mudanças climáticas e os conhecimentos dos povos da floresta · 1 “a descoberta da borracha é...

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Mudanças Climáticas e os conhecimentos dos povos da floresta Erika Mesquita Resumo As alterações climáticas são um fenômeno global experienciado dentro de enquadramentos culturais e naturais diferentes, por isso, com graus de afetação, visibilidade e notoriedade diversos. A Antropologia a partir da Etnografia pode contribuir com um posicionamento fulcral na análise destes fenômenos, afinal está particularmente capacitada para o estudo de processos de conhecimento e saber, percepção, adaptação, resiliência que se têm agudizado com esse fenômeno global. Neste panorama em que as mudanças climáticas estão na pauta do dia, traremos aqui a visão de um dos povos moradores da floresta da região do Juruá sobre os conhecimentos tradicionais e as mudanças climáticas. Introdução A história dos moradores da região do vale do Juruá se dá depois de um longo período de isolamento. A região vem a ser ocupada fundamentalmente em função das drogas do sertão, por volta de 1850, com o advento do extrativismo do látex da seringa (Hevea brasiliensis 1 ), exigido pelo crescimento das demandas da borracha. Nesse período grande parte da Amazônia dinamizará, novamente, sua economia. Na trama do advento do extrativismo do látex, milhares de sertanejos expulsos da seca do Nordeste do Brasil migram para distantes e promissoras áreas de exploração do “ouro branco” que são os seringais acreanos. Nessa corrida na busca por uma vida melhor, nem sempre encontrada, o homem nordestino acabou por colaborar com a contemporânea formação étnica do povo do amazônico desta região. Antes da ocupação da região do alto Juruá pelo boom da borracha, seus habitantes eram essencialmente indígenas. A empresa da borracha trouxe para região mão-de-obra nordestina, principalmente oriundas do Ceará, o que contribui para adensar o Doutora em Antropologia UNICAMP, professora do Instituto Federal do Acre (IFAC) – Campus Cruzeiro do Sul. 1 “A descoberta da borracha é indubitavelmente uma das maiores contribuições indígenas à civilização moderna (...) No período colonial, a indústria da borracha estava monopolizada pelos Omáguas, que ensinaram aos portugueses do Pará o método de preparo. Confeccionavam-se garrafas de borracha, tiras e peças de pano de entrecasca impermeabilizadas para a venda. Por influência indígena, os artigos de borracha adquiriram grande aceitação nas colônias espanholas muito antes que a substância se tornasse conhecida na Europa. No século XVIII, os espanhóis usavam recipientes, ponchos de sapatos de borracha. O gigantesco surto da borracha no século XIX dificilmente teria ocorrido sem a colaboração de índios tribais aculturados da Amazônia. As árvores foram descobertas e sangradas pelos índios. As técnicas básicas de coagulação da borracha foram aprendidas com eles. Essa dependência do saber indígena por parte dos brancos apenas apressou sua exploração desenfreada e destruição” (MÉTRAUX, A. 1997:101-102).

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Mudanças Climáticas e os conhecimentos dos povos da floresta

Erika Mesquita Resumo As alterações climáticas são um fenômeno global experienciado dentro de enquadramentos culturais e naturais diferentes, por isso, com graus de afetação, visibilidade e notoriedade diversos. A Antropologia a partir da Etnografia pode contribuir com um posicionamento fulcral na análise destes fenômenos, afinal está particularmente capacitada para o estudo de processos de conhecimento e saber, percepção, adaptação, resiliência que se têm agudizado com esse fenômeno global. Neste panorama em que as mudanças climáticas estão na pauta do dia, traremos aqui a visão de um dos povos moradores da floresta da região do Juruá sobre os conhecimentos tradicionais e as mudanças climáticas.

Introdução

A história dos moradores da região do vale do Juruá se dá depois de um longo

período de isolamento. A região vem a ser ocupada fundamentalmente em função das

drogas do sertão, por volta de 1850, com o advento do extrativismo do látex da seringa

(Hevea brasiliensis1), exigido pelo crescimento das demandas da borracha. Nesse

período grande parte da Amazônia dinamizará, novamente, sua economia. Na trama do

advento do extrativismo do látex, milhares de sertanejos expulsos da seca do Nordeste

do Brasil migram para distantes e promissoras áreas de exploração do “ouro branco”

que são os seringais acreanos. Nessa corrida na busca por uma vida melhor, nem sempre

encontrada, o homem nordestino acabou por colaborar com a contemporânea formação

étnica do povo do amazônico desta região.

Antes da ocupação da região do alto Juruá pelo boom da borracha, seus habitantes

eram essencialmente indígenas. A empresa da borracha trouxe para região mão-de-obra

nordestina, principalmente oriundas do Ceará, o que contribui para adensar o

Doutora em Antropologia UNICAMP, professora do Instituto Federal do Acre (IFAC) – Campus Cruzeiro do Sul. 1 “A descoberta da borracha é indubitavelmente uma das maiores contribuições indígenas à civilização

moderna (...) No período colonial, a indústria da borracha estava monopolizada pelos Omáguas, que ensinaram aos portugueses do Pará o método de preparo. Confeccionavam-se garrafas de borracha, tiras e peças de pano de entrecasca impermeabilizadas para a venda. Por influência indígena, os artigos de borracha adquiriram grande aceitação nas colônias espanholas muito antes que a substância se tornasse conhecida na Europa. No século XVIII, os espanhóis usavam recipientes, ponchos de sapatos de borracha. O gigantesco surto da borracha no século XIX dificilmente teria ocorrido sem a colaboração de índios tribais aculturados da Amazônia. As árvores foram descobertas e sangradas pelos índios. As técnicas básicas de coagulação da borracha foram aprendidas com eles. Essa dependência do saber indígena por parte dos brancos apenas apressou sua exploração desenfreada e destruição” (MÉTRAUX, A. 1997:101-102).

povoamento da região. Discorre Leandro Tocantins que: “O Acre passou a ser uma

frente pioneira. A natureza, apesar de generosa nas árvores-de-leite, era bárbara,

hostil à vida humana” (TOCANTINS, 1979:153).

Em um primeiro momento havia uma identificação com o significado que essa

nova paisagem aparentemente lhes proporcionaria, de riqueza e fartura, mas após o

cotidiano das agruras e perigos de vida que o trabalho nas estradas de seringas lhes

proporcionava. A incipiente identificação se convertia em temores e saudades de sua

terra natal. Muitos migrantes originários do nordeste se encantaram com as

possibilidades materiais e econômicas, e chegavam aos seringais. E igualmente muitos

retornaram a terra natal devido ao estranhamento da nova realidade e o descompasso da

vida no semi-árido nordestino e na floresta amazônica.

Aventureiros penetravam na densa floresta a procura dos seringais. Os mateiros2

localizavam seringueiras e juntamente com o toqueiro3 abriam as estradas de seringa.

Tomavam posse de uma área da beira do rio até o centro, léguas de terra floresta

adentro, fixando as “colocações4” dos seringueiros. No início do ciclo da borracha, uma

estrada de seringa possuía de cento e cinquenta a cento e oitenta seringueiras, chegando

excepcionalmente até duzentas.

Os homens do sertão do agreste, agora, vivendo no sertão da floresta tiveram que

aprender com os habitantes locais, indígenas e com o comportamento dos animais e das

plantas a viver, no que muitos denominavam por inferno verde. Foi com esse

aprendizado na prática vivendo na floresta que se constituiu esse rico conhecimento

desse povo da floresta.

Lévi-Strauss (1983), em “O Pensamento Selvagem”, observa que as descobertas

do "senso comum", o que identifica-se também como conhecimento tradicional foram

resultado de uma ciência de tipo peculiar. De tipo peculiar porque, em vez de operar

com conceitos abstratos (massa, peso atômico, elemento químico, valência), os povos

2 Mateiro, homem que conhece a mata e com orientação para achar as seringueiras e não se perder na

floresta. 3 O toqueiro é o auxiliar do mateiro. “Quando o mateiro descobre uma seringueira, bate numa

sapopema, ou, se está muito distante, dispara um tiro de rifle. Sinal dado, ecoando nos verdes, vem o toqueiro, abrindo pique na mata (que será a estrada de seringa), até encontrar-se com o mateiro” (TOCANTINS, L.1979:163). 4 Colocações são espaços territoriais onde viviam os seringueiros composto por uma casa, as estradas

de seringa, o tapiri onde se transformava o látex em bola e um pequeno roçado onde plantava-se pouco porque o trabalho com a borracha era mais rendoso ao seringueiro. Geralmente no ápice da borracha plantava essencialmente macaxeira, produto valorizado na região para o fabrico da farinha, da goma para a tapioca e do beiju.

da floresta ou cientistas nativos operam com qualidades sensíveis (quente, frio, azedo,

amargo, venenoso etc.); e porque, em vez de fazer teorias com conceitos (e

experimentos planejados a partir de conceitos), constroem raciocínios utilizando como

componentes objetos da experiência (como quando raciocinamos por analogias e

metáforas).

Os moradores da floresta revelam que detinham o conhecimento dessas

representações relacionadas aos “tempos” apresentada pela natureza local. Esse saber se

deu devido ao acúmulo das percepções dos aspectos naturais como um todo, desde o

comportamento dos animais influindo e/ou vaticinando sobre aspectos climáticos, a

chegada do verão, das friagens, dos repiquetes e do período chuvoso que os

possibilitavam organizar suas atividades anuais, especialmente a agrícola, de acordo

com esse calendário e ritmo climático.

Os moradores da floresta estão acostumados aos tempos que sentem e vivenciam.

Podem-se elencar essas vivências dos tempos compreendida pelos moradores da floresta

pela variação de um dia para outro em determinada situação geográfica com relação ao

tempo meteorológico, e também pelo tempo cíclico, ou seja, o tempo das estações, que é

o tempo que interfere na elaboração do calendário de atividades socioeconômicas. A

sequência de tempos em uma determinada área compõe o clima, que é esse continnum

de tempos meteorológicos e cíclicos5, isto é, o verão ou o inverno amazônicos.

Observar a natureza e sua dinâmica é prática comum entre populações que vivem

nas selvas tropicais, em meio às estações e sazonalidades de rios, estiagens e chuvas,

isto forma a base das maneiras de agir dessas populações perante o que é, ainda mais em

tempos atuais, sua atividade essencial: a agricultura.

Foi necessário ouvir as histórias sobre as características do tempo e do clima nos

dias atuais em correlação com as de tempos anteriores para compreender que sim os

moradores da floresta compreendem que estão vivenciando uma “mudança nos

tempos.” Em Ilhas de História, Sahlins (1990:191) observa que os Maori, para decidir

como agir no futuro, avaliavam o passado e o que estava diante deles, selecionando a

opção mais adequada, e que “(...) isso não significa viver no passado, mas utilizá-lo

como guia, trazendo o passado para o presente e para o futuro”. Essa historicidade

específica também é importante para compreender aspectos relacionados com as

mudanças climáticas na região do Juruá.

5 O clima é constituído por uma série de estados da atmosfera situada em determinado lugar. (KATZ y

LAMMEL in LAMMEL, GOLOUNINOFF Y KATZ (Org.) 2008:28).

Salhins também observa que nenhum evento ou coisa é ou tem movimento na

sociedade humana, exceto pela significação que os homens lhe atribuem. Assim, “um

evento não é somente um acontecimento no mundo”, mas é a relação entre um

acontecimento e um dado sistema simbólico. Apesar de um evento enquanto

acontecimento ter propriedades “objetivas” próprias e razões procedentes de outros

mundos (sistemas), não são essas propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a

sua significação e importância, da forma como é projetada a partir de algum esquema

cultural. Dessa forma, põe-se como questão compreender como é representada e

vivenciada as mudanças climáticas na região do Juruá por seus moradores.

Com esse artigo pode-se trazer exemplos para corroborar com a acertada acepção

de Lévi-Strauss de que: “Talvez descobriremos um dia que a mesma lógica se produz

no pensamento mítico e no pensamento científico, é que o homem pensou sempre do

mesmo modo” (LÉVI-STRAUSS, 1983: 265).

Importância dos “tempos” nos roçados

Assim como muitos indígenas, os ex-seringueiros e ribeirinhos detêm um grande

cuidado com relação ao plantio de todo tipo de agricultura, principalmente do roçado de

macaxeira6, importante alimento para os povos da floresta. A farinha de mandioca,

derivada das roças de macaxeira plantadas na região é importante produto e garantia de

renda para muitas famílias. E o fazer farinha para comer e para vender é uma atividade

constante ao longo do ano, sempre que haja roçados, e por isso a agricultura serve aos

moradores locais como ferramenta para detectar as mudanças nos tempos.

Nota-se que cada casa das áreas de floresta da região do Juruá tem sua rotina no

roçado e com os produtos a serem vendidos em pequenos núcleos urbanos, como a

cidade de Cruzeiro do Sul. Com o fim do ciclo da borracha, muitos trabalhadores

tiveram que migrar sua fonte de renda para a agricultura e a venda de sua produção é

hoje o sustento para muitas famílias de ex-seringueiros desta região.

Antigamente o verão iniciava-se em abril, sendo o mês de agosto o auge do verão,

e época por excelência de plantio. Maria Ferreira da Silva, moradora da Comunidade

Belfort as margens do rio Juruá, observa que “tudo que se quiser plantar se planta no

verão: cebola, couve, horta, melancia, feijão da praia7, é tudo no verão, você não

6 Macaxeira, mandioca e aipim são o mesmo tubérculo: Manihot esculenta Crantz.

7 Feijão plantado na areia do rio, em época de verão, quando as águas baixam e essa faixa de terra fica

rica para plantio de alguns legumes.

planta nada no inverno. No inverno as plantas morrem todas, por causa da chuva se

cria mofo e mata os pés de folha.” Segundo essa população costumava ser em agosto o

melhor momento para colher cana e feijão, e também plantar a maioria dos produtos

agrícolas.

Segundo a população local o plantio está sendo afetado pela mudança no verão e

pelas “chuvas fora de época”. Juscelino Rodrigues de Souza morador da Comunidade

Restauração, no rio Tejo diz que “o verão está demorando mais a chegar e quando

chega, chega forte mesmo e que essas chuvas fora de época não são normais. Tem

gente plantando o feijão de praia e torcendo para que ele não apodreça, porque tem

roça de mandioca que já está apodrecendo.” Luzia Pereira Barros, moradora da

Comunidade Belfort observa “que ainda não começou a fazer o verão mesmo com

aquela friagem e com rio de água morninha, esse ano tá chovendo bastante e fora do

tempo, e está atrasando para começar o verão e com essa chuva não podemos

plantar”. (MESQUITA, 2012).

A experiência da preparação do roçado depende completamente do ciclo das

estações do ano na Amazônia. Porque o roçado deve ser queimado antes das chuvas e

plantado no final do verão. Por isso, a observação das estações é de suma importância.

O início do verão é esperado e o final dele é monitorado com muita atenção, pois é

preciso terminar o trabalho de plantio antes do início das chuvas. Há toda uma ciência

da queima do roçado. Antigamente, abril e maio era a ocasião da derrubada da capoeira

a ser queimada. A queima ocorre durante a estação seca, e em seguida vinha o plantio.

Agora praticamente não existe essa subdivisão entre época sem chuva e chuvosa, que se

tornou praticamente todo o tempo.

O roçado novo (em vez da que é plantada na capoeira8) exige mais trabalho do

agricultor porque o tempo do derrubar até o queimar aumenta, devido ao fato de os paus

estarem mais fortes e verdes: “eles tem que ficar mais secos pra coivarar de uma só

vez”. Quando a mata não é bem queimada por algum fator, geralmente chuva, tem que

se repetir a queima, isto é, “encoivarar o roçado”, juntando o que não queimou e

voltando “a botar fogo novamente”. Mas atualmente, depois que as chuvas passaram a

ser constantes e intensas, “não tem tempo certo”; os paus e galhos que foram

derrubados e brocados para o processo da queima correm o risco de ficar úmidos demais

e assim não pegam mais fogo e todo o trabalho é perdido, não se conseguindo dar

8 Capoeira – floresta que cresce após o abandono, tornando-se uma vegetação secundária e após um

longo período floresta nativa.

continuidade ao processo de plantio. De acordo com Francisco Oliveira da Silva, da

Comunidade Quieto, rio Amônia, “hoje em dia aí que tem que ficar de olho nos tempos

mesmo, com toda a atenção, porque não regula mais, e se não pastorar o tempo mesmo

aí é que tá arruinado mesmo.”

Os agricultores estão percebendo o aumento da quantidade de chuva na região,

principalmente dos eventos denominados temporais, chuvas torrenciais com ventos, que

acabam por encharcar mais a terra e muitas vezes devastar lavouras. Os moradores da

região comentam sobre o aumento da quantidade de chuvas no ano como um todo e os

efeitos disso sobre o trabalho nos roçados. Francisco Epifânio do Nascimento, ex-

seringueiro, morador da vila de Marechal Thaumaturgo, comenta que “(...) hoje eu acho

que tá mais chovendo; antigamente passava mais de mês sem chover e hoje não passa

dez dias, e se chover muito a chuva estraga o legume.”

Como exposto, “os tempos de antigamente tinham regulação” e o que está se

comprovando é que não há mais essa normalidade de um verão e inverno, quer eram

devidamente divididos e esperados. Muito pelo contrário, o que há é anormalidade. Ela

se expressa na insegurança dos agricultores em saberem se já se iniciou o verão e se eles

podem realizar principalmente o plantio em praia. Caso não se tenha iniciado de fato o

verão, que era identificado quando ocorria o último repiquete9, que em dias atuais é

dificilmente identificado com regularidade como outrora, perde-se o todo trabalho e as

sementes. A menção a esse fato é que agora é preciso enterrar bem as sementes remete a

um pequeno período de verão, mas extremamente mais forte que outrora. O senhor José

Carlos de Oliveira da Comunidade Campinas observa: “Antigamente se podia ir ao

meio do tabocal e da capoeira fina mesmo e jogar as sementes de feijão, hoje não dá

não, tem que plantar mesmo porque o sol tá muito forte, tá baixando, né, e derrota a

semente ela não nasce, a gente perde muito assim, agora tudo é bem diferente mesmo,

tem coisa que eu fazia que não dá para fazer mais”.

O agricultor Raimundo Rodrigues de Lima, morador das margens do rio Juruá,

também faz suas observações sobre comportamento das plantas cultivadas com as

mudanças dos tempos: “A manga flora nessa época de agosto pra dar fruto no inverno

e ela sustentava; hoje de tanto sol, ele queima e vem a chuva e acaba de derrotar, as

9 Alagação ou cheia do rio que baixava logo, esse fenômeno costumava ser o aviso aos moradores

locais que o verão estava próximo e já se podia plantar nas praias. Atualmente esse fenômeno ocorre várias vezes não marcando mais o inicio do verão, como antes.

mangas caem todinhas. Antigamente se plantava a melancia e dava o verão todinho,

hoje dá uma vez e não dá mais, a quentura é monstra.”

Para os ex-seringueiros "mudanças nos tempos" é o que equivale dizer mudanças

climáticas. A maioria deles percebe alguma mudança nas características do inverno e do

verão. Principalmente as pessoas idosas, que acompanharam em suas histórias de vida

essa modificação, e que narram, com autoridade, suas observações e experiências,

referentes ao que denominam por quentura e, como já dito muita quantidade de chuvas.

Quentura é a sensação de que o sol do verão Amazônico queima mais a Terra, portanto,

todas as coisas. Para alguns moradores, “as mudanças nos tempos e essa quentura”,

sentida atualmente, foram se acentuando com o fim do período da borracha na região

com o aumento do cultivo agrícola e da criação de gado. Observam que na época em

que a borracha era valorizada, a área de plantio era bem pequena e não havia criação de

gado. É nítido que o desmatamento vem crescendo e influenciando no regime de

chuvas, desde logo, nos “tempos” da região. Os ex-seringueiros entendem que em não

havendo produção da borracha, tem-se a agricultura, e por fim a criação de gado, que

veio também se tornando uma das causas das “mudanças nos tempos e razão dessa

quentura” por causa da derrubada da floresta. Eles atribuem as mudanças nos tempos

ao agente humano que não é “respeitador da vida”, e que de forma gananciosa

desmatam a floresta10

.

Já para outros ex-seringueiros o que existe é uma crise de amplitude cósmica, e a

quentura é o fato que confirma essa hipótese. Nessa acepção, esse fenômeno vem

ocorrendo porque o sol está mais próximo da Terra. Para muitos dos moradores – que

vem notando essa quentura – o sol não está mais no seu prumo, e por isso vem se dando

as mudanças nos tempos ou mudanças climáticas. Essas mudanças foram vaticinadas

pelo Irmão José – beato considerado Santo – que passou pela região fazendo pregações,

e que segundo muitos moradores, “fazendo milagres e dizendo coisas que hoje nós

estamos vendo nos dias de hoje”. Nessas pregações, ocorridas na década de 60, o beato

mencionava essas transformações nos tempos. Algumas estão sendo sentidas nos dias

atuais, como por exemplo, a diminuição de águas que brotam do subsolo, utilizadas

como água para beber, diminuição das friagens, aumento das tempestades e dos tempos

de verão forte. E é devido a quentura e a ausência de friagem no verão em que as folhas

10

Mesquita, E. Ex-rubber tappers and small-farmers views of weather changes in the Amazon Erika Mesquita, in UNESCO, World Social Science Report. Changing Global Environments. Electronically accessed in http://unesdoc.unesco.org/images/0022/002233/223388e.pdf, January, 2014.

das árvores ficam murchas e provoca, o que a população local denomina de “tristeza

nas matas”. Outro fenômeno presente na região é o que se denomina por “fumaça ou

véu no céu”. Fenômeno este que ocorre tanto de dia, quanto a noite. Essa fumaça11

apaga o brilho das estrelas e acaba por encobrir uma das maneiras que algumas pessoas

têm de prever o tempo, porque tanto a coloração do sol, como a posição das estrelas são

instrumentos para tal. Essa fumaça ou véu dificulta a observação e provoca erro nos

prognósticos e geralmente significa trabalho perdido, pois é através da verificação do

posicionamento das estrelas no céu noturno que os agricultores sabiam como iria ser o

dia seguinte e assim, escolhiam a atividade a ser realizada. Hoje como não conseguem

pensar conjuntamente com a natureza em que irá trabalhar no dia seguinte, acaba por

escolher uma atividade que não é propícia e assim sendo saem sem o produto da

atividade e perdem o dia de trabalho. Por exemplo: antigamente era comum os ex-

seringueiros preverem nas estrelas a chegada de cardume de peixes no rio, momento

ideal para a pesca, então no dia seguinte iriam pescar e não trabalhavam na agricultura.

Hoje como não conseguem mais prever esses fenômenos a quantidade de peixes

pescada para sua alimentação é menor, porque acabam perdendo a ciência da busca do

peixe mostrada pelo céu noturno12

. Além dessa fumaça, a posição dos astros no

firmamento – diferente da que eles antes ocupavam –, apresenta-se para essa população

como fatos reais das mudanças no clima da região. Para os ex-seringueiros estas

mudanças são interpretadas num quadro da escatologia cristã em que a Terra irá acabar,

só que dessa vez não mais com água, - como no dilúvio -, mas com fogo, logo, com o

calor do sol, ou seja, em decorrência dessa quentura.

Os ex-seringueiros e as “mudanças nos tempos”

A transformação nas percepções dos moradores da região está balizada no

contraste entre o “tempo antigo” da realidade das florestas e dos seringais e o “tempo de

hoje”. Atualmente marcado pela agricultura e pelo modo de vida ribeirinho, muitas

vezes mais urbanizado. A maioria dos moradores da região trabalha prioritariamente na

atividade agrícola. Assim, é dada pelos moradores da floresta uma atenção na relação

íntima entre a agricultura e a percepção dos ciclos temporais. Trata-se de

“experiências”, que se descreve como princípios empíricos para formar prognósticos, e

11

A fumaça é proveniente do aumento das queimadas, tanto locais quanto as que ocorrem em outros lugares e que são carregadas para a região devido a ação dos ventos. 12

Esse conhecimento foi aprendido dos indígenas que vivem na região.

o papel importante dos “animais professores” que ensinam aos humanos seus

conhecimentos sobre os ritmos da natureza.

Os habitantes da floresta têm conhecimento com “os tempos”. Isso se dá através

da dinâmica dos rios, das nuvens, do sol, da lua, dentre outros, dentro das estações

amazônicas: verão (período seco) e inverno (período chuvoso). E mesmo com todo um

saber, avaliam que não tem mais “conhecimento com o tempo”, devido as mudanças

climáticas por eles percebidas.

Atualmente as mudanças no clima são algo diferente do normal, considerados

fenômenos incomuns e que interferem diretamente nas atividades cotidianas, como a

preparação e o cultivo do roçado, a caça, a pesca e na vida dos ex-seringueiros,

ribeirinhos e agricultores moradores da região do Juruá. Os moradores vêm percebendo

e dizendo que o clima tem se alterado muito, aspecto determinante do calendário

agrícola da região. O que será exposto a seguir são as nuances dessas mudanças

climáticas, sendo que de acordo com esses moradores essas transformações vêm sendo

percebidas e têm acontecido com mais velocidade nos últimos anos. Antigamente,

dizem eles, a estação das chuvas se distinguia claramente da estação das secas. Sabe-se

que essa área da floresta amazônica se distingue pela existência de duas estações: a seca

ou verão e a chuvosa ou inverno. O ano era então dividido da seguinte maneira: o

período das chuvas ou inverno, que se estendia de outubro até abril, marcado pelas

primeiras chuvas entre final de setembro e meados de outubro; e o verão, que começava

com as primeiras friagens em final de abril, indo até o início de agosto, época em que

“chegava a força do verão” e que ia diminuindo e se encaminhando para o período de

inverno que ocorria em meados de setembro. Ciclo este que se repetia com certa

normalidade ano após ano, o que facilitava a execução das atividades realizadas pelos

habitantes da floresta.

Nota-se que essa anormalidade vem sendo recorrente desde a distinta seca de

2005, que atingiu algumas partes da região Amazônica. A normalidade constitui em

obter chuva e sol em quantidades desejadas e sua alternância em períodos pré-

determinados, conhecidos e aguardados para a agricultura, para que tanto os indígenas

como os ribeirinhos e ex-seringueiros, muitos atualmente pequenos agricultores, possam

efetuar seus trabalhos garantindo o alimento dos seus e a provisão de renda para a

família. Da percepção dessa normalidade vem a constatação das transformações

climáticas. Portanto, o ciclo ordenado do clima é essencial para a economia local, e

essencial para a vida dos agricultores da região. Os discursos narrativos expressam os

conhecimentos naturais e climáticos, dentre outros, e demonstram a modificação e as

mudanças nesses sistemas como um todo, resvalando no cotidiano dos moradores da

floresta desta região.

Muitos moradores da floresta comentam que desde 2005 não foi mais possível

falar em estação seca, pois chove praticamente o ano todo, inclusive nos meses que

outrora ocorria o auge desta estação, conhecida também por período “da estiagem”. As

friagens que marcavam o início do verão não existem mais, os ventos estão modificados

e chove muito mais do que antes entre os meses de maio e setembro, período que

outrora era o verão. E essas transformações no clima da região vêm afetando a produção

agrícola, logo, o mundo da vida das populações da floresta.

Os animais professores

Esses conhecimentos com relação aos animais são comuns e inserem-se em uma

visão de saberes indissociáveis das vidas dos moradores da floresta. Nessa cosmologia

local é comum a utilização de métodos para “adivinhar” devires do tempo. Cosmologia

da qual faz parte, além dos astros, os bichos, que denomino por animais professores. Os

comportamentos dos animais são os mais citados com relação às previsões do tempo, a

curto e médio prazo. Os moradores da floresta acumularam esse tipo de conhecimento

advindo de sua vida prática na mata. Os ex-seringueiros relatam que os animais

sofreram também transformações em seus comportamentos em decorrência da atual

“desarrumação dos tempos”. Dos tempos áureos da seringa para os atuais, segundo os

moradores locais, os bichos que “tinham ciência”, ou seja, um determinado

conhecimento da previsão do tempo a curto e médio prazo, estão se enganando. Fato

esse que não ocorria antes da atual mudança no verão e inverno. As transformações nos

tempos de modo geral vêm afetando também o conhecimento dos bichos. E eles, sem

referencia, não avisam mais os homens sobre os tempos, e como dizem na região “estão

tendo que aprender tudo de novo, igual todo mundo, porque os tempos estão mudados e

não regula mais o aviso dos bichos, coitadinhos”.

Os animais também são testemunhas da mudança nos tempos na região. Alguns

animais perderam sua função de signos por que suas ações deixaram de se repetir. A

razão para isso são “as mudanças nos tempos”. Os moradores da floresta atribuem

ethos e socialidade a certos animais, em que muitos animais são entendidos como gente,

porque para os ex-seringueiros agem de forma igual. Dizem que os animais, “são como

a gente mesmo, conversa, briga, tem família, caça, tudo igual”. Os moradores da

floresta relatam que aprenderam a linguagem dos bichos da mata. Alguns têm

conhecimento da linguagem dos macacos, outros de sapos, outros ainda de pássaros, e

relatam que esses animais são professores, porque outrora sabiam sobre os tempos e

hoje, até eles estão enganados.

A adivinhação e os prognósticos são formas de interpretar e definir a ordem da

causalidade em relação aos elementos do clima, dentro de um sistema de classificações

sociocosmológicas, cuja ordenação determina as relações sociais.

Esse conhecimento fino dos povos da floresta comprova a existência das

mudanças nos tempos ou mudanças climáticas na região do alto Juruá. Mudança essa

que está sendo sentida com a lida na roça, onde os produtos do roçado saem menores

devido a quentura, na mudança no regime das chuvas e nas características do verão e do

inverno, na presença de um véu no céu, dificultando a interação com os astros e na

confusão dos animais professores na previsão de inverno e verão, chuva e sol.

De uma interação íntima e prática com a natureza em que vivem os moradores da

floresta observam, fazem relações e, em meio a transformações, tentam entendê-las a

partir de suas visões de mundo. Por fim, pretendeu-se demonstrar a sofisticação dos

pensamentos, das percepções e das análises de moradores da floresta com relação às

mudanças climáticas. Logo, se observa que os moradores da floresta também

contribuem, e muito, com sua ciência nativa, para os debates atuais sobre as

transformações no clima, resta ao mundo ouvi-los.

Bibliografia

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o Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações, São Paulo, Companhia das

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LÉVI-STRAUSS, C. O Pensamento Selvagem, Campinas/ São Paulo. Papirus Editora/

Companhia Editora Nacional, 1983.

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