mulheres nos mutirões: uma luta para além da moradia

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mulheres nos mutirões: uma luta para além da moradia orientadora: Maria de Lourdes Zuquim aluna: Gabriela Giraldez Barros trabalho final de graduação fauusp são paulo 2015

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Uma aproximação das relações entre os mutirantes através de um olhar de gênero. Entendo que os canteiros de obra são espaços comumente masculinos mas nos mutirões habitacionais entre 1989-1992 tiveram uma participação majoritaria de mulheres, tentou-se abordar de que forma os papéis sociais se transformaram ao longo do processo.

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mulheres nos mutirões: uma luta para além da moradia

orientadora: Maria de Lourdes Zuquimaluna: Gabriela Giraldez Barrostrabalho final de graduação fauusp

são paulo 2015

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agradecimentos

Agradeço incialmente à professora Maria de Lourdes Zuquim, pelo apoio e paciência na orientação do trabalho, e mais que isso, por me incentivar a me dedicar à trabalhos que nunca me vi fazendo. À professora Karina Leitão, por sempre ajudar quando procurei, por toda acessibilidade e disposição. À Heloisa Diniz Resende que topou participar da banca e do debate. À Fabi, companheira da FAU e provavelmente da vida inteira, à Ju, sempre presente em todos os momentos bons, ao Gui pelo apoio e ajuda no processo desse trabalho, amigos muito queridos que fazem parte de mim. Aos meus pais que me permitiram estar onde estou agora, por todo apoio, amor e compreensão.

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Dos nossos medos

Dos nossos medos nascem as nossas coragens,e em nossas dúvidas,vivem as nossas certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível, e os delírios outra razão. Nos descaminhosesperam-nos surpresas,porque é preciso perder-separa voltar a encontrar-se.

Eduardo Galeano

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sumário

Introdução

Breve histórico da precariedade habitacional no Brasil

Igreja, mulheres e movimentos sociais em São Paulo

O Programa Funaps Comunitário no período de 1989-1992

Mulheres mutirantes: um olhar sobre as experiências vividas

Considerações finais

Referências bibliográficas

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introdução

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introdução

Ao entrar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo me deparei com um mundo novo permeado de questões críticas importantes relacionadas à precariedade urbana, à influência dos espaços nas relações interpessoais, às políticas públicas, entre outras. Esses novos assuntos, conforme o interesse e o aprofundamento, foram se mostrando complexos e com diversas formas de serem abordados. Acredito que alguns fatos, durante a minha trajetória na graduação, foram imprescindíveis para que eu refletisse a respeito de assuntos que eu não tinha muito contato, e, portanto, não me eram latentes, mas que em certo momento, me sensibilizaram. A Iniciação Científica que fiz entre 2013-2014 foi um desses acontecimentos. Através dela entrei em contato com pessoas e realidades diferentes da minha que me fizeram questionar e observar a cidade e as relações de forma mais ampla, talvez mais humana. O estudo desenvolvido pretendia entender como funcionaram as remoções provenientes de projetos de urbanização de favelas no

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município de São Paulo no período entre 2005-2010, tendo como estudo de caso a antiga favela do Jaguaré. Este foi o primeiro contato que tive, um pouco mais aprofundado de fato, com as questões habitacionais, e os problemas enfrentados, ou não, para que elas fossem solucionadas. Além disso, a metodologia que usei para compreender as questões que tinham sido propostas, foi o que de fato me surpreendeu. O trabalho foi feito através da história oral de alguns moradores do Jaguaré, os quais, através de suas memórias, contariam como ocorreu e como funcionou a dinâmica de deslocamentos durante as intervenções públicas para as obras de urbanização. No entanto, além das informações para o projeto em questão, pude apreender mais do que esperava. Foram oito pessoas entrevistadas, sendo que cinco eram mulheres e entre os três homens, dois deles estavam com suas companheiras. Consequentemente tive muito mais contato com a história de vida daquelas mulheres, suas preocupações, seus pontos de vista, suas aspirações, entre outras informações, as quais me sensibilizaram e me fizeram refletir e me interessar pela tentativa de compreender e analisar assuntos a partir da ótica de gênero, considerando que com esses depoimentos pude notar que as preocupações e anseios femininos são muitos e específicos. Após este contato inicial com o tema, passei a notar que na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo a qual eu estudei durante a minha graduação, onde as mulheres são maioria entre os estudantes e docentes, pouco, ou quase nada se é discutido sobre todas as questões que envolvem o gênero, seja relacionada à profissão, seja na atuação da mulher em cada área, sejam nas questões diretas de como ocorre a interação da cidade com a mulher, entre outros assuntos. Considerando que a profissão que escolhi é capaz de intervir na relação da cidade com o ser humano, em diversos aspectos, acredito que, sendo mulher, e futuramente arquiteta, é imprescindível esta conscientização sobre o papel que temos no exercício da profissão, o qual está imbuído de ideologia, e que pode levar, ou não, à reprodução de conceitos cristalizados na sociedade a qual em pleno século XXI

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ainda subjuga a mulher em inúmeros aspectos. “Homens e mulheres têm papéis diferenciados, mas também suas necessidades são diferenciadas (...) Quem planeja precisa conhecê-las e, mais do que isso, entendê-las como uma extensão de seu papel reprodutivo, que inclui a provisão de bens coletivos (habitação, educação, saúde) necessários às suas famílias. A participação popular na elaboração de propostas de políticas públicas junto aos governos locais assume hoje uma importante dimensão no planejamento municipal. É aí que esse papel pode ser verificado. Sabedoras/ es dos diferentes papéis e necessidades de mulheres e homens, e considerando tais diferenças, deve-se e podem-se definir políticas e programas mais adequados a toda a população. Estas condições, interesses e necessidades são diferenciadas na saúde, na educação, no emprego, na estrutura familiar, no lazer, é necessário o reconhecimento dessas diferenças, para então propor soluções que permitam um acesso mais igualitário às oportunidades. Por outro lado, a implementação de políticas e programas torna-se mais difícil – e menos eficaz – se as/os planejadoras/es não percebem tais diferenças (...). ” (GONZAGA, 2004, p.62)

Em razão destes dois aspectos busquei encontrar um tema que os abrangesse, tanto o problema habitacional, quanto a ótica de gênero, a fim de produzir um trabalho final de graduação que me instigasse e que, talvez, acrescentasse algo para minha formação como profissional e como mulher. Desta forma, encontrei nos mutirões habitacionais este ponto de convergência que me permitiria apresentar uma abordagem a respeito das duas questões. Através desse trabalho tentei entender melhor como se deu a relação da produção habitacional durante o período da gestão da Luiza Erundina (1989-1992) - na qual os mutirões além de ocorrerem em montantes consideráveis previam também o desenvolvimento das

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comunidades nas quais se inseriram - com as mulheres que participaram das construções. Deste modo sob da ótica de gênero buscou-se compreender de que forma a produção e melhorias habitacionais interferiram na mudança de comportamentos e padrões esperados e cristalizados em nossa sociedade. Ou seja, como ou se ocorreu uma readequação em torno do papel da mulher num contexto de participação destas no trabalho de construção de habitação e se as representações em torno dos “papéis sexuais” são negadas, mantidas ou readequadas a partir da participação no movimento e nos mutirões. Com esse objetivo, o trabalho foi organizado em quatro capítulos, partindo de uma visão mais geral até chegar no foco do trabalho. O Primeiro Capítulo trata de uma breve abordagem a respeito da precária situação habitacional no país, a fim de mostrar um panorama geral onde a terra e a habitação são historicamente negados à população periférica. Para isso apresenta-se o desenvolvimento das periferias nos centros urbanos, considerando que elas se apresentam nas cidades como a clara segregação espacial onde a pobreza é disseminada em diferentes formas e graus configurando zonas marginalizadas da sociedade, inserindo-as dentro do contexto político e social da época. O Segundo Capítulo, com um recorte espacial, São Paulo, aborda qual era a situação da cidade até o momento em que os movimentos sociais começaram a se organizar, quais as questões que influenciavam a configuração política e em qual conjuntura os mutirões habitacionais ocorreram. São Paulo que, até os anos 80 aproximadamente, foi um grande eixo dos movimentos migratórios da época, viu suas periferias crescerem de forma exorbitante. As políticas públicas executadas foram ineficientes na solução de problemas da população que ali diariamente se instalava, como infraestrutura básica, habitação digna, melhores salários, transporte, entre outras questões.

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A situação da população trabalhadora era, e ainda é, de exclusão do direito à cidade, somado a isso, o panorama político nas décadas de 70/80, com a ditadura militar, era de repressão e é nesse contexto de luta pela democratização do país que os movimentos sociais se organizam, em especial nas regiões mais periféricas, com apoio relevante da igreja católica. Além disso, a crise econômica que assolava o país achatava ainda mais os parcos salários dos trabalhadores. A partir dessa visão geral do contexto das periferias em São Paulo e do desenvolvimento dos movimentos sociais, no Capítulo Três é delimitado então o recorte temporal da pesquisa, a Gestão da Prefeita Luiza Erundina de 1989-1992, a qual tinha apoio dos movimentos sociais e previa inúmeras ações relacionadas as demandas populares, como os mutirões habitacionais. Os mutirões autogeridos que ocorrem na época em questão apresentaram diversos avanços tanto pela qualidade das habitações, quanto pelo diálogo com os movimentos, os quais demonstraram organização e foco na luta por diversas demandas no período. Descreve-se então desde o programa criado para a execução dos mutirões habitacionais, o FUNAPS Comunitário, até como se desenvolviam os trabalhos dos movimentos ao canteiro de obras. Algumas questões relacionadas aos mutirões são levantadas, como a maioria feminina na participação em todas as etapas dos trabalhos, desigualdades de poder, hierarquização do movimento no canteiro de obras, entre outras. Constatando as disparidades, no Capítulo Quatro são problematizadas algumas questões comuns às mulheres, e que auxiliam na compreensão da relação delas com os mutirões e com o próprio movimento social. Aqui existe uma tentativa de compreender melhor o que movimenta essas mulheres, e quem são elas, não como uma generalização, mas como um contexto de informações a fim de compreendê-las melhor como indivíduos únicos. Por fim, descreve-se de forma mais aproximada como foi administrado a participação das mulheres na construção – situação

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nova para todos - já que elas eram a maioria, portanto fundamentais, e como organizaram-se em relação as hierarquias exigidas para o possível sucesso do projeto. Nos mutirões habitacionais, onde estavam executando trabalhos que “não lhes era apropriado”, o julgamento em torno de seu desempenho tornou-se indicador de como são desenvolvidas estratégias para a manutenção dos papéis respectivos a cada sexo, mesmo em situações novas, como nos mutirões. A construção, por ser uma tarefa tradicionalmente exercida por homens, gerou situações que evidenciaram questões como valorização sexual do trabalho, inversão dos papéis esperados por homens e mulheres entre outras. O trabalho desenvolvido, ao adotar a perspectiva de gênero como referência para a análise da produção habitacional nos mutirões, enfatiza a importância de compreender melhor a construção social e histórica tanto de classes, como do feminino e do masculino, marcadas em nossa sociedade por uma enorme assimetria, a qual só faz erradicar o modelo de desigualdades crescentes em que as cidades vêm se reproduzindo. A partir da compreensão da existência dessas relações dispares é que mudanças poderão acontecer a fim de uma cidade onde exclusão dos direitos não seja uma regra e sim uma exceção.

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breve histórico da precariedade habitacional no Brasil

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breve histórico da precariedade

habitacional no Brasil

O surgimento do urbano no Brasil não superou inúmeras características dos períodos colonial e imperial. A lei nas cidades continuou a ser aplicada de forma arbitrária para a manutenção do poder daqueles que já o possuíam, perpetuando-se a concentração de terra. Esse monopólio de parcelas do globo terrestre por uma pequena parte da população possui valor através da possiblidade de gerar renda, seja por extração, fundiária ou imobiliária. A renda, portanto, é uma relação social gerada pelo monopólio de um espaço que permite o proprietário se apropriar de uma parcela dos ganhos relacionados a essa terra sem necessariamente ter relação com a produção de uma mercadoria.

“Esse lucro suplementar que deriva do preço de monopólio converte-se em renda e sob esta forma cabe ao proprietário da terra, em virtude de seu direito sobre esse pedaço do globo terrestre dotado de qualidades especiais. O preço de monopólio gera aí a renda.” (MARX,1867, p.890)

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Com isso, nota-se que esse monopólio de terras reflete de forma incisiva na configuração da sociedade, no que tange a concentração de renda e consequentemente de poder. Para compreender um pouco da questão habitacional atual, é necessário ter um olhar atento sobre esses fatores que se prolongaram em nossa história e atuam até hoje. Em 1850, a Lei de Terras garante legalmente o privilégio das classes dominantes sobre a propriedade da terra pois a posse baseada na ocupação ou na cessão pública não é mais permitida. Uma massa trabalhadora pobre, em especial os negros libertos e desempregados, sem acesso à terra ficavam disponíveis como força trabalho barata e pouco qualificada tanto para as fazendas de café como para a indústria incipiente. No fim do século XIX, começo do século XX inicia-se um processo de urbanização integrado à expansão do café. Já em 1870-1890 ocorre um crescimento considerável de algumas cidades e surgem demandas por moradia, transporte e demais serviços urbanos até então inéditos. O Código de Posturas (São Paulo – 1886 e Rio de Janeiro – 1889) que proibia a construção de cortiços nas áreas centrais, acelerou a proliferação de moradias populares nos subúrbios, tendo claro papel de subordinar a cidade ao capital imobiliário. Neste mesmo período já se observava nas cidades concentração de pobreza, ausência de saneamento básico, desemprego, fome, altos índices de criminalidade, epidemias, insalubridade, segregação territorial e ambiental, entre outros. Ou seja, a sociedade brasileira se constitui, segundo Ermínia Maricato, sobre a marca da “modernização com desenvolvimento do atraso” ou “modernização excludente”. No início do século XX o capitalismo industrial já estava estabelecido no Brasil, tendo um operariado urbano considerável, porém com resquícios da situação colonial. Esta “modernização excludente” constitui, através da segregação territorial, a base dos investimentos públicos, os quais ocorrem apenas na cidade oficial, refletindo na diferenciação acentuada da ocupação do solo e na produção de equipamentos urbanos.

Imagem 1Cortiço em São Paulo na primeira metade do século XX.

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breve histórico da precariedade habitacional no Brasil

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A regularização do trabalho urbano, elaborada em 1930 na política de Getúlio Vargas, com a instituição da previdência, promulgação da CLT, fixação do salário mínimo, somada ao incentivo à industrialização e a construção da infraestrutura industrial, entre outras medidas, acelerou o movimento migratório campo-cidade. Em 1942 com a Lei do Inquilinato (congelamento de aluguéis), o capital investido na habitação para aluguel deixa de ser rentável e passa a ser empregado na indústria ou em loteamentos periféricos. Com isso, dentre as poucas opções que o trabalhador encontrava nas grandes cidades para a provisão de moradia estavam o loteamento irregular na periferia e a ocupação ilegal de terras somada a autoconstrução da moradia. Trata-se segundo Ermínia Maricato do “produtivo excluído” resultado da industrialização com baixos salários, na qual trabalhadores se vêm excluídos do mercado imobiliário privado e buscam, frequentemente, a favela como local provedor de moradia. Na década de 50 com a produção de bens duráveis, o crescimento da classe média, e o automóvel, o Brasil cresce economicamente, porém, as desigualdades se aprofundam, reflexo do modelo desenvolvimentista. A relação entre exclusão, legislação e mercado restrito mostra-se cada vez mais evidente nas regiões metropolitanas, e é nas áreas de menor valor imobiliário, ou rejeitadas por este mercado, que a população trabalhadora pobre vai se instalar: beira de córregos, encosta de morros, terrenos sujeitos a enchentes, áreas de proteção ambiental entre outros. Em relação às áreas protegidas ambientalmente como mananciais, a lei de Proteção aos Mananciais promulgada em 1975, fez com que estas terras perdessem o valor para o mercado imobiliário legal, com isso, passaram a ser cada vez mais áreas ocupadas por loteamentos ilegais e favelas. Nos anos 80, com a recessão após os dois choques mundiais do petróleo (1973 e 1979), as desigualdades se aprofundam, cresce vertiginosamente o desemprego no país, o arrocho salarial é ascendente, o acesso à terra torna-se cada vez mais restrito e a ilegalidade e a

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violência aumentam nos bairros pobres. Os altos custos habitacionais exigem maiores salários para os trabalhadores, o que ia de encontro aos interesses da burguesia industrial.

“A cidade neoliberal aprofundou e agudizou os conhecidos problemas que nossas cidades herdaram de quarenta anos de desenvolvimento excludente: favelização, informalidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestionamento e custos crescentes de um transporte público precário e espaços urbanos segregados. ” (VAINER, 2013, p.39)

Dentro deste contexto de crise econômica profunda no país, somado às lutas políticas pelo fim da ditadura, surgem movimentos sociais organizados em torno de questões latentes que assolavam as camadas mais pauperizadas da população, os trabalhadores e trabalhadoras das periferias. Reivindicavam pautas como saúde, melhores salários, democratização política, habitação entre outras. A moradia popular começa a ser tratada como questão social nos anos 40, com isso o Estado passa a prover habitações sociais. Já na década de 60, apresenta alguns programas de habitação social subsidiados como Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e Banco Nacional da Habitação (BNH). As políticas públicas criadas pelo BNH tiveram dois momentos distintos de ação, o primeiro de 1964 a 1973, caracterizado por remoções indiscriminadas em favelas para conjuntos habitacionais construídos em regiões periféricas da cidade sem nenhum vínculo com o local de origem e carentes de infraestrutura e serviços urbanos; e o segundo de 1975 a 1986, no qual as políticas adotadas foram, através de programas de urbanização em favelas, simultâneas à produção de moradias populares. Nas décadas de 70-80 os movimentos populares que reivindicavam por moradia, já organizados, lutavam por pontos como: conquista do direito de uso do solo por 99 anos; financiamento pelo Estado e prefeitura de infraestruturas; liberação dessa soma financiada

Imagem 2Mobilizações populares final da década de 60

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aos movimentos demandatários representados por uma assessoria técnica sem fins lucrativos; limite de 10% sobre o salário mínimo para a prestação das casas; inclusão dos salários da equipe técnica de apoio do movimento no custo da casa; e o direito de construir em regime de mutirão. Nos anos 90, os movimentos de defesa do meio ambiente no Brasil influenciam a política pública de forma a interferir diretamente nas normas de uso e ocupação do solo, delimitando cada vez mais o desenho da cidade e acentuando também os conflitos de regulação urbana e ambiental. Essa questão, somada às novas políticas neoliberais, fazem o poder público se ausentar cada vez mais da função de regulador dos problemas urbanos. Em 1994 é criado o Programa Habitar-Brasil, e a partir da metade dos anos 90 a urbanização de favelas toma novas proporções. As discussões passam a abranger questões relacionadas ao direito à moradia digna, o reconhecimento da cidade ilegal, a necessidade de instalação de infraestrutura através da urbanização e a regularização fundiária a fim de manter as famílias nas áreas originalmente ocupadas. Este programa representava uma conquista no que diz respeito à forma que a política pública lidava com a cidade informal, consistindo em um importante avanço das intervenções em assentamentos precários. Com a criação do Ministério das Cidades em 2003 e da implementação de políticas públicas federais, os programas que previam a regularização fundiária e urbana ganham nova dimensão no que tange a implementação de obras de urbanização, equipamentos públicos, habitações populares e recuperação de áreas degradadas. Em 2005 cria-se o Sistema e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (Snhis/Fnhis), programa que visava: o acesso da população de baixa renda à terra urbanizada e à habitação digna; implementar políticas, programas de investimentos e subsídios para a produção de habitação voltada à população de menor renda e acompanhar e fiscalizar as instituições e órgãos responsáveis por funções no setor da habitação. Este programa tinha alcance municipal, estadual e federal. A

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regularização urbanística e fundiária de assentamentos precários passa a ser inserida no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC, 2007) com um grande montante de recursos disponibilizados pelo Estado. A política habitacional – como promoção de condições de acesso à moradia tanto na forma de crédito como de subsídio Estatal – cresce nessa época, tanto em razão do investimento dos recursos públicos, como de crédito e do interesse do setor privado. A atividade no segmento habitacional também passou a ser vista como fundamental para alavancar o desenvolvimento de empregos no Brasil, frente a um cenário de crise mundial. É nesse contexto que surge o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), anunciado em 2009. O Programa estabeleceu um leque amplo de estratégias para favorecer a aquisição da moradia por meio do subsídio associado ou não à concessão de crédito. Programas visando melhorias em locais de assentamentos precários e moradias populares foram criados ao longo dos anos, no entanto, não ocorreu de forma efetiva, nenhuma política habitacional duradoura e interligada que solucionasse essa questão definitivamente. Com isso o desenvolvimento habitacional popular brasileiro se deu, em sua grande parte, através de interesses políticos clientelistas dos setores do capital de promoção imobiliária e o da construção. A lei, como visto antes, é utilizada como expediente de manutenção e fortalecimento de poder e privilégios, contribuindo para resultados como a segregação e a exclusão, além de ser aplicada de forma completamente arbitrária. Contudo, deve-se observar que os últimos cenários (anos 2000 em diante) apresentaram programas voltados a geração de habitação que, apesar de não mudarem o quadro nacional, geraram reconhecíveis avanços, e principalmente perspectivas de mudanças, que antes não seriam nem pensáveis. Ainda assim, o Brasil se insere no século XXI sem apresentar políticas sociais eficazes a longo prazo e com uma visão macro do problema urbanístico no qual a habitação está inserida, a fim de solucionar conflitos que passaram a adquirir dimensões gigantescas,

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muito além das políticas que estão sendo adotadas atualmente para amenizar essas questões (e não de fato solucioná-las). A existência de assentamentos precários em inúmeros lugares no país é um problema estrutural, por isso não deve ser tratado como uma política pública de contenção e sim como uma questão principal das cidades. A consolidação e melhoria da cidade ilegal deve ser uma prioridade, a fim de democratizar de fato as moradias produzidas, com todos seus serviços e infraestrutura.

“A criação de novos espaços urbanos comuns [commons], de uma esfera pública de participação democrática, exige desfazer a enorme onda privatizante que tem servido de mantra ao neoliberalismo destrutivo dos últimos anos. Temos de imaginar uma cidade mais inclusiva, mesmo se continuamente fracionada, baseada não apena em uma ordenação diferente de direitos, mas em práticas político-econômicas. Direitos individualizados, tais como ser tratado com dignidade devida a todo ser humano e as liberdades de expressão, são por demais preciosos para serem postos de lado, mas a estes devemos adicionar o direito de todos a adequadas chances de vida, direito ao suporte material elementar, à inclusão e à diferença. ” (HARVEY, 2013, p. 33)

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igreja, mulheres e movimentos sociais em São Paulo

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igreja, mulheres e movimentos sociais

em São Paulo

Se considerarmos a habitação não apenas o imóvel em si, mas também seu entorno, no que se refere à disponibilidade de educação, equipamentos públicos, lazer, transporte, entre outros serviços, nota-se que a precariedade habitacional abrange contingentes ainda maiores do que os estipulados pelos dados oficiais. Em São Paulo, relatórios produzidos nos finais do século XIX já apontavam uma situação semelhante à existente hoje em dia, só que em menores proporções. Enfatizavam a precariedade dos cortiços, considerados infectos e insalubres, os quais circundavam bairros centrais. A virada do século foi marcada por um período no qual predominou uma política pública higienista e sanitarista, em que autoridades demoliam as moradias e estimulavam a construção de habitações fora do perímetro urbano. Essa política de segregação das camadas mais pobres dos locais valorizados nos centros urbanos pode ser notada muito antes, a quase dois séculos atrás, na passagem de Engels no livro “A Classe Trabalhadora na Inglaterra”, o qual descreve semelhante situação habitacional da classe trabalhadora no início da Revolução

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Industrial e que curiosamente se perpetuou até os dias atuais. “[...] constatei um isolamento tão sistemático da classe operária, afastada das grandes ruas, uma arte tão delicada em mascarar tudo o que pudesse ferir a vista ou os nervos da burguesia.” (ENGELS, 1844, p. 82)

O crescimento da cidade foi estabelecido sob os interesses da valorização imobiliária. Desta forma, a administração pública não só delegava à iniciativa privada as providências relacionadas à ocupação do espaço urbano, como manifestava a intenção de segregar a população trabalhadora em áreas distantes do núcleo central da cidade com o objetivo de garantir altos investimentos do interesse privado imobiliário ou interesse político estatal, sem que houvesse perda de valor.

“O crescimento das favelas em São Paulo se explica através das remoções realizadas a fim de viabilizar a implementação do Plano de Avenidas de Prestes Maia em 1942 e 1945. A assistência da Prefeitura foram barracões improvisados para a instalação das famílias em terrenos do IAPI ou municipais. ” (GODINHO, 1955, in: BUENO, 2000, p. 47)

As favelas em São Paulo começam a ser encaradas como problema social a ser solucionado pelo município. Os investimentos públicos feitos de acordo com interesses privados, somado ao congelamento de aluguéis – Lei do Inquilinato de 1942- que gerou uma migração dos investimentos, antes direcionados para a construção de habitações para aluguel em partes consolidadas da cidade, e agora transferidos para o setor industrial e para a construção em loteamentos periféricos, agravava ainda mais a situação habitacional. Os problemas em São Paulo tornam-se cada vez mais complexos durante o século XX, considerando que a população ultrapassava dezenas de milhões de pessoas que não mais se concentram numa área central, mas se espraiam numa grande região, dificultando, por exemplo, a implantação de saneamento básico, iluminação, transporte acessível entre outras. O processo de formação de favelas acentuou-se, associado

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ao agravamento da situação habitacional desde os anos 70. Em áreas centrais, mais tradicionais, além dos cortiços antigos, surgiu uma nova forma de habitação, os “cortiços verticais” prédios abandonados, geralmente precários, alugados ou algumas vezes ocupados pela população que não tinha como arcar com os altos custos habitacionais. Predominou em São Paulo, até meados dos anos 80, o padrão periférico de crescimento da cidade, associado a produção doméstica da casa por autoconstrução. Esse espraiamento da cidade de São Paulo só foi possível graças ao meio de transporte coletivo que permitia chegar em locais mais distantes – o ônibus; além da facilidade de aquisição de lotes populares em regiões periféricas. Este processo de periferização das habitações dos trabalhadores ia, claramente, ao encontro das necessidades da acumulação na indústria, pois assim, diminuía os custos habitacionais, o que “permitia” aos industriais, achatar ainda mais os salários da classe que já se encontrava claramente precarizada.

“A partir do fim da 2° guerra mundial, a extensão do assalariamento, o acesso por ônibus à terra distante e barata da periferia, a industrialização dos materiais básicos de construção, somando às crises do aluguel e às frágeis políticas habitacionais do Estado, tornaram o trinômio loteamento popular/ casa própria/ autoconstrução a forma predominante de assentamento residencial da classe trabalhadora.” (MAUTNER, 1999, p.247-248)

A crise da habitação nesta década afeta principalmente às famílias que cada vez mais distanciam-se da possibilidade de adquirir a casa própria, tendo em vista os altos preços da terra urbanizada e dos imóveis produzidos pelo mercado formal. Os lotes, mesmo que mais distantes, sofrem um aumento nos preços, alterando, também, o padrão e a lógica imobiliária periférica na produção habitacional em São Paulo, até então predominante. No período que se estendeu da década de 40 até meados da 80 ocorreu em São Paulo, como descrito anteriormente, um crescimento

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populacional acelerado, sem previsão de como recepcionar todo esse contingente. Isso agudizou a crise habitacional no Estado, a qual foi um fator decisivo na organização dos movimentos sociais durante a década de 70. Outro fator relevante é que, mesmo com a diminuição do crescimento migratório entre 70-80, 52% dos migrantes que vinham para o Estado, ainda se dirigiam à capital. Esse fato auxilia na compreensão da natureza dos movimentos sociais que estavam se organizando na época. Era uma população dona de forte tradição religiosa, mas que pelo movimento migratório, estava sujeita ao desenraizamento cultural, criando condições propícias para que a Igreja Católica assuma um papel relevante em sua organização social e política, questão que será melhor desenvolvida posteriormente. É indispensável a compreensão de como se constituiu o processo de ocupação das periferias, estruturadas no binômio loteamento clandestino e autoconstrução da casa própria, pois representaram o modelo desenvolvido e implantado na cidade e que se perpetua até os dias de hoje. É possível apreender desses elementos que a instabilidade e a precariedade das condições de vida de uma grande parte da população define os habitantes da periferia:

“ Uma vez pobres e cada vez mais pobres, a dilapidação crescente de suas condições de vida, graças à desvalorização de seu salário é notável a partir de um simples dado: o salário mínimo desvalorizou-se em 52% entre 1977 e 1987. “ (SALVADOR, 1993, p.18)

Ao analisar o processo de crescimento de São Paulo, portanto, fala-se invariavelmente de pobreza, a qual pode ser quantificada não somente pelos baixos salários ou pela precariedade das habitações, mas de uma forma mais ampla pelo acesso ou não aos serviços urbanos, quase que inexistentes nas periferias de São Paulo. O modelo que definiu a resposta à crise habitacional na periferia foi o da autoconstrução em loteamentos clandestinos, e ao analisar os

Imagem 3Migrantes Nordestinos chegando em São Paulo na década de 60-70

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mutirões habitacionais como uma forma coletiva e organizada, tenta-se compreender como esse tipo de cooperação, que já estava de certa forma presente nas vidas dessas pessoas, pode ter sido imbuída de ordem política e mobilização coletiva organizada. As periferias na década de 70 ganharam visibilidade, não só pelo crescimento acelerado, mas também como um potencial político crescente, pelas organizações dos movimentos sociais que ali se apresentavam. Visualizava-se uma “nova consciência popular”. O Estado se mostrou omisso não interferindo no processo de abertura e venda de loteamentos pela iniciativa privada, além de não propor nenhuma política pública efetiva para a resolução dos problemas que cresciam vertiginosamente, como políticas de controle e uso do solo e programas habitacionais para a população de baixa renda. Entre as iniciativas esparsas do Estado estão a criação, em 1964 do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e do Banco Nacional de Habitação (BNH). Na prática, o BNH tornou-se um simples agente de financiamento privado que não atendia prioritariamente as classes sociais mais desfavorecidas.

“A política habitacional desenvolvida pelo BNH privilegiou o ramo da construção civil destinado às classes de renda média e alta, alimentando a elevação dos preços de terrenos e agravando o déficit de moradias para a população de baixa renda.” (SALVADOR, 1993, p.32)

Já a COHAB, Companhia Municipal criada para financiar moradia para a população de até 5 salários mínimos, em 24 anos de existência, entre 1965 e 1989, produziu 100 mil unidades habitacionais, enquanto que o déficit habitacional para essa faixa era de 1 milhão de moradias. Portanto a conjunção de aspectos econômicos somados ao contexto político decorrente da ditadura militar em vigor desde 64 são fundamentais para a compreensão dos movimentos sociais que afloraram com maior poder organizativo durante as décadas de 70 e 80.

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É nesse contexto que os movimentos passam a reivindicar, entre outras coisas, por melhores condições de habitação, ponto de partida para a análise do surgimento dos mutirões habitacionais que aconteceram no final da década de 80. É nesse cenário também que a Igreja Católica passou a exercer papel fundamental, estimulando formas de organização popular, que se tornaram alternativas essenciais dentro do quadro político- institucional vigente, desembocando em tais movimentos. A análise desta relação Igreja-movimentos sociais será importante para o entendimento a respeito das influencias incorporadas dentro destes, e como essa relação influenciou nas relações de poder e gênero dentro dos movimentos e posteriormente dentro dos mutirões.

Igreja e movimentos populares Para falar dos movimentos populares além das condições de vida às quais a população de baixa renda estava sujeita, é preciso apontar também o papel da Igreja Católica e particularmente das Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s) nesse processo. A Igreja estimulou a criação de grupos de reflexão sobre as condições de vida da população da periferia, instrumentalizando as pessoas com noções de injustiça, carência e direito, para que resultassem em “ações concretas”, ou seja, reivindicações visando a superação de tais condições. Nos anos 60, a Igreja Católica em São Paulo passou por um processo de readequação e questionamento interno a respeito da ideologia que até então norteava suas ações. Surge então uma ala mais progressista da Igreja, voltada para o contato direto com a população mais carente com a finalidade de solucionar os problemas dos mais pobres. Com a repressão militar após 1964, a atuação progressista da Igreja tornou-se indispensável, e se dava através do apoio a movimentos e instituições perseguidos pelo Estado. Ofereciam abrigo a movimentos e organizações sem filiação religiosa onde realizavam

Imagem 4Foto encontro CEB´s - 1981

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debates e reuniões com uma certa “imunidade” num momento de forte repressão política. (SALVADOR, 1993) Este processo de transformação da Igreja foi resultado de um questionamento mais amplo iniciado com o Concílio Vaticano II, em 1965, onde os bispos brasileiros aprovaram um Plano Pastoral. A ala progressista da Igreja volta-se então para a periferia crescente, a qual torna-se um ponto chave na atuação desta instituição. Portanto, para compreender a organização popular – e os mutirões – é importante observar como a Igreja colaborou no engendramento dos modelos de organização sobre os quais os movimentos populares se formaram, assim como suas lideranças.

“A participação da Igreja era muito forte, a relação dos padres, das freiras, das Comunidades Eclesiais de Base foi muito importante na organização, formação, usavam inicialmente a estrutura da igreja depois construíram seus próprios centros comunitários.“(Mona Zein¹ em entrevista concedida à autora em 16.04.15)

Durante os anos 70 a Ação Pastoral desenvolve planos junto aos trabalhadores, criando diversas pastorais: do Mundo do Trabalho, dos Direitos Humanos e Marginalizados, da Periferia, etc... consolidando o interesse e preocupação com os problemas sociais. Seu poder de intervenção era tamanho que chegava a interferir em sindicatos e movimentos, como os de luta por moradia e para conter o custo de vida. Pode-se notar que o maior papel desempenhado por essa nova forma de atuação direta da Igreja nas periferias da cidade, foi através das CEB´s, que surgiram em 1965 oficialmente, e representava uma nova concepção de Comunidade Eclesial, a qual ponderava e lidava com problemas concretos da vida cotidiana. No final dos anos 70 acredita-se que existiram em torno de 80 mil CEB´s no país. Mesmo que este dado não possa ser confirmado, a grande penetração e atuação das CEB´s permitiu à Igreja um papel de mensageira dos problemas enfrentados pela população. Considerava-se que as CEB´s além de uma organização para o culto religioso, era

¹ Assistente pessoal da Luiza Erundina quando prefeita de São Paulo.

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também o lugar de aprendizado e defesa dos direitos das classes mais pobres. Segundo Zulmara Salvador, pode-se observar dois elementos propulsores das Comunidades Eclesiais de Base em São Paulo: 1)Os cursos de evangelização, postos em prática após serem apontados os novos planos do concilio Vaticano II em 1965, que trabalhavam com a ideia crítica e noções de desenvolvimento da capacidade associativa para a resolução dos problemas comuns, como noções de união e capacidade reivindicatória. 2)Forte respaldo institucional entre 1976-77, pois as CEB´s são tomadas como ações prioritárias tanto no Plano Pastoral da Arquidiocese de São Paulo, como no Plano Nacional da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Acredita-se que na prática as CEB´s estimulavam relações “democráticas” em suas discussões, reforçando vínculos solidários e igualitários. O voto era um elemento fundamental que fortalecia, segundo os princípios, o engajamento e a mobilização de todos para a efetiva realização de algum projeto que escolhiam. Essas ações consolidavam os laços de solidariedade, criando-se um sentimento de identidade, ou seja, a percepção quanto à configuração de um grupo com questões em comum. Grande parte da população das periferias eram migrantes, e não tinham raízes nem motivos para tê-las em São Paulo, mas a partir dessa relação direta com a Igreja (CEB´S) e com esses grupos de discussões, passavam a ter clareza a respeito da exclusão dos direitos básicos que lhes eram comuns, gerando uma identidade não pelas origens, mas pela melhor percepção sobre a situação de restrição que compartilhavam. Diante do respaldo proporcionado pela Igreja, a população passa a organizar-se em torno das carências e problemas que a aflige, dando origem aos movimentos populares que, posteriormente, estruturam-se como organizações autônomas de reivindicação frente ao Estado.

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Mulheres e movimentos sociais A gestão doméstica do baixo salário recebido pelas classes trabalhadoras é um dos pontos chave na tentativa de compreender melhor a participação feminina nos movimentos populares. A mulher geralmente é quem lida com o problema da gestão doméstica, e consequentemente, é quem sofre em especial com a carência de serviços urbanos. É ela quem administra o tempo da vida do bairro considerando que o trabalho em casa, o “bico” ou o serviço doméstico lhe dão maior autonomia de tempo e é ela quem normalmente se interessa pela melhoria de vida através da luta em movimentos. Através dos limites impostos às suas vidas é que saem da esfera privada para a vida pública participar de movimentos, colocando em questão também a condição feminina na sociedade e a lógica dos papéis sociais. A compreensão da importância dos papéis das mulheres nos movimentos sociais pelos participantes naquele contexto, fez com que tenham se articulado questões como igualdade, democracia, autoridade e poder entre homens e mulheres, referencial de como se desenvolveram essas representações, e como elas foram, ou não, se modificando. As CEB´s tiveram para as mulheres uma importância e influência grande pois permitiam um local de reflexão (à luz do Evangelho) das dificuldades vividas por elas no dia-a-dia. Elucidavam que essas situações eram injustas e que a superação dependia da organização destas em ações concretas. Surgem então os Clubes de Mães como espaços de mobilização das mulheres que passaram a desenvolver novas práticas sociais. Atividades e reuniões eram organizadas regularmente com o intuito de valorizar a mulher, o seu trabalho e o papel feminino exercido na sociedade e discussões ocorriam de forma a criticar a subordinação a que as mulheres estavam sujeitas, a situação de reclusão ligada ao trabalho doméstico, entre outras questões. As discussões desses Clubes estavam sempre ligadas à noção da conquista de direitos como reivindicações por

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creche, transporte, escola, ou seja, bens sociais dos quais a população de baixa renda era excluída, abrindo, dessa forma, um caminho dessas mulheres para a vida pública através da conscientização política. Os Clubes de Mães se fortaleceram nos anos 70 como resposta aos problemas urbanos decorrentes da crise econômica vigente – muito explícitos na cidade de São Paulo – e uma alternativa de participação política num momento de repressão. De acordo com Zulmara Salvador, as mulheres estiveram na origem dos movimentos segundo dois pontos de vista: o primeiro, econômico, relacionado às atribuições de papéis na gestão da unidade doméstica; e o segundo, político, ao se reunirem, aparentavam um caráter ‘inocente’ de ‘conversa de mulheres’ o qual não apresentava risco aparente ao sistema político vigente e, portanto, não foram hostilizadas, mesmo desembocando, posteriormente em uma mobilização política mais ampla. Outros movimentos de vanguarda com maior participação de mulheres na vida pública foram surgindo no início dos anos 70, como o Movimento do Custo de Vida, e mais tarde, o Movimento Contra a Caristia e Movimento de Luta por Creches, todos inicialmente apoiados pelas CEB´s e depois por sindicatos. Mesmo atuando em uma ação política, as mulheres continuaram vinculadas à esfera privada e, suas preocupações, norteadas pela condição de vida dos filhos e gestão da casa. Isso refletirá na organização dos movimentos e na forma como eles influenciam na construção de novos sujeitos políticos.

“[...] ao construir suas trajetórias, as mulheres chefes ou não de família não são recipientes passivos das mudanças e vítimas de forças estranhas a elas [...], apesar de sujeitas a restrições, têm suas próprias resistências e lutas. ”(GOLDANI, 1994,p.326, in: MACEDO, 2008, p.400)Imagem 5

Mobilizações populares na década de 70

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As favelas, até os anos 70, eram locais provisórios de moradia de migrantes que chegavam na cidade. Na teoria, o problema habitacional seria resolvido rapidamente pois logo estariam disponíveis loteamentos populares, conjuntos habitacionais produzidos pelo Estado ou retornariam ao seu local de origem. No entanto, na prática isso não ocorria, aumentando sempre o contingente de pessoas que moravam em habitações precárias, muitas vezes em locais de risco por não terem outras opções de moradia. Nos anos 70 e 80 o crescente nível de desemprego, o arrocho salarial, o aumento do custo de vida, do preço da terra e as restrições colocadas em todo país pela Lei Lehman (Lei Federal n° 6.766/79), que estabeleceu a ilegalidade do parcelamento do solo sem infraestrutura e criminalizou o loteador clandestino, tornaram a aquisição de lote popular praticamente inacessível (ZUQUIM, 2012). Nesse período o crescimento das favelas seguiu um ritmo acelerado, e alcançou taxas preocupantes: de 1% que crescera em 1973 passou para quase 9% em 1987.

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Até meados da década de 80 as ações públicas em favelas ocorriam através de uma política pública repressiva de “desfavelamento” - o atendimento em alojamentos provisórios ou o incentivo ao retorno para o local de origem do migrante. As primeiras ações de intervenção em favelas, que previam englobar o direito à moradia, o reconhecimento da cidade ilegal, a urbanização e regularização da posse da terra com a finalidade de garantir que as famílias encontradas nas áreas ocupadas ali permanecessem, foram na gestão de Mario Covas de 1983 a 1986, como resposta à forte crise habitacional e à intensa pressão dos movimentos populares. É criado o Plano Habitacional do Município de São Paulo (1984) e implementado pela Cohab-SP (sucessora da Sebes). As ações em favelas passam a contar com programas de urbanização de favelas e loteamentos irregulares e com importantes esforços para sua implementação. Os programas criados são: Profavela(1979): urbanização de favelas; Proluz e Proágua(1979/1987): infraestrutura; Urbanização e Regularização de Loteamentos Clandestinos; Programa de provisão de habitação, entre outros. Contudo, a execução deles teve pouca expressão se comparado com a dimensão dos problemas habitacionais encontrados na cidade. Com a nomeação de Jânio Quadros (1986/88) para prefeito de São Paulo, as ações de remoção, em especial nas favelas localizadas em áreas mais nobres da cidade, são retomadas. As remoções eram respaldadas pela Lei de Operações Interligadas, mais conhecida também como “Lei do Desfavelamento”. Essa Lei deixa claro os interesses neoliberais do estado, garantindo que as ações do poder público sejam norteadas pelos interesses dos setores privados, pois ela permitia remoções de favelas instaladas em áreas de interesse de mercado, ótimo negócio para os construtores, que lucravam com essa nova destinação da área. Com a eleição, da prefeita Luiza Erundina (1989-92) os planos do governo passam a ser orientados pelos direitos sociais.

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Luiza Erundina de Souza assume a Prefeitura de São Paulo com diretrizes que ressaltaram a democratização do poder, a participação popular e o papel dos movimentos sociais urbanos na orientação de políticas públicas, a fim de aproximar o cidadão das definições sobre os destinos de sua cidade.

“Na década de 80, quando a deputada foi eleita prefeita de são Paulo havia uma grande mobilização popular na cidade, em dois grandes setores, no setor da habitação e no setor de saúde. Essas duas questões eram muito fortes, muito organizadas. Logo após a ditadura militar, a base da sociedade começa a se organizar por direitos, por direito a moradia, por direito a posto de saúde, por direito à luz e água. No governo democrático popular onde a força do governo era a construção de políticas públicas de uma forma horizontal, de uma forma participativa, de uma forma transparente, e com a mudança, onde a política era construída de cima para baixo, no governo democrático era de baixo para cima, então isso mudou a cara.” (Mona Zein em entrevista concedida à autora em 16.04.15)

Cria-se inúmeros programas para a provisão de habitação social e de regularização de assentamentos precários com a intenção de inserir a população de baixa renda na cidade formal. A equipe designada à formulação desses planos e a assumir as responsabilidades na área da habitação como um todo, foi constituída por pessoas atuantes, em contato com a trajetória de luta da população e, ao mesmo tempo, estudiosas do assunto, tornando possível a execução efetiva destes programas. Foi implantada uma nova modalidade para a produção habitacional, os mutirões, a qual uniu trabalho de assessorias técnicas a movimentos de moradia, e através da autogestão do canteiro de obras, formou novos agentes sociais, transferindo certo protagonismo político àqueles que em geral são apenas objeto das políticas públicas habitacionais.

Imagem 6Luiza Erundina em lançamento do projeto habitacional São Francisco, Zona Leste.

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As ações de intervenção em favelas e assentamentos precários, neste período, promoveram reconhecidos avanços na questão da habitação popular que só ocorreram devido ao programa municipal de financiamento, desenvolvido e implementado na gestão em questão, o Funaps Comunitário.

A concepção do Programa Funaps Comunitário Nos fins de 1989, a administração do município de São Paulo, considerando todas as trajetórias dos movimentos por moradia e utilizando um fundo já existente, o Funaps, propõe um programa de financiamento municipal voltado para a construção de habitações realizadas em regime de mutirão. O Funaps – Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal – foi criado em 1979 pelo então prefeito Olavo Egydio Setubal e destinava-se à aplicação de verba em regime de fundo perdido para solucionar problemas habitacionais da população de baixa renda. O fundo foi muito utilizado na realização de obras dispersas e pulverizado em atendimentos individuais. No entanto existiram experiências embrionárias piloto, que só puderam ser feitas graças a esse fundo, como o financiamento que realizou parte das obras de edificação e toda obra de infra-estrutura da urbanização da Favela Recanto da Alegria (RONCONI, 1995). Durante a administração da prefeita Luiza Erundina, este fundo esteve ligado à Secretaria da Habitação, vinculado diretamente à política habitacional, fornecendo recursos para a implantação de grande quantidade de programas de financiamento, destinados à população de baixa renda. A política habitacional definida pela Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano tinha como braços executores a Superintendência de Habitação Popular – HABI e a Companhia Habitacional de São Paulo – COHAB. Várias foram as tentativas de solucionar as questões de moradia buscando obter redução dos custos por unidades através de medidas diferentes das que estavam sendo empregadas que levavam à

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diminuição sistemática das áreas das unidades habitacionais. É possível verificar essa nova postura por parte do poder público, observando medidas tomadas na definição de novos parâmetros técnicos para a implantação de conjuntos habitacionais, tais como:- Redução dos tamanhos dos lotes destinados à habitação unifamiliar- Redução no porte do sistema viário- Aumento dos coeficientes de aproveitamento- Maior variedade de tipologias urbanísticas- Redução de vagas para estacionamento- Maior controle de terraplenagem e execução de infraestrutura ligados à drenagem e estabilidade Esses parâmetros recomendados para a produção das unidades, conjugados aos diversos programas de intervenção na área habitacional criaram um suporte sólido para o resgate de preocupações com a qualidade de vida da população refletida em um novo desenho na cidade. Foram criadas coordenações executivas, entre elas, o Funaps Comunitário, o qual desenvolve subprogramas e controla a aplicação de recursos em projetos específicos. Esse foi um período de estruturação para a aplicação dos recursos do Fundo, com uma constituição mais clara da estrutura administrativa e de sua operacionalização.

O Programa Funaps voltado ao Funaps Comunitário Desde sua criação no final da década de 70, o Fundo era usado habitualmente para beneficiar pessoas físicas. Com base no artigo 7°, inciso II, passa a ser considerada a possibilidade de entender como beneficiário pessoa jurídica, e com isso, permite-se os convênios de financiamento com as associações. Desta forma ocorre uma grande mudança no sujeito do financiamento do Funaps que passa a ser as associações de moradores, um sujeito coletivo, organizado e disposto a assumir o gerenciamento do processo da construção das casas – autogestão - e a trabalhar em regime de ajuda mútua – o mutirão.

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Para fins de retorno do financiamento, a família beneficiária era responsável individualmente pelo retorno das prestações que lhe coubessem. O financiamento não substituiu as outras formas de organizar a produção habitacional como empreiteiras, licitações e outras mais, ao contrário, somou-se como um instrumento a mais, uma possibilidade. Esta nova ferramenta destinava-se ao uso específico de associações de mutirantes legalmente constituídas. Visando respeitar os padrões recomendados mundialmente com o intuito de realizar melhorias na qualidade habitacional o financiamento estabelece um valor mínimo de 60m² para uma família de 5 pessoas, trazendo um caráter inovador na produção de casas de baixa renda. O financiamento prevê recursos para a contratação de uma assessoria técnica (escolhida e contratada pela própria população), para a compra de ferramentas, locação de equipamentos, organização do canteiro de obras e pagamento de parte da mão-de-obra especializada. O programa teve grande importância pois os resultados dele mostraram através de sua escala, a possibilidade real de implantação de uma política significativa pela construção em mutirão. Até o final de 1992 foram assinados convênios para aproximadamente 12 000 habitações.

“Além disso nesta gestão os recursos do fundo foram aplicados na periferia da cidade, aumentando os gastos com políticas sociais. Em comparação as administrações anteriores, o Funaps representou o principal canal de investimentos da SEHAB – Secretaria de Habitação – partindo de 44% e chegando a 77% dos gastos na Secretaria, considerando que na administração de Jânio Quadros, os recursos utilizados chegaram ao máximo a 35%.” (ROSSETTO, 2003, in: BARROS, 2013, p.88)

A constituição do Funaps Comunitário, responsável pelo financiamento dos projetos de mutirões autogestionários, teve influência direta da experiência das cooperativas habitacionais Uruguaias, já da

Imagem 7 e 8Habitações em Montevidéu feitas em mutirões autogeridos

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década de 60, as quais prestavam assessorias técnicas.

A influência do cooperativismo Uruguaio A autogestão na produção habitacional aplicada na época (1989-92) teve forte influência da experiência marcante do cooperativismo uruguaio, tanto pelos resultados alcançados em termos de qualidade, quanto pela redução considerável dos custos. Segundo Bonduki (1992,p.35) “no Uruguai tinham sido construídas mais de 10.000 unidades habitacionais através de cooperativas de ajuda mútua”, um número significativo, se comparado ao tamanho da população do país, que era de 2 milhões de habitantes. A partir dessa experiência bem-sucedida no Uruguai, toma forma o conceito de autogestão administrativa e autoconstrução habitacional realizadas pelos futuros moradores. A ideia é que, quando introduzida no Brasil, essa prática, já num estágio superior, poderia solucionar outros problemas sociais como a criação de postos de saúde, creches, bibliotecas, cooperativas de consumo, etc., assim como na experiência uruguaia. O arquiteto Guilherme Coelho, que acabara de retornar do Uruguai em meados dos anos 80, apresenta no Laboratório de Habitação da Faculdade de Belas Artes um filme relatando o trabalho das cooperativas. Esse contato inicial foi responsável pelo enorme interesse na implementação da autogestão na produção habitacional pelos estudiosos da área e já envolvidos com essas questões. Este filme é exibido para 600 famílias moradoras da Zona Norte de São Paulo em Fevereiro de 1982, as quais começaram a pressionar a COHAB para serem incluídas nos programas de “moradia evolutiva” no BNH, fazendo uso de dois instrumentos que começavam a operar desimpedidos após a redemocratização brasileira: os protestos de rua e a imprensa. Em março do mesmo ano começam as negociações com a COHAB para que este grupo ocupasse parte da gleba municipal de Vila Nova Cachoeirinha com um projeto por ajuda mútua. O compromisso

Imagem 9Protótipo no início do projeto em Vila Nova Cachoeirinha

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da Prefeitura de São Paulo era ceder para estas famílias uma parte desocupada da gleba da Vila Nova Cachoeirinha, e estas se organizaram e fundaram a Associação de Moradia Unidos da Vila Cachoeirinha. O trabalho na Vila Nova Cachoeirinha pontuou o início das tentativas de implementação de construção de moradias por mutirões. Este primeiro contato com as experiências cooperativistas uruguaias ganhou maior amplitude em 1984 com a realização do “1° Encontro de Movimentos de Moradia”, organizados pelos primeiros movimentos de moradia por mutirão de São Paulo. O Encontro contou com a presença dos membros da Fucvam – Federación uruguaya de coperativas de vivenda por ayuda mutua- e do Instituto de Assitência Técnica uruguaio, o Centro Cooperativista Uruguaio – CCU. O contato direto com entidades de articulação como a Fucvam serviu de importante estímulo e de referência externa que obteve êxito frente ao caráter quase embrionário dos movimentos locais. O modelo proposto pela Fucvam divergia das iniciativas encontradas até o final dos anos de 1980 no Brasil. A autogestão da obra era o eixo central da proposta, novidade encarada pelos integrantes da União dos Movimentos de Moradia – UMM. Após o contato com a experiência uruguaia, a UMM passou a defender a autogestão nos programas habitacionais. Diferentemente do modelo de autoconstrução difundido por políticas públicas implementadas na gestão de Mario Covas (1983-1986), no qual a prefeitura fornecia material de construção necessário para a população produzir suas moradias, no processo autogestionário apreendido com o modelo uruguaio fazia-se necessário que o Estado tivesse o papel de agente financiador, transferindo recursos para as entidades de moradia, estando à cargo dos movimentos de moradia todas as decisões que relativas às obras.

“Você tinha a própria comunidade gerindo desde a compra do terreno até como construir, o que construir, com quem construir, quem realmente tinha direito ao acesso à moradia, como eles cadastravam, então era

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uma relação permanente, não era só comprar o terreno, não era só dar o projeto de moradia.” (Mona Zein em entrevista concedida à autora em 16.04.15)

Após este primeiro contato, os mutirões habitacionais começaram a ser produzidos, mas só tiveram de fato um alcance considerável a partir da administração da prefeita Luiza Erundina.

Mutirões habitacionais No começo da década de 80 o conceito de autogestão no município de São Paulo e a participação dos órgãos públicos nos projetos de mutirões começaram a ocorrer como resposta às reivindicações dos movimentos de moradia que estavam muito ativos na época. Acrescenta-se a isso as novas ideias que estavam se afirmando como a participação popular e a descentralização política, após o fim da ditadura militar, que influenciaram as ações e opiniões do grupo responsável pela estrutura política, o qual viria interferir na área habitacional através das experiências dos mutirões autogestionados. Quando a nova administração assumiu as atividades em 1989, encontrou-se um cenário precário na Secretaria de Habitação, com o qual a nova gestão teria que lidar. Existiam conjuntos habitacionais com sérios problemas projetuais como implantação não indicada, drenagens mal realizadas, casas comprometidas estruturalmente, serviços pagos e não realizados entre outros problemas, os quais, para serem responsabilizados devidamente, foi necessária a abertura de uma comissão de sindicância. Notava-se que era primordial modificar a maneira de intervenção urbana com que as habitações eram produzidas. Não era mais possível continuar a reprodução, por parte do poder público, de uma ação tão prejudicial ao interesse do usuário. A partir dessa linha de atuação, com o propósito de recuperar uma estrutura mínima de produção e construção habitacional de qualidade, realiza-se um banco de terras e estrutura-se uma equipe para definir a linha dos programas de intervenção que seriam executados

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durante a gestão da prefeita Luiza Erundina. A linha de financiamento prevista na época foi gerada dentro de um cenário adequado composto da existência de um fundo municipal voltado à habitação – FUNAPS – e da organização de setores sociais que lutavam por habitação. A vitória de uma administração democrática e popular gerou grandes expectativas nos movimentos, os quais aumentavam ainda mais a pressão sobre o poder público e exigia propostas concretas para a solução de problemas. A Secretaria de Habitação apresenta logo no início da administração um novo plano de ação que renovava completamente a forma de intervenção, o qual ficou conhecido como “Programa de Ação Imediata da Secretaria de Habitação”, composto pela superintendência de Habitação Popular – Habi – e pela COHAB – Companhia Metropolitana de Habitação. A construção por mutirões estava integrada em uma das diretrizes gerais do programa de ação imediata como um dos caminhos a ser implementado pelo novo governo.

“As cooperativas de habitação ou associações comunitárias de construção, geridas pelos próprios associados, assim como as entidades de assessoria à habitação popular e de desenvolvimento tecnológico reconhecidas publicamente, receberão apoio e estímulo da administração municipal.” (RONCONI, 1995, p.40).

Em Junho de 1989 foi assinado um convênio com a Associação Leste 1, baseado no programa, para a construção de casas em regime de mutirão na gleba São Francisco, presente entre as terras disponíveis que poderiam ser utilizadas pela HABI. Com a assinatura desse convênio, inicia-se o processo de elaboração de um programa mais sólido de normas a serem cumpridas para o acesso à linha de financiamento. A partir desta experiência, no fim de 1992, mais de 12.000 unidades habitacionais foram criadas no regime de auto-gestão por mutirão.² Essas habitações produzidas durante o período em que o

² Fonte: Tabela Relações das Associações Conveniadas com o Funaps Comunitário. RONCONI, 1995,p. 177-183

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programa Funaps Comunitário estava vigente dentro da administração municipal de São Paulo foram um avanço em inúmeros aspectos. O gerenciamento das obras era feito pelos próprios usuários, que, organizados em associações e utilizando a própria força de trabalho através dos mutirões, conquistaram muito mais que suas casas, mas também um espaço participativo que permitiu o desenvolvimento individual de pessoas que até então não tinham voz para opinar sobre questões relacionadas a seu futuro. A produção por mutirão não está relacionada apenas à construção da casa, mas também à autonomia dos movimentos populares, os quais haviam lutado muito para conquistarem seus direitos. Tiveram que organizar-se internamente e mostrar a capacidade que tinham para gerir uma obra e é essa autonomia que lhes davam maior força tanto de decisão quanto de pressionamento frente ao Estado. O mutirão foi uma política participativa sustentada pela divisão de responsabilidades entre o poder público, através dos financiamentos, e pela população, representadas pelas associações e pelo trabalho direto no canteiro de obras. Esse formato de produção habitacional é bem definido no trecho:

“Nela o agente social que produz e consome a moradia é o mesmo. Na construção da moradia o consumidor (morador) investe um tempo de trabalho pessoal resultante da extensão da jornada de trabalho; pode contar, neste processo, com a ajuda de trabalho coletivo gratuito ou com algum trabalho remunerado. Combina o uso de materiais de construção desvalorizados (mas que valorizará com o seu trabalho) com pequenas quantidades de materiais produzidos comercialmente, adquiridos com sua renda de subsistência. Os instrumentos de trabalho utilizados são rudimentares, recaindo sobre o trabalho humano o peso maior do processo produtivo. O período de construção da moradia se estende indefinidamente, dependendo das possibilidades da extensão da jornada de trabalho,

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da capacidade de restrição de consumo (que pode representar um sacrifício das condições de saúde, alimentação e qualificação dos membros da família) e da renda da família. ”(PADILHA, in: RONCONI, 1995, p. 40)

Após muita luta, os movimentos sociais urbanos conseguiram desenvolver uma experiência de autogestão legítima, provando a viabilidade técnica e econômica da produção habitacional por mutirões, com, inclusive, a incorporação de novas tecnologias dentro do canteiro de obras. A população envolvida em movimentos organizados vinha, durante a década de 80, formulando não somente propostas para a habitação, mas também para diversas outras questões amplas, ou seja, existiu um envolvimento político maior, permitindo que a discussão sobre a habitação não fosse descolada de assuntos econômicos e políticos nem fosse isolada da intenção de inserção à cidade como direito de uso. Com isso, as propostas previstas e discutidas durante esse período não só colocavam sob os movimentos populares as responsabilidades dos empreendimentos, mas também ao governo, que cabia planejar a atuação para o programa de mutirões. A organização da população foi imprescindível para que a relação dialética entre os papéis e funções da prefeitura e das associações fossem bem definidos e realizados com eficiência.

“ O que mais me impressionou na época era a organização instalada nos mutirões, a disciplina, o compromisso, raramente alguém pisava na bola, e quando pisava, o grupo, o coletivo tinha maturidade para mediar se aquela pessoa estava comprometendo o projeto como um todo, discutir com a pessoa se realmente era aquilo que ela queria, ou se ela realmente se enquadrava no modo daquele grupo, ou se a pessoa saia, mas isso era feito com muita maturidade e responsabilidade. “ (Mona Zein em

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entrevista concedida à autora em 16.04.15) É importante também compreender que os mutirões autogeridos são uma alternativa, entre várias possibilidades, para alcançar uma moradia mais digna. A resposta do problema habitacional não está apenas neste tipo de produção, mas pelos resultados encontrados na época, que configurou uma melhora considerável na qualidade habitacional e na mudança de perspectivas dos moradores, deve ser uma via considerável dentro de uma gama maior de possibilidades de produção de moradias. Além disso, mostrou-se uma alternativa possível de ser implantada, observando a experiência bem-sucedida do programa durante a gestão da prefeita Luiza Erundina e que, portanto, não deveria ser desconsiderada como mais uma, entre outras, na tentativa de amenizar o problema habitacional presente até os dias de hoje. Somado a isso, um ponto importante é o espaço que surge dos movimentos populares e se estende aos mutirões, onde a população trabalhadora pode exprimir suas ideias e necessidades, sendo assim mais respeitada enquanto grupo de pressão da sociedade civil. Os financiamentos feitos durante esta época (1989-1992) para os mutirões funcionaram, de certa forma, como uma redistribuição de renda, através deste subsídio estatal, e, ao interferir em questões estruturais arraigadas em nossa sociedade, tiveram que lidar também com barreiras impostas, por exemplo, pelas empreiteiras e agentes imobiliários. A autogestão prevista no programa foi um desafio enfrentado pelas associações, as quais eram formadas por mutirantes organizados em uma direção, responsáveis pelo gerenciamento do empreendimento. Esta forma organizacional permitiu um desenvolvimento e uma reflexão através das discussões e reuniões dos próprios mutirantes, imprescindível para a luta destes por melhores condições de vida e também para a percepção de que essa mudança podia ser feita por eles mesmos.

“Definimos as associações comunitárias como uma forma de organização da população para enfrentar

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o problema de falta de moradia. Propõe realizar a construção das casas assumindo o gerenciamento do empreendimento desde o projeto até a construção das habitações, utilizando inclusive a sua força de trabalho para obter uma habitação mais próxima das suas necessidades reais.” (RONCONI, 1995, p. 63)

A produção das casas Durante a produção das casas existiu a necessidade de lidar com uma logística indispensável, para fornecer comida, proteger as crianças dos perigos potenciais de um canteiro de obras, organizar as frentes de trabalho, apropriar-se da técnica para produzir pré-moldados, aprender a construir paredes, discutir projetos, realizar pesquisa para as compras dos materiais entre outras inúmeras atividades. Durante este processo foi considerado a vantagem de trabalhar com pré-moldados, de apreender a técnica adequada da construção, de racionalizar as atividades, de conter o desperdício, de realizar compras com critérios sérios voltados para o preço e para a qualidade. Organizando-se desta forma ocorreu uma racionalização de recursos que permitiu o investimento em outros setores dessa construção melhorando incontestavelmente a qualidade das habitações. Dentro do programa que norteou a produção habitacional, existia uma área mínima a ser adotada, que correspondia a uma razão aproximada de 12m² por habitante. Considerando que a família a ser atendida pelo financiamento possuía em média 5 pessoas, chegou-se a uma área de 60m² por unidade habitacional, quase 5 vezes maior do que algumas habitações sociais feitas na época que chegavam aos assustadores e inaceitáveis 18m². Essa área estabelecia, além de nítidas mudanças quanto a um espaço mais digno, tornou-se uma nova referência para as produções públicas futuras voltadas a essa faixa social. O esforço humano na produção tentou ser atenuado de diversas formas, com a possibilidade de distribuição de recursos para a locação de equipamentos, acesso a técnicas construtivas mecanizadas,

Imagem 11Mutirão Sônia Ingá

Imagem 10Mutirão Quero um Teto III

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sem precisar deslocar os recursos reservados para os materiais a serem utilizados na produção das casas. O financiamento era direcionado para quatro pontos específicos:- O canteiro de obras: Aluguel de equipamentos (facilitaram o trabalho humano enquanto que aumentavam a velocidade e a qualidade da produção), compra de ferramentas, instalações adequadas que permitiram criar pequenas oficinas para a produção de elementos construtivos, armazenamento de materiais, formação de equipes de trabalho com horário diferenciado, etc. - A mão-de-obra: Contratação de mão-de-obra especializada (não tinha como garantir que todas as comunidades teriam números suficientes de eletricistas, encanadores, pedreiros, etc), permitir o treinamento dos demais participantes do mutirão, formação profissional durante a realização da obra, etc.- Acompanhamento técnico: acompanhamento da obra pelos técnicos que desenvolveram o projeto, garantir que as entidades das associações não tinham fins lucrativos embora fossem remuneradas pelos custos operacionais, etc.- Material de construção: Garantir a compra de materiais adequados às tipologias e de qualidade tendo como referência os custos de mercado, fabricação de materiais no canteiro, etc. Para possibilitar a realização de um projeto de mutirão autogerido, através da avaliação de experiências anteriores, chegou-se ao número de 20 famílias como limite mínimo e no máximo 200 famílias para ter direito ao financiamento. Para a viabilidade dos trabalhos os mutirantes se organizaram em comissões específicas encarregadas de cada tarefa, como por exemplo a comissão de compras, de obra, social, entre outras, as quais discutiam características amplas de cada tema, procurando integrar o trabalho de todos os mutirantes e comissões. Através deste tipo de organizações pode-se notar que os movimentos sociais quando se constituíram para lutar por seus direitos preconizaram ideais de democracia e igualdade dentro do movimento.

Imagem 12Mutirão Baltazar Cisneiros

Imagem 13Mutirão São Francisco

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No entanto, ao se depararem com o desafio de gerirem uma obra, tiveram que, de certa forma, hierarquizar-se dentro do movimento, legando autoridade a algumas pessoas que seriam responsáveis por certas tarefas. Nessa hierarquização podemos observar dois pontos: o primeiro, a influência da Igreja na configuração dessa hierarquia, e o segundo, é a questão do gênero na distribuição de cargos com certa autoridade dentro de categorias estabelecidas pelo movimento. Para cada grupo de atividades era escolhido um coordenador, que possuía autoridade dentro do grupo para organizar, delegar funções, fiscalizar, entre outras ocupações. A questão importante aqui é que esse coordenador seria escolhido por ser mais experiente ou por ser um profissional contratado capacitado para exercer a função, no entanto, o que se pode observar é que esses cargos de autoridade dentro do mutirão não eram, em sua maioria, exercidos por mulheres, questão que será abordada de forma mais aprofundada a seguir. O projeto envolvia para isso, discussões mais amplas, diretamente relacionadas à produção, porém pouco, ou quase nada consideradas em experiências anteriores. Com isso foram realizadas nos canteiros de obras atividades indispensáveis para o desenvolvimento e melhor qualificação dos participantes. Realizou-se assim, entre outras coisas:- Creches de fim de semana- Cursos de alfabetização- Cozinha da obra- Cultivo de hortas- Grupos de teatro e prática de artes diversas para adolescentes- Atendimento para acidentes eventuais que poderiam acontecer na obra Aqui vale salientar que grande parte dessas atividades estão ligadas tradicionalmente à esfera doméstica e mesmo que importantíssimas, eram pouco valorizadas dentro do canteiro de obras, e, coincidentemente, foram exercidas quase que exclusivamente por mulheres.

Imagem 15Creche Mutirão São Francisco

Imagem 14Horta Comunitária

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Outro ponto importante da produção habitacional durante o período de 1989-1992 foi a escala de habitações que eram construídas. A implantação de conjuntos com poucas unidades possibilitou soluções que consideraram realmente o entorno existente, e com isso foram mais facilmente assimilados pela vizinhança, tanto pela escala quanto pela organização dos moradores que ao participarem tão profundamente da construção de suas casas preocupam-se mais com cuidados gerais e manutenção. O objetivo comum era claro e as atividades desenvolvidas foram essenciais para a criação de vínculos entre os mutirantes. Os movimentos sociais que lutaram pelos mutirões visaram uma igualdade entre todos, no entanto, na prática, veremos que essa igualdade se limitou a conceitos tradicionais reproduzidos entre papéis sociais esperados, mas que foram, de certa forma, se modificando ao longo dos trabalhos. A partir dessa visão geral sobre os mutirões, e das mudanças através da luta dos movimentos de moradia somado à força dos próprios usuários, será analisado de que forma as mulheres se inseriram dentro deste contexto, a fim de compreender melhor, através da ótica de gênero, as relações nos canteiros de obra.

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A autoridadeEm épocas remotas, as mulheres se sentavam na proa das canoas e os homens na popa. As mulheres caçavam e pescavam. Elas saíam das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam. Os homens montavam as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo. Assim era a vida entre os índios onas e os yaganes, na Terra do Fogo, até que um dia os homens mataram todas as mulheres e puseram as máscaras que as mulheres tinham inventado para aterrorizá-los. Somente as meninas recém-nascidas se salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas.

Eduardo Galeano

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Para entender melhor a participação das mulheres nos mutirões habitacionais foi necessário compreender inicialmente quais mulheres estavam sendo estudadas, qual a realidade delas, preocupações, anseios, etc... Algumas questões são importantes a fim de ajudar a entender o porquê das mulheres chegarem aos movimentos de moradia em busca de suporte e meios para a luta por melhores condições de vida, as quais estão intrinsecamente ligadas a outras questões mais gerais.

Chefes de família Ao analisar acontecimentos a partir da perspectiva de gênero têm-se a família como um dos mais relevantes contextos organizacionais, responsável, tanto pela perpetuação quanto pela transformação das relações sociais entre os sexos. A temática de gênero vem aumentando a visibilidade de um conjunto de disparidades e transformações no interior das famílias. Assuntos como a divisão sexual do trabalho de produção e reprodução,

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divisão do poder e os processos de tomada de decisão pelos membros da família, possibilidades de exercício da sexualidade e de controle reprodutivo, diferentes formas de organização familiar considerando o ingresso de novos membros no mercado de trabalho, ocorrência de violência intrafamiliar, entre outras questões, são postos em evidência e ocupam lugar nas discussões dos movimentos. Através do amadurecimento da discussão, em especial nas décadas de 80 e 90, em torno da reflexão a respeito de gênero ocorreu a percepção da coexistência de uma diversidade de modelos de famílias e estilos de vida, superando a visão conservadora em torno da família tradicional sustentada por um provedor único e masculino. A chefia de famílias por mulheres é uma dessas novas características que cresceu muito durante o século XX, por diversos fatores, e que se prolonga até os dias atuais. Inúmeras mudanças nos papéis e responsabilidades das mulheres vêm alterando as relações de poder em especial dentro das famílias. Entre essas mudanças estão a participação no mercado de trabalho e a transformação da subjetividade das mulheres em torno da emancipação feminina. As mulheres ao entrarem no mercado de trabalho adquirindo novas responsabilidades e autoridade dentro da esfera privada somado à manutenção da divisão do trabalho onde cabe às mulheres - apesar de trabalharem fora de casa – a sobrecarga do trabalho doméstico, gera uma situação anacrônica em que mulheres chefes de família se responsabilizam também pelas atividades de reprodução da esfera doméstica. Segundo Berquó (2002, p.245) as famílias chefiadas por mulheres precisam ser vistas como o resultado de um conjunto de “transformações econômicas, sociais, culturais e comportamentais que vão se sucedendo ao longo do tempo” e que produzem variações nas trajetórias das mulheres, fazendo com que o significado dessa chefia possa ter múltiplos motivos, como a situação da mulher solteira, viúva, separada com filhos, casada morando com companheiro e filhos, entre

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outras situações. Conforme dados do IBGE, em 2006, havia um percentual de 29,2% de famílias chefiadas por mulheres, enquanto que 70,8% eram por homens. Nota-se que, no primeiro caso, o percentual de chefes sem cônjuge é de 79,3%, enquanto que, no segundo caso é de apenas 5,6%. Esse dado é de extrema relevância para a compreensão do porquê a chefia masculina se dá em condições mais favoráveis que a feminina: não apenas pela força de trabalho masculina possuir um nível de remuneração mais elevado, mas também possui maior probabilidade de contar com cônjuge ou na condição de co-provedora ou responsável por grande (se não todo) parte do trabalho de reprodução do grupo doméstico. Ocorre então, muitas vezes, a relação da mulher chefe de família com o conceito de ‘feminização da pobreza’, fenômeno que se não observado de forma atenta pode ser simplista diante da situação multifacetada em que essas mulheres se encontram. De fato, as famílias com chefias femininas agrupam-se em grande escala dentro da classe trabalhadora e em maior vulnerabilidade socioeconômica. Longe de serem uma exceção, são:

“formas não nucleares [que] devem ser vistas e entendidas como parte de uma complexa reconfiguração que as famílias (no plural) experimentam [...] no mundo inteiro. ” (Gonzalez de la Rocha, 1999, p.127, in: MACEDO, 2008, p.396)

Diante desses fatos é importante que a associação entre chefia feminina e pobreza deve ser entendida como a primeira sendo consequência, não só, mas também, da segunda.

“A visão negativa das unidades domésticas chefiadas por mulheres é em parte conceitual, devido a nossa ênfase eurocêntrica na família nuclear como a norma e a encarnação da modernidade e do progresso [...] Esta visão patológica das unidades domésticas chefiadas por mulheres contribui para a crença de que estas geram pobreza; em lugar de vê-las como resultado

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dela, e um resultado, por acréscimo, em que as políticas neoliberais têm desempenhado um papel destacado. ” (Safa, 1999, p.9, in: MACEDO, 2008,p.397)

As mulheres atualmente ainda se encontram em uma situação de desvantagem em relação aos homens referente à carga de trabalho, ao nível de remuneração, às possibilidades de modalidade socioeconômica, já que enfrentam ainda inúmeras barreiras culturais, legais, entre outras questões. Portanto as mulheres chefes de família, enfrentam dificuldades suplementares, ao terem que administrar sua dupla participação nas esferas de produção e da reprodução em condições desfavoráveis quando comparadas aos homens chefes de domicilio.

“Sobre o Brasil, o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano no Brasil, de 1996, também destaca a feminização da pobreza no país, chamando a atenção para a disparidade salarial (as trabalhadoras ganhavam em média 63% dos salários masculinos em 1990) e para a situação particularmente vulnerável das mulheres chefes de família. Em 1989, as famílias chefiadas por mulheres com filhos menores de 14 anos correspondiam a 58% das famílias com rendimento mensal até meio salário mínimo per capita. Dados de 1994 revelam que, enquanto o desemprego masculino era de 6,7%, o desemprego feminino atingia 13,9%. Acrescente-se que parte significativa das mulheres que ingressam no mercado de trabalho vai para o setor informal, onde estas não têm acesso a garantias trabalhistas e à previdência social.” ( FALÚ e RAINERO, 1996, in: FARAH, 2004, p.55)

Outra questão levantada para se explicar a maior vulnerabilidade da chefia feminina é a perda da figura de provedor masculino, reconhecido hipoteticamente como portador provável de características mais valorizadas pelo mercado de trabalho o que leva consequentemente à lógica da impossibilidade das mulheres de cumprirem bem esse papel. Essa explicação é reducionista e pressupõe

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uma incapacidade feminina na atuação de papéis tradicionalmente exercidos por homens a qual não explica a situação real das mulheres chefes de família.

“As mulheres chefes de famílias monoparentais [...] foram esposas, ou seja, empobrecem não porque se tornam chefe de família, porque deixaram de ter um provedor, mas, com a maior probabilidade, porque foram esposas antes e, assim, não tiveram as mesmas oportunidades dos homens, casados ou vivendo sós, ou das mulheres sós, de investir em carreira, de socializar-se com as regras do e no mercado. ”(MACEDO, 2008, p.398)

Apesar de toda a situação de desvantagem das mulheres que chefiam seus domicílios em relação aos homens chefes de família, existe um fato de extrema relevância para compreender para além das questões econômicas, o vínculo existente entre essas mulheres e a participação delas nos movimentos sociais – e consequentemente nos mutirões habitacionais – foco do trabalho em questão. Observa-se que as mulheres chefes investem a grande maioria do seu ganho na manutenção do domicílio, o que reflete em fatores como melhoria dos níveis nutricionais, dos cuidados com a saúde e educação dos membros da família, em contraponto aos rendimentos dos homens que, apesar de maiores, são direcionados grande parte para dispêndio pessoal, reduzindo inclusive “os níveis de regularidade dos recursos e trazendo vulnerabilidade e ‘pobreza secundária’ para mulheres e crianças” (Chant, 2004, p.21, in: MACEDO, 2008, p.399) Portanto, é importante para a real análise em torno da relação entre chefia feminina e pobreza, considerar outros indicadores de bem estar para dimensionar a qualidade de vida dos domicílios pois a ênfase em gênero versus aspectos econômicos não têm sido suficiente para explicar o fenômeno da ‘feminização da pobreza’. As mulheres mesmo com ganhos mais reduzidos convergem maior parte dos seus rendimentos ao conjunto do grupo doméstico. Essa preocupação com o desenvolvimento deste grupo faz com que busquem

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outras alternativas, como por exemplo a luta através dos movimentos sociais. A maioria das pessoas que estiveram presentes nos mutirões eram mulheres, e em grande parte eram mulheres solteiras. Esse é um dos fatores que se pode notar a fim de compreender um pouco mais sobre o panorama geral das motivações que levaram aquelas mulheres a trabalhar em algo que não lhes era familiar.

“[...] Mas assim, o que acontece nos mutirões, por ter mais mulher também, é que tem muita mulher que já é sozinha. Que é separada, por isso ela quer ter um cantinho dela, ela já não tem um companheiro (...) Tem bastante. Mas a maioria é mulher viu, 70% da obra é mulher, que vem nas reuniões, que vem pro mutirão, são mulheres. ”(Cris, entrevista concedida à autora em 10/10/2012, in: MOREIRA,2012,p.67)

“A maioria das mulheres que estão aqui não têm marido, em primeiro lugar. E tem muitas delas que tem coragem de enfrentar a vida, mas sabe que não pode dar o melhor para o filho. A gente tendo uma casa para colocar o filho, já ajuda muito. É a preocupação que existe. ”(SALVADOR, 1993, p.73)

Movimento como lugar de socialização O movimento social torna-se, não somente o lugar onde as mulheres vão para participar do mutirão, mas também um local onde se ampliam o quadro de amizades num contexto de afirmação das identidades. As atividades e ações além da produção construtiva fez com que os futuros moradores dos mutirões habitacionais se identificassem de certa forma como grupo, fortalecendo as relações de coleguismo, aumentando o envolvimento e força de expressão das discussões sobre as condições das futuras casas.

“Tinha uma relação muito de afeto, de fim de semana eu lembro que todo fim de semana antes das plenárias, eles tinham reuniões, era uma comunhão, então na

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época era um encontro e esse clima eu presenciei em muitos mutirões.” (Mona Zein em entrevista concedida à autora em 16.04.15)

Para as mulheres essa questão era ainda mais importante. Em sua maioria reclusas a vida doméstica e às limitações sociais que esta atividade impõe, o movimento toma um lugar muito importante para elas. Transcendendo a questão da casa em si, ele surge como um novo universo de possibilidades, expansão de relacionamentos pessoais e aprendizado.

“Eu já vi muita coisa, aprendi muita coisa que nunca tinha aprendido. Então acho que isso aí é uma coisa que me põe muito pra cima, me deixa mais eu, entende? (...) Aprendi a conviver mais com as pessoas, que eu era uma pessoa muito parada, parecia um bicho. (...) Eu não tinha esse tipo de amizade (...) Então isso pra mim foi muito bom, eu aprendi muita coisa, aprendi a gostar mais de mim mesma também. Porque eu era uma pessoa muito amarga. Eu acho que com o sofrimento da minha vida eu passei a ser muito amarga. Eu passei a ser rude comigo mesma. Hoje eu acho que não. Eu sou uma pessoa que... gosto de vir aqui nos finas de semana.” (MOREIRA, 2012, p.67)

Essa mudança da rotina cotidiana imediata, a qual quebra com a “reclusão feminina” ligada às tarefas domésticas faz com que ao exercerem novas atividades elas se sintam valorizadas enquanto mulheres, observando inúmeras qualidades como a capacidade de realizar qualquer tipo de trabalho e de se relacionarem com um mundo extra doméstico. A rotina do movimento acaba por estabelecer uma sociabilidade nova para as mulheres. Essas mulheres além das inúmeras preocupações e responsabilidades, as vezes com duas ou três jornadas de trabalho para sustentar suas casas, têm pouco ou não têm opções de lazer, o que dá maior relevância a novas atividades. Uma reunião, ou algum trabalho, os encontros com uma frequência considerável, passam

Imagem 16Confraternização no centro comunitário

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a se caracterizar como uma forma de lazer onde as pessoas conversam, brincam, bebem e assim, criam vínculos que transcendem o objetivo da militância em si. Esses espaços tornam-se então meios sociais e criam maiores condições para mudanças pessoais.

“Segundo ela, deixar de ser uma dona-de-casa anônima, praticamente inexistente já que confinada na esfera privada, para se tornar uma militante política reconhecida nesse novo meio social foi uma revolução em sua vida. ”(SALVADOR, 1993, p.71)

Casa“Caldeira (Tereza Pires CALDEIRA, 1984) argumenta que, na luta imediata pela subsistência e pela melhoria do padrão de vida, a casa própria significa para os trabalhadores pobres, escapar do aluguel, do cortiço e da favela, sobretudo viver de uma maneira um pouco menos penosa, fatos que justificam, na perspectiva dos trabalhadores, todos os obstáculos e dificuldades do árduo processo de construção.” (FERTIN e VELHO, 2010)

A casa não é apenas um simples abrigo, é o local onde o indivíduo deixa transparecer sua essência, seus valores e sua cultura, e para que isso ocorra, o espaço dela deve ser adequado às expectativas e necessidades do morador.No contexto dos movimentos sociais duas questões relacionadas a casa são importantes para a compreensão a respeito da grande participação das mulheres:1) Histórica dificuldade de acesso à terra Dados a respeito da diferença de gênero em relação a propriedade são ainda nebulosos, pouco sistematizados, mas mesmo assim mostram a enorme diferença entre homens e mulheres na aquisição da terra:

“(...) e isso se deve a cinco fatores: referência dada aos homens na herança; privilégio masculino no casamento; viés masculino tanto nos programas comunitários como em programas estatais de distribuição de terras;

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e viés de gênero no mercado fundiário. Todavia, homens e mulheres tendem a adquirir terras de maneiras diferentes: a principal forma das mulheres se tornarem proprietárias é por herança, enquanto que o mercado fundiário é um meio de aquisição de terras relativamente mais importante para os homens. ” (DEERE, &LÉON, 2003, p.102, in: SANTORO, 2008, p.9)

Essa restrição está diretamente ligada a garantia da dominação dos homens sobre as mulheres, pois, mantendo as mulheres sem acesso aos recursos garante-se a perpetuação de antigas formas de dominação. Com isso, a mulher tem o movimento como instrumento de mudança dessa condição histórica e ao existir a possibilidade de obtenção da casa própria rompe, de certa forma, com a manutenção da propriedade privada sob o domínio masculino. Para Saffioti (1992) a estrutura da esfera privada estará confinada a mulher. Apesar de comumente pensarmos na casa como espaço da mulher, o chefe de família será o homem na tradição, quadro que agora começa a transformar-se. Temos então que as mulheres participantes dos movimentos são exemplos de desconstruções de papéis tidos como tradicionais na sociedade. Sem considerarmos outras questões, a partir apenas do fragmento de Saffioti podemos ver que I) essas mulheres já rompem com a expectativa de serem estruturadoras apenas da esfera privada, pois em sua maioria, são também chefes de suas famílias; e II) Adquirem pela luta as titularidades de um imóvel, antes inatingível. Além da estrutura social (patriarcado) garantir historicamente que a mulher não tivesse acesso a propriedade, com a inserção da mulher no mercado de trabalho, a estrutura econômica ratificou essa manutenção através do custo de mão de obra mais baixo que o do homem devido à desvalorização social do trabalho feminino, fazendo com que as mulheres não tivessem, também, condições econômicas de ter uma casa própria.

“As mulheres são mais interessadas (...) porque elas acham que são pobres, não têm condições de conseguir

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uma coisa fácil e se interessam por lutar pra conseguir aquilo que elas querem. (...) A mulher sempre interessa mais sobre uma coisa melhor pra os seus filhos: uma casa melhor, uma calçada melhor, um futuro... um ambiente melhor pro filho, a mãe se interessa. (...) As pessoas esperam conseguir coisas melhores no futuro. A pessoa quando participa muito do movimento não tem medo de nada. Não tem medo de morrer, não tem medo de ir preso. Eu mesma nunca tive medo. “ (SALVADOR, 1993, p.76)

2) O papel social da mulher ainda está muito ligado com a maternindade – preocupação com filhos – casa com valor de uso e não de troca. Considerando que na determinação dos papéis sociais e suas atribuições as mulheres estão interligadas com o papel a ser exercido pela maternidade, a importância que estas dão à casa é um reflexo claro da preocupação direta com a garantia de proteção dos filhos e família.

“Isso é fundamental, a mulher sempre tem uma relação diferente com a casa! Marcado culturalmente porque por mais que você fale, numa questão de gênero, porque homem é o cara que te dá a casa, mas assim, como você não tem a casa? Você tem que ter a casa. E assim, se você pensar a casa é a primeira coisa né? Você tem que ter um lugar pra morar, um lugar pra dormir, né? Isso é uma preocupação, mesmo. Tanto de homens quanto de mulheres, mas a carga é sempre maior para a mulher né? Vou ser dona de casa, mas que casa é essa que eu não tenho? Ou você cuida dos filhos, entendeu? E a maioria das mulheres na sociedade atual são sozinhas, são mães que estão lá, trabalhando, tentando alguma coisa e isso é muito forte né?”(V. em entrevista concedida à autora em 21.03.15) ³

“Olha, a mulher sempre lutou mais que o homem, viu? Enfim ela luta pelo filho dela, pela sobrevivência. Ela nasce lutando pelo seu espaço. Ela se preocupa

³ Entrevista com mulher que participou do mutirão Quero Um Teto II

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muito mais com o filho. Então ela não entra no movimento popular pelo sonho dela, mas porque ela tem um filho e quer ter um lugar pra acomodar esse filho...”(SALVADOR, 1993, p. 193)

A casa própria para a mulher tem uma carga simbólica muito forte, no que diz respeito à segurança, ao acolhimento no mundo, espaço subjetivo no desejo de enraizamento. Ao se depararem com as inúmeras barreiras impostas à aquisição de uma casa, as mulheres trabalhadoras vêm nos movimentos sociais uma das poucas oportunidades de conseguir um acesso. É nesse contexto que se pode afirmar que as mulheres veem na moradia valor de uso mais do que de troca, pois não enxergam a moradia como uma mercadoria a priori, estão centradas na garantia de segurança da vida doméstica, ou seja, a mulher vê na propriedade o cumprimento da função social que a casa tem.

“Eu tenho a relação da mulher com a moradia como algo muito forte, como quando nasce seu filho sabe? É lá que ela vai assentar, a realização da projeção dos seus filhos, dela, do seu parceiro. Principalmente a mulher que por exemplo não tem trabalho, é uma estabilidade, é uma relação de afeto, onde ela conversa, onde ela projeta tudo. Acho que é mais no sentido da segurança.”(Mona Zein em entrevista concedida à autora em 16.04.15)

As características pontuadas: chefia feminina das famílias, movimentos como locais de socialização e a casa como um elemento simbólico para a mulher, são importantes para a aproximação em torno das mulheres atuantes nos mutirões a fim de entender melhor os motivos que as movimentam aos canteiros de obra.

Mulheres nos mutirões Os mutirões que aconteceram na gestão entre 1989-1992 preconizaram a melhoria da qualidade de vida do grupo envolvido não somente pela habitação, mas pela transformação da realidade como um

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todo. A trajetória de construção das habitações desencadeou discussões que englobavam diversos pontos e que geraram mudanças nas relações entre vários atores sociais, admitindo que a própria organização dos diferentes grupos para o debate sobre as futuras moradias, com a necessidade de definição de lideranças e concessão de poderes aos indivíduos, já modificava os papéis sociais e as relações estabelecidas anteriormente. Os movimentos foram um meio que os mutirantes encontraram para concretizar um projeto de vida, rompendo com a condição quase que incontornável de suas vidas: a instabilidade do futuro. As mulheres foram inseridas num contexto que lhes sempre foi estranho, e compreender de que forma essas atividades interferiram nas relações internas como grupo é, de certa forma, entender um pouco mais do universo feminino desbravador que nos deparamos quando observamos um pouco mais atentamente as mulheres mutirantes. Algumas questões que estão expostas quanto a grande representatividade das mulheres na construção por mutirões muitas vezes podem parecer óbvias, mas quando organizadas e pontuadas, observa-se um entrelaçamento entre diversos pontos, os quais, mostra um panorama muito mais complexo. A maioria das mulheres mutirantes serem chefes de família, papéis como maternidade que ainda sobrecarregam as mulheres, a falta de lazer e círculos sociais que são transferidos para o movimento, os baixos salários, o trabalho doméstico desvalorizado, entre outros pontos a serem levantados, são algumas das linhas que tecem uma realidade multifacetada. Durante todo o processo de construção ocorreram mudanças relacionadas aos papéis sociais esperados e desempenhados pelas mulheres. A redefinição de poderes, o engajamento e comprometimento, bem como questões mais subjetivas como a autoimagem que elas sustentavam foram se modificando com o desenrolar dos trabalhos. Para muitas famílias – em especial as chefiadas por mulheres- o mutirão era uma oportunidade singular na conquista de um símbolo de

Imagem 17Participação feminina nas discussões de projeto

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integração à cidade formal, com acesso a serviços públicos, e ratificação como cidadão de direito – a casa própria.

Mãos-à-obra Durante as discussões a respeito dos projetos, os futuros moradores, configurados como grupo, se uniram para exercer com mais peso suas opiniões, e tiveram que lidar com as expectativas pessoais de cada morador que impulsionaram conflitos de interesses diversos. As relações de poder que se estruturaram durante as formações dos grupos reacenderam questões imprescindíveis como liderança, cooperação entre os indivíduos e – em especial - relações entre gêneros. Esses foram pontos com os quais os moradores se depararam durante todo o processo e foram indispensáveis para o amadurecimento das discussões e mudanças mais profundas nas relações entre os participantes. As mulheres, com o desenvolver dos projetos, se mostraram como um grupo bastante participativo. Assumiram papéis ativos tanto nas fases de negociações com outros grupos sociais quanto no trabalho considerado pesado e perigoso na obra, superando expectativas sobre a atuação feminina no mutirão.

“As mulheres na favela são as principais responsáveis pela reprodução da força de trabalho, assim como o esteio psicológico e social das famílias, sendo segundo os dados do IBGE de 2000, de 40% a 60% às chefes de família (dados retirados dos setores censitários) assim como o corte étnico, são em sua maioria da cor negra.”(GONZAGA, 2004, p.224)

As mulheres nos mutirões não formavam naturalmente um grupo por apresentarem interesses comuns devido a condição biológica de “ser mulher”, mas acabavam por se unir em virtude de afinidades surgidas durante o desempenho dos papéis sociais tradicionalmente atribuídos a elas, ou seja, existia uma divisão de trabalho em virtude do gênero e inicialmente as mulheres eram postas em atividades que lhes eram consideradas “mais aptas”. Esses papéis sociais correspondentes eram caracterizados

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segundo as ´qualidades femininas´ habitualmente idealizadas, como as de ´boa dona de casa´ e as de ´esposa submissa´, em contraponto ao modelo masculino de ´provedor do lar´ e ´autoridade´. Essas funções sociais cristalizadas começaram, durante o processo, a serem contestadas pelas próprias mulheres mutirantes, considerando que suas realidades não condiziam com esse ideal de mulher e que esses papéis sociais tradicionalmente determinados começaram a ser trocados e confundidos no canteiro de obras, pois ao executar qualquer atividade, seja por necessidade (menor número de homens no canteiro), as mulheres não tinham como aceitar a ideia de serem mulheres frágeis. Essas mulheres não eram do tipo que ofereciam ‘ajuda’ em casa - papel esperado - se responsabilizavam por todos os âmbitos de sua família e ainda trabalhavam arduamente no mutirão durante os finais de semana. Não tinham como corresponder à expectativa que os homens tinham delas, pois não eram esses os papéis que exerciam na ‘vida real’. Desde as discussões no movimento, inclusive, as mulheres já apresentavam, consideradas proporções, certo esclarecimento no que tange a divisão sexual do trabalho doméstico, o que influenciava durante os projetos das casas, como podemos observar no trecho:

“Na assembleia animada em que cada um expõe o que foi debatido em seu grupo, é comum que surjam vários aplausos, sobretudo em afirmações polêmicas que evidenciam as diferenças de gênero, o peso do trabalho doméstico e da opressão sofrida pela mulher. Os homens não têm vergonha, por exemplo, de afirmar que sobre a cozinha e lavanderia ‘é a mulherada que tem que opinar’, pois eles não teriam nada a dizer sobre isso – o que é seguido por uma vaia indignada das mulheres. Algumas delas, nas semanas seguintes vêm comentar que deixaram os maridos lavando roupa e cozinhando para verem como deve ser a casa nova”. (HIRAO, LAZARINI E ARANTES, 2010, p.9, in: MOREIRA, 2012, p. 44-45)

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Por terem rendimentos muito baixos, as mulheres chefes de família não tinham condições financeiras de contratar terceiros para ajudar em partes das obras, com isso acabavam executando tarefas em todas as fases da obra. As mulheres casadas, muitas vezes, também assumiram sozinhas os trabalhos considerados pesados no mutirão, pois seus maridos quando trabalhavam em empregos que ocupavam os horários dos mutirões, não podiam estar presentes, e quando podiam, acreditavam que esse trabalho não os dizia respeito, já que já estavam provendo o sustento da família. Relatos mostram que inicialmente nos mutirões algumas mulheres se comportavam de maneira submissa com relação aos homens, tanto por pressões sociais, como por ser um local – canteiro – de - obras – com o qual as mulheres não estavam familiarizadas. Porém, com o decorrer do projeto esse perfil foi diariamente sendo transformado. Além dessa inicial não familiaridade com o espaço em que estavam se inserindo, fica claro que na definição das atividades e trabalhos dentro dos mutirões, os homens tentaram colocar as mulheres ‘em seus devidos lugares’. Na definição da composição dos grupos de apoio como cozinha, creche, limpeza, serviços gerais de carregamento de coisas, serviços administrativos e etc, as mulheres foram logo escolhidas. A coordenação considerava que esses trabalhos eram “natos” das mulheres e que era “natural” que se responsabilizassem por eles. Esses trabalhos por terem características de trabalhos domésticos eram tanto desvalorizados dentro dos canteiros, como eram transferidos em sua maioria às mulheres. Aqui nota-se um pré-julgamento claro sobre a capacidade das mulheres na obra. No entanto as mulheres acabavam por constituir maioria nos canteiros, portanto essa divisão sexual do trabalho de fato não tinha como ocorrer por completo. As mulheres então ‘invadiram’ todos os espaços da obra e aos poucos foram ganhando credibilidade, reconstruindo uma ‘nova identidade feminina’ desprendendo-se da

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imagem modelo de mulher tradicionalmente atribuído pela sociedade, assim como das atividades tidas como de mulheres. Essa minoria masculina nos canteiros de obras pode ser um fato inesperado, considerando que os trabalhos da construção civil comumente são exercidos por homens. No entanto, ao olhar questionando-se a respeito das relações de gênero, essa omissão masculina pode ser interpretada como uma reprodução da subjugação da mulher, a qual, seguindo o pensamento tradicional pode, sem maiores questionamentos, exercer um trabalho não remunerado. Isso interpretando o trabalho não remunerado como uma extensão do trabalho doméstico – também não remunerado – embora fosse considerado um trabalho ‘pesado’. As relações postas como antagônicas: público/privado, masculino/feminino, trabalho remunerado/ trabalho doméstico foram cristalizadas no decorrer dos anos, e por isso esperava-se que fossem mantidas. No entanto encontra-se nos relatos dos mutirões, novas situações postas, novas demandas e em especial uma nova conjuntura, desde os anos 70, de independência e emancipação feminina que vai de encontro a essas expectativas, e que movimentaram também as relações durante os trabalhos no canteiro de obras. Essas divergências de gênero podem ser notadas no trecho:

“As diferenças entre homens e mulheres são enfatizadas, estabelecendo-se uma polaridade entre masculino e feminino, produção e reprodução, e público e privado. Para o feminismo da diferença, o poder concentrar-se-ia na esfera pública, estando nessa polaridade a origem da subordinação das mulheres.” (CARVALHO, 1998, in: FARAH, 2004, p. 48).

Ao mesmo tempo que ocorreram situações em que as mulheres reproduziram ações alinhadas com as expectativas socialmente aceitas, ao desempenhar trabalhos tradicionalmente vistos como masculinos, como a construção e a vigia noturna, os papéis sociais foram se confundindo e se transformando. As poucos as mulheres foram conquistando confiança e

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reconhecimento de seu grupo por desempenharem com a mesma capacidade que os homens o trabalho de construção. Contudo os trabalhos mais desvalorizados dentro do canteiro de obras – vinculados ao trabalho doméstico – ainda eram feitos por mulheres. Esta diferenciação no trabalho é fruto de uma construção social que se estende até hoje, baseada na valorização do homem.

“Até fim do século XVII, existem as corporações, que garantiam, na grande maioria das oficinas, o monopólio do trabalho masculino. Eram poucas as corporações ou grêmios femininos. Em Paris, só as floristas e as tecelãs de linho e cânhamo tinham suas corporações. E cresciam as profissões DITAS FEMININAS, DESVALORIZADAS E SEM PRESTÍGIO: engomadeiras, lavadeiras, camiseiras, bordadeiras, guarnecedoras de passamanaria, taberneiras e tapeceiras.” (ALAMBERT, 1997, in: GONZAGA, 2004, p.94)

Em 1997 foi feito um estudo pelo IPEA que revelou que os três grupos operacionais com mais alto grau de feminização – serviços domésticos, vestuário e serviços de barbearia e beleza – representavam 52% do emprego feminino, contra apenas 2% do emprego masculino. Por outro lado, os cinco principais grupos ocupacionais masculinos – construção civil, serviços de reparação, serviços de transportes, serviços braçais e indústria metalúrgica – representavam 54% do emprego masculino e apenas 2% do emprego feminino. As atividades consideradas ´leves´executadas pela mão de obra feminina tem menor remuneração quando comparas àquelas ´pesadas´, no entanto o serviço ´leve´ pode ser igualmente estafante, demorado, ou mesmo nocivo à saúde. O que determina o valor da remuneração é claramente o sexo de quem a recebe.

“Não é difícil demonstrar-se que, em última instância, a discriminação não se diferencia, ela se dá simplesmente porque a mulher é mulher. Embora com distinções de grau, da mesma forma que entre operárias, no interior das profissões liberais ocorrem segregações, como, por exemplo na medicina e no direito. É

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notório que poucas são as mulheres no Brasil que ascendem à direção de hospitais, a postos de comando quando se trata de direito administrativo e do Poder Judiciário.”(GONZAGA, 2004, p.107)

A melhor remuneração do trabalho ´pesado´ ocorre devido à valorização social do homem enquanto chefe de família. O trabalho das mulheres fica, ainda, em segundo plano, representando apenas uma ajuda à composição do orçamento familiar. Desta forma, o trabalho é considerado ´leve´ não por suas próprias características, mas pela posição que seus realizadores ocupam na hierarquia familiar. Para compreender melhor como funcionou a participação das mulheres nos mutirões fez-se necessário a investigação de como ocorreram as relações de trabalho, entendendo que elas contribuem para a formação de opiniões e papéis dentro de uma sociedade, e sua consecutiva divisão, entre homens e mulheres, com a intenção de analisar de que forma a mão de obra feminina foi distribuída dentro do canteiro.

Mulheres em ‘seu lugar’ Ficou claro que a subdivisão inicial, a qual de antemão já excluíra quase inteiramente as mulheres de papéis de liderança, estava relacionada ao sexo, e subjugou de muitas formas a capacidade da mão de obra feminina. Com isso as mulheres foram direcionadas aos grupos de apoio do mutirão – e as muitas outras participaram da construção propriamente dita – que desempenhavam atividades com características que podiam ser associadas ao trabalho doméstico.

“Acontece que elas ainda formam um número maior do que o exigido por essas tarefas. Então começam a entrar no canteiro, inicialmente em trabalhos braçais e totalmente desqualificados, como o carregamento de material e a limpeza do terreno, até assumirem trabalhos ‘fora do seu lugar’ como a ferragem, a concretagem. ” (ARANTES, 2002, p.199, in: MOREIRA,

Imagem 18 e 19 Mulheres trabalhando na limpeza do canteiro

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2012, p.68) Como eram trabalhos que, apesar de indispensáveis para o funcionamento adequado de um mutirão habitacional, não eram valorizados também pela relação com o trabalho doméstico, as condições de trabalho eram as mais precárias do canteiro de obras.

Cozinha As mulheres eram responsáveis por calcular os custos, fazer as compras – muitas vezes a pé – e cozinhavam em condições precárias por falta de instrumentos adequados e falta de estrutura física. Este grupo tinha que relacionar-se com todas as pessoas da obra, o que por um lado gerava uma enorme responsabilidade em seu trabalho, no entanto, para muitas pessoas que trabalhavam na construção – inclusive outras mulheres- o trabalho na cozinha era ‘pegar no leve’. Não se admitia nenhum deslize das cozinheiras pois na hierarquia estabelecida nos mutirões, haviam critérios conhecidos, porém não ditos, que algumas coisas eram mais importantes e difíceis que outras. Dessa forma essas mulheres que possuíam uma rotina tão árdua quanto a dos outros companheiros tinham que muitas vezes lidar com a intransigência e a desvalorização por parte deles. Na construção os grupos relacionavam-se basicamente entre si – gerando identidade e compreensão em torno de falhas dos participantes – já o trabalho na cozinha era exposto ao julgamento dos mutirantes como um todo, e as possíveis falhas não eram relativizadas pois esse trabalho era visto como um ‘serviço’ prestado aos mutirantes e não como parte integrante e necessária do mutirão. As mulheres que trabalhavam na obra faziam um serviço novo jamais desempenhado por elas antes – serviço de homem- e que era valorizado. A cozinha é um exemplo de como se estabeleceu a diferença de julgamento da importância em torno do que é trabalho de homem e de mulher. As mulheres que estavam fazendo um serviço ‘nato’ delas eram de certa maneira desvalorizadas, inclusive em relação as outras

Imagem 20Mulheres trabalhando na cozinha

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mulheres que desempenhavam papéis na construção.

Creche Este espaço também relacionado com o âmbito de reprodução, vinculado a um papel maternal exercido pela mulher, era desvalorizado e em alguns relatos quase que inexistentes, não fosse a luta de algumas mulheres pela proteção das crianças no canteiro. Alguns mutirões tinham o problema das crianças desconsiderado pela coordenação do mutirão – majoritariamente masculino- somado a inércia de algumas mães e pela falta de pessoas que se dispusessem a cuidar das crianças. Aqui nota-se parte dos limites na “conscientização” que os movimento sociais possibilitaram. A ideia a respeito de direitos iguais torna-se nebulosa internamente aos movimentos, quando os mutirantes se deparam com uma realidade onde a noção de igualdade, prevista no discurso, se sobrepõe na prática a uma hierarquia com distribuição de poderes e desvalorização de tarefas em detrimento do gênero de quem a exerce. A falta de apoio às mulheres que buscavam por esse lugar na obra era claro, e o problema que existiu na cozinha também pode ser notado na creche. Consideradas “folgadas” por aqueles que faziam o trabalho na construção, e com o agravante de que dependiam do auxílio e da boa vontade dos homens para conseguirem um lugar no canteiro para abrigar as crianças, deparando-se com a própria estrutura hierárquica e a burocracia formal para qualquer atividade ou espaço que almejavam. A falta de apoio era uma atitude que em parte se explica, novamente, pela valorização em torno do trabalho que exerciam, as mulheres que trabalham em algo de ‘menor’ importância começavam a exigir coisas ‘demais’, que não lhes eram de direito, posto que, diferentemente dos outros mutirantes, elas ‘não trabalhavam’ e iriam ‘ganhar a casa numa boa’. As mulheres lutavam contra aqueles que necessitariam da creche para deixar os próprios filhos. Essa situação pode ser notada na

Imagem 22Creche em funcionamento

Imagem 21Crianças no canteiro sem estrutura

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passagem de uma mulher mutirante:“ Aí eu digo pro mestre de obras: ‘ a gente vai puxa a água aqui, a gente vai cavar. Hoje nós viemos para cavar’. Ele virou pra mim: ‘tudo bem, o almoxarifado é ali. Quero ver se vocês aguentam. Pega a ferramenta e começa a cavar’. ‘Vou sim, e vê se solta dois homens pra ajudar’. ‘Ah, sinto muito, meus homens estão cansados’. ‘Pois tu vais ver que nós vamos fazer sem precisar dos teus homens, porque do jeito que vocês são homens, nós somos mulheres pra enfrentar. Do jeito que eu feri minhas mãos pra fazer ferragens pra essas casas todinhas, eu sangro minhas mãos pra jogar água na creche pra o teu filho ficar lá dentro. ” (SALVADOR, 1993, p.120)

Nessa passagem nota-se o exercício do poder do mestre de obras, que além de desafiar a capacidade feminina na execução da tarefa, podia ajudar ou atrapalhar, tanto pela importância da posição hierárquica em que se encontrava como também pela importância conferida à força física dos homens. Existiram situações em que a má vontade masculina, apenas como forma de autoafirmação em um papel de comando, foram relatados como no depoimento:

“Teve um momento que deixou a gente bem irritada, a gente queria fazer alguma coisa e eles ficavam pedindo pra trocar de lugar, por exemplo ‘ os blocos estão todos empilhados aqui a esquerda’, ‘passem esses blocos pra direita’, e a gente ia lá e carregava os blocos, chegava no outro final de semana ‘ passa o bloco pra não sei aonde’, ou seja, a gente ficava carregando muitos blocos, isso foi uma coisa que eu lembro que pesou bastante, porque a gente não via sentido naquilo, mais por isso do que por qualquer outro motivo, na verdade a gente percebeu que ‘ tão te dando alguma coisa pra você fazer e não encher o saco’, meio isso, tirar você de perto.”(V. em entrevista concedida à autora em 21.03.15)

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Os mutirões foram um tipo de construção que, para funcionar, necessitavam de uma estrutura que considerava as condições de vida daqueles que participavam. A creche onde se deixavam as crianças era fundamental para liberar grande maioria dos trabalhadores – as mulheres- das crianças, para que pudessem desempenhar sua função na obra sem oferecerem perigos aos filhos. Ao expor que grande maioria dessas mulheres eram sozinhas e não tinham tempo, pela rotina do trabalho, e nem dinheiro para oferecer melhores condições de vida aos filhos, compreende-se melhor a realidade dessas mulheres, a necessidade da existência de um apoio para cuidar dos filhos enquanto executavam mais um trabalho, o do mutirão. Em contrapartida as mulheres que trabalhavam nas creches, muitas vezes também mães, se identificavam com a realidade das outras mulheres do mutirão, e com o desenvolvimento de trabalhos e discussões dentro do movimento, tinham consciência e sentiam a sobrecarga que as mulheres, chefes de família e ainda mutirantes tinham que carregar:

“A gente dá um lanche reforçado, bom (no almoço) e dá o jantar pra elas. Elas tomam banho, vão pra casa, tomam ônibus de barriguinha cheia. Não vão chorando de fome no ônibus. Chegam em casa e nem jantam. Já vão direto pra cama porque já estão jantados e de banho tomado. Quer dizer que é um sossego pra mãe, que chega em casa cansada também. Em vez dela ficar cuidando de jantar e dar banho nos meninos, ela vai cuidar dela mesma, coitada, que já está morta de cansada. ” (SALVADOR,1993, p.127)

Através dessas funções exercidas pelas mulheres pode-se observar um pouco de como se estabeleceu a hierarquia dos tipos de trabalho e como as representações em torno do papel dos homens e das mulheres influenciaram na valorização dos trabalhos dentro do mutirão. A obra explicitava uma contradição entre a democracia

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idealizada no momento de reivindicação e a hierarquia formalizada na construção, onde os princípios democráticos igualitários podiam ser relativizados em detrimento do possível sucesso técnico. Desde o início dos trabalhos poucas mulheres chegaram à coordenação de uma equipe de trabalho, sempre sofrendo com julgamentos a respeito da capacidade feminina. Na hora de escalar pessoas e determinar funções de autoridade apenas homens ocuparam posições de coordenação, sendo que a maioria deles nada sabiam a respeito de construção civil. Posto esse fato, é como se houvesse uma capacidade nata dos homens ao trabalho da construção, em contraponto ao pensamento de que tarefas domésticas eram atividades natas às mulheres. Esse aspecto, no final das obras tornou-se contraditório pois continuou sendo utilizado mesmo depois que as mulheres já tinham mostrado que eram completamente capazes de realizar qualquer trabalho. Segunda Zulmara Salvador (1993) pode-se pontuar alguns problemas na coordenação feminina dos trabalhos: 1) O desconforto de dar ordens às pessoas que são colegas de movimento- situação que pode ser entendida pelo fato das mulheres serem tradicionalmente criadas e formadas para a vida privada, quando se deparam com a situação de liderança publica, podem se sentir pressionadas por romper com as expectativas; 2) Autoridade masculina entrando em conflito com a feminina- dar ordens ou dizer que algo estava errado para alguém já era considerado desagradável pelas mulheres, tratando-se de um tipo de trabalho tradicionalmente masculino, uma mulher dar ordens a um homem era muito pior, e as mulheres tinham receio de assumir essa responsabilidade, como se pode notar no depoimento de uma mutirante:

“Olha, em parte aqui as mulheres sempre tiveram receio de assumir essa barra. Porque é uma coisa muito crítica. Então elas preferem deixar logo, para não ter briga. Eles (os homens) criavam problema. Mesmo não sabendo o serviço, faziam força para cair sempre na cabeça das mulheres. Então as mulheres já deixavam

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por isso mesmo (...) Em parte a gente preferia não pegar isso (a coordenação), não porque não sabia o serviço, mas porque os homens ficavam enchendo o saco.” (SALVADOR, 1993, p.188)

‘Trabalho de homens’ realizado por mulheres Os trabalhos que eram considerados ‘perigosos’ e ‘pesados’ e exclusivamente ‘masculinos’ dentro do canteiro de obras, e que consequentemente eram mais valorizados, foram importantes também para uma melhor apreensão de como se deu a inserção das mulheres nas obras. A vigilância noturna dos mutirões é uma das funções consideradas perigosas pela alta exposição e que tradicionalmente seria realizada por homens. Nas construções essa função também teve maior participação de mulheres, aproximadamente 60% das pessoas que exerciam essa atividade. Os homens, em parte dos casos, apareciam como coadjuvantes no trabalho, oferecendo uma ajuda àquelas que exerciam o trabalho principal, não reproduzindo, dessa forma, a ideia do modelo feminino subordinado ao masculino. Esse posicionamento “afastado” dos homens em relação aos mutirões, pode estar relacionado, como visto anteriormente, pela visão masculina de uma possível “extensão” do trabalho doméstico, por não ser remunerado, e consequentemente, desvalorizado. Desta forma os homens não identificavam as ocupações da obra como de sua responsabilidade, já que a eles cabia sustentar a família com a remuneração do trabalho externo. Ocorreram casos em que alguns homens acompanhavam sua companheira na função de vigia noturna. No entanto, esse auxilio, em algumas circunstâncias, não era feito por consciência de responsabilidade quanto ao trabalho a ser compartilhado, mas talvez por se apoiarem no discurso habitual paternalista de que a mulher, por ser frágil, deveria estar protegida sempre que possível, e reconduzida ao seu ´legítimo lugar´, a esfera doméstica.

Imagem 24Equipes abrindo valas

Imagem 23Mulheres construindo paredes

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O trabalho de quase todas as etapas da obra, mesmo que não remunerado, era ainda assim considerado um trabalho pesado e incompatível com as ´habilidades femininas´. No entanto com o caminhar da obra, tarefas como escavação das valas de fundação, alvenarias, entre outras, foram sendo executadas com desempenho inquestionável por mulheres, assim como organização e planejamento e apoio logístico. As mulheres tiveram que ultrapassar barreiras, aprender funções que nunca exerceram, e executá-las em busca de seus sonhos.

“Na maioria das vezes sem nenhum conhecimento das tarefas existentes, tinham que superar, além desse problema, o problema causado pelo preconceito e a falta de confiança em sua capacidade para a realização dos trabalhos.” (RONCONI, 1995, p.118)

No início das obras havia uma insegurança geral sobre a capacidade feminina, elas então eram incluídas em grupos maiores. Os grupos mais especializados como elétrica, carpintaria e hidráulica eram, em sua maioria, exclusivamente masculinos, as mulheres entravam como ajudantes. O grupo que tinha grande representatividade feminina era o das ferragens.

“Me lembro que trabalhei muito na questão da ferragem, porque era um trabalho que era mais tranquilo, e eu também fui entender o que era ferragem. Tentei assentar alguns tijolos, isso foi umas duas vezes que eu pedi pra fazer, mas eu fiquei muito tempo na ferragem.”(V. em entrevista concedida à autora em 21.03.15)

Existiu então uma inicial dificuldade de ajeitar a imagem da mulher ao desempenho no trabalho. Aos poucos isso foi se tornando ainda mais complexo. Reconhecia-se a participação delas – massiva e mais comprometida – mas era como se a realização de alguns trabalhos pesados pelas mulheres ainda fosse invisível aos homens. Ratificando ainda mais a questão de que o valor do trabalho era tido pelo gênero de quem exercia ele, e não tanto pelo trabalho em si.

Imagem 25Mulheres nas ferragens - corte e amarração

Imagem 26Mulheres nas ferragens - corte e amarração

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Existia uma contradição clara entre o discurso em que os homens diziam que as mulheres eram ‘delicadas’ e que não serviam para o trabalho pesado e o fato de colocarem para encher e transportar caixas de terra, pedra e areia, nivelar terreno, serviços ditos como leves, ou o fato delas não poderem controlar uma máquina, pois embora leve, era um trabalho ‘qualificado’. Inúmeras mudanças a respeito da percepção da realidade ocorreram para que essas mulheres ao longo do processo se descobrissem ainda mais fortes e capazes, o que mudou em especial a visão que tinham delas mesmas. Os trabalhos nos mutirões, de certa forma, contribuíram para a minoração da visão dicotômica relacionado a trabalhos femininos e masculinos. As expectativas que a sociedade tem sobre as mulheres como essencialmente reprodutoras e incapazes de realizarem, com no mínimo a mesma eficiência, trabalhos exercidos tradicionalmente por homens foram sendo derrubadas à medida que as mulheres foram dominando a situação, e tornando-se presença majoritária nos canteiros de obra de grande parte dos mutirões autogestionados. A maior inserção feminina no mercado de trabalho, e o grande número de mulheres chefes de família nas faixas de renda mais baixa, contribuem, também, para essa mudança de identidade, onde o homem se posicionava como ´provedor´ do lar. Nota-se uma perda relativa da importância do homem enquanto chefe de família, já resultando em mudanças, ainda que sutis, na divisão doméstica do trabalho em relação ao sexo. É dentro dessa realidade que os canteiros de obra se inseriram, e as práticas cotidianas na construção reafirmaram e contribuíram de certa forma para uma “ressignificação” do feminino e do masculino entre os mutirantes. As mulheres também conseguiram construir um enorme engajamento durante as negociações nas decisões sobre a futura moradia, fruto de uma visão diferenciada, citada anteriormente, sobre a

Imagem 27Mulheres construindo paredes - Mutirão Adventista Parte II

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casa, onde a preocupação da mulher relacionada à habitação – devido, também ao papel materno de cuidado e zelo pelos filhos - é muito maior do que a do homem. As experiências dos mutirões tiveram forte representação feminina em todos os tipos de trabalho, incluindo o trabalho ´pesado´ e ´perigoso´, e tornaram-se exemplo de reflexão e contestação de valores e expectativas arraigadas em nossa sociedade em função de papéis a serem exercidos em virtude do sexo. Com o tempo as mulheres começaram a elaborar uma avaliação sobre o próprio trabalho e sobre os trabalhos que eram exercidos pelos homens e foram constatando que eles não se diferenciavam em nada, apenas na legibilidade e reconhecimento. Com isso era comum as mulheres terem que fazer mais para provar aos homens que eram capazes. A imagem de ‘delicadeza’ da mulher era uma forma não de ‘protegê-las’, mas sim de desqualificá-las a fim de reiterar o não pertencimento delas àquele lugar. Questão que aos poucos foi se modificando pois tiveram que reconhecer, se não a capacidade, o esforço delas. A inversão dos papéis ficou clara, em nenhum momento os canteiros passaram a ser o “lugar das mulheres”, era uma necessidade causada pela omissão dos homens em cumprir sua parte na gestão da família: foram para os canteiros empurradas pela necessidade. A mulher no ambiente de obras era apenas uma reação imediata a falta de ação dos homens na resolução de mais um dos problemas da esfera doméstica: a habitação. Na visão masculina admitir a real capacidade das mulheres em realizar bem um trabalho seria uma inversão radical dos papéis, mudando a percepção da divisão sexual do trabalho. Dessa forma, existiu uma mudança ao admitir o bom desempenho das mulheres, no entanto com a limitação de algo eventual. Já para as mulheres essa inversão de papéis experimentada durante o processo das obras era motivo de muito orgulho, uma forma de afirmação de uma independência que até aquele momento

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estava atrelada à capacidade de sobreviver sem o homem e sustentar seus filhos. Além disso tiveram suas competências postas à prova – e passaram com louvor – conquistando respeito através de muita luta e trabalho. As mulheres após essa experiência regada de barreiras e superação delas, passam a notar um maior controle de suas próprias vidas e encontraram outras formas de afirmar sua individualidade, que não as esperadas socialmente.

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considerações finais

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considerações finais

É importante que se tenha a questão habitacional inserida no contexto urbano como primordial, considerando a forma com que ela se prolongou ao longo da história nas cidades, a fim de encontrar novas soluções que garantam o direito à moradia àqueles que mais têm dificuldade para obtê-la, a classe trabalhadora. A atuação do poder público na provisão de habitações populares, deve de fato priorizar as pessoas que sem algum tipo de financiamento ou programa não conseguiriam adquirir uma casa própria, a qual representa menos gastos com aluguéis e a segurança de um abrigo digno. A gestão da prefeita Luiza Erundina em São Paulo serviu de exemplo e modelo na área habitacional pois foi visivelmente voltada para os direitos sociais, existindo um diálogo claro e conciso com os movimentos populares que lutavam por melhorias em vários âmbitos. Foi durante esse período também que se criou um programa de financiamento para a população de baixa renda, o Funaps Comunitário, o qual entre outras coisas definiu parâmetros construtivos muito melhores dos que estavam sendo produzidos até então, sendo a área das casas

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uma das prioridades, garantindo assim, uma qualidade considerável na produção de habitações sociais, abrindo precedentes importantes para futuras produções e questionamentos. Os mutirões autogestionados do período, além de casas de boa qualidade, da fácil inserção na trama local devido à pequena escala, da identificação do morador com sua habitação por sua participação em todas as etapas da concepção, desenvolveu também atividades que qualificaram os participantes de inúmeras formas seja aprendendo um ofício, seja obtendo cargos de liderança, seja aprendendo a lidar e a organizar-se em grupo.

“Pra quem trabalhou na ferragem eles explicavam bem pra que era cada coisa, pra que servia a ferragem, como eram as amarrações, pra que serviam as barras e tudo, mas é uma formação superficial. Mas assim, a visão que eu tenho sobre a construção agora modifica né? Você adquiri um certo conhecimento.”(V. em entrevista concedida à autora em 21.03.15)

“Tinha uma afetividade muito grande porque tem a questão da construção né? Você tá lá, você saber que a base dessa casa tá em cima da ferragem que eu fiz, entendeu? Tem essa relação e isso é muito forte mesmo. Porque você sente que aquilo é fruto do seu trabalho, da sua luta, dos seus finais de semana perdidos, ou não, depende do ponto de vista.”(V. em entrevista concedida à autora em 21.03.15)

A experiência dos mutirões habitacionais, mais do que resultados quantitativos, trouxe resultados qualitativos muito importantes dentro de uma política habitacional mais ampla até então frágil, que justificam a luta pela continuidade deste método construtivo como mais uma alternativa no combate ao déficit habitacional ainda muito grande, não somente no Estado, como em todo país.

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A participação das mulheres, durante o processo em que ocorreram os mutirões, desde a luta nos movimentos sociais, até a construção, foi mais do que relevante, foi imprescindível para que fosse bem sucedido, e é importante que isso seja sempre frisado quando o tema em questão forem os mutirões habitacionais, Percassi afirma que:

“O reconhecimento do valor de sua participação [feminina] nesses espaços, por sua vez, é algo que necessita ser lembrado e reforçado como conquista cotidianamente, para que não se cristalize como sendo apenas parte das obrigações do ser mulher. ” (PERCASSI, 2008,p.198, in: MOREIRA, 2012, p.69)

A casa como elemento simbólico de proteção à família tem um significado de extrema relevância para as mulheres pois faz parte de um dos papéis tradicionalmente atribuídos a elas: o de garantir a proteção da esfera privada. Interessante notar que essas mulheres saem de suas casas, vão para a esfera pública – movimentos sociais e mutirões – com a finalidade de lutar para assegurar a estabilidade da esfera particular – a casa própria – fechando assim, um ciclo, em que a mulher luta, porém, para preservar a reprodução da esfera doméstica. (SALVADOR, 1993) O papel social da maternidade – ou cuidado com a família no geral - tradicionalmente vinculado à mulher, de fato é um grande mobilizador, como se pode notar. A questão é que nos mutirões, com a inversão, mesmo que momentânea, dos papéis sociais a mulher passa a ter consciência de que eles não se limitam apenas a um só, o de mãe. As divisões sexuais do trabalho e as distribuições de poder que ocorreram no início das atividades tiveram que ser revistas no processo, considerando a omissão masculina nos canteiros de obra, e o maior comprometimento feminino – talvez não tanto por consciência coletiva, mas por necessidade econômica e social. Sendo maioria, as mulheres também acabaram realizando trabalhos comumente “masculinos”, o que gerou uma inversão clara de papéis, em especial para elas que estavam vivenciando a situação. A experiência dos mutirões às mulheres permitiu uma oportunidade de alcance da casa própria a um segmento social que

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muito precisa de apoio, considerando a realidade econômica e social vulneráveis. Essas mulheres, chefes de família, muito conquistaram: vínculos de amizade, rotinas diferentes, maior segurança econômica, mais confiança, entre outras questões, como pode ser notado no trecho abaixo:

“Quando você participa de uma coisa, aquilo se torna uma parte de você, não é? Para a minha vida foi muito interessante. Eu nem sei te explicar como. Cansava, mas no dia seguinte eu não via a hora de voltar. Fisicamente eu estava caída, mas psicologicamente eu estava ótima. Porque se você não participa, você é uma pessoa inútil, você se sente inútil. Já pensou? Eu tenho uma casa ali. Eu ajudei a fazer o concreto daquela casa, a fundação... eu fiz!! Sabe o que é eu? Aquele eu da gente, que fica todo cheio de vida.” (SALVADOR, 1993, p.221)

Mas, para além disso, obtiveram uma nova percepção relacionada a capacidade feminina de trabalho, a qual não se limita às atividades vinculadas à esfera doméstica. Com isso puderam desenvolver uma visão mais crítica em relação à tradicional subjugação do seu papel por ser relacionado a atividades que são socialmente desvalorizadas, e perceber que essa desvalorização está completamente relacionada ao sexo, e não ao bom desempenho de quem a executa. Esse discernimento à percepção de capacidade, além de trazer orgulho e segurança às mulheres que participaram das obras, traz a clareza relacionada a independência das mulheres em relação aos homens. É através dessa nova percepção que essas mulheres caminham de fato a uma emancipação, considerando que como chefes de família, sustentam suas casas trabalhando fora e cuidam da família, mas ainda assim se viam subjugadas e desvalorizadas em seus trabalhos. A partir daquele momento, aquelas mulheres não poderiam mais aceitar essa dominação tão facilmente, pois agora tinham a clara noção da sua capacidade e força. Agora elas tinham saído da esfera doméstica e embora tenham voltado para ela como num ciclo, não seria

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mais da mesma forma. Reconstruíram seus sujeitos, encontraram novos papéis sociais que podem desempenhar com eficiência, e em especial, agora sabem que são mulheres que lutam pelo que querem e são capazes de conseguir. E essa percepção traz a essas mulheres, o que lhes tem sido retirado historicamente, poder. Portanto o percurso trilhado do movimento até a obtenção das casas pelas mulheres mutirantes, permitiu que certos estereótipos sobre papéis e tarefas que lhes cabem na divisão social do trabalho fossem reformulados, não como uma desconstrução total, mas como um início, e exemplo, para novas construções de papéis sociais mais igualitários entre homens e mulheres.

“Tal como na pedagogia de Paulo Freire – em que a alfabetização e apenas o motivo para a tomada de consciência da realidade – a construção das habitações não é o fim em si, mas o ponto de partida para um processo pedagógico de libertação.” (Usina CTAH, in: MOREIRA, 2012, p.46)

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Imagem 6Fonte:https://agendadaprefeita.wordpress.com/2011/04/27/27-de-abril-de-1989/

Imagens 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 20, 24 e 27Fonte: RONCONI, R.L.N. Habitações construídas com gerenciamento pelos usuários, com organização da força de trabalho em regime de mutirão. (O programa FUNAPS comunitário). São Carlos, Dissertação (Mestrado) – Escola de Engenharia de São Carlos, Departamento de Arquitetura, Universidade de São Paulo, p.310,1995.

Imagens 18, 19, 21, 22, 23, 25 e 26Fonte: SALVADOR, Z. Mulheres: Vida e Obra – A participação feminina num mutirão de São Paulo. São Paulo, Dissertação (Mestrado) – Departamento de Antropologia- FFLCH, Universidade de São Paulo,1993.

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