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MU CA NE Museu Capixaba do Negro Vitória - Maio de 2012

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MUCANE

Museu Capixaba do NegroVitória - Maio de 2012

Patrocínio:

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Desde a Constituição Federal do Brasil de 1988, a memória se tornou um direito para os diferentes segmentos étnicos que formaram o processo civilizatório nacional brasileiro e não um privilégio conduzido apenas pelos ideó-logos da homogeneização política e cultural do estado nacional. A mesma Constituição abriu uma fenda política democrática para as demandas das organizações dos movimentos negros relativas aos processos de construção de memória e de identidade, surgindo daí o projeto legislativo que deu origem à Lei n° 10.639/2003 instituindo o ensino da história e da cultura africanas e afro-brasileiras nas escolas de todos os níveis. Desse modo, o Mu-seu Capixaba do Negro (Mucane) é um desses lugares que vem possibilitando a construção de memórias e de identidades afro-brasileiras na Ilha de Vitória, e mesmo fora dela, visto que se tornou um lugar para onde afluem alunos e professores de diversas escolas das redes públicas de ensino em busca de algum suporte, subsídio e material de pesquisa que possa lhes falar da história e da cultura afro-brasileira.

A criação formal e a restauração do pré-dio do Mucane é um produto da luta política das organizações de movimentos negros e sua gestão na construção da memória afro-brasileira deve ser conduzida por pessoas competentes, ligadas à essas organizações, e sensíveis ao papel político da memória. Ca-berá aos agentes da militância negra também

pesquisarem e conhecerem os fragmentos da memória negra na Ilha de Vitória para cobrar do poder público recursos para a pesquisa, além de elaborarem projetos e concorrerem a editais públicos de financiamentos dessas pesquisas. É nessa perspectiva que o Instituto Elimu Professor Cleber Maciel, por meio da historiadora Fernanda de Castro e da doutora em Educação Nelma Monteiro, empreendeu a pesquisa sobre a história do Mucane trazida a público nesta edição.

Os movimentos negros organizados, os artis-tas, os pesquisadores e os políticos afro-bra-sileiros têm o dever de transformar o Mucane em um museu vivo e que projete a memória para o futuro. Por isso, eles têm o desafio de elaborar projetos e de cobrar recursos para a restauração de imagens e de documentos que contam a história de personalidades negras e de lugares de referência para a memória afro-brasileira, que possibilitem a construção de um acervo no local e que sirvam como mate-rial de pesquisa para as futuras gerações. Por-tanto, a memória não está apenas em um ma-terial de pesquisa longínquo no passado, mas também no passado recente e no presente. Sua relevância política está para os vivos do presente e do futuro e não para aqueles que já não estão mais em nossa companhia.

Nesse sentido, seja você também um agente político na construção da memória e faça parte da história do Mucane no presente e no futuro.

Editorial

O Mucane como um lugar de memóriaOsvaldo Martins de OliveiraDoutor em antropologia e Prof. Universidade Federal do Espírito Santo

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O trabalho aqui apresentado começou a ser desenhado em meados de 2009, quando o Instituto Elimu Professor Cléber Maciel aprovou o projeto “Trajetória Histórica do Museu Capixaba do Negro” no edital da Lei Rubem Braga da Prefeitura Municipal de Vitória.

Desde o início, buscamos produzir uma re-vista com uma linguagem acessível a todos aqueles interessados por conhecer um pouco mais sobre a história de um dos primeiros museus dedicados à população afrodescen-dente no Brasil. Procuramos também fazer desta publicação um registro da participação dos diferentes atores sociais que lutaram para tornar o Museu Capixaba do Negro (Mucane) uma realidade.

Para tanto, procuramos identificar, levantar e analisar fontes documentais e iconográficas sobre o Museu que estavam disponíveis em arquivos públicos e privados, sites da internet e jornais da época. Além disso, conversamos com diversas pessoas – representantes das mais diferentes linguagens artístico-culturais e dos movimentos políticos – que tiveram sua história atravessada pela trajetória da institu-ição.

Sobre os entrevistados, é preciso destacar que eles foram mapeados em duas reuniões realizadas pela coordenação do projeto na sede do Instituto Elimu. Em ambos os encontros, estiveram presentes pessoas ligadas ao movimento negro organizado da Grande Vitória e integrantes do poder público municipal envolvidos no processo de ampliação e de restauração do Mucane. Posteriormente, os próprios entrevistados sugeriram novos nomes e/ou ratificaram as indicações feitas pelos participantes da reunião.

Ressaltamos ainda que em nenhum mo-mento tivemos a pretensão de entrevistar to-

dos os personagens envolvidos nesses 19 anos de história do Museu e, muito menos, esgo-tar tal assunto. Entendemos que a memória é algo vivo, sujeito à construção e à recons-trução na medida em que as recordações do passado são, em grande escala, apoiadas em dados do presente que, por sua vez, estão em constantes mudanças. Nossa intenção com este trabalho é a de suscitar novas reflexões, provocar discussões e revelar facetas que ain-da não foram desnudadas. Temos certeza que outras memórias estão para serem reveladas.

Ao apresentar a trajetória do Mucane, acreditamos ter contribuído para dar voz a uma população historicamente excluída e, especialmente, trazer à tona um importante período da história recente do Espírito Santo, marcado por intenso movimento em defesa do reconhecimento e da valorização da história e da cultura do povo negro capixaba.

Registramos nosso agradecimento à Prefeitura Municipal de Vitória que viabilizou a produção da revista por meio da Lei Rubem Braga, disponibilizou documentos e autorizou a realização do ensaio fotográfico no prédio do Mucane. Agradecemos também à empresa Vale por apoiar nosso esforço em suprir as ausências, lacunas e silêncios que acompanham a trajetória dos afrodescendentes no país.

Agradecemos especialmente a todos os en-trevistados que abraçaram a proposta e ge-nerosamente nos receberam e contribuíram com informações e documentos imprescin-díveis para tornar esta revista possível.

Em tempo: para fins de organização, na página 39 desta publicação, estão os nomes de todos os entrevistados citados nos textos com as infor-mações sobre as suas relações com o Mucane e seus dados biográficos.

Algumas palavras

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Sumário

Expediente:

Coordenação geral: Nelma Monteiro

Pesquisa: Fernanda de Castro e Nelma Monteiro

Assistente de pesquisa: Moisés Nascimento

Organização: Fernanda de Castro e Nelma

Monteiro

Projeto Editorial: Fernanda de Castro

Projeto gráfico e diagramação: Paulo Prot

Fotos: Ariny Bianchi

Capa: Paulo Prot

Edição: Fernanda de Castro

Revisão: Luiz Cláudio Kleaim, Moisés

Nascimento e Paulo Gois Bastos

Imagens: arquivos de Zuilton Ventura, Eduardo

Filipe Scardua, Madalena Correia e Prefeitura

Municipal de Vitória

(5) Museu Vivo

(8) Um pouco de história

(11) Maria, Verônica

(13) Das trajetórias dos movimentos sociais negros à conquista do Mucane

(17) Ensaio: [re] forma [re] instauração [re] construção

(23) Ocupar e resistir

(34) Qual a importância do Museu Capixaba do Negro para Vitória?

(37) Passado, presente, futuro

(39) Entrevistados

Balduíno, “El Africano”

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Proveniente da palavra grega museion, que nomeava o Templo de Atenas dedicado às mu-sas, o museu durante muito tempo se consti-tuiu enquanto um espaço voltado ao acúmu-lo, à conservação e à exposição de objetos antigos – moedas, móveis, espadas, meda-lhas, louças – que serviam para testemunhar a realidade de determinados segmentos sociais, em geral das elites. Não por acaso, no ima-ginário de boa parte da sociedade, o museu é associado a um local que abriga materiais an-tiquados. Os ditados populares estão aí para mostrar que o binômio museu/antiguidade é senso comum. Afinal, quem nunca ouviu “Quem vive de passado é museu” ou, mesmo, “Quem gosta de coisa velha é museu”?

Se a ocorrência dos “depósitos de velhari-as” ainda hoje reforça essa crença, a existên-cia de um número cada vez maior de institu-ições atentas às diversidades socioculturais e mais próximas do cotidiano das pessoas ten-de a superar o museu saudosista e estático e a configurar um novo espaço pautado pela produção de informação, de discussão e, so-bretudo, de reflexão.

É dentro desse novo modelo dinâmico e educacional que o Museu Capixaba do Negro (Mucane) foi concebido. Desde seu início, ele foi pensado para se tornar um centro de estudos e de pesquisas sobre a memória e a cultura negra. Segundo a professora Edileuza de Souza, que atuou na coordenação do Mucane, “a ideia sempre foi pensar o museu dentro de uma dinâmica contemporânea de altivez, onde as crianças não fossem para lá ver tronco, corrente ou coisa parecida, mas que pudesse ter arte negra, coisas que estimulassem a sua autoestima”.

De fato, a proposta inicial do Mucane envolvia a existência de bibliotecas, de um centro de referência da cultura negra capixaba e brasileira, além de espaços para a realização

de exposições artísticas e históricas. Desse modo, no III Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado na cidade de Lisboa (Portugal), em 1994, o Mucane foi apresentado enquanto um Museu da Cidadania, ou seja, um lugar de produção e valorização do negro, cuja existência/essência na formação da sociedade brasileira foi negada e/ou confiscada, impossibilitando o seu direito à cidadania plena .

Um museu de expectativas

O Mucane foi criado pelo Decreto 3.527 - N, em 13 de maio de 1993, na gestão de Albuíno Azeredo (1991-1995), um dos primeiros gover-nadores negros da história do Brasil. Contudo, longe de ser uma iniciativa benevolente do governo, o Museu foi fruto de pressões so-ciais, resultado da movimentação de negras e negros do Espírito Santo cujas lutas por dig-nidade, respeito e reconhecimento remontam ao período da escravidão.

Um marco importante dessa história foi a criação da Comissão do Centenário da Lei Áu-rea vinculada à Sub-Reitoria para Assuntos Co-munitários da Universidade Federal do Espíri-to Santos (Ufes), em 1988. Coordenada pela psiquiatra e militante negra Verônica da Pas, a Comissão foi responsável pela realização de várias atividades. Uma delas foi o Semi-nário Internacional da Escravidão – ocorrido em 1988 no campus da Ufes – que debateu a questão do negro no Brasil. As discussões geradas no calor das comemorações do cen-tenário da Lei Áurea repercutiram na década seguinte quando ganhou impulso a ideia de um museu do negro no estado.

Na primeira tentativa, em 1991, a Ufes,

Museu vivo Fernanda de Castro

“Até que os leões tenham suas histórias, os contos de fada glorificarão sempre o caçador”Provérbio africano

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o Departamento Estadual de Cultura e a Prefeitura Municipal de Vitória estudaram uma forma de viabilizar a criação de um espaço de referência da história e da cultura negra na Igreja do Rosário, localizada no Centro de Vitória. As negociações não avançaram e o projeto, que chegou a tramitar no Conselho Estadual de Cultura e a ser noticiado na imprensa capixaba, perdeu força. Mas a semente já estava lançada.

Mesmo com o insucesso da primeira proposta de criar o museu na Igreja do Rosário, as conversas entre o poder público e os movimentos negros continuaram. O enge-nheiro e militante Elias Barcelos lembra que muitas reuniões foram marcadas e desmarca-das durante o governo de Albuíno. Segundo ele, o ponto crítico das discussões era o es-paço para instalar o museu. “Numa dessas re-uniões que eu estava, o Albuíno dizia: ‘onde é que nós vamos colocar? Não tem lugar para colocar, para ser criado’. Ele não disse exata-mente que o estado não ia construir. Mas sim que não havia espaço”, conta Elias.

A importância da figura do governador Albuíno Azeredo na criação do Museu Capixaba do Negro gera polêmicas entre os envolvidos no processo. Se para alguns, as origens africanas não sensibilizaram o governador para a relevância do projeto, para outros, a presença de um negro no Palácio Anchieta foi imprescindível para a assinatura do decreto. Segundo Edileuza de Souza, a presença de Albuíno no cargo de governador foi chave: “o museu só existe porque Albuíno é um homem negro. Diga o que quiser, mas foi um cara que abraçou esse projeto. A gente só está discutindo isso tudo porque ele topou a ideia”.

No decreto assinado no aniversário da abolição da escravidão no Brasil, o Museu Capixaba do Negro é criado no âmbito do De-partamento Estadual de Cultura – como parte integrante da sua estrutura organizacional –, subordinado à Divisão de Memória e geren-ciado pela Divisão de Espaços e Eventos. Sua existência é justificada pela ausência de uma instituição voltada para a preservação e para a pesquisa da cultura negra, pela indiscutível influência e representatividade do negro no Espírito Santo, bem como pela necessidade de preservar e divulgar a cultura negra capixaba

e de destacar a sua importância no processo político sociocultural do estado.

O decreto, porém, não significou a materiali-zação do Mucane. O prédio para a instalação da instituição só foi doado ao Departamento Estadual de Cultura em 13 de maio de 1994, ou seja, um ano após a criação da instituição no papel. Além disso, a solenidade represen-tou apenas a entrega do espaço uma vez que não foi anunciada uma data oficial para o mu-seu começar a funcionar, nem previsto um or-çamento para a sua manutenção.

Quase 20 anos depois da assinatura do decreto e da doação do prédio, o Museu – enquanto uma instituição mantida pelo estado em prol da população afrodescendente – ainda é uma expectativa. Não que não tenha havido esforços para torná-lo concreto. Nessas décadas de existência, numerosos atores ocuparam o espaço com atividades diversas (aulas/oficinas de capoeira, de dança afro, cursinho pré-vestibular, oficinas de música etc.) e reivindicaram a efetivação do Mucane. Mas a atuação do Estado ficou limitada às promessas, enquanto que os recursos humanos, materiais e financeiros necessários para o pleno funcionamento da instituição nunca foram garantidos. “O museu foi uma ideia. De fato, ele nunca existiu. O que existiu foi aquele prédio que era ocupado, que a gente resistiu. Ele nunca esteve parado, porém a ocupação sempre foi feita de forma voluntária, com a ausência do estado”, desabafa Edileuza.

Em 2007, o governo do estado passou a administração do prédio do Mucane à Prefeitura Municipal de Vitória. Em entrevistas dadas à imprensa local na época, o Secretário Municipal de Cultura de Vitória, Alcione Pinheiro, prometeu a revitalização do espaço, que deverá desenvolver atividades de identificação, estudos, conservação, documentação e exposição das expressões patrimoniais afro-brasileiras. A entrega do Museu Capixaba do Negro à sociedade está prevista para 2012. A expectativa é grande, principalmente para aqueles que se dedicaram em manter o espaço aberto. Maior ainda é a torcida para que o “14 de maio” – o dia depois da inauguração do espaço – represente um passo significativo na construção de uma sociedade mais justa, democrática e plural.

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A escolha do antigo prédio do Departamen-to Estadual de Estatística (DEE) para sediar o Mucane não poderia ser mais significativa. O velho casarão de dois andares, localizado na Avenida República, no Centro de Vitória, está cercado por inúmeras referências históricas e culturais negras.

Edileuza de Souza, que participou das bus-cas de um espaço para instalar a instituição, explicou que, na época, os envolvidos na pes-quisa procuravam por um edifício histórico e público, com localização de fácil acesso para toda a população. O prédio do DEE pareceu ser então o espaço ideal. A não ser pelas con-dições que apresentava: a sua estrutura era antiga e o térreo era ocupado por uma dele-gacia de polícia e por uma cooperativa dos servidores públicos.

Para Elias Barcelos a escolha do prédio en-volvia prós e contras: “ele é um prédio central onde é mais fácil chegar de qualquer bairro da Grande Vitória. Para quem vem do inte-rior também. Um local pra reunir. Um prédio grande, espaçoso, com salas amplas. Mas também um prédio velho; na verdade, quase caindo aos pedaços”. O local onde estava ins-talada a delegacia era insalubre em todos os

sentidos, muito mais para os presos, mas também para as pessoas que ali trabalhavam. “Era uma salinha lá no fundo pequena, com 32 presos”, lembra Edileuza.

Além disso, a coexistência do Mucane e da delegacia – cujos presos, em sua maioria, são afro-brasileiros – gerou uma situação, no mí-nimo, contraditória. No térreo, a prisão reto-ma os “navios negreiros”, lotada de negros amontoados uns sobre os outros, resultado da injusta e desigual sociedade brasileira, desenhada pelos séculos de escravidão. No segundo pavimento, apresenta-se um museu em busca da sua efetivação como um centro de referência do universo cultural do negro, um espaço de preservação e de valorização da sua história.

Malgrado as precárias condições, o prédio foi repassado ao Departamento Estadual de Cultura com a promessa de ser restaurado e completamente desocupado para dar lugar ao Museu Capixaba do Negro.

A instalação do Mucane no centro da cidade de Vitória reforçou a importância da região en-quanto um espaço de territorialidade negra, um campo de ação marcado por relações, in-terações, experiências e resistências.

Um pouco de históriaFernanda de Castro

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A vizinhança

A capital do Espírito Santo historicamente concentrou um expressivo número de ne-gras e negros escravizados que trabalhavam nas fazendas, nos serviços domésticos e na prestação de serviços diversos.

A significativa presença dos africanos e de seus descendentes imprimiu marcas negras no cotidiano da cidade. Em uma caminhada pelas ruas da capital é impossível não notar a sua participação secular tanto nos traços fi-sionômicos das pessoas e na devoção a São Benedito – santo conhecido por proteger os pretos, pobres e oprimidos – quanto na forte presença do samba e do funk, gêneros mu-sicais que, por muitas razões, evocam uma identidade negra.

Localizado bem próximo ao Mucane, o Por-to de Vitória foi uma entrada para milhares de escravizados trazidos da África e de ou-tras partes do Brasil que se instalavam na cidade ou eram levados para outras regiões. Esse mesmo porto, muitos anos depois, foi ampliado e modernizado pelos descendentes dos primeiros negros que lá desembarcaram e que, ainda hoje, contribuem com a sua força de trabalho para o funcionamento do local.

Zuilton Ferreira, artista plástico, assinala que no final da rua do Museu está localizada a Cooperativa de Economia e Crédito Mútuo dos Trabalhadores Portuários da Grande Vitória (Credestiva), com a qual o Mucane tinha uma relação próxima: “os estivadores passavam por ali, aqueles ‘negões’, os aposentados. Iam lá bater papo com a gente. Tem o Gerson, inclusive, que ficou praticamente como um dos nossos. Ele era o eletricista que resolvia os problemas de eletricidade do prédio. Nós fomos conversar com a cooperativa. Muitos deles frequentavam os nossos eventos”.

Além dos escravizados que chegaram pelo Porto, a população do Centro também foi ampliada com o deslocamento de inúmeros negros do interior do estado para a Capital, na busca de ocupações para sobreviver, prin-cipalmente, a partir do final do Século XIX. Aqueles que chegavam, instalavam-se nos morros e nas áreas próximas ao mangue. Nas

décadas seguintes, a ocupação desses locais foi intensificada, pois Vitória, por ser o núcleo econômico do estado, funcionou como princi-pal polo de atração de trabalhadores, sobre-tudo, negros que, desprovidos de recursos, foram morar nas áreas periféricas.

Tais áreas, vizinhas ao Mucane, deram origem a diferentes bairros que possuem uma população negra numerosa. Zuilton assinala que, apesar da ausência de uma política de comunicação bem definida do Museu com o seu entorno, existiu interação com as comunidades, sendo a capoeira a principal ponte do espaço com os morros próximos. Um pouco mais distante, o bairro do Alagoano também foi lembrado pelo artista: “o Museu teve um contato muito bom com o morro do Alagoano. Por exemplo, na celebração dos 301 anos de Zumbi dos Palmares, nós fizemos atividades cá no Museu, trazendo a população do morro do Alagoano, e teve atividade do Museu lá em cima”.

Ainda a Igreja do Rosário, propriedade da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, está localizada no Centro de Vitória, nos arredores do Mucane. Tal patrimônio histórico, primeiro local cotado para abrigar um museu do negro na cidade, foi construído pelos escravos em 1765. Ao seu lado ficava a Casa de Leilão, responsável por arrecadar verbas para comprar alforrias.

A existência de tantas referências negras em um pequeno espaço geográfico chamou a atenção do bailarino e coordenador da Facul-dade de Teatro, Dança e Música Fafi Renato Santos. Ele fala com entusiasmo da simbóli-ca distribuição desses marcos no Centro de Vitória, cujo formato lembra um triângulo, no qual o Mucane está inserido.

Essa localização privilegiada do Museu cri-ou inúmeras possibilidades de diálogos e de interação com os diferentes espaços negros reconhecidos ou simbolicamente demarcados por concentrarem uma parte expressiva das histórias, das memórias e da cultura da popu-lação afrodescendente capixaba.

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Prédio histórico*

O edifício onde está instalado o Mucane foi construído pelo Coronel Francisco Schwab em 1912, mesmo ano em que foi aberta a Avenida República, via onde está situado o Mucane. No início, o prédio composto por dois pavimentos foi ocupado por três famílias que instalaram suas lojas no térreo (padaria de Victor Maria Sarlo, casa de couros da família Dodinger e a farmácia Júlio Graça) e residiam no andar superior. O prédio construído pelo Coronel com mourões de estacas de camará é um rema-nescente da arquitetura eclética, movimento que predominou do final Século XIX até as primeiras décadas do Século XX e que reunia diferentes estilos arquitetônicos.

Em 1923, durante a gestão do presidente do Espírito Santo Nestor Gomes, o prédio por meio de uma permuta tornou-se propriedade es-tadual. Um ano depois, após reforma, recebeu o Correio de Vitória e, mais tarde, o telégrafo. Em 1935, passou a sediar o então Departamento de Estatística Geral. Anos depois, o térreo do prédio passou a ser ocupado por uma delegacia e pela cooperativa dos servidores públicos. No ano de 1994, o governador Albuíno Azeredo repassou o prédio ao Departamento Estadual de Cultura para a criação do Museu Capixaba do Negro.

Atualmente, o espaço está sob a responsabilidade da Prefeitura Municipal de Vitória, que assinou em 15 de agosto de 2008 um contrato de cessão do uso do prédio com a Secretaria de Estado de Gestão e Recursos Humanos (Seger).

* Fonte: Secretaria de Desenvolvimento da Cidade - Prefeitura Municipal de Vitória

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“Eu, Maria, como muitas. Nascida de família pobre, pai mestiço, filho de senhor de enge-nho com escravo vinda da região de Equeto. Mãe, filha de índios puris, que povoaram as margens do Rio Piracicaba e Rio Doce. Eu nas-cida, Verônica da Paz, natural de Minas Ge-rais, pai alfabetizado pelo Mobral há seis anos passados, exatamente três anos após a minha graduação como médica.

Eu, segunda filha do casal que criou oito dos onze filhos que tiveram. Alfabetizada em colé-gio religioso de origem francesa, onde apenas eu era “estrangeira”. Todos nós repetíamos o francês sem saber o que repetíamos. Única negra e de origem humilde. Conheci desde então a marginalidade, tendo começado aí a minha luta para diminuir a diferença em que eu era colocada”.

O pequeno trecho autobiográfico acima, es-crito em 1983, retrata uma parte da vida de Maria Verônica da Pas, considerada por mui-tos a principal responsável pela existência do Mucane. Primeira coordenadora da instituição, Maria dedicou suas melhores horas ao Museu para que se tornasse um espaço de referência e de valorização da população negra.

A trajetória de luta de Verônica por uma so-ciedade livre de opressões, no entanto, é an-terior ao Mucane. Formada em medicina pela Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (Emescam), em uma época na qual poucos tinham o privilégio de cursar o ensino superior, Maria Verônica abraçou a Psiquiatria e defendeu arduamente a desinstitucionalização da saúde mental.

Inconformada, a médica criticou o machismo

e militou em defesa dos direitos e da saúde feminina. Na década de 1980, junto a outras companheiras, Verônica participou do primeiro grupo de mulheres negras no Espírito Santo. Edileuza de Souza se recorda do movimento chamado “Ligadura Ditadura” em que o grupo combateu a prática de troca de votos pela ci-rurgia de laqueadura. “Naquele momento aqui na Grande Vitória, muitas mulheres trocavam votos pela esterilização. Ligadura de trompas. Então, ela já fazia um trabalho em Santa Rita [bairro de Vila Velha] quando se dá a ligação dela com esse grupo que a gente chamava de Grupo de Mulheres Negras do Espírito Santo. Ela trazia a questão da saúde. A gente achava que ia mudar o mundo”, conta Edileuza.

Maria Verônica também participou da coordenação do Projeto Cultural Afro-Brasileiro da Sub-Reitoria Comunitária da Ufes, sendo Presidente da Comissão do Centenário da Lei Áurea. Nesse cargo, organizou e coordenou várias atividades, como o Seminário Interna-cional da Escravidão, em 1988, na Ufes. Além disso, foi uma das responsáveis pelo Projeto Amandla, que trouxe o líder sul-africano Nelson Mandela ao Espírito Santo na década de 1990.

Foi ainda como representante da Ufes que Verônica integrou a comissão para a criação de um museu do negro. A iniciativa foi o primeiro esforço, um pontapé dado por Pas que, junto a outros atores, lutou para a constituição de um espaço para esse fim.

A coordenação do Mucane foi assumida ofi-cialmente por Maria Verônica em junho de 1994. Na época, ela era funcionária pública

Maria, Verônica Fernanda de Castro

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estadual e passou a dividir seu tempo entre as atividades médicas e os afazeres do Mu-seu. “Uma mulher negra, uma médica, uma profissional de nível superior, trabalhando no estado – ela trabalhava no hospital São Lucas. Ela sentiu esse desejo de trabalhar com o Mu-seu e se envolveu muito. Tanto que nos proje-tos do Mucane foi marcante a presença dela. Ela saia do hospital correndo, ia pra lá, ia pro cursinho, ia pro Museu quando ela não estava de plantão. Então foi, assim, muito dedicada”, conta Elias Barcelos sobre a atuação da co-ordenadora.

Em 1996, dois anos após ser nomeada, a médica se afastou do cargo e transferiu a co-ordenação do Museu para uma comissão com-posta por representantes da Associação de Mulheres Negras Oborin Dudù, do Grupo de Dança Negraô e pelo artista plástico Zuilton Ferreira. Naquele mesmo ano, Maria Verônica faleceu.

Destemida, a católica simpatizante de Exu – que dava banho nos filhos com pipoca – as-sumiu com orgulho a beleza da sua negritude

em uma sociedade onde a diferença entre rico e pobre, belo e feio, importante e irre-levante era (e ainda é) dada pela cor da pele e por traços fisionômicos. Edileuza conta que Verônica foi a primeira no estado a assumir o cabelo: “ela foi a primeira negra a usar dread look e black power. Quem inaugurou essa história foi ela. Então, para nós mulheres ne-gras, Verônica sempre foi uma mulher negra de referência. Se hoje, no Século XXI, a gente ainda é discriminado por conta do nosso ca-belo, a gente é discriminado por nossa cor, pela nossa postura e ainda temos uma invisi-bilidade que é grande, imagina ser estudante da Emescan na década de 70, com aquele ca-belinho? Preta daquele jeito?”.

Médica psiquiatra, mulher, militante femi-nista, filha, ativista negra, mãe, artista, Maria Verônica da Pas fez da sua vida um instru-mento para a construção de um país menos desigual. “Nós devemos muito a Verônica da Paz. Ela foi uma lutadora”, afirma Maria Lúcia Rosa, integrante do Oborin Dudù.

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Poema escrito por Maria Verônica da Pas.

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As trajetórias dos movimentos sociais ne-gros brasileiros têm sido marcadas por um processo histórico de resistências e de lu-tas em defesa do direito à diferença étnica e, ainda, pela implementação de políticas públicas voltadas à garantia dos princípios da reparação, do reconhecimento e da valori-zação do povo negro.

Nesta análise foram consideradas as es-tratégias políticas dos movimentos negros nacional e regional, com destaque para os capixabas. Os movimentos negros capixabas articulados com a sociedade civil organizada sempre tornaram legítimas suas reivindi-cações que possibilitaram muitas conquistas junto ao governo estadual – como o Decreto n° 3.527-N, de 13 de maio de 1993, que insti-tui o Museu Capixaba do Negro – e junto ao governo municipal de Vitória a restauração do prédio do Mucane.

Iniciando nossa análise por meio dessas trajetórias, procuraram-se os dados da Sín-tese dos Indicadores Sociais (SIS) do Censo do IBGE 2010 sobre a alteração da quantidade da população negra no Brasil. Esses indica-dores revelaram que os negros são a maioria da população brasileira, representada por 96,7 milhões de negros/as o equivalente a 50,7% desse contingente contra 91 milhões de bran-cos (47,7%), 2 milhões de amarelos (1,1%) e 817,9 mil indígenas (0,4%). Esses dados to-talizaram 190.755.799 milhões de brasileiros/as.

Os dados de porcentagem da população capixaba, considerando o quesito raça/cor di-vulgado em 2009, indicaram que no estado do Espírito Santo os brancos são 41,2, milhões,

Das trajetórias dos movimentos sociais

negros à conquista do mucane

Nelma Monteiro

os pretos 9,1 os pardos 49,1 e as demais et-nias vermelhos e amarelos 0,6. Quando soma-mos pretos e pardos temos 58,2% de etnia negra capixaba. No entanto, historicamente, esse percentual majoritário de negros/as, ain-da, não significou alteração na situação socio-econômica desse segmento que representou e representa a maior parcela da população e que compõe a profunda desigualdade social existente no Brasil.

A SIS tem indicado, historicamente, que a desigualdade é grande em relação às taxas de analfabetismo: entre negros e pardos ela é mais do que o dobro da verificada entre bran-cos. Em 2011, o índice de analfabetismo para negros foi de 13,3%; pardos, 13,4% e brancos, 5,9%. Ao analisarmos os números de partici-pação do jovem negro no ensino superior, o fosso é ainda maior: o percentual de negros na universidade corresponde à metade do de brancos. Após 124 anos da Abolição da Escra-vatura, apesar das políticas de ações afirmati-vas que possibilitaram o crescimento do aces-so de negros ao ensino superior, a defasagem escolar entre esses segmentos continuou sendo elevada. Em 1997, no ensino superior, os brancos eram de 3% e os negros 1%. Uma década depois, em 2007, entre os jovens bran-cos com mais de 16 anos, 5,6% frequentavam o ensino superior enquanto entre os negros esse percentual era de 2,8%.

Ao longo do processo histórico das trajetó-rias de resistências e de lutas dos diferentes movimentos negros obtivemos significativas mudanças nesses indicadores, contribuindo para o avanço de conquistas de direitos para esse segmento social. Portanto, esta produção

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teórica objetivou registrar suas diferentes tra-jetórias no Brasil, com destaque para os Movi-mentos Negros Capixabas, fazendo um recorte histórico para evidenciar aqueles Movimentos que marcaram os cenários políticos a partir da década de 1970.

A sigla MN foi, genericamente, usada para denominar a formação dos diferentes movi-mentos negros, sobretudo, aqueles organiza-dos nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Esses movimentos foram influencia-dos pela ideologia do pan-africanismo, a qual propôs a união de todos os povos da África e da diáspora como forma de potencializar a voz do continente no contexto internacional. Possuiu um caráter popular entre as elites africanas ao longo das lutas pela indepen-dência norte-americana na segunda metade do Século XX. O pan-africanismo foi mais de-fendido fora da África entre os descendentes dos escravizados africanos que, no Século XIX, foram levados à força para as Américas por meio do tráfico legal de humanos. No Brasil, o pan-africanismo encontrou um grande aliado: o negro guerreiro, ex-deputado e ex-senador da República, Abdias do Nascimento, falecido em 2011, na cidade do Rio de Janeiro.

Esse movimento influenciou a formação do pensamento das lideranças negras brasileiras da década de 1970 que na resistência e na luta vem contribuindo para desconstruir os mitos fundantes do racismo: mito da inferioridade, do embranquecimento e da discriminação ra-cial. Assim sendo, nesse processo de descons-trução da inferioridade da população negra foi e é preciso afirmar o domínio do conhecimento científico e tecnológico das diferentes nações

africanas que, por meio do tráfico legal, foram trazidas à força para o Brasil na mais longa travessia negra do Atlântico entre a metade Século XVI e início do XIX.

Os contextos históricos de desenvolvimento econômico do Brasil Colonial e Imperial neces-sitavam de mão de obra qualificada, o que não foi possível com o trabalho escravizado dos nativos e porque era escassa a população em Portugal. A Coroa Portuguesa, então, uti-lizou-se do tráfico de africanos na condição de escravizados para promover o desenvolvi-mento dos ciclos econômicos, a saber: do açú-car, do café e do ouro. Esses ciclos econômi-cos demandavam trabalho especializado que foi exercido pelos(as) trabalhadores(as) africanos(as) escravizados(as) em uma clara demonstração que eles/elas não foram in-feriores. Aranha (2009) afirmou que “uma abordagem mais adequada, no entanto, con-sideraria esses povos diferentes de nós, e não inferiores”.

Visando impulsionar o desenvolvimento do país, a política do escravismo incentivou a vinda de negros(as) de diferentes regiões do Continente Africano. Eles/elas chegaram for-çados ao Brasil em distintos contextos históri-cos, totalizando mais de quatro milhões de africanos(as) de diferentes etnias. Segundo Ney Lopes (2004), as etnias provinham de várias regiões: Angola e Congo (os bantos), Benin (os fons, jejês e sudaneses), Nigéria (os Iorubás, haussás, malês, mulçumanos e togos) e Tanzânia (swahili e quiloa).

Assim, tendo como pano de fundo os proces-sos históricos tecidos acima, passamos para a análise das trajetórias dos movimentos negros

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na década de 1970. Pereira (2008), em seu livro Trajetória e Perspectivas do Movimento Negro Brasileiro, relatou os diferentes acon-tecimentos e histórias de vida desses movi-mentos, partindo do período da escravidão, quando os arranjos negros, rurais e urbanos, sobre diferentes formas de organização e lu-tas, espalharam-se por todo o recanto deste país. Exemplo dessa resistência foram os quilombos, as guerrilhas, as irmandades e as revoltas urbanas que eram “maneiras de fazer negro” contra o perverso sistema escravista. No pós-abolição, outros cenários políticos foram produzidos, possibilitando outras tes-situras de redes sociais e étnico-raciais nas agendas políticas dos Movimentos Negros.

A história dos Movimentos Negros em suas trajetórias foram marcadas por grandes acon-tecimentos socioistóricos: 1°) nas décadas de 1920 e de 1930, o advento da “locomotiva” e a opção pela política da imigração europeia caracterizaram a intenção do governo brasilei-ro em substituir a mão de obra do negro pela do trabalhador europeu, assim dificultando o acesso desse segmento ao mercado de traba-lho; 2°) o período de 1940 a 1970 foi marca-do pela resistência negra em busca do reco-nhecimento e valorização de seu patrimônio cultural e de suas reivindicações. Este movi-mento fez surgir várias entidades negras, com destaque para o Teatro Experimental Negro (TEN) e para a Frente Negra – primeiro par-tido negro do País; e 3°) a partir de 1970 se evidenciou um cenário político-militar com a pregação da ideologia do mito da democracia racial, perspectiva que fora combatida ferre-nhamente pelas organizações dos Movimen-tos Negros no auge da ditadura militar e em pleno regimede exceção.

Os Movimentos Negros das décadas de 1970 e 1980, ao colocarem em suas agendas as denúncias de racismo institucional, de racis-mo à moda brasileira e da farsa da demo-cracia racial, demarcaram um campo de força política imprescindível na conquista por direitos civis e materiais. Apesar do período de repressão militar, surgiu em São Paulo o Movimento Negro Unificado (MNU) contra o Racismo – uma reação à ideologia dos militares que apregoavam e sustentavam a existência da democracia racial no Brasil.

No final da década de 1980, foi inequívoco o avanço dos Movimentos Negros no seu projeto

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político de denuncia do racismo institucional. É preciso lembrar que o Regime Militar pregava fortemente a apologia à democracia racial. É importante também ressaltar a ine-gável contribuição desses segmentos que, com suas diferentes correntes e tendências, vêm contribuindo na construção de políticas afirmativas de valorização da população negra.

Na atualidade, notaram-se alguns avanços como nunca vistos antes. Após a Marcha 300 Anos da Imortalidade de Zumbi, realizada no dia 20 de novembro de 1995, em Brasília, e da III Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada em agosto de 2001 na cidade de Dur-ban na África do Sul, aflorou-se a discussão sobre as reparações por meio de ações afir-mativas, a exemplo da política de reserva de vagas – as “cotas” – no ensino superior das universidades federais brasileiras.

Esse salto organizativo dos movimentos sociais negros, nacional e internacional, fez surgir no cenário capixaba muitas organi-zações não governamentais com estratégias de enfrentamento ao racismo institucional por meio da defesa do direito à diferença e da implementação de políticas públicas afirma-tivas por parte dos governos. Após os anos de 1980, considerando as diferentes correntes e tendências dos Movimentos Negros, foram criadas várias entidades negras com estra-tégias de lutas diferenciadas. São exemplos dessa época o Centro de Estudos da Cultura Negra (Cecun-ES), a União de Negro (Unegro)

e o Círculo Palmarino – eixo de formação e de organização; Entidades de Mulheres Negras Oborin Dudù – eixo de organização política das mulheres negras; o Instituto Elimu Professor Cleber Maciel – eixo de pesquisa e de for-mação; o Grupo de Dança Negraô, o Hip-Hop Nação Zumbi Ojab – eixo de cultura negra; e o Fórum Estadual da Juventude Negra (Fejunes) – eixo político de luta contra o extermínio da juventude negra capixaba.

Considerando o que estabeleceu a Lei n° 10.639/03, outras organizações surgiram no cenário educacional capixaba em âmbito ins-titucional. Algumas Secretarias Municipais de Educação criaram em suas estruturas as Coordenações de Estudos Afro (Ceafros) A Se-cretaria Municipal de Cidadania e Direitos Hu-manos de Vitória criou o Conselho Municipal do Negro (Conegro). A Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) fundou, em 2008, o Nú-cleo Estudos Afro-Brasileiros (Neab).

Este ensaio, das trajetórias dos diferentes movimentos negros no Brasil, apontou a saga e a força de uma população, que apesar de sua invisibilidade social tem contribuído para a formação e desenvolvimento do povo bra-sileiro.

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Quando o Mucane foi inaugurado no prédio do antigo Departamento de Estatística do Espírito Santo, a promessa de reforma do espaço já estava presente. Afinal, a edificação era velha e estava caindo aos pedaços.

Os salões do segundo pavimento tremiam sob os pés dos capoeiristas e bailarinos de dança afro. Se chovia, as brechas no telhado vazavam água pela parede, criando poças no já desgastado chão do Museu. A triste facha-da, com ares de abandono, não representava a importância histórica e cultural das negras e dos negros que construíram e ainda cons-troem o Espírito Santo.

A cada ano, seja nas comemorações do ani-versário da Lei Áurea, seja nos eventos que marcavam a morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares, era reivindicado o olhar das au-toridades públicas para as condições precá-rias do Mucane.

E olha que não foi só uma questão de “es-perar” alguma “providência” do estado... No desejo de mudar a realidade, vários parceiros foram acionados: engenheiros e arquitetos elaboraram projetos, frequentadores deram um “jeitinho” nas pendências mais urgentes,

recurso financeiro chegou a ser captado no exterior. Houve até a realização de uma visita técnica no espaço para dar início às obras. Porém, nada foi concretizado.

Agora, 19 anos após a sua criação no papel, o Mucane tem a chance de se tornar um MUSEU de fato, com infraestrutura para receber a sociedade capixaba, especialmente, aqueles que anseiam pela valorização da cultura e da história dos seus ancestrais.

As obras de restauração e de ampliação do Museu representam muito mais do que me-lhorias nas instalações físicas do prédio. Ela é a metáfora de um novo começo, a possibili-dade – no presente – do passado e do futuro, da memória e dos desejos.

Há beleza nos andaime, cimento, fios e esca-das. Há poesia nas descobertas dos afrescos, expressões de uma época em que a abolição da escravatura ainda era uma realidade re-cente. Há desejos e esperanças na poeira das salas.

Os espaços vazios estão prenhes de existên-cia e movimento. As janelas e portas, abertas para o devir.

[re] forma[re] instauração[re] construção

Fernanda de CastroFotos: Ariny Bianchi

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Na solenidade de entrega do prédio, em 13 de maio de 1994, para a instalação do Mucane, o então governador do estado do Espírito Santo Albuíno Azeredo afirmou que essa ação governamental tornava o projeto irreversível, mesmo que ainda não houvesse uma data oficial, nem recursos necessários para que o museu entrasse em funcionamento.

A previsão do chefe do poder executivo capixaba estava certa. A não ser por um de-talhe: o responsável por tornar o museu um caminho sem volta não foi a doação do prédio pelo poder público, mas sim a atuação social, sobretudo, de negras e de negros que aposta-ram no Mucane e se movimentaram para que toda a luta pela criação do espaço não fosse em vão. A professora Madalena Correia, in-tegrante da Pastoral do Negro, reconhece a importância do aspecto legal garantido pela iniciativa estatal, mas ressalta a apropriação do espaço pelos movimentos civis organiza-dos como o principal fator de existência da instituição.

Nesses quase 20 anos de existência, o Mucane manteve as portas abertas apesar da falta de orçamento, de funcionários e de infraestrutura adequada. Ele foi o palco do encontro de diferentes atividades culturais, políticas e educacionais realizadas por diversos profissionais e grupos que, voluntariamente, dedicaram parte do seu tempo para dar vida ao museu, mesmo sem contar com o apoio do poder público estadual.

Para essas pessoas envolvidas na criação e na manutenção do Museu, a palavra de or-dem era ocupar. Ariane Meireles, professora e fundadora do grupo Negraô, lembra que Verônica da Pas – uma das principais articu-ladoras desse movimento – “repetidas vezes, disse pra gente ocupar o espaço do museu porque politicamente isso fortalecia o movi-mento negro capixaba. Então a gente enten-deu essa mensagem e foi por causa dessa mensagem – que a gente achou legítima – que nós ocupamos o espaço”.

A ocupação foi uma estratégia de resistência calculada. Tudo girava em torno desse sentido: ocupar para resistir. O artista plástico Zuilton Ferreira recorda o rodízio que faziam para garantir as portas abertas: “Renato Santos ia de tarde. Passava à tarde todinha lá sozinho tomando conta do espaço pra não ficar fechado. Ele fez isso. Várias Vezes. Me ligava: ‘oh, hoje você não precisa vir não’. Elias saía do serviço pra ir ao Museu pra gente não deixar o espaço fechado”.

Outra estratégia utilizada para movimentar o Mucane foi a criação da figura do “padri-nho”. Os padrinhos do Museu foram escolhi-dos entre as pessoas envolvidas no processo de discussão da instituição. Eles emprestavam a sua credibilidade e visibilidade ao Mucane, conferindo-lhe peso político. Mas não só isso. Algumas dessas pessoas concederam mais do que o seu prestígio e deram uma contribuição maior na organização dos eventos realizados.

Ocupar e resistirQuando as teias de aranha se juntam, elas podem amarrar um leão (provérbio africano)

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Fernanda de Castro

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Nesse contexto, o papel desempenhado pelo poder público estadual sempre foi o de coadjuvante, embora as diversas gestões te-nham sido sistematicamente tencionadas a assumir o Mucane enquanto uma responsabi-lidade do estado. O descaso das autoridades é lembrado por Elias Barcelos, que compara a situação do espaço ao processo de abolição da escravatura no país: “o governo do estado achou que ‘já deu o prédio’, já fez muito. Fez um decreto doando o prédio, ‘já deu demais’. Igual à Lei Áurea, né? Toma esse negócio aí, a partir de hoje são ‘livres’”.

Faltava de tudo no Mucane, desde água para beber até funcionários para limparem o espaço. Não por acaso, o Museu, ao longo de sua história, além dos “ocupantes”, contou com o apoio de artistas, dos frequentadores, de sindicatos e de empresas locais. Em vários momentos, os envolvidos com a ocupação do espaço recorreram aos pequenos comercian-tes da região para solicitar ajudas diversas. Na maioria das vezes, tratava-se de contribuições pequenas e informais. Segundo Zuilton, a estratégia para conseguir algo junto aos co-merciantes era simples: bastava dizer que era para o museu: “com os comerciantes dali eu peguei muita coisa assim: ‘oh, eu quero essa sacola aqui’. ‘Ah, é pro museu?’. ‘É.’ ‘Então leva!’”.

Isso sem falar dos recursos financeiros in-vestidos pelos próprios envolvidos. Até a faixa de identificação do Mucane foi confeccionada pelo grupo. Elias se lembra da época em que mandou fazer o material: “eu já era enge-nheiro. Tava trabalhando – não ganhava bem ainda. Mas eu fiz as faixas, falei ‘eu vou fazer a faixa’. Pra pendurar a faixa eu chamei outra pessoa. ‘Tem que ter uma máquina, uma fura-deira pra pendurar essa faixa’. Ninguém tinha. ‘Vamos arranjar’. E aí, penduramos as faixas”.

O Museu é um trabalho de muitas mãos e de muitos corações. Foi a união dos esforços que possibilitou que o Mucane se tornasse uma referência positiva para a história e para a cultura negra. Um lugar que, mesmo com uma infraestrutura precária, contribuiu so-bremaneira para [re]pensar e para valorizar a participação do negro na sociedade capixaba.

Ocupar para existir

Não é possível mensurar o número de pes-soas que acessaram o Mucane nesses anos de funcionamento. Sabe-se, todavia, que o público era bastante diversificado. Elias lem-bra que “muitas pessoas passaram por lá vi-sitando o museu”. Entre o público, ele conta que havia muitos curiosos que esperavam en-contrar instrumentos de castigo do tempo da escravidão: “eles [os curiosos] pensavam ‘vou ver o que tem ali de tortura’. Aí chegava e não via nada disso”. Para além dos curiosos, a instituição recebia muitas pessoas interes-sadas em participar das ações realizadas ou em busca de informações para desenvolverem pesquisas e trabalhos de escola.

Entre as várias atividades que existiam no espaço, algumas se destacaram, seja pelo tempo de duração seja por terem ficado na memória da maioria dos entrevistados para essa revista. O destaque fica para a cultura. Ariane acredita que o Mucane sempre existiu como um espaço cultural: “nunca vi o Mucane de outro jeito. Do que eu conheci da década de 90 até agora, eu sempre enxerguei como um espaço cultural”. E não é para menos. Em todos esses anos foram realizadas oficinas de dança afro, de música e de capoeira, bem como exposições artísticas e diferentes even-tos culturais.

Atividades realizadas no Mucane

Pré-vestibular

Se hoje o sonho de cursar uma graduação se tornou mais palpável para uma parcela con-siderável da sociedade brasileira, na década de 1990 a situação era bem diferente. Naquele momento, não existiam políticas voltadas para a democratização do ensino superior, e apenas algumas poucas pessoas tinham o privilégio de estudar nas universidades.

O sistema excluía, sobretudo, a população negra que, salvo algumas realidades, não tinha recursos para financiar seus estudos em uma instituição particular. Muito menos

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reunia as condições para passar nos concor-ridos vestibulares públicos. Em seus tempos de estudante na Ufes, Edileuza de Souza lem-bra que uma das queixas entre o grupo de ne-gros que frequentava o campus era a solidão. “Naquele momento, não se discutiam cotas. Nós éramos sós. Porque no curso de História éramos três. Na biologia só um e por aí vai...”.

Para transformar essa realidade, foi criado o primeiro curso pré-vestibular voltado a es-tudantes carentes e negros do Espírito San-to, iniciativa da coordenadora do Mucane Verônica da Pas. A novidade foi anunciada em 1995 dentro da programação que marcou os 300 anos de morte de Zumbi dos Palmares.O pré-vestibular usava toda a estrutura adminis-trativa do museu, exceto as aulas que eram realizadas em salas cedidas por uma escola particular. “O colégio Agostiniano cedeu duas salas gratuitamente pro curso funcionar. Nós sentamos com eles, explicamos a razão. As irmãs cederam – é um colégio de irmãs – duas salas pra gente à noite”, explica Elias, que foi professor de matemática do curso. Já no primeiro período de inscrição, o pré-vestibular teve mais de quatrocentos candidatos. Des-ses, aproximadamente 100 – o número máxi-mo de pessoas que cabiam nas salas – foram selecionados para participar.

No curso, os estudantes tinham aulas dia-riamente sobre os conteúdos cobrados no vestibular, mas também discutiam temas rela-cionados à cidadania. A ideia da negritude, do pertencimento étnico, da questão de moradia, de saúde e da educação, isso tudo estava pre-sente. Assim, o curso não era só voltado para o vestibular. Os alunos eram sensibilizados para refletirem sobre a sua realidade: “Pedía-mos pra eles se perguntarem: por que a gente está estudando? Pra quê a gente está estu-dando? A gente quer melhorar o mundo, quer melhorar as condições de vida?”, explica Elias.

Ele lembra ainda que o pré-vestibular levava outras pessoas ligadas ao movimento negro para fazerem debates e palestras. “Tudo com muita dificuldade. Eu me lembro que era um negócio pra poder fazer a vaquinha pra poder trazer alguém. Só pra pagar a passagem!”, conta Elias. A estratégia da vaquinha foi lan-çada em outros momentos pelos professores – todos voluntários – que se uniam para com-prar café e outros alimentos. “Como a aula era à noite, das 19 às 22h, às vezes a gente juntava e fazia um lanche”. Até o material didático utilizado pelos professores era fruto de doação: “tinha umas editoras, eu me lem-bro da Editora Saraiva, que é uma grande Edi-tora. Inclusive essa empresa doou livros pra gente”, completa o professor de matemática. Outros livros podiam ser consultados na bibli-oteca do Mucane, que ficava à disposição para quem quisesse pesquisar. Elias se comove ao lembrar que o museu já teve uma biblioteca: “a gente tinha lá... o museu tinha uma bibli-oteca! Impressionante! Tinha uma biblioteca com estantes e com livros”.

O pré-vestibular do Museu durou um ano e meio, tempo suficiente para possibilitar que seus alunos participassem de dois vestibu-lares da Ufes. Apesar da evasão, por diver-sos motivos, alguns estudantes conseguiram ingressar na universidade. “O primeiro ves-tibular a gente tem a aprovação de um aluno na Ufes. Isso pra nós foi, assim, incrível”, re-memora Edileuza sobre a primeira conquista.

O curso preparatório plantou algumas se-mentes. Não só pelas aprovações conquista-das nos vestibulares da única universidade federal do Espírito Santo, mas também porque ajeitou o terreno para a criação de outras ini-ciativas, como o pré-vestibular Dandara por meio do qual, há mais de dez anos, profes-

Detalhe do piso encontrado durante a restauração do Mucane.

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sores voluntários preparam jovens e adultos de baixa renda para os processos seletivos das instituições de ensino superior capixabas.

Dança afro

“Foi como se eu visse o NegaÔ dançarNegaÔ fez do meu coração o seu tambor”Zé Moreira – música “NegaÔ”

Quem era um pouquinho mais velho nos anos 1990 deve lembrar-se do Negraô. Durante o auge do axé music, o grupo se destacou como o principal representante da dança afro no Espírito Santo. Trata-se de um grupo profis-sional que nasceu nas dependências da Ufes. O bailarino Renato Santos, um dos seus fun-dadores, lembra que “o grupo nasceu já como o movimento mais importante de dança que tinha no Espírito Santo na década de 90; como protagonistas da dança afrodescendente que abriram frente para outras danças e estiveram na dianteira de discussões sobre a negritude nos diferentes espaços capixabas”, relata.

Naquela época, a então coordenadora do Mucane, Verônica da Pas, com a perspec-tiva de ocupar o espaço, convidou o grupo para desenvolver algumas atividades. Aceito o convite, o Negraô iniciou então uma sólida parceria com o Museu. Durante anos, todos os sábados, os maltratados salões do local se tornavam o ponto de encontro da dança afro em Vitória. De acordo com Ariane Meireles, as oficinas eram gratuitas e abertas ao público.

Essas atividades reuniam pessoas de diferen-tes cores, classes sociais e profissões: “nas nossas aulas, tinham pessoas que eram ad-vogados, tinham lixeiros, tinham empregadas domésticas, tinham médicos. Tinha de tudo. E em grande quantidade”. Zuilton Ferreira comenta entusiasmado que chegou a conta-bilizar mais de 100 pessoas em um único en-saio.

Nas oficinas, além de ensinarem técnicas de dança, os integrantes do Negraô aprovei-tavam para discutir a cultura negra e, assim, atribuirem sentidos e significados ao museu e às atividades ali realizadas. As conversas ocorriam ao final de cada aula e permitiam aos integrantes do grupo debaterem sobre a história e a cultura afro-brasileira com os alu-nos. “Nós não éramos integrantes de nenhu-ma Umbanda ou Candomblé, né. Mas a gente falava disso sem ter medo. A gente tacava todos os toques de Candomblé e quem não quisesse ficar que fosse embora. Isso foi uma coisa boa que aconteceu no Mucane, né?”, lembra Ariane.

A preocupação do grupo em conscientizar os alunos não era em vão. Mesmo com as músicas do axé music em todas as paradas de sucesso, ainda era grande o preconceito de boa parte da população em relação à cultura de origem africana. Ariane explica que para o grupo entrar nas comunidades e realizar ofici-nas era obrigatório começar com uma música popular a fim de fazer as pessoas se acostu-marem. “Se chegasse logo com a percussão,

Ceia de Cristo, Nice Avanza. Imagem que fez parte do 1° catálogo lançado pelo Mucane.

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era macumba. E isso era coisa feia, do diabo”, conta. Infelizmente, a professora afirma que ainda hoje não é muito diferente: “na própria Ufes, onde dei aula durante dois anos com a disciplina optativa de Dança Afro-Brasileira, eu tive alunas que não se matricularam porque achavam que ia ter gente ‘pegando santo’. As-sim que elas falavam”.

A oficina no Mucane também era um celeiro de talentos em que o Negraô buscava novos integrantes. Muitos alunos que se destaca-ram nas aulas passaram a integrar o grupo e a fazer parte dos espetáculos. Foi criado, inclusive, um grupo mirim chamado Arê Arô, formado por quatro crianças – Ana Paula, Lívia, Washington e Josiane –, moradores da Grande Vitória. Maria França, frequentadora do espaço e mãe de dois integrantes do grupo mirim, lembra com saudades da época: “foi uma época linda, maravilhosa, que os meus filhos amaram”.

Depois das oficinas, os integrantes do Ne-graô continuavam no Mucane para ensaiar as apresentações e, dessa forma, passavam boa parte do dia no espaço. Além disso, o grupo sempre foi presença certa na programação dos eventos do lugar. Seus integrantes re-alizavam as atividades de forma voluntária e não contavam com nenhuma ajuda de custo para transporte ou para alimentação. Muitas vezes, precisaram recolher dinheiro entre os próprios alunos para custearem a compra de água e de outros materiais para a manutenção do espaço. Sobre as dificuldades encontradas nessa época, Ariane recorda os mutirões de limpeza que eram realizados constantemente “pra gente dar aulas às 10h, tinha que chegar lá 8h pra poder dar uma lavada em tudo”. A limpeza ocorria antes e depois das atividades e também contava com a ajuda dos alunos.

A precária infraestrutura do prédio era outro problema. Maria França se lembra do Mucane como o “lugar do balanço”: “ali, conforme as pessoas dançavam, o prédio balançava mui-to. Como ele estava velho, o chão balançava mesmo. Balançava e fazia barulho”. A preocu-pação com a segurança das pessoas que fren-quentavam o lugar era grande. Para Edileuza, as atividades do Negraô no Mucane podiam colocar as pessoas em risco. “Porque a dança afro fazia com que as pessoas pulassem e tal, o impacto podia arrebentar o assoalho de ma-deira. Então nossa preocupação também era com as pessoas que ali circulavam”, conta.

Os obstáculos não foram apenas a falta de infraestrutura e de recursos para a realização das oficinas. Segundo Ariane, havia dificul-dades também na relação com a delegacia da Polícia Civil que estava instalada no térreo do prédio. A professora destaca a existência de uma relação hostil que se manifestava em algumas atitudes dos policiais, como a inter-dição sem motivos de vagas de garagem exis-tentes na frente do Museu ou o arremesso de pedras no teto do prédio para assustar os alunos que estavam no andar superior. Sobre essa relação, Ariane afirma que “eles [os poli-ciais] nem olhavam pra nossa cara. E a gente tampouco pra eles, né. Mas nunca houve diá-logo. Eles faziam questão de nos olhar como se a gente fosse menos. Cidadão de segunda categoria”. O coreógrafo e bailarino Gil Mendes também se recorda das intimidações. “Eles ficavam incomodados com o barulho. Se a gente fosse pra última sala, eles iam já muito arrogantemente também. Então, eles criaram algumas situações desagradáveis”, conta.

Mesmo com as adversidades, o Negraô manteve o seu compromisso com o Mucane até o ano de 2003.

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Capoeira

É difícil falar de resistência negra sem lem-brar a capoeira. Reconhecida como patrimônio cultural do Brasil desde 2008, ela foi impor-tante arma dos escravizados contra o sistema. Não por acaso, desde o início, essa prática foi associada à marginalidade, sendo inclusive criminalizada pelo estado brasileiro.

No Mucane, a capoeira também teve sentido de resistência, pois ajudou – ao lado de outras atividades – a manter o espaço de portas a-bertas. Nas memórias de Maria Lúcia da Silva, a capoeira tem um papel de destaque: “a ca-poeira era muito presente. As lembranças que eu mais tenho em relação ao museu são das oficinas de capoeira”.

As lembranças de Maria Lúcia não são infundadas. A ginga e os ritmos da capoeira fizeram parte do cotidiano do Mucane. O Mestre Alcebíades Cabral explica que as aulas eram realizadas no período noturno, geralmente nas terças e quintas-feiras, e duravam em torno de duas horas: uma hora para as crianças e outra para os adultos. Nesse tempo, os alunos aprendiam os movimentos, as músicas e as histórias da expressão banto-brasileira com professores voluntários.

Ser capoeira no Mucane não era uma das tarefas mais fáceis. Além da infraestrutura precária, nada favorável à realização das ativi-dades, a relação de hostilidade com a delega-cia foi uma constante troca de acusações e de hostilidades.

Outro grupo de expressão que ministrou au-las no espaço foi o Cativeiro, um dos maiores do Brasil, criado na década de 1970 no estado de São Paulo e que chegou ao Espírito Santo 20 anos depois pelas mãos do contra-mestre Anderson Rubin dos Anjos, o Cabelo, como era conhecido, que foi professor no Mucane.

A dobradinha museu-capoeira também contou com apoio institucional da Federação Capixaba de Capoeira, que fez algumas das suas atividades no espaço. “Inclusive a nossa eleição da Federação foi feita no espaço, em 1997”, lembra Mestre Cabral. Além disso, o som dos atabaques e dos berimbaus abrilhan-tou vários eventos realizados no lugar.

A importância da capoeira para o Mucane reside ainda na sua capacidade de fazer a li-gação entre a instituição com as comunidades

do entorno. Sobretudo aquelas em condições econômicas desfavoráveis. Zuilton salien-ta que a capoeira fez a ponte com a Fonte Grande, com o Moscoso e com o Morro do Romão e também contribuiu para a formação de novos mestres.

Ao unir o seu axé às outras forças exis-tentes, a capoeira colaborou sobremaneira para movimentar a “grande roda” em defesa da existência do Museu. Hoje, com a possibili-dade de concretização do Mucane, a capoeira se apresenta como um componente impres-cindível na luta pela preservação e pela valo-rização da história, da memória e da cultura afro-brasileira.

Iê! A capoeira pede licença para entrar.

Oborim Dudù

Negra preta mulher brasileira, preta...Não admite ser subjugada, passada pra trásRapin Hood – música Tributo às mulheres pretas

Ser mulher no Brasil não é uma tarefa das mais fáceis. Embora algumas conquistas – como a eleição da primeira presidenta e o aumento do nível de escolaridade da popu-lação de mulheres – apontem para a supera-ção do machismo no País, a caminhada pela igualdade entre os gêneros está longe de terminar. As brasileiras, em pleno Século XXI, permanecem sub-representadas em pra-ticamente todos os campos profissionais de relevo político e econômico. São vítimas de abusos diversos e recebem salários menores que os dos homens, mesmo quando ocupam o mesmo cargo.

Quando a análise da situação da mulher pas-sa pelo recorte racial, o cenário torna-se mais perverso. Os piores indicadores das pesquisas nas áreas da saúde, da educação, da violência e do mercado de trabalho são reservados às mulheres negras. Essa dupla exclusão impacta na qualidade de vida das afro-brasileiras, que precisam multiplicar suas forças para enfren-tarem os efeitos do preconceito e da discrimi-nação.

No Mucane, um grupo de negras atentas às suas especificidades se uniu para debater e combater o racismo e o machismo existentes. Desse encontro nasceu, em julho de 1995, a

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Associação de Mulheres Negras Oborin Dudù. Essa entidade surge no calor das comemo-rações do tricentenário da morte do líder quilombola Zumbi do Palmares. “Então, quan-do a gente se dá conta que nas festividades de Zumbi dos Palmares não tinha nada especí-fico em relação às mulheres negras, mais uma vez a gente se junta. E essa junção começa com uma articulação dentro do Museu e, a partir daí, a gente cria a Oborin Dudù”, conta Edileuza de Souza, uma das fundadoras. Ela explica ainda que a semente havia sido plan-tada em 1988, quando algumas das fundado-ras da Oborin Dudù criaram o primeiro grupo de mulheres negras do Espírito Santo.

As reuniões da Oborin Dudù aconteciam uma vez por semana. A professora Maria Lígia Rosa pontua que as discussões eram realiza-das no espaço do Mucane: “nos reuníamos to-dos os sábados. Éramos muitas. Éramos mui-tas mulheres negras: de Cariacica, de Serra, de Vitória”. E arremata: “é, mas tudo era horrível. As instalações, horrorosas”.

Como aconteceu com outros grupos que ocuparam o Mucane, as integrantes da enti-dade tiveram que colocar a mão na massa para manter o prédio. “Teve uma época que nós funcionamos lá embaixo. Edileuza trouxe os móveis da casa dela. Aí, a gente, aos sába-dos, ia lá pra limpar, pra arrumar, pra fazer isso e aquilo. Historiadoras, pedagogas, pro-fessoras, quem só era militante. Todas nós”, lembra Maria Lígia.

As mulheres da Oborin Dudù cumpriram im-portantes papéis no museu: organizaram even-tos culturais, brigaram pela reforma do espaço e desenvolveram atividades nas mais diversas áreas. Em praticamente todas as ações do Mu-

cane é possível identificar a participação de uma ou mais integrantes do grupo. Inclusive, uma delas, Verônica da Pas, foi homenageada na 2° Vigília Cultural, realizada em novembro de 1996, um mês após o seu falecimento por meio do 3° Encontro Estadual Ser Mulher Ne-gra – Verônica da Pas, que reuniu as capixabas para discutirem alternativas de promoção das igualdades racial e de gênero.

A Oborin Dudù continua ativa até os dias de hoje, quase 17 anos após a sua fundação.

Música

Linguagem artística que desencadeia sen-timentos diversos, a música desempenha infindáveis funções sociais, religiosas e cul-turais. Em alguns lugares da África, por exem-plo, a música é um elemento de comunicação por meio do qual informações complexas são transmitidas em um único código rítmico. En-quanto moem o trigo, africanas entoam cân-ticos que coordenam o esforço e marcam a cadência para que cada uma delas faça movi-mentos no tempo certo.

Os compassos da música também marcaram as atividades do Mucane; seja nas apresen-tações musicais, seja na realização de oficinas, os sons ecoados deram o tom da resistência. Zuilton Ferreira ressalta que o grupo “Samba sim, Violência não” chegou a se apresentar oito vezes no museu para denunciar o des-caso do poder público com o espaço.

Além do grupo de samba, músicos reconhe-cidos no cenário cultural capixaba também emprestaram dois bens preciosos – talento e

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tempo – para movimentar o museu. “É pre-ciso registrar parceiros como Batchá, Danilo Diniz, Jonatan Silva, Cesinha. Em toda ativi-dade do museu que envolvia música eles es-tavam presentes. Eles conseguiam o som. Se o som custava mil, a gente conseguia por cem”, destaca Edileuza.

Por volta de 1999, o professor e maestro Washington Santos passou a dar oficinas de música afro-brasileira para crianças, adolescentes e adultos, de segunda-feira a sábado. Foi dele também a criação do Coral Afro do Mucane formado por alunos da oficina de canto. A formação de um grupo para cantar músicas de origem afro-brasileira era uma ideia antiga dentro da instituição.

Além do Coral Afro, Washington montou a Orquestra de Cavaquinho do Mucane, com-posta por crianças e adolescentes negros. A iniciativa surgiu da procura pelos instrumen-tos voltados ao samba e ao chorinho que nor-malmente são deixados de lado nas escolas de música tradicionais. Outros instrumentos também tiveram lugar no museu, como o vi-olão, o contrabaixo, o bandolim, a percussão e a bateria por meio de oficinas ministradas por professores voluntários.

A participação dos músicos no Mucane com-põe uma polifonia da resistência em que múl-tiplas vozes – algumas mais altas, outras mais baixas, porém todas importantes – coincidem na busca de uma nova percepção da cultura.

Artes

Quando o sergipano Zuilton Ferreira chegou ao Espírito Santo na década de 1980, não ima-ginava que junto a outros artistas iria partici-par de importantes exposições no Mucane.

Entre os anos de 1990 e 2000, o Museu manteve as portas abertas para os interessa-dos em apresentar a sua arte. Quem quisesse chegar lá, independente da linguagem artísti-co-cultural que desenvolvia, era bem-vindo. A abertura do espaço resultou na realização de numerosas exposições, grandes e pequenas, coletivas e individuais, de diferentes artistas e com temáticas e durações variadas.

Zuilton Ferreira foi um dos primeiros que se colocou à disposição para ocupar a casa. Já consagrado no cenário estadual, o artista doou sua coleção completa de instrumentos musicais africanos para o acervo do Museu. Por essa época, as peças musicais feitas de cerâmica já tinham circulado por importantes espaços culturais do Espírito Santo. O ar-tista conta como suas obras foram parar no Mucane: “encontrei com Verônica na Santa Casa e conversamos rapidamente. Aí, ela me falou do Museu. Marcamos e sentamos lá no Mucane. Como artista, eu já tinha essa ex-posição, já tinha esse conjunto de peças. Aí entrei doando. Desse dia em diante eu não saí mais de perto do Museu”.

Detalhe do afresco encontrado durante a restauração do Mucane.

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O “perto” de Zuilton deve ser entendido ao pé da letra. Durante muito tempo, o Mucane foi a segunda casa do artista, uma causa pela qual ele se entregou de corpo, alma, mãos e coração. “A gente achava que era um mo-mento de resistência. Resistência tem que ter resistência. Viesse o que viesse”, conta.

Já incorporado ao Museu, Zuilton deu a ideia de homenagear o artista Balduíno de Oliveira, “El Africano”, no evento que marcou os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. “A ideia era fazer outras exposições. Daí surgiu a ideia de puxar o Balduíno. Eu falei: ‘Se a gente vai trazer pessoas, tem o Balduíno’. Aí ele cedeu o material, eu fui lá, montei toda a estrutura. Nós levamos todo o material de Balduíno, a parte escrita, os livros dele estavam lá pre-sentes e ele foi também, participou”, lembra o ceramista. O nome de Balduíno, alguns anos depois, foi cotado para a biblioteca do espaço. “O que a gente queria lá no museu é que a biblioteca levasse o nome dele, né? Biblioteca Balduíno, El Africano. Porque o Balduíno na verdade era um intelectual. Ele se tornou um cara intelectual. Vivia do pensamento dele”, conclui Zuilton.

Nos anos seguintes, o ceramista continuou colaborando por meio de exposições indi-viduais e de participação em mostras coleti-vas. Uma delas, a exposição 500 anos de Re-sistência do Povo Brasileiro em homenagem à capixaba Nice Avanza, que chegou a reunir 21 artistas. Entre eles estavam Irineu Ribeiro, Sa-grillo, Angela Gomes, Luciano Cardoso e Vanda Penedo. Estima-se que mais de trezentas pes-soas passaram pelo espaço para conhecerem as obras.

Outras importantes exposições também fizeram parte da história do Museu: “Mostra Coletiva” (1996), realizada dentro da pro-gramação da 2° Vigília Cultural, composta pe-los trabalhos de Zuilton Ferreira, Irineu Ribeiro e Mazer da Cunha Pereira; “Terra: cerâmica em movimento” (1999), que apresentou as obras de Zuilton Ferreira, Irineu Ribeiro, Cassiani

Satler, Robocop e Bi Farias; “Alguns sentidos da cultura capixaba” (2000), coletiva con-stituída por mais de 20 artistas; “Pequenas coisas” (2001), que uniu em um mesmo es-paço música e artes plásticas.

As exposições eram prestigiadas por um público diverso. Principalmente, grupos de estudantes que eram levados pelos colégios. Eduardo Felipe Scardua conserva na memória fragmentos desses momentos: “o museu re-cebia alunos de diversas escolas. Eles iam, tinham palestras, conheciam como eram as coisas”.

Além de integrarem as mostras, alguns artistas ofereceram oficinas gratuitas para a população capixaba no espaço do museu. “Zuilton e Irineu deram aula de cerâmica, Maressa deu aula de pintura com massa de modelar”, informa Edileuza. Houve também aqueles que fizeram jornada tripla: participaram de mostras, ministraram oficinas e produziram suas obras no Mucane. Os ateliês ocupavam espaço no andar térreo do velho e desgastado edifício.

Zuilton, que manteve uma sala no mu-seu, conta que foi preciso recorrer às artes plásticas para ocupar a parte de baixo. Tanto tempo no espaço rendeu numerosas reporta-gens sobre a estreita relação entre o artista e o Mucane, que foram publicadas pelos jornais capixabas. De fato, a experiência foi marcante para o ceramista, que lembra com emoção desse momento da sua história: “foi importantíssimo pra mim, que eu podia ter feito isso fora, em outro lugar. Mas eu fiz ali dentro. Quer dizer, marcou”. E complementa: “eu participei de quase tudo do Museu. Mas não fui eu o artista do espaço. Tivemos mui-tos artistas bons que passaram pelo Mucane. Assim, nós fomos os artistas”.

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Agentes de Pastoral Negros

Foi a partir das comunidades eclesiais de base – movimento religioso ligado à Igreja Católica com o objetivo de articular a leitura da Bíblia à vida das pessoas – que a entidade Agentes de Pastoral Negros (APNs) surgiu. Com quase trinta anos de militância social e política no Brasil, a APNs é uma das maiores entidades do movimento negro organizado do território nacional.

A criação dos Agentes de Pastoral Negros no Espírito Santo, na década de 80, marca a entrada dos negros católicos no combate ao racismo e na luta pela valorização da popu-lação negra na história do país. A professora Madalena Correia abraçou a luta da entidade em Vitória. Foi quando tomou conhecimento da dimensão das questões relacionadas aos afro-brasileiros. Ela explica que chegou a co-ordenar os APNs, momento em que surgiu a parceria com o Mucane: “Eu fui para o Mu-cane através dos Agentes de Pastoral Negros. Porque a gente tinha uma estratégia na época de ocupação”.

Os agentes negros realizavam reuniões uma vez por mês no museu, sempre aos domin-gos, de 9 às 12h. Além da APNs, outras asso-ciações também usavam o espaço do Mucane para fazerem os seus encontros. As reuniões periódicas contribuíam para manter a agenda do museu cheia.

A parceria entre o museu e a entidade – representada principalmente pela figura de Madalena – era tamanha que as atividades se confundiam. Em vários momentos, APNs e Mucane se fundiam num só todo que envolvia outros atores. “Acho que foi soma. Ali foi um coletivo”, Madalena resume.

Ações comemorativas

“Nós fomos um dos primeiros movimentos a revitalizar o centro”, afirma Zuilton Ferreira a respeito do burburinho criado pelas ações promovidas pelo Mucane na capital do Espírito Santo. As pessoas e as entidades envolvidas na ocupação do Museu produziam as mais diversas atividades de caráter político e cultural que movimentaram as ruas do Centro de Vitória em boa parte do ano. Longe de terem uma função meramente comemorativa ou festiva, as ações promovidas, na maioria das vezes, tinham o propósito de dar visibilidade e de promover o Museu, chamar atenção para a necessidade de reforma do espaço, para divulgar a cultura negra e para colocar os problemas enfrentados pela população afrodescendente na agenda do dia.

Duas importantes datas da história afro-brasileira raramente passavam despercebidas no Mucane: o “13 de maio” – aniversário do museu e da abolição da escravidão no País – e o “20 de novembro” – dia nacional da Consciência Negra. Na ocasião dessas duas datas, acontecia uma programação extensa de atividades. O ativista Elias Barcelos se recorda de ter participado intensamente do projeto “Vigília Cultural 300 anos de Zumbi dos Palmares” em 1995. A morte do líder quilombola foi lembrada por meio de uma série de atividades como espetáculo de dança, música, oficinas e exposições que duraram o ano inteiro.

Uma nova Vigília Cultural – com dimensões menores, mas igualmente intensa – ocupou todo o mês de novembro do ano seguinte. A programação fora recheada de debates, de lançamento de livros, de exposições e de ofici-nas, tendo seu ponto alto no ato público re-alizado no dia da Consciência Negra na Praça Costa Pereira, Centro de Vitória. A manifes-tação contou com a distribuição de milhares de panfletos pedindo o fim do racismo. En-quanto os manifestantes clamavam por uma sociedade mais justa, a banda de congo de Roda D’Água ajudava a movimentar o local.

Edileuza de Souza ressalta a relevante parce-ria com as bandas de congo, especialmente as do município de Cariacica: “vinha a banda de congo e a banda mirim de Roda d’Água. Então, todas as atividades tinham bandas de congo

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presentes na festa. Tinha mestre Prudêncio”. Sobre este último, Zuilton complementa: “ele foi uma pessoa muito importante. Quando a gente precisava de uma banda de congo para algum evento ou manifestação, imediata-mente ele comparecia!”.

Para Madalena Correia, foi o apoio desses artistas e militantes que garantiu o sucesso das iniciativas empreendidas pelo Museu: “sempre que a gente acionava, fazia qualquer movimento, tava todo mundo junto com a gente”. As contribuições vinham de todos os lados e englobavam desde os contadores de histórias e profissionais dos penteados afros até os bailarinos das companhias de dança capixaba. “A Cia Homem e a Cia Cumby esta-vam presentes o tempo todo. Era um trabalho completamente voluntário”, pontua Edileuza.

Outra data marcante na trajetória do Mu-cane foi o aniversário de 500 anos do Brasil. O evento serviu para destacar a necessidade de refletir sobre a situação em que vivia o povo brasileiro, mais do que se deixar levar pelo espírito festivo das comemorações oficiais. A ação também teve caráter de denúncia. A pre-sença equivocada da delegacia, mesmo após vários laudos técnicos do próprio estado ates-tando a impossibilidade da sua existência e as fortes chuvas que causaram grandes da-nos ao prédio, foi lembrada com indignação. Nessa época, o Museu também lançou o seu primeiro catálogo, resultado da exposição co-letiva “500 anos de resistência negra do povo brasileiro”, em homenagem à artista plástica Nice Avanza.

Além da capixaba Nice, a agenda do Mucane teve espaço para outras personalidades negras. As homenagens eram feitas no intuito de reconhecer e valorizar a contribuição do povo negro na história do Espírito Santo e do país. “Teve uma para o Cléber Maciel. A família dele foi toda. A mãe, os irmãos, os sobrinho, tudo”, recorda Elias sobre a Missa Afro. Esse evento marcou os dez anos da morte do professor universitário que foi um dos grandes nomes dos estudos sobre os afro-capixabas. Elias lembra ainda da homenagem feita à mulher mais velha do Brasil, Maria Jerônima “uma gracinha, pequenininha”, que

recebeu uma placa comemorativa das mãos da primeira presidente da Oborin Dudù, Nelma Monteiro, e foi saudada com uma celebração ecumênica.

Aliás, a dimensão religiosa sempre esteve presente nas atividades do Mucane por meio de cerimônias que reuniam representantes da Igreja Católica, da Umbanda e do Candomblé. Em uma delas, o Museu foi apadrinhado por Exu, o orixá da comunicação. “Quando houve um momento muito difícil, em que a delega-cia queria tomar todo o prédio, colocando-nos para fora. Foram convidados Pai Rogério de Iansã, D. Dineia de Iemanjá e mais uma senhora de Vila Velha. O Ogã Alcides estava presente, mais umas pessoas de outras casas de Umbanda. E elas bateram as folhas sagra-das em todos os cômodos, convidando Exu a entrar e tomar posse do imóvel. Foi muito bonito!”, conta Madalena.

Nesses quase 20 anos de atuação, o Mucane fez do Centro de Vitória o seu palco por excelência. Por meio de ações envolvendo diversos atores, o museu atribuiu novos sabores e sentidos aos tradicionais endereços da capital, como a Praça Costa Pereira, a Avenida República e o Parque Moscoso, pintando-os com cores vivas dos múltiplos traços culturais do povo negro capixaba.

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O município de Vitória desenvolve uma série de políticas para a promoção da igualdade racial na busca de promover o reconhecimento da importância da in-terseção da história africana na história afro-brasileira e transformar as relações entre os diversos grupos étnico-raciais que convivem no país. Especialmente a partir de 2005, a Prefeitura Municipal de Vitória passou a se orientar pelos princí-pios da igualdade, do respeito à diversi-dade, da transversalidade e da gestão democrática visando à promoção, à pro-teção e à reparação das violações de direitos humanos dos cidadãos e das ci-dadãs de Vitória. Nesse sentido, o mu-nicípio criou em 18 de março de 2005 um departamento para planejar, orientar, coordenar e integrar a política municipal nessa área, posteriormente transformado em Gerência de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

O trabalho que desenvolvemos em relação ao Mucane se insere em um contexto de uma gestão comprometida com políticas que suscitaram a aprovação de inúmeras legislações, programas e ações desenvolvidas em diversas secretarias (Cidadania e Direitos Humanos, Saúde, Cultura, Educação e Assistência Social), dentre as quais destacamos: a inclusão no Plano Plurianual de Investimentos (PPA) de um Programa de Promoção da Igualdade Racial, o apoio institucional ao Fórum Capixaba em Defesa da Liberdade e Tolerância Religiosa, o Projeto Mulher

Negra Cidadã, a participação com o módulo Relações Étnico-Raciais em todos os cursos do Programa de Educação em Direitos Humanos para servidores(as) da Prefeitura, a constituição do Comitê de Avaliação e Acompanhamento das Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial, a reestruturação do Conselho Municipal do Negro, a participação no Fórum Intergoverna-mental de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, a participação no Fórum Estadual de Educação na Relações Étnico-Raciais e a realização anual da Corrida Zumbi dos Palmares, desde o ano de 2006. Explicitadas algumas informações sobre a política para a promoção da igualdade racial, passamos a discorrer sobre a importância do Museu Capixaba do Negro para o Município de Vitória.

O Município assumiu a administração do Museu por meio da Lei Complemen-tar nº 406, de 25 de julho de 2007, que em seu artigo 2º institui o que segue: “O Museu Capixaba do Negro – Mucane, patrimônio cultural do Estado do Espírito Santo, passa a ser administrado pelo Mu-nicípio de Vitória (...)”. Por outro lado, no Diário Oficial do Estado do Espírito Santo, em 26 de maio de 2008, explicitou-se que a Concessão de Uso do referido Museu é por um prazo de 25 anos que pode ser renovado desde que haja interesse entre as partes.

Qual a importância do Museu Capixaba do Negro para Vitória?João José Barbosa Sana Secretário Municipal de Cidadania e Direitos Humanos

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A partir de então, várias iniciativas da administração municipal viabilizaram o projeto de restauração, reforma e implan-tação do museu.

Essas duas informações são muito re-levantes para que possamos entender as ações que o poder público municipal realiza no espaço que entrará em funcio-namento pleno a partir de maio de 2012, após passar por todo um processo de res-tauro e de modernização. O novo prédio conta com espaços para a administração, área de eventos, exposições, café, au-ditório, mezanino, jardim, banheiros, den-tre outros. A área construída é de aproxi-madamente 1.430 metros quadros. O equipamento, quando estiver totalmente concluído, oferecerá acessibilidade às pessoas com deficiência.

Conforme estabelecido pelo Decreto Municipal nº 15.078/2011, o Museu está vinculado à Secretaria Municipal de Cultu-ra e conta ainda com um Conselho Gestor composto por representantes de secre-tarias municipais e de entidades negras sediadas no município com a finalidade de discutir e propor a política cultural da insti-tuição com a participação da comunidade negra na sua administração. Cabe ressal-tar que esta ação está amparada na Lei Orgânica do município por meio do artigo Art. 240, o qual assegura que “constituem patrimônio cultural do Município os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, porta-dores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos forma-dores da sociedade brasileira, nos quais se incluem, através dos incisos I ao V: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações cientí-ficas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifes-tações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisa-gístico, artístico, arqueológico, paleon-tológico, ecológico e científico”. Também o Art. 242 da mesma lei determina que o Município destinará recursos orçamen-tários para a proteção e para a difusão do patrimônio cultural, assegurando, priori-tariamente:

“I – a conservação e restauração dos bens tombados, de sua proprie-dade ou sob sua responsabilidade;

II – a criação, manutenção e apoio ao funcionamento de bibliotecas, ar-quivos, museus, espaços cênicos cinematográficos, audiográficos, vide-ográficos e musicais e outros espaços a que a coletividade atribua significa-do”.

Também não se torna excesso o destaque a alguns dos objetivos da municipalidade em relação ao Mu-cane:

– reconhecer a importância da presença negra na construção da so-ciedade brasileira, em especial, no que se refere à Cidade de Vitória;

– priorizar as ações destinadas à formação e à educação, voltadas às perspectivas museológicas de in-clusão sociocultural;

– divulgar e estimular o conheci-mento da produção artística e cientí-fica afro-brasileira;

– apoiar a formação do profes-sor em relação à aplicação da Lei nº 10.639/2003, que reafirma e atualiza as proposições da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira na Educação Básica. 35

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A celebração de um convênio entre o Governo do Estado do Espírito Santo e a Prefeitura de Vitória, em maio de 2008, sinalizou o início de novos tempos para o Museu Capixaba do Negro (Mucane). A cessão da administração do prédio à Prefeitura foi acompanhada da promessa de restauração do prédio e de adequação das suas instalações por meio do investimento de recursos federais e municipais.

Contudo, a Ordem de Serviço que deu início às mudanças no curso da história do Mucane só teve início dois anos depois do acordo. A princípio, a reforma e a ampliação da edifi-cação estavam previstas para durarem um ano. Mas alguns contratempos, como chuvas, descobertas de afrescos e dificuldade para dar início às atividades, atrasaram a entrega do prédio. Sucessivas datas foram divulgadas na imprensa capixaba como a “nova” data de inauguração do espaço, aumentando a an-siedade pelo cumprimento definitivo de uma reivindicação antiga da sociedade.

Todo esse processo de transferência e de restauração do prédio, bem como da cons-trução de um projeto museológico para o Mucane, alterou os ânimos das pessoas, prin-cipalmente daquelas que estão intimamente ligadas à história da instituição. Nesse grupo, as expectativas são divergentes e numerosas, relacionadas com as concepções de modelo de gestão a ser adotado pelo Museu e até com os cuidados para a manutenção das carac-terísticas históricas da fachada do prédio. O ponto mais crítico diz respeito à participação das entidades do movimento negro organiza-do na instituição e ao perfil dos funcionários

que irão tocar as atividades quando o Museu estiver pronto.

Apesar das diferentes opiniões entre pes-soas e entidades sobre o Mucane – principal-mente no que tange à sua administração –, todos esperam que a instituição contribua na construção de uma sociedade livre do racismo e que conheça e valorize o papel do povo ne-gro na construção social, econômica, política e cultural do Espírito Santo.

Para Maria Lígia Rosa, o novo Mucane deverá dar visibilidade à história dos afro-des-cendentes: “tem muita coisa escondida que nunca foi contada. Temos que recuperar tudo. Recuperar histórias que ninguém contou, que ainda não se conta”. Ariane Meireles também acredita que o Mucane deve se transformar em um espaço de referência da memória negra: “então, pra mim, o museu é um lugar pras pessoas terem uma referência, pra conhecerem um pouco da nossa história. Não só a história local – que pra mim é fundamental –, mas uma história mais abrangente também. E, fundamentalmente, mostrar quem é que veio antes de nós. As juventudes negras, principalmente. É importante saber que o que elas desfrutam hoje é uma história que veio de antes. E não é uma história fácil: é uma história de gente que foi presa, que apanhou, de mãe de santo que levou porrada, que teve suas coisas quebradas. Então isso, eu acho que é papel do Museu fazer, sabe”.

Além da dimensão histórica, há o desejo de que o museu seja um lugar de encontro das diferentes manifestações culturais de raízes afro-brasileiras. “Que volte a ter dança, que

Passado, presente, futuroFernanda de Castro

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se pense em canto, que se pense em aula de percussão. Que seja uma referência em que as pessoas entrem e se sintam bem tranquilas em relação ao que é a cultura negra, que não se limita a dança, não se limita a literatura: é tudo isso e muito mais. Pra mim, o Mucane tem que ser esse espaço aí”, defende Ariane.

Assim, espera-se que o Museu cumpra a função de dar sentido ao presente e, so-bretudo, ao futuro ao criar as condições de preservação da memória negra; não somente enquanto o fragmento de um passado que precisa ser preservado para o agora, mas tam-bém para as próximas gerações. Maria Ribeiro França, cujos filhos participaram do grupo de dança afro mirim Arê Arô, acalenta o sonho de ver a neta em contato com os signos da cultura afro-brasileira: “mas vamos ver agora a Aninha, minha neta. Ela já usa as tranci-nhas, sabe? Ela está com oito anos. Por isso é que minha expectativa está lá, no Mucane. Vamos ver o que Deus nos guarda, né?”.

No entanto, a ênfase na questão negra não pode ser confundida com uma restrição à par-ticipação e/ou ao constrangimento das pes-soas pertencentes a outros grupos etnorra-ciais. Muito pelo contrário. Edileuza de Souza defende que o acesso ao Mucane deve ser democrático e universal. Para ela, o museu

tem que ser uma instituição em que pessoas de diferentes idades, classes sociais, escolari-dade e cores se sintam estimuladas a conhe-cer mais sobre a cultura e a história do povo negro: “é preciso pensar essa ideia institu-cional de museu a fim de que a gente possa criar um museu não para essa ou para aquela entidade, mas um museu para a população capixaba. E também não é só para a pessoa negra. Por que o racismo faz mal pra todo mundo. O racismo prejudica brancos, preju-dica muito mais os negros, mas faz muito mal aos brancos. Então, nós não temos o Museu de Artes do Espírito Santo, que deveria ser pra todos? Penso que o Mucane também A cri-ação dele deve permitir o acesso de todos”.

A excitação em torno da reestruturação do Mucane é plausível. Além de ser uma demanda reprimida da sociedade durante 19 anos, a ini-ciativa constitui um avanço na conquista dos direitos dos afrodescendentes à memória e ao reconhecimento das suas produções culturais, elementos imprescindíveis para o exercício de uma cidadania plena.

Nesse sentido, sua condução requer uma dose extra de responsabilidade social e ética para que os diferentes interesses em jogo não obstruam a caminhada em direção à efeti-vação dos direitos da população negra.

Material de divulgação de evento realizado pelo Mucane.

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Entrevistados*Esta publicação só se tornou possível graças à

contribuição voluntária de diferentes atores que participaram, direta ou indiretamente, da trajetória do Museu Capixaba do Negro durante os seus 19 anos de existência.

Tais pessoas são representantes das diferentes linguagens artístico-culturais, das atividades edu-cacionais e dos movimentos políticos que marca-ram presença no Mucane, bem como parentes dos primeiros coordenadores, frequentadores e amigos do Museu.

Alcebíades Milton CabralÉ mestre de capoeira e presidente do grupo Ganga

Zumba, que participou de diversas atividades no Mucane. Foi assessor do governador do Espírito Santo Albuíno Azeredo (1991-1995) e presidente da Federação Capixaba de Capoeira.

Ariane Celestino MeirelesMestre em Educação Especial. É professora de

Educação Física da Prefeitura Municipal de Vitória e ativista do movimento negro. Junto a outros in-tegrantes do grupo Negraô, do qual é uma das fundadoras, ministrou oficina de dança afro no Mucane.

Edileuza Penha de SouzaDoutoranda em Mídia e Educação pela Univer-

sidade de Brasília. Foi uma das coordenadoras do Mucane e participou da fundação da Associação de Mulheres Negras Oborin Dudù. Atuou voluntari-amente como professora de História no curso pré-vestibular do Museu.

Eduardo Filipe ScarduaFormado em Odontologia. Atua como coordena-

dor da Saúde Bucal no município de Viana. Con-tribuiu, entre outras, com informações sobre a história de Verônica da Pas, sua mãe.

Elias Pereira BarcelosÉ engenheiro civil formado pela Ufes e ativista

do movimento negro. Contribuiu de diversas for-mas para a manutenção do Mucane, entre elas, como professor voluntário de matemática no cur-sinho pré- vestibular da instituição.

Gil MendesProfessor de dança, coreógrafo e bailarino. Par-

ticipou do grupo Negraô, por meio do qual atuou no Mucane.

Madalena Maria CorreiaFormada em História. É professora do ensino

público estadual e municipal. Foi coordenadora do movimento Agentes de Pastoral Negros no Espírito Santo (APNs), que desenvolveu diversas atividades em parceira com o Mucane.

Maria Lígia RosaProfessora e pedagoga aposentada. Foi uma das

fundadoras da Associação de Mulheres Negras Oborin Dudù, da qual participa até os dias atuais.

Maria Lúcia da SilvaGraduada em enfermagem. É irmã de Maria

Verônica da Pas, a primeira coordenadora do Mucane. Participou de forma voluntária do cursinho pré-vestibular do Museu, onde deu aulas de genética.

Maria Ribeiro FrançaTrabalha no Colégio São Vicente de Paula em

Vitória. O seu casal de filhos fez parte do grupo Are Arô, grupo mirim de dança afro ligado ao Negraô.

Renato SantosProfessor de dança, bailarino e coreógrafo. É

coordenador da Escola de Teatro, Dança e Música Fafi e fundador do grupo de dança afro capixaba Negraô.

Suely BispoMestre em Letras pela Ufes, poeta, bailarina

e atriz. Integra o grupo de pesquisadores do Instituto Elimu Professor Cléber Maciel. Participou das oficinas de dança afro ministradas pelo grupo Negraô e de outras atividades realizadas no Mucane.

Zuilton FerreiraNatural de Sergipe, chegou ao Espírito Santo no

início da década de 1980. Artista plástico, produ-ziu várias peças em cerâmica que foram doadas ao Mucane, local onde atuou como coordenador, realizador de inúmeras exposições e mantenedor de um ateliê.

* Algumas pessoas ligadas à memória do Mucane se recusaram a dar entrevistas e/ou colocaram condições de par-

ticipação incompatíveis com os princípios que nortearam esse trabalho.

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