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Mudança do papel do Estado e o advento das Agências Reguladoras

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Mudança do papel do Estado e o advento das Agências Reguladoras

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AGRADECIMENTOS

Nossos sinceros agradecimentos a todas as pessoas que fizeram parte da criação e da história da Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE) e da Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp). A colaboração de todos os funcionários, colaboradores e diretores foi fundamental para que alcançássemos 20 anos de regulação no estado de São Paulo.

Registramos um agradecimento especial àqueles que se dispuseram a relatar suas experiências, memórias e percepções, pois a partir dessas falas foi possível traçar um pouco da história da CSPE e da Arsesp, são eles: Aderbal Penteado, Fernanda Meirelles, Guacira Guiraldini, Marcos Gouvêa e Samira Bevilaqua.

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APRESENTAÇÃO

Um dos maiores desafios de toda agência reguladora é estimular a participação popular e o controle social ao longo de todo o processo decisório. Como destinatários dos serviços de utilidade pública, usuários e consumidores devem estar no centro da atividade regulatória, da definição de regulamentos e normas até a avaliação da qualidade dos serviços prestados. Nesse sentido, o aperfeiçoamento institucional das agências passa necessariamente pela democratização de suas estruturas.

Para tanto, é preciso garantir o acesso aos conhecimentos técnicos, legais e políticos que envolvem a regulação. Na complexa relação entre usuários, poderes concedentes e concessionárias, o primeiro passo para assegurar o equilíbrio de interesses muitas vezes divergentes é combater a assimetria de informações.

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Por isso, ao longo de seus dez anos de atuação, a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) sempre se preocupou em estabelecer uma relação próxima com os usuários de serviços públicos regulados. Essa preocupação parte do pressuposto de que as funções de uma agência reguladora (instituição recente na história do país) são ainda pouco conhecidas pela população em geral, e somente com a divulgação de suas atribuições e objetivos é possível criar uma relação de confiança entre usuários, o órgão regulador e concessionárias.

Nas páginas que seguem, contamos um pouco da história da Arsesp – resgatando também a atuação de sua predecessora, a Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE) –, introduzimos o leitor às principais atribuições da autarquia e refletimos sobre a regulação dos serviços de energia elétrica, gás canalizado e saneamento básico, assinalando os desafios enfrentados e apontando para o futuro.

A cada capítulo, um diretor da agência é convidado a introduzir o artigo de um especialista. Tal organização visa proporcionar ao público um panorama, o mais amplo possível, da regulação como um todo e da Arsesp em particular. Integrando a visão interna dos profissionais que trabalham no dia a dia da instituição e a visão externa de pesquisadores com vasto conhecimento e histórico de atuação na área, acreditamos ter alcançado com este livro nosso principal objetivo: informar não apenas profissionais, mas também interessados em geral no trabalho das agências regulatórias.

Os dez anos de Arsesp não poderiam passar em branco. Para comemorá-los, nada melhor que compartilhar conhecimento. Com o ideal de que todos os atores do processo regulatório tenham direito ao protagonismo, reafirmamos nossa missão: assegurar a adequada prestação dos serviços concedidos e garantir o equilíbrio entre usuários, empresas concessionárias e poder público. Esperamos que este livro não apenas registre, mas também contribua com nossa trajetória.

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Apresentação

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SUMÁRIO 6 Introdução

6 As agências reguladoras no Brasil e no mundo

7 Histórico

7 10 de anos de Arsesp

10 Evolução do logotipo

11 Linha do tempo

12 Capítulo 1 - A Regulação sob a Perspectiva do usuário dos serviços públicos

13 Introdução | Paulo Góes

17 Agências reguladoras e proteção do consumidor | Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer

30 Capítulo 2 - Regulação Tarifária

31 Introdução | José Bonifácio de Souza Amaral Filho

34 Regulação Tarifária | Joisa Dutra

44 Capítulo 3 - Regulação dos serviços de energia elétrica

45 Introdução | Marcos Peres Barros

48 A regulação no setor elétrico brasileiro | José Mário Miranda Abdo

62 Capítulo 4 - Regulação dos serviços de gás canalizado

63 Introdução | Paula Campos

66 RegulaçãodosetordegásnaturalnoBrasil:gêneseedesafios|Ieda Gomes

79 Capítulo 5 - Regulação dos Serviços de Saneamento Básico

80 Introdução | Hélio Luiz Castro

82 Regulação no setor de água e esgoto | Lucas Navarro Prado e Denis Austin Gamell

106 Anexo - Diretoria da Arsesp ao longo dos 20 anos de história

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mais rapidamente. Nos Estados Unidos, por exemplo, a origem das agências independentes remonta ao final do século XIX, a partir da necessidade de regulação do transporte interestadual. Entre 1930 e 1945, com a política do New Deal, as agências reguladoras norte-americanas alcançariam seu auge, em um contexto completamente diverso ao do segundo “boom” da regulação, no já citado período de implementação de políticas neoliberais. Em comum a esses três momentos, pode-se citar a necessidade de corrigir possíveis falhas de mercado em épocas marcadas por grandes transformações. Primeiro no século XIX, com a urgência de intervenção estatal em um setor específico da economia, central para o desenvolvimento do país; depois com Roosevelt, na mudança de perfil do Estado para vencer a Crise de 1929; por fim, nas últimas décadas do século XX, como garantia de controle no radical processo de desestatização. A história das agências reguladoras, portanto, acompanha a história das inovações institucionais em períodos críticos, de amplas reformas.

Diante de complexas relações de força, a intervenção regulatória busca garantir o equilíbrio de interesses, desenvolvendo mecanismos que assegurem, de um lado, o bom funcionamento dos serviços públicos e, de outro, a viabilidade econômico-financeira das empresas concessionárias, a fim de que o crescimento econômico e a expansão da cobertura dos serviços se deem de modo sustentável. A tarefa é árdua, e os desafios, numerosos. Como garantir, por exemplo, a participação de todos os atores – sobretudo usuários e consumidores – no processo decisório?

Como parte da história brevemente esboçada nesta introdução, em seus dez anos de atividade a Arsesp tem buscado responder a esses desafios de modo equânime, reafirmando a tradição de autonomia administrativa, orçamentária, financeira e decisória das agências reguladoras. O balanço é positivo, como demonstram as pesquisas de satisfação com usuários. Ainda há, no entanto, muito trabalho a ser feito. A expectativa é que, ao estimular cada vez mais a qualidade das concessionárias, haja uma expansão ainda maior dos serviços de energia elétrica, saneamento básico e gás canalizado nos próximos dez anos.

Aguardemos, então, os próximos capítulos da história da Arsesp e das agências reguladoras…

As agências reguladoras no Brasil e no mundo

AAs agências reguladoras brasileiras surgem na década de 1990 para responder às novas demandas geradas por amplas mudanças no perfil do Estado. Em convergência com outros países do mundo, que desde a década de 1980 buscavam redefinir a gestão pública, diminuindo a intervenção estatal em diversos setores, empreendeu-se no Brasil um abrangente processo de desestatização, com medidas governamentais orientadas à privatização da infraestrutura e concessão de serviços públicos. Alinhadas ao movimento da Nova Gestão Pública, as mudanças visavam substituir o papel centralizador do Estado na execução e prestação de serviços públicos, reforçando, por outro lado, a função reguladora da máquina governamental. Nesse contexto, é estabelecido em 1995 o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, que prevê a criação de “agências autônomas” para fiscalizar e garantir a qualidade dos serviços concedidos.

A partir do Plano e da Lei das Concessões (Lei 8.987/95), são fundadas as primeiras agências reguladoras do país: Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Agência Nacional do Petróleo (ANP), entre outras. No mesmo período, compartilhando dos objetivos e modelos de organização dessas agências nacionais, surgem autarquias incumbidas de regular, controlar e fiscalizar a prestação de serviços também em âmbito estadual. Em São Paulo, por meio da Lei Complementar 833/97, é criada a Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE), que em 2007 daria lugar à Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp).

Embora recentes no Brasil, as agências reguladoras despontaram desde cedo em países onde a economia de mercado se estabeleceu

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Introdução

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P10 de anos de Arsesp

Para falar dos dez anos de Arsesp é preciso voltar a 1997, quando a Lei Complementar 833 criou a Comissão de Serviços Público de Energia (CSPE), autarquia que daria origem à Arsesp. Vinculada à Secretaria de Estado de Energia, a CSPE tinha por finalidade regular os serviços públicos de energia elétrica e gás canalizado.

Na área de energia elétrica, a CSPE fiscalizava o cumprimento, por parte das empresas concessionárias, dos requisitos regulatórios previstos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Já na área de gás canalizado, a própria Comissão tinha autonomia não apenas para fiscalizar, mas também para regular regras, portarias, resoluções e indicadores de qualidade.

Na experiência da CSPE foram cruciais os convênios firmados com universidades (USP, Unicamp, Unifei e Universidade Federal de Itajubá), como forma de atrair pesquisadores/consultores para ajudar a criar e desenvolver a autarquia.

Com a promulgação em 2007 da Lei Federal 11.445, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, era preciso que os estados se adaptassem ao novo contexto. A lei estipula uma série de requisitos para se ter acesso aos recursos financeiros federais. Exigia-se, por exemplo, a implantação de um órgão regulador para controlar e fiscalizar as empresas operadoras dos serviços públicos.

É esse o marco jurídico que motiva a criação da Arsesp, autarquia que, além de herdar as atribuições da CSPE na área de energia elétrica e gás canalizado, passa também a fiscalizar o saneamento. Caracterizada como órgão de Estado e não de governo, com independência administrativa, orçamentária e financeira para regular, controlar e fiscalizar empresas concessionárias, a Arsesp surge dos dez anos

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Histórico

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de experiência da CSPE, empreendendo a transição institucional necessária em um momento de modernização das políticas para o setor de saneamento básico.

Universalização, transparência e participação

Já presentes na experiência da CSPE, os ideais de universalização, transparência e participação estão no cerne das atividades da Arsesp desde sua fundação. A Lei 1.025/07, que regulamenta a criação da autarquia, prevê amplo acesso popular à informação, participação efetiva da sociedade civil organizada e constante aperfeiçoamento e expansão dos serviços públicos regulados.

No que se refere à universalização, a Arsesp tem reiterado como meta o estímulo permanente à ampliação dos serviços, sobretudo na área de saneamento básico. Um aspecto importante para vencer esse desafio é o equilíbrio tarifário, visto que a expansão da malha de distribuição depende da saúde econômico-financeira das empresas concessionárias, ao mesmo tempo em que a modicidade da tarifa deve ser assegurada aos consumidores. Além da regulação tarifária, mecanismos como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que prevê a reversão de multas a empresas em investimentos na

área de infraestrutura, também contribuem para os propósitos de ampliação e aperfeiçoamento dos serviços.

Quanto à transparência, desde sua criação a Arsesp tem prezado a ampla divulgação de todo processo regulatório, com publicações de atos na internet, consultas e audiências públicas, avaliação dos planos e diretrizes das empresas e difusão de cartilhas educativas com direitos e deveres dos usuários, explicados de forma acessível a qualquer interessado.

Em 2015, foi iniciado o Projeto Transparência e Participação, que visa aperfeiçoar a comunicação e articulação da agência com a sociedade. Utilizando como referência a Lei de Acesso à Informação – materialização jurídica dos anseios da sociedade civil por mais transparência –, o projeto traçou um diagnóstico dos principais pontos a serem aprimorados, delineando, então, um plano de ações que contou com iniciativas como o Aplicativo Arsesp. Acessível em tablets ou celulares, o aplicativo é uma plataforma em que o consumidor pode registrar sua reclamação sobre os serviços de saneamento, gás canalizado ou energia elétrica, enviando fotos e consultando o andamento da solicitação. No app também estão disponíveis os principais direitos e deveres dos consumidores.

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10 de anos de ArsespHistórico

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Outro fruto do projeto, a criação da página “Acesso à informação”, no site oficial da Arsesp, trouxe ao público importante material, composto por dados e documentos de interesse coletivo.

A transparência é essencial para a participação da sociedade, pois consumidores e usuários bem informados têm mais condições de intervir nas diversas etapas do processo de tomada de decisões. Uma importante ferramenta de participação, instituída pela Lei 1.025, são os Conselhos de Orientação de Energia e de Saneamento Básico da Arsesp, órgãos de participação da sociedade que se manifestam por meio de deliberações (decisões sobre procedimentos submetidos a aprovação) e recomendações (declarações do conselho quanto a condutas e práticas da agência). Os conselhos também deliberam sobre o programa plurianual, a proposta orçamentária e a prestação de contas da Arsesp.

Para além da representatividade dos conselhos de orientação, a Arsesp conta com uma série de ferramentas de participação social: consultas e audiências públicas, pesquisas de satisfação, prestação de contas ao poder concedente e canais como o Serviço de Atendimento ao Usuário e a Ouvidoria.

Em 2017, considerando o potencial da produção de biometano no estado de São Paulo, a Arsesp aprovou, através de consulta pública, a regulação do biocombustível para distribuição na rede de

gás natural. Trata-se de uma diretriz da agência que visa ampliar a participação de energias renováveis na matriz energética do estado. Além disso, os usuários terão à disposição um combustível renovável de preço estável, uma vez que não é afetado por oscilações no câmbio e pela variação do preço internacional. Vale lembrar que o biometano produzido deverá seguir as especificações da Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP).

Perspectivas para o futuro

O balanço dos dez primeiros anos de Arsesp é positivo, mas não há tempo para descanso: a alta dinamicidade das relações que envolvem a atividade regulatória exige trabalho contínuo. Para os próximos anos, a agência espera desenvolver ainda mais seus recursos humanos e técnicos, reiterando o ideal de excelência da instituição. Iniciativas como o aperfeiçoamento da análise de dados e o investimento na formação continuada de seus profissionais para responder a novos desafios estão no horizonte da Arsesp.

Nesse processo de evolução institucional, as iniciativas em prol da transparência e participação social serão não apenas mantidas, mas também aprofundadas, com base na premissa de que a igualdade no acesso à informação e o engajamento do consumidor no processo regulatório são condições fundamentais para a qualidade dos serviços de utilidade pública.

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10 de anos de ArsespHistórico

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Evolução do logotipo

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10 de anos de ArsespHistórico

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Linha do tempo

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A REGULAÇÃO SOB A PERSPECTIVA DO USUÁRIO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

Capítulo 1

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M

IntroduçãoPaulo Góes1

A relação entre os usuários dos serviços públicos e a regulação

Mais de duas décadas após a grande transformação pela qual passou o Estado brasileiro, com a redução de seu protagonismo tipicamente empresarial e o fortalecimento de seu papel gerencial e indutor, pode-se dizer que tem se consolidado no Brasil o entendimento acerca da importância da regulação para o desenvolvimento econômico e social do país2.

É consenso que a universalização do acesso a serviços públicos, a modicidade tarifária e a qualidade dos serviços prestados à população – propósitos da aludida transformação – não podem ser alcançados sem marcos regulatórios claros e objetivos e sem a presença do ente responsável por regular

1 Advogado formado pela Universidade Paulista (Unip), servidor de carreira da Fundação Procon (SP) desde 1992, entidade na qual ocupou diversos cargos, inclusive o de Diretor Executivo, entre 2011 e 2014. Foi membro do Conselho de Orientação e Energia (COE) da Arsesp de 2011 a 2014. Atuou na Secretaria da Casa Civil do Governo do Estado de São Paulo como assessor especial do governador de julho 2014 a 2015. É o atual Diretor de Relações Institucionais na Arsesp, função que exerce desde julho de 2015.

2 As agências reguladoras, na literatura sobre o tema, constituem-se em uma das expressões mais destacadas do processo de reformas dos anos 1990, emergindo como resultado das tranformações decorrentes do Estado “provedor” de serviços públicos para um pautado no modelo regulador dos “agentes econômicos”. Não à toa que, pela reforma administrativa implementada pela Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, buscou-se diminuir o aparato administrativo visando aumentar a sua capacidade de implementar, de forma eficiente, políticas públicas. Nesse sentido, uma das alterações visadas pela reforma foi a descentralização da estrutura organizacional do aparelho do Estado através da criação de novos formatos organizacionais, como as agências executivas, regulatórias e as organizações sociais.

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IntroduçãoCapítulo 1

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e fiscalizar determinadas atividades, muitas das quais outrora exercidas pelo próprio Estado.

Assim, o papel do Estado, enquanto regulador, implica no abandono de um perfil autoritário em favor de maior interlocução com a sociedade, assegurando a estabilidade das regras e o respeito a elas por todos os envolvidos nesse processo. Mas isso não é tudo, exige-se dele, ainda, a função de equalizador, de mediador e de árbitro para equilibrar e zelar pelos legítimos interesses econômicos e sociais.

É com esse intuito, portanto, que a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) foi criada. Com a promulgação da Lei Complementar nº 1.025, de 7 de dezembro de 2007, a Comissão de Serviços Púbicos de Energia (CSPE) foi transformada na atual estrutura regulatória dos serviços públicos de saneamento, energia elétrica e de gás canalizado, reduzindo os custos da máquina pública, e, principalmente, absorvendo toda a cultura regulatória obtida nos quase dez anos3 de experiência da extinta CSPE.

Nesse sentido, não é demais lembrar que a CSPE é marcada por ações pioneiras na sua relação com os usuários dos serviços públicos supracitados. Cite-se, por exemplo, a criação da sua Ouvidoria4 logo no primeiro ano de sua atuação, antes mesmo da publicação da Lei Estadual nº 10.294, de 20 de abril de 1999, que dispõe sobre a proteção e defesa do usuário do serviço público do Estado, e estabelece a obrigatoriedade de implantação de ouvidoria em todos os órgãos e entidades prestadores de serviços públicos no estado de São Paulo. Além disso, foi adotada a pesquisa de satisfação junto aos usuários dos serviços públicos, como forma de aprimorar a qualidade da regulação. Todas essas experiências certamente norteiam até hoje o trabalho desenvolvido pela Arsesp.

3 A CSPE foi criada pela Lei Complementar nº 833, de 17 de outubro de 1997.4 A Ouvidoria da CSPE equivale ao Serviço de Atendimento aos Usuários da Arsesp, cujo

principal objetivo consiste em oferecer aos usuários dos serviços públicos um suporte para o registro de reclamações, quando encontram-se esgotadas as oportunidades de entendimento direto entre usuário e prestador, esclarecer dúvidas e informar os direitos e deveres dos que fornecem e daqueles que utilizam os serviços regulados.

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s Avenida Paulista, São Paulo/SP

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Capítulo 1 Introdução

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Além do aproveitamento da cultura regulatória que já vinha sendo desenvolvida pela extinta CSPE, a Arsesp passou a desempenhar outras atividades para alcançar os seus objetivos, em particular a manutenção do delicado equilíbrio que deve haver entre os titulares dos serviços, os prestadores e, por fim, mas não menos importante, os usuários. Essas atividades zelam para que as políticas públicas setoriais atinjam seus propósitos, proporcionando desenvolvimento econômico, bem-estar e qualidade de vida à população.

Algumas das suas atividades merecem destaque, como o monitoramento da qualidade dos serviços públicos prestados aos cidadãos; o acompanhamento do cumprimento dos contratos de serviços públicos pactuados com o poder concedente; a definição de tarifas justas e que assegurem a manutenção do equilíbrio econômico e financeiro dos contratos regulados, bem como o atendimento à população e a mediação de conflitos.

Por tudo o que foi exposto, embora este livro marque os 10 anos da Arsesp, é correto afirmar que, devido ao legado transmitido pela CSPE, o cidadão paulista conta com a proteção da regulação dos serviços públicos há praticamente 20 anos.

Da Diretoria de Relações Institucionais

Das cinco diretorias que compõem a estrutura da Arsesp – Diretoria Econômico-Financeiro, Diretoria de Relações Institucionais, Diretoria de Regulação Técnica e Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica, Diretoria de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Saneamento Básico e Diretora de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Gás Canalizado – é a Diretoria de Relações Institucionais (DRI) a responsável pela interface direta com os usuários, sobretudo informando, orientando e mediando conflitos entre estes e os prestadores dos serviços regulados.

Porém, no plano institucional, as atribuições da DRI ultrapassam ao longe essa relevante tarefa.

Sendo o deficit de participação social na definição e controle de políticas e decisões na esfera pública traço ainda presente na democracia brasileira, ele se faz sentir de maneira ainda mais aguda no campo da regulação.

A par da notória dificuldade do Poder Público em se comunicar de maneira simples, clara e objetiva com o cidadão, quando o assunto é regulação, tem-se como agravantes desse quadro a enorme complexidade de muitos dos temas tratados, os quais muitas vezes encerram questões técnicas, econômicas e jurídicas, o linguajar tecnicista e a pouca efetividade que os instrumentos de participação frequentemente utilizados, tais como consulta e audiência públicas, entregam em face dessa realidade assimétrica.

Logo, entre os principais desafios do regulador, insere-se o de ampliar a participação social no processo regulatório, notadamente em relação ao vértice do triângulo – figura que simboliza melhor seu papel – mais distante – embora por vezes mais afetado – de suas decisões: o usuário.

É fundamental, portanto, esforço permanente do ente regulador em busca da governança regulatória, baseada no ideal da transparência, como forma de promover a melhoria contínua da qualidade da regulação, a fim de que esta alcance seus objetivos primordiais, dentre os quais, o desenvolvimento econômico sustentável e o bem-estar social.

“devido ao legado transmitido pela CSPE, o cidadão paulista conta com a proteção da regulação dos serviços públicos há praticamente 20 anos

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IntroduçãoCapítulo 1

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Para tanto, não só o instrumental cotidianamente empregado (audiências e consultas públicas e pesquisas de satisfação dos usuários) há de ser aperfeiçoado, como se faz necessário também o incremento de mecanismos que elevem ainda mais o grau de aderência e legitimidade das decisões regulatórias, merecendo destaque, entre eles, os que proporcionam maior controle social destas, como a análise de impacto regulatório (AIR).

Esta também é a conclusão a que parece chegar Roberto Pfeiffer, autor do capítulo subsequente, “Agências reguladoras e proteção do consumidor”, ao afirmar que “os órgãos reguladores devem assegurar aos consumidores ampla informação e participação no processo decisório (por mecanismos como as consultas e audiências públicas) e devem levar em consideração o bem-estar do consumidor como um dos interesses a serem sopesados e balanceados”.

Transparência e confiança: elementos-chave para o fortalecimento institucional

Tal propósito tem norteado substantiva parte das ações da Arsesp no plano institucional, notadamente com o desenvolvimento do projeto denominado “Transparência e Participação”.

Em curso na agência desde o final de 2015, o projeto Transparência e Participação tem como objetivos precípuos: (i) a análise da situação atual da Arsesp em relação à transparência de suas ações, atos e decisões e em relação à participação da sociedade em seu processo decisório; (ii) o emprego das ações identificadas como necessárias para adequar a agência à legislação em vigor; e (iii) a propositura de medidas para aprimorar a transparência e a participação utilizando como referência os princípios de boas práticas de governança regulatória e ações bem-sucedidas adotadas por outras entidades reguladoras mais avançadas no tema.

Passados quase três anos é possível afirmar ter havido significativo avanço na disponibilização de informações e documentos previstos no arcabouço legal a que se submete a Arsesp, assim como melhoria nos processos de Consulta e Audiência Pública promovidos pela agência. Já a Ouvidoria e os conselhos de orientação devem ser focos mais

acentuados de atenção, dada sua grande importância para a política de participação e engajamento da Arsesp.

Trata-se de um processo contínuo, que tem sido conduzido pela Arsesp ao longo desses dez anos de regulação – que somados aos nove de CSPE representam praticamente duas décadas –, permitindo-lhe alcançar elevado e reconhecido nível de maturidade institucional, fruto, em larga escala, também do comprometimento e da qualidade técnica de seus quadros e da autonomia e independência decisória que lhe é assegurada por seu arcabouço jurídico institucional.

O compromisso permanente da Arsesp é, portanto, o de ampliar a comunicação e a articulação com a sociedade, abrindo maior espaço para seu engajamento no trabalho da agência, possibilitando assim que as partes envolvidas e afetadas pela regulação, em especial os usuários dos serviços públicos, ao mesmo tempo sejam capazes de depositar sua confiança no ente regulador e percebam-se nesse processo não apenas como sujeitos de direitos, senão, e principalmente, como agentes transformadores do ambiente regulatório, dando concretude ao ideal de cidadania.

Depositphotos

* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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IntroduçãoCapítulo 1

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T

Agências reguladoras e proteção do consumidorRoberto Augusto Castellanos Pfeiffer1

Agências reguladoras não são órgãos de defesa do consumidor

Tradicionalmente, a regulação econômica tem seus fundamentos associados às falhas de mercado: concentração do poder de mercado, externalidades, bens públicos (bens de uso comum) ou assimetria de informação. Mercados estruturalmente concentrados são potencialmente geradores de externalidades negativas sobre outros agentes econômicos e com fluxo desigual de informações2. A corrente denominada Normative analysis as a positive theory (NPT) defende que a fim de evitar que tais características diminuíam o bem-estar geral, uma alternativa seria adotar regulação específica e especializada.3

Em se tratando de serviços públicos, especialmente se prestados em regime de exclusividade, a agência reguladora normalmente tem a incumbência de fixar a tarifa que remunera

1 Professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Doutor e mestre pela USP. Procurador do estado de São Paulo. Foi Diretor Executivo da Fundação PROCON de São Paulo, Conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Consultor Jurídico do Ministério da Justiça, Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal e Presidente Nacional do Brasilcon.

2 VISCUSI, W. K.; HATTINGTON JR., J. E.; VERNON, J. M. Economics of regulation and antitrust. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1995.

3 A propósito da NPT ver: JOSKOW, P. L.; NOLL, R. C. Regulation in theory and practice: an overview. In: FROMM, G. Studies in public regulation. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1981.

a prestação do serviço, já que a “livre” negociação seria impossível ou extremamente desvantajosa para os usuários.

A regulação incide também sobre os parâmetros de qualidade do serviço regulado, o que inclui o estabelecimento de padrões técnicos, para ser efetivada uma prestação eficiente do serviço.4

Portanto, são substancialmente amplas as atribuições a cargo das agências reguladoras, abarcando, por exemplo, o poder normativo, a fiscalização do cumprimento da regulação. Além disso, elas zelam pela não degradação dos serviços e pelo incremento de sua qualidade.5 Se bem executada, a tarefa pode ser um importante eixo desencadeador de distribuição e difusão do conhecimento.6

A natureza das atividades das agências reguladoras deixa claro que não são órgão de defesa do consumidor, já que a regulação econômica não visa exclusivamente aumentar ou preservar seu o bem-estar.

Por não serem órgãos de defesa do consumidor não integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (art. 105 da Lei 8.078/1990). Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 6.621, de 2016,7 cujo art. 33 corrobora tal conclusão, ao determinar que

4 POSSAS, M.; FAGUNDES, J.; PONDÉ, J. Defesa da concorrência e regulação de setores de infraestrutura em transição. XXVI Encontro Nacional de Economia. Vitória: ANPEC, v. 2,1998.

5 SUNDFELD, C. A. Introdução às agências reguladoras. In: SUNDFELD, C. A. (Org.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 35.

6 SALOMÃO FILHO, C. Regulação da atividade econômica. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 41. Há, no entanto, corrente doutrinária, ligada à teoria da captura, que é bem mais pessimista, entendendo que a regulação tende sempre a favorecer o agente econômico regulado. Tal perspectiva será desenvolvida nos itens IV e V do artigo.

7 O PL 6.621/2016 encontra-se atualmente sob apreciação de uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados, após a sua aprovação pelo Senado Federal (onde tramitou sob a denominação de PLS nº 52/2013. Disponível em: https://bit.ly/2McllD8. Acesso em: 5 fev 2017.

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Capítulo 1

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as agências reguladoras se articulem com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), podendo, para tanto, firmar convênios e acordos de cooperação8. Somente faria sentido determinar tal articulação se as agências reguladoras não compusessem o SNDC, o que corrobora a conclusão de que elas não têm a natureza de órgão de defesa do consumidor.

Porém, os órgãos reguladores devem assegurar aos consumidores ampla informação e participação no processo decisório (por mecanismos como as consultas e audiências públicas) e devem levar em consideração o bem-estar do consumidor como um dos interesses a serem sopesados e balanceados.

Infelizmente, constata-se insuficiente participação dos consumidores no processo decisório das agências reguladoras, motivo pelo qual seus interesses normalmente são desconsiderados, como será ainda discutido neste capítulo.

Além disso, as agências não podem desrespeitar as leis de proteção do consumidor. A próxima seção deste capítulo é justamente dedicada

8 Transcrevo a aludida proposição: “Art. 33. No exercício de suas atribuições, e em articulação com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) e com o órgão de defesa do consumidor do Ministério da Justiça e Cidadania, incumbe às agências reguladoras zelar pelo cumprimento da legislação de defesa do consumidor, monitorando e acompanhando as práticas de mercado dos agentes do setor regulado. § 1º As agências reguladoras poderão articular-se com os órgãos e as entidades integrantes do SNDC, visando à eficácia da proteção e defesa do consumidor e do usuário de serviço público no âmbito das respectivas esferas de atuação. § 2º As agências reguladoras poderão firmar convênios e acordos de cooperação com os órgãos e as entidades integrantes do SNDC para colaboração mútua, sendo vedada a delegação de competências que tenham sido a elas atribuídas por lei específica de proteção e defesa do consumidor no âmbito do setor regulado”.

a demonstrar que os serviços por ela regulados submetem-se, sem exceção, aos preceitos do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que não podem ser desconsiderados em sua atividade normativa.

Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos setores econômicos sujeitos à regulação

Atividades econômicas em sentido estrito

Todos os setores econômicos são submetidos aos preceitos do Código de Defesa do Consumidor. Neste sentido é claríssima a norma do art. 3º da Lei 8.078/1990, que não excetua nenhuma atividade econômica em sentido estrito do âmbito de sua aplicação.

Tal interpretação restou definitivamente consolidada com a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento de improcedência da ação direta de inconstitucionalidade 2.591, que entendeu plenamente harmônica com a Constituição Federal a aplicação do CDC aos serviços prestados por empresas pertencentes ao Sistema Financeiro Nacional que envolvam relação de consumo. Transcrevo a ementa do acórdão, que tem a seguinte redação após a apreciação dos embargos de declaração:

Art. 3º, § 2º, do CdC. Código de defesA do Consumidor. Art. 5º, xxxii, dA Cb/88. Art. 170, v, dA Cb/88. instituições finAnCeirAs. sujeição delAs Ao Código de defesA do Consumidor. Ação diretA de inConstituCionAlidAde julgAdA improCedente.

1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor.

2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito.

3. Ação direta julgada improcedente. 9

9 ADI 2591 ED/DF, Relator para Acórdão:  Ministro Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 14/12/2006, DJ 13/04/2007.

“os órgãos reguladores devem assegurar aos consumidores ampla informação e participação no processo decisório

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Agências reguladoras e proteção do consumidorCapítulo 1

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O impacto do julgamento extrapolou os limites do Sistema Financeiro Nacional. Isto porque reafirmou a dimensão constitucional da proteção da defesa do consumidor, que é um direito fundamental (art. 5º, XXXII) e um princípio conformador da ordem econômica (art. 170, V) que serve de padrão hermenêutico para interpretar as regras de defesa do consumidor. Foi, assim, sua matriz constitucional que subsidiou o entendimento acerca da amplitude horizontal da aplicação do Código de Defesa do Consumidor: todas as atividades econômicas submetem-se às disposições de proteção do consumidor.10

Portanto, o cumprimento do dever de legislar estipulado pela Constituição Federal demandava que a lei protegesse o consumidor em face de todos os serviços e produtos ofertados no mercado de consumo.

Neste contexto, nenhum setor da economia pode ser considerado imune à aplicação do CDC.11 Isso inclui todos os serviços prestados por agentes econômicos submetidos à regulação, como, por exemplo, os serviços financeiros (regulados pelo Banco Central do Brasil), securitários (regulados pela Superintendência de Seguros

10 PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Código de defesa do consumidor e sistema financeiro nacional: primeiras reflexões sobre o julgamento da ADIn 2.591. In: MARQUES, C. L.; ALMEIDA, J. B.; PFEIFFER, R. A. C. Aplicação do código de defesa do consumidor aos bancos: ADIn 2.591, op. cit., p. 279-300.

11 Neste sentido são preciosas as seguintes observações contidas no voto do Ministro Celso de Mello na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.591: “Neste contexto, a atuação normativa do Poder Público, como aquela consubstanciada na legislação de defesa do consumidor, vocacionada a coibir, com fundamento na prevalência do interesse social, situações e práticas abusivas que possam comprometer a eficácia do postulado constitucional de proteção e amparo do consumidor (que representa importante vetor interpretativo na ponderação e superação das relações de antagonismo que se registram no mercado de consumo) justifica-se ante a necessidade – que se impõe ao Estado – de impedir que as empresas e os agentes econômicos em geral, qualquer que seja o domínio em que exerçam as suas atividades, afetem e agravem a situação de vulnerabilidade a que se acham expostos os consumidores. Os agentes econômicos não têm, nos princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência, instrumentos de proteção incondicional. Estes postulados constitucionais – que não ostentam valor absoluto – não criam, em torno dos organismos empresariais, inclusive das instituições financeiras, qualquer círculo de imunidade que os exonere dos gravíssimos encargos cuja imposição, fundada na supremacia do bem comum e do interesse social, deriva do texto da própria Carta da República”.

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Agências reguladoras e proteção do consumidorCapítulo 2

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Privados – Susep) ou os planos de assistência privada à saúde (regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar).

Serviços públicos

Nem todos os serviços públicos submetem-se às disposições do CDC. Com efeito, os serviços públicos de natureza indivisível e prestados de maneira universal, que não têm remuneração específica, são custeados sobretudo por impostos que não estão sujeitos à incidência da legislação de proteção do consumidor.12 É o que ocorre, por exemplo, com a segurança, iluminação ou saúde públicas. Não há relação de consumo, mas de cidadania, em que o direito à utilização do serviço público advém do fato de o usuário residir no Brasil e a ele fazer jus por disposição constitucional e não por haver remunerado o seu usufruto.

Consolidou-se, assim, a interpretação majoritária da doutrina e jurisprudência no sentido de que o CDC se aplica exclusivamente aos serviços públicos de caráter divisível, remunerados por tarifa ou preço público e prestados de maneira uti singuli.13 É o caso dos serviços de água, tratamento de esgoto e gás canalizado, por exemplo.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido da última corrente. O acórdão paradigma dessa interpretação foi proferido no julgamento do Recurso Especial no 525.500, cuja ementa é a seguir transcrita:

AdministrAtivo – serviço públiCo – ConCedido – energiA elétriCA – inAdimplênCiA.

Os serviços públicos podem ser próprios e gerais, sem possibilidade de identificação dos destinatários. São financiados pelos tributos e prestados pelo próprio Estado, tais como segurança pública, saúde,

12 PFEIFFER, R. A. C. Serviços públicos concedidos e proteção do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, n. 36, p. 170-171, out-dez 2000. MACEDO JÚNIOR, R. P. A proteção dos usuários de serviços públicos. In: SUNDFELD, C. A. (Org.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 243.

13 PFEIFFER, R. A. C. Código de defesa do consumidor e serviços públicos: balanços e perspectivas. Revista de direito do consumidor, v.25, n. 104, mar-abr. 2016, p. 65-98.

educação, etc. Podem ser também impróprios e individuais, com destinatários determinados ou determináveis. Neste caso, têm uso específico e mensurável, tais como os serviços de telefone, água e energia elétrica.

Os serviços públicos impróprios podem ser prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente, por delegação, como previsto na CF (art. 175). São regulados pela Lei 8.987/95, que dispõe sobre a concessão e permissão dos serviços público.

3. Os serviços prestados por concessionárias são remunerados por tarifa, sendo facultativa a sua utilização, que é regida pelo CDC, o que a diferencia da taxa, esta, remuneração do serviço público próprio. 14

Afastou-se, ainda, a incidência do CDC em serviços públicos de natureza compulsória – por exemplo, coleta de lixo domiciliar ou fiscalização, que são remunerados por taxa. Nessas hipóteses a prestação do serviço é de natureza compulsória e instaura-se uma relação tributária e não de consumo entre o Estado e o particular.15

Assim, a posição prevalecente da doutrina e jurisprudência é a de limitar a incidência do CDC nas hipóteses de serviços públicos uti singuli, prestados de forma divisível, ofertados no mercado de consumo e remunerados por tarifa ou preço público.

14 RESP 525500 – Rel. Min. Eliana Calmon – Segunda Turma – DJ de 10 maio de 004.15 RESP 463331 – Rel. Min. Eliana Calmon – Segunda Turma – DJ de 23.08.2004, p. 178.

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empresa de fabricação de toalha alegou existência de relação de consumo com fornecedora de algodão, tese esta rejeitada pelo STF19.

O segundo precedente importante é o já citado julgamento da ADI 2.591, em que o STF, ao interpretar constitucional a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos serviços financeiros, ressaltou a importância do destino final econômico para a configuração da relação de consumo em tais serviços.20

Já a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ao longo de quinze anos, discutiu profundamente a matéria, havendo pacificado o acatamento da teoria finalista pela Segunda Seção, sendo o principal precedente a ser citado no Recurso Especial 541.867, com destaque para o seguinte trecho:

- A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária.

- Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetência absoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca”.21

Após a pacificação, o Superior Tribunal de Justiça desenvolveu a teoria finalista mitigada, que permite a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao consumo intermediário, ou seja, à aquisição de produtos ou serviços no âmbito de uma atividade econômica, desde que seja demonstrada a vulnerabilidade no caso concreto. Transcrevo ementa de acórdão representativo de tal entendimento:

19 SEC 5847 – Relator: Min. Maurício Corrêa – Tribunal Pleno – DJ 17-12-1999. O julgamento foi objeto de comentários no artigo de MARQUES, C. L.; TURKIENICZ, E. Caso “T” vs. “A”: em defesa da teoria finalista de interpretação do art. 2º do CDC. Revista de direito do consumidor, v. 36, out-dez. 2000, São Paulo, p. 221-240.

20 ADI 2591 ED. Tribunal Pleno. Rel. Min. Eros Grau. Julgado em 14 de dezembro de 2006. “2. ‘Consumidor’, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito”.

21 REsp 541867 – Rel. para o acórdão: Ministro Barros Monteiro – Segunda Seção – DJ 16.05.2005, p. 227.

Distinção entre usuário e consumidor de serviços públicos

Há muito venho defendendo que, em se tratando de serviço público e de seus utilizadores, devemos trabalhar com o conceito de usuário como gênero e de consumidor como espécie16. Isso porque mesmo na prestação de serviço público de natureza divisível remunerado por tarifa nem sempre incidirá relação de consumo, pois nem todos os que utilizam o serviço público podem ser considerados consumidores.17

Somente será considerado consumidor a pessoa física ou jurídica que adquira ou use serviço público de natureza divisível como seu destinatário final (art. 2º do CDC). Atualmente prevalece na doutrina e jurisprudência a teoria finalista, que preconiza que o consumidor é apenas o destinatário final econômico, ou seja, aquele que frui o produto ou serviço para proveito próprio ou familiar, não o utilizando em atividade econômica empresarial.18

Em dois relevantíssimos precedentes, o Supremo Tribunal Federal adotou a teoria finalista. O primeiro deles deu-se com o julgamento de uma ação de homologação de sentença estrangeira em que

16 PFEIFFER, R. A. C. Aplicação do código de defesa do consumidor aos serviços públicos. Revista de direito do consumidor, n. 65, jan-mar 2008, p. 226-252.

17 PFEIFFER, R. A. C. Código de defesa do consumidor e serviços públicos: balanços e perspectivas. Revista de direito do consumidor, v. 25, n. 104, mar-abr. 2016, p. 65-98.

18 Sobre o conceito econômico de consumidor ver: VIDIGAL, G. A lei de defesa do consumidor: sua abrangência. In: Cadernos ICBC 22: Lei de defesa do consumidor. São Paulo: ICBC, 1991, p. 5-27.

“devemos trabalhar com o conceito de usuário como gênero e de consumidor como espécie

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A promulgação da Lei 13.460, de 25 de junho de 2017 somente reforçou a pertinência de tal distinção. Com efeito, trata-se da norma editada em cumprimento ao disposto no art. 37, § 3º da Constituição Federal.25

A Lei 13.460/2017 aplica-se aos serviços públicos em geral, definidos como “atividade administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por órgão ou entidade da administração pública” (art. 2º, II). A norma conceitua usuário como “pessoa física ou jurídica que se beneficia ou utiliza, efetiva ou potencialmente, de serviço público” (art. 2º,, I).

A incidência precípua da proteção estabelecida na Lei 13.460/2017 são os serviços públicos prestados pela administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Porém, expressamente ressalva que suas disposições são aplicadas sem prejuízo de cumprimento do disposto: “I – em normas regulamentadoras específicas, quando se tratar de serviço ou atividade sujeitos a regulação ou supervisão; e II – na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, quando caracterizada relação de consumo” (art. 1º,, § 2º). E estabelece, ainda, que suas disposições são aplicáveis subsidiariamente aos serviços públicos prestados por particular (art. 1º,, § 3º). 

Assim, a Lei 13.460/2017 aplica-se a todos os serviços públicos, de maneira precípua e direta aos serviços públicos de prestação universal, não submetidos ao Código de Defesa do Consumidor. E, subsidiariamente, sem prejuízo da incidência das normas específicas e da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, aos serviços públicos de natureza divisível e remunerados por tarifa ou preço público.

25 A norma constitucional estabelece: “A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; III – a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública”.

Direito civil. Consumidor. Agravo no recurso Especial. Conceito de consumidor. Pessoa jurídica. Excepcionalidade. Não constatação. – A jurisprudência do STJ tem evoluído no sentido de somente admitir a aplicação do CDC à pessoa jurídica empresária excepcionalmente, quando evidenciada a sua vulnerabilidade no caso concreto; ou por equiparação, nas situações previstas pelos arts. 17 e 29 do CDC.22

Em diversos julgamentos, o Superior Tribunal de Justiça ressalva a possibilidade de permitir a aplicação do CDC a situações de consumo intermediário (ou seja, nas quais o adquirente é destinatário final fático, mas não econômico, pois utiliza o produto ou serviço no desenvolvimento de atividade econômica). Porém, exige que seja demonstrada a efetiva incidência de vulnerabilidade no caso concreto analisado. Há, inclusive, precedentes específicos do STJ envolvendo a aquisição de serviços públicos por pessoas jurídicas empresárias. Um exemplo é a contratação da prestação do serviço de telefonia fixa por empresa provedora de acesso à internet.23 Outro precedente menciona a aquisição de energia elétrica por pessoa jurídica no âmbito de sua atividade econômica.24 Em ambos os casos, no entanto, não foi aplicado o CDC por ausência de comprovação de vulnerabilidade no caso concreto.

22 AgRg no REsp 687239 – Rel. Ministra Nancy Andrighi – Terceira Turma – DJ 02.05.2006, p. 307.23 REsp 660026 – Rel. Min. Jorge Scartezzini – Quarta Turma – DJ 27.06.2005, p. 409.24 REsp 661145 – Rel. Ministro Jorge Scartezzini – Quarta Turma – DJ 28.03.2005, p. 286.

“Em diversos julgamentos, o Superior Tribunal de Justiça ressalva a possibilidade de permitir a aplicação do CDC a situações de consumo intermediário

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Agências reguladoras e proteção do consumidorCapítulo 1

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Neste contexto é possível estabelecer que o “usuário de serviços públicos” é o gênero que abarca todos os utilizadores e beneficiários de serviços públicos de qualquer natureza. Já “consumidor de serviços públicos” é a espécie que compreende unicamente os adquirentes e utilizadores de serviços públicos divisíveis, remunerados por tarifa ou preço público e desde que se destinem à fruição pessoal ou familiar do usuário, dissociada do desenvolvimento de uma atividade econômica. Neste caso, o consumidor será o destinatário final econômico do serviço público, pois não o utilizará no desenvolvimento ou no incremento de uma atividade econômica.

Assim, não existirá relação de consumo quando o uso do serviço público uti singuli for instrumental ao desenvolvimento de atividade empresarial. É o caso da aquisição de serviço de energia elétrica, água, saneamento básico ou telefonia fixa comutada por uma empresa, que será considerada usuária do serviço público (mas não consumidora).

Porém, excepcionalmente, o CDC poderá ser aplicado na hipótese de utilizar o serviço público uti singuli no exercício de atividade empresarial, caso esteja presente, no caso concreto, uma situação de vulnerabilidade (técnica, econômica ou jurídica). Seria, assim, por exemplo, o caso de um modesto profissional liberal que usa o serviço de energia elétrica em seu escritório.

Da mandatória observância da legislação de defesa do consumidor pelas agências reguladoras

Nas hipóteses em que houver relação de consumo, o CDC é plenamente aplicável aos serviços que são objeto de regulação econômica, sejam atividade econômica em sentido estrito, sejam serviços públicos. Em tais hipóteses, as normas de defesa do consumidor não poderão ser desrespeitadas pelas agências reguladoras.26

No entanto, nem sempre as agências reguladoras observam a legislação de proteção dos consumidores no momento de editar suas normas regulamentadoras. Um patente exemplo de desrespeito ao CDC deu-se com a Agência Nacional de Telecomunicações ao editar resolução com dispositivo que desrespeitava preceito do CDC e, portanto, era inválido. De fato, o parágrafo único do art. 65 da Resolução 85 da Anatel determinava, em caso de cobrança indevida no serviço de telefonia fixa comutada, a devolução simples do valor cobrado mais os respectivos encargos, o que contrariava o texto expresso no art. 42, parágrafo único do CDC. A norma foi posteriormente revogada pela Anatel com a Resolução 426, de 9 de dezembro de 2007, cujo artigo 98, parágrafo único, determina a devolução em dobro ao usuário que efetuar o pagamento de quantia cobrada indevidamente, em consonância com o CDC.

A Resolução 567, de 24 de maio de 2011 da Anatel, é bom exemplo de normatização harmônica com a legislação de defesa do consumidor, uma vez que alterou regulamentos de diversos serviços a fim de adequá-los às disposições do Decreto 6.523, de 31 de julho de 2008, que, por seu turno, regulamentou a Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, para fixar normas gerais sobre o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC).

26 Aliás, o art. 33 do PL 6.621/2016, transcrito na nota de rodapé no 8, estabelece que incumbe às agências reguladoras zelar pelo cumprimento da legislação de defesa do consumidor.

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Participação dos consumidores no processo decisório das agências reguladoras

O direito dos consumidores de participar do processo decisório das agências reguladoras assume grande relevância, tendo em vista que serviços essenciais como telefonia, distribuição de energia elétrica, gás natural ou água, normalmente são submetidos ao crivo de agências reguladoras, que têm amplos poderes de regulação setorial.

Esses órgãos são responsáveis por decisões que afetam os interesses econômicos dos consumidores, como, por exemplo, a fixação dos parâmetros de cálculo das tarifas cobradas ou o estabelecimento de normas sobre a qualidade, adequação e eficiência dos serviços prestados.

Neste contexto, diversos autores acentuam a importância da participação dos consumidores no processo decisório das agências reguladoras, a fim de contrabalançar não apenas o poder econômico dos agentes econômicos regulados, mas também seu inegável poder político.27

Há várias normas que estabelecem o direito de participação dos consumidores e usuários no processo decisório das agências

27 Neste contexto, reproduzo as seguintes considerações de Ronaldo Porto Macedo Júnior, op. cit., p. 252: “Sendo assim, o significado do Código de Defesa do Consumidor no campo dos serviços públicos é garantir a defesa do consumidor-usuário, ampliando o grau de participação qualitativa deste. Este diploma legal, ao falar em equilíbrio contratual, não prevê apenas o equilíbrio econômico do contrato, mas trata do equilíbrio entre direitos e obrigações. Isto significa dizer que o direito de participar pode e deve ser visto como um direito político do consumidor-usuário. Em outras palavras, a interpretação que nós fazemos do Código não deve se limitar a entendê-lo como um meio legal que veio para proteger os interesses econômicos dos consumidores, mas também como instrumento para garantir os interesses políticos, garantir o direito a voz, garantia daquilo que alguns autores têm chamado de uma ‘mais-valia política’. Neste sentido, o fornecedor de serviço não pode se apropriar do ‘lucro excessivo’, como também não pode se apropriar do ‘poder político excessivo’ (mais-valia política) que detém em razão de sua posição no mercado. Há um princípio e dever de solidariedade, de socialização dos lucros e poder pressuposto na principiologia do Código de Defesa do Consumidor. Por tal, o próprio Estado, quando age em favor de algum grupo, deve pautar-se pelo princípio da solidariedade. Este me parecer ser um capítulo novo e importante na defesa dos interesses dos usuários-consumidores”.

reguladoras, a ponto de a doutrina trabalhar com o conceito de princípio da participação do usuário no controle da prestação dos serviços públicos.28

Como exemplo de normas que determinam essa participação destaco a Lei 9478/1997, cujo art. 19 impõe a realização de audiências públicas nos seguintes casos:

Art. 19. As iniciativas de projetos de lei ou de alteração de normas administrativas que impliquem afetação de direito dos agentes econômicos ou de consumidores e usuários de bens e serviços da indústria do petróleo serão precedidas de audiência pública convocada e dirigida pela ANP.

Destaco, a seguir, a legislação pertinente ao setor de energia elétrica. O art. 13 da Lei 8.631, de 4 de março de 1993, estabelece o dever do concessionário de serviço público de distribuição de energia elétrica criar, no âmbito de sua área de concessão, conselho de consumidores de caráter consultivo, “composto por igual número de representantes das principais classes tarifárias, voltado para orientação, análise e avaliação das questões ligadas ao fornecimento, tarifas e adequação dos serviços prestados ao consumidor final”.

Por seu turno, o art. 21 do anexo I do Decreto 2.335/1997 estabelece a obrigatoriedade da Aneel de promover audiência pública precedendo o processo decisório para elaborar ato administrativo ou anteprojeto de lei que tenha relação com direitos dos consumidores.

Há ainda espaços institucionais com a presença de representantes dos consumidores. Por exemplo, no setor de telecomunicações merece menção a existência do Conselho Consultivo da Anatel, que

28 “Hoje se desenvolve o que se pode chamar de ‘princípio da participação’ e que tem a sua origem nos diferentes textos associando os usuários dos serviços públicos à definição das regras de organização e de seu funcionamento, a fim de que as necessidades reais dos usuários sejam melhor levadas em consideração” (Grotti, A. M. Teoria dos serviços públicos e sua transformação. In: Sundfeld, C. A. Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 58).

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Agências reguladoras e proteção do consumidorCapítulo 1

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nos termos de seu art. 33 da Lei 9472/1997 “é o órgão de participação institucionalizada da sociedade na Agência”.29

Suas funções são de natureza consultiva, destacando-se as atribuições de: “opinar, antes de seu encaminhamento ao Ministério das Comunicações, sobre o plano geral de outorgas, o plano geral de metas para universalização de serviços prestados no regime público e demais políticas governamentais de telecomunicações” e de “aconselhar quanto à instituição ou eliminação da prestação de serviço no regime público” (art. 35 da Lei 9.472/1997).

Assimetria de participação dos consumidores e captura técnica das agências reguladoras

Não basta apenas prever a possibilidade de participação, sem conferir às associações e órgãos de defesa do consumidor condições para que seja efetiva. Na verdade, há enorme assimetria de informações entre fornecedores dos serviços regulados e seus usuários, sendo que estes, via de regra, enfrentam dificuldade de acesso a essas informações, além de terem parcos recursos para se capacitar a apresentar contribuições para a regulação.

A discrepância de conhecimentos técnicos e de recursos financeiros entre fornecedores e consumidores ocasiona notável déficit de participação, o que contribui para que a regulação efetivada pelas agências reguladoras não leve em consideração os seus interesses, que na maior parte das vezes não são adequadamente identificados, defendidos ou sequer vocalizados.

Esse fator agrava ainda mais a captura técnica30 de que padecem as agências reguladoras, pois elas próprias dispõem de recursos humanos, materiais e técnicos inferiores aos agentes econômicos regulados.

29 Dispõe o art. 34 da LGT: “O Conselho será integrado por representantes indicados pelo Senado Federal, pela Câmara dos Deputados, pelo Poder Executivo, pelas entidades de classe das prestadoras de serviços de telecomunicações, por entidades representativas dos usuários e por entidades representativas da sociedade, nos termos do regulamento”.

30 Sobre o fenômeno geral da captura ver: BAGATIN, A. C. O problema das agências reguladoras independentes. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

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Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

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Eloquente exemplo das consequências negativas do déficit de participação ocorreu com a tarifa de energia elétrica, em razão de equivocada metodologia adotada pela Aneel que permitiu às concessionárias efetivar repasses indevidos às tarifas cobradas dos consumidores, ocasionando o pagamento de valores superiores aos que seriam efetivamente devidos. O Tribunal de Contas da União detectou essa gravíssima falha que acarretou prejuízos substanciais aos consumidores brasileiros e determinou que a agência revisasse a metodologia adotada e efetivasse a necessária compensação.31

Tais exemplos reforçam a pertinência de uma questão levantada pela doutrina: o risco de captura das agências reguladoras, o que pode levar à edição de normas ou à tomada de decisões que favorecem os regulados, muitas vezes em detrimento da sociedade e dos usuários.

Fugiria ao escopo do presente ensaio o aprofundamento do tema da captura, que é polêmico e com várias nuances. Cumpre apenas destacar que a crítica a distorções que a atuação das agências reguladoras pode criar tem vários matizes.

Um ponto de partida importante é o ensaio de Mancur Olson, que destacou a existência de grupos de interesses que interferem ativa e continuamente na esfera política e no acesso a bens públicos. O autor demonstra que há incentivos à aglutinação de grupos de interesse extremamente ativos, principalmente em situações em que os benefícios trazidos por determinada política pública concentram-se em

31 No Acórdão 2.210/2008-TCU-Plenário, a Corte de contas determinou à Agência Nacional de Energia Elétrica, com fundamento no inciso I do art. 14 da Lei 9.427/1996 e no § 1o do art. 6o da Lei 8.987/1995, que: “9.1.1. ajuste a metodologia atual de reajuste tarifário presente no contrato de concessão da CELPE, corrigindo as seguintes inconsistências: 9.1.1.1. a Parcela B calculada no reajuste tarifário absorve indevidamente os ganhos de escala decorrentes do aumento de demanda; 9.1.1.2. os ganhos de escala, decorrentes do aumento da demanda, não são repassados para o consumidor, provocando o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato; 9.1.2. apresente ao TCU, no prazo de 60 (sessenta) dias, um cronograma de implementação dos ajustes metodológicos referidos no subitem 9.1; 9.1.3. avalie o impacto, no equilíbrio econômico-financeiro do contrato, da metodologia utilizada nos reajustes da CELPE desde o início da concessão até a presente data; 9.1.4. apresente ao TCU, no prazo de 60 (sessenta) dias, a avaliação referida no item 9.1.3; 9.1.5. estenda os ajustes metodológicos que vierem a ser feitos no contrato da CELPE às demais empresas concessionárias de energia elétrica do país”.

poucos agentes e os custos são difusos na sociedade. Transportando essas reflexões para o ambiente da regulação, é imperioso observar como se formam grupos de interesse que buscam influenciar as decisões dos órgãos reguladores, sendo o mais proeminente e poderoso formado pelos agentes econômicos diretamente regulados.32

A crítica aos pressupostos da Normative Analysis as a Positive Theory (NPT) para justificar a criação e atuação das agências reguladoras 33 foi aprofundada sobretudo por George Stigler, que desenvolveu a teoria da captura das agências reguladoras.34

O artigo trata a regulação como um “produto” cuja “oferta” é monopólio do Governo, decorrente dos poderes conferidos ao Estado. O principal “demandante” é o próprio setor econômico regulado, que se organiza como um grupo de interesse, desenvolvendo eficientes métodos para obter as normas que lhe beneficie.

Também destaca que a regulação, como atividade estatal, sofre influxos típicos da lógica política, segundo os quais os agentes públicos, em vez de buscar o bem comum, agem como maximizadores de seus interesses pessoais.

Nesse cenário, as agências e os agentes públicos com poder decisório que as integram são sujeitos à captura pela indústria que regulam, tomando decisões que favorecem o setor regulado. Destaca-se, assim, que muitas das decisões são tomadas para proteger as empresas incumbentes de potenciais concorrentes, criando, por exemplo, parâmetros quantitativos que podem constituir barreiras artificiais à entrada de novos agentes econômicos,35 ou estabelecendo

32 Olson, M. The logic of collective action: public goods and the theory of groups. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2002.

33 Os argumentos desenvolvidos pela NPT para justificar a regulação estatal foram indicados no item I deste artigo.

34 Stigler, G. The Theory of Economic Regulation. Bell journal of economics, v. 2, p. 3-21, 1971.35 É o caso, por exemplo, da fixação de capital mínimo para desenvolver determinada

atividade. Evidentemente, pode haver razões plausíveis para estabelecer um valor mínimo de capital, a fim de evitar que empresa sem qualquer condição de prestar o serviço integre a indústria em questão, como ocorre, por exemplo, no sistema financeiro. Por outro lado, o estabelecimento de valor desarrazoadamente elevado implica arbitrária barreira à entrada de novos agentes econômicos.

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Agências reguladoras e proteção do consumidorCapítulo 1

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controles que evitem “guerra de preços” entre as empresas ou fixando padrões de qualidade inferiores aos que deveriam ser impostos.

A tese central do ensaio de George Stigler é que a edição de normas reguladoras é solicitada sobretudo pela própria indústria regulada e, assim, desenhada e operada primariamente para seu benefício36.

A questão da captura está inserida em um contexto maior de críticas direcionadas às agências reguladoras, efetivadas sobretudo pela doutrina da escolha pública (public choice theory), que destaca as falhas de governo que distorcem a atuação estatal. Um dos aspectos ressaltados é o de que normalmente os políticos (e os agentes públicos por eles indicados) agem movidos pelo autointeresse, tomando decisões que lhes beneficiem, ainda que em detrimento do interesse público.37

Essa perspectiva é muitas vezes apropriada por defensores de pequena intervenção do Estado. Obviamente, não é esta a intenção deste artigo, dado que entendo importante a função reguladora do Estado.

Porém, é preciso analisar as potenciais deficiências que a atividade reguladora pode apresentar, a fim de procurar evitá-las. Assim,

36 Stigler, G. The theory of economic regulation, op. cit., p. 3.37 Shaw, J. S. Public Choice Theory. The concise enciclopedia for economics. In: http://bit.ly/2y4Vdpb.

Acesso em: 20 set 2017. Transcrevo o seguinte trecho: “Public choice takes the same principles that economists use to analyse people’s actions in the marketplace and applies them to people’s actions in collective decision-making. Economists who study behaviour in the private marketplace assume that people are motivated mainly by self-interest”.

“é preciso analisar as potenciais deficiências que a atividade reguladora pode apresentar, a fim de procurar evitá-las

mesmo em uma perspectiva que reconheça a importância da atividade reguladora é importante reconhecer que ela está inserida em um contexto de disputa de grupos de interesse, que, por sua magnitude econômica e técnica, podem tentar capturar os reguladores com o intuito de que sua atividade lhes favoreça.

O necessário aperfeiçoamento dos mecanismos de participação dos consumidores

A captura técnica é substancialmente reforçada pela pequena participação dos consumidores: em razão da disparidade de conhecimentos técnicos e em decorrência da assimetria de informações, a regulação é desbalanceada em favor dos agentes econômicos regulados.

Neste contexto, destaco o diagnóstico feito pelo Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), que ressalta o consumidor como uma voz fraca e poucas vezes ouvida na regulação dos serviços públicos.

Em razão desse déficit de participação, a regulação é ineficiente, acarretando grande quantidade de conflitos de consumo na área de serviços regulados. Tal quadro gera muitas reclamações perante os órgãos de defesa do consumidor e intensa judicialização de matérias que poderiam ser resolvidas por uma regulação mais harmônica e adequada.38

Em razão desse diagnóstico o IDEC desenvolveu o Projeto BR-M1035, com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com vistas ao fortalecimento da capacidade técnica da participação social na regulação.

Desta forma, é imprescindível que as agências reguladoras adotem as seguintes medidas, que tendem a aperfeiçoar os mecanismos de participação dos consumidores: disponibilização de informações

38 Ver, a propósito, LAZZARINI, M. A voz dos consumidores nas agências reguladoras. In: http://docslide.com.br/documents/wwwidecorgbr-a-voz-dos-consumidores-nas-agencias-reguladoras-marilena-lazzarini-assessora-de-relacoes-institucionais-coordenadora-do-projeto-bid-br-m1035.html. Acesso em: 18 dez 2015.

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Agências reguladoras e proteção do consumidorCapítulo 1

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claras e adequadas; simplificação da linguagem; transparência das decisões, o que inclui sessões públicas de deliberação; efetivação de consultas e audiências públicas para normatizar matérias de impacto para os consumidores; institucionalização de espaços de participação dos representantes dos consumidores nas agências reguladoras, e capacitação técnica das associações e órgãos de defesa do consumidor.

Destaco proposições legislativas que, embora não englobem a totalidade dos aspectos acima destacados, preocupam-se com o aperfeiçoamento dos mecanismos de participação dos consumidores.

Uma primeira iniciativa foi o Projeto de Lei 3.337 de 2004, que tratava do controle social das agências reguladoras e previa diversos mecanismos de participação institucional. Porém, a proposição, iniciativa do Poder Executivo, foi retirada por mensagem do Presidente da República em 2013, resultando em seu arquivamento.39

Destaco ainda, o Projeto de Lei do Senado nº 52, de 2013, com dispositivos muito semelhantes ao PL 3.337 de 2004. O projeto foi aprovado no Senado Federal e atualmente é analisado pela Câmara dos Deputados como Projeto de Lei 6.621/2016, tendo sido constituída Comissão Especial para a sua apreciação.40

Embora tenha aspectos polêmicos, relacionados com limitações à atuação das agências reguladoras, dispõe de interessantes mecanismos que podem ampliar a participação dos representantes dos consumidores.

Impõe, por exemplo, a necessidade de elaborar um estudo de impacto regulatório (AIR) que preceda a “adoção e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados”, o que é importante para conferir maior transparência à atuação das

39 Teci comentários a respeito de dispositivos do PL 3.337 de 2004 em: PFEIFFER, R. A. C. Aplicação do código de defesa do consumidor aos serviços públicos. Revista de direito do consumidor, n. 65, jan-mar. 2008, p. 226-252.

40 Disponível em: https://bit.ly/2McllD8. Acesso em: 21 set 2017.

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agências reguladoras, já que tais estudos devem conter “informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo” (art. 6º).

Estabelece ainda a obrigatoriedade de que esses temas de “interesse geral sejam submetidos à consulta pública” (art. 9º, caput). No entanto, como já ressaltado, não basta apenas a genérica previsão da consulta pública e de audiência pública. Para que ela não seja uma mera formalidade é necessário disponibilizar aos participantes o acesso às informações necessárias para embasar sua posição.

Neste contexto, o PL 6.621/2016 determina que as seguintes informações sejam disponibilizadas na sua sede e em seu sítio eletrônico, antes do início da consulta: “o relatório de AIR, os estudos, os dados e o material técnico usados como fundamento para as propostas submetidas a consulta pública, ressalvados aqueles de caráter sigiloso” (art. 9º, § 3º).

A proposição impõe a publicidade das críticas e sugestões efetivadas no processo de consulta, além do posicionamento da agência a respeito delas (art. 9º, § 4º). Este dispositivo é importante, pois, ainda que as sugestões não sejam acatadas, os interessados têm o direito de saber os motivos de sua rejeição, podendo, posteriormente, utilizar os mecanismos tradicionais para postular a modificação do entendimento esposado pela agência (ou seja, a articulação da opinião pública ou os meios judiciais pertinentes). Ademais, esse dispositivo impede a repetição dos péssimos exemplos de consultas públicas nas quais a agência colocava determinada norma sob audiência pública e posteriormente simplesmente adotava a versão posta em consulta sem qualquer modificação e sem dar satisfação àqueles que se dispuseram a participar do processo consultivo.

O PL 6.621/2016 faculta ainda à agência reguladora convocar audiência pública para formação de juízo e tomada de decisão sobre matéria considerada relevante (art. 10), bem como estabelecer, em regimento interno, outros meios de participação de interessados em suas decisões (art. 11). Determina também a realização pública das reuniões de deliberação das agências, em reforço à transparência do processo decisório (art. 8º), o que compõe o devido processo regulatório.

Finalmente, é necessário destacar um grave problema enfrentado, sobretudo, pelas associações de proteção do consumidor, que não dispõem dos mesmos recursos financeiros e técnicos que os fornecedores possuem para defender seu ponto de vista. Isto, inegavelmente, gera distorções nas audiências e consultas públicas, tendo em vista a maior capacidade financeira e técnica dos fornecedores em expor seu ponto de vista.

O PL 6.621/2016 não contém dispositivo concernente à capacitação técnica das associações de defesa do consumidor, ao contrário do que fazia o arquivado PL 3.337 de 2004.41

Deste modo, o Projeto de Lei 6.621/2016 traz efetivas contribuições para o aperfeiçoamento da participação dos consumidores, ainda que seja omisso quanto ao assessoramento técnico das associações de defesa do consumidor.

As agências reguladoras têm o dever de assegurar aos consumidores ampla informação e participação no processo decisório (principalmente por meio de consultas e audiências públicas). Portanto, sua atuação não pode levar em consideração exclusivamente a perspectiva do fornecedor, mas também os interesses dos consumidores que podem ter dificuldade técnica, econômica e política para expressar suas pretensões e participar do processo regulatório.42

41 O PL 3.337 de 2004 continha dispositivo que assegurava “às associações constituídas há pelo menos três anos, nos termos da lei civil, e que incluam, entre suas finalidades, a proteção ao consumidor, à ordem econômica ou à livre concorrência, o direito de indicar à Agência Reguladora até três representantes com notória especialização na matéria objeto da consulta pública, para acompanhar o processo e dar assessoramento qualificado às entidades e seus associados. Caberá à Agência Reguladora arcar com a contratação dos especialistas, que devem ser vinculados a Universidades, instituições acadêmicas e de pesquisa”.

42 Transcrevo as seguintes considerações de Joaquim Falcão em entrevista à revista do IDEC: “Outro ponto é que as agências, sobretudo as de serviços públicos, obedecem a uma lógica segundo a qual o mercado atua melhor do que o Estado, desde que o mercado seja regulado. Todo sistema concorrencial do setor privado necessita de certo equilíbrio setorial, mas a finalidade das agências não é somente a busca desse equilíbrio da concorrência entre as diversas entidades privadas que atuam naquele mercado. Tanto a concorrência leal quanto o equilíbrio setorial são meios, não a finalidade das agências. A finalidade delas é garantir a prestação de um serviço ao cidadão, ao consumidor. Existem interesses públicos e do consumidor que vão além de um mero equilíbrio setorial ou de uma concorrência legal”. Disponível em: http://bit.ly/1NYJ6Zz. Acesso em: 18 dez 2015.

* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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Agências reguladoras e proteção do consumidorCapítulo 1

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REGULAÇÃO TARIFÁRIACapítulo 2

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N

IntroduçãoJosé Bonifácio de Souza Amaral Filho1

Arsesp 2007-2017: 10 anos contribuindo para o desenvolvimento

No final do século XIX, em 1887, os EUA criaram sua primeira agência reguladora independente federal, a Interstate Commerce Comission (ICC), para controlar o transporte em ferrovias, cujo monopólio e política de preços prejudicavam os produtores agrícolas. No início do século XX surgem agências reguladoras estaduais de serviços públicos (“public utilities comissions”). O auge da regulação estatal aconteceu de 1930 a 1945, com a Grande Depressão e o New Deal do presidente Roosevelt.

No Brasil, os serviços públicos foram inicialmente regulados por contratos entre as empresas prestadoras e a administração pública. Com o Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934, o “Código de Águas”, ocorreu a regulação federal do uso das águas e produção de eletricidade. A regulação dos serviços públicos era feita por órgãos e comissões federais, estaduais

1 José Bonifácio é economista (FEA-USP, 1975), com mestrado e doutorado no Instituto de Economia da Unicamp, onde é professor e leciona várias disciplinas desde 1982. Ocupou cargos em instituições públicas e empresas estatais e privadas. Foi Secretário de Finanças de Campinas (1985), Secretário Adjunto de Abastecimento e Preços do Ministério da Fazenda (1986/87), Diretor Administrativo-Financeiro da Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (Prodesp) (1991/94) e, entre 1983 e 2003, ocupou diversos cargos na Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), como Gerente de Estudos Econômicos, Economista Especialista, Assistente Executivo da Diretoria Econômico-Financeira e, após sua privatização, Gerente de Relações Institucionais e Diretor de Assuntos Regulatórios. Foi Conselheiro de Administração da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) (2005/08) e, em 2013, assumiu o cargo de Diretor de Regulação Econômico-Financeira e de Mercados da Arsesp, com mandato de 5 anos, respondendo pela presidência da agência de junho de 2015 a dezembro de 2017.

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IntroduçãoCapítulo 2

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e municipais, subordinados aos governos, ou por meio da presença direta do Estado e suas empresas (em muitos casos, indispensável para viabilizar a industrialização).

No Brasil, a regulação por meio de “agências independentes” surgiu nos anos 1990, em um contexto bem diferente, devido às privatizações das empresas estatais e retirada da presença direta do Estado, realizadas no âmbito do ajuste então associado à crise fiscal-financeira e ao endividamento externo da economia. A transferência patrimonial e da prestação dos serviços tornou necessários novos órgãos para regular e fiscalizar os serviços públicos, delegados por concessão do Estado à iniciativa privada.

Em âmbito estadual, foi criada em 1998 em São Paulo a Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE), para a regulação técnica e econômica e a fiscalização da distribuição de gás canalizado, além de fiscalizar a distribuição de eletricidade por meio de convênio com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Em 2007, com a edição do marco regulatório do saneamento (Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007) foi criada a Arsesp, que sucedeu a CSPE para regular também os serviços do saneamento básico estadual e os delegados por convênio pelos municípios.

A Diretoria de Regulação Econômico-Financeira e de Mercados da Arsesp tem como principal função a regulação econômico-financeira, em especial procedimentos de reajustes e revisões tarifárias dos serviços regulados, e a fiscalização econômico-financeira para verificar o cumprimento das regras pelas concessionárias.

Os reajustes tarifários são atualizações anuais das tarifas, com base na inflação. São utilizados índices de preços, variação do Índice Geral de Preços do Mercado (IGPM), no caso do gás canalizado, e do Índice de Preços ao Consumidor (IPCA), no caso do saneamento, para corrigir as margens da distribuidora, descontando o “fator X”, um percentual estimado de ganhos de eficiência e produtividade; no caso da energia elétrica, a regulação econômica cabe inteiramente à Aneel.

Já as revisões tarifárias são procedimentos complexos, realizados periodicamente (a cada 4 anos no caso do saneamento e 5 na

distribuição de gás canalizado). Em um processo de revisão tarifária são avaliados os custos operacionais da concessionária, o capital aplicado e os investimentos previstos, a taxa de remuneração do capital (baseada no custo médio ponderado do capital), e o mercado a atender, para estabelecer novo nível tarifário. Além disso, na revisão se estimam ainda ganhos anuais previstos de eficiência e produtividade da empresa (o “fator X”, a descontar do reajuste anual).

Revisões tarifárias extraordinárias podem ocorrer em situações excepcionais, como ocorreu na crise hídrica de 2014/16 em São Paulo. A Arsesp acabara de fazer uma revisão tarifária periódica da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), em 2014, mas a persistência da crise levou a concessionária a solicitar em 2015 a revisão extraordinária, pois a disponibilidade hídrica e o consumo caíram drasticamente e sua receita se tornava insuficiente para a cobertura dos custos operacionais, recuperação e remuneração do capital. Foi necessária uma nova revisão tarifária, extraordinária, para manter o equilíbrio econômico-financeiro da concessão.

Nas revisões tarifárias, as consultas e audiências públicas são ponto importante do procedimento. Por meio delas a agência apresenta suas informações e recebe as contribuições, com a participação do público em geral, para a tomada de decisão. Por exemplo, em audiência pública realizada para revisão tarifária da Sabesp, participaram representantes da concessionária, de instituições do mercado de investimentos e acionistas, representantes de entidades ambientais, ONGs, pesquisadores universitários e outros. O interessante desses encontros é que também são debatidos assuntos que vão além da revisão tarifária em si, com temas como tratamento de esgotos,

“Nas revisões tarifárias, as consultas e audiências públicas são ponto importante do procedimento

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IntroduçãoCapítulo 2

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proteção e recuperação de mananciais, tarifa residencial mínima e expansão da tarifa social.

Os documentos de Audiências e Consultas Públicas – Notas Técnicas Iniciais e Finais, Relatórios de Contribuições Recebidas – são divulgados no site da agência, e as decisões da Diretoria Colegiada, seu órgão máximo, são publicados no Diário Oficial, de modo a assegurar a transparência da atuação da agência reguladora.

Os próximos dez anos

Em uma década de existência, a Arsesp já se consolidou como agência reguladora competente, agregando as áreas de gás canalizado e de eletricidade, que já eram responsabilidade da CSPE, a regulamentação e fiscalização do saneamento básico, área de suma importância para a população em geral. A perspectiva agora e para a próxima década é instituir um plano de carreira, ampliar o quadro de funcionários e aprimorar ainda mais suas formações, oferecendo treinamentos e capacitações, diante da importância e amplitude das funções exercidas em favor da sociedade.

Outro ponto crucial, e talvez seja esse o maior desafio, é tornar a agência um coadjuvante das políticas públicas, para auxiliar o poder público na decisão de políticas setoriais e facilitar a definição dos investimentos prioritários que deverão ser realizados pelos concessionários – por exemplo, para expandir a cobertura do saneamento em regiões ainda não alcançadas e assegurar a qualidade da prestação do serviço. Nesse sentido, a agência anda “de mãos dadas com o desenvolvimento” e pode contribuir para o bem-estar dos habitantes de todo o Estado.

Assim, embora não caiba a uma agência reguladora fazer “política setorial” – que é uma atribuição de outras instâncias do poder público – sem dúvida a Arsesp tem papel fundamental ao realizar estudos e simulações de impactos tarifários associados às diferentes alternativas de extensão e de aceleração dos investimentos em serviços públicos, contribuindo para o processo de decisão e a melhora das condições de vida.

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s * Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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IntroduçãoCapítulo 2

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Regulação TarifáriaJoisa Dutra1

CCriada em 2007, a Arsesp tem como competências a regulação, controle e fiscalização dos serviços de gás canalizado e de saneamento básico em âmbito estadual. No setor de energia elétrica, a agência atua na fiscalização das distribuidoras que prestam o serviço no estado de São Paulo. A Arsesp é sucessora da Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE), que atuava na regulação e fiscalização dos serviços de energia elétrica e gás canalizado desde 1998.

O conjunto destas atribuições determina o escopo deste artigo, analisa os principais desafios na regulação tarifária encontrados pela agência. Para isso, será realizada uma breve explanação da atuação da agência, seguida de um diagnóstico da situação atual da regulação tarifária no Brasil, e os principais desafios e perspectivas para determinar tarifas nos setores de energia elétrica, gás natural e saneamento básico no país. Por fim, será analisado em maior detalhe o processo de revisão tarifária da Comgás. Esse caso ilustra a estreita relação entre uma atuação aderente a boas práticas de governança regulatória e o processo de determinação de tarifas.

1 Professora da FGV/ EPGE – Escola Brasileira de Economia e Finanças e diretora do FGV/CERI – Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura. Foi também diretora da Aneel entre 2005 e 2009.

Atuação da Arsesp e regulação tarifária nos setores envolvidos

Regulação e tarifas

De modo geral, a análise da regulação envolve duas grandes dimensões: conteúdo e forma.2 O conteúdo versa sobre a determinação das condições de provisão dos serviços e atuação das empresas reguladas. Estas incluem fixação de tarifas, requisitos de qualidade, restrições à entrada, quantidades e metas de investimento a serem cumpridas, nos termos do disposto na legislação e da regulamentação aplicáveis e dos contratos.

No processo de determinação de tarifas, compete ao regulador garantir condições para que as empresas reguladas tenham capacidade de arcar com os custos prudentes – custos operacionais, remuneração dos ativos que compõem a base de remuneração regulatória acrescidos de uma taxa de retorno regulada, além de fazer frente a encargos e tributos. A eficiência na prestação dos serviços requer a capacidade de arrecadar receita suficiente para compensar não apenas os custos variáveis, mas também os custos fixos, de modo a equilibrar objetivos de curto e longo prazo – preços/tarifas e qualidade adequados, com capacidade de remunerar investimentos prudentes e atrair capitais para a atividade.

Ainda que a Arsesp atue nos serviços de eletricidade, nos termos do disposto no convênio de cooperação com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), sua competência em matéria de regulação

2 BROWN, A. et al. Handbook for evaluating infrastructure regulatory systems. Washington DC: The International Bank for Reconstruction and Development /The World Bank, 2006.

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Capítulo 2

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tarifária se dá de modo efetivo nos setores de saneamento e no de gás natural. Essas competências são objeto de avaliação mais detalhada nas seções a seguir.

Energia Elétrica

No exercício da regulação do setor elétrico, a determinação de tarifas é de competência da Agência Federal, a Aneel. Três são os mecanismos disponíveis para adequar o valor das tarifas. De acordo com o estabelecido nos contratos de concessão das distribuidoras de eletricidade, em cada intervalo tarifário (que varia de três a cinco anos), é realizada uma revisão periódica das tarifas. Nos intervalos entre revisões tarifárias, anualmente são reajustadas as tarifas para permitir aos provedores de serviços arcar com as despesas gerenciáveis – relacionadas com a atividade objeto da concessão, reajustadas como função da inflação – e não gerenciáveis. Estas incluem funções para as quais a empresa regulada é mero veículo de arrecadação, caso da transmissão e geração de eletricidade. As revisões extraordinárias, por sua vez, permitem estabelecer tarifas no advento de circunstâncias excepcionais que comprometam o equilíbrio financeiro das provedoras de serviços.

A Arsesp atua no setor por meio de contratos entre o governo federal e o estado de São Paulo, fiscalizando 14 concessionárias de distribuição de energia elétrica no estado, que atendem aproximadamente 18 milhões de usuários. Ademais, a agência conduziu também o processo de regularização de 16 cooperativas de eletrificação rural no estado, enquadrando 12 como permissionárias – que prestam serviço público de distribuição de energia – e quatro como autorizadas.

Pelo convênio de cooperação com a Aneel, a Arsesp atua na fiscalização de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) e Pequenas Centrais Termelétricas (PCT) em fase de implantação, operação, reforma e modernização, com verificações regulares, o que também ocorre no caso de expansão de oferta.

Tabela 1. Setor Elétrico – atuação da ArsespConcessionárias de distribuição de energia elétricaEDP BANDEIRANTE

CAIUÁ

CPFL Jaguari

CPFL Mococa

CPFL Santa Cruz

Nacional

CPFL Leste Paulista

CPFL Piratininga

CPFL Sul Paulista

CPFL Paulista

Elektro

AES Eletropaulo

Bragantina

Vale Paranapanema

Empresas autorizadasCooperativa de Eletrificação Rural da Média Sorocabana (Cermeso)

Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de Osvaldo Cruz (Ceroc)

Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de Palmital (Cerpal)

Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de Tupã (Cert)

Permissionárias Cooperativa de Eletrificação da Região do Alto Paraíba (Cedrap)

Cooperativa de Energização e Desenvolvimento Rural do Vale do Itariri (Cedri)

Cooperativa de Eletrificação e Desenvolvimento da Região de Mogi Mirim (Cemirim)

Cooperativa de Eletrificação e Desenvolvimento da Região de Itu-Mairinque (Cerim)

Cooperativa de Eletrificação Rural de Itaí-Paranapanema-Avaré (Ceripa)

Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de Itapecerica da Serra (Ceris)

Cooperativa de Eletrificação e Desenvolvimento da Região de Mogi das Cruzes (Cermc)

Cooperativa de Eletrificação e Desenvolvimento Rural de Novo Horizonte (Cernhe)

Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de Promissão (Cerpro)

Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de São José do Rio Preto (Cerrp)

Cooperativa de Energização e de Desenvolvimento Rural do Vale do Mogi (Cervam)

Cooperativa de Eletrificação de Ibiúna e Região (Cetril)

269 Centrais Termelétricas84 Centrais Hidrelétricas

Fonte: Arsesp. Elaboração: FGV/CERI.

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Nessas empresas, a Arsesp realiza fiscalizações técnico- -comerciais e econômico-financeiras. Suas funções se estendem ainda ao relacionamento com o usuário, orientando o recebimento de reclamações na mediação da relação ao serviço prestado pelas concessionárias sob sua fiscalização. Ainda que não de modo direto, a ação da agência estadual é fundamental para acompanhar as condições de prestação de serviços e subsidiar o processo de determinação de tarifas.

Gás naturalEscopo de atuação da Arsesp

As competências da Arsesp para regulação do gás natural são mais abrangentes, e incluem desde a fixação dos valores iniciais das tarifas, passando por seus reajustes e revisões, até o monitoramento e avaliação da prestação do serviço de distribuição de gás. A agência regula a prestação do serviço das três concessionárias de distribuição que atuam no estado: (i) a Companhia de Gás de São Paulo (Comgás), responsável pelo atendimento a 79 municípios; (ii) Gás Natural São Paulo Sul (GNSPS), que atua em 18 municípios; e (iii) a GasBrasiliano, com atuação em 16 municípios.

A Comgás e a GasBrasiliano firmaram contrato de concessão em 1999, e a GNSPS, no ano seguinte.

Os contratos de concessão firmados pelas três distribuidoras definem revisões tarifárias em intervalo quinquenal e reajuste tarifário anual, com mecanismos de preço-teto, que buscam incentivar ganhos de eficiência a serem compartilhados com usuários periodicamente. Entre os períodos de revisão, as tarifas são reajustadas por variação em um índice de preços, no caso, o IGP-M. O cálculo da tarifa inclui três componentes: o preço do gás, do transporte e margem de distribuição.

As três concessionárias se encontram no terceiro ciclo tarifário, que se estende até 2019. A primeira revisão ocorreu em 2004 e 2005, a segunda, em 2009 e 2010, e a terceira, em 2014. A taxa de

retorno permitida pelo regulador é calculada com base no custo médio ponderado de capital (WACC). Os valores aplicáveis às três revisões constam na Tabela 2. A Comgás, entretanto, contestou o valor do WACC estabelecido na terceira revisão tarifária, processo que é objeto da última seção deste capítulo.

Tabela 2. Revisões tarifárias realizadas pela Arsesp no setor de gás natural

Empresa1ª Revisão Tarifária 2ª Revisão Tarifária 3ª Revisão Tarifária

Ano WACC (%) Ano WACC

(%) Ano WACC (%)

GDB 2004 13,66 2009 10,05 2014 8,62GNSPS 2005 13,66 2010 9,56 2014 8,62Comgás 2004 11,76 2009 9,55 2014 8,04*

*valor ainda não em vigorFonte: Arsesp. Elaboração: FGV/CERI.

A título de comparação, o gráfico a seguir mostra o valor de WACC definido por outras agências reguladoras, em diferentes setores no Brasil.

Figura 1. WACC em diferentes setores

Setor de Infraestrutura (Agência Reguladora)

Últ

imo

WA

CC (r

eal)

Saneamento (Sanepar)

Aeroporto

s (Anac)

Portos (

Antaq)

Ferro

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ANTT)

Rodovias (

ANTT)

Energia Elétrica

– Transm

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Energia Elétrica

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uição de Gás –

SP (Comgá

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Saneamento – SP (A

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)

Gás – M

G (Gasm

ig)

8,62%8,50%

10%10,60%

9,20%9,67%

8,09%

9,60%

8,04% 8,01% 8,15%

12,00%

10,00%

8,00%

6,00%

4,00%

2,00%

0,00%

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Desafios à regulação tarifária no setor

O processo de estabelecimento de tarifas, parte do conteúdo da regulação, é condicionado pela estrutura e/ou desenho de mercado. Nessa seção destacamos desafios relacionados à estrutura de mercado na indústria de gás natural.

No contexto das reformas liberalizantes nas últimas décadas do século XX, a separação de indústrias verticalmente integradas manteve as indústrias de rede sob regime de monopólio.3 Esse é o caso do gás natural. A determinação de tarifas, com base em custo e/ou fixação de um preço máximo, permite controlar e/ou mitigar exercício de poder de mercado, que no caso se traduziria em lucros extraordinários característicos da prestação de serviços em setores que apresentam economias de escopo ou escala.4 Por não haver competição de mercado, o monopolista tem menos incentivo a buscar melhorias tecnológicas e a tornar sua operação mais eficiente.

Não apenas a determinação de tarifas mitiga comportamento desse tipo. A existência de recursos substitutos restringe a possibilidade de o prestador de serviço, em regime de exclusividade em determinada área de concessão, auferir lucros extraordinários. O exercício de poder de mercado é contido também pela existência de substitutos próximos.5 Avanços no setor têm apresentado alternativas de suprimento que poderiam contribuir para aliviar os incentivos e preços altos. Isso ocorre porque a movimentação do gás natural através de dutos não é o único modal de distribuição disponível para esse energético. Atualmente, o país conta também com gás natural liquefeito (GNL) e, em menor escala, movimentado por caminhões e barcaças como gás natural comprimido (GNC).

Essas atividades, no entanto, por serem modais alternativos, competem com a distribuição de gás natural através de dutos. Além de serem atividades submetidas à competência federal – o que as

3 NEWBERY, D. M. Privatization, restructuring and regulation of network industries. Cambridge, MA: The MIT Press, 2001.

4 SALANIÉ, B. The microeconomics of market failures. Cambridge e London: MIT Press, 2000.5 VISCUSI, W. K..; VERNON, J. M.; HARRINGTON JUNIOR., J. E. Economics of regulation and antitrust.

4 ed. Cambridge, MA: The MIT Press, 2005.

impediriam de ser outorgadas pelo poder concedente estadual –, permitir que as concessionárias prestem esses serviços como parte do objeto de sua concessão e em regime de exclusividade confere vantagem que foge ao escopo das atividades de redes. Como a regulação setorial restringe a entrada de novos prestadores, reduz-se a capacidade de que a concorrência no fornecimento do gás natural beneficie os consumidores por meio de preços mais baixos. A regulação tarifária deve atentar para transferências de recursos e custos entre atividades reguladas e outras que venham a ser agregadas.

Assim como observado em relação à contratação de gás pelas distribuidoras, é necessário que a regulação busque mecanismos para conferir transparência aos componentes considerados em cada revisão e reajuste tarifário da distribuidora. Além de ser uma forma de accountability perante os usuários dos serviços de distribuição, ter maior clareza sobre as componentes é fundamental para diferenciar os custos reembolsáveis às concessionárias daqueles que irão compor sua remuneração. Esse é o caso da determinação da base de ativos regulatória ou, nos casos em que o contrato prevê, de seus custos operacionais.

Em qualquer hipótese, é válido destacar que a contabilização desses custos deve levar em conta aqueles pertinentes ao exercício da atividade – efetivamente ligados à prestação do serviço – e não necessariamente aos custos em que incorre determinada empresa prestadora de serviços. Ou seja, os custos assumidos pela

“é necessário que a regulação busque mecanismos para conferir transparência aos componentes considerados em cada revisão e reajuste tarifário da distribuidora

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concessionária que não tenham relação com a prestação do serviço público de distribuição não devem ser objeto de repasse às tarifas.6

Esses exemplos ilustram os desafios enfrentados na regulação do gás natural. Distinta da regulação de tarifas em eletricidade, a divisão de competência entre o regulador federal, responsável pelo transporte dutoviário, e o estadual, com atribuições para a distribuição, aumenta consideravelmente a complexidade do processo. Contribuem para esse quadro a maior proximidade entre o Poder Executivo e o regulador em nível estadual, comparativamente ao federal, o que torna mais complexa a autonomia decisória do regulador.7

A regulação tarifária depende de clareza quanto aos limites da regulação, ou seja, precisa delimitar as atividades que são objeto da concessão, bem como as razões para restringir a entrada de novos competidores em um ou outro segmento da cadeia de valor da indústria, revisitando sua racionalidade a qualquer tempo. Essa lógica se aplica ao fornecimento de gás natural por meio de Gás Natural Comprimido (GNC) e também à comercialização.

A fronteira entre as atividades reguladas e aquelas que admitem competição pode se alterar ao longo do tempo, sendo mesmo legítimo permitir que um concessionário possa estender sua atuação em regime de exclusividade para outros segmentos; entretanto, mudanças no objeto da concessão devem ser cuidadosamente escrutinadas à luz dos fundamentos econômicos.8 Esse processo também é parte da atividade de determinação de tarifas pelo regulador, devendo ser cuidadosamente justificado e compensado,

6 Um caso recente sobre a cobrança de tarifas pelas distribuidoras quando não há efetivamente um serviço cobrado pelo Estado é o Decreto do Estado de Sergipe 3.052/2016, que estabeleceu que a TMOV (tarifa de movimentação, que não contempla o custo da molécula) não se aplica à movimentação de gás para consumo próprio nas instalações e dutos integrantes de terminais de GNL e gasodutos de transferência para usinas termelétricas. Ao analisar a validade desta determinação, a Procuradoria do Estado de Sergipe destacou: “Não há renúncia indevida sobre a cobrança da Tarifa de Movimentação de Gás (TMOV), receita supostamente devida à SERGAS, quando se percebe que a não incidência da tarifa em tela decorre do simples fato de que na hipótese de incidência o gás movimentado não circulará pelos dutos ou qualquer infraestrutura dutoviária da concessionária”.

7 BROWN et al., op. cit.8 NEWBERY, op. cit.

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de modo a evitar transferências indevidas entre atividades em regime de monopólio de outras que admitem competição. A falha em estabelecer adequadamente essas fronteiras onera indevidamente consumidores, que deixam de se beneficiar do potencial competitivo no segmento de upstream, configurando falha da regulação.

Condições adequadas para determinar tarifas de distribuição de gás canalizado dependem da clara identificação das componentes de custo (preço do gás, preço do transporte e margem de distribuição). Nesse contexto, é essencial avaliar em que medida os valores considerados para repasse ou composição da base de remuneração do concessionário refletem (apenas) aqueles relacionados à prestação do serviço objeto da concessão.

Atualmente está em discussão no país uma reforma que visa estabelecer as bases para o desenvolvimento de um mercado competitivo de gás natural. Com esse fim, foi criado em meados de 2016 o programa “Gás para Crescer”, no âmbito do Ministério de Minas e Energia. Essa reforma representa oportunidade de estabelecer as bases para cooperação institucionalizada entre reguladores estaduais e o regulador federal visando melhorias no processo de determinação tarifária. Uma adequada articulação entre esses entes contribui para fortalecer a capacidade institucional, conferindo transparência e aperfeiçoamento à regulação tarifária ao delimitar claramente os segmentos em que atua a concessionária.

Saneamento

No Brasil, existem cerca de 50 agências reguladoras que atuam no setor de saneamento, com abrangência que pode ser estadual, municipal e microrregional. Nos termos do que dispõe a Lei Federal do Saneamento Básico (Lei 11.445/2007), é atribuição do ente regulador a definição da estrutura tarifária e determinação da tarifa. Não há referencial nacional de metodologia tarifária, decorrência inclusive da titularidade municipal na prestação dos serviços. Pode-se afirmar, contudo, que muitas agências reguladoras carecem de capacidade institucional e técnica para atender a essas competências.

Em geral, é criada uma tarifa-base que contempla a cobertura de custos do prestador e garante alguma taxa de retorno a ser auferida pelos investimentos. Essa tarifa é escalonada em uma estrutura que contempla uma tarifa unitária (R$/m³) para provisão de serviços de água e esgoto. Essa componente varia, comumente, de acordo com a faixa de consumo e tipo de economia (residencial, comercial, industrial e pública). Usualmente, a primeira faixa de consumo é definida como consumo mínimo, com propósito de assegurar a cobertura dos custos fixos, e costuma estar entre 0 e 10 m³.

Do ponto de vista tarifário, o saneamento no Brasil incorpora muitos subsídios cruzados: as receitas auferidas com a prestação dos serviços entre os municípios de um estado ou região ajudam a sustentar custos em outros com menor capacidade de investimento. Também há subsídio entre as faixas de consumo e os tipos de economia: quanto maior o consumo, maior a tarifa praticada. As economias comerciais e industriais normalmente contam com tarifas maiores que as residenciais, subsidiando-as. Além disso, algumas companhias do setor estabelecem a tarifa social, aplicando mais subsídios para consumidores residenciais de baixa renda ou com condições domiciliares consideradas precárias.

Escopo de atuação da Arsesp

A Arsesp regula e fiscaliza os serviços de saneamento de titularidade estadual, assim como aqueles de titularidade municipal, no caso de municípios que firmem convênio com a agência estadual. No caso,

“No Brasil, existem cerca de 50 agências reguladoras que atuam no setor de saneamento, com abrangência que pode ser estadual, municipal e microrregional

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a agência atua em municípios situados em regiões metropolitanas (São Paulo, Campinas, Baixada Santista e Vale do Paraíba/Litoral Norte), e em dois municípios com serviços prestados por empresas privadas: Mairinque e Santa Gertrudes, totalizando 284 municípios, de acordo com dados publicados pela Arsesp9.

Seu exercício da regulação abrange quatro prestadores: a Sabesp (companhia estadual, incluindo as unidades Diadema, Glicério, Lins, Magda, Santa Isabel e Torrinha) e duas concessionárias privadas: BRK Ambiental (Santa Gertrudes) e Saneaqua (Mairinque).

No âmbito da regulação tarifária, a Arsesp reajusta as tarifas anualmente e as revisa periodicamente, em intervalos de quatro anos. A Sabesp já passou por duas revisões tarifárias. Os reajustes da companhia são realizados com base no IPCA, descontado de um fator de redução de ineficiência estimado no processo de revisão tarifária (fator X). Já no caso das concessionárias privadas reguladas pela Arsesp, a revisão tarifária é realizada com o intuito de garantir a Taxa Interna de Retorno (TIR) prevista no contrato de concessão, de quatro em quatro anos; e o reajuste é determinado pelo índice de inflação previsto em contrato. Definidas as tarifas-base, tanto no caso da Sabesp como no caso das concessionárias privadas, a estrutura tarifária (determinação dos valores aplicáveis a diferentes grupos e/ou classes de usuários) e os critérios para sua aplicação (desde a elegibilidade dos usuários até benefícios como tarifa social) são aprovados pela agência.

Tabela 3. Revisões tarifárias determinadas pela Arsesp no setor de saneamento

Empresa1ª Revisão Tarifária 2ª Revisão Tarifária

Ano WACC (%) Ano WACC (%)

Sabesp 2012 8,06 2017 8,01*

  Ano TIR

BRK (Santa Gertrudes) 2015 9,88

Saneaqua (Mairinque) 2016 8,85

*Preliminar, ainda em fase de revisão tarifáriaFonte: Arsesp. Elaboração: FGV/CERI, 2017.

9 Disponível em: https://bit.ly/2xHIhVG. Acesso em: 5 fev. 2017.

Desafios à regulação tarifária no setor

Observa-se que as tarifas praticadas no Brasil, em geral, não têm conseguido fazer frente à estrutura de custos e à necessidade de investimentos das operadoras, seja pelo alto grau de ineficiência operacional ou ainda por serem subdimensionadas. Diante desse quadro, não raro as agências reguladoras encontram dificuldades para definir as tarifas. Portanto, é necessário estabelecer metodologias tarifárias de referência para os entes reguladores, que levem em consideração a capacidade de pagamento dos usuários, os diferentes tipos de economias (residencial, comercial etc.) e os diferentes estágios de desenvolvimento da população local, conforme prevê a Lei Federal do Saneamento Básico.

A estrutura tarifária praticada em geral no país é pouco transparente no que se refere aos custos do prestador. Além disso, tarifas mantidas em níveis artificialmente baixos como reflexo de políticas apresentam distorções no incentivo ao uso consciente da água e não beneficia efetivamente populações que deveriam ser beneficiadas. O aumento da transparência no processo pode assegurar mecanismos para comparabilidade entre os diferentes prestadores, alinhando os incentivos para o consumo consciente da água.

A política de subsídio tarifário mencionada na seção anterior não é unificada e sua gestão é feita pelo prestador. Anteriormente, a política de subsídio era determinada pelo Banco Nacional da Habitação (BNH) e em 2007 foi promulgada a Lei Federal de Saneamento, que prevê que a agência prestadora oriente a política de subsídio. No entanto, o que observamos hoje é uma política não unificada e pouco transparente em que os prestadores apresentam critérios distintos para identificar os beneficiários. Como resultado deste modelo, tais políticas muitas vezes têm natureza regressiva, beneficiando relativamente mais segmentos de alta renda.10 é importante, então, redefinir a política de subsídios do país no setor de saneamento para promover o acesso ao serviço de toda a população, e criar mecanismos de controle

10 Ver Desafios da regulação de infraestrutura no Brasil – carta de Florianópolis (2017). Disponível em: ceri.fgv.br.

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que propiciem mais transparência e efetividade na identificação e adesão da população a ser beneficiada.

Estudo de caso: o processo da Comgás

Para ilustrar os desafios impostos à regulação tarifária em São Paulo, esta seção discorre sobre o processo de revisão tarifária da Comgás referente a 2014. No ano em questão, estava prevista a revisão tarifária periódica das companhias de distribuição de gás natural. O valor calculado pela agência para o custo médio ponderado de capital (WACC) foi de 8,04%. A concessionária, por sua vez, alegava que o valor adequado seria 12%. Além disso, questionava a metodologia de avaliação da base de ativos adotada, entendendo que deveria ser preservado o valor econômico mínimo estabelecido quando da privatização da empresa.

Além de discordar dos valores devidos, a concessionária alegou irregularidades formais no processo. O tema foi objeto de recurso junto à Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e, em um segundo momento, o litígio passou à esfera judicial. Transcorridos três anos, o conflito ainda não foi resolvido e se aproxima o novo ciclo de revisão tarifária. A situação de incerteza jurídica da concessionária persiste, gerando indefinições tanto para a empresa como para os usuários do serviço e a própria agência Reguladora.

Análise de metodologia para determinar taxa de remuneração de custo de capital para as companhias distribuidoras de gás natural canalizado no estado de São Paulo

No contexto do caso em questão, o FGV CERI desenvolveu, em agosto de 2016, estudo para avaliar a metodologia vigente para o cálculo do custo médio ponderado do capital (em inglês, Weighted Average Cost of Capital – WACC) das empresas de distribuição de gás em São Paulo, com base nas melhores experiências internacionais

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e literatura acadêmica relevante no campo de finanças corporativas aplicada à regulação econômica.11

As principais conclusões desse estudo mostram que a metodologia descrita nas notas técnicas ARSESP RTG/01/2014 e RTG/02/2014 e utilizada na estimativa do WACC para as companhias de distribuição de gás em São Paulo é completamente aderente com as práticas e a teoria de Finanças Corporativas e Avaliação de Empresas para firmas em mercados emergentes.

A sistemática utilizada também é corroborada pela literatura acadêmica, bem como por evidências internacionais no tocante a estimativas de taxa de retorno para fins de revisão de tarifas de serviços de utilidade pública.12

As particularidades do mercado de capitais brasileiro, que inviabilizam a aplicação direta de um modelo CAPM13 com dados locais e/ou o uso de um modelo alternativo de crescimento de dividendos, também fortalecem a decisão da Arsesp no tocante à escolha metodológica.

Não há diferenças relevantes quando se comparam as notas técnicas explicitadas, que apoiam a revisão mais recente do WACC e a nota técnica associada à revisão anterior, RTC 01/200914 – a mudança no parâmetro é essencialmente relacionada a atualizações de bases de dados. É possível detectar, inclusive, melhorias no processo de coleta das séries utilizadas, o que trouxe ganhos de consistência a

11 “Análise de metodologia para determinação de taxa de remuneração de custo de capital para as companhias distribuidoras de gás natural canalizado no estado de São Paulo ”, 26 de agosto de 2016. Estudo citado em ABRACE, “Contribuições da Abrace à Consulta Pública 02/2014 (nota técnica RTG/02/2016)”. Disponível em: http://bit.ly/2yZYzLE. Acesso em: 10 abr 2017.

12 GIACCHINO, L. R.; LESSER, J. A. Principles of utility corporate finance. Vienna, VA: Public Utilities Reports, 2011.

13 DAMODARAN, A. Damodaran on valuation: security analysis for investment and corporate finance. Hoboken (NJ): John Wiley & Son, Inc., 2006.

14 ARSESP. Nota Técnica RTC 01/2009. Determinação do Custo Médio Ponderado do Capital para a Companhia de Gás de São Paulo. Disponível em: http://bit.ly/2gRSdn1. Acesso em: 14 mar 2017.

estimativa e um alinhamento metodológico com relação às melhores práticas e o benchmark nacional – Aneel.

Simulações conservadoras realizadas indicam ainda que a margem máxima poderia ser menor entre sete e oito pontos percentuais caso fosse aplicado o WACC atualizado para a Comgás, dentro do estudo de caso realizado.

Assim, a observação final do estudo foi que os números mais recentemente estimados podem e devem ser aplicados na reavaliação das margens máximas das companhias de distribuição de gás canalizado em São Paulo, com potenciais benefícios aos consumidores.

Esse caso demonstra as dificuldades que enfrenta a agência. Como observado na seção que discute a regulação tarifária aplicável ao gás natural, o contrato de concessão da Comgás foi assinado em 1999, antes da criação da Arsesp, assim como os contratos da GNSPS e da GasBrasiliano. A determinação de nova tarifa, mesmo embasada e justificada pela agência em diversas notas técnicas, ainda não conseguiu ser implementada

Conclusão

A atuação da Arsesp abrange serviços de eletricidade, distribuição de gás natural e água e saneamento; entretanto, sua competência em matéria tarifária é permeada por especificidades, conforme apresentado neste capítulo.

A agência não tem competência direta na regulação tarifária dos serviços públicos de distribuição de eletricidade, ainda que seu papel na fiscalização seja instrumental para o bom exercício da regulação.

No caso dos serviços de saneamento, a titularidade da prestação dos serviços atribuída ao município limita o exercício da regulação em matéria tarifária. Ainda que a agência já tenha implementado revisões para a Sabesp, no setor o tema ainda está em processo de construção. Alguns desafios importantes são apontados: a universalização do acesso aos serviços ainda está distante da realidade. Neste contexto, as tarifas têm papel fundamental, determinando a capacidade de

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Regulação TarifáriaCapítulo 2

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investimento das companhias em expansão das redes. Some-se a isso a possibilidade de se aumentar a participação privada, eventualmente mediante privatização de ativos, o que depende da capacidade percebida pelos competidores de auferirem receitas capazes de fazer frente aos custos eficientes

A esse respeito, vale atentar para a experiência recente da Arsesp na regulação da distribuição de gás natural. Ainda que do ponto de vista de competências caiba ao estado a regulação dessa atividade, incluindo a fixação de tarifas, a experiência da Arsesp na determinação das tarifas da Comgás, posteriormente judicializada, evidencia a importância de tratar o tema não apenas como parte do conteúdo da regulação, mas também atesta a relevância do rito no processo decisório das agências reguladoras.

Ademais, o exemplo da concessionária em questão ilustra a importância de se ter clareza quanto ao compacto regulatório antes da modelagem da privatização e ao processo em si. Do contrário, uma eventual frustração de expectativas por parte da empresa regulada pode suscitar contestações das decisões regulatórias, não raro interpretadas como aumento da percepção de risco regulatório.

A Arsesp celebra agora uma década. De modo quase concomitante, há cerca de duas décadas inaugurava-se no Brasil o modelo de agências reguladoras independentes em infraestrutura. A análise de sua experiência – provavelmente a agência multissetorial que regula serviços em nível estadual mais dinâmica do país – expõe os importantes desafios a serem enfrentados nos anos que virão.

Em um momento em que se criam expectativas com relação a uma nova onda de aumento da participação privada para ajudar a preencher a lacuna de infraestrutura, é fundamental reconhecer a importância do conhecimento das “regras do jogo” antes da atribuição dos contratos de concessão. Diminui-se assim a percepção de risco regulatório e consequentemente o custo do capital, gerando ganhos de competitividade e melhorias nas condições de prestação dos serviços de infraestrutura.

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s * Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ENERGIA ELÉTRICA

Capítulo 3

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IntroduçãoMarcos Peres Barros1

Dez anos cumprindo com excelência a fiscalização do setor elétrico paulista

CComemorar uma década de existência é um marco para qualquer instituição, ainda mais para uma agência como a Arsesp, que tem papel tão importante em serviços essenciais à população. Ao longo desse tempo, a agência conseguiu consolidar sua atuação, sendo referência para outras agências reguladoras de todo o Brasil

Essa conquista se deve ao trabalho árduo de várias pessoas que por aqui passaram e ajudaram a construir uma base sólida para regular e fiscalizar os serviços de gás e saneamento em São Paulo. Além disso, por meio do Contrato de Metas firmado entre a União, representada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), e o governo do estado de São Paulo, a Arsesp fiscaliza 24 distribuidoras de energia elétrica do estado de São Paulo – 14 concessionárias e 10 permissionárias2. Ainda no campo da energia, a fiscalização da Arsesp também engloba a operação de pequenas centrais hidrelétricas (PCH) e usinas termoelétricas.

Nesses dez anos, nosso objetivo tem sido garantir que a população receba serviços de qualidade com preços justos e, mais do que isso, que esses serviços sejam ampliados para áreas ainda não contempladas.

1 Engenheiro eletricista formado pela Universidade de Mogi das Cruzes - UMC e Especialista em Planejamento de Operação de Sistemas pela Universidade de Campinas - UNICAMP, Marcos é o atual diretor de regulação técnica e fiscalização de serviços de energia elétrica.

2 Disponível em: https://bit.ly/2zUuX1g. Acesso em: 4 mar. 2018.

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IntroduçãoCapítulo 3

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Há também uma nova proposta de fiscalização, aprovada pela Aneel, chamada de “monitoramento”. Em síntese, avalia-se o comportamento do agente em relação aos indicadores e qualidade dos serviços e, conforme os critérios de importância, prioridade e risco, define-se ações preventivas com o agente fiscalizado. Após essa fase é realizado um diagnóstico e orientações sobre os problemas identificados são fornecidas ao agente. O agente deverá apresentar um plano de melhorias, propondo alterações necessárias para que dentro de um prazo adequado a distribuidora obtenha melhores resultados relacionados a qualidade dos serviços. Este plano de melhorias será acompanhado periodicamente pela Arsesp, verificando-se a tomada das providências propostas e o desempenho da empresa em relação aos resultados esperados.

Esta nova proposta de fiscalização está sendo aplicada em todo o Brasil, e busca não só aproximar órgão regulador e agente regulado, mas também melhorar o serviço oferecido. Percebemos que apenas multar as distribuidoras de energia não garante melhorias no serviço e resultados positivos para os consumidores, uma vez que é possível recorrer e iniciar um processo burocrático e demorado.

Em 2016, todos os colaboradores da diretoria de energia elétrica foram incluídos neste novo processo de fiscalização por monitoramento. Começamos com um piloto na AES Eletropaulo e, a partir daí, nas demais distribuidoras do estado de São Paulo. Ficou comprovado que os resultados obtidos foram bastante positivos, além do engajamento de todos ter superado as expectativas.

Novo modelo do setor elétrico brasileiro

No momento em que a Arsesp completa dez anos, está em discussão o aprimoramento do marco legal do setor elétrico brasileiro, proposto pelo Ministério de Minas e Energia (MME), que prevê transformações significativas na geração, distribuição e comercialização da energia elétrica, necessárias para reformular as bases regulatórias do serviço em questão.

Diálogo entre entidades

A Arsesp tem se empenhado em fortalecer a relação entre distribuidoras, prefeituras, Ministério Público, a própria agência e consumidores. A demanda da população para que o contato com as distribuidoras de energia seja mais próximo sempre foi grande. Trabalhamos, então, para tornar essa relação mais fácil e ágil. Hoje, atuamos como o órgão mediador entre sociedade civil, prefeituras e concessionárias, por vezes convidando representantes dessas esferas a virem até a agência para discutir e solucionar problemas.

Outra atividade que merece destaque é a avaliação da execução dos planos de adequação e melhorias apresentados pelas concessionárias de distribuição à Arsesp, visando ações preventivas para garantir a segurança e a qualidade do serviço prestado à população. Nessa avaliação, são abordados desafios como o atendimento aos consumidores durante o verão, focando inclusive o atendimento ao litoral paulista, em especial as estações de captação e tratamento de água e esgoto que necessitam de atendimento diferenciado.

No período de dezembro a março, que contempla festividades como Natal, Ano-Novo e Carnaval, é estabelecido o sobreaviso, com a participação de especialistas da diretoria em conjunto com a área de relações institucionais. Essa é a época mais crítica do ano em relação a interrupções do serviço de energia elétrica e, por isso, é feito um acompanhamento in loco das ações das distribuidoras a fim de minimizar o impacto aos consumidores.

“Hoje, atuamos como o órgão mediador entre sociedade civil, prefeituras e concessionárias

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IntroduçãoCapítulo 3

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Entre as várias transformações, destaca-se o surgimento de novas tecnologias – que acabam afetando o modo como a energia é gerada e distribuída –, o investimento em energias alternativas e a maior preocupação com sustentabilidade. São temas ainda discutidos por governos, representantes da sociedade civil, pesquisadores etc., e que não são contemplados pela atual legislação regulatória, sendo necessária, portanto, uma mudança de parâmetros.

O trabalho deve ser no sentido de se adequar às novas demandas, considerando que tudo é pensado e implementado em prol da população, ou seja, visando a melhor qualidade do serviço prestado. É preciso estar sempre preparado, pois o próprio crescimento econômico do país está ligado a esses serviços, principalmente à eletricidade. Além disso, hoje a indústria está buscando outras fontes de produção de energia, como a biomassa, a eólica e a solar. Segundo dados de 2016 da Secretaria de Energia e Mineração do Governo do Estado de São Paulo, o setor representa 8,83% do total nacional, sendo o bagaço da cana-de-açúcar a principal fonte (78,2%).

Apesar de todos os desafios que tem enfrentado e vai enfrentar nos próximos anos, a Arsesp tem cumprido seu papel com excelência. Fora isso, é importante ressaltar que o modelo de privatizações, ou seja, a ideia de abrir o mercado a novos players tem funcionado muito bem e, em longo prazo, o consumidor será o maior beneficiado nesse processo.

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s* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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Capítulo 3 Introdução

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A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!José Mário Miranda Abdo1,2

CCertamente não se vive mais de uma vez uma experiência histórica, inovadora e atual como a de Regulador. É uma oportunidade ímpar zelar, com equilíbrio, pelos legítimos interesses dos consumidores e usuários, dos investidores, dos prestadores de serviço e da sociedade. Quero dizer que nos sentimos agradecidos e felizes por, junto com tantos outros companheiros de outrora e de agora, termos servido ao nosso país e sido úteis na transformação do setor de energia elétrica brasileiro. Apresento aqui um pouco da história da regulação do setor elétrico, da criação e do desenvolvimento da Aneel nessas duas décadas, e, por fim, aponto algumas perspectivas da regulação no Brasil.

A função reguladora e a reforma do Estado brasileiro

Num mundo ideal, um mercado economicamente eficiente deveria ser autorregulável. Para tanto, haveria de

1 Engenheiro eletricista (UnB, 1973) e administrador de empresas (UniCeub, 1979). Pós-graduado em engenharia de sistemas elétricos (UnB, 1980). Sócio controlador da empresa Abdo, Ellery e Associados – Consultoria Empresarial em Energia e Regulação Ltda. (desde 2005). Membro do Comitê Diretor da UnB desde 2013. Foi o primeiro diretor-geral da Aneel (1997-2004). Trabalhou na Eletronorte e em Furnas. Professor do Departamento de Engenharia Elétrica da UnB (1977-1978).

2 Assessoria na elaboração do artigo: Claudia N. Portal de Matos – consultora e sócia da Abdo, Ellery e Associados – Consultoria Empresarial em Energia e Regulação Ltda. (desde 2007). Foi reguladora da Aneel (2002-2007). Mestre em economia do setor público (UnB, 2011). Matemática (UEPA, 2001). Formanda em Direito (UniCeub).

a) ser impossível produzir uma mesma quantidade de produto final utilizando uma combinação de insumos e outros fatores de produção mais baratos ou b) ser impossível produzir uma maior quantidade desse mesmo produto final.

Por sua vez, algumas escolas de ciências econômicas afirmam que o mercado por si só seria capaz de produzir e atender às demandas e aos interesses da sociedade. Portanto, a intervenção estatal deveria ser mínima.3 Para alguns pensadores as próprias forças de mercado seriam capazes de corrigir suas deficiências.4 Seria uma espécie de mercado autorregulável.

O certo é que o “tempo” necessário à correção espontânea do mercado poderia impor sacrifícios aos interesses de um conjunto expressivo de pessoas. Além disso, como identificar o custo social da autorregulação, uma vez que o processo de reequilíbrio do mercado ignora valores não econômicos?5

As visões originárias do século XX remetiam à necessidade de intervenção de um agente externo para eliminar defeitos e equacionar insuficiências do mercado. Tratava-se, portanto, de um novo conceito de regulação, pois migrava da dimensão de apenas regular a produção propriamente econômica para uma regulação estatal que consistiria em emular o mercado, com o objetivo de produzir os mesmos vetores que o mercado poderia gerar.

Nesse sentido, os principais desafios da regulação eram equalizar as falhas de mercado, ou seja, a deficiência na concorrência, como bens

3 COOTER, R.; ULEN, T. Law and Economics. 3. ed. Massachusetts: Addison-Wesley, 2000. 4 JUSTEN FILHO, M. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002.5 Ibidem.

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Capítulo 3

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coletivos, externalidades, assimetrias da informação, desemprego, inflação e desequilíbrio.6

Dessa forma, no século XX já se conhecia o conceito de função reguladora no Brasil, que era desempenhada por entes externos ao mercado, como as agências governamentais autônomas, consideradas entes fracionários do aparelho administrativo do Estado, que foram, no último século, vastamente estudadas em relação a aspectos políticos, jurídicos e técnicos. É antigo, portanto, o conceito de função reguladora no Brasil.7 Essa fase em que a regulação visa evitar a concretização de falhas de mercado foi chamada por Marçal Justen Filho de “regulação exclusivamente econômica”, em sua obra vista como “a primeira onda regulatória”.8

Mas essa concepção de regulação intervencionista foi evoluindo com o tempo. Percebeu-se que o mercado, ainda que em funcionamento “perfeito”, dada a intervenção das agências autônomas, poderia não atingir os objetivos do interesse comum.

6 MAJONE, G. La Communauté européenne: un Etat Régulateur. Paris: Montchestien, 1995. p. 76.

7 MOREIRA NETO, D. F. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001. p. 145.

8 JUSTEN FILHO, M. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002. p. 32.

Talvez o fator “tempo” pudesse ser amenizado com os efeitos dessa regulação de agências autônomas. Mas e o fator “social”? Ou seja, era preciso que a intervenção estatal pudesse assegurar a redistribuição de renda e proporcionar o consumo de certos serviços. A essa fase, Marçal Justen Filho denominou de “regulação social”, a “segunda onda regulatória” em sua classificação.

O certo é que, no fim da década de 1980, as transformações ocorridas nas economias dos Estados nacionais trouxeram à tona reflexões sobre o modelo de intervenção direta do Estado. A conjuntura indicava uma revisão desse modelo para buscar uma intervenção mais indireta, pois não era de todo recomendável que as funções de planejamento setorial e de regulação, as decisões estratégicas empresariais e as de política macroeconômica ocorressem no mesmo ambiente macroinstitucional.9

Além disso, era preciso repaginar a função reguladora. Nesse contexto, Diogo de Figueiredo Moreira Neto10 afirma que “[...] empresas estatais, por serem tidas como o próprio Estado atuando indiretamente, gozavam de relativa autonomia técnica [...] e, por isso, considerava-se supérfluo e redundante manter controles estatais específicos sobre o seu desempenho”. Tem razão o autor. Afinal, como poderia o Estado punir seus próprios erros? Como deixar o próprio gestor aplicar penalidades para suas próprias ineficiências?

Nesse contexto, para se adequar à concepção de estado democrático de direito, a Constituição Federal de 1988,11 em seu art. 175, estabeleceu e, de algum modo, deu diretrizes sobre as novas concessões ou permissões dos serviços públicos:

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

9 Aneel 7 anos: principais realizações e desafios: 1997/2004. Brasília, DF: 2004, p. 8.10 MOREIRA NETO, D. F. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Renovar,

2001. p. 146.11 Disponível em: http://bit.ly/2wro7QU . Acesso em: 21 ago. 2017.

“no século XX já se conhecia o conceito de função reguladora no Brasil, que era desempenhada por entes externos ao mercado, como as agências governamentais autônomas

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A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!Capítulo 3

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I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – os direitos dos usuários;

III – política tarifária;

IV – a obrigação de manter serviço adequado.

Com o advento desse dispositivo, qualquer nova concessão ou permissão deveria ocorrer mediante licitação e na forma que a lei dispusesse. Entretanto, leis e decretos surgiram somente em 1995. Dessa forma, vários setores ficaram pelo menos sete anos sem novos investimentos. Primeiro, por incapacidade de financiamento; segundo, por falta de base legal e regulamentar.

Assim, em 1995, foi lançado o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado,12 que postulava, em sua apresentação, que a crise brasileira (ocorrida na década de 1980) tinha sido também considerada uma crise do Estado, justamente porque, no decorrer do tempo, esse ente desviou-se de suas funções basilares (de controlar e regular) para se tornar parte do setor produtivo. Esse desvio acarretou a deterioração dos serviços públicos, o agravamento da crise fiscal e, consequentemente, a inflação.

Nesse contexto, ressurgiram as entidades de controle externo, com funções inovadoras, denominadas agências reguladoras – entre elas, a Agência Nacional de Energia Elétrica13 (Aneel) –, fruto das transformações do Estado brasileiro, que passou a dar ênfase à sua função reguladora e social, com o objetivo de interferir apenas indiretamente na ordem econômica,14 abrangendo tanto as empresas estatais como as da iniciativa privada.

12 BRASIL. Presidência da República. Câmara da Reforma do Estado. Plano diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, DF: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1995. p. 9.

13 Lei 9.427, de 26 de dezembro de 1996. Disponível em: http://bit.ly/2x6pSQu. Acesso em: 21 ago. 2017.

14 Aneel 7 anos: principais realizações e desafios: 1997/2004. Brasília, DF: 2004. p. 8.

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Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

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As agências reguladoras foram criadas por lei como autarquias especiais, integrantes da Administração Indireta. São órgãos de Estado, portanto sem subordinação hierárquica ao Governo Federal, e possuem atribuições específicas na lei de criação.

Criação e implantação da Agência Nacional de Energia Elétrica

As agências reguladoras surgiram em razão de várias necessidades. O governo da década de 1990 fez um diagnóstico de como estavam os setores dos serviços públicos no Brasil. Constatou-se uma estagnação generalizada, em particular, no setor elétrico, que tinha um histórico de realizações importantes como a construção de usinas e de linhas de transmissão.

O setor estava completamente endividado. Havia enorme inadimplência intrassetorial. Distribuidoras estaduais não pagavam as geradoras federais. Uma das distribuidoras que era suprida pela Eletronorte não pagava pela energia havia sete anos, ainda que o consumidor quitasse suas faturas.

Por sua vez, os bancos internacionais de fomento não queriam mais financiar as empresas porque as tarifas eram defasadas artificialmente, como instrumento de controle da inflação, tornando impagáveis quaisquer financiamentos. Não havia contratos de concessão entre o Estado e esses agentes. O Departamento Nacional de Águas e Energia

Elétrica (DNAEE), responsável pelo setor, era suscetível à interferência política governamental no exercício de suas atribuições.

Nesse sentido, era necessário pôr fim a essa situação caótica e retomar a atração de investimentos e a sustentabilidade dos negócios. O enfrentamento do problema deveria vir por meio de uma reforma ampla e sólida, não apenas do setor elétrico, mas do próprio aparelho do Estado, abrangendo outras áreas de infraestrutura.

Dessa forma, somente em 13 de fevereiro de 1995 foi publicada a Lei 8.987 (Lei de Concessões15), que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, previsto no artigo 175 da Constituição Federal. Nove meses depois, foi lançado o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, elaborado pelo Ministério da Administração e aprovado pelo então presidente da República, contendo diagnóstico, estratégias e diretrizes de ação.

O Plano Diretor de Reforma16 trazia como um de seus projetos básicos a criação de agências autônomas, com atividades exclusivas do Estado e com foco na modernização administrativa:

8.1.2 Agências Autônomas

A responsabilização por resultados e consequente autonomia de gestão inspiraram a formulação deste projeto, que tem como objetivo a transformação de autarquias e de fundações que exerçam atividades exclusivas do Estado, em agências autônomas, com foco na modernização da gestão.

O Projeto das Agências Autônomas desenvolver-se-á em duas dimensões. Em primeiro lugar, serão elaborados os instrumentos legais necessários à viabilização das transformações pretendidas, e um levantamento visando superar os obstáculos na legislação, normas e regulações existentes. Em paralelo, serão aplicadas as

15 Projeto de Lei apresentado pelo senador Fernando Henrique Cardoso. Disponível em: https://bit.ly/2G6Ewjh. Acesso em: 21 ago 2017.

16 BRASIL. Presidência da República. Câmara da Reforma do Estado. Plano diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, DF: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1995. p. 73.

“O setor estava completamente endividado. Havia enorme inadimplência intrassetorial. Distribuidoras estaduais não pagavam as geradoras federais

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novas abordagens em algumas autarquias selecionadas, que se transformarão em laboratórios de experimentação.

Assim, em 1997, tive a honra de ser convidado17 para liderar a instituição e a estruturação da primeira agência nacional de regulação constituída no Brasil, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

Não se tratava de uma tarefa trivial, pois envolvia enorme responsabilidade e um extraordinário desafio em implantar a nova cultura da regulação no setor elétrico brasileiro. Mas essas foram justamente as molas propulsoras da motivação que nos tomou. A Aneel teria grande importância para a sociedade. Foi um caminho de idealismo, que teve como gênese o desejo de servir e ser útil ao país.

Foram-nos dados régua e compasso. Nas crenças e palavras de Raimundo Brito, ministro do Ministério de Minas e Energia (MME), não havia “meia liberdade”. A diretoria da Aneel poderia estruturar a agência segundo suas convicções e responsabilidades, desde que não se afastasse das diretrizes dadas pelo Plano Diretor de Reforma.

Assim, nossa concepção da instituição foi baseada em uma visão federativa, plural e multifuncional. Até que se fizesse o primeiro concurso para compor o quadro da agência, contaríamos com pessoas dos diversos estados brasileiros, das mais variadas formações profissionais. Essas eram nossas diretrizes para buscar os primeiros funcionários que ajudariam a erguer a Aneel.

Para isso, contratamos o Centro de Seleção e de Promoção de Eventos (Cespe/UnB), para o qual demos orientações. Tinha que ser uma agência com atuação federativa. Não poderia, portanto, ser uma agência composta só por pessoas do Sudeste ou Sul, por exemplo. Era importante agregar talentos e valores de todas as regiões do Brasil.

A lei de criação das agências permitia a contratação temporária no primeiro ano de vida da agência, única solução viável para montar um quadro de pessoas experientes e também de recém-formados,

17 Pelo ministro de Minas e Energia, Raimundo Brito, há menos de um ano de tê-lo conhecido em ambientes de desafios profissionais.

com variadas profissões e das mais diversas naturalidades, num prazo breve.

Nesse sentido, foi instituído um processo seletivo nacional em que psicólogas pudessem utilizar ferramentas que permitissem identificar um aguçado espírito público nos profissionais a serem contratados.

Pensava-se numa Aneel composta por advogados, administradores, geógrafos, sociólogos, matemáticos, contadores, engenheiros etc. Logo nas primeiras reuniões de trabalho na agência, sentimos uma grande mudança. As reuniões já não eram mais de cinco engenheiros, mas de 10, 15 ou mesmo vinte profissionais das mais variadas formações, o que enriquecia enormemente as discussões e as soluções alcançadas.

Ainda em 1997, reunimos, na Escola de Administração Fazendária (Esaf), em Brasília, uma equipe precursora, com cerca de 50 pessoas,18 para discutir, durante uma semana, num Encontro de Planejamento Estratégico, o que seriam a visão, a missão, a estrutura organizacional e o modelo de gestão da futura Aneel.

Juntos, sonhamos e desenhamos o futuro. Houve uma entrega por inteiro, movida a ideais, sugestões e discussões de propostas. Ao final, desvelou-se um tesouro! A agência seria estruturada em apenas dois níveis hierárquicos, com uma Diretoria Colegiada, Gabinete do Diretor-Geral, Assessoria da Diretoria, Secretaria-Geral, Procuradoria-Geral, Auditoria Interna e vinte Superintendências de Processos Organizacionais. Sua gestão seria por processos organizacionais, e tudo isso traria uma grande inovação ao serviço público, como eram as próprias agências reguladoras. O objetivo era que pudéssemos cumprir sua missão, também construída nesse encontro: “Proporcionar condições favoráveis para que o mercado de energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e em benefício da sociedade”.

A Aneel surgiu “como uma inovação dentro da Administração Pública Federal, uma instituição em condições de tratar com

18 Tendo como consultor e facilitador o professor José Monir Nasser.

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equidade os legítimos interesses do Governo, das empresas do setor e do consumidor de energia elétrica, sempre com um olhar voltado para o horizonte do serviço público”,19 diferentemente da missão de outras agências, que contempla apenas uma das partes, normalmente o consumidor ou usuário. Isso pode até parecer bonito, mas é de todo insuficiente, pois quem cuida só dos direitos dos consumidores não é propriamente uma agência reguladora, assemelhando-se mais a um Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon). Afinal, uma agência reguladora deve ter a mesma obrigação de cuidar dos interesses dos consumidores, das empresas e da sociedade como um todo. Tem que fazer valer direitos e obrigações do usuário e do investidor, tudo isso em benefício da sociedade. Do contrário, provocará desequilíbrios que, cedo ou tarde, trarão consequências nefastas.

A missão da agência foi tão intensamente discutida e pensada naquela ocasião que, mesmo após várias avaliações quanto à necessidade de melhorias e aperfeiçoamentos ao longo de sua existência, ainda não sofreu alteração. Caso isso ocorra algum dia, será necessário alterar o Decreto 2.335, de 6 de outubro de 1997,20 de constituição da Aneel. Aliás, a consignação da missão de uma agência reguladora em seu decreto de constituição foi fato inédito.

Por tudo isso, a estruturação da agência e seu modelo de gestão basearam-se, acima de tudo, em arraigadas convicções democráticas.

Por se tratar do novo, a constituição da agência não foi pacífica. Antes da finalização do decreto de constituição da agência, houve muita discussão com o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (Mare) para a aprovação da concepção da Aneel. O impasse foi grande. O Mare não via com bons olhos a criação de superintendências, dado que elas não existiam no serviço público.21

19 Aneel 7 anos: principais realizações e desafios. Agência Nacional de Energia Elétrica. Brasília, DF: 2004. p. 6.

20 Disponível em: http://bit.ly/2jHkvAO. Acesso em: 21 ago. 2017.21 A comitiva precursora junto ao Mare foi liderada por Eduardo Ellery, futuro diretor da Aneel.

É verdade, mas também não existiam agências reguladoras sob a forma de autarquias especiais. A Aneel chegou rompendo o paradigma burocrático do serviço público. E tínhamos um mote: tratava-se do desafio da criação do novo. Afinal, depois de muitas rodadas, acabaram aceitando a tese, mas, na visão do Mare, uma ou duas superintendências seriam suficientes, uma para regulação e outra para fiscalização.

Aos poucos, ganhamos a confiança da direção do Mare. Ampliou-se a roda de discussões e então revelamos nosso projeto de criar vinte superintendências para a Aneel. Não se pretendia criar cargos, como poderia parecer, mas de prover uma estrutura horizontal e integrada, com somente dois níveis hierárquicos, que cumpriria diretrizes discutidas previamente com a diretoria. A ideia era ganhar celeridade de ação, preservando a integração nos processos, o que não combina com uma estrutura demasiadamente departamentalizada.

Era importante que a Aneel nascesse bem para poder crescer estruturada e poder ser, de fato, eficiente e eficaz no seu propósito. Tão importante quanto regular e fiscalizar era ter superintendências de Planejamento Estratégico, de Recursos Humanos, de Comunicação Social, ou seja, ser uma agência por completo.

O certo é, que, ao fim, convencidos ou comovidos pela empolgação dos que seriam responsáveis por erguer a Aneel, a equipe do Mare acatou a tal proposta das vinte superintendências, mas nos desafiou: “Vejam lá o que vocês vão fazer com tudo isso!”.

“a estruturação da agência e seu modelo de gestão basearam-se, acima de tudo, em arraigadas convicções democráticas

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Mas tínhamos segurança de que era preciso haver uma diferença muito grande entre o que seria uma agência reguladora e o serviço público tradicional. Não deveríamos ser um time só de técnicos, muito menos só de engenheiros elétricos, ainda que eu fosse um deles. Tínhamos alguns valores a serem buscados.

Tão bons quanto os engenheiros, por exemplo, eram os advogados que nos ajudaram a instruir o processo decisório desde a primeira reunião. Não fizemos uma simples ata de reunião. Criamos um processo, em que havia um diretor-relator, sorteado publicamente, e um padrão de documentação a ser observado. As superintendências relacionadas ao caso deviam apresentar nota técnica em que constavam os fatos, o direito, a sua análise e uma conclusão, com recomendações. O diretor-relator deveria apresentar relatório e voto. E a aprovação no colegiado só ocorreria por maioria simples, com pelo menos três diretores (60%).

A superintendência, a partir das diretrizes emanadas e discutidas com a diretoria, fazia suas análises e recomendações. Era preciso alinhar ideias com as áreas técnicas para que pudéssemos ter sempre o melhor resultado aderente ao norte estratégico, de forma equilibrada, para consumidores e investidores, em benefício da sociedade.

Numa das reuniões para discutir o Projeto de Lei de criação da Aneel, estavam presentes o relator, deputado José Carlos Aleluia, o ministro de Minas e Energia, Raimundo Brito, Consultor Jurídico do Ministério de Minas e Energia, José Calasans, o presidente e o vice-presidente à época do Fórum de Secretários de Estado para Assuntos de Energia, David Zylbersztajn e Eraldo Tinoco, respectivamente, e eu que era, à época, diretor-geral do DNAEE, já com alguma perspectiva de me tornar o primeiro diretor-geral da Aneel. No Projeto de Lei resultante dessa reunião foi incluído um artigo que abrigava o princípio de facultar a descentralização das atividades da Aneel para as agências reguladoras estaduais, uma pérola da obviedade, cujo real valor só aprendemos na prática, na estrada e em debates em audiências públicas no Congresso Nacional.

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Na sequência, eclodiram liminares em vários estados para que a Aneel retrocedesse, reduzindo tarifas. Então, com ajuda da Procuradoria-Geral Federal e da Superintendência de Regulação Econômica, ambas da agência, decidimos interpor um Embargo de Declaração contra a citada decisão do TCU.

Como “réu”, em nome da agência, fiz a sustentação oral no plenário do TCU. O ministro-relator votou contra. De largada, começamos perdendo. Em seguida, o procurador-geral no TCU se manifestou a favor da nossa tese. O placar final foi estreito, mas o resultado foi a favor da Aneel. Em resumo, restou definido pelo Tribunal de Contas que cabe à Aneel a discricionariedade técnica sobre tarifas de energia elétrica, cabendo ao TCU, nessas questões, não determinar, mas fazer recomendações para o juízo final do regulador. Os jornais e revistas semanais estamparam “TCU decide que quem regula as tarifas é a Aneel” e “Valem os contratos! Quem regula as tarifas é a Aneel”. Ficou assegurado, portanto, o princípio da independência decisória do regulador. Lavrou-se, ali, naquela ocasião, um acórdão que nada mais era que um atestado de autonomia e de independência decisória de uma agência reguladora.

Por sua vez, o tesouro da transparência, além das audiências e consultas públicas, veio com o case da definição, concepção, estruturação e implantação das Reuniões Deliberativas Públicas de Diretoria da Aneel, em 04 de outubro de 2004. A Aneel foi a primeira e única agência reguladora no país a utilizar esse mecanismo por muito tempo. Na época, ainda cheguei a ouvir de uma alta autoridade: “Vão decidir em público? Vocês são loucos!”. Não se tratava de loucura. Eram nossas crenças.

Com as reuniões públicas de diretoria, demos oportunidade a qualquer agente do setor elétrico, no país ou no exterior, de poder acompanhar as reuniões ao vivo, presencialmente ou pela internet. Com isso, aumentou a consistência das decisões e diminuíram os custos das empresas. Eram os princípios da transparência e da eficiência sendo colocados em prática na administração pública.

Ao término dessa reunião, no MME, às cinco horas da manhã, o Ministro Raimundo Brito brincou: “E há quem diga que a Esplanada dos Ministérios é solitária…”. Nascia o dia, e, junto com ele, a nova cultura da regulação no país!

A agência nasceu e cresceu lastreada em pelo menos três princípios basilares da regulação, autonomia, independência decisória e transparência, dos quais o regulador nunca deve se afastar. Mas não só de flores vive o regulador. Em oposição a esses três princípios, que são verdadeiros tesouros, temos alguns casos que merecem ser lembrados.

Em relação ao tesouro da autonomia, o experimentamos logo de início, pois veio com a escolha e a nomeação dos vinte superintendentes pela própria diretoria da Aneel, quebrando outro paradigma no serviço público.

Quanto ao tesouro da independência decisória, vivemos um grande desafio, quando, em 2004, a Aneel, de quase um pequeno “juizado administrativo”, tornou-se ré. Foi quando o Acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) 556/2004 determinou que a Aneel deveria rever sua decisão quanto à consideração dos juros sobre capital próprio nas tarifas de energia elétrica.

“A agência nasceu e cresceu lastreada em pelo menos três princípios basilares da regulação, autonomia, independência decisória e transparência, dos quais o regulador nunca deve se afastar

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A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!Capítulo 3

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De fato e de direito, estava nascendo a nova cultura da regulação no país. Tínhamos uma agência reguladora de energia elétrica dotada de:

• Independência técnica decisória;

• Independência política dos gestores;

• Autonomia normativa;

• Autonomia gerencial, orçamentária, financeira e patrimonial;

• Transparência

A agência cresceu e hoje é reconhecida nacional e internacionalmente como a melhor agência reguladora do Brasil. Fico muito feliz em saber que pudemos servir e ser útil. Ouvir do atual e competente diretor-geral da agência, Romeu Rufino, que “a Aneel tem reconhecimento em seus trabalhos até porque foi bem-nascida”, gera um sentimento de realização. Isso teve a ver com nossas crenças.

A lei de criação da agência foi interpretada de uma forma que a fez grande. A Aneel nasceu com uma missão forte, estrutura moderna e gestão com alinhamento estratégico para alcançar o bem comum!

O crescimento da regulação do setor elétrico no Brasil – 20 anos

Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica (PERCEE)

A regulação do setor elétrico enfrentou, já de início, extraordinários desafios. Ainda no primeiro ano de vida, pairava o desafio de viabilizar a retomada de várias obras paralisadas e de implantar novas usinas e linhas. Afinal, ainda havia reflexos do grande hiato de investimentos do período entre a Constituição de 1988 e a Lei de Concessões de 1995.

O certo é que o setor estava há muito tempo sem investimentos, e a cada ano era uma corrida contra o tempo. O objetivo era promover investimentos para diminuir o déficit de oferta e não houvesse falta de energia elétrica no Brasil.

Mas, infelizmente, em 2001, quando já havia um crescimento significativo da oferta de energia, graças à retomada dos investimentos feitos, o Brasil foi surpreendido pela pior seca de um período de 70 anos. Pelas expectativas, se não fosse a seca severa, com mais dois anos se recuperaria o hiato de investimentos ocorrido entre 1988 a 1995.

O que de fato aconteceu não foi propriamente um racionamento, porque não houve interrupção de fornecimento a nenhum consumidor e a nenhuma cidade. Embora tenha sido chamado de “apagão” ou “racionamento” por alguns, o que houve, tecnicamente, foi uma racionalização do consumo, mediante um engenhoso sistema de ônus e bônus ao consumidor, ao qual a população rapidamente aderiu.

No programa, quem consumisse acima da sua média, pagaria um adicional. Em contrapartida, quem economizasse teria bônus financeiro. Foi um período de dificuldades que deixou aprendizados. Tempos depois do encerramento do período de escassez, várias comitivas de outros países vieram ao Brasil conhecer aquele bem-sucedido modelo de racionalização de consumo.

A participação do regulador foi ativa nesse período. A Aneel fez parte da Câmara de Gestão da Crise, cujas ações foram centralizadas pelo governo. Foi uma câmara multidisciplinar, com várias instituições governamentais envolvidas, que buscou soluções para que a escassez de energia fosse a menos traumática possível para a população.

Criou-se ali um Acordo Geral do Setor Elétrico, para que a Câmara de Gestão da Crise pudesse intervir mais agilmente na implantação das soluções necessárias. Foi uma transição que alterou, sim, o ciclo de gestão da Aneel, mas para o bem da sociedade. Em 2002, a situação de oferta e de preço de energia retomou o caminho da normalidade.

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As agências reguladoras estaduais

Um ponto muito perseguido pelo Fórum dos Secretários de Estado para Assuntos de Energia, na discussão da Lei de criação da Aneel, foi a possibilidade de delegação de algumas atividades da Aneel para agências reguladoras estaduais, conquistada conforme citado no item 2. Tratava-se da atuação descentralizada do regulador por meio de convênio com os estados. Mas o que figurava na lei como uma permissão, para nós, da agência, era uma crença. Descentralizar era preciso!

A parceria com as agências reguladoras estaduais era indispensável. Nós tínhamos a firme convicção de que de Brasília não cuidaria bem de todas as questões de energia elétrica desse gigante país chamado Brasil. Era preciso criar as agências estaduais à imagem e semelhança da Aneel, ou seja, com autonomia, independência, mandato fixo de diretores, decisões colegiadas e autonomia patrimonial e financeira, e firmar convênios com elas. Nesses convênios, prevê-se a transferência de parte dos recursos financeiros, oriundos da taxa de fiscalização, arrecadados no próprio estado.

Com isso participamos da discussão de projetos de lei estaduais e tivemos audiências com vários governadores do Brasil, deixando claro que aquilo que era uma faculdade conferida por lei à Aneel. Para nós tornou-se um imperativo. Isso porque entendíamos, por exemplo, que um consumidor no Rio Grande do Norte ou no Rio Grande do Sul que quisesse resolver um problema não precisaria ligar para Aneel em Brasília. Era importante inclusive incorporar a criteriosa hierarquia de acesso que um dia assimilamos da Agência de Regulação e Controle de Serviços Públicos do Estado do Pará (Arcon-PA): “Problema de energia? Procure seu concessionário. Não resolveu, procure a Arcon; se não foi suficiente, procure a Aneel”.

Na nossa visão era muito melhor o consumidor resolver o problema com alguém que “falasse a sua língua”, vivesse a mesma realidade para melhor compreender sua necessidade, tivesse o mesmo sotaque para se sentir próximo. A agência estadual saberia seus direitos e deveres e teria a mesma responsabilidade da Aneel

de saber orientar e ajudar a resolver o problema do consumidor e, certamente, com maior compreensão da realidade local.

A Aneel seria uma instância para resolver alguma pendência que não se conseguisse resolver localmente. Apresentamos minutas de projetos de lei de criação da agência estadual para vários governadores, eles foram aperfeiçoados e aprovados. Alguns estados partiram na frente, como Rio Grande do Sul22 e São Paulo,23 criando suas agências reguladoras, pioneiramente, em 1997.

22 Em 9 de janeiro de 1997, na forma da Lei 10.931, foi criada a Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs).

23 Em 17 de outubro de 1997, a Lei Complementar 833 criou a autarquia Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE), que posteriormente foi sucedida pela Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp – autarquia de regime especial, vinculada à secretaria Estadual de Governo, criada pela Lei Complementar 1.025/2007).

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Logo de início, as agências de São Paulo e do Rio Grande do Sul estabeleceram sólida parceria com a Aneel, pois era grande a convicção de que juntos faríamos melhor. Sentíamos que era possível contribuir além do adequado fornecimento de energia elétrica, contribuiríamos para fortalecer a cidadania. Nos anos seguintes, nasceram e cresceram agências reguladoras em outros 13 estados, que vêm, desde então, cumprindo importante papel em servir a população nos estados. Sobretudo, para atender, à época, às 64 distribuidoras, das quais, 13 com sede em São Paulo e 8 no Rio Grande do Sul, além de diversas cooperativas de eletrificação e os cerca de mil geradores que surgiram nos anos pós-Aneel.

As ações descentralizadas, por meio das agências reguladoras estaduais, fizeram da Aneel uma agência de atuação abrangente, capaz de olhar o Brasil como um todo, sem descuidar da variável local, para ajudar a melhorar a vida das pessoas e democratizar as oportunidades de investimentos no país.

Regulação social

Fazendo uma conexão com a segunda onda regulatória referida por Marçal Justen Filho, a “regulação social”, diríamos que a Aneel

nasceu e cresceu com tal propósito. As políticas setoriais e públicas advindas do Ministério de Minas e Energia e do Poder Legislativo vêm sendo permanentemente implementadas pela agência.

A Aneel, em suas ações de regulação e fiscalização dos segmentos de geração, transmissão, distribuição e comercialização, introduziu pioneiramente a dimensão do balanço social na busca da sustentabilidade do negócio de energia elétrica:

O Setor Elétrico, numa atitude pioneira, vem elaborando desde 2002, o Relatório Anual de Responsabilidade Empresarial, em conformidade com as orientações constantes do Manual de Contabilidade do Setor Elétrico – MCSE, instituído pela Resolução Aneel nº 444, de 26 de outubro de 2001, e alterações posteriores. Considerando a evolução de relevantes questões vivenciadas pelo setor nos últimos anos, tais como: universalização dos serviços; eficiência energética; pesquisa e desenvolvimento; e fontes alternativas de energia, no final de 2004, a Aneel iniciou um processo de análise sobre o referido relatório, visando o seu aprimoramento e adequação a essa nova realidade.24

Segundo o site da Aneel,25 uma das ações foi

o estabelecimento em 2007 da obrigatoriedade dos agentes do setor elétrico de apresentarem anualmente seu Balanço Social (Empresa Cidadã), sob coordenação da Superintendência de Fiscalização Econômico-Financeira (SFF).

Desde 2002 era recomendado; a partir de 2007 tornou-se obrigatório o balanço social, e a partir de 2015 evoluiu para Relatório de Responsabilidade Socioambiental e Econômico-Financeiro (RSA).

A elaboração do RSA, além de atender aos requisitos do “Manual de Elaboração do Relatório Anual de Responsabilidade Socioambiental e Econômico-Financeiro das Outorgadas do Setor de Energia Elétrica”, e deve adotar como princípios mínimos:

24 Disponível em: http://bit.ly/2H1VVWY. Acesso em: 20 fev 2016.25 Disponível em: http://bit.ly/2jRMIch. Acesso em: 20 fev 2016.

“As ações descentralizadas, por meio das agências reguladoras estaduais, fizeram da Aneel uma agência de atuação abrangente, capaz de olhar o Brasil como um todo

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[...] a transparência, relevância, integridade e clareza, precisão e regularidade, que expressam o compromisso empresarial de prestar contas à sociedade das ações efetivamente realizadas no sentido de: promoção da cidadania (inclusão social); continuidade e qualidade dos serviços aos consumidores; preocupação com a qualidade de vida dos seus empregados; otimização dos recursos naturais, de forma a preservar a integridade do planeta para as futuras gerações; e com a adoção de melhores práticas de governança corporativa, criando valor aos acionistas.26

Ainda como desdobramento do compromisso da agenda de cunho social, várias políticas sociais na área de energia foram definidas pelo Legislativo e pelo Executivo, sendo implementadas pela Aneel mediante audiências públicas abrangendo temas como a Conta de Consumo de Combustíveis (CCC),27 Conta de Desenvolvimento Energético (CDE),28 Tarifa Social (Baixa Renda),29 Programa Luz Para Todos (PLPT),30 além, obviamente, das ações de melhoria da qualidade dos serviços e da busca da tarifa justa.

26 Disponível em: http://bit.ly/2zcHcU5. Acesso em: 20 fev 2016.27 A CCC é um encargo do setor elétrico brasileiro pago por todas as concessionárias de

distribuição e de transmissão de energia elétrica, de forma a subsidiar os custos anuais de geração em áreas ainda não integradas ao Sistema Interligado Nacional (SIN), chamadas de Sistemas Isolados.  Hoje a CCC integra a CDE.

28 A Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) é um encargo setorial que tem diversos objetivos, como promover a universalização do serviço de energia elétrica em todo o território nacional; conceder descontos tarifários a diversos usuários (Baixa Renda, Rural, Irrigante etc.); custear a geração de energia nos sistemas elétricos isolados (Conta de Consumo de Combustíveis – CCC); pagar indenizações de concessões; garantir a modicidade tarifária; promover a competitividade do carvão mineral nacional, entre outros.

29 A tarifa social foi estabelecida pela Lei 10.438/2002 e regulamentada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) pelas Resoluções 246/2002, 485/2002 e 253/2007. Posteriormente, a Tarifa Social de Energia Elétrica tornou a ser regulamentada pela Lei 12.212, de 20 de janeiro de 2010 e pelo Decreto 7.583, de 13 de outubro de 2011, e é caracterizada por descontos incidentes sobre a tarifa aplicável à classe residencial das distribuidoras de energia elétrica, sendo calculada de modo cumulativo de acordo com a tabela constante do link http://bit.ly/23O949n. Acesso em: 8 ago 2017.

30 Combina subsídios do governo com ações de concessionárias privadas. Criado em novembro de 2003, pelo Decreto 4.873, o PLPT visa acabar com a exclusão elétrica no país e prover acesso gratuito à eletricidade. O programa é um desdobramento do Programa Luz no Campo, criado pelo Decreto de 2 de dezembro de 1999.

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Projeto de Lei das agências reguladoras

Segurança jurídica, respeito aos contratos, qualidade das instituições, marcos regulatórios modernos e agências reguladoras independentes são instrumentos importantes para atrair investimentos e garantir a competitividade de um país. Porém, no Brasil, o aspecto do direito regulatório que mais provoca calorosos debates doutrinários é o poder normativo dos órgãos reguladores.

As discussões envolvendo temas relacionados ao limite do poder regulamentador das agências, seu grau de autonomia, controle a que devem estar submetidas, mandatos de seus dirigentes, entre outros aspectos, ganharam nova dimensão com o envio do Projeto de Lei 3.337, de 2004, ao Congresso Nacional.

No Senado Federal, outras tantas propostas legislativas estão em andamento. Porém, todas as ações estão voltadas para o Projeto de Lei do Senado (PLS) 52, de 2013, sobre a Lei Geral das Agências Reguladoras, com regras relativas à gestão, organização e mecanismos de controle social das agências federais.

O PLS 52, de 2013, contém avanços. Destaque para o controle das agências pelo Congresso Nacional e delimitações para a atuação do TCU; o não contingenciamento orçamentário com as agências, passando a constituir unidade orçamentária própria independente do ministério de vinculação; mecanismos para evitar a vacância na diretoria colegiada; perfil técnico para indicação dos diretores, além da extensão de outras práticas já implementadas pela Aneel, como as reuniões deliberativas públicas da diretoria, a agenda regulatória e a análise de impacto regulatório. Por outro lado, tem propostas que podem conflitar com a autonomia das agências reguladoras.

Entre os pontos críticos e riscos do projeto, registrava-se a preocupação com a figura do ouvidor que não seria sabatinado no Senado Federal e, principalmente, com a instituição, no âmbito do Conselho de Governo da Presidência da República, de câmara específica destinada a avaliar e acompanhar assuntos regulatórios e a opinar sobre propostas de edição ou alterações de atos

normativos de caráter geral e significativo impacto econômico, social ou concorrencial que lhe sejam submetidas pelas agências reguladoras, além das respectivas análises de impacto regulatório. Esses pontos, tidos como essenciais pelas agências reguladoras, e pela Associação Brasileira das Agências Reguladora (Abar), tiveram avanços no PL aprovado no Senado em 6 de dezembro de 2016. Nessa oportunidade, o PLS 52, de 2013, foi submetido à revisão da Câmara dos Deputados, sob a nomenclatura de PL 6.621, de 2016.31 Em 16 de agosto de 2017, foi criada a Comissão Especial na Câmara dos Deputados para analisar o PL 6.621/2016, após oito meses da aprovação do projeto pelo Senado Federal.

Do exposto, verifica-se que, passados vinte anos de sua criação, as primeiras agências reguladoras continuam sendo foco de debates no Legislativo. Espera-se que o desenvolvimento da sociedade e da atuação das próprias agências possam conduzir às melhores propostas, com o equilíbrio necessário para o desenvolvimento da infraestrutura do país.

O controle das agências pelo Congresso Nacional, com delimitações adequadas para a atuação do TCU, seu órgão auxiliar, seria desejável, dada sua representatividade e por ser o Senado a porta de entrada de seus dirigentes, que ali são sabatinados antes da nomeação. Por outro lado, para um melhor controle, é de fundamental importância que as agências reguladoras prestem contas, anualmente, quanto

31 Disponível em: https://bit.ly/2McllD8. Acesso em: 21 ago. 2017.

“para um melhor controle, é de fundamental importância que as agências reguladoras prestem contas, anualmente

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ao cumprimento de sua missão às Casas do Senado e da Câmara, e as estaduais às Assembleias Legislativas correspondentes.

Adicionalmente, como mecanismos de controle da atuação das agências reguladoras tem-se, além do Congresso Nacional e do TCU, também a Controladoria Geral da União (CGU), o Ministério Público da União (MPU), o Poder Judiciário, as organizações sociais, como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), a PROTESTE – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, a mídia, a Associação Nacional dos Consumidores de Energia (Anace), os conselhos de consumidores, entre outros.

Perspectivas da regulação no setor elétrico brasileiro

As perspectivas da regulação no Brasil estão atreladas à economia, política e seu processo de desenvolvimento. É um sistema vivo e dinâmico. Sofre avaliações, ajustes, redirecionamentos a cada ciclo, que pode ser de 10, 15 ou 20 anos.

Vive-se, neste momento, algumas dificuldades no campo da realização dos investimentos, do atingimento de metas, da judicialização de muitas demandas, da sustentabilidade da cadeia do setor elétrico, que envolve consumidores, investidores e prestadores de serviços, no bojo de uma dinâmica em que surgem elementos novos como, por exemplo, o “prossumidor” que é o consumidor que produz energia renovável distribuída.

Sobretudo, a geração renovável, distribuída, fotovoltaica, eólica, a geração renovável concentrada, o smart grid, a digitalização, a prestação de outros serviços pelas distribuidoras estão criando outras dinâmicas e práticas novas. Valem como exemplos a sobrecontratação que acabou ocorrendo e o Generation Scaling Factor32 (GSF) para os geradores, que levaram a uma excessiva judicialização no setor elétrico.

32 O GSF mede a geração hidráulica em relação à garantia física, cujo cálculo é feito mensalmente pela CCEE.

Assim, cabe ao regulador reforçar a crença na transparência e no amplo diálogo para que cada vez mais os agentes explicitem esses pontos através da capacitação da equipe com ênfase nas experiências práticas, do realismo das metas regulatórias e na postura proativa para vencer os desafios.

Certo é que os agentes têm demonstrado seu descontentamento, e o regulador busca construir formas de encaminhamento, mas nota-se a necessidade de algo maior, de alguns ajustes no modelo do setor elétrico.

Nesse sentido, o atual governo colocou em consulta pública uma reforma do modelo setorial com propostas densas e que carecem de muita discussão. Trata-se de assunto recente e merece ser aprofundado. É um processo legítimo de não intervencionismo, que não descuida da regulação quando necessária, de transparência e de ampla participação da sociedade. Processo, cujo produto final, espera-se, sirva melhor ao bem comum.

Porém, precisa ser mais abrangente, incluindo, além dos temas de geração, comercialização e consumidores livres, também questões estruturais do segmento de distribuição de energia, de modo a destravar investimentos, prover sustentabilidade, melhorar a qualidade do serviço e cobrar tarifa justa dos consumidores.

Esperamos com isso que o setor elétrico como um todo – formuladores de políticas, investidores, prestadores de serviços, consumidores e as agências reguladoras federais, estaduais e municipais – cada vez mais contribua de forma eficaz e sustentável com as políticas de desenvolvimento do país.

Foi assim, com foco no bem comum, que em duas décadas de existência, a cultura da regulação no setor elétrico brasileiro consolida sua trajetória de nascer e crescer para servir, com equilíbrio, tanto aos consumidores quanto aos agentes e à sociedade.

* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS DE GÁS CANALIZADO

Capítulo 4

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IntroduçãoPaula Campos1

Serviços locais de gás canalizado – uma competência do Estado

Reza a Constituição Federal do Brasil que cabe aos estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para sua regulamentação.

Assim, homologou o Governo do Estado de São Paulo a lei de criação da Arsesp, Lei Complementar nº 1025, de 7 de dezembro de 2007, instituindo as competências da agência: regular, controlar e fiscalizar, no âmbito do Estado, os serviços de gás canalizado prestados pelas concessionárias.

À diretoria de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Distribuição de Gás Canalizado da Arsesp compete especificamente: submeter ao estado proposta de Plano de Outorgas para a concessão dos serviços, de Plano de Metas de Gás Canalizado, e a intervenção ou extinção da concessão, bem como de prorrogação ou extensão do contrato; realizar licitação para a concessão dos serviços e celebrar os respectivos contratos, exercendo as atribuições legais de poder

1 Engenheira Eletricista/ Eletrônica, formada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pós-graduada em Análise de Sistemas, pelo Instituto de Matemática da UERJ. Atualmente cursa a faculdade de Direito na Universidade Paulista. Com mais de 20 anos de experiência no setor elétrico e de gás, trabalhou como gerente na Consultoria Andrade&Canellas, como executiva master de contratos na Comgás, como coordenadora de energia na ABRACE, como diretora técnica e regulatória na Anace, como gerente de energia América do Sul na Air Liquide, como Head na Safira Gestão e CEO na Infinity Energias. Trabalhou ainda por seis anos em engenharia biomédica. Desde outubro de 2017, Paula é diretora de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Distribuição de Gás Canalizado da Arsesp.

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IntroduçãoCapítulo 4

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concedente, salvo quanto à intervenção, extinção, prorrogação e extensão da concessão; dar suporte regulatório à revisão tarifária para a Diretoria de Regulação Econômico-Financeira e de Mercados; fixar limitações aos prestadores quanto ao volume de gás canalizado contratado com empresas do mesmo grupo econômico, bem como restrições à integração vertical; homologar ou autorizar contratos de prestação dos serviços, quando previsto na regulamentação; autorizar as atividades realizadas pelo concessionário, acessórias ou correlatas ao serviço objeto do contrato de concessão; disciplinar o acesso não discriminatório de terceiros, mediante o pagamento de tarifa de uso, ao sistema de distribuição de gás canalizado; autorizar a atividade do comercializador de gás natural a usuários livres; homologar a servidão gratuita e permanente de acesso, a partir do gasoduto de transporte, aos dutos de sistema de distribuição de gás canalizado, instituída pelo concessionário em favor de outros distribuidores; autorizar previamente a alienação ou oneração dos bens vinculados à concessão; autorizar as atividades de assessoria, pesquisa e desenvolvimento, a serem financiadas com as receitas provenientes da fiscalização destes serviços.

Em sequência ao trabalho realizado pela Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE), há 10 anos a diretoria vem editando normas e regulamentos, de modo a garantir os princípios de eficiência, isonomia e competitividade, além de corrigir imperfeições de mercado, buscando o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos de concessão, contribuindo para o bem-estar da população do estado de São Paulo.

A Diretoria de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Distribuição de Gás Canalizado – quem somos

A diretoria é pautada pela excelência e qualificação de seus servidores, locados em duas superintendências, a de regulação e a de fiscalização. São concursados e empossados em cargos de confiança engenheiros, advogados, economistas, administradores, tecnólogos e estagiários, que se empenham nas áreas de Gerência de Contratos,

Autorizações, Comercialização, Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e de Fiscalização. São gerências de natureza técnica, comercial e econômico-financeira. A fiscalização na área do gás, realizada pela Arsesp, visa controlar a qualidade e segurança dos serviços executados, resultando no cumprimento das regras previstas no contrato de concessão. São fiscalizados indicadores e padrões de segurança no fornecimento, de qualidade do produto e do serviço e de qualidade do atendimento comercial, como a Concentração de Odorante no Gás (COG), Índice de Vazamentos no Sistema de Distribuição de Gás (IVAZ) e Tempo de Atendimento de Emergência (TAE), além das demais normas aplicáveis à prestação de serviços.

Para situarmo-nos em importância e responsabilidade, a Arsesp regula, controla e fiscaliza a distribuição de gás canalizado prestada pelas três concessionárias que atuam no mercado paulista: a Comgás (área leste do estado), a GasBrasiliano (área noroeste do estado) e a Gás Natural São Paulo Sul (área sul do estado), que juntas resultaram em um faturamento bruto em 2017 da ordem de 8 bilhões de reais, e P&D e Conservação e Racionalização (C&R) próximos a 8 milhões de reais e investimentos em redes locais de 23 milhões de reais.

Para onde caminha o setor do gás no estado de São Paulo

Em paralelo e em complemento às discussões sobre o monopólio da Petrobras e a abertura real do mercado livre tratados pelo programa “Gás para crescer”, instituído pelo Ministério de Minas e Energia (MME), no biênio 2016-2017, em parceria com outros atores governamentais e empresariais, a agência tem um importante papel também “para dentro”.

Às vésperas de 2018, visando o usual e contínuo processo de aperfeiçoamento de sua regulação e com base em sua experiência acumulada e nas demandas dos diversos agentes do setor, reforçando o processo de transparência, publicou a agência a Deliberação Arsesp nº 776, que dispõe sobre a instituição de Agenda Regulatória da Diretoria de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Distribuição de Gás Canalizado para o ano de 2018.

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IntroduçãoCapítulo 4

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A agenda apresenta diretrizes e compromissos para o ano em questão. Há o compromisso ainda de abertura de audiência pública no segundo semestre, por período longo, que será precedido de discussões com os agentes, de todos os segmentos, sobre os temas de importância a serem desenvolvidos, aprimorados e concluídos no biênio 2019-2020.

A agenda regulatória do gás

A primeira agenda regulatória foi cuidadosamente estruturada em 13 temas, que englobaram (i) o suporte à revisão tarifária, (ii) o processo administrativo sancionatório, (iii) a revisão e atualização de alguns indicadores técnicos, comerciais e de segurança, como monitoração das características físico-químicas do gás natural canalizado entregue aos usuários e comunicação de incidentes com gás canalizado, (iv) a atualização dos segmentos de usuários nas três áreas de concessão, (v) os limites de repasse aos projetos estruturantes de rede local para as Concessionárias, (vi) os Projetos de Programa Anual de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e Conservação e Racionalização (C&R), com a inédita publicação de seus resumos no site da agência, entre outros temas.

Dois estudos também foram propostos e estão em andamento, para que no biênio seguinte possam ser transformados em deliberações e avanços do mercado de gás, que são o estudo sobre o mercado livre e sobre a troca operacional entre as concessionárias do estado de São Paulo (swap).

A preocupação da diretoria do gás, como é conhecida, tem sido cada vez mais assegurar uma prestação de serviço de excelência e transparência à população de São Paulo, garantindo o equilíbrio nas relações entre usuários e prestadores de serviços públicos.

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* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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Capítulo 4 Introdução

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Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafiosIeda Gomes1

Contexto histórico

AA história do gás canalizado no Brasil teve início em 1851, quando Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, assinou um contrato para a iluminação da cidade do Rio de Janeiro com lampiões de gás. A Companhia de Iluminação a Gás foi criada em 1854. Em 1857 a cidade do Rio de Janeiro contava com 3.027 lampiões públicos, 3.200 residências e três teatros, todos iluminados a gás. Em 1865, a Companhia de Iluminação a Gás foi vendida para uma empresa inglesa que assumiu os serviços de gás por meio da Rio de Janeiro Gas Company Limited.2

No decorrer do tempo, a concessão dos serviços passou sucessivamente para a empresa belga Société Anonyme du Gaz – SAG (1876), The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company, Limited (1910) e finalmente para o estado da Guanabara (1969), quando foi criada a Companhia Estadual de Gás da Guanabara (CEG-GB). Em julho de 1997 a CEG-GB foi privatizada, e seu controle acionário é atualmente detido pelo grupo espanhol Gas Natural Fenosa.

1 Engenheira química e mestre em Energia pela USP e Engenharia Ambiental pela École Polytechnique Fédérale de Lausanne (Suíça). Foi CEO da Companhia de Gás de São Paulo (1995-1998) e presidente da BP Brasil (2000-2002), ocupando diversos cargos de direção na BP entre 1998 e 2011. Atualmente é membro do Conselho de Administração da Bureau Veritas, Saint Gobain, Exterran Corporation, InterEnergy Holdings e Odebrecht S.A., e Visiting Senior Fellow do Oxford Institute for Energy Studies e da FGV Energia.

2 Disponível em: http://bit.ly/2BMMKdh. Acesso em: 21 ago. 2017.

Figura 1. São Paulo: antiga Casa das Retortas

Fonte: http://bit.ly/2wzbe7h.

Em 28 de agosto 1872, a San Paulo Gas Company – hoje conhecida como Comgás – foi autorizada a funcionar pelo Decreto imperial 5.071, com a finalidade de explorar os serviços públicos de iluminação de São Paulo. A Comgás, assim como a CEG-GB, passou por sucessivas trocas de controle acionário: em 1912 passou a ser controlada pela empresa canadense Ligth, sendo nacionalizada em 1959. Em seguida, a empresa passou ao controle da Prefeitura de São Paulo e, depois disso, do Estado de São Paulo. A Comgás foi privatizada em 1999, e atualmente o grupo Cosan é o acionista controlador.

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Outras municipalidades como Salvador, Recife, Santos, Taubaté e Porto Alegre também autorizaram a exploração dos serviços locais de gás canalizado por empresas privadas. Essas empresas produziam gás de baixo e médio poder calorífico, à baixa pressão, obtido através da gaseificação de carvão mineral importado em unidades industriais conhecidas como “retortas”. 

Devido às limitações de pressão do processo produtivo, os serviços prestados por essas empresas eram limitados geograficamente a serviços locais. O gás de carvão era usado primariamente na iluminação pública. O advento da eletricidade tornou obsoleta a iluminação a gás e, no início do século XX, apenas duas empresas sobreviveram, a Comgás e a CEG-GB.

A produção de gás de carvão era cara e ineficiente e foi substituída pela produção de gás obtido pela transformação de nafta de petróleo em gás de médio poder calorífico. O gás de nafta, produzido à alta pressão, possibilitou a extensão dos serviços de gás canalizado a regiões mais distantes e o atendimento a um número maior de consumidores. No início da década de 1970, a Comgás construiu um anel de alta pressão em aço, o chamado Reservatório de Alta Pressão (RETAP), em torno das avenidas marginais dos rios Tietê e Pinheiros, que, além de armazenar gás para suprir horários de pico de consumo, também garantia maior segurança no abastecimento.

As crises do petróleo de 1973 e 1979 encareceram o preço da nafta, e as empresas de gás canalizado passaram a buscar alternativas mais baratas e eficientes, pois eram deficitárias e necessitavam de aportes financeiros constantes por parte dos acionistas controladores.

A história do gás natural no Brasil é mais recente que a história do gás canalizado, e confunde-se com a história do petróleo no país. Na década de 1950, a Petrobras iniciou a produção de petróleo em terra, disponilizando gás natural associado. A produção de gás natural teve início no estado da Bahia e era praticamente toda destinada às indústrias.3 A descoberta de petróleo em campos no mar, em particular nas bacias nordestinas e na Bacia de Campos levaram à expansão dos sistemas de transporte e à disseminação do uso de gás natural nas regiões Nordeste e Sudeste. A construção do gasoduto Bolívia-Brasil, finalizada entre 1999 e 2000, possibilitou a duplicação do suprimento de gás e o atendimento às regiões Sul e Centro-Oeste do Brasil.

O modelo regulatório brasileiro

Na década de 1980, a indústria de gás no Brasil, apesar de ainda incipiente, passava por problemas causados por um modelo que dificultava seu crescimento. O modelo opunha, de um lado, a Petrobras, que controlava todo o suprimento, transporte e distribuição de gás em diversos estados, além da produção e suprimento de energéticos concorrentes, como o óleo combustível e o Gás Liquefeito de Petróleo (GLP) e, de outro, as empresas distribuidoras de gás de São Paulo e Rio de Janeiro e os governos estaduais, desejosos de ampliar suas redes de gás e expandir o atendimento ao mercado local.

A Constituição de 1988 foi um marco decisivo para a indústria de gás no Brasil, pois estabeleceu a autonomia dos estados sobre os serviços de gás canalizado. Em seu texto original, o artigo 25, § 2º da Constituição Federal de 1988, dispunha que “cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão a empresa estatal, com exclusividade de distribuição, os serviços locais de gás canalizado[…]”.

A redação do artigo 25 resultou de um compromisso de meio termo entre os estados, que desejavam consolidar seu poder sobre a distribuição de gás, e entidades sindicais e nacionalistas que não

3 Disponível em: http://bit.ly/2BLDPsN. Acesso em: 21 ago. 2017.

“A história do gás natural no Brasil é mais recente que a história do gás canalizado, e confunde-se com a história do petróleo no país

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Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios Capítulo 4

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viam com bons olhos a possibilidade de outorga de tais serviços à iniciativa privada.

A partir da promulgação da Constituição de 1988 foram criadas empresas concessionárias de gás canalizado em diversos estados, quase todas em um modelo tripartite, sendo que os estados detinham o controle das ações ordinárias e a Petrobras e um sócio privado detinham a maioria das ações preferenciais. 

A Constituição de 1995 quebrou o monopólio estatal do petróleo, até então exercido pela Petrobras. O § 1º do artigo 177 estabelece que “a União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a V deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei”.

A emenda constitucional ao artigo 25 removeu a obrigatoriedade de concessão dos serviços locais de gás a empresa estatal e possibilitou a privatização da Comgás e da CEG-GB e a criação de novas empresas concessionárias no Rio de Janeiro (Riogas) e São Paulo (Gás Natural Sul e Gas Brasiliano).

A Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997 (Lei do Petróleo), regulamentou o artigo 177 e estabeleceu a criação do órgão regulador federal, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). 

Em fevereiro de 1990 foi criada a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), que atualmente conta com 21 empresas distribuidoras associadas, em praticamente todos os estados da Federação.4

Após a promulgação da Lei do Petróleo, o Governo Federal criou uma agência federal para regular as atividades de exploração, produção, transporte, tratamento, importação e exportação de petróleo e gás natural, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

4 Dados disponíveis em https://bit.ly/2L0tDyc. Acesso em: 22 ago 2017.

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s Construção de rede de distribuição de gás canalizado

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Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

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A partir de 1998 (Rodada Zero), a ANP passou a organizar leilões anuais de exploração de petróleo e gás.5 As rodadas de licitações atraíram cerca de 100 empresas para as atividades de exploração e produção no país e possibilitaram ainda a criação de empresas petroleiras nacionais de menor porte.

Graças a esses leilões, foram feitas importantes descobertas, em particular a chamada “camada do pré-sal”, que ocorreram em 2006. Até 2008 as atividades de exploração e produção cresceram e permitiram o desenvolvimento e participação de fornecedores locais e internacionais de bens e serviços. As descobertas de petróleo na camada do pré-sal contribuíram para tornar o Brasil uma nova Meca potencial do petróleo, atraindo investidores e fornecedores. Entretanto, devido ao potencial do pré-sal, o Governo Federal resolveu mudar a legislação para explorar e produzir hidrocarbonetos na área do pré-sal e em “áreas estratégicas”, paralisando os leilões de exploração por 5 anos, enquanto discutia e votava a mudança nas regras vigentes.

A partir de 2010, foi introduzida legislação para o pré-sal mudando o regime de concessão para a partilha da produção em futuras rodadas, tornando obrigatória a participação da Petrobras como operadora única, com participação mínima de 30%. Além disso, foi criada uma nova empresa estatal para administrar o óleo e gás da União, a Pré-Sal Petróleo S.A.

5 Disponível em: http://bit.ly/2vy56es. Acesso em: 22 ago 2017.

Apesar de intensificar as atividades de exploração e produção, isso não trouxe ainda a almejada competição e diversificação no suprimento de gás natural. Com exceção de um sistema isolado no Maranhão, cujo desenvolvimento foi iniciado pela empresa OGX e completado pela Parnaíba Gás Natural (PGN), a Petrobras continuava – e continua – a dominar o suprimento de gás nacional e importado, bem como toda a infraestrutura de transferência, processamento e transporte de gás. Além disso, participa como acionista em vinte das empresas distribuidoras de gás canalizado.

A Lei 11.909, de 4 de março de 2009 (Lei do Gás), estabeleceu as diretrizes relativas ao transporte, importação, transferência e tratamento de gás no âmbito federal e reafirmou a competência constitucional dos estados sobre os serviços de distribuição de gás canalizado. A construção e operação de gasodutos de transporte no território nacional passou para o regime de concessão, e os gasodutos de transporte construídos antes da vigência da Lei passaram a contar por um período de exclusividade de 10 anos. Após esse prazo, o operador era obrigado a outorgar livre acesso para capacidade não contratada.

A lei ainda garantiu a isenção de livre acesso às atividades de escoamento da produção, processamento e regaseificação de GNL. É notório ressaltar que após a promulgação da lei não foram ainda iniciados projetos de novos gasodutos de transporte no país. A Petrobras comissionou três terminais de GNL em 2009, 2010 e 2014, para os quais não está obrigada a conceder livre acesso.

A privatização da indústria de gás em São Paulo

O Programa Estadual de Desestatização (PED) foi instituído pela Lei estadual 9.361, de 05 de julho de 1996, que dispõe sobre a Reestruturação Societária e Patrimonial do Setor Energético. O artigo 10, § 2º, dessa mesma lei, autorizava a divisão do estado de São Paulo em até três áreas de concessão. O Conselho Diretor do PED decidiu quanto à outorga da concessão para explorar os serviços de distribuição de gás canalizado no estado de São Paulo, mediante licitação na modalidade de concorrência.

“As descobertas de petróleo na camada do pré-sal contribuíram para tornar o Brasil uma nova Meca potencial do petróleo, atraindo investidores e fornecedores

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Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios Capítulo 4

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O Decreto 43.889, de 10 de março de 1999, estabeleceu o regulamento de concessão e permissão da prestação de serviços públicos de distribuição de gás canalizado no Estado.

Em face dos desafios enfrentados pela Comgás – falta de recursos para estender a rede além da região metropolitana de São Paulo, ineficiência administrativa e ingerência política, o governo decidiu pela inclusão da Comgás no PED, enquanto negociava com a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo a votação de uma emenda à Constituição Estadual, uma vez que ainda não tinha sido adequada ao estabelecido na emenda ao artigo 25 da Constituição Federal de 1995.

Em 1997 foram contratados os serviços de consultoria para executar a análise econômico-financeira da companhia e definir o modelo a ser seguido no processo de privatização (os chamados serviços A e B).

Em março de 1999, a Comgás atendia a cerca de 300 mil consumidores residenciais, industriais e comerciais, localizados em 17 municípios do estado. O orçamento da Comgás para 1999 previa investimentos de R$ 120 milhões, dos quais R$ 100 milhões destinados à ampliação da rede e R$ 20 milhões à manutenção.6

O leilão de privatização da Comgás ocorreu em 14 de abril de 1999. O consórcio Integral Holdings S.A. (Shell e BG Group, mais conhecido como British Gas) foi o vencedor do leilão com um preço de R$ 261 76 por lote de mil ações, com um ágio de 119,32% sobre o valor mínimo fixado para o leilao, R$ 753,69. O valor pago pela Comgás foi de R$ 1,6 bilhão. A Shell já tinha, antes do leilão, 19,86% do capital votante da Comgás e 16,14% do total de ações.7

6 Segundo reportagem da Folha de Londrina disponível em: http://bit.ly/2viTbxX. Acesso em: 24 ago 2016.

7 Segundo dados disponíveis na reportagem do Diário do Grande ABC. Disponível em: http://bit.ly/2v9ttA7. Acesso em: 24 ago 2017.

Após o leilão de privatização da Comgás foram realizados mais dois leilões para outorga de concessões “greenfield”8 nas regiões Nordeste e Sul do estado de São Paulo.

O leilão para concessão da área Nordeste foi realizado em 9 de novembro de 1999. O consórcio formado pelas empresas italianas Agip, Italgas e Snam, do grupo italiano Eni, adquiriu a concessão pelo preço de R$ 274,9 milhões, com um ágio de 150%, cerca de US$ 142,5 milhões no câmbio da época da privatização.

Em 26 de abril de 2000, o governo paulista realizou o leilão de licitação da concessão dos serviços de gás canalizado da Área Sul. O grupo espanhol Gás Natural pagou R$ 533,8 milhões, o que representa um ágio de 461,89% sobre o preço mínimo, estipulado em R$ 95 milhões.

Em abril de 2017, o estado de São Paulo contava com 1,8 milhão de consumidores de gás canalizado, dos quais 98,9% pertenciam ao setor residencial,9 ou seja, um crescimento de mais de 600% em relação aos números de 1999.

Regulação da distribuição de gás nos estados

Os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo foram pioneiros na regulação dos serviços de gás canalizado.

No caso de São Paulo, além de conceder os serviços de gás canalizado a três empresas privadas, em diferentes áreas geográficas, foi criada uma agência reguladora para os serviços de gás canalizado e de eletricidade (esses últimos, por delegação da Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel). A Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE) foi criada em 1998 como uma autarquia para regular e fiscalizar os serviços de energia elétrica e gás canalizado.

8 Greenfield: projeto que carece de restrições impostas por um processo anterior.9 Disponível em: https://bit.ly/2rISEVX. Acesso em: 24 ago 2017.

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A CSPE foi sucedida pela Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), que é uma autarquia de regime especial, vinculada à Secretaria Estadual de Governo, criada pela Lei Complementar 1.025/2007 e regulamentada pelo Decreto 52.455/2007, “com o objetivo de regular, controlar e fiscalizar, no âmbito do Estado, os serviços de gás canalizado e, preservadas as competências e prerrogativas municipais, de saneamento básico de titularidade estadual”.10

As empresas de São Paulo tiveram suas concessões outorgadas através de processo licitatório, com contratos de 30 anos, prorrogáveis por mais 20 anos. Dada a natureza monopolística dos serviços, as concessões teriam exclusividade geográfica por um período de 12 anos, após o qual os consumidores industriais de certo porte e geradoras termoelétricas passariam a ser livres, mas teriam de pagar tarifa de distribuição à concessionária local.

Os contratos de concessão em São Paulo tinham cláusula de revisão tarifária a cada 5 anos, com fórmulas que incorporavam fatores de eficiência (Fator X) e de ajuste para desvios de margem (Fator K). A revisão tarifária quinquenal, bem como a revisão de outros aspectos da concessão, seria precedida por audiência pública.

No caso da Comgás, o Poder Concedente exigiu um plano mínimo de investimentos no primeiro decênio, além da manutenção de capacitação técnica mínima por parte do investidor privado. Os investidores privados foram obrigados a ampliar o número de consumidores em 66,6% nos primeiros dez anos após a privatização, ou seja, de 300 mil para 500 mil no período entre 1999 e 2009.

Nos demais estados brasileiros, as empresas distribuidoras tiveram a outorga de contratos de concessão de 30 a 50 anos. Na maioria dos estados foram criadas agências reguladoras dos serviços de gás canalizado, sendo que várias delas são mistas e regulam outros serviços como eletricidade, saneamento e transporte, por exemplo, em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul.

10 Disponível em: http://bit.ly/2xtmTkn. Acesso em: 23 ago 2016.

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• Exploração e produção: atualmente existem mais de 40 empresas explorando e produzindo petróleo e gás natural no Brasil, a maior parte em parceria com a Petrobras. Essas empresas parceiras têm preferido vender seu gás para Petrobras, em vez de investir na infraestrutura de escoamento, visando monetizar sua produção. Como mencionado anteriormente, a única exceção é o sistema integrado de gás natural não associado e geração termelétrica operados pela Parnaíba Gás Natural (PGN) no Maranhão, que representa apenas 9,7% da oferta (5,2/52,4) e 5% da produção total no Brasil.

• Transporte: a Petrobras controla direta ou indiretamente toda a rede de 9.409 km de gasodutos no território nacional e os gasodutos de importação da Bolívia. Em 2016 a empresa passou a negociar a venda de ativos de transporte da Nova Transportadora do Sudeste (NTS) para a empresa canadense Brookfield, compreendendo 2.050 km de gasodutos e capacidade de transporte de 158,2 MMm3/dia.11 A venda de 90% da participação acionária na NTS foi concluída em abril de 2017, ao preço de USD 4,23 bilhões. A NTS passa a ter como acionistas a Brookfield (82,35%), Petrobrás (10%) e Itaúsa (7,65%). Além de continuar a participar da composição acionária da NTS, a Petrobrás controla toda a capacidade de transporte dos gasodutos através de cinco contratos de longo prazo na modalidade firme (ship-or-pay), que vencem no período entre 2025 e 2031. Além disso, a Petrobras Transporte S.A. (Transpetro), subsidiária integral, permanecerá responsável pela operação e manutenção dos ativos, através de um novo contrato de serviços, firmado com a NTS e com prazo de 10 anos, contados a partir de abril de 2017.12

• Escoamento, transferência e processamento de gás natural: a Petrobras controla toda a capacidade de escoamento (254 dutos, 4.650 km) e transferência (5 dutos, 30 km) de gás natural, bem como todas as plantas de processamento de gás, cerca de 95 MMm3/dia

• Importação de gás natural por gasoduto: a Petrobras controla a Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG), responsável

11 MMm3/dia: milhões de metros cúbicos por dia.12 Disponível em: http://bit.ly/2FWf6jw. Acesso em: 23 ago 2017.

Regulação das atividades atinentes às esferas federal e estadual

O gás natural produzido no Brasil – ou importado em gasodutos ou em terminais de GNL – passa por Unidades de Processamento de Gás Natural (UPGN) e é transportado até as estações primárias de transferência e redução de pressão (city-gates), onde a titularidade é dada às empresas distribuidoras de gás, que, por sua vez, comercializam o produto aos consumidores finais. As exceções a esse modelo são as refinarias de petróleo, plantas de fertilizantes e algumas usinas termelétricas, que recebem gás diretamente da Petrobras.

Enquanto os estados regulam as atividades de distribuição de gás canalizado, a ANP regula as atividades nos segmentos upstream e midstream da cadeia de valor do gás, assim como as atividades de importação e exportação.

Figura 2. Esferas de competência da regulação de gás natural

Lei 9.478/1997Lei 11.909/2009

ANP:· Exploração e Produção· Transporte· Importação e exportação· Processamento· Terminais de GNL

Federal Estadual

Leis estaduais

Agências/governos estaduais:

· Distribuição de gás canalizado

Fonte: Elaboração própria.

Apesar de decorridos 20 anos desde a promulgação da Lei do Petróleo, a Petrobras continua a dominar o setor e exerce um monopólio de fato em praticamente todos os elos da cadeia de valor do gás natural:

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Regulação do gás natural e panorama internacional

As atividades de transporte e distribuição constituem monopólio natural, uma vez que não é economicamente eficiente construir e operar sistemas paralelos servindo a um mesmo grupo de consumidores. A regulação do gás natural em diversos países teve como imperativo a otimização e controle desses monopólios, além de incentivar a competição nas atividades que não constituem monopólio natural, como a produção, importação e comercialização.

Em diversos países, a regulação da indústria do gás teve como objetivo final o aumento da competição no suprimento, a obrigatoriedade de acesso à capacidade ociosa em gasodutos de transporte e distribuição, plantas de processamento de gás e regaseificação do GNL, a desverticalização e privatização dos monopólios estatais, possibilitando ao consumidor a escolha do supridor final com preços competitivos de mercado.

Os países que mais avançaram quanto a esses objetivos foram os Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Espanha. As sucessivas diretrizes da União Europeia obrigaram os demais países a progressivamente liberalizar a indústria do gás.

Na América do Sul, a Argentina tomou a dianteira com a promulgação da Lei 24.796 em 20 de maio de 1992, seguida da privatização da empresa de petróleo estatal, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), da desverticalização e privatização da empresa estatal de transporte e distribuição (Gas del Estado), que foi subdividida em 8 empresas distribuidoras e duas empresas transportadoras. Ademais, foi criada uma agência reguladora para o transporte e distribuição de gás, a Enargas. O marco regulatório argentino tinha ainda como objetivo evitar o conflito de interesse entre os agentes da cadeia de valor, proibindo que empresas produtoras detivessem o controle de empresas de transporte e distribuição. Dada a maturidade da indústria de gás no país, os produtores podem comercializar gás natural diretamente com distribuidoras e consumidores livres (indústrias e usinas termelétricas).

pelo transporte de gás importado da Bolívia; além disso, a empresa brasileira controla também o contrato de suprimento de cerca de 30 MMm3/dia de gás boliviano, mediante contratos que deverão expirar em 2019 e 2020.

• Importação de Gás Natural Liquefeito (GNL): a Petrobras controla e opera os três terminais de importação e regaseificação de GNL no Brasil, com capacidade total de 41 MMm3/dia.

• Distribuição de gás: a Petrobras controla e opera a GasBrasiliano Distribuidora S.A. (SP) e é a concessionária de distribuição no Espírito Santo. A Petrobras também participa do controle de 22 empresas distribuidoras, seja através de sua subsidiária Gaspetro ou diretamente em parceria com os estados e sócios privados.

• Geração termelétrica a gás: a Petrobras é o sexto maior agente de geração de eletricidade no Brasil, com capacidade instalada de 6.240 MW em usinas de gás natural.

Figura 3. Brasil: participação da Petrobras na cadeia de valor do gás natural

· Petrobras (81% da produção, 95% da oferta e 100% das importações)

· Outros produtores domésticos: Shell, Petrogal, Repsol, Queiroz Galvão, Brasoil, PGN etc. Upstream

· Petrobras· 97% do transporte de gás· 100% dos terminais de GNL· 92% da capacidade de processamentoMidstream

Downstream

· Petrobras· 20 das 27 distribuidoras estaduais, equivalente a

51,7% da demanda em distribuição (média de 2015)· 48% da capacidade de geração térmica a gás· 40% do consumo de gás natural (2015)

Fonte: http://bit.ly/2wFYRWl e http://bit.ly/2vttBWo.

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O modelo argentino teve como objetivos principais estimular o aumento da produção e a concorrência no suprimento de gás, ampliar investimentos na infraestrutura de redes físicas através de investimentos privados, além de maximizar a renda obtida na venda dos ativos da YPF e da Gas del Estado. O leilão de venda desses ativos atraiu empresas de grande porte da Europa e América do Norte e possibilitou o renascimento da indústria de gás no país. Além do crescimento do mercado interno, a Argentina passou a exportar gás para Chile, Brasil e Uruguai.

O sistema argentino funcionou a contento até os governos de Néstor e Cristina Kirchner, que passaram a exercer controle de preços, tornaram proibitivas as exportações, pela imposição de impostos elevados, além de criarem uma empresa federal estatal de energia, a Enarsa e renacionalizarem a YPF.

Não obstante, a Argentina continua a manter o modelo de separação das atividades de produção, transporte e distribuição, e, apesar da importância da YPF, os produtores privados comercializam livremente seu gás com distribuidoras e consumidores livres. A intervenção do governo nos preços do gás teve o efeito negativo de desencorajar a exploração e afastar investidores estrangeiros das atividades de transporte e distribuição. A partir de 2005, a Argentina cortou suas exportações de gás e aumentou suas importações de gás da Bolívia, além de construir dois terminais para importação de GNL. A partir de 2008, e depois de 4 anos consecutivos de suprimentos insuficientes, o governo introduziu diversos planos para estimular a exploração de gás natural, em particular gás não convencional:

• Programa Gas Plus (Resolução 24/2008):13 aumentou o preço ao produtor para novas descobertas de gás, em particular de gás não convencional, de USD 1,4-2,4 /MMBtu14 para USD 4,5 e subsequentemente 4,5-5,2/MMBtu. Os produtores estavam sujeitos a penalidades financeiras, caso não cumprissem metas de produção estabelecidas pelo Governo.

13 Disponível em: http://bit.ly/2w7pz81. Acesso em: 24 ago 2017.14 MMBtu: Milhões de British Thermal Units.

• Programa Plangas (“Programa de Estímulo à Injeção Excedente de Gás Natural”), de janeiro de 2013, que aumentou o preço da produção excedente para USD 7,5/MMBtu, e estabeleceu penalidades severas em caso de descumprimento, pois os produtores inadimplentes teriam de compensar o Governo, pagando o preço equivalente ao gás natural importado sob a forma de GNL, que variava entre USD 11 e 16/MMBtu para os importadores brasileiros e argentinos em 2012.15

Os planos mencionados contribuíram para aumentar a produção doméstica de 5% para 15%, mas não resolveram um problema fundamental de preços subsidiados ao consumidor final (Figura 4), em média inferiores aos preços do gás importado e do gás doméstico produzido sob a égide do Plangas. O governo Macri tem buscado realinhar os preços ao consumidor, através de sucessivos, mas impopulares, “tarifaços”.

Figura 4. Argentina: preços de gás natural ao produtor/importador e consumidor final (agosto 2016)

USD

/MM

BTU

Gas exis

tente

Gas Plus

Plan Gas I

& II

Plan Gas I

I

Bolívia

Chile GNL

Residencia

l

Industrial

Estaçõ

es CNG

Usinas T

érmica

s

2,5

5,2

7,5

4

3,2

6,9

4,5

2,4

5,35,5

6

Fonte: Adaptado de Gomes et al., 2016.16

15 Disponível em: http://bit.ly/2g8bUJQ. Acesso em: 24 ago 2017.16 Disponível em: https://goo.gl/kXRAJ5. Acesso em: 27 ago 2017.

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Além disso, a partir de 2015 os preços internacionais do GNL e gás importado da Bolívia (indexados a derivados de petróleo) começaram a cair gradualmente. Em 2017 os preços do GNL importado pela empresa nacional de energia Energía Argentina S.A. (ENARSA) são, em média, USD 5,6-5,79/MMBtu, enquanto que o preço médio do gás importado da Bolívia no primeiro semestre de 2017 foi de USD 4,7/MMBTU.17,18

17 Disponível em: https://bit.ly/2GwfeeR. Acesso em: 24 ago 2017. 18 Disponível em: https://bit.ly/2SZP0CJ. Acesso em: 24 ago 2017.

No caso do Reino Unido e da Espanha, os programas de desverticalização, privatização e regulação de monopólios naturais, fruto da determinação política do governo Thatcher na década de 1980 e das diretrizes da União Europeia, a partir de 1998, resultaram em uma indústria do gás competitiva e diversificada, conforme resumido na Tabela 1.

Tabela 1. Quadro comparativo dos marcos regulatórios em países selecionados

Brasil Argentina Reino Unido Espanha

Agência reguladora

ANP (E&P, transporte)

Governos e agências estaduais (distribuição)

Secretaria de Energia (E&P)*

ENARGAS (transporte e distribuição)

Oil and Gas Authority – OGA (E&P)

Gas and Electricity Markets Authority - GEMA (transporte e distribuição)

Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia (transporte e distribuição)

Número de produtores (petróleo/gás)**,***

>40 >50 >50 Negligível****

Número de supridores

02 >20 >20 >20

Desverticalização Parcial Total Total Total

Acesso de terceiros Dificultado Obrigatório Obrigatório Obrigatório

Precificação

Preços livres ao produtor e tarifas reguladas na distribuição

Preços ao produtor, transportador e distribuidor regulados*****

Preços livres ao produtor e tarifas de transporte e distribuição reguladas

Preços livres ao produtor e tarifas de transporte e distribuição reguladas

Fonte: Elaborado a partir de Bondorevsky e Petrecolla e outros documentos.19 * E&P: Exploração e Produção. ** Disponível em: http://bit.ly/2fE33Qj. Acesso em: 24 ago 2017. *** Disponível em: http://bit.ly/2wBXHMa. Acesso em: 24 ago 2017. **** A Espanha importa a maior parte do gás que consome. ***** Antes de 2002, os preços eram determinados pela competitividade do gás nos mercados locais.

19 Disponível em: http://bit.ly/2w1yCsP. Acesso em: 24 ago 2017. Ver também: http://bit.ly/2wFYRWl; http://bit.ly/2vttBWo; http://bit.ly/2iumYlm e http://bit.ly/2w8uNk2.

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Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios Capítulo 4

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Regulação e preços de gás natural

No Brasil, os preços de gás natural do produtor/importador aplicados às distribuidoras e consumidores livres são livremente negociados e não regulados.

Os preços do gás ao consumidor final são regulados tanto pelas agências reguladoras estaduais como diretamente pelo poder concedente. Em geral, o preço ao consumidor consiste no pass-through do preço da molécula acrescido da margem de distribuição e impostos.

Diferentemente do que ocorre em diversos países onde a indústria do gás é regulada, e mesmo considerando o contrato de importação da Bolívia, o preço do gás natural nacional no city-gate não diferencia o componente “molécula” do componente “transporte”.

Além disso, não existe transparência quanto aos preços praticados com as empresas afiliadas à Petrobras – refinarias, plantas de fertilizantes e usinas termelétricas.

No Brasil ainda não se chegou ao estágio de desenvolvimento da competição gás versus gás, como ocorre nos Estados Unidos e mercados europeus liberalizados. Historicamente, a precificação do gás teve como objetivo tornar o gás competitivo com seus principais concorrentes, no caso do mercado industrial, o oléo combustível, adicionando-se um prêmio que leva em conta certas externalidades, como a menor emissão de poluentes por parte do gás e ainda a melhor qualidade e eficácia do gás nos processos industriais. No caso dos mercados residencial e comercial, o principal concorrente é o GLP, enquanto que no setor de transportes o gás compete com a gasolina e com o etanol.

A Figura 5 ilustra os preços ao produtor/importador e consumidor final vigentes em abril de 2017 e ressalta duas importantes distorções:

• O preço do gás para as usinas do Programa Prioritário de Termeletricidade (PPT) é inferior aos preços para o produtor e o importador e aos preços do gás doméstico nos city-gates. A Petrobras importa GNL a preços de mercado e fornece gás para usinas

termelétricas, que responderam por mais de 40% do mercado de gás em 2014 e 2015.

• O preço de gás de origem nacional20 no city-gate é superior ao preço do gás importado da Bolívia e possivelmente equipara-se ao preço do GNL após adicionados custos de transporte e regaseificação.

Figura 5. Brasil: preços de gás natural ao produtor/importador e consumidor (abril 2017)

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/MM

Btu

Doméstico

firme

Doméstico

negociado

Bolívia

GNL (FO

B)

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ia

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Comercial

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15

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7,395,67

4,176,87

12,0913,26

23,25

Fonte: http://bit.ly/2wFYRWl

As grandes questões regulatórias no Brasil

Apesar de centenária, a indústria do gás natural no Brasil ainda não conseguiu atingir um grau de maturidade e liberalização que possibilitem a competição na oferta e a expansão dos serviços a uma parcela mais ampla da população brasileira.

A despeito do crescimento da oferta e do número de consumidores nos últimos dez anos, as redes de gás natural atingem apenas 5%

20 Cerca de 80% do gás natural produzido no Brasil é associado ao petróleo.

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dos domicílios no país e o consumo industrial tem se mantido relativamente estagnado nos últimos 5 anos.21

Os principais obstáculos ao desenvolvimento da indústria do gás estão sumarizados na figura a seguir:

Figura 6. Brasil: barreiras e obstáculos ao desenvolvimento da indústria de gás

Infraestruturaincipiente

Tributação elevada

Ausência de política de governo

Regulação heterogênea

Monopólio verticalizado

Financiamento escasso e caro

• O monopólio verticalizado da Petrobrás inibe as ações comerciais de outros produtores, que enfrentam imensas dificuldades para comercializar sua produção no mercado, incluindo barreiras ao acesso à infraestrutura de transporte, deslocamento e tratamento de gás, bem como a regaseificação do GNL.

• A infraestrutura de transporte e distribuição gás é incipiente para um país com as dimensões continentais do Brasil. Além disso, os elevados custos de construção, o baixo consumo unitário residencial e a dificuldade de se obter licenças ambientais e alvarás de construção também inibem e atrasam a expansão das redes de gás.

21 Segundo dados a Abegás. Disponível: https://bit.ly/2A7LfnM. Acesso em: 24 ago 2017.

• O acesso a financiamento competitivo também é um obstáculo para o desenvolvimento das redes de gás canalizado. Os juros elevados do setor bancário e a ausência de financiamentos a juros baixos por parte do BNDES têm sido fatores impeditivos à capilarização das redes de gás no Brasil.

• A regulação da indústria de gás é heterogênea a nível estadual, não existindo padrões comuns de incentivo à expansão e de modicidade tarifária. Além disso, em vários estados, a atuação das agências reguladoras oscila ao sabor das mudanças nos governos estaduais, sendo que elas não são totalmente autonômas ou independentes do poder concedente. Além disso, no âmbito federal, a ANP tem tido sucesso limitado em coibir práticas monopolísticas, devido à ausência de marco legal compatível para a coibição dessas práticas.

• Apesar de sucessivos planos de gás, iniciados pelo Governo Federal desde a década de 1980, inexiste uma política governamental clara e abrangente para o gás natural. A política de fato é executada pelo agente predominante de acordo com sua estratégia empresarial e necessidade de caixa.

• A tributação do gás natural no Brasil não leva em conta as vantagens ambientais desse recurso energético, nem o diferencia de combustíveis mais poluentes, como o carvão e o óleo combustível. O modelo tributário também é uma barreira à liberalização do setor, por encarecer práticas como o swap financeiro e operacional, o armazenamento de moléculas de GNL de dois ou mais importadores em um mesmo tanque, além de tributar gás natural e GNL de forma diferenciada.

• A venda de ativos de gás da Petrobras, iniciada em 2015, não foi precedida de um plano de governo. Também não foram estabelecidos princípios e condições mínimas para evitar a formação de monopólios privados ou a continuidade do monopólio de fato da Petrobras, exercido sob a forma de acordo de acionistas, bem como de reserva de toda a capacidade de transporte dos ativos vendidos a terceiros. Além disso, a Petrobras continua a operar ativos de transporte através da Transpetro.

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Conclusões

O Brasil tem tido sucesso limitado na expansão e liberalização da indústria de gás natural e gás canalizado. No âmbito federal, a política de fato de gás é definida pelas estratégias comerciais da Petrobras e pelos planos de investimentos ou de desinvestimento da estatal.

Apesar da situação de monopólio de fato, o arcabouço regulatório brasileiro é muito limitado para coibir práticas de reserva de capacidade para empresas do mesmo grupo econômico e para proporcionar mais transparência e justificativas econômicas para o preço do gás nacional. No âmbito estadual, a falta de critérios regulatórios homogêneos, a predominância da Petrobrás como acionista das distribuidoras de gás, o conflito de interesse entre o poder concedente com o duplo papel de acionista e regulador e a ausência de metas mais ambiciosas de expansão têm sido obstáculos ao crescimento mais eficiente e capilarizado em diversos estados.

Desde 1990 diversos planos federais têm sido criados no âmbito federal, como o intuito de desatar nós regulatórios e legislativos, mas esses programas têm sofrido solução de continuidade, em razão do calendário eleitoral e de uma vontade governamental firme de mudar as regras para o setor, conforme ocorreu na Argentina no início dos anos 1990 e na União Europeia, a partir dos pacotes de diretrizes de 1998, 2003 e 2009.

A experiência internacional tem demonstrado que, sem uma forte política de governo, metas de longo prazo e um arcabouço legal e regulatório compatível, é muito díficil remover privilégios monopolísticos e criar uma indústria de gás verdadeiramente competitiva.

Caso o Brasil fosse bem-sucedido em desenvolver mais produtores independentes de gás e um mercado consumidor mais robusto, seriam criadas tensões competitivas mais fortes para o acesso à infraestrutura de gás. A redução do papel da Petrobrás na importação de gás boliviano constitui teste importante para que as distribuidoras estaduais possam negociar livremente com o supridor único naquele país, a Yacimiento Fiscales Bolivianos (YPFB).

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s * Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SANEAMENTO BÁSICO

Capítulo 5

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E

IntroduçãoHélio Luiz Castro1

Tarifas mais justas e saneamento básico de qualidade no estado de São Paulo

Em 2017, a imprensa internacional publicou dados preocupantes sobre o saneamento básico no mundo. De acordo com relatório da ONU, divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mais da metade da população mundial não tem acesso a serviços básicos de saneamento, como tratamento de esgoto, e 2,1 bilhões de pessoas não possuem água tratada em suas residências.

No entanto, o estado de São Paulo vive outra realidade. Em março deste ano, o Instituto Trata Brasil apontou São Paulo como a segunda melhor capital do país em saneamento básico. A cidade de Franca, cuja concessionária também é a Sabesp, destacou-se, pelo terceiro ano consecutivo, como a primeira cidade do Brasil com 100% de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto.

É justamente nesse contexto que se insere o trabalho da Agência Reguladora de Saneamento e Energia de São Paulo: garantir que todos os cidadãos dos municípios por ela regulados tenham os serviços de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto, com qualidade na prestação

1 Diretor de regulação técnica e fiscalização dos serviços de saneamento básico, Hélio trabalhou durante 19 anos na Sabesp, assumindo, entre outras funções, o cargo de superintendente de produção de água. Formado em engenharia sanitária, obteve os títulos de mestre em engenharia pela USP e MBA em gestão empresarial pela FIA.

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IntroduçãoCapítulo 5

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dos serviços e preços compatíveis com a capacidade de pagamento da população.

Apesar de relativamente recente, a criação da agência, que coincidiu com a implantação da Lei Federal 11.445/2007 sobre diretrizes nacionais e política federal de saneamento básico, gerou uma grande mudança de cultura na área. Até então, as próprias concessionárias eram as responsáveis pelos processos de planejamento, operação dos sistemas e definição das tarifas. Em 2007, por conta da Lei de Saneamento, essa situação mudou: hoje, o responsável pelo planejamento, que é feito por meio dos Planos Municipais de Saneamento Básico, é o poder concedente; a operação dos sistemas de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto, pelas concessionárias ou prestadoras de serviços; e a regulação, incluindo a definição das tarifas, pelas agências reguladoras.

É função da agência, portanto, equilibrar um mercado monopolista, uma vez que não se mostra viável a existência de mais de um prestador de serviços públicos de água e esgoto na mesma localidade, como ocorre com as telecomunicações, área em que o consumidor tem diversas opções de operadoras de celular, por exemplo. Desta forma, como não há concorrência no saneamento, as empresas podem acabar não priorizando aspectos importantes, como a qualidade e a eficiência do serviço oferecido aos usuários.

É nesse ponto que o órgão regulador passa a atuar, fazendo que sejam cumpridos determinados padrões e metas. O mesmo vale para a tarifa: o órgão regulador avalia os custos e investimentos da concessionária e define um valor que permita implantar as melhorias previstas no planejamento, proporcionar o retorno financeiro à concessionária e, ao mesmo tempo, garantir a modicidade tarifária ao usuário.

Este capítulo oferecerá ao leitor uma síntese do processo de regulação no setor de saneamento básico, especificamente na prestação de serviços de distribuição de água e coleta e tratamento de esgotos, versando sobre aspectos teóricos aliados a exemplos práticos da atividade regulatória.

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* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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Capítulo 5 Introdução

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Regulação no setor de água e esgotoLucas Navarro Prado1

Denis Austin Gamell2

OO objetivo deste artigo é explorar, sucintamente, o tema da regulação no setor de água e esgoto, que ganhou destaque especialmente a partir da edição da Lei Nacional de Saneamento Básico, a Lei Federal 11.445/2007. Lembre-se que a expressão “saneamento básico” engloba, nos termos dessa lei, não apenas os serviços de abastecimento de água tratada e esgotamento sanitário, mas também limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, além de drenagem e manejo das águas pluviais, limpeza e fiscalização preventiva das respectivas redes urbanas. Para este artigo, no entanto, optou-se por focar nos serviços de água e esgoto, dado que, em relação aos demais serviços de saneamento básico, a regulação ainda é bastante incipiente.

Como se sabe, em mercados monopolizados, existe grande preocupação com os preços cobrados e a qualidade dos serviços prestados. Na teoria, o monopolista tenderia a ofertar

1 Advogado especializado na interação público-privada, particularmente no âmbito de contratos governamentais nas áreas de infraestrutura, defesa e tecnologia (www.navarroprado.com.br), temas sobre os quais tem escrito diversos livros e artigos. Graduado em direito pela USP e pós-graduado em Finanças Corporativas pela FIA/USP, foi Consultor do Banco Mundial (2011-2012), Superintendente Jurídico da Sabesp (2009-2010), assessor jurídico da Unidade de PPP do Governo Federal (2005-2007), e conselheiro de administração de algumas empresas no setor de infraestrutura.

2 Advogado especializado na interação público-privada, particularmente no âmbito de contratos governamentais nas áreas de infraestrutura, defesa e tecnologia, temas sobre os quais tem escrito diversos artigos. Formado em Direito pela UnB, atualmente faz pós-gradução em Finanças Corporativas pela Fundação Getulio Vargas (FGV).

serviços mais caros e de menor qualidade em comparação à situação em que enfrentasse competição.

Os monopólios naturais em infraestrutura são caracterizados por economias de escala e de escopo (baixo custo marginal) e por altos custos fixos ou afundados (sunk costs) para disponibilizar os ativos, de modo que uma única empresa, teoricamente, conseguiria prestar o serviço a um custo menor do que numa situação em que duas ou mais empresas o fizessem competindo entre si – resultando em uma consistente barreira de mercado.3 Isso impede ou dificulta bastante a entrada de novos competidores.

No caso do setor de água e esgoto, ainda existem barreiras regulatórias adicionais, pois, por envolver fornecimento de água tratada para consumo humano, há preocupação com a saúde pública e, nessa perspectiva, privilegia-se a concessionária de serviço público em face das fontes alternativas de abastecimento. Isso torna o poder monopolístico da concessionária ainda mais relevante.

Dado esse contexto, a regulação no setor de água e esgoto é fundamental para melhorar a qualidade dos serviços e assegurar a modicidade tarifária.

O texto está dividido em quatro seções, sendo a primeira delas esta introdução. Na Seção 2, discute-se a segregação institucional das funções de planejamento, regulação e execução dos serviços de água e esgoto, atribuindo o papel de regulação necessariamente a uma entidade reguladora independente nas suas decisões e com autonomia administrativa, orçamentária e financeira. Para garantir que a regulação seja efetiva e que, por conseguinte, os serviços sejam prestados pelas empresas de forma adequada aos usuários,

3 MANKIW, G. Principles of Microeconomics. 7. ed. Stamford: Cengage Learning, 2015. p. 328.

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Capítulo 5

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o marco legal de saneamento básico vigente no Brasil deu especial importância a esse tema.

Na Seção 3, abordam-se os aspectos pertinentes à regulação técnica, econômica e fiscalização definidos no âmbito da Lei Federal 11.445/2007. Particularmente em relação à regulação econômica, para melhor compreensão do tema, entendeu-se necessário explorar os possíveis modelos de regulação existentes, antes de adentrar aspectos específicos relacionados ao setor de água e esgotos. Assim, foram apresentadas as características do modelo de “regulação discricionária”, consideradas suas subdivisões em regulação price-cap e regulação por taxa de retorno, e a “regulação por contrato”, levando em conta as possibilidades de compensação conforme o Plano de Negócios da concessão ou aplicando-se a metodologia de Fluxo de Caixa Marginal.

A Seção 4 apresenta brevemente as principais conclusões.

Segregação institucional das funções de planejamento, regulação e prestação dos serviços de água e esgoto

A segregação de funções no setor de água e esgoto foi uma das principais inovações trazidas pela Lei Federal 11.445/07. A seguir, após breve digressão sobre o histórico do setor, demonstraremos como o novo marco legal atribuiu a entidades distintas as funções de planejamento, regulação e execução dos serviços, mesmo que todas essas atividades sejam desempenhadas por entidades estatais.

Histórico do setor e interferência na segregação institucional da função regulatória

A fim de compreender a importância da mudança realizada pela Lei Federal 11.445/2007, vale refletir sobre o fato de que a maior parte dos municípios brasileiros ainda é atendida por prestadores de serviço pertencentes à própria Administração Pública, usualmente as companhias estaduais de saneamento (CESB), os serviços ou

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pFiscalização em estação de tratamento de esgoto em 2014

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Regulação no setor de água e esgoto Capítulo 5

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departamentos autônomos de água e esgoto (SAAE ou DAAE) e companhias estatais municipais, que historicamente são responsáveis pela prestação de serviços de abastecimento de água tratada e esgotamento em nosso país.

Embora possam ser encontrados exemplos de participação privada no setor de água e esgoto no Brasil já no século XIX,4 o fato é que, ao longo do século XX, o que se viu foi o desenvolvimento do setor por meio de entidades públicas. Durante o governo militar, especialmente na década de 1970, no âmbito do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), foram criadas diversas companhias estaduais de saneamento, que contaram com sistema de financiamento subsidiado para fazer frente aos investimentos requeridos. A maioria dos municípios que não aderiu às CESB e acabou optando por manter ou criar entidades próprias para a prestação dos serviços de abastecimento de água tratada e esgotamento sanitário, frequentemente, em regime autárquico, isto é, os já citados SAAE e DAAE, embora existam também experiências de empresas públicas municipais.

A participação privada no setor continua proporcionalmente muito abaixo das entidades da Administração Pública, embora tenha crescido significativamente nos últimos anos. Conforme dados da publicação “Panorama da participação privada no saneamento – Brasil 2017” da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON) e do Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (SINDCON):

• 70% dos municípios são atendidos por prestadores regionais públicos;

4 Um exemplo é a cidade de Santos no estado de São Paulo. Segundo narram os Engenheiros José Chiara e Renato Teruo Tanaka (http://bit.ly/2w26kOF), o primeiro abastecimento regular de água ocorreu em 1870, pela Companhia de Melhoramento de Santos. Em 1881, os serviços foram entregues por meio de concessão à The City of Santos Improvements Company Ltda. Em 1953, o governo do estado encampou os serviços e criou o Serviço de Água de Santos e Cubatão.

• 24% dos municípios são atendidos por prestadores locais e microrregionais públicos; e

• Apenas 6% dos municípios (322 ao todo) são atendidos por prestadores privados, sendo que, do total de 322 municípios nessa situação, 216 estão concentrados em três estados da Federação: Tocantins (125), São Paulo (53) e Mato Grosso (38).

Essa informação é relevante porque o debate sobre a segregação de funções (planejamento, regulação e prestação dos serviços) e a necessidade de criação de agências reguladoras independentes ocorre, historicamente no Brasil, em setores objeto de desestatização. Particularmente, foi nesse contexto que surgiram as primeiras agências reguladoras na segunda metade da década de 1990 e no início dos anos 2000, tanto no plano nacional, quanto nas esferas estaduais.5

Lembre-se que, até então, os diversos setores de infraestrutura, bem como os setores de mineração e siderurgia, eram explorados essencialmente por empresas estatais. O Estado, portanto, planejava, regulava e executava os investimentos e serviços nesses diversos setores, por meio de entidades públicas e suas empresas estatais.

Uma vez que avançaram os programas de desestatização na segunda metade dos anos 1990, foi preciso construir um novo modelo de Estado, que se afastava da execução, mas permanecia com competências relevantes do ponto de vista do planejamento

5 No que toca aos setores de infraestrutura que foram objetos de desestatização, vale destacar o quadro a seguir, que relaciona as principais agências reguladoras no plano do Governo Federal e sua lei de criação:

Nome da agência reguladora Ano de criação

Agência Nacional de Energia Elétrica 1996

Agência Nacional de Telecomunicações 1997

Agência Nacional do Petróleo 1997

Agência Nacional de Transportes Terrestres 2001

Agência Nacional de Transportes Aquaviários 2001

Agência Nacional de Aviação Civil 2005

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e da regulação, especialmente em relação aos serviços públicos.6 A decorrência natural dessa reforma do Estado brasileiro, até mesmo para dar maior segurança jurídica e atrair o capital privado no âmbito dos programas de desestatização, foi a busca por um modelo mais técnico de regulação nos setores de infraestrutura, isto é, que permitisse reduzir as interferências políticas nesses negócios, por natureza, de longo prazo. Daí a principal razão para o já referido surgimento de diversas agências reguladoras em variados setores de infraestrutura no final do século XX.

O setor de água e esgoto, no entanto, não chegou a ser, pelo menos não de forma ampla, objeto de um grande programa de desestatização. Nesse contexto, diferentemente de outros setores de infraestrutura, neste setor, o surgimento da obrigatoriedade de agências reguladoras independentes parece ter sido mais associado à necessidade de aprimorar a prestação dos serviços, de criar incentivos para melhorar a gestão, aumentar o nível de transparência etc., em um contexto em que a maioria dos prestadores de serviços continuava a ser entidades autárquicas ou empresas estatais.

Cerca de 10 anos após a edição da Lei Federal 11.445/2007, é possível notar, nos casos em que se submeteu os serviços de água e esgoto à supervisão de agência reguladora, ganhos significativos no nível de transparência e de prestação de contas da prestadora dos serviços. Além disso, à medida que as agências vão se capacitando e se fortalecendo técnica e institucionalmente, aumentam-se os incentivos para que os prestadores sejam mais eficientes, ampliem a infraestrutura e melhorem a qualidade dos serviços.

Destaque-se ainda que, para as empresas estatais atuantes no setor, longe de ser uma ameaça, as agências reguladoras devem ser vistas como uma oportunidade de fortalecimento, pois sua existência

6 Nos setores nos quais houve privatização, como mineração e siderurgia, a regulação passou a ser exercida essencialmente por meio do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, liderado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que teve suas competências e estrutura reforçados em 1994, por meio da Lei nº 8.884/1994. Isso sugere, pela coincidência temporal, ter existido no governo da época a compreensão sobre a necessidade de reforçar a aplicação do direito antitruste, uma vez que diversas empresas, com elevada participação de mercado, passariam ao controle da iniciativa privada.

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tende a aprimorar a governança dessas empresas estatais, dando-lhes maior foco na gestão e eficiência, e reduzindo a politização de decisões empresariais. Isso abre caminho para a valorização da empresa estatal, facilitando, inclusive, a abertura de capital e atração de capital privado para financiamento das atividades da companhia, sem prejuízo da manutenção de seu controle com a Administração Pública.

Segregação obrigatória por força legal

A partir da Lei Federal 11.445/2007, passou a ser obrigatória a segregação da função regulatória. Isso fica particularmente claro diante dos seguintes dispositivos legais:

o art. 9º, inc. I e II, da referida lei, segundo os quais o titular dos serviços deverá elaborar o plano de saneamento básico e prestar os serviços, direta ou indiretamente, ficando a regulação e fiscalização por conta de um terceiro ente a ser indicado pelo titular dos serviços;

o art. 21, inc. I, da referida lei, segundo o qual a entidade reguladora deve ter “independência decisória, incluindo autonomia administrativa, orçamentária e financeira”.

Não pode, portanto, a função regulatória ser exercida pelo próprio órgão que atua como contratante da prestação dos serviços, isto é, o titular dos serviços, também chamado por vezes de Poder Concedente. Muito menos poderia essa função ser exercida pela própria prestadora dos serviços. Há, pois, que se estabelecer uma entidade independente, sob pena de descumprimento da Lei.

Mais que isso, a designação de uma entidade responsável pela regulação e fiscalização é mesmo uma condição de validade do contrato de prestação de serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário (art. 11, inc. III). Diante dessa regra, em tese, a indicação da entidade reguladora deve ocorrer antes da celebração do contrato e, idealmente, antes mesmo da publicação do edital de licitação (quando for o caso de licitação).

Em nossa avaliação, o modelo adequado para assegurar independência decisória – com autonomia administrativa, orçamentária e financeira – passa necessariamente pela constituição de uma pessoa jurídica distinta do titular dos serviços. Usualmente, cria-se uma autarquia de natureza especial, a qual, ainda que fique vinculada a uma determinada pasta da Administração Direta, não poderá ter sua autonomia restringida.

Apesar disso, a Lei Federal 11.445/2007 não foi tão clara sobre o assunto. A grande maioria dos dispositivos legais se refere à existência de “entidade” ou “ente” responsável pela regulação e fiscalização, o que, em princípio, pressupõe a existência de personalidade jurídica própria, diferentemente do que ocorre com um “órgão”. Aliás, essa é uma distinção clássica no Direito Administrativo. Todavia, ao tratar dos contratos de interdependência e da prestação regionalizada, a lei acabou abrindo espaço para indicar órgãos que fiquem responsáveis pelas atividades de regulação e fiscalização (art. 12, § 2º, inc. X; e art. 15, inc. I).

Talvez por essa razão, o Decreto 7.217/2010, que regulamentou a Lei Federal 11.445/2007, admitiu expressamente a possibilidade de que a entidade reguladora seja simplesmente um órgão da Administração Pública (art. 2º, inc. IV).

A opção por um “órgão”, em detrimento de uma entidade com personalidade jurídica própria, parece-nos incompatível com a exigência de autonomia administrativa, orçamentária e financeira.

“insistimos na importância de que seja sempre constituída uma pessoa jurídica distinta do titular dos serviços, para atuar como entidade reguladora

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Assim, insistimos na importância de que seja sempre constituída uma pessoa jurídica distinta do titular dos serviços, para atuar como entidade reguladora.

Em suma, nesse contexto, podemos concluir que, a partir da Lei Federal 11.445/2007, deve haver uma separação clara entre (i) o titular dos serviços, (ii) a entidade reguladora e fiscalizadora e (iii) o prestador dos serviços propriamente ditos, ressalvada, neste último caso, a hipótese em que o titular dos serviços decide prestá-los diretamente.7

A regulação dos serviços de água e esgoto no âmbito da Lei Federal 11.445/2007

A Lei 11.445/2007 definiu diretrizes e princípios para o setor de saneamento básico no âmbito nacional, delineando os contornos para que os titulares dos serviços elaborem suas próprias políticas públicas, com especial preocupação pela integração regional dos municípios, pela independência da fiscalização e da regulação e pela transparência e publicidade perante o público em geral.

A normativa distribuiu claramente os papéis dos agentes envolvidos na prestação dos serviços, marcadamente, como se viu na seção anterior, optando por uma regulação e fiscalização independentes. Assim, ao Poder Concedente coube o planejamento (definição da política pública) e a figuração como parte contratante nos contratos de concessão ou de programa. O papel de desempenhar a regulação técnica e econômica coube necessariamente a uma entidade reguladora que tenha autonomia administrativa, orçamentária e financeira. Por sua vez, a prestação dos serviços, embora legalmente possa ser realizada diretamente pelo titular, usualmente é atribuída a

7 Temos, vez por outra, ouvido alguma discussão sobre a obrigatoriedade ou não de regulação independente na hipótese em que o titular decide prestar os serviços diretamente. A nosso ver, no entanto, o art. 9º, inc. II, estabelece que, mesmo no caso de prestação direta dos serviços, cabe ao titular definir a entidade responsável pela sua regulação e fiscalização. Ou seja, seria um caso peculiar em que o próprio prestador indica seu regulador e fiscalizador. Ainda assim, é necessário estruturar uma entidade reguladora autônoma, a fim de zelar pelos aspectos técnicos, econômico e financeiros da prestação dos serviços.

entidade pública (empresa estatal ou autarquia) ou a concessionária privada, por meio de algum instrumento de outorga ou delegação.

A Lei de Saneamento apresentou especial cuidado com a sustentabilidade econômica dos empreendimentos destinados à prestação dos serviços que seriam, por sua vez, caracterizados por uma contratualização de média a alta densidade.

Para garantir as finalidades propostas, foram estabelecidos os objetivos da regulação setorial como sendo: (i) estabelecer padrões e normas para a adequada prestação dos serviços e para a satisfação dos usuários; (ii) garantir o cumprimento das condições e metas estabelecidas; (iii) prevenir e reprimir o abuso do poder econômico; (iv) definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos como a modicidade tarifária, mediante mecanismos que induzam a eficiência e eficácia dos serviços e que permitam a apropriação social dos ganhos de produtividade (art. 22, inc. I a IV).

Além disso, foi estabelecido um rol mínimo de assuntos sobre os quais devem ser editadas normas pelas entidades reguladoras, sendo alguns deles: (i) padrões, indicadores de qualidade e requisitos operacionais; (ii) regime tarifário e procedimentos e prazos de revisão, reajuste e fixação; (iii) monitoramento dos custos e avaliação da eficiência e eficácia dos serviços prestados (art. 23, inc. I a XII).

De forma geral, as atribuições das entidades reguladoras podem ser divididas em três grandes grupos: a regulação técnica, a regulação econômica e a fiscalização. A seguir serão tratadas essas três atividades.

Regulação técnica

As agências reguladoras de água e esgoto têm competência para regulamentar os aspectos técnicos da prestação dos serviços. O art. 23 da Lei Federal 11.445/2007 expressamente lhes atribui competência normativa nesse sentido.

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Aliás, os incisos do art. 23 esclarecem algumas matérias técnicas, sobre as quais a agência tem competência normativa, exemplificativamente:

• Padrões e indicadores de qualidade da prestação dos serviços (inc. I);

• Requisitos operacionais e de manutenção dos sistemas (inc. II);

• Metas progressivas de expansão e de qualidade dos serviços e os respectivos prazos (inc. III);

• Padrões de atendimento ao público e mecanismos de participação e informação (inc. X);

• Medidas de contingência e de emergência, inclusive racionamento (inc. XI).

O fato de a agência ter competência para normatizar os parâmetros de prestação dos serviços significa que o prestador deve se adaptar às normas técnicas emitidas nesse contexto. Se houver incompatibilidade entre as normas técnicas da agência e o disposto no contrato de programa ou de concessão, em princípio, o contrato deverá ser ajustado para atender aos parâmetros técnicos definidos pela agência, sem prejuízo do direito à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, que deve ocorrer de forma concomitante, em analogia ao art. 9º, § 4º, da Lei Federal 8.987/1995, pois se trata nesse caso de uma espécie de alteração unilateral do contrato.

“cada vez mais se tem discutido a importância de as propostas de normas regulatórias serem precedidas de uma ampla análise de impacto regulatório

Isso não significa dizer que a agência reguladora tem um “cheque em branco” para fazer o que bem entender do ponto de vista da regulação técnica da prestação dos serviços.

Primeiramente é preciso notar que todas as decisões da agência, inclusive a normatização de aspectos técnicos, estão sujeitas ao dever de motivação e devem se pautar pelos princípios da eficiência, publicidade, moralidade, impessoalidade, da razoabilidade e proporcionalidade, entre outros, como qualquer outra entidade da Administração Pública. Além disso, cada vez mais se tem discutido a importância de as propostas de normas regulatórias serem precedidas de uma ampla análise de impacto regulatório. Portanto, existe um controle de procedimento e de atendimento aos princípios gerais que regem a Administração Pública, de maneira que, eventualmente, pode ser necessária a revisão de decisões técnicas da agência pelo próprio Poder Judiciário.

Em segundo lugar, o próprio titular dos serviços pode dar contornos mais limitados para a atuação da agência. Destaque-se que, nos termos do art. 23, § 1º, no ato de delegação da regulação, o titular dos serviços especificará a forma de atuação e a abrangência das atividades a serem desempenhadas pelas partes envolvidas. Nesse contexto, se houver normas emanadas pelo titular dos serviços que devam ser observadas pela agência, basta especificar isso no ato de delegação.

De qualquer forma, é recomendável que o titular dos serviços se abstenha ou seja bastante parcimonioso no eventual estabelecimento de parâmetros técnicos relativos à prestação dos serviços, por meio da edição de atos normativos municipais, como leis e decretos. Embora não seja ilegal per se, parece-nos inadequado que o titular dos serviços delegue a competência regulatória e, ao mesmo tempo, ocupe o espaço normativo que, institucionalmente, deveria caber à agência reguladora.

O principal instrumento disponível para o titular dos serviços influenciar a execução contratual é o Plano de Saneamento Básico (art. 19), o qual, lembre-se, deve ser revisado periodicamente, em prazo não superior a quatro anos (cf.: art. 19, § 4º). Aí está o veículo

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adequado para que o Poder Concedente imponha o interesse público municipal e da sociedade civil organizada, fazendo com que o contrato seja legitimamente revisado, com acompanhamento e atuação da agência reguladora, sem prejuízo da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, concomitantemente à implantação das determinações do novo plano.

Em suma, portanto: (a) a agência reguladora não deve sofrer restrições no seu poder de normatização dos parâmetros técnicos para a prestação dos serviços, de maneira que, exceto quando houver (a.1) evidente inobservância dos princípios da Administração Pública ou (a.2) extrapolação do ato de delegação, as normas da agência devem prevalecer; (b) o principal instrumento a ser utilizado pelo titular dos serviços, a fim de influenciar a execução contratual, é o Plano de Saneamento Básico, devendo o Poder Concedente se abster ou ser bastante parcimonioso em eventuais investidas no sentido de normatizar tecnicamente a prestação dos serviços; e (c) o contrato deverá ser revisado a fim de manter sua compatibilidade com as especificações técnicas relativas à prestação dos serviços, não se admitindo cláusulas que restrinjam a competência da agência para emitir normas técnicas sobre a prestação dos serviços, mas sempre tendo em vista que é direito do prestador de serviços a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, de forma concomitante ao atendimento dos novos parâmetros técnicos.

Registre-se, por fim, que, nos termos do art. 11, § 3º, da Lei Federal 11.445/2007, “os contratos não poderão conter cláusulas que prejudiquem as atividades de regulação e de fiscalização ou o acesso às informações sobre os serviços contratados”. Serão nulas, portanto, eventuais cláusulas restritivas que prejudiquem as atividades de regulação técnica dos serviços de água e esgoto. Aliás, isso é uma decorrência natural do entendimento tradicional do Direito Administrativo brasileiro segundo o qual a Administração Pública pode, unilateralmente, alterar as especificações dos serviços, assegurado ao contratado o direito à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro.

Esse contexto deve nortear a interpretação do art. 11, § 3º, com a única peculiaridade de que, nesse caso, a alteração unilateral se dá por conta de uma norma técnica emanada pela agência. De qualquer forma, lembre-se que, em função do ato de delegação, a agência nesse ponto nada está a fazer senão exercendo uma competência que lhe foi delegada e, portanto, não há aí usurpação da prerrogativa de modificação unilateral dos contratos administrativos.

Regulação econômica

O objetivo da regulação econômica como forma de intervenção nos monopólios naturais é trazer o preço cobrado pela prestadora dos serviços para o mais próximo possível do que seria o preço cobrado em uma situação de mercado competitivo (com o preço igualado ao custo e à receita marginais). Ao fazê-lo, o regulador busca preservar o bem-estar econômico dos usuários, ao mesmo tempo que garante remuneração justa ao investimento feito pela prestadora monopolista.8 No entanto, antes de adentrar as especificidades da

8 É importante ressaltar que uma das características do monopólio natural é a de que o custo médio de produção (aumentado pelos largos custos fixos ou custos afundados), normalmente, está acima do custo marginal (reduzido pelas economias de escala e de escopo). Desse modo, a solução não é tão simples como igualar o preço do monopólio ao custo marginal na tentativa de simular condições de mercado competitivo, pois isso levaria a empresa ao prejuízo e consequentemente a deixar o mercado (MANKIW, G. Principles of microeconomics. 7. ed. Stamford: Cegange Learning, 2015. p. 320).

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regulação econômica no setor de água e esgoto, vale contextualizar a discussão de acordo com modelos teóricos possíveis.

Dada a necessidade de intervenção do Estado para corrigir a falha de mercado ocasionada pelos monopólios naturais, existem basicamente dois modelos teóricos de regulação econômica: a regulação discricionária (discretionary regulation) e a regulação por contrato (regulation by contract). Isso não significa dizer que, no contexto de regulação discricionária, não exista um contrato; pelo contrário, na experiência brasileira, todas as concessões de serviço público são regidas por um contrato. A diferença está no maior ou menor grau de liberdade ofertado ao regulador para ajustar o preço tarifário.

Na regulação discricionária, há amplo espaço para o regulador corrigir eventuais distorções nos custos e receitas, para cima ou para baixo; já na regulação por contrato, essa discricionariedade é restringida por meio de detalhamento contratual, em termos de alocação de riscos, metodologia de reequilíbrio (mecanismo compensatório) e procedimento de revisão contratual.

Os dois tipos de regulação usualmente têm em comum a correção anual do preço cobrado (Pt) por determinado serviço por meio da aplicação de um índice inflacionário (RPI).9 No Brasil, chamamos esse mecanismo tecnicamente de reajuste tarifário (Lei 8.987/1993, art. 18, inc. VIII) ou simplesmente reajuste.

Regulação discricionária

A regulação discricionária consiste na definição dos preços praticados pela empresa regulada por meio de revisões tarifárias periódicas (RTP) promovidas pelo agente regulador, tendo-se em vista a obtenção de receitas suficientes para cobrir os custos envolvidos

9 A sigla RPI é tomada da literatura internacional e refere-se ao retail price index que consiste em uma medida de inflação comum utilizada no Reino Unido. A fórmula de correção é bastante simples: Pt = Pt-1 (1 + RPI)

(CAMACHO, T. F.; RODRIGUES, B. C. L. Regulação econômica de infraestruturas: como escolher o modelo mais adequado? In: Revista do BNDES, n. 41, junho 2014, p. 257-288).

na atividade (cost-based regulation), isto é, a remuneração dos investimentos já realizados e/ou previstos de serem realizados no(s) período(s) seguinte(s) (capital expenditures – CAPEX) e a recuperação dos custos operacionais incorridos e/ou previstos de serem incorridos no(s) período(s) seguinte(s) (operational expenditures – OPEX), consideradas ainda a necessidade de remuneração do capital de giro (inclusive suas variações ao longo da vigência contratual), os tributos, as taxas de amortização/depreciação aplicáveis aos investimentos e a taxa de retorno implícita nos fluxos de saída e entrada de caixa, que, por sua vez, deve refletir o custo médio ponderado de capital do negócio (weighted average cost of capital – WACC).10

O objetivo é impedir que o monopólio natural resulte em preço tarifário acima do que deveria ser se houvesse condições concorrenciais ideais, preservando-se, de qualquer forma, uma taxa de retorno justa (fair rate of return). A regulação discricionária, nesse sentido, visa simular uma situação de competição que pressione a empresa monopolista a operar de forma eficiente, ou seja, próximo do preço igualado ao custo e à receita marginais (competition in the market).

Há duas variações de regulação discricionária que serão apresentadas a seguir: (a) regulação por preço-teto (price cap) e (b) regulação por taxa de retorno (rate of return regulation).

Regulação por preço-teto

A regulação por preço-teto (price cap) é um tipo de regulação baseada no custo (cost-based regulation), pois leva em consideração os custos da empresa regulada, incorridos na prestação dos serviços, para cálculo do preço/tarifa. Caracteriza-se como uma regulação ex ante,

10 Em relação à remuneração sobre os investimentos, é importante lembrar que não é todo e qualquer investimento realizado ou pleiteado pela empresa regulada que deve ser considerado para efeito das RTP. Em princípio, apenas os investimentos considerados prudentes, ou seja, aqueles adequados e necessários à prestação dos serviços são incluídos nas revisões tarifárias. Assim, evita-se que o preço tarifário seja aumentado indevidamente, remunerando investimentos inoportunos. Além disso, o custo de investimento deve ser eficiente, isto é, deve corresponder a parâmetros de mercado.

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porque a definição do preço ocorre na RTP antes que a empresa incorra efetivamente nos custos, a partir de uma parametrização dos custos eficientes a serem incorridos no futuro. Além disso, a regulação por preço-teto conta com o Fator X, por meio do qual se busca impor à concessionária o compartilhamento de ganhos de produtividade com os usuários, em benefício da modicidade tarifária. O Fator X é aplicado na ocasião do reajuste tarifário, como um desconto, tradicionalmente representado como RPI-X.11

Este tipo de regulação foi criado por Stephen Littlechild em 1983 como proposta para regular o setor de telecomunicações, no contexto da privatização da British Telecom na Inglaterra. Desde então se difundiu para os mais diversos mercados regulados.12 Ao fixar os custos da empresa regulada antes que sejam incorridos, e ao se considerar a aplicação do Fator X como desconto sobre o reajuste inflacionário, cria-se um incentivo para que a regulada seja mais eficiente e incorra efetivamente em custos menores, a fim de preservar ou até aumentar seu lucro.13 Por essas razões, a regulação por preço-teto é chamada de regulação por incentivo.

A estimativa dos custos eficientes implica a previsão de quais seriam os custos envolvidos se o mercado supostamente fosse competitivo. Uma vez estimados os custos eficientes, a sua aplicação por meio da

11 A fórmula para cálculo do reajuste inflacionário considerando o Fator X é a seguinte: Pt = Pt-1(1 + RPI) (1 - X) Onde: X é o Fator X de produtividade.12 Ambos constam do relatório de 1983 para o Department of Industry denominado Regulation of

British telecommunications profitability. STERN, J. What the Littlechild report actually said? 2003. (Regulation Initiative Working Paper, n. 55).

13 Há diferentes metodologias de cálculo do Fator X. Entre elas, pode se mencionar quatro principais: (i) valor arbitrário (ad hoc), na qual o regulador atribui um valor a X de acordo com sua sensibilidade, normalmente utilizada em privatizações dada a falta de uma série histórica em que se basear; (ii) fluxo de caixa descontado (FCD), na qual o valor de X é o valor necessário para obter-se o valor presente líquido (VPL) igual a zero, considerando CAPEX, OPEX e NOPEX; (iii) índice histórico, na qual o regulador define um índice de referência de produtividade total dos fatores de produção a partir de informações históricas sobre preços de insumos e produtos; (iv) benchmarking (yardstick regulation), na qual é utilizada uma empresa teórica de referência para comparação com a empresa monopolista a partir de modelos construídos por diversas abordagens (BRAGANÇA, G. G. F.; CAMACHO, F. T). Uma nota sobre o repasse de ganhos de produtividade em setores de infraestrutura no Brasil (Fator X)(IPEA, Radar nº 22, p. 7-16).

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regulação discricionária, em tese, termina por criar de forma sintética condições de mercado competitivo em um contexto de monopólio natural. Por essa razão, preços definidos em RTP devem refletir a dinâmica do setor regulado como amortização/depreciação dos investimentos já realizados, necessidade de novos investimentos, custos dos insumos, custo de pessoal, alterações na curva de demanda, avanços tecnológicos, tributos e aperfeiçoamentos na qualidade dos serviços.14

Uma vez estimados os custos eficientes, o agente regulador projeta a receita bruta requerida pela empresa regulada no período da RTP para cobrir esses custos, de modo a garantir uma determinada taxa de retorno considerada justa. Observe-se que essa receita bruta não é exatamente aquela que a empresa regulada realizará no período, mas uma receita requerida para arcar com os custos eficientes a uma determinada taxa de retorno. A partir da receita bruta dessa forma calculada, e considerando-se as estimativas de demanda para o período, é determinado um preço-teto da tarifa que será cobrado pela empresa regulada naquele período.

Para que se possa parametrizar custos eficientes, é necessária uma agência reguladora suficientemente bem equipada. Há várias metodologias para se estimar custos eficientes. Em geral, essas metodologias são intensivas em informação e requerem profissionais especializados e independentes. O aparato regulatório necessário para prover esse nível de informação possui um custo regulatório alto.15

A regulação por preço-teto possui as seguintes vantagens:

• Flexibilidade regulatória. Uma vez que a remuneração do prestador é definida de acordo com os custos previstos, o regulador

14 CAMACHO, T. F.; RODRIGUES, B. C. L. Regulação econômica de infraestruturas: como escolher o modelo mais adequado? Revista do BNDES, Rio de Janeiro, n. 41, p. 257-288, jun. 2014.

15 Em 2006, o Banco Mundial publicou obra em que são apresentados os requisitos de uma agência reguladora considerados como melhores práticas. Entre eles: (i) independência; (ii) prestação de contas; (iii) publicidade e participação popular; (iv) previsibilidade; (v) competências claramente definidas; (vi) completude e clareza de regras; (vii) proporcionalidade; (viii) poderes regulatórios; (ix) características institucionais apropriadas; (x) integridade (BROWN, A. C.; STERN, J.; TENENBAUM, B.; GENCER, D. Handbook for evaluating infrastructure regulatory systems. Washington DC: World Bank, 2006).

tem flexibilidade para adaptá-la à flutuação dos cenários econômicos. No longo prazo, isso pode ser benéfico para os usuários e para a própria empresa regulada;

• Minimização do risco moral. Como o preço que cobre os custos eficientes estimados é constante até a próxima RTP e os ganhos de produtividade são compartilhados em razão do Fator X, qualquer ganho de produtividade/eficiência acima de X é incorporado à margem de lucro da empresa regulada, funcionando como incentivo para a aproximação dos custos da empresa aos custos eficientes por meio, por exemplo, da adoção de novas tecnologias, técnicas de gestão e estratégias de marketing.

Por outro lado, possui as seguintes desvantagens:

• Risco de seleção adversa (adverse selection). O incentivo para reduzir custos pode levar a uma situação de subinvestimento e diminuição da qualidade do serviço. Esse risco diminui à medida que o regulador interage com a empresa regulada e tem mais conhecimento dos custos envolvidos na prestação do serviço. Há duas ferramentas utilizadas para mitigar esse risco:

• previsão de remuneração variável atrelada a indicadores de qualidade por meio da aplicação de um Fator Q na fórmula de reajuste inflacionário;16

• previsão de investimentos obrigatórios e de gatilhos de expansão dos investimentos definidos no momento de celebração do contrato e integrados à modelagem do projeto.

• Elevado custo regulatório. O custo regulatório decorrente da necessidade de parametrizar os custos a serem incorridos pela empresa regulada implica normalmente a adoção de metodologias intensivas em informação que requerem investimentos relevantes em uma agência reguladora;

16 O Fator Q é um valor percentual determinado pela valoração dos indicadores de desempenho por meio de notas, sendo inserido na equação de reajuste da seguinte forma:

Pt = Pt-1 (1 + RPI) (1 - X) (1 - Q) onde: X é o Fator X de produtividade; e Q é o Fator Q de qualidade.

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• Maior custo de capital. Uma vez que o custo futuro eficiente que for definido pelo regulador pode não se realizar (o custo real pode ser maior ou menor), o risco assumido pelo investidor é maior, levando à exigência de uma taxa de retorno maior.17

Regulação por taxa de retorno

A regulação discricionária por taxa de retorno (rate of return regulation) é o tipo de regulação mais antigo. Consiste na fixação ex post dos custos para fins de cálculo do preço/tarifa da firma monopolista, isto é, a fixação do preço é feita após os custos terem sido incorridos. À medida que vão sendo incorridos, os custos são computados pela empresa regulada e, após eventuais glosas de custos considerados ineficientes sob a perspectiva da agência reguladora, estabelece-se a receita necessária que garanta à empresa regulada uma taxa de retorno justa (fair rate of return) previamente definida.

A regulação por taxa de retorno tem as seguintes vantagens:

• Flexibilidade regulatória. Há flexibilidade regulatória, pois a definição do preço também acompanha a dinâmica dos custos nas flutuações da economia. Todavia, essa flexibilidade é menor, uma vez que, já tendo sido incorridos os custos, o regulador tem menos autonomia do que possuiria no caso de uma regulação price-cap;

• Baixo risco de seleção adversa. Como o preço é estabelecido após os custos serem incorridos e depois de o regulador distinguir os investimentos prudentes,18 a empresa regulada tem incentivo para realizar os investimentos necessários, não se verificando normalmente diminuição da qualidade do serviço ou subinvestimento, uma vez que qualquer investimento prudente em melhoria é remunerado pelo aumento do preço na RTP;

17 Toda percepção de risco pelo investidor é precificada, havendo uma relação positiva entre risco e retorno. Quanto maior o risco, maior o retorno exigido ( ROSS, S.; WESTERFIELD, R.; JAFFE, J. Corporate Finance, 11th. New York: McGraw-Hill Education, 2016. p. 331).

18 Isto é, os investimentos adequados especialmente para o atendimento dos níveis de qualidade, avaliados a preço de mercado e cujo valor constitui a base de remuneração da empresa regulada (Resolução Normativa/ANEEL nº 234, de 31 de outubro de 2006, art. 2º, inc. XIII).

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• Menor custo de capital. Como o preço é realinhado aos custos incorridos a cada RTP, o risco do negócio é baixo, pois a taxa de retorno é preservada de modo que, considerando a relação inversa entre risco e retorno, o custo de capital exigido é menor.

Em contrapartida, consideram-se as seguintes desvantagens desse tipo de regulação:

• Risco moral (moral hazard). Como a taxa de retorno é garantida de modo que sejam cobertos os custos incorridos e existe assimetria de informação entre o regulador e a empresa regulada, há baixo incentivo para que a empresa regulada seja eficiente. Na prática, a empresa regulada tende a incorrer em maiores custos de forma ineficiente e ser remunerada com a aplicação da taxa de retorno sobre o total do investimento;

• Efeito Averch-Johnson. Trata-se de um desdobramento do risco anterior. Como há assimetria de informação entre os custos eficientes – ou seja, o regulador, em tese, não conhece tão bem a dinâmica de custos do negócio da outra parte –, a empresa regulada tem incentivos para se comportar como se o custo fosse mais alto que custo real, inflando a base de ativos para aumentar o custo e, consequentemente, sua remuneração. O resultado disso é o sobreinvestimento, isto é, a empresa regulada superdimensiona sua base de ativos (gold planting).19

19 Se a taxa de retorno regulada é maior que o custo de capital, a firma tem incentivo para inflar seus custos por meio da ampliação da base de ativos (provocando um deslocamento para baixo na curva de custo médio), o que leva à produção de uma quantidade de output superior. Além disso, se a base de ativos para cálculo do retorno inclui outros mercados regulados, a firma tem um incentivo para adentrar mercados competitivos ainda que nesses mercados opere com prejuízos no longo prazo, porque tem o benefício de fazer o subsídio cruzado com a taxa de retorno assegurada pela prestação do serviço original, o que tende a expulsar as firmas dos mercados, ainda que tenham custo menor, e a desencorajar a entrada de novas firmas, pois estas não têm, em tese, o benefício do mesmo subsídio cruzado. (AVERCH, H.; JOHNSON, L. L. Behavior of the firm under regulatory constraint. American Economic Review, v. 5, n. 52, p. 1052-1070, 1962).

Yardstick regulation

Na regulação por comparação (yardstick regulation ou benchmarking), basicamente o preço/tarifa cobrado pela empresa regulada é definido ou reajustado com base em metodologia que envolve a comparação de seus custos com os de uma empresa teórica (de referência) ou a partir dos custos de empresas comparáveis, isto é, do mesmo segmento de mercado e de características semelhantes.

O padrão de comparação é denominado benchmark. Ao se identificar os custos eficientes por meio da comparação, pretende-se fixar o preço cobrado pela empresa regulada fazendo com que esta seja forçada a adequar sua estrutura de custos para garantir sua margem de rentabilidade. Nesse sentido, a regulação por comparação também simula uma competição no mercado que é denominada competição por comparação ou yardstick competition.20

Regulação por contrato

A regulação por contrato (regulation by contract) é aquela na qual os preços praticados pela empresa regulada não são necessariamente ajustados conforme as flutuações de mercado. Neste caso o preço é definido em contrato após a uma licitação e sua revisão apenas ocorre em razão da alocação de riscos estabelecida no próprio contrato, ou seja, na hipótese de existir um risco atribuído à parte contratante, o preço será revisto para compensar o prejuízo/ganho extraordinário da parte contratada. Portanto, na prática, a decisão sobre alterar ou não o preço depende da alocação de riscos pactuada, e não dos custos incorridos. Por essa razão, a regulação por contrato é chamada de non cost-based. Trata-se também de uma regulação ex ante, pois o preço pós-licitação é definido previamente em relação aos custos que serão incorridos pela empresa regulada.

20 SCHLEIFER, A. A theory of yardstick competition. RAND Journal of Economics, v. 16, n. 3, p. 319-327, 1985.

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Nesse tipo de regulação, o preço/tarifa, a regra de reajuste anual, os investimentos obrigatórios e seus respectivos gatilhos, os níveis de qualidade de prestação do serviço, a alocação de riscos entre as partes e as regras de reequilíbrio econômico-financeiro são todos definidos no contrato desde a partida. O reajuste do contrato segue a equação pactuada, normalmente apontando-se um índice de inflação específico ou uma fórmula paramétrica.

Em regra, o objeto do leilão é o direito de celebrar o contrato e explorar o monopólio natural. Verifica-se, pois, uma competição pelo mercado (competition for the market), pois as empresas competem entre si no leilão, mas, após sua realização, a empresa vencedora assume a posição de monopolista.21 O leilão é o principal instrumento para captar as eventuais expectativas futuras de ganhos de eficiência e produtividade, dado que, em princípio, no modelo teórico, não há revisões periódicas para se corrigir distorções de preços e compartilhar ganhos de eficiência e produtividade ao longo da vigência contratual.

Por essa razão, na regulação por contrato dá-se muita importância ao desenho do contrato e do leilão, de modo que haja a maior concorrência possível e se mitiguem os riscos de seleção adversa, para que a proposta vencedora seja a mais vantajosa ao usuário do serviço.

21 Também na regulação discricionária costuma-se realizar leilão para definir a firma monopolista. A diferença é que, na regulação discricionária, além de uma competição pelo mercado, busca-se simular também uma competição no mercado ao longo da vigência contratual.

“O leilão é o principal instrumento para captar as eventuais expectativas futuras de ganhos de eficiência e produtividade

Caso o leilão seja mal desenhado, corre-se o risco de serem selecionados interessados despreparados para executar os serviços (“aventureiros”) e amplia-se a possibilidade da chamada maldição do vencedor (winner’s curse), isto é, uma situação na qual o interessado exagera em sua oferta, no intuito de vencer o leilão, e acaba colocando em risco a própria viabilidade econômico-financeira do empreendimento. Outro risco no desenho do leilão pode ser o estabelecimento de critérios muito rígidos ou restritivos à partição, com consequente prejuízo da competitividade e, por conseguinte, uma proposta menos vantajosa. Portanto, é fundamental que o leilão esteja bem desenhado. Atualmente há vasta literatura sobre a teoria dos leilões, o que inclui a concepção do seu desenho (auction design).22,23

Também é de suma relevância que o contrato reflita uma modelagem robusta. Daí a importância de que sejam preparados Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) consistentes.

Além disso, é necessário distribuir adequadamente os riscos entre as partes (matriz de risco) e estabelecer regras claras de reequilíbrio econômico-financeiro, incluindo: (i) o procedimento de reequilíbrio; e (ii) a metodologia de cálculo do reequilíbrio. Da mesma forma, é importante que a definição dos indicadores de desempenho seja equilibrada e proporcional. Falhas na modelagem, omissões contratuais, premissas inadequadas, obscuridades sobre regras, enfim, tudo aquilo que é definido pela alcunha de incompletude contratual abre espaço para o comportamento oportunista das partes e consequentemente são lidas como risco pelas empresas e precificadas como exigência de taxas de retorno mais elevadas.

São consideradas vantagens da regulação por contrato:

22 MILGROM, P. Putting auction theory to work. Cambridge: Cambridge University Press, 2008; KLEMPERER, P. Auctions: theory and practice. Princeton: Princeton University Press, 2004.

23 No Brasil, pode-se destacar três normas que permitem modelar o leilão de forma que se adapte melhor ao objeto a ser leiloado: Lei nº 11.079/2004, Lei nº 12.462/2011 e Lei nº 13.303/2016.

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• Baixo custo regulatório. Restringe a regulação ao previsto no contrato. O custo consistirá em acompanhar o cumprimento do contrato, não sendo necessário manter um aparato regulatório tão desenvolvido para gerir o contrato em longo prazo. Ressalte-se que essa vantagem (baixo custo regulatório) é diluída e pode mesmo desaparecer se o contrato necessitar de diversos reequilíbrios ao longo de sua vigência. Nessa situação, a suposta afirmação de custos regulatórios menores fica prejudicada, uma vez que será requerido do agente regulador excelência técnica e grande esforço para avaliar cada pleito de reequilíbrio posto. Hipóteses de reequilíbrio devem, obrigatoriamente, ser bastante claras, transparentes e fáceis de serem implementadas do ponto de vista metodológico, sob o risco de ensejarem condutas oportunistas, tanto da perspectiva do Poder Concedente, quanto da prestadora de serviços;

• Baixo risco de seleção adversa. Uma vez que o preço é definido em leilão e não há RTP, não há oportunidade para que a empresa regulada se aproveite da assimetria de informação e tente convencer o regulador de que seus custos eficientes são maiores do que o previsto, na tentativa de aumentar seu retorno. Todavia, essa vantagem pode desaparecer quando é necessário renegociar o contrato (por exemplo, inclusão de novos investimentos, reequilíbrio econômico-financeiro decorrente de caso fortuito ou fato do príncipe, alterações de cronograma físico-financeiro, alterações unilaterais de indicadores de desempenho etc.);

• Baixo risco moral. Na concorrência pelo mercado por meio do leilão, os lances ofertados pelos interessados tendem a refletir melhor os custos eficientes da empresa regulada, assim como uma rentabilidade justa do negócio, supondo que a modelagem do leilão e de projeto seja adequada. Posteriormente, como o preço é fixado no contrato, a empresa regulada tem incentivo para ser mais eficiente, reduzindo custos para maximizar seu retorno.

• Menor custo de capital. O estabelecimento de cláusulas suficientemente detalhadas e completas no contrato confere à empresa regulada uma percepção menor de risco de comportamento oportunista. Portanto, a redução do risco tende a gerar, em tese, uma exigência de retorno menor.

Por sua vez, existem algumas desvantagens:

• Menor flexibilidade. O fato de essa regulação se dar essencialmente por um contrato que predefine as regras de execução de seu objeto torna esse tipo de regulação muito menos flexível a incertezas como alteração no preço dos insumos, alterações da curva de demanda, avanços tecnológicos e alteração das condições de financiamento. Caso seja necessário alterar o contrato, a assimetria de informação beneficia a empresa regulada, incrementando o risco de seleção adversa. O problema de ter que alterar o contrato durante sua execução é que já não existem as condições de competitividade geradas durante o leilão. Portanto, não haverá o mesmo incentivo para a empresa regulada adotar custos eficientes;

• Casos de subinvestimento. Pelo fato de o preço ser definido no contrato, o incentivo à eficiência pode significar também um incentivo para não investir adequadamente, podendo provocar uma redução da qualidade, assim como uma expansão insuficiente24 do serviço. Os mecanismos para mitigar esse risco são os mesmos já mencionados: (i) adoção de remuneração variável com Fator Q; (ii) previsão contratual de investimentos obrigatórios na partida do contrato e de gatilhos de investimentos disparados conforme crescimento da demanda.

Pelo fato de na regulação por contrato não existir RTP para alinhar a remuneração do concessionário aos custos eficientes de mercado, além do reajuste tarifário anual, é necessário criar outros mecanismos compensatórios para garantir a manutenção da equação econômico-financeira do contrato. Basicamente, os eventos que levam ao desequilíbrio dessa equação são de duas ordens: alteração unilateral do contrato realizada pelo Poder Concedente, bem como ocorrência de riscos alocados ao Poder Concedente que

24 Não raramente os prestadores buscam postergar os investimentos iniciais, em geral aqueles de grande monta. Essa postergação pode implica aumento do VPL, indevidamente. Por isso, o regulador deve estar atento a eventuais estratégias de postergação de investimento, procedendo, se for o caso, à revisão tarifária para neutralizar o efeito da postergação.

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podem ensejar efeitos negativos ou positivos sobre os custos ou receitas da concessionária.

Em regra, no estrangeiro, os contratos de concessão não podem ser unilateralmente alterados pelo Poder Concedente. A razão para isso é que a possibilidade de alteração unilateral é vista pelo investidor como um risco, o que requer uma taxa de retorno maior. Portanto, representa tarifas ou preços mais caros para o usuário. No Brasil, entretanto, existe a possibilidade de alteração unilateral de contratos administrativos. Essa alternativa é considerada como prerrogativa da Administração Pública, mas em compensação vem acompanhada da garantia constitucional do equilíbrio econômico-financeiro (art. 37, inc. XXI da Constituição Federal). Assim, mesmo que haja alterações unilaterais, o “preço” deve ser mantido, isto é, revisado para acompanhar os novos custos ou perda de receitas.

A repartição objetiva de riscos entre as partes, por sua vez, é guiada pelo critério de que cada risco deve ser atribuído à parte que tem condições de gerenciá-lo de forma mais eficiente. Segundo essa técnica contratual, quando ocorrer um risco que foi contratualmente alocado ao Poder Concedente e disso resultar a alteração dos custos ou das receitas da concessionária, considera-se que foi quebrada a equação econômico-financeira do contrato. Portanto, a empresa regulada ou o Poder Concedente, conforme o caso, fará jus à compensação pela variação de custo ou de receita. O evento qualificado como causador do desequilíbrio, que merece ser compensado, é chamado, por vezes, de compensation event.

Neste ponto é importante não confundir a adoção de uma alocação de riscos objetiva com a teoria da imprevisão, pois enquanto nesta é necessário demonstrar a existência de circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis, inevitáveis, onerosidade excessiva, ônus insuportáveis etc. – aspectos notadamente subjetivos e incertos –, naquela basta a constatação do fato atribuído como risco do Poder Concedente e dos efeitos sobre os custos ou receitas da concessionária para dar causa à compensação. O modelo da alocação objetiva de riscos foi adotado exatamente

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para ser mais transparente e, portanto, menos conflituoso em relação à teoria da imprevisão tradicionalmente utilizada em contratos administrativos.25

Como metodologias de compensação, apresentamos as duas mais comuns: a compensação com base nos parâmetros da proposta ou no Plano de Negócios da empresa regulada e a compensação pela metodologia do Fluxo de Caixa Marginal.

Compensação com base nos parâmetros da proposta (Plano de Negócios)

A compensação com base nos parâmetros da proposta implica vincular a execução do contrato de concessão ao Plano de Negócios apresentado pela empresa regulada na ocasião do leilão. Basicamente, isso significa dizer que a equação econômico-financeira do contrato fica vinculada ao Capex e ao Opex definidos na proposta, assim como por sua taxa interna de retorno, de modo que se cria uma garantia de rentabilidade em favor da empresa regulada, observada a alocação de riscos pactuada.

Desse modo, sempre que se verificar a ocorrência de um risco atribuído ao Poder Concedente, mas cujos efeitos são suportados pela concessionária, proceder-se-á ao reequilíbrio conforme as condições do Plano de Negócios, a fim de manter a rentabilidade original do projeto conforme prevista na proposta.

A adoção desse tipo de metodologia tem como desvantagem a possibilidade de “jogo de planilha”. Para mitigar o risco de isso ocorrer, é necessário que haja a análise do Plano de Negócios durante a fase de licitação, de modo a aferir sua consistência (aderência das premissas adotadas à realidade técnica e econômica). Todavia, em decorrência da assimetria de informação, esse cuidado apenas mitiga o risco e não o elimina.

25 RIBEIRO, M. P.; PRADO, L. N. Comentários à Lei de PPP: fundamentos econômico-jurídicos. 1ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 120-124.

Compensação pela metodologia de Fluxo de Caixa Marginal

A tradição no âmbito de contratos de concessão no Brasil em que se aplica o modelo de regulação por contrato, até poucos anos atrás, era que o licitante apresentasse com sua proposta um Plano de Negócios acompanhado do respectivo Fluxo de Caixa, no qual estivessem explícitas não apenas a TIR da proposta como também outras premissas financeiras. Esse é justamente o modelo apontado no item anterior, isto é, de compensação com base nos parâmetros da proposta. Em caso de eventual necessidade de reequilíbrio, a metodologia aplicada era basicamente a de ajustar o Fluxo de Caixa, para compensar o evento causador de desequilíbrio, de modo a manter a TIR da proposta original.

Esse modelo sofreu críticas e algumas entidades públicas passaram a licitar as concessões permitindo que: (i) os investimentos inicialmente pactuados, nos termos do Edital de Licitação, fossem remunerados pela TIR da proposta do licitante vencedor; e, (ii) os novos investimentos – aqueles que houvessem sido carreados à responsabilidade da concessionária ao longo da execução contratual – fossem objeto de reequilíbrio por uma TIR distinta daquela prevista na proposta original, além de que, para esses novos investimentos, os parâmetros de investimentos e de custos operacionais poderiam ser recalculados por ocasião do reequilíbrio, para ajustá-los às condições de mercado mais atuais, não estando vinculados àqueles parâmetros utilizados na proposta do licitante vencedor.

O reequilíbrio para novos investimentos, nesse contexto, dar-se-ia pela aplicação da chamada “metodologia de Fluxo de Caixa Marginal”, que representava a ideia de se criar um novo Fluxo de Caixa, específico para compensar o evento causador de desequilíbrio, que poderia contemplar uma TIR distinta, bem como custos de investimentos e operacionais diferentes, em relação aos parâmetros previstos na proposta original.

Dado que esse modelo de Fluxo de Caixa Marginal é bem peculiar a nossa experiência brasileira, a seguir passamos a exemplificar sua utilização em diversos setores, a fim de melhor ilustrar como

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essa metodologia tem se desenvolvido, particularmente quanto ao cálculo das taxas de desconto.

O primeiro caso em que se previu isso contratualmente no Brasil foi a concessão rodoviária de trechos na Bahia da BR 116 e BR 324, quando se estabeleceu que a taxa de desconto seria calculada a partir de uma fórmula envolvendo um spread sobre a TJLP por ocasião do reequilíbrio.26

Posteriormente, a ideia de aplicar a metodologia de Fluxo de Caixa Marginal, para reequilibrar novos investimentos, acabou estendida, inclusive por provocação do Tribunal de Contas da União (TCU) – acórdãos 2.154/2007, 1.055/2011 e 2.927/2011, todos do Plenário – para outras rodovias federais concedidas.

Nesse contexto, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) publicou a Resolução 3.651/2011 que trata do assunto. Destaque-se, nesse caso, que o reequilíbrio por TIR distinta daquela proposta foi aplicado a concessões que, na partida, não previam essa possibilidade, o que, por vezes, provocou reclamação dos concessionários.

Mais recentemente, o Governo Federal tem licitado concessões em que é mesmo proibido ao licitante apresentar um Plano de Negócios, com o respectivo Fluxo de Caixa. A intenção é descolar as discussões de reequilíbrio de uma proposta originalmente apresentada pelo vencedor da licitação. Dessa perspectiva, tem-se pretendido aplicar a metodologia de Fluxo de Caixa Marginal não apenas aos novos investimentos, mas também aos investimentos originalmente previstos na proposta do licitante vencedor, em caso

26 No caso da concessão BR 116/324, a taxa pós-fixada tem como referencial a TJLP: 20.5.2 Os fluxos dos dispêndios e das receitas marginais referidos na subcláusula 20.5.1 acima serão descontados pela taxa obtida mediante utilização da fórmula seguinte:

onde (i) π equivale a meta para a inflação fixada peIo Conselho Monetário Nacional para o ano em que ocorreu a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro e (ii) a TJLP adotada no cálculo será a vigente na data da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro.

1 + TJLP + 8%(1 + π)

-1

de necessidade de reequilíbrio. Na prática, isso permite que cada procedimento de reequilíbrio seja realizado com uma TIR distinta.

Essa foi a experiência, grosso modo, das últimas licitações de rodovias e de aeroportos, em regime de concessão.

No caso das rodovias federais (3ª Etapa – Fase III), a cláusula 22.5 da minuta-padrão dizia que “[o] processo de recomposição de evento não sujeito à aplicação do Fator D e do Fator C será sempre realizado de forma que seja nulo o valor presente líquido do Fluxo de Caixa Marginal projetado em razão do evento que ensejou a recomposição, nos termos de regulamentação específica”. A remissão à “regulamentação específica” traz à baila a Resolução ANTT 3.651/2011, já citada. Novamente, o pressuposto é de que os sucessivos reequilíbrios poderão ensejar aplicação de TIR distintas. De acordo com o art. 8º da Resolução 3.651/2011, a taxa de desconto utilizada na metodologia de Fluxo de Caixa Marginal para cada evento de reequilíbrio é determinada com base no Custo Médio Ponderado de Capital (WACC)27, lembrando que, para essa metodologia, a TIR é igualada ao WACC.

Em relação aos aeroportos, tomando o edital e a minuta do contrato de Guarulhos por exemplo, ao tratar da possibilidade da Revisão Extraordinária, remeteu-se à aplicação da metodologia de Fluxo de Caixa Marginal, conforme definida em anexo do próprio edital. No anexo desse documento, no entanto, o ponto específico da Taxa de Desconto do Fluxo de Caixa Marginal foi remetido para uma metodologia a ser definida pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Nesse contexto, a agência aprovou a Resolução 355/2015, que definiu a taxa de retorno para eventuais procedimentos de

27 Conforme o dispositivo: “Art. 8º A taxa de desconto a ser utilizada nos fluxos dos dispêndios e das receitas marginais para efeito de equilíbrio terá como base Custo Médio Ponderado de Capital (WACC – Weighted Average Cost of Capital), a seguir reproduzida:

onde: E –  capital  próprio; D  –  capital  de  terceiros; T  –  impostos  sobre  a  Renda; RE – custo de capital próprio; RD – custo de capital de terceiros. Parágrafo único. A metodologia de cálculo das variáveis da fórmula de que trata este artigo será proposta pela área técnica competente e validada mediante o processo de audiência pública.”

WACC=EE+D

DE+D

RE + RD (1 - T)

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reequilíbrio em 6,81% para os aeroportos de Guarulhos, Brasília, Confins e Galeão e de 7,47% para o aeroporto de São Gonçalo.28 Destaque-se que, conforme as subcláusulas 6.14 e 6.15 do contrato de Guarulhos, a taxa de retorno definida pela ANAC deve ser revista a cada cinco anos. Portanto, haverá TIR distintas, para efeito de reequilíbrio, ao longo da execução contratual.

No caso das recentes licitações de arrendamentos portuários (Bloco I – 1ª e 2ª Etapa), embora sem utilizar a expressão “Fluxo de Caixa Marginal”, a minuta de contrato (condições gerais) prevê que “[p]ara a solicitação da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do Contrato, deverão ser observados os procedimentos, prazos e exigências previstos em regulamento editado pela ANTAQ” (segundo a subcláusula 14.1.4). Por sua vez, a norma da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), sobre o equilíbrio econômico-financeiro, é a Resolução 3.220/2014, que apresenta a metodologia de Fluxo de Caixa Marginal. Segundo essa Resolução, a taxa de desconto será aquela definida pela ANTAQ (se outra não houver sido definida no contrato de arrendamento, o que tem sido o caso dos últimos leilões no final de 2015 e no início de 2016). Nesse contexto, a ANTAQ provavelmente estabelecerá taxas de desconto distintas, a depender do momento em que vier a ocorrer o reequilíbrio (art. 9º, caput).29

Na esfera estadual, a Agência de Transporte do Estado São Paulo (Artesp) estabeleceu a mesma metodologia para as concessões de sua competência, definindo como forma de determinar a taxa de

28 Conforme anexo à Resolução nº 355/2015: “A taxa de desconto a ser utilizada nos fluxos de caixa marginais para efeito de reequilíbrio econômico-financeiro será de: I – 6,81% (seis inteiros e oitenta e um décimos por cento) para os aeroportos de Guarulhos, Viracopos, Brasília, Confins e Galeão, permanecendo em vigor até que seja realizada a 1ª Revisão dos Parâmetros da Concessão, nos termos dos respectivos contratos; II – 7,47% (sete inteiros e quarenta e sete décimos por cento) para o aeroporto de São Gonçalo do Amarante, entrando em vigor no dia 1º de fevereiro de 2015, e assim permanecendo até que seja realizada a 2ª Revisão dos Parâmetros da Concessão, nos termos do respectivo contrato.”

29 De acordo com o dispositivo: “Art. 9º O processo de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro de que trata o artigo anterior será realizado de forma a neutralizar os impactos negativos ou positivos gerados especificamente pelo evento que ensejou a recomposição, considerando os dispêndios e receitas marginais e a Taxa de Desconto definida pela ANTAQ, se outra não houver sido definida no contrato de arrendamento”.

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desconto para o reequilíbrio também o custo médio ponderado de capital (WACC). É o que se verifica na Resolução 01/2013.

Ainda no setor de transportes no estado de São Paulo, pode-se mencionar o contrato de Parceria Público-Privada (PPP) da Linha 6 do Metrô. Esse contrato também previu a adoção de uma metodologia de Fluxo de Caixa Marginal para recompor o equilíbrio econômico-financeiro. No caso é interessante observar que, diferentemente do setor de rodovias federais, há uma taxa pós-fixada determinada com base na taxa de juros de Notas do Tesouro Nacional – Série B (NTN-B) e um spread (prêmio de risco) de 2,5%.30

Enquadramento da regulação econômica no âmbito da Lei Federal 11.445/2007

Feitas essas considerações sobre os modelos teóricos de regulação, cabe questionar se existe no âmbito da Lei de Saneamento Básico preferência por algum modelo de regulação para o setor de água e esgoto.

No modelo anterior ao da Lei 11.445/2007 havia clara preferência por uma regulação baseada no custo do serviço. Na Lei 6.528/1978 já revogada, o art. 2º, § 2º, dispunha que as tarifas obedeceriam ao regime do “serviço pelo custo”, garantindo ao responsável pela execução dos serviços a remuneração de até 12% (doze por cento) ao ano sobre o investimento reconhecido.

De maneira distinta, na Lei 11.445/2007 não há uma norma incisiva nesse sentido. Não obstante, os dispositivos da lei atual deixam transparecer a preocupação do legislador em acompanhar os custos dos serviços. Veja-se, nesse sentido, os seguintes dispositivos:

30 Nos termos do contrato de PPP: “22.3.4 A Taxa de Desconto real anual a ser utilizada no cálculo do Valor Presente de que trata o item 22.3.3 será composta pela média dos últimos 3 (três) meses da taxa bruta de juros de venda das Notas do Tesouro Nacional – Série B (NTN-B), ex ante a deducão do Imposto de Renda, com vencimento em 15/05/2045, publicada pela Secretaria do Tesouro Nacional, apurada na data do efetivo impacto do evento de desequilíbrio no fluxo de caixa da CONCESSIONÁRIA, acrescida de um prêmio de risco de 2,5% a.a.”.

• Art. 18. Os prestadores que atuem em mais de um município ou que prestem serviços públicos de saneamento básico diferentes em um mesmo município manterão sistema contábil que permita registrar e demonstrar, separadamente, os custos e as receitas de cada serviço em cada um dos municípios atendidos e, se for o caso, no Distrito Federal;

• Art. 23. A entidade reguladora editará normas relativas às dimensões técnica, econômica e social de prestação dos serviços, que abrangerão, pelo menos, os seguintes aspectos: (…) VI – monitoramento dos custos;

• Art. 29. § 1º (…) a instituição das tarifas, preços públicos e taxas para os serviços de saneamento básico observará as seguintes diretrizes: (...) III – geração dos recursos necessários para realização dos investimentos, objetivando o cumprimento das metas e objetivos do serviço; (...) V – recuperação dos custos incorridos na prestação do serviço, em regime de eficiência;

• Art. 29, § 2º Poderão ser adotados subsídios tarifários e não tarifários para os usuários e localidades que não tenham capacidade de pagamento ou escala econômica suficiente para cobrir o custo integral dos serviços.

Essas diversas referências ao custo dos serviços denotam preocupação com a adoção de requisitos básicos para que se possa ter uma regulação discricionária de qualidade, com abordagem ex ante ou ex post. Ou seja, embora não seja tão incisiva quanto a lei anterior, a Lei Federal 11.445/2007 tem preferência pelo modelo de regulação discricionária baseada em custo, o que é justificável em vista das peculiaridades do setor.

De fato, o crescimento das cidades é tão dinâmico que se torna muito difícil ter um contrato fechado, que não enseje renegociação entre 20 e 30 anos. Nesse contexto, o modelo de regulação discricionária ganha espaço, sobretudo por conta de sua flexibilidade. Além disso, a suposta vantagem do baixo custo regulatório da “regulação por contrato” costuma ser bastante diluída ou mesmo inexistente em concessões de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Isso porque, dada a

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dinâmica do crescimento urbano, que quase sempre não se coaduna com a previsão inicial, e o longo prazo desse tipo de contrato, é comum a necessidade de diversos reequilíbrios ao longo de sua vigência. O agente regulador acaba envolvido, portanto, com frequência, em discussões complexas de revisão contratual, ensejando não raramente renegociações extensas das disposições contratuais. Isso empurra o regulador para uma análise mais profunda dos custos envolvidos na prestação dos serviços, a fim de reduzir a assimetria de informações e mitigar os impactos tarifários dos sucessivos pleitos de reequilíbrio. Ao fim e ao cabo, corre-se o risco de se ter elevado custo do aparato regulatório necessário para lidar com diversos pleitos de reequilíbrio, sem se ter os benefícios da regulação discricionária.

Nessa linha de ideias, vale notar que, no caso de prestadores públicos, como SAAE, DAAE e empresas estatais, esse modelo de “regulação discricionária” parece ser, de fato, o mais recomendado.

O desafio maior é sua utilização para concessões privadas. Isso porque muitos investidores ainda têm receio da efetiva independência das agências reguladoras e, dessa perspectiva, veem como um risco adicional do negócio a existência de modelo regulatório que assegure maior discricionariedade para a gestão do contrato pelas respectivas agências. Em decorrência dessa desconfiança, surge por vezes a intenção de limitar – dentro dos parâmetros legais, obviamente – a atuação das agências, criando nos contratos cláusulas detalhadas de alocação de riscos e de metodologia aplicável para o reequilíbrio econômico-financeiro.

Não vislumbramos ilegalidade nessa alternativa, embora haja distanciamento da opção preferencial da Lei Federal 11.445/2007. De qualquer forma, quando se opta por uma “regulação por contrato”, com cláusulas de risco e de reequilíbrio econômico-financeiro bem detalhadas, é importante não esquecer da obrigatoriedade de se introduzir mecanismos que induzam a eficiência e eficácia dos serviços e que permitam a apropriação social dos ganhos de produtividade, em vista da exigência legal dessa apropriação (art. 22, inc. IV, e art. 38, §§ 2º e 3º). Assim, de alguma forma será preciso acompanhar custos, a fim de compartilhar os ganhos de produtividade.

Outra questão peculiar em relação ao modelo de regulação está relacionada aos casos de contratos precedidos de licitação. Não raramente, nas licitações tem sido adotado o menor valor de tarifa como critério de julgamento. Evidentemente, não há nenhum problema com a adoção desse critério se estivermos diante de um modelo fechado de “regulação por contrato”. O problema surge quando, após uma licitação dessa natureza, pretende-se aplicar uma “regulação discricionária”. Nesse caso, corre-se o risco de anular o efeito da licitação, pois, se o regulador ajusta a tarifa para remunerar o custo do serviço, o desconto dado na licitação vai se perder automaticamente na primeira revisão tarifária. Dessa perspectiva, caso se pretenda realizar uma licitação com perspectiva de aplicar uma “regulação discricionária”, o melhor critério de julgamento tende a ser o de maior valor de outorga. Isso porque, nesse modelo, quando o regulador for calcular a tarifa adequada para remunerar o custo do serviço, bastará deixar de fora o valor de outorga.

Por fim, é preciso registrar que, assim como no caso da regulação técnica, as agências reguladoras também têm poder normativo para tratar dos aspectos econômico-financeiros. Nos termos do art. 23, compete à agência editar normas relativas à dimensão econômica, abrangendo, pelo menos, os seguintes aspectos:

• Regime, estrutura e níveis tarifários, bem como os procedimentos e prazos de sua fixação, reajuste e revisão (inc. IV);

• Medição, faturamento e cobrança de serviços (inc. V);

• Subsídios tarifários e não tarifários (inc. IX).

Esses temas, no entanto, são centrais na equação econômico-financeira de qualquer contrato de concessão. Dessa perspectiva, existe uma limitação tradicionalmente reconhecida no Direito Administrativo brasileiro, segundo a qual a prerrogativa de alteração unilateral do contrato não engloba as cláusulas econômico-financeiras. Isso está bem estabelecido, por exemplo, no art. 58, § 1º, da Lei Geral de Licitações e Contratos, segundo o qual: “as cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos não poderão ser alteradas sem prévia concordância do contratado”.

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como espelho daquele utilizado pela própria concessionária, o que permitiria à agência verificar em tempo real as ocorrências da operação.31

Além disso, em grande medida, a fiscalização se exerce sobre os dados fornecidos pela própria prestadora dos serviços, sendo que, nesse caso, para mitigar o risco de fornecimento de dados incorretos, é possível estabelecer auditoria obrigatória e independente de forma rotineira.

31 Na consulta pública, realizada em julho e agosto de 2017, acerca de possível licitação do trecho ferroviário entre Porto Nacional (GO) e Estrela d’Oeste (SP), existe uma obrigação prevista para o futuro contratado no sentido de disponibilizar uma estrutura/sistema na sede da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que permitiria a essa agência acompanhar, em tempo real, a operação da ferrovia. No setor de água e esgoto, não se tem notícia de que alguma agência pretenda adotar estratégia de fiscalização semelhante.

Dessa perspectiva, é preciso ter claro que as normas da agência reguladora sobre matéria econômico-financeira apenas se aplicarão naquilo que não contrariarem o contrato de concessão. Não é possível admitir a alteração unilateral dessas cláusulas, nem, por via transversa, penalizar a concessionária que se recusa a alterar cláusulas econômico-financeiras de seu contrato. Qualquer alteração nessas cláusulas apenas poderá se dar por consenso entre as partes contratantes. Portanto, existe uma limitação aqui à normatização da agência reguladora, que, em caso de conflito com o contrato, para se tornar eficaz, depende de um aditivo contratual a fim de ajustar as disposições do contrato de concessão às normas da entidade reguladora.

Evidentemente, na prática, mesmo sem o aditivo, se a concessionária não se opuser à aplicação das normas da agência conflitantes com as disposições contratuais, pode não haver maiores problemas. Porém, a existência do aditivo contratual, para compatibilizar as normas contratuais com as normas da agência, seria conveniente para mitigar risco de eventual judicialização futura e/ou questionamentos por parte de órgãos de fiscalização.

Fiscalização

A fiscalização exercida pela entidade reguladora integra a regulação exercida sobre a prestação dos serviços pela empresa contratada, completando o quadro de incentivos para que haja efetiva e adequada prestação desses serviços.

Uma das formas mais modernas de exercício de fiscalização em contratos de concessão é o monitoramento de indicadores de desempenho. Tem sido cada vez mais comum a definição de indicadores específicos, nos contratos ou ainda em normas regulatórias.

Por vezes, o monitoramento desses indicadores pode ser feito remotamente, reduzindo o custo da fiscalização, o que é facilitado pela crescente automação dos sistemas. Em algumas agências, já se discute a existência de um centro de controle operacional,

Acervo Arsesp

Fiscalização em estação de tratamento de esgoto em 2013

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Regulação no setor de água e esgoto Capítulo 5

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De qualquer forma, eventualmente, pode ser necessário o envio de fiscais da agência, o apoio de terceiros contratados pela agência ou, ainda, disponibilizados por meio de convênios com órgãos do titular dos serviços, para a verificação in loco do cumprimento de obrigações, e o monitoramento de indicadores de desempenho.

As ações de fiscalização podem ser feitas como parte do planejamento ordinário da agência ou como reação a achados extraordinários da fiscalização ou ainda decorrentes de denúncia de terceiros.

Em qualquer caso, sempre que houver a perspectiva de aplicação de sanções à concessionária, será necessária abrir processo administrativo sancionador, conforme as normas legais, regulamentares e contratuais aplicáveis, que devem tratar não apenas do procedimento, mas também da tipificação das condutas infracionais e das respectivas sanções. Em linhas gerais, tais normas devem estabelecer o formato de autos de infração, seus elementos, os processos de fiscalização, os prazos para apresentar esclarecimentos, defesas e recursos, as autoridades julgadoras competentes, a forma de instrução e critérios para dosimetria das penalidades, de modo que haja plena garantia do contraditório e da ampla defesa, assim como do devido processo legal.

A importância de haver normas a esse respeito reside no fato de que a previsibilidade do procedimento e as garantias processuais mitigam o risco de questionamento judicial posterior das decisões sancionadoras, assim como reduzem também o risco de arbitrariedade e de comportamento oportunista por parte do Poder Público.

Em relação às previsões normativas específicas da Lei Federal 11.445/2005, vale destacar a existência de poder normativo para tratar de aspectos da fiscalização, no âmbito de seu art. 23, a exemplo de:

• Monitoramento dos custos (inc. VI);

• Avaliação da eficiência e eficácia dos serviços prestados (inc. VII);

• Plano de contas e mecanismos de informação, auditoria e certificação (inc. VIII).

Vale ressaltar, no entanto, que, estranhamente, foi vetado dispositivo importantíssimo nessa matéria, por sugestão do Ministério da Justiça. O projeto de lei enviado à sanção do presidente da República contemplava, como inc. XXIII do art. 23, justamente a autorização para as entidades reguladoras emitirem normas sobre penalidades. Nas razões do veto, constou o seguinte:

Quanto ao mérito, registra-se que o inciso XII do art. 23 da proposição concede à entidade reguladora permissão para expedir normas relativas à imposição de penalidades pelo descumprimento de regras. Entretanto, constata-se que o Projeto de Lei não define as infrações, nem as penalidades que podem ser aplicadas. Tampouco cabe à entidade reguladora legislar a respeito, sob pena de ferir o princípio da reserva legal que limita o exercício da função punitiva do Estado somente às infrações definidas em lei, o que exclui a possibilidade de criação de infrações, ainda que administrativas, no âmbito de qualquer dos poderes do Estado que não seja o Legislativo.

Com o devido respeito, a posição adotada pelo Ministério da Justiça não condiz com a razão de ser das agências reguladoras. É imprescindível que as agências possam editar normas sobre penalidades, criando a devida tipificação e as respectivas sanções, ainda mais no contexto em que, por vezes, os contratos são omissos ou incompletos acerca da matéria. Infelizmente, o referido veto acabou criando uma fragilidade jurídica e a possibilidade de discussão sobre as penalidades aplicadas em razão de atos normativos das agências de água e esgoto.

Pensamos que essa competência, para editar normas a respeito de penalidades, é implícita e condição necessária para a eficácia da fiscalização e, portanto, não se pode admitir uma agência reguladora sem tais poderes.

Isso não significa dizer que a agência possa, unilateralmente, alterar as regras contratualmente estabelecidas sobre a matéria. As regras sobre penalidades fazem parte do cerne da equação econômico-financeira considerada pelo contratado. Em decorrência disso, entendemos que a alterar disposições contratuais

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Regulação no setor de água e esgoto Capítulo 5

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depende de concordância das partes envolvidas, especialmente da concessionária.32

A existência dessa discussão, a nosso ver, pode ser superada pela inclusão de disposição contratual que remeta à aplicação das normas da agência sobre penalidades. Dessa forma, é possível contornar a ausência de autorização legal expressa para que as agências emitam normas a respeito da aplicação de penalidades. Em outras palavras, a competência adviria não da lei, mas do acordo entre as partes, para que se apliquem as normas da agência a respeito.

Não apenas por esse motivo, mas também por tal razão, é conveniente que a agência reguladora participe da modelagem da contratação, a fim de evitar a introdução de normas inadequadas, do ponto de vista da regulação econômico-financeira, bem como para fazer constar expressamente no contrato a aplicação de suas normas concernentes a penalidades.

Conclusões

A regulação é fundamental para assegurar a melhoria da qualidade dos serviços e a modicidade tarifária, em um contexto de mercado monopolizado. Por essa razão, a fim de fortalecer a regulação, a Lei Federal 11.445/2007 obrigou a segregação da função reguladora em uma entidade com autonomia orçamentária, financeira e administrativa. Trata-se, talvez, de uma das mais importantes inovações do marco legal de saneamento.

Esse movimento, de estimular uma regulação técnica e independente, está em linha com as melhores práticas nos diversos

32 Há casos em que o contrato estabelece limites à aplicação de penalidades tão baixos que, na prática, as sanções se mostram absolutamente ineficazes. Nessas hipóteses, o fato de que não se admite a alteração unilateral das regras sobre penalidades, por estarem no cerne da equação econômico-financeira, não significa que o titular dos serviços e a agência reguladora estejam de mão atadas. De fato, se as partes não chegarem a um acordo que permita ajustar o sistema de penalidades e as sanções forem ineficazes como instrumento de enforcement do contrato, é preciso lembrar que o titular dos serviços sempre tem à disposição a possibilidade de declarar caducidade ou encampação do contrato, observado o devido processo legal. A eventual limitante da indenização poderá ser superada mediante a previsão de que o vencedor da licitação pague a indenização devida ao antigo prestador de serviços.

setores de infraestrutura. Nesse sentido, vale registrar que o setor de água e esgoto andou bem ao seguir no mesmo sentido, podendo se beneficiar, agora, da experiência acumulada em outros setores.

Do ponto de vista da regulação técnica, a entidade reguladora deve exercer seu poder normativo para suprir eventuais omissões contratuais, dar transparência e calibrar a qualidade da prestação dos serviços e o atendimento adequado aos usuários. As eventuais normas emanadas nesse contexto devem ser acatadas pela concessionária, ajustando-se o contrato sempre que necessário, sem prejuízo da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro.

Quanto à regulação econômica, foram discutidos possíveis modelos teóricos, sendo que há uma preferência na Lei Federal 11.445/2007 por um modelo de “regulação discricionária”, baseado em análise de custos. Uma preocupação importante é com as concessões precedidas de licitação, pois, nesses casos, a adoção de um modelo de regulação discricionária deve cuidar para que não se perca a utilidade do leilão. Além disso, deve-se ter em mente que, no caso da regulação econômica, é importante compatibilizar as regras da agência com as disposições contratuais, lembrando que, nessa matéria, não há espaço para alteração unilateral.

Em relação aos poderes de fiscalização, trata-se de um instrumento fundamental para fazer valer as regulações técnica e econômica. Nesse contexto, é evidente que as agências devem ter a competência para normatizar a aplicação de penalidades, criando os tipos penais e as respectivas sanções, a despeito do veto existente no art. 23, inc. XXIII do Projeto de Lei que deu origem à Lei Federal 11.445/2007. Uma forma de contornar eventuais críticas é a inclusão, no contrato de prestação de serviços públicos de água e esgoto, de cláusula por meio da qual as partes pactuem a aplicação das normas da agência sobre penalidades.

Nesse contexto, é bastante conveniente que a agência reguladora participe da modelagem da contratação, com o objetivo de assegurar, no contrato, o espaço adequado para que a regulação seja exercida de forma eficiente, eficaz e com segurança jurídica.

* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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Diretoria da Arsesp ao longo dos 20 anos de históriaAnexo

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AGÊNCIA REGULADORA DE SANEAMENTO E ENERGIA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Diretor-Presidente e Diretor de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Saneamento BásicoHelio Luiz Castro

Diretor de Regulação Econômico-Financeira e de Mercados José Bonifácio de Souza Amaral Filho

Diretor de Relações InstitucionaisPaulo Arthur Lencioni Góes

Diretor de Regulação Técnica e Fiscalização de Serviços de Energia ElétricaMarcos Peres Barros

Diretora de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Gás CanalizadoPaula Fernandes da Rocha Campos

Gerência de Comunicação da Diretoria de Relações Institucionais

Coordenação ExecutivaSamira Bevilaqua | Superintendente de Relações Institucionais / DRI-Arsesp

Coordenação GeralSílvia Vivona | Comunicação / DRI-Arsesp

ColaboraçãoSergio Brandt | Comunicação / DRI-ArsespCássio Cruz | Comunicação / DRI-Arsesp

ArtigosRegulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafiosIeda Gomes

Regulação tarifáriaJoisa Dutra

A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir! José Mário Miranda Abdo

Regulação no setor de água e esgotoLucas Navarro Prado e Denis Austin Gamell

Agências Reguladoras e proteção do consumidorRoberto Augusto Castellanos Pfeiffer

Conteúdo, elaboração, entrevistas e revisãoHamilton Fernandes | TikinetAmanda Oliveira | TikinetCaique Zen | Tikinet

Projeto gráfico, ilustração e diagramaçãoPatricia Okamoto | Tikinet

ImagensAcervo Arsesp, PXHere e Depositphotos

ContatoAv. Paulista, 2313 – 1º ao 4º andarSão Paulo/SP – CEP: 01311-300fone: + 55 11 3293-5100fax: + 55 11 [email protected]

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULOGovernador

Márcio França

SECRETARIA DE ENERGIA E MINERAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULOSecretário de Energia e Mineração do Estado de São Paulo

João Carlos de Souza Meirelles

Expediente

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