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1 MUDANÇAS NO TRABALHO, MUDANÇAS DE VIDA. ALGUNS PONTOS PARA REFLETIR O DESENVOLVIMENTO RURAL DOS AGRICULTORES INTEGRADOS. Aline Hentz Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS [email protected] Rosa Maria Vieira Medeiros Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS [email protected] Resumo O artigo procura analisar as transformações nas formas de trabalho dos agricultores familiares de São Pedro da Serra/RS, as quais ocorreram a partir da inserção destes no modelo de produção integrada aos complexos agroindustriais, em especial criação de aves e suínos. Busquei relatos dos agricultores para efetuar um diagnóstico a respeito de alguns aspectos da atividade, e analiso sob a perspectiva da racionalidade e da modernização da agricultura, elementos inerentes à expansão do capitalismo num geral, e na contemporaneidade, também no meio rural. Palavras chave: modernização da agricultura, agricultores familiares integrados, desenvolvimento rural. Palavras-chave: Trabalho. Desenvolvimento Rural. Agricultores Integrados. Introdução O tema desenvolvimento rural pode ser considerado sempre atual. O mundo interligado trouxe novas concepções ao rural, no trabalho, na organização, na vida, muitas vezes alterando construções sociais criadas localmente às gerações. O desafio de se analisar como esta realidade necessita perceber que presenciamos uma construção de mundo marcada pela lógica capitalista industrial e financeira. As políticas públicas, as ações das empresas, em especial, as transnacionais, tem ocasionado alterações nas formas de produção agrícola e mesmo na vida e dinâmica social das regiões de atuação. Neste artigo se desenvolverá uma reflexão para contribuição da análise sobre a ação do capitalismo industrial e financeiro, sobre território rural em toda sua diversidade neste país continental. Procurarei realizar uma análise levando em conta a construção de um território relacional, onde múltiplos elementos atuam, essa diversidade de elementos pode trazer enfoques e discussões muito amplas e variadas, por isso esclareço que procurarei focar nas formas de trabalho, e algumas de suas conseqüências na realidade pesquisada.

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MUDANÇAS NO TRABALHO, MUDANÇAS DE VIDA. ALGUNS PONTOS PARA REFLETIR O DESENVOLVIMENTO RURAL DOS

AGRICULTORES INTEGRADOS.

Aline Hentz

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS [email protected]

Rosa Maria Vieira Medeiros

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS [email protected]

Resumo O artigo procura analisar as transformações nas formas de trabalho dos agricultores familiares de São Pedro da Serra/RS, as quais ocorreram a partir da inserção destes no modelo de produção integrada aos complexos agroindustriais, em especial criação de aves e suínos. Busquei relatos dos agricultores para efetuar um diagnóstico a respeito de alguns aspectos da atividade, e analiso sob a perspectiva da racionalidade e da modernização da agricultura, elementos inerentes à expansão do capitalismo num geral, e na contemporaneidade, também no meio rural. Palavras chave: modernização da agricultura, agricultores familiares integrados, desenvolvimento rural. Palavras-chave: Trabalho. Desenvolvimento Rural. Agricultores Integrados.

Introdução

O tema desenvolvimento rural pode ser considerado sempre atual. O mundo interligado

trouxe novas concepções ao rural, no trabalho, na organização, na vida, muitas vezes

alterando construções sociais criadas localmente às gerações. O desafio de se analisar

como esta realidade necessita perceber que presenciamos uma construção de mundo

marcada pela lógica capitalista industrial e financeira. As políticas públicas, as ações das

empresas, em especial, as transnacionais, tem ocasionado alterações nas formas de

produção agrícola e mesmo na vida e dinâmica social das regiões de atuação. Neste

artigo se desenvolverá uma reflexão para contribuição da análise sobre a ação do

capitalismo industrial e financeiro, sobre território rural em toda sua diversidade neste

país continental. Procurarei realizar uma análise levando em conta a construção de um

território relacional, onde múltiplos elementos atuam, essa diversidade de elementos

pode trazer enfoques e discussões muito amplas e variadas, por isso esclareço que

procurarei focar nas formas de trabalho, e algumas de suas conseqüências na realidade

pesquisada.

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Desenvolvimento

Contexto local

A realidade escolhida para este estudo está no meio rural do município de São Pedro da

Serra/RS, onde as relações de trabalho se efetivam tanto na produção como em outros

aspectos da vida das pessoas como na cultura e comércio. As atividades agrícolas tem se

modificado especialmente nos últimos 10 anos devido aos grandes incentivos dos

governos locais para construção de estabelecimentos integrados a complexos

agroindustriais, nos quais o agricultor passa a trabalhar em uma lógica de trabalho

diferente da agricultura tradicional. A atividade integrada refere-se aos estabelecimentos

de criação avícola (frangos de corte, frangos postura de ovos e perus) e de suínos.

No município 1.886 pessoas vivem no meio rural, de um total de 3.315 habitantes (FEE,

2010). Na prefeitura existem 695 talões de produtores rurais registrados, nos quais

geralmente fazem parte ao menos mais uma pessoa, cônjuge ou familiar direto.

Conforme levantamento preliminar da EMATER-RS, neste município predominam as

pequenas propriedades rurais, 384 estabelecimentos, possuem aproximadamente 7,5

hectares onde as famílias praticam a policultura. Já existe a inserção de investidores

externos, capital empresarial investindo em atividades agrícolas, porém no universo

social são ainda pouco expressivas.

A principal forma de retorno orçamentário do município vem das atividades agrícolas,

em especial a criação avícola e suína que passa pelos registros fiscais, gerando retorno

de ICMS. Sabe-se que na agricultura familiar há criação de renda de outras formas, para

consumo próprio ou mesmo negociadas sem registro nos talões de produtores,

ocasionando a falta de dados, e por isso não são contabilizadas para cálculos de índice

de retornos orçamentários do ICMS. Além de rendimentos superiores à maioria dos

outros produtos, a atividade agrícola ligada às agroindústrias possui registro total de

entradas e saídas de recursos e este é um fator de incentivo à criação de políticas

públicas voltadas ao aumento deste tipo de produção.

Agricultor familiar tradicional será compreendido neste texto como aquele que exerce

diversas atividades agrícolas, policultura, onde as atividades e produção

complementam-se entre si. O trabalho não segue necessariamente uma lógica de

maximização de lucros. É importante para eles o trabalho da família e o resultado é

pensado em família, não se constituindo, portanto, em uma empresa onde as relações

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interpessoais não interferem no negócio. Há valores subjetivos no trabalho, desde o

aprendizado das crianças, até distribuição por sexo ou idade de forma a contemplar

antes o bem estar da família e estrutura não racionalmente planejada.

O agricultor integrado, também proprietário de sua terra, trabalha para uma

agroindústria integradora. A agroindústria elabora as técnicas de manejo, traz as opções

de tecnologias existentes, máquinas, sistemas automatizados, fornece o animal jovem,

gerencia a alimentação e trato sanitário, fornece instrução e acompanhamento técnico,

transporta e comercializa o animal pronto para abate, restando ao agricultor o

investimento na construção do estabelecimento de acordo com as normas da

agroindústria, a criação do animal, o manejo até que este adquira o peso para venda.

Modernização: processos e debates

Ao explicitar algumas das conseqüências da modernização agrária, Graziano (1982)

comenta que as agroindústrias vão dominando aos poucos todas as etapas do segmento

produtivo. Os rumos da modernização são ditados pela lógica capitalista de empresas

produtoras de tecnologia agrícola, ainda mais em complexos agroindustriais que se

relacionam com o agricultor pelo meio da integração. Neste modo de produzir a

indústria que abate e comercializa o frango determina a raça a ser criada, o tamanho do

estabelecimento, ração, alimentação e exigências sanitárias. Resta ao agricultor a terra e

o risco da produção. Neste caso o agricultor mantém os meios de produção, porém é

transformado em um trabalhador “quase assalariado” (Graziano, 1982).

Para discutir a modernização do campo, Suzuki (2009) contribui trazendo um panorama

do processo de modernização e tecnificação da agricultura, e neste, o período pós-guerra

é entendido por ele como “a fase mais contundente das transformações na base técnica

da agricultura e de alteração nas relações de trabalho” (p.252). Ou seja, a modernização

da agricultura é um processo que vem ocorrendo ao longo da história da humanidade,

faz parte dela, porém os anos recentes mostraram intensos processos, com a forte

presença da indústria na agricultura, constituindo complexos agroindustriais, os

vínculos vão além de linhas de relações já que suas estruturas se dão em rede, na qual a

cidade é o ponto nodal para as atividades de produção, bem como da circulação dos

produtos.

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Os estudos de Weber contribuem trazendo à discussão o conceito de racionalização. A

racionalização é vista na sociedade como Weber entendia, a partir da tecnificação do

trabalho, a burocratização das relações, padronização da sociedade pelos padrões

ocidentais. Ele fala inclusive de uma racionalização consciente dos costumes e dos

valores, o que interfere em aspectos além do trabalho, ou relações econômicas,

abarcando as relações interpessoais entre os indivíduos. A racionalização é um processo,

e assim capaz de ordenar aquilo que se encontra distribuído aleatoriamente, do “estado

natural” das coisas. Lembra também a noção de ação social racionalmente orientada.

Para Weber havia profunda ligação entre a racionalidade e a evolução do capitalismo.

Racionalidade estava ligada a dinâmica econômica e social capitalista. A combinação

entre a expansão do mercado capitalista e a institucionalização do progresso científico,

proporciona ambiente para evolução da racionalidade.

Ainda a respeito da modernização da agricultura, Argemiro J. Brum nos alerta que entre

as razões para que esta ocorresse encontra-se a

Realização dos interesses do complexo agroindustrial, possibilitando sua implantação, consolidação e avanço no país, dentro da estratégia global de expansão do capital oligopolista internacional (BRUM, 1988, p.63).

Além disso, o autor salienta que, no fundo das ações para a modernização conservadora

da agricultura está a intenção de tornar o agricultor e a agricultura como um sistema

subordinado econômica e politicamente em relação à indústria, estando dentro de um

projeto maior de modernização da indústria brasileira.

Neste contexto foi gerada a noção de desenvolvimento que ainda hoje é motivo de

debate. Dos países industrializados veio a noção de que crescimento econômico seria

sinônimo de desenvolvimento. Este seria absorvido pela sociedade e automaticamente

haveriam melhorias de condições de vida. Esta visão de desenvolvimento tomou forma

no Brasil impondo sua industrialização, padronizando sistemas de produção na

agricultura, homogeneizando hábitos de consumo e tecnologias de produção sem

considerar a preservação de características culturais, regionais e ambientais. Entre as

novas idéias dominantes estavam a visão de necessidade de superação de um suposto

atraso da agricultura familiar, a noção de especialização em contraposição à

polivalência, surgindo um novo tipo de agricultor individualista. Menegetti afirma que:

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A integração da agricultura à agroindústria possui um significado que vai além da questão quantitativa (comprar, produzir e vender mais). Ela traz consigo transformações estruturais profundas (de produção, comercialização e nas relações econômicas e sociais entre agentes dentro das cidades). (MENEGETTI, s/n, p.5)

Hoje o desenvolvimento possui abordagens no sentido de colocar os atores locais, ou de

um determinado território como agentes do desenvolvimento. Muitas vezes o território

mesmo se torna o ator do desenvolvimento ao mostrar suas potencialidades e

especificidades. Uma perspectiva que busca valorizar as construções da sociedade na

configuração do sistema, não somente do capitalismo ao impor sua organização. Os

modelos atuais seguem esta tendência, porém, no território desta pesquisa as relações

fortemente capitalistas se dão à pouco tempo (aproximadamente 10 anos de inserção da

produção integrada), e ainda se sente influencias do modelo de desenvolvimento

pautado na busca por aumentar recursos econômicos e a crença de que isto por si só

gera qualidade de vida e bem estar.

Todas essas afirmações são importantes a construção da análise, percebo na

dinâmica dos fatores racionalidade, modernização e desenvolvimento o que também

pode ser considerado processo intrínseco às transformações no território rural de São

Pedro da Serra.

Análise das formas de trabalho a partir dos depoimentos

Para melhor compreensão do sistema de trabalho, dentre outros aspectos relacionados

foi realizada uma pesquisa, na qual o universo pesquisado foram agricultores que

realizavam a agricultura dos moldes mais tradicionais em relação à técnica e

organização, e que passaram a exercer atividades agrícolas ligadas ao setor dos

chamados complexos agroindustriais no qual o agricultor adere ao sistema integrado.

A pesquisa foi baseada em 10 perguntas, iniciando por informações básicas a respeito da

família como quantidade de membros e a idade dos mesmos, bem como tempo de

atividade. Foi uma pesquisa qualitativa, com seis perguntas que remetiam à relatos e

opiniões e a respeito das formas de trabalho, das vantagens e desvantagens, do olhar do

agricultor sobre esta atividade na sua vida. Foram entrevistadas oito famílias, das quais

responderam pessoas de diversas faixas etárias, entre 26 e 50 anos. As respostas mais

recorrentes foram agrupadas na análise abaixo. Alguns comentários, mesmo que

isolados chamaram atenção, e também foram considerados no estudo.

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Procurei pautar minhas pesquisas e reflexões, em um método dialético. Como cita Dirce

Suertegaray, os “objetos reais e científicos ocupam espaço, relacionam-se entre si e

reproduzem dentro de si as diferentes dimensões da totalidade” (2005, p.26). E ao

compreender esta totalidade, podemos identificar as contradições concretas e as

mediações que constituem a realidade (SUERTEGARAY, 2005, p.26). Embora eu

identifique importância em uma abordagem fenomenológica ao buscar relatos

qualitativos junto aos agricultores, afinal, suas percepções de atores do processo, não

somente coadjuvantes, mas essenciais à estrutura agroindustrial capitalista, são

importantes na perspectiva do espaço construído, há ali representações e espaço vivido.

Porém, na análise dos conceitos procurei dar ênfase a um debate dialético entre as

transformações demonstradas nos relatos e o que a comunidade científica tem entendido

sobre os processos e elementos envolvidos.

Nas propriedades, todas próprias, trabalham pessoas de um núcleo familiar, as

atividades são distribuídas entre os membros capazes e todos vivem da renda obtida na

propriedade, caracterizando agricultura familiar. Trabalham com o sistema integrado há

aproximadamente 10 anos.

Ao falarem das formas de trabalho no sistema integrado os agricultores mencionaram

com ênfase o fato de ser um serviço mais leve em relação à agricultura tradicional.

Considerando-se a baixa mecanização existente entre estes agricultores nos moldes

tradicionais, por isso considerado degradante. É conhecido que o modelo integrado

possui alta mecanização, condições técnicas de manejo racionalmente estabelecidas, as

quais tornam o trabalho do agricultor menos penoso. A racionalidade técnica fica

evidente neste caso, uma vez que a empresa integradora tem interesse de obter o lucro

máximo, a produtividade máxima com o mínimo esforço.

Destaco ainda que, dentro desta lógica da racionalidade de produção da empresa, pode-

se considerar a própria existência do agricultor integrado como um fator de redução de

custos para a agroindústria. Nele a empresa deixa de investir em contratação de mão-de-

obra, não precisa adquirir terras, nem construir as benfeitorias. Ela apenas elabora os

projetos que são executados por agricultores independentes. A inserção no capitalismo

financeiro se dá de forma intensa no momento da construção do estabelecimento, o qual

exige recursos que os produtores não teriam sem o financiamento. Essa situação torna o

agricultor familiar dependente da empresa tanto para prosseguimento da produção como

para pagar o empréstimo.

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A agricultura de molde tradicional, sem possibilidade de mecanização, é vista como

atrasada e fadada a desaparecer. Não é mais possível se sujeitar ao trabalho considerado

por eles degradante e sujeito a perdas de produção. Ali, verifica-se indiretamente um

discurso de que uma agricultura sem racionalidade não mais é mais produtiva e

compensadora. Esse discurso pode ser sintoma da falta de assistência técnica rural, as

quais poderiam trazer novas perspectivas de manejo planejado e racional de uma

propriedade com policulturas, e que somente teve pequenos períodos de incentivo nas

políticas públicas.

Foi comentado o fato de os agricultores estarem livres das intempéries climáticas, que

por muitas vezes frustram as colheitas. Este aspecto também remete à racionalidade da

produção no sentido de que o clima é algo fora de controle, “irracional”, e num mundo

altamente racionalizado, com o capitalismo entranhado em todos os aspectos da

produção, o fato de estarem livres desses imprevistos traz certezas de rendimentos. A

empresa controla racionalmente toda produção, desde a alimentação, o controle

sanitário, o período, o transporte e a comercialização. Tudo extremamente planificado e

nenhum daqueles agentes imprevisíveis e aleatórios poderão interferir neste sistema

racionalizado.

A racionalidade formal se manifesta nas formas de trabalho exigidas aos agricultores.

Eles seguem normas de higiene, quantidades pré-estabelecidas de alimentos,

monitoramento e controle de temperatura ambiente, entre outras. Essas técnicas foram

elaboradas pela agroindústria e os agricultores seguem rigidamente, pois o preço do

animal ao final já está previamente estabelecido em razão destes fatores. Falhando um

desses cuidados o animal mostra diferenças no tamanho e peso, refletindo nos ganhos

do agricultor. Não somente a recompensa final faz os agricultores seguirem rigidamente

as regras, mas o próprio sistema da racionalidade capitalista já domina o imaginário

deles quando respondem que não há mais viabilidade em outra forma de agricultura. Ao

acatarem novas normas de sanidade, ambientais, e ao serem exigidos novos

investimentos, percebemos que pouco a pouco a estrutura formal desse sistema domina

e conforma a vida dessas pessoas reorganizando aspectos além do trabalho, ou seja,

tomando conta do imaginário que possuem a respeito da conjuntura de produção

agrícola.

Apesar dos diversos aspectos positivos levantados na questão do trabalho racionalmente

orientado promovido pelas agroindústrias integradoras, todos mantêm outra atividade

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concomitantemente à integração. Os entrevistados alegam que é necessário aproveitar

todas as formas possíveis de obtenção de renda da propriedade. Na minha interpretação,

mesmo se distanciando do trabalho da agroindústria, esta visão de trabalho nas

atividades tradicionais e de subsistência que seguem realizando na propriedade já

mostra a influência da racionalidade do capitalismo no sentido de aproveitar todos os

recursos possíveis da propriedade. Neste caso, é possível que as técnicas utilizadas

ainda não sejam tão fortemente racionalizadas quanto na agroindústria, porém, já se

encontra imbuído na mentalidade destes agricultores a necessidade de organização para

controle dos aspectos “irracionais”, tentando controlar com o máximo de seu

conhecimento sua produção. Comentam ser importante manter outras atividades para o

caso de imprevistos prejudicarem uma delas, na outra se manter a propriedade

economicamente sustentável por um tempo, evitando perda total. Percebe-se a tentativa

de controle e planejamento de situações que venham a interferir no negócio.

A metade dos agricultores pretende futuramente aumentar ainda mais os investimentos

no sistema integrado e dedicar-se somente à atividade. Quando perguntados sobre as

razões para isso argumentaram que confiam muito na estabilidade da empresa, e que o

retorno esperado se concretizará. Assim se mostra o quanto esses agricultores já estão

plenamente adeptos aos sistemas racionais de produção à ponto de colocarem todo o seu

esforço nisso.

O sistema capitalista atual, mostrando aos agricultores esta nova realidade de controle

da produção, renda garantida, angariou novos adeptos. Quando eventualmente fazem

uma análise de conjuntura maior, esses agricultores consideram como única perspectiva

de atividade, uma vez que toda uma realidade de vida está estruturada de forma

racional. Desta forma a agricultura tradicional, que não pode dar garantias de

produtividade, que depende de oscilações sazonais para seus produtos, que, se não

puderem ser estocados perderão preço e rendimento, depende de rápido transporte

quando perecíveis depende de múltiplos fatores que, exceto casos particulares, ainda

não foram planejados minimamente para uma racionalidade. É preciso citar também,

que, na agricultura familiar tradicional, a escolha da produção nem sempre passa pela

discussão do maior lucro, há fatores como a ocupação da família, entre outros mais

subjetivos do que a simples busca pelo maior rendimento.

Outra situação a respeito do trabalho racional e modernização da agricultura foi

lembrada por uma agricultora que já teve breve experiência no trabalho em uma fábrica

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de calçados. Ela destaca que o trabalho do integrado é semelhante ao trabalhado de uma

fábrica, onde as formas de manejo são estipuladas por alguém “de fora”, criadas para

aumentar ao grau máximo a produtividade e executadas pelos trabalhadores braçais que

recebem de acordo com o resultado demonstrado. Enquanto que na agricultura

tradicional o agricultor tem de planejar sozinho como produzir, quando e com que

recursos, depois, ainda executar e cuidar da venda.

As relações comunitárias já mostram sinais de alteração de sua dinâmica tradicional. Na

comunidade em que todos eram agricultores tradicionais, o tempo era planejado e as

atividades realizadas em comunidade, afinal os cultivos tinham a mesma dinâmica para

todos, os horários das atividades eram semelhantes e a produção podia ser

compartilhada, trocada em vizinhança, ocasionando situações de ajuda em épocas de

colheita. Havia inclusive ocasiões de ociosidade dos trabalhadores por fatores sazonais,

intercolheitas, ou mesmo o frio prolongado que proporcionava tempo para compadrio.

Com a chegada do sistema integrado, estes trabalhadores se dedicam aos cuidados do

estabelecimento de forma diferente. As necessidades de monitoramento da temperatura,

de vistoria das condições ambientais fazem com que a presença do agricultor seja mais

freqüente do que em outra atividade. Dependendo da idade dos animais existem

dinâmicas diferentes, em função disso o “tempo livre” precisa ser planejado. No caso de

um casal ser o proprietário do estabelecimento, em muitas ocasiões não participarão de

eventos, pois é necessário que ao menos uma pessoa esteja monitorando. O tipo de lazer

muda, passando a freqüentar lugares que estejam sempre disponíveis e não mais as

festas com data especial das comunidades.

Uma agricultora mencionou que está observando um maior individualismo, as pessoas

não se relacionam mais como antes, talvez por praticarem atividades diferentes. Ela diz

que as relações interpessoais estão parecidas com a cidade, onde cada um vive para si,

sem saber muito do vizinho, sem fazer amigos ao seu redor como era há alguns anos.

Esses relatos mostram o quanto a ideologia da racionalidade capitalista vem fazendo

alterações em todos os meios. O meio rural que se mostra em transformação apresenta

novas conformações, surgindo também ali os aspectos a da vida burocratizada, em que

as relações se tornam frias, não mais se criam vínculos pela proximidade ou afetividade,

mas pela conveniência.

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Conclusões

Pode se perceber que a empresa transnacional, não somente procura e explora as áreas

conforme seus interesses, mas também deixa marcas nos lugares onde se instala. Sua

forma de trabalho, suas exigências a partir da racionalização e burocratização das

atividades, e sua forte ligação com o capital financeiro trouxeram novas dinâmicas. Se,

por um lado, verifica-se a satisfação do agricultor na atividade integrada, por outro não

podemos deixar de questionar sua alta dependência à empresa. Os modelos de

desenvolvimento voltados para a formação de uma produção com grandes lucros,

voltada aos ideais de renda para consumo fazem-se notar neste território. Os

agricultores sentem-se felizes por poder comprar utilidades, eletrodomésticos, reformar

a casa e dar melhor conforto à família.

O debate sobre desenvolvimento, sobre o que esperar da agricultura, as questões sobre o

que se põe como moderno, e os valores (ou a falta deles) trazidos pelo capitalismo

sinalizam um desafio contemporâneo.

Verifica-se, por outro lado o desapego ao lugar, à comunidade, pois o lazer passa ser

realizado em locais urbanos, que seguem a nova lógica de distribuição no tempo e no

espaço. Relações frias, perda paulatina do que antes era específico do lugar. Ao mesmo

tempo o clima de otimismo gerado pela indústria e todo seu aparato de propaganda e

ufanismo na solidez da grandeza, faz com que os agricultores não percebam a enorme

vulnerabilidade frente ao endividamento que representa os investimentos. As empresas

protegem-se juridicamente, e não terão nenhuma responsabilidade sobre as famílias de

agricultores em caso de crises. Ao perder-se o resto de autonomia, na produção de

subsistência ou de produtos específicos, percebe-se o triunfo das ideologias capitalistas,

vistas como sinônimo de desenvolvimento e modernidade.

Por essas e tantas outras discussões de aspectos relacionados o debate sobre a

agricultura precisa ser tarefa contínua, como contínuo é o fazer da sociedade no espaço.

Referências

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GRAZIANO NETO, Francisco. Questão agrária a ecologia: crítica da moderna agricultura. São Paulo, SP: Editora Brasiliense, 1982. Fundação de Economia e Estatística – FEE. Resumo estatístico do Rio Grande do Sul e Estatística FEE. População por município, situação de domicílio e sexo, 2010 − Rio Grande do Sul. Disponível em: < http://www.fee.tche.br/ >. Acesso em setembro de 2011. http://www.fee.tche.br. Acesso em 15/09/2011. MENEGETTI, Gilmar. Desenvolvimento, Sustentabilidade e Agricultura Familiar. Disponível, [200?] disponível em: http://www.emater.tchê.br.art18.htm. Acesso em 26 de setembro de 2011. PIRES, Élson. L. S.. As lógicas espaciais e territoriais do desenvolvimento: delineamento preliminar dos aspectos históricos, teóricos e metodológicos. In: FERNANDES, Bernardo Mançano et all (orgs). Geografia agrária, teoria e poder. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007. PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PEDRO DA SERRA/RS, 2008 e 2011. Informações disponíveis em http://www.spserra.com.br/web/index.php?menu=Acidade. Acesso em 20/05/2012. SUERTEGARAY, Dirce M. A. Notas sobre Epistemologia da Geografia. Cadernos Geográficos, Florianópolis, nº 12, p. 1-63, Maio-2005. TINOCO, S.T.J. Conceituação de agricultura familiar: uma revisão bibliográfica. 2008. Disponível em http://www.infobibos.com/Artigos/2008_4/AgricFamiliar/index.htm. Acesso em 23/08/2011. WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 4ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, 2009(reimpressão).