múltiplas faces dos conflitos de terra: escravos, lavradores de roça e
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ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009.
Múltiplas faces dos conflitos de terra: escravos, lavradores de roça e senhores no final da escravidão na Mata Norte de Pernambuco
Emanuel Lopes de Souza Oliveira1
Resumo: Não foram poucos os conflitos na Mata Norte pernambucana. O artigo trata do envolvimento dos escravos em “questões de terra” nas freguesias de dois importantes municípios da região açucareira, Goyana e Nazaré da Mata, nas décadas de 1870 e 1880, sendo o primeiro de incrementado mercado interno. Através das mudanças na dinâmica da posse da terra e de escravos podemos redimensionar interpretações que primam por uma relação automática entre estrutura fundiária e controle social, e assim englobarmos muito mais uma discussão de múltiplas relações de força, diluídas entre os diversos grupos sociais. A contrapartida da resistência dos lavradores de roça, arrendatários e, sobretudo dos escravos, diante do controle da política senhorial, propõe novos debates sobre o processo histórico do acesso à terra. Neste contexto, o final da escravidão foi marcado por um forte sentimento de defesa das terras, do qual a roça dos escravos imprimiu significados de autonomia e liberdade. Palavras-chave: conflito- escravidão- terra.
No artigo, discutiremos a possibilidade de ampliação da presença de roças dos
escravos na principal região de exportação de açúcar dos oitocentos, ao mesmo tempo em
que, as dúvidas sobre o papel diminuto dado aos confrontos praticados pelos lavradores de
roça e escravos frente às políticas de controle social, durante a crise do escravismo e
efetivação da concentração fundiária, suscitam novos debates sobre a historiografia
(EISENBERG, 1977; PALACIOS, 1987; ANDRADE, 1990) dos últimos anos da escravidão
na Zona da Mata de Pernambuco. Nesse segundo ponto, a documentação apresenta aspectos
da reação ao processo de expropriação, do qual a defesa dos escravos por espaços de
autonomia fez parte ao lado dos lavradores de roça, de um conjunto de questionamentos sobre
o entendimento dado por lavradores de roça e escravos à liberdade. Os escravos agiam em
oposição ao que se acreditava ser um escravo, sem romper de fato, muitas vezes, a relação de
negociação, respeito e obediência ao proprietário. E os lavradores de roça e libertos
recusavam a todo tempo ao expediente regular de trabalho, percebido, muitas vezes, como
escravidão2.
1 Mestrando em História pela UFPE. Este trabalho foi realizado com o apoio do CNPq. 2 De antemão, vale esclarecer a distinção das diversas categorias sociais envolvidas no texto, senhores de
engenho, lavrador, agregado e arrendatários. Adotamos os mesmos critérios usados por Márcia Motta & Elione Guimarães (2007:112-113) no trato da documentação. Quanto ao lavrador de cana e algodão, e roça (mandioca, algodão, coqueiros, fumo, café) nos referimos à utilização de Bert Barickman (2003: 41). O termo “pobre” relaciona-se aos indivíduos nos inventários pos mortem com monte- mor menor e igual a 3: 500$000 (três mil e quinhentos réis). A escrita de Goyana, com “y”, deve-se a grafia antiga, ainda preservada nas edições da “Gazeta de Goyana”, em meados da década e 1880.
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O envolvimento dos escravos nas “questões de terra”, entre as décadas de 1870 e
1880, especificamente na Mata Norte da província, permeia, por enquanto aqui, a relação da
resistência escrava com comércio de compra e venda de escravos no hinterland de Goyana,
assim como o fenômeno do movimento das quadrilhas de salteadores, muito intenso
principalmente no período das secas de 1877/1878. Em um dos casos de suspeição no
envolvimento nas quadrilhas, diligências do subdelegado de Nossa Senhora do Ó3, prendeu
José Antônio Pereira que morava em Pedras de Fogo, de 40 anos, “agricultor”, natural da
“Costa da África”. José, acusado de homicídio, tivera sido escravo do Ten. Cel. Joaquim
Gomes, senhor do engenho Cana Brava. No momento da prisão, José estava “no roçado” do
escravo Luis, no mesmo engenho, para onde foi em um “domingo, receber o salário de dois
dias de serviço” que prestou na roça desse escravo4.
Alguns exemplos como esse, de roças dos escravos, aparecem nas freguesias dos
municípios de Nazaré da Mata e Goyana, que se situam na Mata Norte, região açucareira da
província ao norte do Recife. Goyana, diferentemente de Nazaré, possuía na freguesia de
Nossa Senhora do Rosário de Goyana, a segunda maior praça comercial da província. Para lá
se dirigiam os comboios de gado dos Sertões do Ceará e da Paraíba. Muito desse gado vinha
das cidades de Timbaúba e Itambé, outrora freguesias de Goyana, e das áreas internas de
fronteira próximas ao agreste. Abatia-se muito mais que 50 bois por dia, um pouco que a
metade vinha de Timbaúba, Itambé ou Pedras de Fogo5. Virgínio Horácio de Freitas, de
Pedras de Fogo, um dos negociantes atuantes no comércio de gado e couro na cidade, por
exemplo, aparecia no Almanaque de Pernambuco da época6.
Na freguesia de São Lourenço do Tejucupapo, entre a barra de Goiana e Catuama,
existia agitado comércio com as embarcações atracadas próximo a costa, de produtos para a
manutenção das barcaças. Havia também um mercado de lenha e madeira dos manguezais e
matas que compreendiam terras de senhores da vila de Atapus, ou dos “terrenos de marinha”.
Terrenos estes que disputadíssimos, ao longo dos anos, se caracterizou pela intensa vida social
dos escravos e libertos, em áreas apropriadas por populares pelos usos costumeiros dos
recursos naturais, onde a solidariedade e conflitos dos homens de cor constituíam
comunidades que se formavam em torno do pequeno comércio de lenha, madeira, graxa para
barcaças e peixes.
3 Uma das freguesias do município de Goyanna. 4 MJPE, Goiana. Habeas Corpus de José Antônio Pereira, 1877, Cx. 203. 5 Jornal do Recife, 12 jul 1881. 6 APEJE, Almanaque Administrativo, Ind., e Agrícola de Pernambuco, 1871, p.165.
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Nas feiras da cidade de Goyana e freguesias, o incrementado comércio propiciado
pelos diversos produtos da Mata Norte, sobretudo farinha de mandioca, desciam pelos Rios
Capibaribe Mirim e Goyana. Rios que confluíam para o porto próximo da cidade, em
Japomim, de onde se escoava ainda mercadorias, em seguida, pelo Canal de Goyana até a
barra de mesmo nome no Atlântico, imprimindo à cidade uma diversificação das atividades
econômicas em três lados: uma importante produção de gêneros alimentícios, o mercado
interno e a exportação. Dividia, assim, Goyana com Nazaré da Mata os grandes engenhos de
açúcar da região. Já em Nazaré, ao que parece, onde as propriedades dos senhores de engenho
e lavradores de cana eram maiores, havia mais engenhos de beneficiamento de açúcar, e a
dinâmica da escravidão urbana não se fazia tão acentuada como em Goyana.
A pesquisa em inventários pos mortem da Comarca de Goyana (217), de 1869 a 1887,
entre outras dezenas de inventários de Nazaré da Mata e processos cíveis do acervo de
Memorial da Justiça de Pernambuco (MJPE), nos revelou o importante peso da produção de
gêneros alimentícios, assim como o beneficiamento de alguns produtos, dentre eles, a farinha
de mandioca, algodão, e o azeite de carrapato ou mamona. O perfil de posse dos inventariados
mostra que a pequena unidade de produção na Mata Norte era economicamente viável, e
duradoura, haja vista a freqüência de 33,3% da família escrava nas escravarias (ANEXO:
Tabela1). Os proprietários de 6 a 10 escravos, na maioria são plantadores de coqueiros e cana
de açúcar; nesse grupo, os arrendatários, dividem as “plantas de canas” com o significativo
cultivo de roças de milho, feijão, e mandioca7.
Os processos cíveis de manutenção de posse (63,7%), demarcações (tendência de
aumento a partir da década de 1870), embargos e arrendamentos, envolvendo a defesa de
situações rurais e terra, nos apresentam indicativos de um forte sentimento de defesa das
terras no final da escravidão da Mata Norte (ANEXO: Gráficos 2 e 3). Além disso, as ações
de liberdade de Nazaré, agenciadas por escravos e escravas, possuíam certa relação com o
calendário agrícola da produção açucareira, onde a negociação e estabilidade no cultivo da
roças “novas e comedeiras” interferiam na formação dos pequenos pecúlios, e no subseqüente
auto-resgate.
Robert Slenes (PREFÁCIO: 19 apud FILHO, 2006) comenta que no Recôncavo
baiano os ex-escravos conseguiram aumentar o número de dias da semana que podiam dedicar
a seus próprios cultivos nas terras de seus antigos proprietários, pelo menos até bem entrada a
7 Cf. MJPE, Goiana, Inventário de João Cardoso de Jesus, 1881, Cx. 193; Inventário de José Carneiro de Mesquita Mello, 1881, Cx. 193; Inventário de Bento José Tavares, MJPE, 1869, Cx. 184, dentro outros inventários pos mortem de Goiana.
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década de 1890, algo que aparentemente estava fora de seu alcance na outra grande região
açucareira, a da Zona da Mata de Pernambuco. Tal fato, apresentado com ressalvas por Slenes
(“... algo que aparentemente”) deve-se a quase inexistência de pesquisas sobre a escravidão e
o mercado interno. Apenas temos a obra de Dirceu Lindoso (1983; 1988), contextualizada, no
caso do desenvolvimento de áreas mais extensas de cultivo de roças pelos negros papa-méis,
durante o episódio da Guerra dos Cabanos, na primeira metade do século XIX.
A ampliação das roças dos escravos, de certo modo, poder ser problematizada por dois
vieses nos inventários pos mortem de Goyana. Uma é a formação de pecúlios, a outra mais
complicada, refere-se à oscilação das palavras “agricultor” e “trabalhador de campo”, na
seção das matrículas especiais atribuídas ao ofício do escravo. Notamos que “agricultor” ao
invés de “trabalhador de campo” não tem relação com preços, o que se poderia atentar para
diferenças de preços por uma atividade especializada dos escravos matriculados como
agricultor. A aparente indecisão do coletor persistia nas duas matrículas, a de 1871/72 e a de
1886/87. Nos arrolamentos do inventário, o ofício de agricultor, em alguns escravos, aparece
apenas a partir de 1876, no auge da aplicabilidade da Lei do Ventre Livre, que abriu
prerrogativas para o uso do pecúlio no auto-resgate, independente da vontade senhorial. Nos
autos de interrogatórios, em processos judiciais, como aquele de José Antônio Pereira, da
Costa da África, e acontece assim para os lavradores de roça, eles se identificavam como
“agricultor” ou “que vive da agricultura”. Percebemos que, embora, os escravos sejam
naturalmente listados como peças, ao lado de objetos e animais, durante as avaliações se
invertia a ótica da ideologia da dominação em um momento fértil para sua atuação política.
Em 1875, os escravos do finado Maximiano Cândido, declararam “que não tinham
pecúlio algum”, em resposta ao Juiz.8 Com a morte do senhor de engenho Armando da Motta
Silveira, em Nazaré da Mata, Marculino, pardo, de 20 anos, exibiu 140$, em seguida o juiz
mandou “passar a carta de liberdade em favor” dele. A escrava Rosa desse mesmo senhor,
havia deixado de ser avaliada por “ter ido a cidade requerer ao Juízo civil, o seu depósito
para promover sua liberdade” 9.
Quando os escravos tinham acesso às autoridades, a possível identificação de
“agricultor”, na sua fala respondendo aos coletores e juízes, nos estabelece uma relação-
problema, dessa identidade, que não exclui a conciliação com atividades no corte da cana, à
experiência do cultivo de roças. E o mercado de escravos?
8 MJPE, Inventário de Maximiano Cândido da Silva Fragoso, 1875, Cx. 188, fl.4v. 9 MJPE, Inventário de Armando da Motta Silveira, 1888, Cx. 133, fl.16.
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Recentemente, os estudos de Versiani & Vergolino (2005: 285-301) sobre a dinâmica
da compra e venda de escravos na praça do Recife em 1878, indicou o empenho na venda de
cativos, não só por traficantes mais voltados a negócios da escravidão em Recife, mais de não
traficantes das áreas da Mata Norte, vendedores de escravos, inclusive de Paudalho,
negociando escravos dentro da província, para municípios da Mata sul, Escada, por exemplo.
As matrículas especiais de escravos, anexas aos inventários pos mortem de Goyana e Nazaré,
estão corroborando com a indicação de que não apenas senhores de engenho da Mata Sul
(LIMA, 2007: 64-70), mas que dezenas de senhores de engenho e lavradores de cana de
Goyana e Nazaré também estão comprando escravos, num contexto, até então, desfavorável
pelo desempenho dessa região na pauta de exportações de açúcar. Esses escravos são
comprados em cidades na Paraíba como Campina Grande, Itabaiana, Areias, e dentro das
próprias freguesias de Goyana, com uma diferença que, os proprietários estão se desfazendo
de alguns escravos, sobretudo em Goyana, e não em Nazaré.
É de observar que tal comércio, como se deduz das anotações nas matrículas especiais,
certificando que o respectivo escravo negociado foi matriculado nas freguesias de origem,
vem acontecendo a algum tempo, de 6 ou 8 anos, ou mais, dependendo das negociações
oficiosas, feitas tanto antes como depois da Lei do Ventre Livre, sem a certidão da meia sisa
na escritura de compra e venda exigida. Segundo Robert Slenes, a lavoura açucareira não foi a
principal fonte de oferta de escravos para o Sudeste cafeeiro (IDEM: 287). O fabrico do
açúcar foi beneficiado pelas baixas cambiais, não tendo problema com ausência de mão de
obra, aumentando o volume das exportações (CAMILO, 1978: 38), entre 1860-1880. No
contexto de barateamento dos salários, cujo efeito foi sentido somente na década de 1880,
devido o aumento da migração de retirantes sertanejos ao litoral, durante as grandes secas de
1877 e 1878, houve queda dos preços do açúcar, entre 1882-1885, favorecendo a aquisição
por baixo preço do trabalhador livre. Então, nessa última fase, pode ter havido diminuição do
comércio de escravos no hinterland da Mata Norte e com as freguesias da Mata Sul.
Por outro lado, mesmo numa sociedade híbrida, com a produção sendo dividida por
escravos, libertos, e majoritariamente por livres, já na década de 1870, segundo o Censo de
1872, a idéia de flexibilidade do escravismo, pela incorporação de muitos trabalhadores livres
é oposta a novos indícios de que o trabalho escravo ainda foi muito utilizado, talvez, tanto
quanto no Recôncavo Baiano (Cf. BARIKMAN, 1998/1998). O comércio interno de compra
e venda de escravos na região aponta, portanto, para tal perspectiva, de demanda pelo trabalho
escravo, do que usualmente relatado na historiografia, sendo empregados, inclusive, escravos
fora da idade produtiva. Na freguesia de Goyana, por exemplo, segundo o Censo de 1872, o
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número de escravos “lavradores” (979) era maior do que os escravos recenseados em idade
produtiva (813), entre 16 e 40 anos. A contagem de escravos, de 11 a 50 anos, correspondia a
1091, entre cativos de ambos os sexos10. Essa defasagem indica o emprego de adolescentes,
jovens e velhos no trabalho do campo, com a maioria trabalhando em terras de lavradores de
roça (algodão), que tinham de 1 a 5 escravos, geralmente de posse dos mais jovens e idosos11.
Em primeiro de julho de 1881, a preta Luiza, doente e com mais ou menos 60 anos,
morando no engenho Albuquerque em Nazaré, entrou na Justiça, solicitando a carta de
alforria mediante a indenização de 100 mil réis. Quando lhe foi designado um curador para
representá-la, e o processo seguindo o curso nos ditames da Lei do Ventre Livre, o
proprietário alegava que a quantia era irrisória, amolando e adiando o recebimento da alforria,
sentenciada no ano seguinte. Em algumas petições do curador aparecem algumas citações,
trazendo reações do senhor frente à iniciativa da escrava de torna-se livre: “É certo que o
marido da escrava Luiza está despejado da casa em terras do engenho Albuquerque onde tem
lavouras que não pode colher, como seja uma planta de canas que não quer moer de Luiza
porque a escrava pretende se libertar exibindo a quantia de cem mil reis”. 12
O senhor de engenho, Francisco Agripino do Rego Barros, que havia comprado a
escrava, ainda com 36 anos, matriculada no município de Campina Grande em 187213,
“quebrou um acordo”, quando Luiza conseguiu arrumar algum dinheiro e alforria-se. Sobrou
para o marido que já negociara uns roçados para plantar e ainda para liberta, impedida de usar
a casa de moer. Luíza iniciou sua petição, alguns dias depois das festas dos santos juninos,
talvez, tivera vendido alimentos com o marido nessa ocasião, ou curtido as festividades,
tramando o confronto contra o senhor, a procura do curador e apresentado o pecúlio14·.
10 IAHGPE, Censo de 1872. 11 MJPE, Inventários pos mortem de Goiana, 1869-1887, passim. 12 MJPE, Nazaré. Ação de Liberdade. Luiza escrava/ Francisco A. do Rego Barros, 1881, Cx. 129, fl.12v. 13 IDEM, Certidão de matrícula, fl.21. Luíza, preta... “do serviço de campo”. 14 João José Reis observou a aumento de fugas, algumas de ocasião, durante, ou nas proximidades das festas de
Santo em Salvador, ver o recente ‘Domingos Sodré, um sacerdote Africano’. São Paulo: Cia das Letras, 2008. O ponto de inflexão no gráfico, em junho, sugere um corte “de ânimo e tensão” em torno das festividades, no momento de agenciamento dos escravos nos processos cíveis de liberdade.
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GRÁFICO 1: AÇÃO DE LIBERDADE: DISTRIBUIÇÃO ANUALNAZARÉ DA MATA
0123456789
10
jane
iro
feve
reir
o
mar
ço
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l
mai
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o
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nove
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deze
mbr
o
Meses
Petição inicial
Fonte: Memorial da Justiça. Nazaré da Mata, Ações de liberdade, 1866-1888(54)
De forma geral, ao analisar o calendário agrícola, reparamos que a produção do açúcar
tinha para os meses de janeiro, fevereiro, março, o início do plantio das sementes, fim do
corte e produção do açúcar das canas do ano anterior. Nos meses de setembro, outubro e
novembro aconteciam a safra ou corte da cana, em seguida tais atividades acompanhavam o
reinício do ciclo, com o fabrico mais ou menos até março. De início, pensávamos os
agenciamentos dos processos cíveis de liberdade numa estratégia dada entre o intervalo do
plantio e safra, ou seja, na fase “amena” do ciclo da produção15, favorável a possíveis
negociações. No entanto, as ações de liberdade tiveram suas petições iniciais redigidas não na
entressafra, e sim, com maior freqüência justamente durante o corte da cana e beneficiamento
do açúcar, o que revigora o caráter conflituoso, de enfrentamento dos escravos no momento
indispensável da mão de obra para lavradores de cana e senhores de engenho.
Como 40,7%, a maioria das ações representava menção à compra da alforria. Os
pequenos pecúlios foram adquiridos, portanto, dentro de várias possibilidades, não apenas
vamos pensar em pequenos furtos, mas também como indicam as fontes, pelo menos em
Nazaré da Mata, muito próximos das vendas das lavouras de mandioca, milho e feijão, mais
assistidas na entressafra. Luiza como plantava canas, podia até vender o mel de engenho,
escorrido das caldeiras, e produzia o açúcar do próprio consumo16.
A meu ver, a ampliação da autonomia da roça escrava tem muita ligação com o
comércio de compra e venda de escravos, negociados na província da Paraíba, na geografia de
fronteira, entre a região açucareira e a faixa de transição agrestina. Áreas aonde vinham se
15 A dura fase das limpas dos terrenos era realizada de forma contínua, logo depois de finalizadas as tarefas no campo. De fato, era mais exigido na entre safra, concomitante o plantio das sementes. A uma comparação com o calendário no Recôncavo em Walter Filho (2006: 94 notas 6 e 7).
16 Walter Filho (2006: 40) indica que alguns escravos participavam do “circuito do açúcar” como pequenos plantadores de cana para os engenhos no Recôncavo Baiano.
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desenvolvendo o cultivo do algodão, de freguesias próximas a Itambé e Timbaúba, ou da
produção de farinha, azeite, lã, em Goyana. A flexibilidade da roça escrava na plantation da
Mata Norte, com escravos cultivando alimentos e até plantas de “canas para moer” dentro dos
engenhos, não deve deixar de ser pensada dentro de uma dinâmica de resistência, da
experiência da roça escrava, obtida em negociações por vários escravos, antes de serem
vendidos, conquistada nessas regiões de pequenas escravarias vinculadas ao mercado interno,
e que por sua vez é levada às novas freguesias de destino.
Outros conflitos aconteciam nos engenhos e terrenos de marinha de Atapus, em 188217. O
juiz de paz de São Lourenço do Tejucupapo enviou várias notificações ao delegado de Goyana,
outra ao Chefe de Polícia, sobre a devastação das matas, coqueiros e manguezais do seu engenho
Itapessoca, praticada por um bando de ladrões e “malfeitores”, em número de 44, que desciam
com canoas carregadas de mangues e lenhas, assim como roubavam cocos, madeira e destruíam
instalações da propriedade como a “casa de carvão”. Liderados pelo célebre Azulão e protegido
pelo senhor do engenho Atapus, José Nicolau da Silva, 23 deles andavam armados.
Nicolau alegava que seus moradores há muito assentados nos terrenos de marinha, se
dedicavam ao comércio de lenha, O juiz rebatia nas correspondências, sobre a ilegalidade do
comércio, sinalizando a derrubada dos cercados de sua propriedade, onde vários “ladrões”, já
tinham assentado. Dentre os envolvidos na quadrilha, estavam ainda “Paulino e Anergino que
foram escravos Joaquim Branco”, e foi Eustaquio Lins Marques quem queimou o carvão.
Assim, entendemos que para os escravos e seus descendentes (libertos, ex-escravos), a
manutenção dos seus roçados, o comércio de lenha, e o direito conquistado por negociações
junto aos senhores em relação ao acesso à terra pinta, assim como aos lavradores de roça,
significantes da “não-escravidão”, da “posse” das terras percebida como espaços de liberdade,
interconectados com o conflituoso dia-dia das diferenciações sociais no século XIX. Já no
contexto da emancipação e do movimento abolicionista, o acesso à terra vêm adquirindo mais
do que a vinculação ao que por sua vez significasse “bom cativeiro” (concessão) e liberdade,
ou seja, percepção ainda formada dentro do sistema escravista, passando então os conflitos
envolvendo a questão da manutenção das roças, concomitantes à mudança da política
senhorial de recrudescer e retaliar diante do avanço do confronto dos escravos nos últimos
anos, durante também as expropriações que se intensificam na década de oitenta na Mata
Norte, significarem uma reação “anti-sistêmica”, de combate direto e deslegitimação da
escravidão.
17 APEJE, Goiana, Secretária de Segurança Pública, vol.180, Correspondências de 2.06.1882 a 8.07.1882.
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ANEXO: TABELA 1, Gráficos 2 e 3 respectivamente:
MATA NORTE: POSSE DE ESCRAVOS NO MUNICÍPIO DE GOIANA (1869-1879)
Escravarias nº inventários
Proprietários Quantidade de escravos
Freqüência a Família escrava
% % % Nenhum 38 33,3 -
1 a 5 50 43,8 126 24,4 8 14 6 a 10 14 12,3 90 17,6 19 33,3 11 a 20 5 4,4 67 13 9 15,8 21 a 40 5 4,4 140 27 17 29,8 41 a 51 2 1,8 94 18 4 7
Total 114 100% 517 100% 57 100% Fonte: Memorial da Justiça: Inventários pos mortem Goiana-PE a. Incidência de relações familiares nucleares e matrifocal.
0102030405060708090
100
1840 1850 1860 1870 1880 1890proc
esso
s cí
veis
( %
)
QUESTÕES DE TERRA OU DE SITUAÇÃO RURAL MATA NORTE
embargos possessoria arrendamento
0102030405060708090
100
1840 1850 1860 1870 1880 1890
proc
esso
s cí
veis
( %
)
QUESTÕES DE TERRA OU DE SITUAÇÃO RURAL MATA NORTE
partilhas demarcações
Fonte: Memorial da Justiça. Fundo Comarca de Nazaré da Mata; Goiana
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ADE, Manuel Correia de Andrade. O Homem e a Terra do Nordeste. São Paulo: Brasiliense,
produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo
Pernambuco e a expansão do capitalismo britânico.
histórias de escravos e libertos na Bahia, 1870-
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