mulheres que lêem são

7
MULHERES QUE LÊEM SÃO (AQUILO QUE QUISEREM) por Joana Neves 1. MULHERES QUE LÊEM SÃO (AQUILO QUE QUISEREM) por Joana Neves 07/04/2015 “Melhor Marido”: Reler Mulherzinhas, de Louisa May Alcott Que nome se lhe há-de dar? Àquela sensação que se tem quando se volta a um lugar memorável da infância que se ficou muitos anos sem visitar – a sala da quarta classe, o corredor para a cantina, a praça da vila onde se passava férias, o café da praia; aquela sensação de sermos monstruosamente enormes, de pé no recreio da escola primária, a olhar para o arbusto que toda a vida nos lembrávamos de ter sido uma árvore. Essa sensação, como se fosse um sentido de desproporção, um desalinhamento da memória, que amplifica locais e objetos, e faz com que pareçam ter existido desde sempre. É por isso que causa choque e estranheza imaginar que estes locais e objetos mitificados pela nostalgia tenham, a determinada altura, sido novos. Isto é particularmente verdade no caso dos livros; um dos prazeres ambíguos da vida é reler os livros infantis e juvenis nos quais fomos felizes. A nossa leitura estará sempre marcada por essa memória, e é preciso um esforço para imaginarmos que esta história e estas personagens, com as quais crescemos e que sentimos que, de alguma forma, nos pertencem, tiveram de ser… bom, inventadas. E que a maneira como as recebemos – já de alguma forma estabelecidas no cânone da literatura infantil e, por isso, consideradas seguras, aceitáveis, decentes – pode não ser a maneira como foram recebidas pelos primeiros leitores, ou como concebidas pelo seu criador.

Upload: schagas

Post on 01-Feb-2016

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Artigo

TRANSCRIPT

Page 1: Mulheres Que Lêem São

MULHERES QUE LÊEM SÃO (AQUILO QUE QUISEREM) por Joana Neves

1. MULHERES QUE LÊEM SÃO (AQUILO QUE QUISEREM)

por Joana Neves

07/04/2015

“Melhor Marido”: Reler Mulherzinhas, de Louisa May Alcott

Que nome se lhe há-de dar? Àquela sensação que se tem quando se volta a um lugar memorável da infância que se ficou muitos anos sem visitar – a sala da quarta classe, o corredor para a cantina, a praça da vila onde se passava férias, o café da praia; aquela sensação de sermos monstruosamente enormes, de pé no recreio da escola primária, a olhar para o arbusto que toda a vida nos lembrávamos de ter sido uma árvore. Essa sensação, como se fosse um sentido de desproporção, um desalinhamento da memória, que amplifica locais e objetos, e faz com que pareçam ter existido desde sempre.

É por isso que causa choque e estranheza imaginar que estes locais e objetos mitificados pela nostalgia tenham, a determinada altura, sido novos. Isto é particularmente verdade no caso dos livros; um dos prazeres ambíguos da vida é reler os livros infantis e juvenis nos quais fomos felizes. A nossa leitura estará sempre marcada por essa memória, e é preciso um esforço para imaginarmos que esta história e estas personagens, com as quais crescemos e que sentimos que, de alguma forma, nos pertencem, tiveram de ser… bom, inventadas. E que a maneira como as recebemos – já de alguma forma estabelecidas no cânone da literatura infantil e, por isso, consideradas seguras, aceitáveis, decentes – pode não ser a maneira como foram recebidas pelos primeiros leitores, ou como concebidas pelo seu criador.

Se bem que.. temos de reconhecer que a literatura infantil não é exatamente um idílio. Como explicou Helena Vasconcelos no brilhante ensaio A Infância É um Território Desconhecido (Quetzal, 2009), aquilo que hoje conhecemos como escrita para crianças não foi, em grande parte, concebido para ser lido a ou por crianças, e continha quase sempre subtextos bastante subversivos. Para o comprovar, podemos ler A Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelheim (Bertrand, 2011) ou, para quem tiver nascido até 1980, ou seja, enquanto a Disney ainda traumatizava livremente gerações inteiras com filmes de animação de animais fofinhos órfãos e maltratados, basta recordar. Contaram-me recentemente que o filho de dez anos de um amigo oferecia como entretenimento às outras crianças, quando iam lá a casa: “Queres ver os meus pais a chorar?” Depois, chamava os pais e perguntava se podiam ver o Bambi todos juntos. Era só esperar pela cena da caça e os adultos responsáveis desfaziam-se em pranto (e as

Page 2: Mulheres Que Lêem São

crianças em gargalhadas; aparentemente, a nova geração é Disney-imune). Há tempos folheei um livro ilustrado que tive em criança com os contos de Hans Christian Andersen e tive um ligeiro ataque de pânico ao rever as ilustrações de A Menina dos Fósforos. Quis perguntar aos meus pais o que lhes passou pela cabeça para exporem uma criança de sete anos à história de uma mendiga órfã que morre de frio a vender fósforos na rua num dia de neve (no dia de Natal!); mas o meu pai era socialista nos anos 70, por isso imagino que, para ele, fosse sobretudo uma alusão à necessidade do estado de segurança social; quanto à minha mãe, ela é artista –  as ilustrações eram graficamente impecáveis e o texto, claro, absolutamente irrelevante ao lado de ilustrações tão bem conseguidas.

Por isso, como com os armários em sótãos, as portas secretas e as garrafas com rótulos a dizer “bebe-me” que costumam aparecer nos contos infantis, há que ter muito cuidado com os próprios livros para crianças: eles podem conter mais, muito mais, do que é aparente à primeira vista.

O que achariam, por exemplo, se vos dissesse que um dos livros mais provocantes, incendiários, e declaradamente libertários e feministas que já li foi… Mulherzinhas, de Louisa May Alcott? Sim, esse mesmo: a história de uma mãe a cuidar de quatro filhas, sozinha, enquanto o marido combate heroicamente na guerra civil; a história de quatro adolescentes com temperamentos fogosos que, com o amor, a placidez e os bons exemplos da mãe, vão aprendendo a ser boas, e igualmente plácidas, mulherzinhas. Mas que é, ao mesmo tempo, a história de uma família politicamente comprometida (são ativistas anti-escravatura; lembram-se, a Meg é gozada pelas meninas da sociedade quando vai a um baile e se recusa a usar um vestido de algodão, que era cultivado em plantações sulistas?); de uma mulher que é, na prática, mãe solteira; e de quatro raparigas que podem, no final do livro, comportar-se como umas perfeitas mulherzinhas, mas que, sob a superfície, escondem vidas interiores muito à frente do seu tempo (menos uma delas, que morre a meio – a literatura infanto-juvenil parece exigir sempre um sacrifício humano).

Isso deve-se, principalmente, ao facto de Louisa May Alcott ter sido, ela mesma, uma mulher muito à frente do seu tempo.  Os pais, Bronson e Abigail Alcott, eram pacifistas, abolicionistas e profundamente comprometidos com os movimentos sufragistas. Eram, literalmente, utopistas; Bronson Alcott fundou uma quinta comunitária vegetariana e abstémia, de onde a propriedade privada foi abolida. Calhou bem que ele não acreditasse na propriedade privada, pois teve muito pouca ao longo da vida: os seus sucessivos projetos utopistas arruinaram as finanças da família. Fundou diversos colégios e comunidades, que faliram uns atrás dos outros, e vivia essencialmente de donativos de amigos. Foi assim, entre o idealismo extremo do pai e a necessidade prática da mãe e das irmãs de… bom, se alimentarem, que Louisa May Alcott cresceu e viveu.

Na verdade, é em grande parte ao idealismo e à falta se sentido prático de Bronson Alcott que devemos a existência de Mulherzinhas. Foi por precisar de sustentar a família que Louisa May Alcott aceitou a sugestão do seu editor de escrever “uma história para raparigas” – e, em pouco mais de dois meses, lhe apresentou o primeiro volume do livro, que foi um sucesso imediato de vendas.

Page 3: Mulheres Que Lêem São

O editor em questão sabia o que fazia; as “histórias para raparigas” estavam na moda e eram grandes sucessos de vendas. Na sua maioria, tratava-se de romances com intenções moralistas e didáticas, com grandes picos dramáticos a roçar o sensacionalismo, e protagonistas que, graças à sua doçura, temperança e boa vontade (as características eminentemente femininas que se desejava cultivar), venciam todas as adversidades. (Gosto de pensar que foi também com protagonistas destas em mente que Oscar Wilde disse, mais tarde, sobre A Loja de Antiguidades de Dickens: “É preciso ter um coração de pedra para ler a cena da morte da Pequena Nell sem desatar a rir.”)

Terá sido por ir contra esta corrente que Mulherzinhas conheceu um sucesso tão grande? Estariam os leitores, mais do que finalmente prontos para personagens femininas diferentes, realmente sedentos de mudança? É pura especulação tentar sabê-lo, até porque a personagem mais irreverente do livro é, em termos da tradição literária que a precedia, tão inovadora, que, como diz Elaine Showalter na edição crítica de Mulherzinhas da W.W. Norton, “não existia até ter sido inventada.”

Jo, a primeira – e, diria até, principal – maria-rapaz da história da literatura. Jo, que gosta de correr, lutar, patinar; que adora teatro e representar vestida de rapaz; Jo, que se refugia no sótão para escrever as suas histórias, peças e fábulas, com as quais entretém toda a família; Jo, que só é desajeitada quando tem de lidar com “coisas de raparigas” como lacinhos e fitas para o cabelo (e, numa das cenas mais memoráveis do livro, tem de passar um baile inteiro encostada a uma parede, por ter queimado as costas do vestido no radiador); Jo, que, para espanto, e por vezes, ultraje, de toda e qualquer pessoa que pega no livro desde a sua primeira edição em 1868, recusa casar-se com o melhor amigo (jovem, bonito e milionário) não para ser uma mulher livre e independente, mas para ficar noiva de um professor velho, caquético (de quase 40 anos!). Jo a destemida, Jo a desbocada, Jo que faz aquele que é talvez o corte de cabelo mais memorável da história da literatura juvenil:

“… pouco depois, entrava (Jo) em casa, com uma expressão estranha, meio animada, meio receosa, de satisfação e pesar a um tempo, que surpreendeu tanto a família como as notas de banco que entregou à mãe, dizendo com voz um tanto alquebrada:

—Isto é para que possas tratar melhor o papá e trazê-lo para casa…

—Mas, filha, onde arranjaste este dinheiro? Vinte e cinco dólares?

— Obtive honradamente este dinheiro. Não o pedi nem roubei. Ganhei-o, e acho que não me vais culpar, pois apenas vendi o que me pertencia.

Dizendo isto, tirou o chapéu, e logo um clamor geral se elevou no aposento, quando notaram que ela cortara a abundante cabeleira.

— O teu cabelo! O teu lindo cabelo! Mas, Jo… Porque fizeste isso? Era todo o teu encanto!

(…)

— Isto não é nenhuma desgraça nacional, por isso, por favor, não me lamentem. Vai ser bom para a minha vaidade, já que andava a ficar muito vaidosa da minha cabeleira. Vai-

Page 4: Mulheres Que Lêem São

me fazer bem ao cérebro ficar sem esta pelugem. Sinto a cabeça deliciosamente leve e fresca, e o barbeiro disse que em breve ficaria com umas madeixas encaracoladas, que vão ser giras, à rapaz, e fáceis de pentear. Estou contente, por isso, por favor, aceita o dinheiro e vamos jantar.”

Mesmo tendo crescido maria-rapaz por natureza e com corte à tigela até aos 13 anos (acho que era obrigatório por lei, na década de 70), senti, ao ler esta parte, como todas as outras leitoras que conheço, o mesmo arrepio na nuca, o frio inesperado das tesouras contra a pele, a sensação de perda e liberdade, daquele corte: “O teu cabelo! O teu lindo cabelo!”

Porque é que Jo cortou o cabelo? Este pode ser, na verdade, o ponto mais claramente autobiográfico do livro: Jo fê-lo pela mesma razão que levou a sua autora a criá-la a ela: para ganhar dinheiro. Quando o pai da família é ferido em combate, durante a Guerra Civil, a mãe quer ir visitá-lo ao hospital, mas não tem dinheiro; então Jo, que já ajudava a família financeiramente (aos 15 anos já tem “dama de companhia”, “governanta” e “jornalista” no seu CV), vai em segredo cortar a trança para a vender a um fabricante de perucas.

O simbolismo não podia ser mais eloquente: o ato de Jo é entendido como um sacrifício, por um lado, como se fosse a amputação do mais visível sinal da sua feminilidade, mas ao mesmo tempo, e precisamente pelo mesmo motivo, como uma forma de libertação: sem este sinal visível da sua identidade feminina, Jo passa a dedicar-se mais livremente às atividades de que realmente gosta (e, sobretudo, à escrita).

O simbolismo tem destas coisas: por vezes, consegue ser inadvertida e cruelmente literal. Tal como Jo, Louisa May Alcott conseguiu viver uma vida que estava ao alcance de poucas mulheres do seu tempo. Para além de sustentar a família com a sua escrita (escreveu contos, fábulas, reportagens e ensaios), foi enfermeira voluntária durante a Guerra Civil. Infelizmente, o tratamento para o tifo que contraiu durante a guerra levou a que perdesse o cabelo, a certa altura e, segundo pensam alguns biógrafos, terá sido a causa do cancro que matou (ah, a medicina do século XIX! Bons velhos tempos em que se enchia as pessoa de mercúrio para tratar infeções!)

Ao contrário de Jo, com a sua decisão de casar com o homem mais velho (e, segundo a própria Jo, mais inteligente), Louisa May Alcott nunca casou. Simone de Beauvoir terá comentado certa vez que, ao ler Mulherzinhas, esta decisão de Jo a entusiasmou como poucas leituras tinham feito; não por concordar com a decisão, mas por compreender a imensidão das possibilidades que se abrem a quem é livre de decidir. O que terá levado Louisa May Alcott à sua própria decisão? Não temos forma de saber sem entrar na especulação. Sabemos, isso sim, o que ela disse famosamente sobre o assunto: “A liberdade é melhor marido do que o amor.”

O que é, de si só, dizer imenso.

(Há pelo menos duas edições de Mulherzinhas à venda presentemente – da Oficina do Livro e da Europa-América. As edições mais antigas, como as da Círculo de Leitores e da Bertrand – que foi de onde citei a passagem em questão – , podem conter passagens  abreviadas ou simplificadas. O texto completo em inglês está disponível online em várias fontes, mas recomendo que procurem o texto original de 1868, como aqui:

Page 5: Mulheres Que Lêem São

http://americanliterature.com/author/louisa-may-alcott/book/little-women/summary , pois as edições posteriores têm alterações significativas feitas pelos próprios editores e não pela autora. )