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MULHERES, DEMÔNIOS E BRUXAS: O feminino retratado por demonólogos espanhóis dos séculos XVI e XVII NARA BARROZO WITZLER * PROF. DR. RUI LUIS RODRIGUES ** Não ficarão, senão os que escrevem essas coisas. Lucrécia de León, 1590 Resumo Este trabalho, ainda em andamento, se propõe a estudar como a mulher e todo o seu universo privado e social foram retratados em Tratados Demonológicos Católicos espanhóis, produzidos num contexto de grandes e turbulentas mudanças que atingiam toda a Europa, que vivenciava um fenômeno intrigante: o grande surto de “caça às bruxas”, que se instaurou em todo o continente e atingiu, majoritariamente, as mulheres. Assim, o intuito é realizar uma conexão entre a mentalidade criada a respeito do feminino e as perseguições contra bruxaria encabeçadas pela Santa Inquisição hispânica. Para tanto, procedemos à análise de um conjunto de quatro tratados demonológicos produzidos na Espanha entre os anos de 1529 e 1652. O que nos interessa aqui é identificarmos a “cultura comum” que permeia esses textos. Mesmo que mais de um século tenha se passado entre a produção do mais antigo e o mais recente, a perseguição à bruxaria apenas se intensificou ao longo desses anos, além de podermos perceber uma clara interlocução entre os quatro autores. Nossa hipótese é que, por meio desse discurso particular, estruturado pelos demonólogos, e levando em consideração suas especificidades, é possível compreender mais claramente as relações entre discurso e prática inquisitorial, em especial no que diz respeito ao enfoque dado ao elemento feminino. Esperamos com esta investigação contribuir não apenas para uma compreensão mais acurada do fenômeno da bruxaria, mas também para uma discussão mais ampla das questões de gênero no âmbito da primeira modernidade europeia. * Aluna do Programa de Mestrado da Pós Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP Bolsista do CNPq. ** Docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.

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MULHERES, DEMÔNIOS E BRUXAS:

O feminino retratado por demonólogos espanhóis dos séculos XVI e XVII

NARA BARROZO WITZLER*

PROF. DR. RUI LUIS RODRIGUES**

Não ficarão, senão os que escrevem essas coisas.

Lucrécia de León, 1590

Resumo

Este trabalho, ainda em andamento, se propõe a estudar como a mulher e todo o seu universo

privado e social foram retratados em Tratados Demonológicos Católicos espanhóis,

produzidos num contexto de grandes e turbulentas mudanças que atingiam toda a Europa, que

vivenciava um fenômeno intrigante: o grande surto de “caça às bruxas”, que se instaurou em

todo o continente e atingiu, majoritariamente, as mulheres. Assim, o intuito é realizar uma

conexão entre a mentalidade criada a respeito do feminino e as perseguições contra bruxaria

encabeçadas pela Santa Inquisição hispânica. Para tanto, procedemos à análise de um

conjunto de quatro tratados demonológicos produzidos na Espanha entre os anos de 1529 e

1652. O que nos interessa aqui é identificarmos a “cultura comum” que permeia esses textos.

Mesmo que mais de um século tenha se passado entre a produção do mais antigo e o mais

recente, a perseguição à bruxaria apenas se intensificou ao longo desses anos, além de

podermos perceber uma clara interlocução entre os quatro autores. Nossa hipótese é que, por

meio desse discurso particular, estruturado pelos demonólogos, e levando em consideração

suas especificidades, é possível compreender mais claramente as relações entre discurso e

prática inquisitorial, em especial no que diz respeito ao enfoque dado ao elemento feminino.

Esperamos com esta investigação contribuir não apenas para uma compreensão mais acurada

do fenômeno da bruxaria, mas também para uma discussão mais ampla das questões de

gênero no âmbito da primeira modernidade europeia.

* Aluna do Programa de Mestrado da Pós Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da

UNICAMP – Bolsista do CNPq. ** Docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.

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Palavras-Chave

Bruxaria, gênero, Primeira-Modernidade, Espanha.

Introdução

No contexto dos séculos XVI e XVII, fenômenos violentos de cunho religioso, como a caça às

bruxas, ganhavam cada vez mais expressão. Apesar de ser um tema já extensamente tratado

pela historiografia desde o século XIX, novos questionamentos trazidos pela nossa época

(como questões relacionadas a gênero), assim como recentes estudos a respeito do tema que

contribuíram para a abertura de novas perspectivas e assinalam a importância do

aprofundamento dos estudos em torno de tal objeto. Interessa-nos aqui estudar, por meio da

análise de tratados demonológicos da Espanha dos séculos XVI e XVII, como se estruturou a

crença da bruxaria enquanto heresia e, portanto, enquanto crime punível judicialmente. Em

especial, interessa-nos investigar como se construiu dentro de tais fontes uma imagem da

mulher e do feminino, com seus vícios e pecados, elaborando assim uma imagem da mulher

associada à heresia e, portanto, propensa à bruxaria.

Primeiramente, temos que ter em mente que estamos aqui trabalhando com uma

retórica e uma construção do discurso próprias da Primeira Modernidade europeia, que eram

ao mesmo tempo reflexo e constituinte de toda a racionalidade do período. Estudar tratados

demonológicos é também estudar como a linguagem, independentemente se ela possuía ou

não uma correspondência com o mundo real, validava e creditava aquele tipo de crença. Por

muito tempo, ao longo da historiografia, se tentou encontrar correspondentes na realidade

física daquilo que era descrito tanto em Tratados Demonológicos quanto em processos

inquisitoriais. Como resultado, temos tanto artigos relatando como os encontros das bruxas

eram resquícios de um culto à deusa Diana que havia sobrevivido de um passado pagão,

quanto teses afirmando que, como não foi encontrada nenhuma evidência material de tais

encontros, toda a crença na bruxaria deveria ser posta em cheque pelos historiadores

contemporâneos. Queremos defender aqui que essa busca por parte do historiador é

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irrelevante, uma vez que as pessoas que escreveram tais relatos acreditavam na sua realidade,

e isso já é o suficiente para a pesquisa que estamos nos propondo a realizar.

Parte fundamental da construção do discurso da bruxaria era a noção de inversão e

oposição que permeava todo o discurso teológico do período. A cosmologia cristã ditava que

o mal era tão necessário quanto o bem, sendo essa a ordem que ditava a perfeição do mundo.

Com o Concílio de Trento em meados do século XVI, a doutrina que se impôs foi a de São

Tomás de Aquino, e com ela a filosofia de Aristóteles voltou a ganhar força1. De acordo com

o filósofo grego, “as coisas são ditas opostas em 4 sentidos: (I) como correlativas umas às

outras; (II) como contrárias umas às outras; (III) como restritivas para positivas; (IV) como

afirmativas para negativas.2” Aquino, seguindo essa lógica, conclui que na existência do mal,

o bem é pressuposto. Se não existisse o mal, o bem também não existiria. Anteriormente,

Santo Agostinho também já havia criado as bases para o pensamento dos opostos no

cristianismo. Todas as dualidades e conjunto de opostos existentes faziam parte da criação

divina para que um possa se destacar em comparação ao outro; sendo assim, a existência do

mal é necessária para que assim o bem possa se destacar com mais veemência3.

A partir da Primeira Modernidade, a estilística passa a ser uma preocupação tanto do

discurso quanto da literatura. A contentio (equilíbrio de frases e sentenças com sentidos

opostos4) e a casuística (exame de dilemas morais criados a partir da contraposição entre

regras e leis pré-estabelecidas5) foram amplamente utilizados na formulação dessa retórica,

embasados sempre em exercícios como a progymnasmata (criada na Grécia e Roma antigas, é

um conjunto de 14 exercícios que visam o aperfeiçoamento da construção da retórica e do

discurso6). Estamos aqui focando na construção do discurso demonológico, porém toda essa

lógica da dualidade e da contrariedade permeou não apenas âmbitos religiosos, mas todo o

pensamento do período, passando pela medicina, política, ética, etc. Nesse contexto, como

1 CALVO, María Jesús Zamora. “La Retórica Clássica y la Inserción del Cuento en Tratados de Magia”. Edad de

Oro 24 (2005), 451-470. 2 CLARK, Stuart. Pensando com Demônios, pp. 70 3 CLARK, Stuart. Pensando com Demônios, pp. 77/78 4 CLARK, Stuart. Pensando com Demônios, pp. 89 5 Blackburn, Simon. The Oxford Dictionary of Philosophy (revised 2nd ed.). Oxford: Oxford University Press,

2008. 6 CALVO, María Jesús Zamora. “La Retórica Clássica y la Inserción del Cuento en Tratados de Magia”.

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afirma Stuart Clark, “a bruxaria foi constituída dialeticamente em termos do que ela não era”7.

A bruxa, assim como Satã, não existia independentemente, mas era sempre em função,

oposição, ao outro. Para um símbolo ser compreendido por uma sociedade, seus significados

têm de ser compartilhados por ela. No meio letrado, o Sabá (encontro noturno das bruxas) foi

concebido e estruturado de acordo com um número de regras e elementos que deveriam

existir para que aquele ritual satânico fosse compreendido como tal. Como parte estruturante

desse pensamento, estava a noção de que o Sabá era um “mundo virado de cabeça para

baixo”, um espelho do nosso mundo, que refletia tudo no seu inverso.

A imagem do Diabo sofreu uma série de mudanças na passagem do que chamamos de

Idade Média para a Idade Moderna. Agora, ele era uma figura parodista, libertino e irônico. É

o “macaco de Deus”, procura o tempo todo imitar o Criador, mas assim como seus ministros

na Terra, o faz de maneira contrária aos Seus ensinamentos. O Sabá é, essencialmente, uma

missa católica com todos os seus elementos invertidos. Esse ato poderia ser encarado como

um ato de subversão ou mesmo como um ato político, se levarmos em conta o sentido mais

amplo da palavra8. Se pensarmos que a heresia e a bruxaria eram crimes de lesa-majestade,

fica mais claro perceber a relação entre bruxaria e política existentes. Entretanto, não

podemos nos esquecer de que essa inversão era constituinte da racionalidade do período. A

bruxaria, portanto, é tida como uma presença maléfica, porém necessária para a manutenção

da ordem natural do mundo. Para Santo Agostinho, os pecados adornavam o Universo e

contribuíam para a sua perfeição. Em 1597, James VI e I escreveu em sua Daemonologie que

“pois como o Diabo é o verdadeiro oposto contrário de Deus, não pode haver melhor maneira

de conhecer Deus que pelo seu contrário.9”

Se durante boa parte da Idade Média a existência do Sabá foi praticamente ignorada

pelos teóricos, foi no contexto da Contra Reforma que ele ganhou força total. Seguindo a

lógica acima descrita, um desses motivos se torna claro. Se tudo que existe precisa

necessariamente do seu igual oposto para ser atestada a sua superioridade, e se o Sabá é o

ritual contrário da missa católica, então a existência da bruxaria é aquilo que valida e

7 CLARK, Stuart. Pensando com Demônios, pp. 34 8 CLARK, Stuart. Pensando com Demônios, pp 129. 9 James VI e I, Daemonologie, p. 55.

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confirma a santidade do catolicismo. A bruxaria católica era “um sinal dos mais esplêndidos,

mais certo e infalível de que a fé verdadeira e salvadora, o verdadeiro evangelho, os

verdadeiros sacramentos, a verdadeira religião são encontrados entre os católicos.10”

Questão da bruxaria no caso específico da Espanha

A Península Ibérica foi um caso um tanto específica na questão da caça às bruxas. Na

Espanha, com algumas exceções, a bruxaria era de modo geral tratada com certo ceticismo. É

importante ressaltar que não estamos querendo afirmar que os juristas não acreditavam na

realidade da bruxaria, mas sim que eram mais cautelosos antes de darem um veredito e

aplicarem a sentença final. Em 1484, o Papa Inocêncio VIII emitiu a Bula Summis

desiderantes, que enxergava a bruxaria como uma praga que deveria ser combatida e, dois

anos depois, dois dominicanos germânicos, Heinrich Krämer e Jacob Sprenger, publicaram o

Malleus Malleficarum, grande manual de como identificar e punir as heresias e bruxarias, sob

as ordens do Papa. Muitos teóricos tem nessa Bula o prelúdio da grande caça às bruxas11.

Entretanto, apenas em 1520 os Éditos de Fé ambos de Castela e Aragão adicionaram magia,

feitiçaria e bruxaria na lista de ofensas implicando heresia. De acordo com o autor Henry

Kamen, é possível observarmos em diversos textos do período que os tribunais espanhóis

teriam uma preocupação maior em cristianizar essas bruxas do que em puni-las com a morte,

ao contrário do que acontecia em muitas partes da Europa continental. Porém, isso não quer

dizer que mulheres não foram condenadas à morte por bruxaria. No Reino de Aragão, por

exemplo, as autoridades civis continuaram sua opressão contra a bruxaria e a Inquisição

Espanhola não pareceu se colocar no caminho. Na Catalunha, as perseguições também se

mantiveram, onde dezenas de bruxas foram condenadas. Por fim, é interessante notarmos o

encontro de Inquisidores que ocorreu em Granada em 1526 com a finalidade de discutirem se

o Sabá das Feiticeiras era real ou não. A votação ganhou de seis votos a quatro para “sim, as

bruxas vão em realidade ao Sabá”. Apenas a ocorrência de tal encontro demonstra que

assuntos demonológicos eram tema de constantes debates entre os estudiosos do tema e, indo

10 Friedrich Forner, Panoplia armaturae Dei, adversus omnem superstitionum, divinationum, excantationum,

daemonolatriam, et universas magorum, veneficorum, et sagarum, et ipsiusmet Sathanae insidias, praestigias et

infestationes. Ingolstadt, 1625. P. 108. In. Clark, p. 197. 11 BAROJA, Julio Caro. Witchcraft and Catholic Theology. In Ankarloo, Bengt; Henningse. “Early Modern

European Witchcraft: centres and peripheries”. KORS, Alan C.; PETERS Edward. Witchcraft in Europe: 1100-

1700. KAMEN, Henry. “The Spanish Inquisition: a historical revision”.

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além, uma votação tão apertada demonstra que um acordo entre opiniões estava longe de se

realizar, promovendo ainda inúmeras obras com opiniões divergentes12.

Conclusões preliminares

O estudo realizado até o momento possibilitou concluir que nos dois tratados mais

antigos, o de Martín de Castañega (CASTAÑEGA, 1529) e o de Pedro Ciruelo (CIRUELO,

1530), vemos autores cujas principais preocupações são a de teorizar a heresia, delimitando os

conceitos entre ciência, superstição e fé. Nos anos de 1520, o bispo Alonso de Castilla

encomendou um tratado que fosse de fácil acesso à população13. Em 1529, o frei Martín de

Castañega publica o seu Tratado muy sotil y bien fundado de las supersticiones y hechizerías

y vanos conjuros y abussiones y otras cosas al caso tocantes y de la possibilidad y remedio

delas, o primeiro escrito em língua espanhola; nas palavras do próprio autor, “conpuse esse

tratado delas supersticiones y hechizerias en lengua castellana: para que los visitadores y

curas y aun todos los clerigos deste su muy honrado y grande obispado lo tengan entre

manos”14. Cada vez mais, o tema dos encontros dedicados à reverência a Satã ocupa todo um

espaço à parte nos tratados demonológicos; seja denunciando a sua realidade impossível, seja

acusando aqueles que participam de tais encontros, a referência ao Sabá estará sempre

presente15. Castañega dedica quase que um capítulo todo de seu tratado para pintar o encontro

como uma versão ao contrário da Missa Católica, cujo ápice estaria no momento em que os

“fiéis” beijam o ânus do Diabo. Se na Igreja de Deus

“al Papa le besan el pie en señal de absoluta y total obediencia y reverencia, y a Dios en la

boca, en señal de amor, como lo pide la esposa en los "Cantares", y en la Iglesia se muestra en

12 KAMEN, Henry. “The Spanish Inquisition: a historical revision”. P. 269-279. 13 DÍAZ, Iñaki Bazán. “El tratado de Fray Martín de Castañega como remedio contra la superstición y la brujería

en la diócesis de Calahorra y La Calzada: ¿un discurso al margen del contexto histórico (1441-1529)?”.

eHumanista 26 (2014): 18-53. 14 CASTAÑEGA, Martín de. “Tratado muy sotil y bien fundado de las supersticiones y hechizerias y vanos

conjuros y abusiones y otras cosas tocantes y de la possibilidad et remedio dellas”. Miguel de Eguía impresor,

Logroño, 1529. 15 CAMPAGNE, Fabián Alejandro. “Witchcraft and the Sense-of-the-Impossible in Early Modern Spain: Some

Reflections Basedon the Literature of Superstition (ca.1500-1800)”. P 46.

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la paz. Pues para el demonio, que es tirano y señor que de sus súbditos hace burla y escarnio,

no resta salvo que le besen en la parte y lugar más deshonesto del cuerpo (...)16”.

Se Castañega possui uma maior propensão a acreditar na realidade total dos encontros

das bruxas e em seus voos noturnos, Ciruelo já demonstra um pouco mais de ceticismo

teórico e propõe uma análise mais cuidadosa de cada caso. Com relação à questão de gênero,

essa não parece ser a preocupação central de nenhum dos dois, apesar de um se dedicar mais

ao assunto do que o outro. Por um lado, Castañega possui um capítulo intitulado “Porque

destos ministros diabolicos ay mas mugeres que hombres”. Para o Frei, além da clara

inferioridade feminina diante dos homens, duas outras características do pacto demoníaco

feminino chamam a atenção: a primeira seria a inveja causada pela escolha de Jesus em só ter

discípulos homens e separado as mulheres da administração dos sacramentos, por isso o

Demônio teria dado a elas essa autoridade. A outra é com relação à nomenclatura. Os homens

que realizam pactos com o Demônios são comumente chamados de nigromânticos, porém

esse termo está relacionado com a prática de artes e ciências maléficas. Como as mulheres

não possuem a prática nem de ciência e nem de arte, elas são chamadas apenas de magas,

bruxas feiticeiras ou adivinhas. Aqui, o autor também se dedica a explicar porque, das

mulheres, as mais velhas e pobres se dão mais ao demônio.

“porque como despues de viejas los hombres no acen caso dellas, tienen recurso al demônio

que cumple sus apetitos, em especial si quando moças fueron inclinadas y dadas al vicio dela

carne (...) E mas ay delas pobres y necessitadas, porque como enlos otros vícios la pobreza

muchas vezes ocasió de muchos males...”17

Ciruelo em momento algum se dedica especificamente ao gênero feminino, condenando

sempre homens e mulheres que realizam pactos demoníacos.

Em Gaspar Navarro (NAVARRO, 1631), 100 anos se passaram desde Castañega,

porém poucas coisas mudaram no que se refere ao conteúdo estrutural dos Tratados. Ainda

podemos notar que o tema da inversão durante os encontros das bruxas com o Demônio é de

16 CASTAÑEGA, Martín de. Cap. VIII. 17 CASTAÑEGA, Martin de. Cap.V.

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extrema importância para o autor, descrevendo em uma de suas passagens mais importantes a

missa ao contrário das bruxas, com a utilização de seu grande “livro negro da morte”18.

“yendo con el a los juegos que hazen de noche, y salen a hazer mal, matando criaturas, y

ganados, y otros animales de labor; y puestas las manos sobre um libro grande de unas

escrituras, y hojas negras, y obscuras juran de obedecer al Demonio, como a Principe, y señor

suyo.”19

Quanto às questões de gênero, Navarro dedica uma parte maior de seu tempo em

justificar porque as mulheres são a maioria dos adoradores do demônio, apontando as

características negativas e naturais que as tornam socialmente mais perigosas do que os

homens. Em sua Disputa nº XIV De las circunstancias que en las revelaciones se han de

notar, particularmente en las mugeres, o autor se baseia principalmente na obra de Gerson

para comprovar que devemos sempre desconfiar das mulheres, uma vez que estas são “porta

de entrada do Diabo, caminho da maldade (...) perdição do homem, tentação de uma casa,

cativeiro de vidas, guerra voluntária e contínua (...) uma contínua pena e dano, mal

incontestável, etc.”20

Francisco Blasco y la Nuza, em sua obra monumental de quase 1200 páginas

publicada em 1652 (BLASCO Y LA NUZA, 1652), além de todas as questões teóricas já

mencionadas anteriormente e que ainda eram uma preocupação, podemos notar um autor

muito mais preocupado com as questões políticas do momento em que estava escrevendo do

que os autores anteriores, como a questão do avanço do protestantismo e as guerras travadas

entre Espanha e França. Em suas páginas divididas entre a angelologia e a demonologia, o

autor nos mostra detalhadamente os limites de ação de anjos e demônios, bem como o que

cada um de seus seguidores é capaz de fazer e como lutar contra eles, no caso de malefícios.

Um ponto interessante de sua demonologia é notarmos que ao contrário de seus

companheiros, o Frei não faz menção à suposta missa ao contrário realizada pelos ministros

18 Aqui nos referimos à ideia de binarismo na Primeira Modernidade descrita por diversos autores e mais

extensamente por Stuart Clark em sua obra Pensando com Demônios: a ideia de bruxaria no princípio da

Europa Moderna (Clark, 2006). Essa lógica, presente em todos os âmbitos daquela sociedade, quando aplicada à

bruxaria, se referia à crença de que durante os sabás das feiticeiras, ocorria uma missa ao contrário. Todos os

sacramentos eram realizados de forma inversa, a hóstia era negra e a “bíblia sagrada” era um grande livro negro

da morte. 19 NAVARRO, Gaspar. Disputa XX. P. 138/39. 20 NAVARRO, Gaspar. Disputa XIIII. P. 93.

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do Demônio, o que não significa que os elementos de inversão e binarismo não estão

presentes em sua obra. Lanuza parece preferir se dedicar mais à críticas de como aquela

sociedade havia invertido os ensinamentos de Cristo no seu dia-a-dia e, principalmente,

durante festas sagradas, sendo um dos focos de suas denúncias, a maneira promíscua que as

mulheres estavam se comportando e se vestindo no momento em que ele escrevia. Em um

capítulo dedicado apenas a esse assunto, o autor menciona como a festa da Páscoa foi

corrompida pelo Demônio:

“Poderan tanbién algunos, que en estos bayles se haze burla de la Passión de Christo. Alli

tienden los braços, como Christo en la Cruz. Alli se coronan de flores, como Christo fue

coronado de espinas. Alli salen con vestidos preciosos y profanos, burlando de la desnudez del

Salvador. (…) Y para dezírlo en breve; alli se haze una infame comedia, en oposición de lo

que Christo obró por nuestra salude.”21

Lanuza também nos dá uma oportunidade interessante de vermos um relato em

primeira pessoa de alguém que presenciou um dos vários surtos de possessão demoníaca

feminina que assolavam a Península no período. A partir da segunda metade do século XVI

até o XVII, a região viu surgir não apenas casos de origem demoníaca, mas também arrombos

espirituais ditos de origem divina, cujos objetivos e propostas eram os mais diversos

dependendo dos locais onde tais fenômenos ocorriam22. Em comum, podemos observar na

maioria desses casos um maior protagonismo feminino do que masculino. De acordo com

autores como Caroline Bynum, isso se deve à ideia de que o Homem era vinculado ao

racional, ao espiritual e, portanto ao divino, e a Mulher era relacionada ao corpo, à parte física

da natureza23.

O frei era pároco em Sandiniés, Huesca, e no período de 1637 a 1642 presenciou um

grande surto de possessão demoníaca tanto na sua cidade, quanto na vizinha Tramacastilla,

21 BLASCO Y LA NUZA, Francisco de. Patrocinio de ángeles y combate de demonios. P. 590. 22 MORA, Adelina Sarrión. Beatas Endemoniadas: mujeres heterodoxas ante la inquisición, siglos XVI a XIX.

Madri: Alianza Editorial, 2003. ARROYO, María V. Jordán. Sonhar a História: risco, criatividade e religião

nas profecias de Lucrecia de León. Bauru: EDUSC, 2011. 23 BYNUM, Caroline Walker. Holy Feast and Holy Fast: the religious significance of food to medieval women.

Berkeley: University of California Press, 1987.

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que atingiu pelo menos sessenta e duas mulheres24. Por ser o líder espiritual da região, Lanuza

foi o responsável pelos cuidados e exorcismos de muitas delas, como podemos ver nos relatos

e cartas contidos em sua obra. Partilhando com seus colegas contemporâneos a maior

suscetibilidade das mulheres em praticarem atos de bruxaria, também compartilhava com eles

as diferenças entre um caso de possessão demoníaca e de pacto demoníaco. Os atos de

bruxaria que ali ocorreram não partiram daquelas mulheres, e sim de algum fator externo a

elas. Aquelas eram mulheres puras, vítimas do malefício de um terceiro. Entretanto isso não

tirava delas a sua inferioridade feminina. “Quantas ilusiones reciban deste secreto enemigo,

em especial mugeres, las quales, con mayor facilidade dan credito a estes engaños mentales,

seria erizar los cabelos.”25 Quanto às questões de gênero, é o único dos autores aqui estudados

a citar nominalmente o Malleus Maleficarum, deixando claro a qual corrente teórica pertence.

Esse fato não parece ser uma surpresa, e corrobora com a ideia de que a caça às bruxas se

estruturou e atingiu o seu auge apenas no final do século XVI, tendo suas principais

consequências na Espanha no século XVII.

De modo geral, pôde-se observar que não apenas a natureza feminina, mas também os

comportamentos do cotidiano das mulheres foram duramente repreendidos durante o período

aqui estudado. Desde as suas escolhas pessoas sobre como construir as suas vidas, até

decisões mais ordinárias como qual tipo de roupa e joias usar eram decisivos para a

construção de uma ideia de que a mulher era um perigo constante à ordem divina do mundo.

Ainda, no contexto de Contrarreforma que a Igreja Católica estava atravessando, imposições

de cunho disciplinar se tornaram mais rigorosas e recorrentes. Observa-se também que houve

uma degradação cada vez maior da figura da mulher, indicando que, para a mentalidade

europeia do período, o feminino e a sedução da bruxaria eram entendidas como elementos

congêneres.

Apesar de nenhum dos tratados estudados utilizarem o termo “Sabá”, fica clara a

crença no conjunto de características que compunham esse imaginário. Ao mesmo tempo,

podemos observar a delimitação que os autores fazem entre mulheres puras e impuras. Em

24TAUSIET, María. “La Batalla del Bien y el Mal: ‘Patrocinio de Ángeles y Combate de Demonios’”. Hispania

enero-junio (2009) 125-146. 25 Blasco Lanuza, Capítulo XVI. P. 610.

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todos eles vemos a citação de exemplos de mulheres santas de seus tempos, como por

exemplo, as referências abundantes que os dois tratados mais recentes, os de Gaspar Navarro

e Basco Lanuza, fazem a Teresa de Jesus, muitas vezes em tom de reverência e admiração.

Ainda que a figura feminina seja colocada num lugar claramente inferior ao masculino não

parece haver aqui um ódio à figura da mulher em si, mas sim a repreensão a um

comportamento que era mais tipicamente relacionado à mulher do que ao homem.

Fontes Documentais

BLASCO Y LA NUZA, Francisco de, Patrocinio de ángeles y combate de demonios, Real

Monasterio de San Juan de la Peña: Juan Nogues, 1652.

CASTAÑEGA, Martín de, Tratado de las supersticiones y hechicerías y de la possibilidad y

remedio dellas, Logroño: Miguel de Eguía, 1529.

CIRUELO, Pedro. Reprobación de las supersticiones y hechicerías. Libro muy útile y

necessario a todos los buenos christianos.Medina del Campo, 1530.

NAVARRO, Gaspar. Tribunal de superstición ladina, explorador del saber, astucia, y poder

del demonio; en que se condena lo que suele correr por bueno en hechizos, agüeros,

ensalmos, vanos saludadores, malefi cios, conjuros, arte notoria, cabalista, y paulina y

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