murgido uma aldeia com futuro€¦ · que, todas as árvores de fruto estão floridas e se for nos...
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ARTUR MENDES PINTO
MURGIDO
UMA ALDEIA
COM FUTURO
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No ano de 2000, escrevi sobre Murgido,
com o título Historial da Aldeia de Murgido.
Descobri sobre a aldeia tudo que me foi
possível. Dei a conhecer factos desconhecidos e
porque pensei na altura e ainda hoje penso,
que Murgido é uma aldeia com história, daí
que manifestei a minha esperança, que depois
do que descobri, algum Murgidense ou não,
fosse mais além, no entanto, pelo menos, que
eu tenha conhecimento ainda não.
Em Murgido, num tempo não muito dis-
tante, as suas gentes não sabiam ler nem es-
crever, mas hoje, já assim não é, já lá há jo-
vens com licenciatura e com capacidades, julgo
eu, para investigar sobre o que terá sido a
aldeia de Murgido.
O Autor
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No Inverno,
do lado de cá ou
de lá bem no cimo
ou bem no fundo,
mais novos ou
menos novos, tiri-
tam de frio, até
naqueles dias em que o Sol raia por entre as
nuvens pardacentas, embora com menos bater
de maxilares do que naqueles dias de fortes
invernias quando a chuva cai do céu como
saída de um frigorifico, ou a neve cai abun-
dantemente e mesmo depois de já ter o chão
transformado num lindo tapete branco, que
por vezes, na ausência de chuva permanece
por semanas e os mais pequenotes, apesar de
frágeis, mas afoitos, lá saem de casa, do
Neve
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aconchego da lareira que fumega o dia todo e
se juntam para fazerem bonecos de neve ou
enormes bolas o que os diverte. Começam com
um pequeno punhado de neve que vão rebo-
lando até se tornar num tamanho que os
obriga a desistir, por já não terem força
para a fazerem rolar, socorrendo-se muitas
das vezes dos adultos para os ajudar a ro-
dar a bola para que atinja o maior tamanho
possível. É para eles um feito notável, por-
que a neve poucos dias passados, na maior
parte das vezes derretesse, mas a bola leva o
seu tempo.
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Na Primave-
ra vem o desabro-
char, em todo e
qualquer canto ou
local tudo desa-
brocha, seja no campo, ou nas serras onde
há pouco tempo tudo regelava, apetece agora
sair de casa abrir os braços aos céus, louvar
a Deus e respirar o ar puro, subir os mon-
tes, caminhar até àquela montanha bem al-
ta, subir a um ou outro penedo, àqueles de
acesso fácil e daí olhar e voltar a olhar em
redor, ver todas aquelas encostas, algumas
muito ingremes e lá no fundo os vales. Olhar
para aquele penedo lá longe, num outro alto
que até parece pequeno, mas visto de perto é
enorme e de acesso impossível. Ali mesmo ao
A Serra Florida Florida
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lado, naquele ou noutro penedo os sardões a
espreguiçarem-se ao sol retemperando as
energias que despenderam metidos por tanto
tempo nas tocas.
Mantendo-se o silêncio, sem quase
respirar, lá se vê um coelho distraidamente
na procura de erva acabada de nascer. Des-
cendo o olhar mais para baixo para os terre-
nos agrícolas e para as hortas tem-se o
deslumbramento de ver um jardim, uma vez
que, todas as árvores de fruto estão floridas
e se for nos fins de Abril ou princípios de
Maio, toda a serra, mesmo ao nosso lado
está encantadora com o afloramento da gies-
ta, do tojo, da carqueja e da urze, poden-
do-se contradizer o ditado popular que diz:
“grande é o Marão e não da palha nem
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grão”, mas transforma-se num imenso jar-
dim.
O Verão começa
suave, logo se tiram
as roupas quentes, se
arregaçam as man-
gas, para depois se
sentir um calor abrasador, um sol que parece
queimar, que obriga a um transpirar cons-
tante, dando origem à procura das fontes ou
nascentes para refrescar a garganta, a pro-
curar as sombras, de preferência onde corra
uma aragem, parece que o sol desceu lá das
alturas e se posicionou bem perto da terra
que dada a altitude da serra parece que en-
A Serra no Verão
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curta o espaço entre um e outro. Tempos há
em que aqueles que se dedicam à cultura do
milho, não podem abrigar-se do calor mesmo
na sua pior hora, porque a rega os obriga a
ir para entre o milho, embora, beneficiem da
sua sombra e de andarem com os pés dentro
de água que sempre refresca um pouco, pre-
senteando estes, do interior dos milheirais,
aqueles que gozam as sombras, com as suas
cantigas, usuais quando procedem à rega e
de um ou de outro lado vem um cantarolar,
apesar de alguns pouco interesse desperta-
rem, porque os seus interpretes não cativam,
mas outros, estimulam até os mais sonolen-
tos.
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O Outono come-
ça com o São Mi-
guel, com a colheita
do milho e com as
divertidas e tradicio-
nais esfolhadas e em pequena monta com as
alegres vindimas e com o começar a desarre-
gaçar as mangas e principiar a vestir roupas
mais aconchegantes. Talvez, dependendo do
ponto de vista como se analisa esta estação,
poderá parecer que trás tristeza, porque a
viciosidade esmorece, as plantas ficam mais
tristes, as lindas flores desaparecem, mas
por outro lado, caminhando pela parte mais
baixa da serra, onde existem carvalhos e
castanheiros, nota-se a beleza das folhas
O cair das folhas folhas
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caducas a caírem ao chão e formarem um
lindo tapete de folhada.
Apesar de ser uma estação em que faz
com que o verde desapareça, também trás o
amarelo ou dourado das folhas das árvores
que dão uma vista deslumbrante.
A descrição
que é feita sobre a
altitude da serra e
o tempo poder-se-
-á aplicar a
muitas aldeias serranas, no entanto, neste
caso é sobre a aldeia de Murgido, situada
em plena serra do Marão, uma aldeia que
em tempos não assim tão distantes, estava
A Aldeia de Murgido
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completamente isolada, sem quaisquer meios
de comunicação, vivendo as suas gentes de
parcos recursos, os que ali eram produzidos.
Hoje, já assim não é porque se modernizou e
as suas gentes já têm outros meios de sub-
sistência. As casas velhas, na sua maioria
foram reconstruídas e muitas outras feitas de
raiz, reforçando desta forma o embelezamento
daquela aldeia serrana em franco desenvol-
vimento.
Murgido é uma das aldeias da fregue-
sia de Candemil cuja sede se situa na al-
deia com o mesmo nome, onde existe a igreja
matriz e a residência paroquial. A aldeia de
Murgido é a maior aldeia da freguesia e
também a mais alta, a mais serrana, mas
também, a que está mais perto do céu.
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Segundo as Ordenações Afonsinas,
Murgido terá sido uma terra realenga, as-
sim como uma boa parte de toda a freguesia
o terá sido.
A freguesia de Candemil, da qual
Murgido é a maior fatia, pelo menos até mil
setecentos e cinquenta, seria composta tam-
bém pelas aldeias de Candemil, Revilhães,
Gião e Granja, apesar desta última ser in-
tegrada em Murgido, mais tarde foi criada
a aldeia do Espinheiro, aldeia que dado aos
acessos rodoviários que a servem atualmente
está em franco crescimento.
Murgido, onde alguém, em
tempos muito longínquos ali começou
a habitar, construiu uma Fonte e
Fonte
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uma Capela dando-lhe como padroeira a
Nossa Senhora dos Remédios, cujo nome
também foi atribuído à fonte,
podendo presumir-se que a
Capela seja mais antiga, ou
talvez não, poderia muito
bem acontecer que lhe mu-
dassem o nome.
Segundo a lenda, a Senhora
dos Remédios terá ido para a
Granja, onde por certo, já existiria
a Capela que acabou por ser
abandonada, agora reconstruída e a fonte
terá acompanhado a Nossa Senhora, porque
terá secado em Murgido e brotado na Gran-
ja e quando do retorno da Nossa Senhora a
Sª Dos Remédios
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Murgido, também a água a terá acompa-
nhado e voltado a correr na bica da fonte.
Os primeiros habitantes deviam ser
muito devotos da Nossa Senhora com a evo-
cação de Senhora dos Remédios. A Senhora
dos Remédios é venerada em muitos outros
lugares, sendo também conhecida como Nossa
Senhora do Bom Remédio, cujo nome advirá
de aquando da necessidade de resgatar os
cristãos escravizados na África e no Oriente
Médio, por São João da Mata e São Félix
de Valois, que fundaram em mil cento e no-
venta e oito a Ordem Hospitalar da Santís-
sima Trindade e para isso precisavam de
vultuosas somas em dinheiro, pediram a
Maria Santíssima, o remédio para todas as
necessidades que encontravam, sendo abun-
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dantemente atendidos e assim conseguiram
libertar da escravidão milhares de irmãos na
Fé e como gratidão, passaram a honrar a
Mãe de Deus sob o título de Nossa Senhora
do Bom Remédio ou Remédios, cuja festa se
comemora no dia oito do mês de Setembro.
Por eles ou não, foi criada a novena a Nos-
sa Senhora do Bom Remédio, que transcre-
vo:
“Ó Rainha do Céu e da Terra, San-
tíssima Virgem, Nós Vos veneramos. Vós sois
a Filha bem-amada do Deus Altíssimo, a
eleita Mãe do Verbo Encarnado, a imacula-
da Esposa do Espírito Santo, o sagrado
Vaso da Altíssima Trindade. Ó Mãe do
Divino Redentor, que, sob o título de Nossa
Senhora do Bom Remédio, vindes em ajuda
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de todos os que Vos invocam, estendei a nós
a Vossa proteção maternal. Dependemos de
Vós, ó querida Mãe, como filhos sem ajuda
e necessitados dependem de mãe terna e cui-
dadosa. Ave-maria (rezar) Nossa Senhora
do Bom Remédio, fonte de ajuda infalível,
permiti-nos retirar de Vosso tesouro de gra-
ças, nos momentos de necessidade, tudo
quanto precisarmos. Tocai os corações dos
pecadores, para procurarem a reconciliação e
o perdão. Confortai os aflitos e os abando-
nados, ajudai aos pobres e aos que perderam
a esperança, amparai os enfermos e os que
sofrem. Possam eles ser curados de corpo e
alma, e fortalecidos no espírito para supor-
tar seus sofrimentos com paciente resignação
e fortaleza cristã. Ave-maria. (rezar)
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Querida Senhora do Bom Remédio, fonte de
ajuda infalível, Vosso Coração compassivo
conhece o remédio para toda aflição e miséria
que encontramos na vida. Ajudai-nos, com
vossas orações e intercessão, a encontrar re-
médio para nossos problemas e necessidades,
especialmente... (Faça aqui os pedidos que
deseja.) De nossa parte, ó amorosa Mãe,
nós nos comprometemos a um estilo de vida
mais intensamente cristão, a uma observân-
cia mais cuidadosa da Lei de Deus, a ser-
mos mais conscientes em cumprir as obriga-
ções do nosso estado de vida, e a esforçar-
nos para sermos instrumentos de salvação
neste mundo arruinado. Querida Senhora do
Bom Remédio, nós Vos pedimos que estejais
sempre presente junto a nós e, por vossa in-
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tercessão, possamos gozar de saúde de corpo,
de paz de espírito, e crescer na Fé e no amor
ao Vosso Filho, Jesus. Ave-maria. (rezar)
Rogai por nós, ó Santa Mãe do Bom Re-
médio. Para que possamos aprofundar nossa
dedicação ao Vosso Filho e reavivar o mundo
com o seu Espírito.”
Julga-se que a
Granja era apenas uma
enorme quinta, com de-
terminados privilégios.
Aí terá vivido o
Valentão, como é referido
nas lendas de Murgido. Existia uma impo-
nente casa, tendo integrada uma Capela,
Stª. Rita
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sendo seu orago São Salvador, segundo
uma carta escrita pelo Abade de Candemil,
em nove de Março de mil setecentos e cin-
quenta e oito e nesse tempo já haveria ali
outras casas, embora poucas. Na Capela da
Granja existia também a imagem de Santa
Rita que terá passado a ser tida como a
padroeira, imagem que com o abandono da
Capela, talvez motivada pelo facto de a ca-
sa ser dividida por várias famílias, foi le-
vada para a Capela de Murgido, onde
permaneceu por bastantes anos, mas sem
nunca deixar de ser conotada como sendo da
Granja e nas festas eram sempre as gentes
da Granja que tratavam do seu andor para
sair na procissão e era sempre designado co-
mo o andor da Granja. Há poucos anos foi
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a Capela restaurada e a Santa Rita voltou
para lá, onde é venerada e também lhe fazem
uma festa em sua homenagem e adquiriram
a imagem de São Salvador.
Há muita coisa escrita sobre Santa
Rita, ou Santa Rita de Cássia, como
também é conhecida. Sendo designada como
Santa dos impossíveis e advogada dos afli-
tos, nasceu em Rocca Porena, perto de
Cássia (Itália), em vinte e dois de Maio de
mil trezentos e oitenta e um. Apenas vou
narrar aqui um pequeno enxerto. Não me re-
cordo se a imagem que está na Capela será
igual à da foto.
“Desde jovem, Rita tinha intenção de
ser religiosa, mas seus pais, temendo que
ela ficasse sozinha, resolveram casá-la com
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um jovem de família nobre, mas de tempe-
ramento excessivamente violento. Ela supor-
tou pacientemente tal situação por 18 anos.
Como ele tinha muitos inimigos, foi assassi-
nado. A viúva suportou a dolorosa perda,
perdoando os assassinos. Porém, crescia em
seus filhos o desejo de vingança. Rita pediu
que Deus os levasse, pois seria melhor que
outra tragédia. Assim, perdeu os filhos.
Rita estava livre para dedicar-se a Deus e
pediu para entrar no Convento das religiosas
Agostinianas da cidade. Mas naquela co-
munidade só podiam entrar virgens. Então,
ela transformou sua casa num claustro, onde
rezava as orações habituais das religiosas.
Uma noite, enquanto rezava, ouviu
três batidas violentas em sua porta e uma
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voz lá de fora dizia: “Rita! Rita!”. Abriu
a porta e viu em sua frente três Santos, que
rapidamente a levaram ao Convento onde
havia sido negada três vezes. Os mensagei-
ros fizeram-na entrar, apesar das portas
estarem fechadas, e deixaram Rita em um
dos claustros. Depois desapareceram. A
superiora ficou fascinada com essa manifes-
tação Divina. As religiosas decidiram por
unanimidade que a viúva fosse recebida.
Admitida noviça, Rita começou a trabalhar
para realizar seus desejos. Consagrou-se à
oração e penitência, seu corpo foi seguida-
mente flagelado. Passava os dias a pão e
água e noites sob vigília e oração.
Certo dia pediu com extraordinário fer-
vor que um estigma de Jesus aparecesse para
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sentir a dor da redenção. Em uma visão,
Rita recebeu um espinho cravado em sua
testa. A chaga ficou por toda a vida e ain-
da pode-se vê-la em sua cabeça conservada
intacta com o resto do corpo.
Um dia uma parente foi visitá-la, ela
agradeceu a visita e ao se despedir pediu
que lhe trouxesse algumas rosas do jardim.
Como era inverno e não tinha rosas, pensa-
ram que Rita estava delirando e sua visi-
tante não ligou para seu pedido. Como para
voltar para casa teria que passar pelo jar-
dim olhou e se surpreendeu ao contemplar
quatro lindas rosas que se abriram entre os
ramos secos. Admirada do prodígio entrou
no jardim, colheu as flores e as levou ao
Convento de Cássia. Nesta época, Rita es-
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tava muito doente e morreu em 22 de Maio
de 1457.
No dia seguinte, seu corpo foi colocado
na Igreja do Convento. Todos os habitantes
da cidade foram venerar a religiosa.”
Em relação a São
Salvador, não irei dizer
muito, apesar de ser este
santo padroeiro de muitas
Capelas, no entanto, so-
bre o muito que se escreveu foi no Brasil,
talvez tenha sido o protetor dos que descobri-
ram aquela terra e daí o terão trazido. Não
sei se a imagem que está na Capela será
igual à da foto.
S. Salvador
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Na freguesia e num
lindo planalto existe a
Capela da Senhora do
Corvachã, planalto esse,
hoje, muito concorrido
fora do dia da Romaria
que é no mês de Maio,
Ali há encontros para fins diversos,
como piqueniques, porque já tem regulares
acessos, bem diferentes de outros tempos.
Murgido, em tempos idos era a aldeia
mais privilegiada, porque para ali chegar,
tinha o caminho quase todo plano. Enquanto
os vindos de outras aldeias vizinhas tinham
de fazer longas subidas, em comparação com
a aldeia de Murgido. Era a Romaria da
Capela de Corvachã
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pequenada e das pessoas de idade mais
avançada, dado ao favorecimento do cami-
nho.
Não poderei falar dos seus primórdios,
nem sobre a história ou lenda da Senhora do
Corvachã por desconhecimento, apesar da
pesquisa, nada foi encontrado.
A Igreja Matriz, no
lugar de Candemil, há
alguns anos, não muito
distantes, recebia todos
os Domingos gentes de Murgido que iam
assistir à missa, o que já não acontece hoje,
porque também têm missa na sua Capela
todas as semanas.
Igreja
Matriz
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É São Cristóvão o Orago da fregue-
sia. São Cristóvão é protetor dos viajantes e
motoristas. De todas as aldeias da fregue-
sia, por esse mundo fora há muitos emi-
grantes, que viajam todos os anos para as
suas terras e bem precisam da proteção do
Patrono. Sobre o santo São Cristóvão muito
se escreveu, no entanto, vou apenas transcre-
ver um enxerto:
“São Cristóvão nasceu no século III,
era filho primogénito do rei de Canaã, e re-
cebeu o nome de Ofero Relicto despertando
admiração pelas suas virtudes, principal-
mente a delicadeza com que tratava as pes-
soas. Era belíssimo e sua ambição maior era
a de servir um rei que fosse muito poderoso.
Cristóvão passou a prestar serviços ao im-
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perador, como guerreiro famoso e temido e
passou a obedecer a Satã, cujo poder fazia
o imperador se amedrontar. Relicto percebeu
que acima do poder de satanás, estava a
cruz, ante a qual fogem todos os demónios e
Relicto se tornou cristão. Começou a viajar
em busca da história do Crucificado e em
uma de suas viagens encontrou um eremita
que lhe contou a história. Converteu-se, ba-
tizou-se e decidiu devotar a vida ao trans-
porte dos viajantes que necessitassem atra-
vessar um rio caudaloso. Certo dia, um me-
nino pediu a Cristóvão que o levasse até a
outra margem. Colocou a criança nos om-
bros, entrou na água e começou a sentir que
o peso aumentava a cada passo. Ao chegar
à margem oposta, curvado pela carga, quase
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morrendo afogado por seu enorme peso, ouviu
do menino: “Não te surpreendas com o que
aconteceu, pois comigo carregaste todos os
pecados do mundo.” Só então reconheceu o
pequeno viajante: era o próprio Jesus, que o
mandou cravar na terra o cajado no qual se
apoiava. No dia seguinte, o cajado tinha-se
transformado numa palmeira. O milagre fez
com que muitos se convertessem e levou Re-
licto Ofero a mudar seu nome para Chis-
tophoros (Cristóvão) que em grego significa
“aquele que carrega Cristo”. Retirado do
calendário litúrgico católico em 1969 por
ter-se dúvidas de sua verdadeira existência,
São Cristóvão continua a ser venerado em
todo o mundo como protetor dos viajantes e
motoristas.”
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A freguesia de Candemil situa-se em
plena serra do Marão, a aldeia de Murgido
é, sem dúvida, a mais serrana.
É uma freguesia com história, pelo
menos no passado. Já em tempos muito lon-
gínquos, em Murgido, sem nada escrito que
o possa comprovar, terá vivido um Padre,
que provavelmente terá nascido ali, numa
terra onde ao tempo ninguém sabia ler. Viveu
numa casa recentemente reconstruída, casa
essa que terá sido dividida e era notório que
de uma parte a pedra era trabalhada, a que
seria provavelmente mandada construir pelo
Padre. Essa casa situa-se no caminho que
vai do Espinheirinho até ao cruzeiro, hoje
propriedade de uma neta de Tio Manuel
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Pinto, situada do outro lado do caminho de
um dos cafés da aldeia.
Foi em Candemil, na aldeia que serve
de sede da freguesia, onde nasceu em trinta
de Março de mil oitocentos e cinquenta e
dois, o grande homem que foi intitulado como
sendo o “Águia do Marão”, o Senhor
Conselheiro António Cândido, de seu nome
completo António Cândido Ribeiro da Cos-
ta. Foi um clérigo, orador e politico. Licen-
ciou-se em Direito e Teologia e foi Professor
Catedrático na Universidade de Coimbra.
Esteve ligado ao grupo Vencidos da Vida,
um grupo composto por intelectuais, assu-
mindo-se conservador. Exerceu várias fun-
ções na cena politica. Foi conselheiro e Mi-
nistro do Reino, do qual se terá demitido,
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mantendo-se como Procurador Régio, lugar
do qual terá sido afastado aquando da Re-
volução de Outubro de mil novecentos e dez,
afastando-se a partir daí da vida politica.
Muito mais há para dizer sobre tão ilustre
figura, mas vou deixar para os estudiosos e
historiadores.
Hoje, sobre as diferenças entre a aldeia
de Murgido e a de Candemil, para além da
altitude entre uma e outra, pouco existe,
porque as duas já se ligam por estrada e
pelo menos a juventude já convive, mas em
tempos idos não era assim, enquanto Can-
demil tinha uma estrada nacional, Murgido
tinha um caminho mal-amanhado e era di-
33
fícil a ligação entre os habitantes, muito em
especial da juventude. As gentes de Murgi-
do ainda iam a Candemil para algum acto
religioso, por ser ali a igreja, mas as gentes
de Candemil, salvo uma ou outra exceção,
não iam a Murgido. Os moradores de Can-
demil eram ao tempo, um pouco mais instru-
ídos, porque ali havia uma escola primária,
onde a maioria estudava até à quarta clas-
se, enquanto Murgido tinha apenas na
Granja um posto escolar, que a maior parte
das vezes estava sem regente e por isso,
muitos ficavam sem aprender a ler, a única
alternativa seria a escola de Candemil, mas
dado à regular distância, ao mau caminho
que no Inverno teria de ser feito já de noite,
nenhumas crianças iam e os pais, naquele
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tempo, também não estavam muito vocacio-
nados para que os filhos aprendessem a ler.
Sendo a aldeia de Murgido onde a
maior parte das pessoas não sabia ler e as
que sabiam, era muito deficiente, assinavam
o seu nome e pouco mais, mas era ali que
todos os anos ou quase, até aos anos cin-
quenta do século passado, que se faziam os
Entremeses, que eram apenas feitos por
gente da aldeia e iam representá-los às al-
deias vizinhas.
Os Entremeses, uma comédia engraça-
da, feita por atores que não passavam de
pessoas que trabalhavam no campo e nem ler
sabiam para estudar os papéis da persona-
gem que tinham de representar, mas mesmo
assim, decoravam-nos com a ajuda do en-
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saiador, pessoa também da terra e com pou-
cos conhecimentos literários, acabando por
fazer uma boa peça teatral, que vista aos
olhos de hoje, talvez se achasse que não teria
graça nenhuma, mas naquele tempo, era
muito importante e os seus intérpretes eram
tidos como grandes atores. Julgo que a últi-
ma peça que ali terá sido representada terá
sido o “Avarento”.
Ao referirmo-nos a
Murgido não podemos
desassociar a aldeia da
Serra do Marão, da
qual faz parte e é sem
dúvida, uma das aldeias mais serrana, e,
Capela da Sª
da Serra
36
como vulgarmente se diz, julgo que de um e
outro lado, “para cá do Marão, mandam os
que cá estão”. Poderá dizer-se que Murgi-
do está do lado de quem manda, porque no
ponto mais alto da serra, um pouco bem
mais acima da aldeia, tem uma Capela, em
honra de Nossa Senhora da Serra, também
conhecida por Senhora do Marão e essa
Capela fica do lado de cá, embora pertença
à freguesia da Teixeira, concelho de Baião.
É em Julho o dia da Romaria, hoje, facili-
tada a toda a gente, porque já se vai para
lá de carro e já ali acorrem visitantes de
muito lado, mas alguns anos atrás, só ali
iam as gentes das aldeias serranas mais
próximas e não eram todas as pessoas, por-
que as de uma certa idade já não tinham
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pernas para subir tão ingremes encostas,
mas mandavam pelos que iam um ramo de
cravos para a Nossa Senhora. Na subida
era usual, entre outras quadras, as rapari-
gas cantarem:
Nossa Senhora da Serra,
Vem cá baixo, dar-me a mão.
Que eu ainda sou muito nova,
Abafo do coração.
É a serra do Marão a sexta elevação
de Portugal Continental com 1.415 metros de
altitude. Situa-se na transição entre o
Douro Litoral e Trás-os-Montes.
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Tem muitas zonas xistosas e graníticas,
encontrando-se abandonadas ao longo da
serra várias instalações da exploração de
minas de volfrâmio, que tiveram o seu ponto
alto no tempo da segunda guerra mundial.
As mais próximas de Murgido, conhecidas
como minas do Teixo, empregaram muitos
dos habitantes da aldeia.
Ao falarmos da aldeia de Murgido,
temos de falar da Capela, da Fonte e da
Senhora dos Remédios.
A Capela sofreu ao longo do tempo al-
guma restauração interior, mas na sua es-
trutura física não terá sofrido qualquer alte-
ração, poderemos vê-la hoje, tal como os
seus construtores a programaram. Ao falar
daquela Capela levantam-se-me uma série
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de interrogações: Há quantos anos existirá?
O altar não será muito diferente de muitos
outros, mas parece ter qualquer coisa de
misterioso. Quem, e aqui é que eu fico ató-
nito, terá sido o autor e o executante da pin-
tura que a Capela tem no teto? Pintura que
ao tempo e ainda hoje é uma obra de arte.
A Fonte conhecida como Fonte da Se-
nhora dos Remédios, hoje já quase um sím-
bolo, porque já ali não vai ninguém buscar
água, por toda a gente ter água canalizada,
foi em tempos a abastecedora de quase toda
a aldeia e não era da mesma forma, nem
estava no mesmo local. Existiram duas
Fontes, uma designada por Fonte pequena e
ambas tinham um tanque para os animais
beberem. As duas provinham de minas, bem
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juntas uma da outra, sendo que a Fonte pe-
quena ficava mesmo à entrada da mina e a
outra um pouco mais abaixo, no Pisão, onde
hoje existe uma casa. A Fonte pequena todos
os anos secava no verão, talvez por isso a
terão fechado. A outra Fonte aquando da
chegada da estrada foi mudada para o local
onde se encontra, existindo ali já o lavadouro
público que também foi modificado. As pes-
soas de Cimodevila tinham, pelo menos, as
que ficavam mais próximo, a Fonte do Moi-
nho Velho.
Em todas as
aldeias serranas, há
uns anos atrás, não Eira de
Baixo
41
existia um local de reunião para os seus ha-
bitantes, a não ser a velha taberna, único
estabelecimento existente.
Murgido tinha uma particularidade,
encontraram os seus habitantes um local, que
lhes servia, porque não dizê-lo, de assem-
bleia. Todas as tardes de Domingo, Feriado
ou dia Santo e no fim do dia de trabalho,
ali se juntavam os homens da aldeia. Era
ali que discutiam os seus assuntos, onde as
novidades ocorridas na aldeia ou vindas de
outras eram conhecidas.
A presença dos homens no Espinhei-
rinho era como uma devoção. Mesmo cansa-
dos do duro trabalho do campo, os homens
não passavam sem ir ao Espinheirinho e ali
permaneciam até ao escurecer, começando
42
depois cada um a dispersar-se para as suas
casas, onde o caldo os esperava. Ao princí-
pio da noite e por vezes até bem pela noite
dentro o Espinheirinho era local de encontro
para os rapazes solteiros.
Recentemente, alguém da autarquia ou
por ela incumbido foi a Murgido e mudou os
nomes dos caminhos, passando a designá-los
por ruas, não respeitando os nomes existen-
tes, foi pena, como exemplo, falo única e
simplesmente destes: ao Espinheirinho de-
ram-lhe o nome de uma rua que nem recordo
e á Eira de Baixo, batizaram-na como largo
do Espinheirinho, quando sempre foi conhe-
cido aquele local como Eira de Baixo e o
Espinheirinho era mais acima no entronca-
mento de caminhos.
43
No tempo em que o Espinheirinho era o
ponto de reunião o chão não era em paralelo,
nem as casas que o envolvem eram como ago-
ra se vê na fotografia.
Murgido passou em poucos anos, talvez
desde meados do século passado até hoje, de
uma aldeia de casas pouco confortáveis,
mal-amanhadas, para uma aldeia com ca-
sas bonitas e com muito conforto. Os cami-
nhos também deixaram de ser de pedra tosca
ou fraga e passaram a ser calcetados. Po-
derá por isso, dizer-se que a aldeia de
Murgido em pouco ou nada se assemelha à
aldeia de outros tempos.
44
Tudo o que muda
para melhor é bom, mas
é pena que não se guar-
de uma amostra de como
terão sido as casas onde
os nossos antepassados
viveram.
Do pouco que resta ainda consegui uma
pequena mostra. A casa que teve como últi-
ma moradora a Tia Albertina Marques. O
telhado já foi substituído por uma placa.
Aqui também ve-
mos uma casa muito
antiga, com telhado
substituído. Em tempos
A Lousa que servia de cobertura
Tinha sido Lousa
45
também ele era de lousa, mas todo o restante
se mantem ainda na sua originalidade.
Ao lado vê-se o caminho que agora é
calcetado, bem diferente de outros tempos e
neste caminho, bem junto à casa existia uma
pequena pedra com uma marca em forma de
buraco, que servia para com a chegada do
sol aí marcar o meio quarto da manhã, para
a divisão da água para a rega do milho. Do
outro lado do caminho numa outra pedra era
marcado o meio-dia e no mesmo caminho,
um pouco mais à frente, de um e outro lado
existiam também em pedras outras duas
marcas que marcavam o meio quarto da tar-
de e a véspera.
46
Murgido foi em tempo uma aldeia onde
terá havido muita pastorícia, quase todos os
habitantes tinham as suas ovelhas ou cabras,
que todos os dias iam para a serra em ve-
zeira.
A Serra foi muito
povoada de lobos e era o
gado miúdo, cabras ou
ovelhas, a sua maior fonte
de alimentação, daí que
não era fácil a tarefa dos pastores, que ti-
nham de andar de olho bem
alerta e ter muita atenção ao
sinal dado pelos cães, por-
que o lobo era matreiro, fa-
Os Lobos
O rebanho a pastar
47
zia emboscadas ao rebanho nos sítios menos
suspeitos e não se limitava a apanhar uma,
matava todas que pudesse.
Hoje já não há vezeira e ovelhas tam-
bém não e os lobos desapareceram já há al-
guns anos.
Há presentemente uns criadores de ca-
bras que as pastam serra fora e se alguma
se tresmalhar da manada e à noite não re-
gressar ao curral, não corre qualquer perigo,
porque no dia seguinte lá será encontrada sã
e salva, o que não acontecia em outros tem-
pos, em que se alguma cabra ou ovelha fi-
casse perdida na serra, era devorada pelos
lobos.
Há muitos anos atrás, a serra e o
monte de Murgido foram infestados de lobos
48
de tal forma, que os moradores já não con-
seguiam proteger os rebanhos e tiveram de
começar a dar cabo deles. Um dos locais
onde os matreiros lobos faziam as suas em-
boscadas, principalmente no inverno, era en-
tre o monte chamado Cadaval e o Jugal,
pois era por aí que a vezeira passava em
direcção a Chandeirada, por ser uma zona
mais baixa e mais abrigada das intempéries.
Então montaram uma armadilha aos lobos
no local chamado Touta, um dos locais por
onde a vezeira passava, armadilha que só
ativavam durante a noite e consistia no se-
guinte: fizeram um grande buraco com duas
divisões. Numa divisão punham uma ovelha,
devidamente protegida, na outra deixavam
uma abertura falsa e devidamente camuflada
49
com ervas que ao serem pisadas por qualquer
animal, caía lá para dentro e já não saia
mais de lá. A ovelha ao sentir-se ali sozi-
nha balia toda a noite e chamava a atenção
dos lobos que iam atrás do balir e caíam no
buraco, sendo depois mortos e assim lhes te-
rão dado um grande desbaste. Esta façanha
contou-ma, ainda eu era bem pequenote, o
Tio Joaquim Feliciano, homem já de muita
idade.
O lobo, era um animal assustador e
feroz, que não só atacava os rebanhos, como
assustava as pessoas, não havia quem não
tivesse medo dos lobos, mas talvez o lobo não
fosse inimigo do homem, pois sendo a serra
pejada deles e no tempo de fortes invernias e
50
neve, quando o gado não ia para a serra,
ele descia até ao povoado e não consta que
atacasse alguém e até acontecia andarem
pessoas em terrenos agrícolas mais afastados
da aldeia, por vezes uma só pessoa e por ali
passar um lobo ou uma alcateia que ao ser
notada fugia em grande correria.
Lembro-me era eu ainda um rapazote,
de se falar que os lobos tinham atacado um
homem de Murgido e as pessoas de mais
idade também se lembrarão, mas isso não
terá passado de uma brincadeira dos lobos.
Um homem de Murgido ainda jovem, de
nome José Fustiga, quando vinha da aldeia
de Carneiro já depois do escurecer e ao che-
gar ao Jugal, aparecerem-lhe três lobos que
o seguiram até próximo da Fonte Santa,
51
onde se lhe meteram à frente, deixando-o
sem fala percetível e mesmo assim gritou por
socorro. Daquele local já o som que emitia
era ouvido na aldeia, deixando toda a gente
alarmada e logo concluíram que seria alguém
a ser atacado por lobos e muitos foram em
seu auxílio na direcção do som. O rapaz,
talvez por pensar que os lobos lhe queriam
barrar a passagem voltou para trás e desceu
pelo tapado do Fojo até ao campo agrícola
da Ribeira, onde se refugiou num Palheiro.
Os que foram em seu auxilio ao chegarem ao
local donde lhe parecera que vinha o som,
começaram a chamar, até que ouviram um
som impercetível vindo do vale e guiados por
esse som que o iam provocando para o ouvi-
rem chegaram até ao Palheiro onde se refu-
52
giara e encontraram-no sem articular uma
palavra e ao perguntarem-lhe se tinha sido
seguido por lobos ele com a cabeça respondia
afirmativamente e com os dedos indicava que
eram três, mas não lhe encontraram nenhum
ferimento e à pergunta se o tinham atacado
respondia que não. Levaram-no para a al-
deia e esteve uns dois dias sem recuperar a
fala e só depois terá contado como tudo tinha
acontecido. Este acontecimento prova, pelo
menos, em meu entender, que o lobo não
ataca o ser humano, porque os lobos bem sa-
biam que ele se aproximava da aldeia e pas-
saram por locais que se o atacassem, bem
podia gritar que ninguém o ouvia e ao descer
o tapado onde se forma um vale, também aí,
53
era um bom local para o atacarem. Os po-
bres bichos apenas se quiseram divertir.
Sempre que me entretenho a escrever,
volta e não volta, começo a escrever sobre
Murgido, demonstrará isso, a grande pai-
xão que tenho por aquela aldeia e não será
demais este meu sentimento, se foi ali que
nasci e vivi a minha juventude. Parti como
muitos outros, mas sempre a tive na minha
memória. Agora com mais tempo para a vi-
sitar e com mais conforto de habitabilidade,
recordo-a como era naquele tempo e imagi-
no-a como teria sido antes, sentindo uma
certa alegria ao ver como é hoje.
Quando tento imaginar a aldeia num
passado longínquo, sabendo que terá tido
54
outros nomes, como Morgado e Muragido já
conhecidos, leva-me a pensar que no tempo
dos Romanos, Godos ou Mouros, que por aí
terão andado, a aldeia talvez fosse a mais
importante das aldeias daquele lado da
Serra do Marão, que poderia muito bem ser
conhecida por Vila, tomando por base os no-
mes como foi dividida: Fondevila; Cimo-
devila e Cabodevila, que antes de serem
aglutinados, poderiam muito bem se ter cha-
mado: Fundo da Vila; Cimo da Vila; cabo
da Vila. Temos ainda o Chãodacal, que é
hoje uma grande parte habitacional da al-
deia, mas em outros tempos, ali apenas
existiam as lojas das cabras e das ovelhas,
não morava ali ninguém e já no meu tempo
de rapaz, apenas ali viviam três famílias,
55
no entanto, havia ali um grande número de
lojas e de palheiros.
Entre Cimodevila, Cabodevila e o
Chãodacal havia uma razoável separação
que hoje já não existe. E até que alguém
consiga melhor explicação, eu irei supor que
antes da aglutinação das palavras o Chão-
dacal se poderá ter designado por Chão da
Cala. Chão, que poderia ligar a distância;
Cala que poderia aplicar-se à qualidade e
ao estado de queijo. Ora, poderia muito bem
no tempo em que ali havia grande pastorícia,
houvesse também a feitura de queijo.
Estar em Murgido, no tempo frio,
ameno ou quente é salutar. Sentado numa
pedra à noite, olhar aquele céu azul, crave-
56
jado de estrelas, parece-nos diferente, mais
bonito do que visto de qualquer outro local,
perdoem-me a vaidade, mas assim o sinto.
Murgido poderia ser, desculpe-me
quem pense de outra forma, a aldeia serrana
do concelho de Amarante onde o turismo ru-
ral poderia estar em primeira linha. A al-
deia é bonita, em franco desenvolvimento, por
isso, muito ali haverá para explorar, como
por exemplo: levar ao conhecimento de todo o
país e do mundo, a pintura da via-sacra
que existe na pequena Capela; criar cami-
nhos para levar os turistas a saborear da
água das muitas nascentes que existem serra
fora, soterradas pelo desuso; mostrar a La-
pa dos Ladrões, tão usada como coito de
gatunos, que assaltavam as diligências que
57
passavam próximo; recompor a nascente do
Penedo das Chedas e recordar a serventia
que teve, não ainda há muitos anos, por es-
tar à beira de um caminho de pé posto, onde
diariamente passava muita gente; organizar
passeios à Senhora da Serra ou à Senhora
do Corvachã.
Murgido é uma aldeia com futuro, se
para isso, alguém com responsabilidade na
autarquia se lembrar que o concelho de
Amarante, com uma cidade por excelência
turística, também poderá ter turismo de
montanha, só que para tal, terão de ser cri-
adas as condições necessárias, tais como: um
restaurante com pratos típicos, como por
exemplo: cabra ou cabrito e verde à moda de
58
Murgido; hospedagem para os turistas, bem
como o amanho dos vários caminhos até aos
pontos de interesse.
Tudo isso evolve investimento e nin-
guém irá investir ali sem ter o apoio da au-
tarquia, tal como acontece com a aldeia de
Mafômedes do concelho de Baião.
Murgido viveu da parca agricultura,
hoje abandonada por falta de rentabilidade,
mas Murgido contínua e a serra também e
já lá há uma exploração de criação de gado
bovino e caprino com grande sucesso, muitas
outras poderiam ali ser criadas, do mesmo
género ou outro, talvez falte o incentivo.
Quando relembro a aldeia de Murgido,
a terra onde nasci, o meu imaginário leva-
59
me a horizontes sem fim, sobre o passado, o
presente e o futuro. Muitas vezes pergunto-
-me o que levaria os primeiros povos a ins-
talarem-se naquele local, que provavelmente
terão sido os Romanos, Godos ou Mouros,
povos que por ali terão andado, segundo a
carta do Abade da Paróquia de Candemil
de nove de Março de mil setecentos e cin-
quenta e oito, que diz:
“No ano de mil setecentos e sinquenta
no sítio chamado as... que é uma tapada do
paçal desta igreja quando um homem debaixo
de um penedo por acaso se achou grande
quantidade de moedas sem ser de ouro nem
de prata nem de cobre parecendo como frente
a moeda do tamanho de três, sinco... réis de
agora de uma parte da moeda com ... e le-
60
treiro que se não pode ler e da outra parte
em algumas pintada um homem de cavalo e
outras uma cara de homem, parece ser moe-
da que corresse no tempo dos Romanos, Go-
dos ou Mouros, nam se pode dele ter o metal
por diligencias que me dizem algumas pes-
soas fizeram não foi ... para nada, neste
mesmo citio, há uma ruína antiga que dizem
o naturais ser de uma capela, invocação de
Sam Domingos, que ainda conserva o nome,
as relíquias da ruína mostram ser da capela
maior.”
Poderemos presumir que a Serra do
Marão, talvez em particular a encosta onde
se situam as aldeias de Murgido, Granja e
Póvoa, bem como as que lhe ficam mais
61
abaixo, naquele tempo, seriam de tempera-
tura amena, não haveria invernias desbasta-
doras e o vento, provavelmente se espalharia
pelas outras vertentes, porque se assim não
fosse derrubaria as palhotas daqueles povos,
bem como o redil dos animais, subentenden-
do-se que as casas que construíam seriam de
pouca resistência e não suportariam o vento
que hoje sopra encosta abaixo.
Ao longo dos tempos a natureza vai
fazendo mudanças nos climas das várias re-
giões e os moradores atuais de Murgido, os
mais antigos, podem testar isso, porque os
invernos duros de alguns anos a esta parte,
têm-se amenizado bastante; as invernias são
muito mais suaves; os nevões menos frequen-
tes, logo há menos frio.
62
Depois do que julgo ter sido aquela en-
costa da serra do Marão, de clima ameno,
ter-se-á tornado inóspita, segundo a mesma
carta do Abade José, que escreveu:
“A Serra no distrito deste país é inabi-
tável, ao longo dela estão os lugares de
Morgido e Povoa”.
” A qualidade da temperatura da Serra é
frigidíssima adonde há muitas neves nos
meses e é mais por causa das quais vários
anos morre gente na Serra”.
Quando refiro que Murgido teve terrenos
que seriam propriedade do Rei, bem como
em outos locais da freguesia, tomo como re-
63
ferência as Ordenações Afonsinas, conforme
o enxerto que segue.
“Silvestre filho de João de Ansiães, ju-
rado e interrogado disse que sabia que o mi-
litar Martins Lagoa tinha comprado herda-
des sujeitas a foral em Candemir no tempo
do rei D. Sancho ao irmão deste mesmo rei
e que não tinha pago ainda a el-rei o foral e
sabia que o Mosteiro de Feyxeno possuía
propriedades que faziam parte do património
real em Moragido no local chamado Santo
Gradaes (?) e em S. Salvador e em Seea-
ra., mas não sabia (exactamente) quanto ti-
nha e o que tinha e desse lugar não tinha
pago foral régio (?) e deu em penhora a Pe-
dro Egee o próprio mosteiro que aquele trou-
xera(?) para El-Rei”.
64
As propriedades referidas já não têm
os mesmos nomes, daí não ser fácil a sua
identificação.
Seja ou não devaneio, quiçá, insânia,
mas faz bem à mente recordar o que se viveu,
se conheceu e imaginar como e o que outros
terão vivido.
Murgido foi uma aldeia agrícola, nela
foram preparados os terrenos inclinados, em
leiras, para serem cultivados, desde a parte
mais baixa até quase ao fim da encosta.
Disso podemos constatar, embora, em vez de
searas vejamos mato na maioria dos campos,
mas não vimos como tudo se construiu, no
entanto, poderemos muito bem, imaginaria-
65
mente conjeturar como tudo seria antes disso,
lindos rebanhos por ali a pastar.
Dezembro de 2014