murmuraÇÕes e memÓria da inconfidÊncia mineira...
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QUE O PAPEL ADMITIA TUDO QUANTO SE LHE QUISESSE ESCREVER: BOATOS,
MURMURAES E MEMRIA DA INCONFIDNCIA MINEIRA
Tarcsio de Souza Gaspar
Mestre em histria pela Universidade Federal Fluminense
RESUMO
Este artigo investiga a memria criada em torno da Inconfidncia Mineira, atravs da anlise dos
boatos e murmuraes que circularam em Minas Gerais e na cidade do Rio de Janeiro entre o incio
da represso, em 1789, e a execuo de Tiradentes, em 1792. Objetiva-se questionar a natureza da
opinio pblica colonial, enquanto lugar social de conflito, onde se chocam linguagens polticas
divergentes. Tensionada entre discursos corporativos de protesto, que j pertenciam ao vocabulrio
poltico colonial, e uma nova linguagem poltica oriunda da Ilustrao, a memria da Inconfidncia
Mineira ganhou caracteres polmicos e contraditrios, que perduram at os dias atuais.
Palavras-chave: Inconfidncia Mineira; memria e linguagem poltica.
Abstract:
This article investigates the memory created around of the Inconfidencia Mineira, through the rumors
and murmurings analysis that circulated in Minas Gerais and in the city of Rio de Janeiro between
beginning of the repression, in 1789, and Tiradentes' Execution, in 1792. It objectifies question the
nature of the colonial public opinion, while social place of conflict, where we shock divergent
political languages. Divided between old corporative speeches of protest and a new arising political
language of the Illustration, the memory of the Inconfidencia Mineira won polemic and contradictory
characters, that last until current days.
Key-words: Inconfidncia Mineira; memory and political language.
Este artigo investiga a memria criada em torno da Inconfidncia Mineira, atravs da anlise
dos boatos e murmuraes que circularam em Minas Gerais e na cidade do Rio de Janeiro entre o
incio da represso aos inconfidentes, em 1789, e a execuo de Tiradentes, em 1792. Objetiva-se
questionar a natureza da opinio pblica colonial, enquanto lugar social de conflito, onde se chocam
linguagens polticas divergentes. Tensionada entre discursos corporativos de protesto, que j
pertenciam ao vocabulrio poltico colonial, e uma nova linguagem poltica oriunda da Ilustrao, a
memria da Inconfidncia Mineira ganhou caracteres polmicos e contraditrios, que, sob certo
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sentido, perduram at os dias atuais. 19
Descoberta a conjurao e presos os seus principais integrantes, no foram homogneas as
especulaes pblicas que se fizeram a respeito do crime. Boatos os mais diversos circularam,
polemizando a qualidade que se devia conceder aos ltimos acontecimentos. Este primeiro momento
de incerteza contribuiu para a divulgao dos fatos e das pessoas envolvidas na trama, imprimindo
aos eventos da conjurao uma publicidade insuportvel, que por muito tempo manteve-se na ordem
do dia, servindo de matria para as conversaes. Uma vez cada em domnio pblico, a desordem
foi vista atravs das lentes de sua poca e encarada conforme os padres culturais e polticos do
Antigo Regime.
De um primeiro momento de sobressalto e surpresa, em que as especulaes foram
mirabolantes, passou-se maledicncia poltica sobre a devassa e os seus responsveis. De fins de
1789 at os primeiros dias de 1791, a opinio mais difundida questionava a legitimidade do processo
judicial e disparava crticas ao governador de Minas, Visconde de Barbacena, e ao delator Silvrio
dos Reis. Nesta ocasio, repetia-se a recorrente linguagem de julgamento das autoridades, de raiz
corporativa, produto conceitual do Antigo Regime, tantas vezes ecoada na histria de Minas ao longo
do sculo XVIII. Difamados e vilipendiados nas conversaes, o Visconde de Barbacena e o coronel
Joaquim Silvrio mantiveram-se no epicentro da ladainha at a chegada do Tribunal da Alada, em
1791. Desde ento, o cenrio murmurativo modificou-se devido atuao do rgo judicirio, que
fora nomeado diretamente pela rainha para conduzir o processo de sentena. As manobras
institucionais adotadas pela metrpole intentavam muito mais que o julgamento, puro e simples, do
crime. Tornara-se preciso responder s presses polticas americanas, interpondo um basta s
maledicncias sobre a justia colonial. E a resposta veio atravs do teatro judicirio, que culminou no
perdo para os envolvidos, excetuando-se o alferes Tiradentes. O suplcio de Silva Xavier encerra os
mecanismos simblicos que procuravam silenciar as vozes opositoras.
19 Para a noo de discurso corporativo, veja-se ngela Barreto XAVIER & Antnio Manuel HESPANHA. A
representao da sociedade e do poder. In: Antnio Manuel Hespanha (coord.) Histria de Portugal. V. 4. O Antigo
Regime. Lisboa: Estampa, 1993, p. 121-155; tambm Antnio Manuel HESPANHA. Revoltas e revolues: a
resistncia das elites provinciais. Anlise Social. Vol. XXVIII (120), 1993 (1), p. 81-103. Para a noo de linguagem
poltica, vejam-se os trabalhos de J. G. A POCOCK Linguagens do Iderio Poltico, So Paulo, EDUSP, 2003; e de
Quentim SKINNER. As Fundaes do Pensamento Poltico Moderno. Tr. Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta.
So Paulo, Cia. das Letras, 1996.
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Desde ento, a noo de inconfidncia foi definitivamente comprovada pelos agentes da
represso e imposta ao pblico da Amrica Portuguesa. Entretanto, no instante mesmo em que era
determinada, a nomenclatura imiscuiu-se no novo tempo histrico advindo com a Revoluo
Francesa e com a crtica ilustrada incisiva realidade do Antigo Regime. Ironicamente, a coroa
portuguesa, ao definir, ela prpria, a natureza do crime, acabou por empurrar o episdio
conspiratrio de Minas para junto do novo vocabulrio poltico que, ento, se formulava no mundo
ocidental. Por decorrncia, a Inconfidncia pde ser correlacionada, de forma anacrnica e
equivocada, simbologia da Revoluo Francesa.
***
Mal o processo de devassa comeara seus trabalhos, ainda em 1789, vieram tona as
primeiras avaliaes dos ltimos acontecimentos. Misturadas e confundidas muitas vezes, titubeantes
pela contemporaneidade, estas vozes iniciais de apreciao anunciaram a folha branca, em cuja
superfcie iro se inscrever os traos rascunhados da memria da Inconfidncia Mineira. E suposto
este discurso reminiscente adviesse, como provocao, do exterior das grades oficiais, ser nas
palavras da populao que ele encontrar eloqncia. Os documentos puderam captar um esforo
distinto de julgamento, no qual sentenas e veredictos embaralhavam-se aos valores morais e
polticos dos espectadores, gerando incerteza, crtica e remorso. Enquanto lembrana forjada pelos
ouvintes e pelos falantes que assistiram ao espetculo da punio, o resqucio murmurante da poca
imbuiu-se de sua prpria linguagem, de sua prpria maneira de falar, em tudo distinta da outra que,
como corte, o futuro lhe reservaria.
Ao fim de outubro daquele ano, um morador annimo da Vila de So Joo enviou carta
endereada cidade do Porto, no reino, escrevendo o primeiro relato sobre a represso da
Inconfidncia.20
No intuito de descrever ao seu destinatrio a turbulncia poltica da capitania de
Minas Gerais, o missivista pde captar o ambiente geral de notcias disponveis e, sobretudo,
registrar os falatrios existentes. Comeou pela onda de prises ocorridas em maio, a qual, segundo
ele, assustou o povo, devido a serem [os detentos] pessoas de carter e graduao e que na terra
faziam respeito. Do sobressalto, os expectadores passaram ao burburinho. Como se ignorassem os
20 No h datao precisa no documento. A referncia exterior da fonte : Biblioteca Municipal do Porto, PT, cd. 146.
(Ap. C. PASSOS, A conspirao mineira da Inconfidncia, Coimbra, 1942.). Nos Autos, o documento aparece na cota:
MISSIVISTA Local Carta para a cidade do Porto relatando notcias da represso Inconfidncia Mineira, ADIM, v. 9,
p. 34-43. A data sugerida pelos organizadores, Tarqunio J. B. de Oliveira e Herculano Gomes Mathias, de 30/10/1789.
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motivos das detenes, isto levou o povo a fazer diversos juzos. Num primeiro momento, as vozes
alvitraram a hiptese dos descaminhos, com os dizeres de uns (...) que era por causa do ouro de
contrabando; e [de] outros, que por passagem de diamantes. Contudo, prosseguia o missivista, o
correr dos dias fez anunciar uma nova notcia sorrateira. Os boatos sobre a conspirao se
espalharam, trazendo a opinio de que, entre os presos, existisse ajuste de um levantamento nestas
Minas, para serem depostos o governo e o general que as governa, ao qual haviam de o matar
acrescentavam alguns. Juntadas nova perspectiva estiveram inmeras expanses de todo
especulativas para a populao. Na viso do escrevente, a revolta planejava a expulso dos ministros
da monarquia, devendo a terra ficar governada como repblica pelos cabeas desta maldita idia; o
novo regime deveria reger-se por eleio, tanto no eclesistico como no secular. Outros diziam que
os conspiradores houvessem escrito livro da lei que queriam estabelecer; porm, a este respeito, as
notcias eram ainda mais vagas, pois muita parte deste negcio no est esclarecida, e os segredos
prin