. “A consciência está au-mentando”, confirma Carvalho.

Para o intérprete-criador Edson Calhei-ros, a dança não ostenta o mesmo estágio de mobilização que o teatro. “A dança tenta se

apoiar em parlamentares ou legitimar câma-ras setoriais, utiliza instrumentos burocráti-cos criados pelo governo, instâncias engessa-das. É um movimento amparado pelo Estado”, afirma. Por isso, conclui, os “avanços são mais tímidos” que os obtidos pelo teatro. E aponta a diferença crucial: “O teatro se contrapõe às instâncias oficiais para fazer valer suas reivin-dicações”. “É preciso construir algo que ques-tione a ordem vigente”, sugere. Por “ordem vigente”, entenda-se o poder econômico.

Sofia entende essa questão de outra ma-neira: dança e teatro possuem modos de or-ganização diferentes para lutar por melhores condições para o artista. “É difícil mensurar assim [quem é mais mobilizado]”, diz. “A dança não tem o histórico do teatro”. Como exemplo, compara a longevidade do Teatro Popular União e Olho Vivo, nascido em 1970, à do Mobilização Dança, que existe há dez anos. Além disso, constata, “a quantidade de atores é maior que a de bailarinos”. “Mas, depois [do advento] do Fomento, a discussão se ampliou e mais pessoas estão acreditando [nas possibilidades de mudança]”, finaliza.

A coreógrafa Eliana Cavalcante, do Núcleo Passo Livre, concorda com Sofia e lembra que o Fomento à Dança, assim como o ao Teatro, é resultado da iniciativa de artistas que se mo-bilizaram para obter avanços institucionais. “A dança tem diálogo [com o Executivo e com o Legislativo] diferente, há uma articulação com políticos diferentes. A dança já atingiu um patamar de consciência política. É por isso

que está propondo mais coisas. O Fomento permitiu aflorar a produção contemporânea, mas ainda há mais a fazer”, diz Eliana.

A produtora Solange Borelli é categóri-ca: falta engajamento à classe. “A dança só se mobiliza para o imediato, e engajamento pressupõe algo a longo prazo. Vejo uma mo-bilização apenas para a sobrevivência. Para que um movimento seja potente é preciso haver muita gente, não somente líderes.” Para ela, essa é uma discussão que passa ao largo de ideologias. “É uma questão de or-dem prática. O movimento da dança é ima-turo. Existem apenas algumas pessoas com posicionamento político.”

Solange considera ainda ser necessário “pensar a dança para além dos editais”. Do contrário, diz, o artista corre o risco “de per-der a essência genuína da criação” por perma-necer atado às regras estipuladas nos concur-sos que selecionam projetos. A arte, reitera, não prescinde de autenticidade, autonomia, liberdade. “Temos amarras. Precisamos dis-cutir também questões ligadas à criação, não trocamos pontos de vista relacionados às ex-periências estéticas.”

Outro ponto em que ela toca é o público: “Esquecemos de dialogar com a sociedade. O que há é um diálogo falso e demagógico”. É o caso de criadores voltados para o pró-prio umbigo, que colocam o ego à frente das produções. “O que faz as pessoas assistirem a núcleos artísticos [incensados pela mídia de alcance nacional] como o Corpo e não a trabalhos mais sofisticados?”, questiona. O Grupo Corpo cumpriu de 4 a 14 de agosto nove apresentações em São Paulo – lotou o Teatro Alfa, que possui 1.212 lugares, com ingressos entre R$ 40 e R$ 100.

Moraes confia que o Poder Legislativo paulistano está sensível às demandas da dança. O vereador José Américo (PT) apre-senta à Câmara neste mês propostas que re-formulam o Fomento. Uma aprova a fixação de recursos orçamentários nos moldes do Fomento ao Teatro, além de prever a dilata-ção do prazo de realização dos projetos. Ou-tra, ainda não formatada, favorece a difusão da dança paulistana para outras paragens, financia a pesquisa de grupos estabelecidos na capital há pelo menos 15 anos e estabelece bolsas para jovens artistas.

Page 13: murro em ponta de faca

13

O VEREADOR DE SÃO PAULO José Américo (PT) considera que o Programa Mu-nicipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo “fortaleceu a produção contempo-rânea, gerou sinergias, mas tem de crescer”. “A dança precisa do apoio do Estado para se desenvolver sem interferência comercial, de marketing. A iniciativa privada segue regras de mercado. Sou a favor do financiamento direto [do Estado], embora seja contra aca-bar com leis [de renúncia fiscal] como a Rou-anet e a Marcos Mendonça”, afirma.

Ele ante vê uma batalha para aprovar na Câmara Municipal as propostas que apre-senta neste mês para aperfeiçoar as condi-ções do fazer artístico no município. A tra-mitação envolve um entendimento político para que a votação se dê até o fim do ano. “Como são projetos suprapartidários, a ideia é colher apoio de outros vereadores para que também sejam signatários [das propostas]”,

diz. A estratégia visa tornar mais rápida a passagem dos projetos pelas comissões da Casa. Há, na sequência, as duas votações no Plenário. Aprovados, passam para o prefeito, que pode sancioná-los ou vetá-los no todo ou em parte.

“O problema é que a base governista não é muito afeita a investimentos em cultura, apesar de haver vereadores mais sensíveis”, explica. “A dotação orçamentária fixa é mais difícil de ser aprovada porque o Executivo não gosta de dinheiro que já chega ‘carimba-do’”. Ou seja, de quantias que não podem ser remanejadas. “Governos não querem verbas engessadas, mas manipulá-las conforme seus interesses”, endossa o coreógrafo José Maria Carvalho, do Espaço Viver Dança & Cia.

Para o vereador, falta vontade política do Executivo para que as coisas avancem. “A Prefeitura nada em dinheiro, há uma previ-são de sobra de caixa de R$ 2,5 bilhões a R$

3,5 bilhões neste ano. O orçamento de 2011 para a dança é de R$ 7 milhões. Isso é su-ficiente? Não, é apenas razoável. Precisaría-mos do dobro, porque hoje há mais grupos [que na época da aprovação do Fomento, em 2005]”, julga. “E dobrar a verba da dança não atrapalharia nada, não tiraria recursos dos setores sociais. A arrecadação [de im-postos], que era de R$ 14,5 bilhões em 2005, hoje é de R$ 35 bilhões.”

Carvalho segue essa linha de raciocínio, mas amplia o contexto. “O problema não é dinheiro, mas desejo político de investir em cultura. Embora seja um grande avanço para a cidadania investir em cultura, politicamen-te é um tiro no pé. Os governos temem os se-tores mais organizados da sociedade. A cria-ção do pensamento muda a maneira como fazemos as coisas, e a arte pode produzir coi-sas fortes voltadas para a sociedade.”

Américo atira à vontade contra a política cultural do município. “A cultura é um ele-mento fundamental para a formação do ci-dadão, para aumentar a consciência crítica, superar preconceitos, quebrar bloqueios. É estratégica, assim como o investimento em educação. E o Executivo não tem sido sensível a isso. Há uma concentração [de verba] na Vi-rada Cultural, que pode existir. Mas a Prefei-tura pode fazer mais coisas, tem de assumir o papel de financiadora da cultura”, diz.

A coreógrafa Sofia Cavalcante, do Núcleo Passo Livre, reclama da “carência de espa-ços”: “O Centro Cultural São Paulo e a Gale-ria Olido são insuficientes”. “Não há progra-mação na maioria dos teatros. E existem de 40 a 50 espaços, incluindo os CEUs [Centros Educacionais Unificados]”, emenda o vere-ador. Procurada por Murro em Ponta de Faca, a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo não se manifestou. (MF)

BATALHA LEGISLATIVA

POLÍTICAS PÚBLICAS/MURRO#01

“Governos não querem verbas engessadas, mas manipulá-las conforme seus interesses”

Américo: “Prefeitura nada em dinheiro”

Page 14: murro em ponta de faca

O COREÓGRAFO e bailarino Marcos Mo-raes, do Núcleo Marcos Moraes, aponta: a política pública para a dança no Estado de São Paulo “é um desastre”. O diálogo com os artistas “é falso”, afirma. “Há uma visão de Estado como poder imperial.” A core-ógrafa Sofia Cavalcante, do Núcleo Passo Livre, perfila-se ao lado de Moraes: “A Se-cretaria [de Estado da Cultura] ouve muito pouco [os artistas]. É uma coisa autoritária, não existe discussão”. O coreógrafo José Maria Carvalho, do Espaço Viver Dança & Cia., compartilha essa opinião. “O diálogo é muito pequeno, e sem ele as coisas não me-lhoram”, diz.

Além disso, diz Moraes, “a cultura virou moeda de troca política nos dois mandatos mais recentes, os secretários não são da área”. O administrador de empresas Andrea

Matarazzo sucedeu na Secretaria da Cultu-ra, em maio do ano passado, o economista João Sayad, que assumiu o cargo em janeiro de 2007.

Moraes contesta também a São Paulo Cia. de Dança, criada em 2008, “uma com-panhia que concentra recursos, que repre-senta uma volta a Luís XIV, que pertence ao rei para a nobreza assistir”. O Rei da França Luís XIV (1638-1715) personificou o Absolu-tismo e fundou a Academia Real de Dança, que mais tarde redundou no Balé da Ópera de Paris, a companhia oficial mais antiga do mundo.

O orçamento da São Paulo Cia. de Dan-ça para 2011, segundo a Secretaria, é de R$ 14,5 milhões. “Para o resto sobram o ProAC [Programa de Ação Cultural] e o Mapa Cul-tural [Paulista], uma competiçãozinha para

dar um premiozinho. E isso em um Estado cujo PIB é maior que o de alguns países eu-ropeus”, conclui. Sofia concorda: “A verba do ProAC é pequena, e a burocracia gera processos angustiantes. O que pleiteamos é muito menos do que a São Paulo Cia. de Dança consome”.

O fechamento do Teatro de Dança em maio – a Secretaria alegou más condições e problemas estruturais e não renovou o aluguel, mas a comédia Eu Te Amo Mesmo Assim reabriu a sala, que voltou a se chamar Teatro Itália, em agosto – completa esse ce-nário. “Como não há estímulo nenhum do governo estadual para mudar isso, as de-mandas se encaminham para os planos fe-deral e paulistano.”

O coreógrafo propõe o desenvolvimento de políticas públicas para o interior, “onde há uma carência enorme”, com a criação de cinco centros de referência “que fomentem a circulação de espetáculos e de profissionais de teoria”. “Polos com bolsas de estudo, in-tercâmbio com criadores locais, mostras de produções locais, professores para cursos e oficinas.” Sugere também subsídios a refor-mas de teatros.

A Secretaria nega haver falta de sintonia com os artistas. “Tanto o secretário Andrea Matarazzo quanto a equipe da Unidade de Fomento e Difusão Cultural estão em cons-tante contato com grupos e pessoas da área de dança para ouvir as idéias e projetos e encontrar formas de atender as demandas”, justifica. A Sala Paschoal Carlos Magno do Teatro Sérgio Cardoso, que substituirá o Teatro de Dança, “deve ser aberta ao pú-blico em outubro”. A programação “será definida”, afirma a Secretaria. Os principais projetos para 2011, informa, são o ProAC, a São Paulo Cia. de Dança e a retomada do Programa Teatro de Dança. (MF)

14

Marcos: “Carência enorme no interior”

“A verba do ProAC é pequena, e a burocracia gera processos angustiantes. O que pleiteamos é muito menos do que a São Paulo Cia. de Dança consome”

POLÍTICAS PÚBLICAS/MURRO#01

Page 15: murro em ponta de faca

15

POLÍTICAS PÚBLICAS/MURRO#01

NO PLANO FEDERAL, o coreógrafo e bailarino Marcos Moraes, do Núcleo Mar-cos Moraes, sugere um mapeamento do uni-verso da dança que aponte “quem somos, quantos somos, qual a atividade econômi-ca”. Já houve um, lembra-se, mas incom-pleto. “Foi um diagnóstico parcial, limitado. Não foi todo mundo ouvido.” A partir desse levantamento de dados seria possível “tra-çar metas, um sistema de avaliação, ajustes” e indicar caminhos para o desenvolvimento da dança. “Em um mundo ideal, o Estado se capacitaria para isso.”

O diálogo das instituições federais com a classe artística não é pleno, avalia Moraes. Além disso, poderia haver uma articulação mais intensa do Ministério da Cultura e da

Fundação Nacional de Artes (Funarte) com Estados, municípios e outros Ministérios, como Educação, Trabalho, Relações Exte-riores, Turismo e Fazenda. “É um desafio, que esbarra na ignorância geral do País em relação à importância da Cultura, que não recebe a atenção que deveria”, diz.

Os programas existentes não ajudam muito a aprimorar o panorama da dança no Brasil, analisa Moraes. Por duas razões: “pouca verba” e “dificuldade de alcance, de lidar com as diferenças regionais”. Inexiste um programa pensado para atender às es-pecificidades de um país com 8,5 milhões de quilômetros quadrados e diversificado culturalmente, pondera. “Mesmo na Região Sudeste há realidades diferentes.”

Prevalece, assim, a “política de balcão”. “O [Prêmio] Klauss Vianna [da Funarte], uma piada de verba, é a principal ação. E tem uma limitação, é condicionado à buro-cracia. Se [a quantia distribuída] aumentas-se dez vezes, haveria uma política pública”, avalia. Falta autonomia à Funarte, conside-ra. De acordo com ele, um Fundo Nacional de Cultura ativo – com um Fundo Nacio-nal de Dança, “uma estrutura organizada e transparente” – evitaria que os “programas ficassem reféns de gestões políticas”.

Para a coreógrafa Sofia Cavalcante, do Núcleo Passo Livre, “o problema não é só da dança”: “A cultura vem sendo negligenciada há muito tempo”. O obstáculo maior, para ela, não é a ausência de troca de figurinhas entre governo e artistas. “Diálogo existe”, indica. “O que não há é verba.” Ela lembra a existência da Proposta de Emenda à Consti-tuição (PEC) 150, que tramita no Congresso Nacional e assegura o mínino de 2% do or-çamento geral da União para o Ministério da Cultura.

O coreógrafo José Maria Carvalho, do Espaço Viver Dança & Cia., concorda: “A verba é pequena”. Além disso, examina, existe uma certa “lerdeza” na aplicação dos recursos, o que provoca “uma defasa-gem entre o discurso e a prática”. Um dos problemas mais sérios para combater essa situação, conforme Carvalho, é “a ausência de uma articulação nacional mais forte” dos artistas, embora não faltem lideranças para realizar tal tarefa.

Murro em Ponta de Faca publica nesta edição entrevista com o coordenador de Dança da Funarte, Fabiano Carneiro, que apresenta respostas para os questionamen-tos dos artistas. (MF)

“O problema não é só da dança. A cultura vem sendo negligenciada há muito tempo. E o obstáculo maior não é a ausência de troca de figurinhas entre governo e artistas. Diálogo existe”

Sofia: “Cultura não é sabão”

Page 16: murro em ponta de faca

16

POLÍTICAS PÚBLICAS/MURRO#01

ARTE VERSUS MERCADORenúncia fiscal combina com lucro, mas não com expansão de limites artísticos

Page 17: murro em ponta de faca

CONCEITOS de responsabilidade social foram adotados como instrumento de ges-tão no mundo corporativo há tempos. A ex-posição da marca na mídia com conotação positiva significa qualificação de imagem, o que redunda em expansão de negócios e, naturalmente, do lucro. O apoio a projetos ambientais e culturais apresenta à opinião pública a ideia de que a empresa investe no bem-estar da população.

As leis de renúncia fiscal, como a Rou-anet, constituem ferramentas utilizadas pelas empresas para dar visibilidade fa-vorável às marcas. Mas, por delegarem à iniciativa privada a decisão do uso de ver-bas públicas e por privilegiarem produções de fácil digestão, essa leis são contestadas. Núcleos artísticos que trabalham com pes-quisa de linguagem e com assuntos algo polêmicos, tendem a ficar à margem desse sistema.

Trata-se de discussão que envolve a questão ideológica e inflama corações e mentes. “A Lei Rouanet contempla o mer-cado, os interesses do marketing, empre-sariais, que oferecem retorno pequeno para a população”, diz o intérprete-criador Edson Calheiros. A coreógrafa Sofia Caval-

17

cante, do Núcleo Passo Livre, engrossa o coro contra princípios neoliberais. “Cul-tura não é sabão. E ela é supérflua para o capitalismo. Essas leis de renúncia fiscal são um absurdo: verba pública para ban-cos, para produtoras mexicanas. É muito dinheiro público para quem não precisa. Acho isso escandaloso. É uma visão de cul-tura excludente.”

Sofia ainda vai mais longe. Para ela, es-sas condições adversas a criadores que se sustentam na investigação de linguagem se refletem na formação de público. “Há pouco espaço para a produção mais artesa-nal”, diz. Essa situação reforça as plateias de companhias que já possuem visibilida-de na mídia – o que inclui dinheiro para pagar anúncios – e dificulta o acesso aos grupos que têm poucos recursos, criando um círculo vicioso. “Se não há oferta, não há público”, argumenta.

Para o coreógrafo José Maria Carvalho, do Espaço Viver Dança & Cia., “é funda-mental assegurar um espaço de liberdade para a criação [artística] do novo”, de re-novação de ideias. E essa postura, eviden-temente, não se configura em ambiente corporativo. “Mercado não se coaduna

com pesquisa. É um engodo achar que a iniciativa privada, cujos interesses estão li-gados ao lucro e ao poder, vai garantir isso. É obrigação do Estado subvencionar a arte de pesquisa e não a arte de mercado.”

Já a produtora Solange Borelli reve-la postura pragmática. “Por que o artista não aproveita o sistema capitalista para fazer sua obra transcender?”, questiona. “Temos de desbravar isso, de aprender a dialogar com essa esfera. Por que não abrir diálogo, se há dinheiro? Eu quero e tenho direito a aporte financeiro. Se o artista tem trajetória, é possível a empresa se interes-sar [por um projeto artístico escorado em experimentação de linguagem].”

Solange garante que “há empresas poro-sas a esse tipo de discussão estética”: “Não é fácil [dialogar], mas é possível”. O xis da questão é cruzar o projeto artístico com os propósitos mercadológicos das empresas. De acordo com ela, não é necessário vender a alma – basta haver “verdade artística” na proposta. O coreógrafo e bailarino Marcos Moraes, do Núcleo Marcos Moraes, também não rejeita esse jogo. “Já que vivemos nesse sistema [capitalista], é bom não descartar nada”, pondera. (MF)

“Cultura não é sabão. E ela é supérflua para o capitalismo. Essas leis de renúncia fiscal são um absurdo: verba pública para bancos, para produtoras mexicanas. É muito dinheiro público para quem não precisa. Acho isso escandaloso. É uma visão de cultura excludente.”

Page 18: murro em ponta de faca

18

MTC ocupa Funarte e Cooperativa de Dança discorda

POLÍTICAS PÚBLICAS/MURRO#01

Page 19: murro em ponta de faca

19

O MOVIMENTO dos Trabalhadores da Cultura (MTC) perdeu a paciência e ocupou a sede paulistana da Fundação Nacional de Artes (Funarte) de 25 de julho a 1º de agos-to a fim de marcar posição contra a política cultural do governo federal. De acordo com o ator Osvaldo Pinheiro, da Cia. Estável, mais de 2 mil pessoas estiveram na Funarte (in-cluindo residentes e flutuantes). Artistas de teatro, principalmente – a participação dos de dança foi pequena. Mobilizações popula-res organizadas nacionalmente, como o Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Ter-ra (MST), manifestaram apoio à ocupação. A Cooperativa Paulista de Dança, que aprovou em um primeiro momento a iniciativa, reti-rou o apoio. O Movimento Mobilização Dan-ça não se posicionou.

Por não se reconhecer representada na ocupação, a Cooperativa manteve atritos com o MTC e soltou uma carta aberta. “Acre-ditamos que as manifestações populares organizadas e o diálogo com os gestores pú-blicos são ferramentas legítimas e importan-tes para contribuir no desenvolvimento da sociedade brasileira. Também acreditamos ser legítima a ocupação da Funarte (...) como forma de chamar a atenção para a paralisia e o risco de retrocesso que parecem emanar de ações ou declarações da nova gestão federal da Cultura, sem que uma pauta amadurecida em anos de discussão seja posta em prática. Mas discordamos das ações promovidas pelo (...) MTC, que se estabeleceu buscando (...) a condição de porta-voz das demandas da cul-tura no plano federal”, afirma.

O MTC reivindica o fim das leis de re-núncia fiscal e uma política de investimento direto do Estado. Pleiteia também a aprova-ção das Propostas de Emenda à Constituição (PECs) 236 (que prevê a cultura como direito social) e 150 (que garante o mínino de 2% do orçamento geral da União para o Ministério da Cultura). E defende a arte pública, defi-nida pelo Manifesto dos Trabalhadores da Cultura, divulgado pelo MTC, como “aquela financiada por dinheiro público, oferecida gratuitamente, acessível a amplas camadas da população – arte feita para o povo”.

“O objetivo (da ocupação) é unir a classe em torno de uma luta maior, não imediatis-

ta, pela abertura de programas (estabeleci-dos em lei com orçamentos fixos) e não um único, como a Lei Rouanet”, declara o ator e diretor Caio Martinez, da Trupe Olho da Rua. A atriz e produtora Natália Siufi, do Grupo Teatral Parlendas, complementa: “Queremos sair da política de editais, de ga-binete”. Isso significa garantir a continuida-de de projetos artísticos interrompidos por serem gerados durante uma gestão pública que se esvai quando da alternância do poder político – quando uma nova administração promove uma virada de mesa.

O manifesto critica a postura do Estado em relação à cultura. “A produção artística vive uma situação de estrangulamento que é resultado da mercantilização imposta à cultura e à sociedade brasileiras. O Estado prioriza o capital (...). É esse discurso que confunde (...) incentivo à cultura com Im-posto de Renda doado para o marketing, ser-vindo a propaganda de grandes corporações. Por meio da renúncia fiscal – em leis como a Lei Rouanet –, os governos transferiram a administração de dinheiro público destinado à produção cultural para as mãos das empre-sas. Dinheiro público utilizado com critérios de interesses privados”, afirma.

O texto sugere, portanto, que o MTC tra-ta o assunto sob vigoroso caráter ideológico – o que remete às batalhas socialistas. “Há uma disputa no campo simbólico”, confirma Martinez. “Não separamos poética de polí-tica. Arte não é mercadoria, não nos encai-xamos no mercado, não produzimos lucro”, diz Natália. Para ela, toda ação humana pos-sui um sentido ideológico: “O capitalismo é perverso porque finge uma neutralidade que não existe”. “Luta de classes” é uma expres-são usada pelos dois, e eles asseguram que o MTC não possui vínculo partidário.

O presidente da Funarte, Antonio Gras-si, reagiu em 27 de julho por meio de carta publicada no sítio eletrônico da instituição. “Os principais pontos expressos no manifes-to (...) encontram-se em discussão no Con-gresso Nacional. É importante que o debate extrapole os limites dos artistas e fazedores de cultura e chegue aos mais amplos setores da sociedade. Protestos legítimos auxiliam neste processo. Entretanto, quero ressaltar

algumas atitudes que não parecem coadunar com o espírito da luta comum dos artistas brasileiros. Cerrar os portões da Funarte – com correntes e cadeados – ofende nossa história de luta pela liberdade. Reitero a ampla disposição para o diálogo com os mo-vimentos populares, conforme orientação da presidenta Dilma, da ministra Ana de Hollanda (...)”, afirmou.

A ocupação culminou em 1º de agos-to com um cortejo que saiu da Funarte, em Campos Elíseos, em direção ao Itaú Cultural – conforme a atriz e diretora Andressa Fer-rarezi, da Cia. Estável, “um signo da cultu-ra privada” –, na Avenida Paulista. Muitos dos cerca de 400 artistas que participaram da comitiva levavam como adereços cênicos assentos de vasos sanitários – contraponto ao “templo do mercado”, à “cultura transfor-mada em mercadoria”, segundo alguns dos bordões utilizados. Última estrofe de uma música composta para a ocasião: “Descarga, gravata, fio dental / Produtor cultural / É o dinheiro global / Mas não saia do seu posto: / O seu imposto também traz / Galã inter-nacionaaaaaal!”. O MTC avisa que esse foi o primeiro ato – a luta continua.

“Não separamos poética de política. Arte não é mercadoria, não nos encaixamos no mercado, não produzimos lucro”

MTC contra cultura privada

Page 20: murro em ponta de faca

INTERSECÇÃO/MURRO#01

POR/MAURO FERNANDO

20

panhol Carlos Saura, o dinamarquês Lars von Trier e o estadunidense Robert Altman (1925-2006).

Chaplin define Luzes da Cidade (City Lights, 1931), nos créditos de apresentação, como uma comédia romântica em pantomi-ma. O Dicionário do Teatro Brasileiro (coor-denação de J. Guinsburg, João Roberto Faria e Mariangela Alves de Lima) explica pantomi-ma: “É a representação de emoções, de atos e de várias situações humanas somente por meio dos movimentos do corpo, dos gestos e dos passos”. “Na França e na Inglaterra, du-rante as primeiras décadas do século XVIII,

russa estabeleceram paradigmas que in-fluenciam gerações de artistas de várias áre-as. Cunhado no início do século XX pelo te-órico italiano Ricciotto Canudo (1877-1923), o termo “sétima arte” indica que o cinema agrega outras linguagens artísticas, como dança, literatura, música e teatro.

A trajetória da linguagem cinematográ-fica aponta que essa intersecção de expres-sões artísticas existe desde o cinema mudo. A dança, por exemplo, está presente na con-fecção de comédias, musicais e tragédias de criadores talentosos (e tão díspares) como o inglês Charles Chaplin (1889-1977), o es-

CRIADA A PARTIR DA INVENÇÃO do cinematógrafo – o aparelho permite a proje-ção de sequências de fotogramas que criam a ilusão de movimento – no fim do século XIX, a linguagem cinematográfica é conheci-da como a “sétima arte”. Os irmãos Lumière – Auguste (1862-1954) e Louis (1964-1948) –, franceses, patentearam o cinematógrafo e realizaram em 1895, em Paris, a sessão con-siderada pela maioria dos pesquisadores o marco inicial do cinema.

A cinematografia estadunidense, o ex-pressionismo alemão, o neorrealismo italia-no, a nouvelle vague francesa, a vanguarda

DANÇA E CINEMA

“Luzes da Cidade”, de Charles Chaplin

Duas linguagens artísticas e sua conexão intrínseca

Page 21: murro em ponta de faca

21

dava-se aos balés clássicos o mesmo nome de pantomimas”, complementa o verbete, assi-nado por Carlos Eugênio de Moura.

“No século XX”, registra o Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis, “os melhores exemplos [de pantomima] encontram-se nos filmes burlescos de B. KEATON e C. CHA-PLIN”. As películas passaram a adotar o som em 1927, mas Chaplin manteve Luzes da Ci-dade sob a égide do cinema mudo, o que o permitiu continuar explorando os recursos – entre eles, as inúmeras possibilidades que a expressão corporal evoca – que fizeram de Carlitos o grande clown do século XX.

O filme está centralizado no amor de Car-litos por uma florista cega (Virginia Cherrill, 1908-1996). A fim de obter o dinheiro neces-sário para pagar o aluguel da casa onde ela mora e impedir o despejo – e custear a ope-ração que a fará enxergar –, ele se candidata a uma bolsa de boxeador. Cria-se sobre o rin-gue uma das cenas memoráveis da película – uma coreografia cômica que envolve Carli-tos, seu oponente (Hank Mann, 1887-1971) e o árbitro da luta (Eddie Baker, 1897-1968).

Saura declarou sua paixão pelo flamenco – dança e música características da alma ciga-na, um dos pilares da cultura espanhola – por meio da trilogia formada por Bodas de San-gue (Bodas de Sangre, 1981), Carmen (Car-men, 1983) e Amor Bruxo (El Amor Brujo, 1986). Contou com a inestimável parceria de Antonio Gades (1936-2004) – que renovou a tradição do flamenco –, responsável pelas coreografias. O sentimento trágico aflora com

uma rara potência nos três filmes.Em Bodas de Sangue, adaptação da peça

de Federico García Lorca (1898-1936), Saura faz do flamenco o suporte da narrativa. Os bailarinos se apresentam logo na primeira sequência – no camarim, onde se preparam para transpor a obra de Lorca para a dança. No dia de seu casamento, a noiva (Cristina Hoyos) reencontra seu grande amor, Leonar-do (Gades). Resolvem fugir, e o noivo (Juan Antonio Jiménez) parte atrás dos dois em busca da recuperação da honra. A intensidade dramática da coreografia é levada ao limite na cena do duelo entre Leonardo e o noivo.

Em Carmen, transposição da novela de Prosper Merimée (1803-1870) e da ópera de Georges Bizet (1838-1875), há profundo jogo metalinguístico. Os personagens se confun-dem com os personagens que representam, e os planos da realidade e da ficção se contami-nam. Gades é o coreógrafo que procura uma bailarina jovem para o papel de Carmen. En-contra na voluptuosa Laura del Sol a mulher ideal para interpretar a cigana volúvel de Merimée. Paco de Lucía comparece com seu violão flamenco para emoldurar as tensões dramáticas que a coreografia apresenta.

Amor Bruxo tem suas raízes na música de Manuel de Falla (1876-1946) e no libreto de Gregorio Martínez Sierra (1881-1947). O cenário é uma aldeia cigana. José (Jiménez) e Candela (Cristina) casam-se anos depois de terem sido prometidos um ao outro por seus pais. Após o assassinato de José em uma briga, Carmelo (Gades) declara seu amor

por Candela. Mas ela está presa ao fantasma do marido – toda noite vai ao encontro dele para dançar. Ex-amante de José, Lucía (Lau-ra) completa o quarteto. A sintaxe estética do flamenco e seu vocabulário humano – a paixão, o sofrimento –, enfim, sustentam as três narrativas.

Von Trier usa em Dançando no Escuro (Dancer in the Dark, 2000) a estrutura dos musicais hollywoodianos a fim de, em cha-ve de paródia, tecer uma crítica à indústria cultural que eles representam – o escapismo como instrumento de alienação. O filme é ambientado nos anos 1960 em uma peque-na cidade estadunidense, onde a imigrante Selma (Björk) se estabelece. Apesar de saber que perde gradativamente a visão, ensaia sa-pateado em uma produção amadora. Imagi-na números de dança enquanto trabalha em uma fábrica. Nada de horrível acontece nos musicais, diz. Sua vida, porém, se encami-nha para um final trágico.

De Corpo e Alma (The Company, 2003), sob a direção de Altman, enfoca as relações humanas que permeiam o cotidiano de uma companhia de dança – no caso, o Joffrey Ballet, de Chicago. Em meio a ensaios, aflo-ram a preocupação do diretor artístico com o estouro orçamentário, as metáforas de uma montagem em gestação que o coreógrafo tem de explicar ao elenco – o que remete à capacidade do público de assimilar herme-tismos – e, sobretudo, egos. Protagonizada pela bailarina Ry (Neve Campbell), a película se aproxima do gênero documentário.

EPÍLOGO/ POR KISSO/ mondokisso.blogspot.com

“Carmen”, de Carlos Saura

“Dançando no Escuro”, de Lars von Trier

“De Corpo e Alma”, de Robert Altman

Page 22: murro em ponta de faca

DIAFRAGMA/MURRO#01

POR/GAL OPPIDO

22

Vestes

Page 23: murro em ponta de faca

É TÃO PROFUNDO o mergulho de Gal Oppido nas questões do corpo, nas derivações do corpo, nos movimentos que o corpo provoca em torno de si mesmo, nos outros, na sua geografia tão privada... É tão profundo o firmamento memorial em suas imagens, que o presente (im)perfeito do corpo rasgado pelas incertezas do tempo surpreenda, ao acolher, numa mesma intenção, um coração-cicatriz. Ou que na cabeça rompida de um lado até o outro, pausadamente paralela à costura que refaz o cérebro, esteja o diadema feito em prata... É tão profundo esse mergulho que suas imagens alcançam o alvo de percepção de um escultor em busca desse mesmo corpo, o grande tema universal.

Numa fotografia do ateliê de Rodin, feita por Jacques Ernest Bulloz, em 1904, um plano aberto revela uma sequ.ncia de corpos, uns solitários, outros não, uns ainda no gesso, outros indefinidos, em processo, mas todos eles vivos, já pousada a mão do mestre sobre seus músculos, num movimento que apenas a escultura moderna de Rodin foi, e é, capaz de provocar. Algumas fotografias de Gal Oppido, atentamente olhadas em seus planos fechados, têm algo de tão provocador quanto as esculturas do artista francês. Talvez o ritual nas formas, talvez o jogo de luz, talvez a atmosfera, talvez a poesia silenciosa da matéria retorcida em negativo e positivo.

Entre aqueles outros corpos tão perfeitos, e os que aqui estão, “criados” pelo fotógrafo, existe o bisturi do tempo deixando suas marcas, um a um, história por história. É justamente essa ausência de medo, do que não é totalmente belo (sendo?), que torna Prata Sobre Pele Sobre Prata um ensaio tão avassalador. O corpo alterado, o tiro, a faca, o corte, o piercing atravessando o membro, a tatuagem onde a mulher nuavestida escreve para sempre os louros, o cetro, o tombo, tudo isso, toda essa “alteração” na alma, na pele, na carne, no osso, aqui, cuidadosamente, veste-se de objetos que não são objetos, mas sim parte desses mesmos corpos, veias, enigmas, estranheza, capacidade, solução de desejo: a prata que Hugo Curti fundiu para pertencer aos corpos que agora pertencem definitivamente às fotografias de Gal Oppido.

Então, com sua solidão cósmica ou sua leitura de signos, Prata Sobre Pele Sobre Prata torna-se algo muito além de uma exposição - uma corrida contra o tempo, uma assemblage vista de dentro, um pacto entre dor e prazer, um grito parado no ar?

ESTE CONJUNTO DE ENSAIOS alinha algumas imersões onde o corpo é sempre remetido à sua condição original, desprovido de vestes, sem ferramentas, desprotegido em vulnerabilidade animal, tal qual em passado recente quando era sujeito a toda sorte de ações severas e mesmo irreversíveis por parte da natureza e do próprio homem as quais hoje estão (em parte?) dominadas pela capacidade de intelecção do homem, levando-o à condição de manipulador e processador em escala planetária das matérias que compõem o mundo cotidianamente conhecido.

É uma especulação da medida em que o animal humano dotado de particular inteligência revela através do seu corpo, como campo de prova, provação e devoção, expondo seus desejos, temores, origens, percursos, temporalidade e mortalidade.

Hoje, nossa capacidade de sintetizar a matéria quase que nos gabarita a vencer a finitude do nosso corpo.

A idéia de perenidade instalada por um desenho na caverna, pela mumificação, pela escultura e pintura, pelo registro fotográfico, cinematográfico, holográfico, fonográfico e televisivo, assim como os processos de clonagem humana, aproxima o homem de seus desejos bíblicos de eternidade e onipresença.

É um exercício de dissecação em vida, com o corpo pulsante de significados, separando suas partes como uma singela guilhotina, diferente da original onde segundo Daniel Arasse (*) foi a primeira máquina de tirar retratos pois separava do corpo a face da vítima, expondo sua identidade como na foto 3 x 4 que é papel, mas que revela a vida contida na imagem.(GO)

23

Diógenes Moura

Curador da Pinacoteca do Estado de São Paulo

OS SENTIDOS DA PELE

Lembra, corpo...

Page 24: murro em ponta de faca

DIAFRAGMA/MURRO#01

24

Luciana e a Lei da Gravidade

Page 25: murro em ponta de faca

25

Desprotegido em vulnerabilidade animal, tal qual em passado recente quando era sujeito a toda sorte de ações severas e mesmo irreversíveis por parte da natureza e do próprio homem

Luciana e a Lei da Gravidade

Page 26: murro em ponta de faca

DIAFRAGMA/MURRO#01

26

Prata Sobre Pele Sobre “Prata”

Page 27: murro em ponta de faca

27

“A guilhotina foi a primeira máquina de tirar retratos pois separava do corpo a face da vítima, expondo sua identidade como na foto 3 x 4 que é papel, mas que revela a vida contida na imagem”

Prata Sobre Pele Sobre “Prata”

Daniel Arasse

Page 28: murro em ponta de faca

ENTREVISTA/MURRO#01

COM/FABIANO CARNEIRO

28

Page 29: murro em ponta de faca

29

O COORDENADOR de Dança da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Fabiano Carneiro, assumiu o cargo em agosto de 2010. Possui formação em administração de empresas e especialização em administração esportiva e cultural. Integra a equipe da Coordenação de Dança desde 2007 e, afirma, “acumula a experiência de 20 anos como gestor cultural no setor público”. Também integra o Grupo de Trabalho do Ministério da Cultura para elaboração de propostas da área artística para a Copa do Mundo de 2014.

Em entrevista concedida a Murro em Ponta de Faca por email, Carneiro aponta que o foco da Funarte em relação à dança é dar “continuidade às ações já testadas e com as quais a categoria conta”. Sinaliza que o Ministério da Cultura e a Funarte têm suficiente “prestígio com o Planalto” para brigar por mais verba para o setor e reconhece que a oferta de recursos é insuficiente para atender à demanda da dança.

Carneiro fala também em “novas parcerias” e em “novas ações”, mas não especifica quais, e se esquiva de questão sobre encontro promovido pela Funarte em São Paulo que excluiu artistas da dança.

MURRO EM PONTA DE FACA – Qual é o norte da Funarte em relação à dança, uma vez que a classe reclama por uma po-lítica pública mais consistente nos níveis municipal, estadual e federal?

FABIANO CARNEIRO – Temos como estratégia ouvir a necessidade da catego-ria através dos núcleos, grupos, colegiados setoriais de acordo com a especificidade do local e a partir daí propormos as ações. Com a criação das Câmaras Setoriais de Dança, em 2005, a Funarte tem utilizado essa entidade como órgão consultivo das suas ações, assim como houve também os grupos, companhias, etc. Também a expe-riência acumulada com o resultado artísti-co dos editais nos permite mapear deman-das e carências que procuramos suprir a cada novo edital. Vale lembrar que, agora, os prêmios concedidos pela Funarte, quer de montagem ou de circulação, têm exten-são nacional e proporcionalidade regional , sempre obedecendo à demanda.

MURRO – Quais os projetos de dança em gestação na Funarte? Qual o foco, editais esporádicos ou a premiação da continuida-de de trabalhos artísticos?

CARNEIRO – O nosso foco é o de darmos continuidade às ações já testadas e com as quais a categoria conta. Temos vários projetos específicos de dança que serão de-senvolvidos ainda este ano. Lançamos os editais de ocupação dos espaços da Funar-te: Teatro Cacilda Becker (RJ) e Sala René Gumiel (SP) (exclusivos para a dança), Te-atro Dulcina (RJ) (circo, dança e teatro),

Teatro Plínio Marcos (BR) (circo, dança e teatro) e Galpão 3 (Funarte BH) (circo, dança e teatro). Lançaremos em breve os editais para Bolsa de Residência Intera-merica e o Prêmio Funarte Klauss Vianna 2011, com aumento de 50 % do orçamento em relação a 2010. O Edital do Procultura está sendo analisado, com prêmios de pro-dução artística, circulação de espetáculos e programação de espaços cênicos, focado na revitalização de espaços já existentes e que por razões econômicas estão fechados ou funcionando precariamente. Teremos, ainda, o Iberescena 2011, as oficinas de aperfeiçoamento e capacitação e já está em andamento o projeto Outras Danças Bra-sil/Chile e Colômbia 2011, que consiste em duas residências, uma mostra internacio-nal de solos e duos e encontros de gestores e intérpretes na capital cearense. Mais uma vez investiremos, também, no apoio ao cir-cuito dos festivais. Todos estes projetos que já estão em andamento, estão disponí-veis no site www.funarte.gov.br MURRO – A verba destinada para a dança neste ano é suficiente para cobrir a deman-da dessa linguagem artística? Ou a Funarte precisa ser criativa (como os artistas) para satisfazer a demanda de pesquisa, produ-ção, difusão e circulação dessa categoria?

CARNEIRO – A demanda é sempre maior do que a verba, mas sabemos também que estamos enfrentando um corte orçamen-tário nas esferas municipal, estadual e nacional. Procuramos atender à demanda otimizando as ações e buscando novas par-cerias.

MAIS DOMESMO

Page 30: murro em ponta de faca

ENTREVISTA/MURRO#01

30

MURRO – A Funarte mantém diálogo com o Colegiado Setorial de Dança? E com os movi-mentos que têm aparecido de Norte a Sul do País?

CARNEIRO – Sim, a Funarte vem manten-do um diálogo constante com o Colegiado Setorial de Dança. Além disso, tenho estado presente nos festivais, de Norte a Sul do País, e os movimentos regionais, onde o encontro com a categoria nos municia para pensarmos as futuras ações. Por exemplo, um novo edital, específico para novos talentos – companhia ou grupos de até cinco anos de formação – foi pensado a partir dessa experiência e em todos os locais tenho anunciado as ações previstas da Funarte. É importante ressaltar que a Co-ordenação de Dança da Funarte tem servido de referência e de consulta para conquistas de políticas públicas para a Dança dentro dos movimentos regionais.

MURRO – Qual a importância do Plano Se-torial de Dança?

CARNEIRO – O Plano Setorial de Dança é de fundamental importância, pois este do-cumento foi debatido pelos fóruns de todo o Brasil, por meio da Câmara Setorial de Dan-ça a partir de 2005, debatido entre 2008 e 2010 no Colegiado Setorial de Dança, órgão colegiado do Conselho Nacional de Política Cultural. É o primeiro plano político governa-mental, escrito com a participação da socie-dade civil, adotado como políticas públicas de Estado para a Dança, em toda nossa história, no Brasil.

MURRO – O corte no orçamento do ministé-

rio da Cultura para este ano, de R$ 2,2 bilhões para R$ 800 milhões, atingiu os artistas da área?

CARNEIRO – Todo tipo de corte orçamentá-rio atinge os artistas e gestores, mas procura-mos cobrir os cortes elaborando novas ações. MURRO – A liberação de R$ 4,5 milhões para o Klauss Vianna neste ano, recentemente anunciada, preenche a lacuna aberta por edi-tais previstos e não lançados e cobre pendên-cias anteriores?

CARNEIRO – Desde março deste ano, con-seguimos pagar todos os editais que estavam em aberto na área da dança. O aumento do va-lor do KV 2011 é uma conquista, mas indepen-dente do prêmio, pretendemos realizar outras ações de continuidade. MURRO – A Funarte e o Ministério da Cul-tura possuem força política suficiente no Pla-nalto para brigar por mais verba para imple-mentar projetos de dança?

CARNEIRO – Sem dúvida. A volta da Ana de Holanda – nossa ex-diretora, agora ministra da Cultura –, assim como a do Antônio Gras-si à presidência da Funarte, por si só significa prestígio com o Planalto.

MURRO – A Funarte trabalha com conceitos da chamada economia da cultura?

CARNEIRO – Trabalhamos não somente com o conceito de economia da cultura, mas também com indicativos práticos em sintonia com o Ministério da Cultura.

MURRO – Qual o papel social da arte, ge-rar empregos ou elevar o espírito crítico da população?

CARNEIRO – O papel da Funarte ao es-tabelecer as suas políticas públicas, para quaisquer áreas, é dar condições para que as diferentes expressões artísticas, oriundas dos mais diferentes lugares, apareçam, cir-culem, interajam. É claro que se isso acon-tece – criação, produção e circulação – os empregos afloram e o espírito crítico se apura. MURRO – O sr., na função de coordena-dor de Dança da Funarte, viaja pelo País a fim de observar de perto a realidade e as de-mandas da dança?

CARNEIRO – Viajo mais do que posso e menos do que gostaria. Nenhuma tecnolo-gia substitui a presença, o sentimento de “pertencimento” que se tem quando se as-siste, por exemplo, a um espetáculo de dan-ça folclórica da cidade mais alemã do Brasil (Pomerode), no interior de Santa Catarina, a um festival de hip-hop no Norte do País ou aos festivais de dança contemporânea pelo Brasil. Também o “muito prazer” que dizemos pessoalmente aos secretários esta-duais ou municipais de Cultura acabam por abrir novos viezes, novas parcerias, com ex-celentes frutos. Agora mesmo estamos ofe-recendo 20 oficinas práticas, em parceria com as secretarias municipais e estaduais, por todo o Brasil. Eu acredito muito no mo-delo de gestão “in loco e in foco”.MURRO – A cultura pode ser regida por re-gras mercadológicas?

Page 31: murro em ponta de faca

31

“Sem dúvida. A volta da Ana de Holanda – nossa ex-diretora, agora ministra da Cultura –, assim como a do Antônio Grassi à presidência da Funarte, por si só significa prestígio com o Planalto”

CARNEIRO - Minha formação é em Ad-ministração de Empresas, e acredito que as regras mercadológicas pode ser um dos indicativos, mas temos outros que podem nos ajudar a traçar as metas.

MURRO – O governo está atento aos pro-blemas dos trabalhadores da cultura ou essa é uma questão menor?

CARNEIRO – Nossos bravos servidores, a maioria ainda oriunda das antigas Fun-dações – de artes cênicas (Fundacen), do cinema (FCB) e da própria ex-Funarte (que acabou renomeando as três extintas pelo governo Collor) – continuam na sua batalha por um plano de carreira próprio da Cultura, aperfeiçoamento profissional e, é claro, por melhores salários. Houve um único concurso público para preencher as muitas vagas existentes, mas não foi o suficiente. O nosso déficit de funcionários é grande. O governo sabe disso e reconhe-ce que somos funcionários “diferenciados”, que transitam da pesquisa às aulas da Es-cola Nacional de Circo, por exemplo. MURRO – A Funarte convocou recente-mente encontro em São Paulo com artistas de circo e de teatro. Por que a dança ficou de fora? Qual foi o critério?

CARNEIRO – Tivemos um recente en-contro setorial da dança em Belém do Pará, com as presenças do presidente da Funar-te, Antonio Grassi, do diretor do Centro de Artes Cênicas, Antonio Gilberto, e do secretário de Políticas Culturais, Sérgio Mamberti.

MURRO – Por que persiste a idéia de que as produções de teatro precisam de mais dinheiro que as de dança? Fazer teatro exi-ge custos maiores que fazer dança?

CARNEIRO – Não acredito que as produ-ções de teatro precisem de mais dinheiro do que as de dança, são produções distin-tas. Temos várias produções de dança que custam tanto ou mais do que as de teatro. O que acontece é que um dos indicativos que temos na hora de pleitearmos mais verba são as inscrições dos nossos editais e aí temos um número que é bem signifi-cativo, as inscrições do teatro são quase 3 vezes maior do que as de dança.

MURRO – A Funarte, ao longo dos anos, construiu uma imagem de gigante ador-mecido perante os artistas. Como o sr. lida com isso?

CARNEIRO – Essa imagem é desmen-tida pelo alcance das nossas ações, cada vez mais se embrenhando por regiões lon-gínquas, nos quatro cantos do País, pelo alargamento das nossas fronteiras, através dos festivais internacionais e das bolsas de residência artística no exterior, pelo ban-co de dados disponível em nossa página na internet e que contabiliza muito mais de 2 mil artistas e técnicos cadastrados e, prin-cipalmente, pelo entusiasmo com que lida-mos no dia-a-dia que em nada lembra um gigante adormecido. Com tudo isto a Coor-denação de Dança da Funarte tem aposta-do no contato direto com os artistas e com o objetivo de cada vez mais aperfeiçoar as nossas ações.

Page 32: murro em ponta de faca

OUTRA MARGEM/MURRO#01

POR/HÉLVIO TAMOIO

32

perambular a cachola dos desincompatibili-zados, leva-nos a reforçar aquilo que temos de peculiar e, como insiste o parceiro Antô-nio Cândido, como paulista o reforço de que nossa história não se limita a desterramen-tos e estupros.

No campo da política cultural uma his-tória que ronda sempre os miolos tem a ver com as apresentações das escolas de dança nos finais de anos e o encerramento das pautas no teatro municipal. Travestido de serviços gerais da cultura numa fundação de arte era comum ver nosso chefete com a cara amarrada no mês de agosto. Quando questionado o amargor na cara do sujeito, dizia ele: Não aguento mais esta coisa de fe-char os dois últimos e mais lucrativos meses do ano para estas escolinhas e suas meni-ninhas pulando no palco para ser aplaudi-

os discursos de coitadismo que imperava na relação com o poder local. Quem quiser sobreviver da coisa tem que ser membro do estabelecido, ter sua sede, estar em “foco” na mídia e, principalmente, ser integrado a algum coletivo em prol de alguma arcaica novidade. Os mais entendidos se articulam e confessam rezas em setoriais temáticas. O tema? Não importa, o que vale é estar inserido, mesmo que a maioria das pautas continuem sendo ditadas pela corte estabe-lecida no planalto central.

Neste ziriguidum de atualidades - volta e meia vou ver - a estratégia tem sido a neces-sária revitalização de memorias e acúmulos, senão acabamos punindo-nos pela incapa-cidade de não fazermos parte deste carro-cel collorido com traços de caras pintadas. Os poucos diálogos que, ainda, insistem em

DESDE QUE VOLTEI PARA CASA, o interior paulista, como diz o velho e apo-calíptico poema de Américo de Souza, o mundo nunca mais haverá de ser o mesmo. Com o tanto de obras que trombamos pelas ruas e placas anunciando um amontoado de outras novidades, as vezes, parece que esta-mos num formigueiro pisado de botas.

O mundo das celebridades (sic) das pe-quenas, pacatas e medias urbes interiora-nas agora contam com cadernos semanais de fotos e amenidades e, os citadinos mais articulados, com revistas semanais reluzin-do empreendimentos e atualizações comer-ciais médicas que, vez ou outra, precisamos nos acomodar no bar do Béba para saber que não estamos num oásis californiano.

No campo da arte e da cultura limitaram os espaços e ouvidos para as mumunhas e

VEJO UM MURO VELHO E UM SINAL DE GLÓRIA

Page 33: murro em ponta de faca

33

das pelos pais e as professoras receberem flores. Isto não é da nossa praia. As escolas tem recursos, porque não alugam salões de festas ao invés de trancar as nossas portas? Berros acalmados, entrava o presidente da Fundação falando do prefeito, da mulher de um médico, da tia do vereador e o bancário aposentado se acalmava até o ano seguinte. Este roteiro foram os primeiros sinais de que existiam demandas e as pautas preci-savam ser estabelecidas num possível plano de ação artística cultural na cidade.

Ao voltar para a realidade real, como nos pede o obtuso comandante, mesmo não tendo acompanhado as diretrizes nas agen-das teatrais, cartazes, banners vidros dos onibus e, para os mais enricados, outdoores revelam que o cenário não é mais o mesmo. Pelo menos, indicam os investimentos nas produções e nas escolhas temáticas das cha-madas apresentações de finais de ano. As investidas, geralmente fitinhas da Disney e outras guloseimas, passaram a contar com iluminadores, coreógrafos e, num caso ex-tremado, dramaturgos. Ou seja, profissio-nais qualificados e remunerados. Ou estarei enganado?

A perturbação com as portas do teatro fechadas e as necessidades da política de balcão nos 90 obrigaram artistas, diletantes e amigos a formarem rodas, encontros, fó-runs, câmaras setoriais, enfrentamento nos Conselhos Nacionais, mobilização que dan-ça, reconhecimento de classe, lei de fomen-to e, com o debate, alguns saíram para a rua na busca de reconhecimentos e diálogos. Transeuntes, editais, fuligens, produtoras, carrinhos de pipocas, buracos, borderôs,

andarilhos, biriba, mamelucos subiram ao palco e ganharam até prédio na capital com o nome da dança.

Com isto tudo, na colônia os ventos trafegam alamedas tortuosas e sem vias de termos uma pista de para onde estamos nos encaminhando. Arremedos de chamamen-tos públicos, por exemplo, acabam-se como estratégias de acomodação e cooptação de antenados ou tranquilizantes dos pertur-badores do sossego barnabé. Ou seja, uma prática oportuna nociva de encaminhamen-tos para algo que poderia apontar para a construção de uma política cultural perma-nente e sustentável. Porém, faz bem lem-brar Milton Santos quando dizia que somos um povo amalgamado na perversa cultura de não ter a crítica como elemento, sequer simbólico, no embate de ideias e a academia é a ilustração mais corrosiva desta missiva. Portanto, prevalece o “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

No campo da criação algumas parcas ini-ciativas tentam dialogar com o seu entorno e, estas quando acontecem, são ovacionadas com mérito e louvor como assistimos numa apresentação recente de diálogos abertos de coreógrafos no palco sonhado de um Sesc. O público sintonizado não falou ao celular, não cutucou a cadeira, calou os choramin-gos dos bebes que continuam sendo levados às apresentações e, principalmente, aplau-diu com sustento os que buscam desafios e fez beiços aos acomodados.

No que tange a formação, apesar de tan-tas perambulações que fazemos como pú-blico nos cantos paulistas, não colhemos e nem cozinhamos rupturas ululantes. Vemos

uma escola municipal ali ameaça aprofun-damentos, mas logo muda a gestão e o bal-de volta ao raso; dois ou três fazedores ra-dicalizam experimentações sonhando com uma bolsa permanente no exterior e aquela matrona municipal compra a capa e todas as páginas principais da revista para que os paitrocínicos mantenham-se informados.

Caro leitor, a dança, a música, o teatro e as insustentáveis artes visuais continuam carregando suas pedras na capital e no inte-rior. Vez em quando vão ao cume observan-do paisagens, ameaçam vôos e até rompi-mentos das gaiolas. Entusiasmados com os ventos e o visual montam companhias, po-rém não percebem que as pedras, mais uma vez, deslizam aceleradas ao planalto desma-tado da floresta silenciosa dos canaviais.

No descompasso desta marcha tosca a arte continua insistindo em representar a vida como ela é, no entanto, não precisa-mos aceitá-la. Então que venha mais um murro em ponta de faca ou fortes marre-tadas neste muro velho alimentado por almas sebosas e seus gabinetes mágicos. Afinal, a insatisfação é o nosso estímulo e o mote para que a existência não se reduza a meias verdades para a constituição de uma eternidade possível.

“Não aguento mais esta coisa de fechar os dois últimos e mais lucrativos meses do ano para estas escolinhas e suas menininhas pulando no palco para ser aplaudidas pelos pais e as professoras receberem flores. Isto não é da nossa praia”

Hélvio Tamoio é produtor e apresentador do

programa Paracatuzum.

Page 34: murro em ponta de faca

BIBLIOTECA/MURRO#01

34

Um dos maiores nomes da dança no Brasil, Vianna apresenta, enquanto resultado de rigoroso trabalho de estudo, experimentação, observação e reflexão, as possibilidades expressivas do movimento. A obra analisa o corpo e suas implicações anatômicas, funcionais e psicológicas. Vianna, um pedagogo do corpo, também realizou experiências no teatro.

A obra discute questões concernentes à epistemologia, à sociologia e à educação no que diz respeito ao ensino da dança no Brasil. Trata da necessidade de embutir no ato de transmissão de conhecimento aspectos críticos e transformadores que revelem um relacionamento sadio entre arte, corpo, escola, indivíduo e sociedade. Também questiona os caminhos que o ensino dança no País toma.

A autora propõe um registro detalhado do movimento, tal como a pauta e os sinais musicais formalizam a música. O livro investiga a conveniência do conhecimento de notações registradas para a criação de obras coreográficas e para a conservação das atividades da dança.

A obra estabelece relações entre o método de Konstantin Stanilávski de preparação do ator, talvez o mais influente da história recente do teatro, e os estudos do corpo na contemporaneidade. A autora analisa o conceito de ação física tendo como referência maior o dualismo corpo-mente.

A DANÇAKLAUSS VIANNASUMMUS

DANÇANDO NA ESCOLAANA LÍGIA TRINDADECORTEZ

A ESCRITA DA DANÇAANA LÍGIA TRINDADEEDITORA DA ULBRA

AS METÁFORAS DO CORPO EM CENASANDRA MEYER NUNESANNABLUME

DANÇA NASLETRAS

Page 35: murro em ponta de faca

EPÍLOGO/MURRO#01 POR/KISSO

mondokisso.blogspot.com

Page 36: murro em ponta de faca

POLÍTICAS PÚBLICAS /A felicidade bate à porta?

ANA TEIXEIRA /As companhias 2 na berlinda

KURT JOOSS /Revolução de linguagem

BALLET STAGIUM /Conhecendo um país e seu povo

INTERSECÇÃO /A dança e o cinema

GAL OPPIDO /Imagens do corpo

KISSO /A política do burro