múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de pagu ... · múltiplas dores, identidades,...

13
Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu Karla Fernanda Ribeiro Neves (UFGD) Resumo: O presente resumo refere-se a uma pesquisa em andamento e tem como tema central o discurso de si nos escritos autobiográficos de Patrícia Galvão (1910-1962). A pesquisa busca aprofundar as relações entre literatura e performance, por meio do estudo de intertextualidades e sua articulação com o estudo de gênero e composição de ações performativas. Na etapa em que se encontra o trabalho procuro estabelecer alguns aspectos para análise: a escrita de si, estudos de gênero, relações entre artista e obra, o lirismo de seus poemas e cartas autobiográficas. Utilizo uma seleção de cartas publicadas sob o nome de “Paixão Pagu”, com relatos de sua vida desde a infância até a década de 1940. Suas múltiplas personalidades, expressas ao leitor, representam a ideia de persona, compreendida como a voz do autor em seus pseudônimos, como a expressão de determinada vontade, desejo. No desempenho de seus múltiplos papéis, a presença de pensamentos diversos, sua personalidade e discussões de gênero. Na continuidade da pesquisa pretendo estabelecer o foco nas transições entre as diferentes identidades assumidas pela autora, como forma de entrecruzar a temática das cartas de Pagu ao campo performático de composição do sujeito feminino. Palavras-chave: Memória, Literatura, Arte da performance, Pagu. Abstract: The present summary referring to a research in progress and has as central theme of the discourse of itself in the autobiographical writings of Patrícia Galvão (1910-1962). The research seeks to deepen relations between literature and performance, through the study of intertextualities and its articulation with the study of gender and composition of performative actions. In the stage in which I find myself at work I search, there are some aspects for analysis: self-writing, gender studies, artist-work relationships, lyricism of his poems and autobiographical letters. Use a selection of letters published under the name of "Passion Pagu," with reports of his life from a childhood to a decade of 1940. Its multiple personalities, expressed to the reader, represent an idea of personality, as a voice author their pseudonyms, as an expression of will, desire. In the performance of their multiple roles, a presence of diverse thoughts, their personality and gender discussions. In the continuity of the research, I intend to establish the focus on the transitions between the different identities assumed by the author, as a way of intersecting a thematic of Pagu letters to the field of composition of the female subject. Keywords: Memory, Literature, Performance art, Pagu. O presente trabalho pretende abordar pontos do projeto de pesquisa que venho realizando como discente do Programa de Pós-Graduação em Letras da FACALE/UFGD, sob orientação da Profª Drª Alexandra Santos Pinheiro. O objeto de minha pesquisa é centrado na obra de Patrícia Galvão (1910-1962), em que pese a simplicidade de fontes como dicionários, é notável a inclusão do apelido Pagu como um

Upload: donga

Post on 13-Feb-2019

224 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu

Karla Fernanda Ribeiro Neves (UFGD)

Resumo: O presente resumo refere-se a uma pesquisa em andamento e tem como tema central

o discurso de si nos escritos autobiográficos de Patrícia Galvão (1910-1962). A pesquisa busca

aprofundar as relações entre literatura e performance, por meio do estudo de intertextualidades

e sua articulação com o estudo de gênero e composição de ações performativas. Na etapa em

que se encontra o trabalho procuro estabelecer alguns aspectos para análise: a escrita de si,

estudos de gênero, relações entre artista e obra, o lirismo de seus poemas e cartas

autobiográficas. Utilizo uma seleção de cartas publicadas sob o nome de “Paixão Pagu”, com

relatos de sua vida desde a infância até a década de 1940. Suas múltiplas personalidades,

expressas ao leitor, representam a ideia de persona, compreendida como a voz do autor em seus

pseudônimos, como a expressão de determinada vontade, desejo. No desempenho de seus

múltiplos papéis, a presença de pensamentos diversos, sua personalidade e discussões de

gênero. Na continuidade da pesquisa pretendo estabelecer o foco nas transições entre as

diferentes identidades assumidas pela autora, como forma de entrecruzar a temática das cartas

de Pagu ao campo performático de composição do sujeito feminino.

Palavras-chave: Memória, Literatura, Arte da performance, Pagu.

Abstract: The present summary referring to a research in progress and has as central theme of

the discourse of itself in the autobiographical writings of Patrícia Galvão (1910-1962). The

research seeks to deepen relations between literature and performance, through the study of

intertextualities and its articulation with the study of gender and composition of performative

actions. In the stage in which I find myself at work I search, there are some aspects for analysis:

self-writing, gender studies, artist-work relationships, lyricism of his poems and

autobiographical letters. Use a selection of letters published under the name of "Passion Pagu,"

with reports of his life from a childhood to a decade of 1940. Its multiple personalities,

expressed to the reader, represent an idea of personality, as a voice author their pseudonyms,

as an expression of will, desire. In the performance of their multiple roles, a presence of diverse

thoughts, their personality and gender discussions. In the continuity of the research, I intend to

establish the focus on the transitions between the different identities assumed by the author, as

a way of intersecting a thematic of Pagu letters to the field of composition of the female subject.

Keywords: Memory, Literature, Performance art, Pagu.

O presente trabalho pretende abordar pontos do projeto de pesquisa que venho

realizando como discente do Programa de Pós-Graduação em Letras da FACALE/UFGD, sob

orientação da Profª Drª Alexandra Santos Pinheiro.

O objeto de minha pesquisa é centrado na obra de Patrícia Galvão (1910-1962), em que

pese a simplicidade de fontes como dicionários, é notável a inclusão do apelido Pagu como um

Page 2: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

dos verbetes do Dicionário Mulheres no Brasil (Schumaher e Brazil, 2000), no qual a descrição

de sua obra tende a destacar o jornalismo, em detrimento dos demais gêneros literários. Ou

seja, esse verbete reflete a tendência de outros estudos, que minimizam a importância da

produção criativa de Patrícia Galvão. As pesquisas encontradas no banco de dados da CAPES,

em sua maioria, apontam para discussões sobre o romance Parque Industrial, textos

jornalísticos, e a biografia de Pagu.

Ao propor esta pesquisa sobre o ideário de Patricia Galvão, no que diz respeito a

condição da mulher na primeira metade do século XX, encontrei uma alternativa de aporte

teórico nas ideias de Paul Ricoeur sobre a memória e o “acerto de contas com o passado”,

segundo reflexões de Pinheiro (2014, p. 212) ao citar Henriques (2005). Por estabelecer pontos

de contato/afastamento com problematizações que envolvem os mesmos eixos temáticos no

século XXI, essa busca pode e deve envolver outros autores, em comparativos, análises e

ampliação de temáticas da mulher. Deste modo, estimo que a pesquisa proporcione não só a

apropriação de textos de Pagu na composição de atos performáticos, mas também a articulação

do conteúdo com aspectos da memória coletiva de literatura de autoria feminina.

O tema está sendo desenvolvido na linha de pesquisa Literatura e Estudos regionais,

Culturais e Interculturais, ambiente diretamente relacionado ao estudo de práticas sociais e

culturais, em uma abordagem que envolve literatura e teatro. O encontro entre a narrativa

textual e suas possibilidades de performatividade encontram vigor na ideia dos estudos

culturais, como práticas amplas, reflexões sobre a cultura de uma época ou sociedade

específica, elaboração de procedimentos culturais e novas abordagens de produção artística.

O contato com a obra de Patrícia Galvão se deu no ano de 2007, ao me deparar com o

livro Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão, organizado a partir de cartas

biográficas escritas pela artista. Do primeiro contato veio a imersão em outras obras, textos,

crônicas, que desdobraram-se em projetos teatrais, ações performáticas e visitas ao Centro de

Estudos Pagu, da UNISANTA, na cidade de Santos-SP, para maior contato com suas obras e

memórias.

Ao contemplar a vasta obra da artista, tenho interesse em construir conexões e relações

com temáticas da mulher na literatura, no teatro e na sociedade, paralelos entre a mulher na

primeira metade do século XX e na sociedade atual. Tenho como base a ideia de personas,

utilizada pela artista em suas diferentes escritas e áreas de atuação.

Page 3: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

Diferente da repetida ênfase em Patrícia como musa da Antropofagia, uma das mulheres

de Oswald de Andrade, pretendo justapor as diversas personas que denominei: Mulher de ferro,

Zonas erógenas e Aparelho digestivo, articulando a complexidade da biografia: “Pagu [...]

desmistificou a figura feminina para além do espaço doméstico” (SCHUMAHER e BRAZIL,

p. 464). Foco, então, as contradições da mulher que, ao assumir um compromisso social vê-se

dividida entre os papeis de amante, mãe, militante, prisioneira e artista.

Em um primeiro momento utilizo como principal objeto de estudo o livro Paixão Pagu,

uma autobiografia precoce (GALVÃO, 2005), organizada conforme uma seleção de cartas

escritas por ela ao seu companheiro Geraldo Ferraz, com relatos de sua vida desde a infância

até a década de 1940. Pretendo estabelecer maior contato entre a literatura e as artes cênicas,

por meio do estudo de intertextualidades e sua articulação na composição de ações

performativas.

O projeto se justifica por buscar a ampliação do debate interdisciplinar sobre a obra de

uma importante escritora modernista brasileira, reconhecida por quebrar barreiras culturais,

vencendo estereótipos, preconceitos e diversos tipos de opressão, abrindo o caminho para uma

participação efetiva da mulher em todos os ambientes sociais. Reafirmar a importância

feminina na história da arte é algo a ser considerado porque a sua presença, historicamente,

sempre foi relegada ao segundo plano, tanto na literatura quanto no teatro:

A ligação das mulheres com a escrita íntima (cartas, diários, relatos, etc.) está

relacionada diretamente com a realidade opressora e cerceada, fruto de uma

criação voltada para o ambiente interno, para os cuidados com a casa, com os

afazeres domésticos e longe da realidade exterior e das decisões políticas e

sociais, cabíveis apenas aos homens (ROSA, 2014, p. 128).

A arte contemporânea tende a valorizar mulheres artistas, a performance como

linguagem modifica completamente as estruturas de produção artística (COHEN, 2002).

Assim, as afetações, debates e emanações oriundas da recepção e participação do público, se

colocam como fatores relevantes na justificativa do projeto. Compreender a sociedade atual e

a condição da mulher contemporânea é fundamental para que se amplie a reflexão sobre

igualdade de gênero. No Brasil, vivemos realidades muito distintas, que variam de acordo com

as regiões do país, dos locais mais sensibilizados com o tema, até locais em que a mulher ainda

vive sob condição cultural de oprimida, sem nenhum apoio, auxílio, reação. Utilizo na pesquisa

Page 4: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

alguns textos base sobre a mulher na sociedade, mulheres no teatro e nas letras, tais como os

de Amorim (2013), Beauvoir (2009), Hollanda (1994), Muraro (1996, 2000, 2002), Perrot

(2005), Pontes (2008), Priore (1997), Souza (2001), Sussekind & Azevedo (2003).

Procuro abordar aspectos pouco estudados na biografia de Patrícia Galvão, o discurso

de si, as relações entre artista e obra, o lirismo de seus poemas e cartas autobiográficas

associados a realização de um processo criativo que envolve a arte contemporânea e a

performance como linguagem. Sua literatura não se descola de sua biografia, a autora expressa

inquietações, delírios, desejos, anseios em páginas literárias, poesias, cartas e escritos

jornalísticos.

Em História da literatura: questões contemporâneas Cecil Jeanine Albert Zinani,

discorre sobre a importância de autoras que contribuíram com seus escritos para o movimento

feminista. Escritoras como Virgínia Woolf, em Um teto todo seu, em 1928, como tema

principal a ausência de condições e acesso das mulheres à instrução formal, produção literária,

condições primárias para escrever. Simone de Beauvoir, em O segundo sexo, publicado em

1949, com a afirmativa de que “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, fundamenta as

questões de gênero, afirmando que gênero é uma construção histórica, definida em relação ao

contexto sócio cultural. Conceito de gênero que possibilitou teorizar diferenças de papéis

sociais. Na obra de Simone a ideia de mulher como segundo sexo, a sobra do primeiro sexo,

apresentado na história, “o incessencial que não retorna ao essencial” (BEAUVOIR, 1980,

p.15). Zinani também comenta a contribuição dos estudos de Beauvoir para compreensão de

identidade, identidade de gênero. Desconstrução da palavra como indicações de papéis sociais.

Comenta sobre a mulher conquistar influência através da palavra, como pontua Perrot, a mulher

inicia escrevendo sobre coisas de mulher, onde o tipo de escrita jornalística feita por mulheres

possibilitou divulgar algumas lutas feministas de seu tempo, como o direito ao voto. A autora

contempla as pesquisas sobre identidades e mulheres, a relação do espaço público ser domínio

do masculino e o espaço da mulher ser restrito ao privado. Traz os apontamentos de Joan Scott

sobre a identidade e o corpo, corpo feminino e identidade feminina, o corpo feminino como

objeto, o gênero como representação construção de uma imagem de feminino e masculino.

As três ondas feministas e suas necessidades, como a importância de Lacan e Derrida

na teoria feminista a partir dos estudos sobre a posição do sujeito é questionada. Em gênero e

literatura a autora reflete a presença e ausência da mulher na história da literatura. Com Teresa

de Lauretis comentando em seu ensaio A tecnologia do gênero sobre a formação de outro tipo

Page 5: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

de sujeito social, que não se pautem nas estruturas patriarcais, um sujeito múltiplo e não

dividido, não constituído apenas pelas diferenças sexuais. Segue ampliando a reflexão sobre o

gênero ser construído para representação. Em A história da literatura e gênero Cecil destaca

aspectos da história literária como a formação do cânone, onde critérios para seleção, se

misturam, a relação de poder do centro, excluindo as margens. Argumenta que é na inclusão

de mulheres, assim como, de outros grupos que estejam desprivilegiados é algo que implica

revisão do cânone literário.

Os dados biográficos de Pagu se encontram em seus próprios escritos (Galvão, 2005) e

diversas outras fontes, tais como Campos (1982) e Freire (2008) a partir das quais apresento

breves considerações.

Patrícia Rehder Galvão nasceu em São João da Boa Vista em São Paulo no ano de 1910

e sua rebeldia causou impacto já na adolescência. Estudou na Escola Normal em São Paulo e

por lá já era bastante criticada devido a suas atitudes nada comuns em relação a outras moças

da época, tais como: fumar, usar blusas transparentes, maquiagem em excesso, dizer palavrões

e usar cabelos curtos.

Sua primeira colaboração em jornais ocorre logo aos quinze anos, quando escrevia para

o Brás jornal, já utilizando pseudônimos, prática a que iria recorrer com frequência ao longo

de sua carreira. Pagu tende a ser tratada como musa da Antropofagia, mas também atuou como

escritora, desenhista, tradutora, crítica de Arte, revolucionária política, incentivadora das Artes

e diretora de teatro.

Ao estudar a obra de Patrícia estabeleço o foco nas transições entre as diferentes

identidades assumidas por Patrícia Galvão: Pagu, Patrícia e Mara Lobo. No desempenho de

seus múltiplos papéis, a presença de pensamentos diversos, sua personalidade, seu ideario

expresso em personagens e poesias, a artista que se expõe através de sua obra.

Colaborou em jornais da época e teve amizades com grandes filósofos e escritores

franceses e alemães, a vanguarda intelectual europeia. Sua trajetória inclui fortes ligações

políticas e uma militância que alterou profundamente os rumos de sua vida. Aborto, tentativas

de suicídio, desilusões amorosas e exploração de seu corpo, estão entre as consequências

sofridas neste desbravamento das possibilidades de a mulher inserir-se na sociedade, com dois

casamentos, dois filhos e muitas prisões, físicas e psicológicas. Acontecimentos e impressões

que Patricia relata em sua autobiografia precoce.

Page 6: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

Após o período antropofágico e as desilusões com a revolução que não se concretizou,

ela abraçou o jornalismo e o estudo do Teatro. Na EAD, em São Paulo, dedicou-se à Direção

Teatral e acabou por estruturar o Teatro Amador em Santos onde realizou as primeiras

traduções e montagens de Arrabal e Ionesco no Brasil, bem como a promoção de jovens artistas

como José Celso Martinez e Plínio Marcos (CAMPOS,1982).

Ao estruturar a pesquisa nos três momentos denominados: Mulher de ferro, Zonas

erógenas e Aparelho digestivo, emprego um pensamento encontrado na autobiografia intitulada

Paixão Pagu:

Havia dor na separação. Muita dor. Havia o desconhecido à minha frente.

Atrás, Oswald, que já significava muito pouco, e meu filho. A necessidade de

luta surgiu ativando toda a revolta latente de minha vida insatisfeita. [...]

Grande confusão de materialismo com mecânica. Eu não devia estar de

acordo com minhas concepções. Mulher materialista. Mulher de ferro com

zonas erógenas e aparelho digestivo. O circulatório não tinha importância,

porque trabalhava automaticamente. (GALVÃO, 2005, p. 20).

Com essa justaposição de identidades, procuro articular o que a própria Patrícia Galvão

reconheceu como um fio condutor de sua vida, a manifestação de sentimentos de divisão

pessoal. As suas múltiplas personalidades, suas várias formas de se apresentar ao leitor,

representam a ideia de persona, compreendida como a voz do autor no personagem, como a

expressão de determinada vontade, desejo do autor, e, no caso da narrativa direta de suas cartas:

[...]potencializa no sujeito o contato com a singularidade e o mergulho na

interioridade do conhecimento de si, ao configurar-se como atividade

formadora que remete o sujeito para uma posição de aprendente e questiona

suas identidades a partir de diferentes modalidades de registro que realiza

sobre suas aprendizagens experienciais. (SOUZA, 2006, p.136).

Ao considerar os elementos presentes na escrita de Patrícia Galvão, a construção de sua

identidade encarnava bem o que propunham os antropofágicos, em termos do rompimento, da

quebra das barreiras culturais e de paradigmas importados na arte e na sociedade brasileira.

Sobre sua participação no meio cultural, Augusto de Campos em entrevista, afirma:

Tirando Oswald, porém, poucos dentre os modernistas da primeira ou da

segunda fase personificam tão completamente a imagem rebelionaria desse

movimento. Por isso mesmo, mais do que "musa" ou "inspiradora", ela parece

configurar o protótipo da mulher nova que emerge da visão transformadora

do Modernismo, em seu sentido mais autêntico (CAMPOS, 1982, p.84).

Page 7: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

Em A aventura de contar se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade

Margareth Rago opera autobiografias, utiliza categorias como modos de existência e artes de

fazer microespaço, ressalta sobre as artes femininas de existência dialogando com Foucalt

sobre a governamentabilidade bio poder. Rago coloca as mulheres em rede e não em disputa,

a estética da existência, utiliza o conceito de acontecimento para Foucalt, onde, escrever de si

é o acontecimento como mutação uma ruptura.

No que diz respeito a performance arte, utilizo alguns autores como referencias

principais, é o caso de Cohen (2002), Bonfitto (2014), Fabião (2008), Santos (2008), Garcia

&Dias (2014), autores que tentam delimitar o campo de atuação da performance, situa-la

historicamente como uma linguagem artística.

Sobre a ideia de performance e do performer, afirma Cohen (2002):

A performance é basicamente uma linguagem de experimentação, sem

compromissos com a mídia, nem com uma expectativa de público e nem com

uma ideologia engajada. Ideologicamente falando, existe uma identificação

com o anarquismo que resgata a liberdade na criação, está a força motriz da

arte.

[...]O trabalho do artista de performance é basicamente um trabalho

humanista, visando libertar o homem de suas amarras condicionantes, e a arte,

dos lugares comuns impostos pelo sistema. (COHEN, p. 45).

Segundo Garcia&Dias (2014) a performance tem sua origem nas vanguardas artísticas

do início do século XX, nas manifestações utilizando o corpo dos artistas, nos movimentos

futuristas, dadaístas e surrealistas. As vanguardas romperam com as questões pictóricas,

avançou-se na busca por quebrar convenções, questionar a arte e suas funções, meios e técnicas.

No final da década de 1950, nos EUA, surgem os happening, segundo Cohen (2002):

“a tradução literal de happening é acontecimento, ocorrência, evento. Aplica-se essa

designação a um espectro de manifestações que incluem várias mídias, como artes plásticas,

teatro, art-collage, música, dança etc.” (COHEN, p.43). Uma série de experimentações

artísticas com a utilização de múltiplas linguagens, os artistas são de áreas distintas, músicos,

pintores, atores, escritores, bailarinos, etc.

Com as ideias de contracultura dos anos 1960 a performance arte se desenvolve em

diversas vertentes, e, na década seguinte com as ideias de action painting, das artes visuais,

refina-se o conceito de artista presente, em ação, em criação, como característica da

Page 8: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

performance. O imprevisto, o espontâneo, dessacralizar a arte, retirá-la do seu lugar comum,

são propostas comuns à linguagem.

Nos anos 1970 e 1980 as performances tornam-se mais elaboradas, sofisticadas

tecnologicamente, e, demonstram novos caminhos traçados pelos artistas do período. No Brasil

as primeiras experiências registradas acontecem na década de 1970, por artistas vinculados as

artes visuais. Segundo Santos (2008), os artistas nacionais tinham uma preocupação em romper

barreiras, quebrar tabus, estabelecer novos espaços de inserção da arte, explorar a sensibilidade

do público em experiências compartilhadas, habitar as fronteiras que definem as linguagens

artísticas.

No Século XXI a performance segue como uma das linguagens artísticas mais

expressivas do período, novos artistas, novas experiências, questões políticas, ativismos,

identidade, corpo, sociedade estão em evidencia na arte.

Segundo Cohen (2000), alguns aspectos se repetem no que diz respeito a utilização do

texto em performance, de maneira geral as falas, discursos são realizados com a utilização de

microfones, voz gravada, com a intenção de reafirmar que vivemos em uma era tecnológica,

frases repetidas, palavras repetidas, estrutura do texto escrito que lembram a poesia concreta,

com uma arquitetura fragmentada, por vezes descontinuada.

Paul Ricouer em seu texto A memória, a história, o esquecimento analisa por três

aspectos, a memória é tratada sob a ótica da fenomenologia, a história a partir da epistemologia

e o esquecimento sob o olhar da hermenêutica.

O processo de memória para Ricouer passa pela memória artificial e memória natural,

comenta sobre os procedimentos da memória artificial e como esta articula com memorização,

aprendizagem, treinamento, a memória como armazém, memória, confissões, conversor de

Santo Agostinho. Analisa a memória exercitada a rememoração por três abordagens,

patológica, manipulada e ético-político. A memória impedida o nível patológico- terapêutico,

a psicanalise a resistência do recalque, o fato não vem em forma de lembrança, mas em forma

de ação. Luto e melancolia, o luto volta se ao outro a melancolia para si. O processo de

melancolia culmina no reconhecimento de nós mesmos, muitas vezes tratado como doença, a

memória feliz seria o resultado final do trabalho do luto, a memória ferida nos obriga a se

confrontar, memória e identidade, um aspecto fundamental para Ricouer no nível prático; a

memória manipulada é a identidade, passa a perceber no outro suas características de ser outro

e nisto percebe perigo. As questões da memória pessoal e da memória coletiva.

Page 9: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

Busco relacionar Patrícia Galvão, seus escritos e sua vida, com as possibilidades de

discussão sobre a mulher do século XXI através da performance, linguagem artística hibrida,

que permite o cruzamento de múltiplas formas artísticas. Considero importante destacar

questões relacionadas a discussão de identidade tão evidenciadas na pós-modernidade, e, que

foram colocadas pela autora nas primeiras décadas do século passado, tornando-a uma

precursora nos apontamentos sobre a mulher na literatura brasileira.

A problematização das questões da mulher em Simone de Beauvoir gerou diversos

discursos sobre o corpo na história, filosofia, ciência e medicina. Como apresenta Ana Maria

Colling em seu livro Tempos diferentes, discursos iguais a construção histórica do corpo

feminino. A historiadora organiza uma linha temporal de Platão á Freud, discursos apresentados

ao longo da história da humanidade sobre o corpo feminino, que definem o lugar social, o

papel, a construção de representações com discursos hegemônicos e se afirmam na história

com transformações transculturais, mas, que, conservam vários elementos normatizadores, ao

estabelecer o lugar que deve ocupar o feminino e o masculino na sociedade, pautados em

conceitos de igualdade e diferença, parte de uma construção cultural, social e histórica. A

história das mulheres ser contada por homens que tinham o poder da palavra, da escrita, de sua

representatividade no espaço público é fato histórico registrado nos livros, sempre contados

para todos nós, quando Cecil traz a discussão para a literatura é possível perceber que este

entrelugar da mulher já estava sendo questionado na ausência e presença da mulher na

literatura. Quando Virgínia Woolf em Um teto todo seu aponta as necessidades e problemáticas

que a mulher tinha para escrever, a escrita da mulher não podia ser pública.

Ricouer (2007) analisa alguns teóricos e aponta, Santo Agostinho tece a sua teoria com

base na experiência da conversão, John Locke acrescenta o debate sobre a identidade e Husserl

aborda o olhar interior e a capacidade de reflexão, a memória coletiva. A questão do tempo a

relação entre passado e presente, memória, o tempo faz oposição ao tempo do mundo, Ricouer

levanta a questão, o tempo histórico seria o terceiro tempo?

John Locke aproxima-se da ideia de Descartes do “cogito”, penso logo existo, inventor

das três noções de identidade, consciência e self (si mesmo), a identidade como algo temporal,

alcançada pelo processo de memória, identidade enquanto relação ainda que por vezes culmine

no apagamento do que não sou eu. Husserl por fim traz a relação entre individual e coletivo,

onde Ricouer percebe a constituição simultânea entre a memória individual e memória coletiva.

Segundo Seligman-Silva:

Page 10: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

Se o século XIX sofreu de “história demais”, a nossa pós-modernidade sofre

de “fim da história”, de “fim da temporalidade”, em suma, parafraseando

Vidal-Naquet, ela sofre do “inexistencialismo”. A tarefa da memória deve ser

compartilhada tanto em termos na memória individual e coletiva como

também pelo registro (acadêmico) da historiografia. (SELIGMANN-SILVA,

2003, p.63).

Para Seligmann-Silva a historiografia é memória compartilhada, não controlamos a

memória, a dicotomia história e memória. Trabalha com a narrativa dos traumas, dos destroços,

compreender o relato do trauma, fontes orais através da psicanalise. História e memória

completam. Afirma a noção de memória e fragmento uma perspectiva, a construção dos traços,

a memória assim como a história é uma construção, reconstrução da realidade, memória

daquilo que nem é mais. Enfatiza três elementos, o político, o ético e o cientifico, historiografia

o sujeito político, literário ideológico. A memória partilhada a memória coletiva. A questão da

ética da representação está presente em seu texto fundamentando os limites do entendimento.

Afirma que a escritura do passado é uma reescrita, a desconstrução, elaborar e reelaborar, o

historiador como catador de trapos, relacionar passado histórico e trauma é tratar desse passado

de um modo mais complexo que o tradicional, se faz importante a necessidade de se trabalhar,

e não mais como um objeto de apoderamento.

Em uma nova arte da memória, pede atenção para os limites da representação nas obras

de arte que falam de atrocidades históricas, como o holocausto, por exemplo, Seligmann-Silva

aponta novamente para o político, ético e cientifico. No caso da América Latina o trauma é

uma ferida aberta exposta legitimando ou apagando a culpa nos processos de censura e

ditaduras presentes como Brasil, onde os torturadores têm direitos e se mantem impune graças

a anistia.

O processo de memória através de traumas, a relação entre memória e esquecimento

apresenta a relação da história do mundo, de sua própria história, a imersão em um ambiente

da narrativa seja através da história oral, romance de extração histórica as possibilidades de

trabalhar o processo de memória através das diversas narrativas.

Patrícia Galvão, escritora, artista brasileira que participou como ativista da ditadura de

Getúlio Vargas tem seus relatos sobre suas prisões e como isso a transformou sua vida, em

Paixão Pagu- A Autobiografia precoce de Patrícia Galvão, a narrativa autobiográfica em

forma de cartas ao seu companheiro Geraldo Ferraz, traz fatos, sentimentos, ressentimentos,

traumas de suas várias prisões. É possível apontar para o processo de memória que Pagu propõe

Page 11: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

em sua autobiografia, demonstra na narrativa os fatos como recorda, as sensações, assim como

o que não lembra o esquecimento, estão contidas em uma obra onde é possível reconhecer os

elementos sobre processo de memória para Seligmann-Silva e Paul Ricouer utilizados no

processo de escrita de Pagu.

Múltiplas dores em seus relatos, a narrativa de seus traumas, suas memórias

denominadas como uma autobiografia precoce de Patricia Galvão, entregue a seu companheiro

Geraldo Ferraz e publicada muitos anos depois por decisão e apoio de seus filhos Geraldo e

Rudá. Nestes escritos de uma mulher com experiências e presença no espaço público e privado,

apresenta aflições, indignações contradições com uma severa autocritica na trajetória de Pagu.

Ao procurar relacionar escrita de si e ação cênica proponho realocar impressões e sensações

apresentadas a partir do texto de Pagu, utilizar o aporte teórico e especificidades da literatura

como a memória e autobiografia para compreensão de suas possibilidades de ressignificação

em ação performativa, e, nas relações que podem se estabelecer entre Performance e Literatura.

REFERÊNCIAS

AMORIM, M. A. Da tradução intersemiótica à teoria da adaptação intercultural: estado

da arte e perspectivas culturais. Revista Itinerários, Araraquara, n. 36, p.15-33, jan./jun. 2013.

BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2009. (1 ed. Francesa Gallimard, 1949).

BONFITTO,M. Entre o ator e o performer. São Paulo: Perspectiva, 2013.

CAMPOS, A. Pagu vida-obra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.

COHEN, R. A performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2002.

FABIÂO, E. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Revista

Sala Preta, São Paulo, v.8, p. 235-243, 2008.

FREIRE, T. Dos escombros de Pagu- Um recorte biográfico de Patrícia Galvão. São Paulo:

Editora Senac, 2008.

GALVÃO, P. Paixão Pagu – A Autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Rio de Janeiro:

Agir, 2005.

HENRIQUES, F. (org.). Paul Ricoeur e a Simbólica do Mal. Porto, Edições Afrontamento,

2005, pp. 35-40.

Page 12: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

HOLLANDA, H. (org.) Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de

Janeiro: Rocco, 1994.

MURARO, R. M. Textos da Fogueira. Brasília: Letraviva, 2000.

______. A Mulher no terceiro Milênio. 8 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002 (1 ed.

1993).

______. Sexualidade da mulher brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996.

PERROT, M. As Mulheres e os Silêncios da História. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC,

2005.

PINHEIRO, A. Contos de hoje e sempre: literatura e memória em Maria da Glória Sá Rosa.

Guavira Letras, Três Lagoas, UFMS, n.18, p. 201-222, 2014.

PONTES, H. “Intérpretes da Metrópole: história social e relações de gênero no teatro e

no campo intelectual brasileiro". Tese de livre-docência apresentada ao IFCH da Unicamp,

2008.

PRIORE, M. Del (org.) História das Mulheres no Brasil. SP: Contexto/UNESP, 1997.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alein François. Campinas:

Editora da Unicamp, 2007.

ROSA, G. Contar-se para o outro: o desvelamento de si em Patrícia Galvão. Cadernos

CESPUC, n. 25, 2014, pp. 125-143.

SANTOS, Z. M. Breve histórico da performance art no Brasil e no mundo. Revista Ohun,

ano 4, n. 4, 2008, p.1-32.

SCHUMAHER, S. e Brazil, É. V. Dicionário Mulheres do Brasil de 1500 até a atualidade.

Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

SELIGMANN-SILVA, Márcio (org). “Reflexões sobre a memória, a história e o

esquecimento”. In.: História, memória, literatura: o testemunho na Era das catástrofes.

Campinas: Editora da Unicamp, 2003, pp.59-88

SOUZA, E. C. Pesquisa narrativa e escrita (auto)biográfica: interfaces metodológicas e

formativas. In: Elizeu Clementino de Souza, Maria Helena Mena Barreto Abrahão (Orgs).

Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.

SOUZA, M. C. A tradição obscura: o teatro feminino no Brasil. Rio de Janeiro: Bacantes,

2001.

SÜSSEKIND, F; DIAS, T. e AZEVEDO, C. (organizadores). Vozes femininas – gênero,

mediações e práticas da escrita. Rio de Janeiro: 7 Letras: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003.

Page 13: Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... · Múltiplas dores, identidades, sujeitos, nas cartas de Pagu ... em sua maioria, apontam para discussões sobre o

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014.

ZINANI, C, História da literatura: questões contemporâneas. Caxias do Sul: RS: Educs,

2010.