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PROMOTORIA DE JUSTIÇA DO CONSUMIDOR Rua Riachuelo 115, sala 130 Centro São Paulo/SP - CEP 01007-904 Fone: 3119-9061 / Fax: 3119-9060 EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ___ª VARA CÍVEL DO FORO CENTRAL DA COMARCA DA CAPITAL Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros. GEORGE ORWELL, 1945 O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por intermédio do Promotor de Justiça do Consumidor que a final assina, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência, com fundamento no art. 129, inc. III, da Constituição da República, nos arts. 81, parágrafo único, incs. I, II e III, e 82, inc. I, ambos do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), no art. 5° caput, da Lei Federal 7.347/85, e no art. 25, inc. IV, letra “a”, da Lei Federal 8.625/93, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA, a ser processada pelo rito ordinário, contra MRV ENGENHARIA E PARTICIPAÇÕES S/A., pessoa jurídica de direito privado com sede na Avenida Raja Gabaglia, 2.720, Belo Horizonte, inscrita no CNPJ sob o n° 08.343.492/0001-20, em razão dos fundamentos de fato e de direito e com os pedidos a seguir deduzidos: OS FATOS A ré é fornecedora de consumo Consoante se verificou nos autos do procedimento Inquérito Civil MP nº 14.161.213/09-5 1 , a ré é fornecedora de consumo que atua no ramo da construção e incorporação imobiliária, promovendo, com ou sem a parceria de outras empresas, a venda de imóveis no mercado de consumo, inclusive mediante financiamento do preço. No exercício de tais atividades de fornecimento de 1 Procedimento instaurado e instruído pela Promotoria de Justiça do Consumidor, cujos autos instruem esta petição inicial.

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PROMOTORIA DE JUSTIÇA DO CONSUMIDOR Rua Riachuelo 115, sala 130 – Centro – São Paulo/SP - CEP 01007-904

Fone: 3119-9061 / Fax: 3119-9060

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ___ª VARA CÍVEL DO FORO

CENTRAL DA COMARCA DA CAPITAL

Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.

GEORGE ORWELL, 1945

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por

intermédio do Promotor de Justiça do Consumidor que a final assina, vem

respeitosamente à presença de Vossa Excelência, com fundamento no art. 129, inc.

III, da Constituição da República, nos arts. 81, parágrafo único, incs. I, II e III, e 82, inc.

I, ambos do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), no art. 5° caput, da Lei

Federal 7.347/85, e no art. 25, inc. IV, letra “a”, da Lei Federal 8.625/93, propor AÇÃO

CIVIL PÚBLICA, a ser processada pelo rito ordinário, contra MRV ENGENHARIA E

PARTICIPAÇÕES S/A., pessoa jurídica de direito privado com sede na Avenida Raja

Gabaglia, 2.720, Belo Horizonte, inscrita no CNPJ sob o n° 08.343.492/0001-20, em

razão dos fundamentos de fato e de direito e com os pedidos a seguir deduzidos:

OS FATOS

A ré é fornecedora de consumo

Consoante se verificou nos autos do procedimento Inquérito Civil

MP nº 14.161.213/09-51, a ré é fornecedora de consumo que atua no ramo da

construção e incorporação imobiliária, promovendo, com ou sem a parceria de outras

empresas, a venda de imóveis no mercado de consumo, inclusive mediante

financiamento do preço. No exercício de tais atividades de fornecimento de

1 Procedimento instaurado e instruído pela Promotoria de Justiça do Consumidor, cujos autos

instruem esta petição inicial.

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consumo, adota prática comercial revestida de abusividade, conforme adiante

aduzido.

Com efeito, no exercício de sua atividade empresarial, a ré aliena

unidades imobiliárias mediante contratos (de venda e de promessa de venda) que

pressupõem a entrega do imóvel ao consumidor em momento diverso e posterior à

conclusão do negócio. O contrato padrão de adesão adotado pela empresa, todavia,

tem uma peculiaridade: embora preveja obrigações para ambas as partes –

comprador e vendedor – fixa prazos e prevê multa moratória para o consumidor, mas

não o faz igualmente para o fornecedor.

É sobremaneira comum, como natural nesse ramo de atividade, que

a ré compromisse a venda de unidades mediante financiamento do preço, seja

mediante financiamento próprio, seja mediante financiamento concedido por

outrem. Assim numa como noutra hipótese, a ré permite então que o pagamento do

preço pelo consumidor se dê à prazo, i.e., em momento futuro. Isso foi por ela

expressamente confirmado a fls. 50/51 do inquérito civil que instrui esta petição

inicial.

A mora do consumidor

Para a obrigação principal do consumidor — pagamento do preço

— sempre que não haja pagamento integral à vista, é então determinado já no

contrato o prazo para seu cumprimento: ou o preço será saldado em parcela única ou

mediante parcelamento do preço; nessas hipóteses, sempre terá vencimento futuro,

prévia e expressamente documentado no contrato.

Quando há esse diferimento para o pagamento do preço

(pagamento a prazo), a compra e venda realizada sujeita sempre o consumidor a

multa moratória na hipótese de sua mora, correspondente a percentual do valor da

obrigação em atraso. Enfim, se o consumidor atrasa o pagamento, sujeita-se a multa

moratória, que é sempre fixada no teto legal (CDC, art. 52, § 1°), i.e., em 2% (dois por

cento) do valor da obrigação em atraso.

Em seu contrato padronizado de adesão (vide exemplar a fls. 124 do

inquérito civil) a cláusula 4.2 assim prevê a multa para mora do consumidor:

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“4.2) ATRASO DO PAGAMENTO: Caso não sejam pagas na data do seu vencimento, as parcelas ficarão sujeitas, até o seu efetivo pagamento, à multa de 2% (dois por cento), acrescida de 1% (um por cento) de juros moratórios ao mês ‘Pro-rata-die´”

A mora da fornecedora ré

Mas nesses negócios de consumo promovidos pela ré não há a

fixação em contrato de prazo fatal para o cumprimento da obrigação principal dela, a

fornecedora de consumo — a obrigação principal da ré consiste na entrega do

imóvel ao consumidor, comumente designada como “entrega das chaves”.

É que a data estabelecida pela ré em contrato à guisa de “prazo”

não é a data limite para cumprimento de sua obrigação de entrega, a partir da qual

se caracteriza a sua mora. Assim porque no mesmo contrato a ré prevê uma

tolerância de 120 (cento e vinte) dias úteis para o atraso na entrega, período

durante o qual o contrato dispõe não haver qualquer consequência resultante da

entrega além da data “aprazada” (vide cláusula 5 do contrato de adesão, com

exemplar a fls. 125 do inquérito civil que instrui esta petição inicial):

“5) CLÁUSULA QUINTA: DA ENTREGA E IMISSÃO NA POSSE

A PROMITENTE VENDEDORA se compromete a concluir as obras do

imóvel objeto deste contrato até o último dia útil do mês mencionado

no item 5 da página 12, salvo se outra data for estabelecida no

contrato de financiamento. (...)

Independentemente do prazo acima previsto, a conclusão da obra

2 “5) ENTREGA DO IMÓVEL

Entrega: Junho/2008 ou 1 mês após a assinatura junto ao agente financeiro – A entrega das chaves

somente ocorrerá após assinatura do contrato junto ao Agente Financeiro, com a conseqüente liberação

dos recursos em favor da PROMITENTE VENDEDORA e desde que o(a) PROMITENTE

COMPRADOR(A) esteja em dia com todas as suas obrigações contratuais.”

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poderá ser prorrogada por até 120 (cento e vinte) dias úteis. (...)

Se a PROMITENTE VENDEDORA não concluir a obra no prazo

estabelecido, já admitida a tolerância3, pagará ao(à) PROMITENTE

COMPRADOR(A), a título de pena convencional, a importância

equivalente a 1% (um por cento) do preço do imóvel objeto deste

contrato, previsto no item 3 da página 1, por mês ou pro rata die. O

período de apuração da multa pelo atraso terá início no primeiro dia

útil após o vencimento do prazo de tolerância (120 dias úteis)4 e

término na data da efetiva entrega ou da liberação da Certidão de

Baixa e Habite-se, o que ocorrer primeiro.”

Essa tolerância — que, aliás, não é estabelecida também em favor

do consumidor — desfigura a data prevista para entrega como efetivo prazo de

entrega.

Multa muito mais rigorosa para a mora do consumidor

Não bastasse, há flagrante desproporção entre as penalidades para

o consumidor em relação às penalidades para o fornecedor.

Como acima se assentou, se o consumidor atrasa o pagamento,

sujeita-se a multa moratória, fixada em 2% (dois por cento) do valor da obrigação em

atraso, mais 1% (um por cento) de juros moratórios ao mês pro rata die.

Bem diversamente da posição do consumidor no contrato, além de

gozar da malfadada tolerância de 120 dias úteis, a ré se sujeita a multa moratória

substancialmente mais branda — 1% por mês ou pro rata die e nada mais.

3 O destaque, inexistente no original, é da transcrição.

4 Idem.

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Ocupa a fornecedora ré, de tal sorte, posição privilegiada em seu

contrato de adesão, pois para sua obrigação principal — entrega do imóvel — não há

prazo efetivo; e mesmo considerada a entrega para além da tolerância contratual,

não há fixação de multa moratória com o mesmo rigor que se prevê sanção para a

mora do consumidor:

CONSUMIDOR FORNECEDOR (Ré)

não tem tolerância alguma, i.e., não pode atrasar sua obrigação um dia

sequer

tem tolerância, i.e., pode atrasar sua obrigação até 120 dias úteis

se atrasar, paga multa de: 2% + 1% de juros moratórios ao mês pro

rata die

se atrasar mesmo depois da tolerância, paga multa só de

1% por mês ou pro rata die

O que temos, em síntese, é uma contratação de adesão que

privilegia o fornecedor, em detrimento do consumidor, que justamente é a parte

vulnerável da relação jurídica (CDC, art. 4°, inc. I), colocado-o assim em desvantagem

exagerada.

Essa prática comercial da ré é abusiva e ilegal, como adiante se

analisará.

Cláusula compromissória

A par disso tudo, em seu contrato de adesão a ré ainda estipula

cláusula que prevê utilização compulsória de arbitragem (vide exemplar de fls. 129 do

inquérito civil que instrui esta petição inicial):

11) CLÁUSULA DÉCIMA PRIMEIRA: DA ARBITRAGEM As partes contratantes convencionam que, nos termos da lei 9307/96, todos os litígios decorrentes do presente contrato serão submetidos ao juízo arbitral e, para tanto, elegem o TAESP – Tribunal de Arbitragem do Estado de São Paulo, sediado no Largo do Arouche 24, 4º andar – SP – capital, como Entidade Arbitral competente para instituir e processar a arbitragem que solucionará definitivamente os litígios.

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Como se vê, por meio da referida cláusula 11 de seu contrato

padronizado de adesão, a ré impõe ao consumidor, para solução de litígios

decorrentes do contrato de consumo, a utilização da arbitragem, em franca violação

das normas positivas do Código de Defesa do Consumidor, que constituem “normas

de ordem pública e interesse social” (art. 1º).

Esta cláusula do contrato de adesão, porquanto determina a

utilização compulsória de arbitragem para solução dos litígios eventualmente

resultantes do negócio jurídico de que o contrato é o instrumento, constitui a

chamada cláusula compromissória, definida no art. 4° da Lei 9.307/96.

O DIREITO

É vedado ao fornecedor deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação (CDC, art. 39, XII)

A obrigação de entrega e a mora do fornecedor

A disciplina jurídica dos contratos em geral é hoje francamente

balizada pelos princípios da boa-fé objetiva (CC, art. 422) e da função social dos

contratos (CC, art. 421).

No Direito do Consumidor, segundo autorizada lição de CLAUDIA LIMA

MARQUES, o primado da boa-fé é “o princípio máximo orientador do CDC”.5

Visceralmente jungido à boa-fé objetiva, viceja no direito

consumerista o princípio do equilíbrio contratual entre as partes da relação de

consumo.

Com efeito, dispõe o Código de Defesa do Consumidor que:

5 MARQUES, CLAUDIA LIMA. Contratos no Código de Defesa do Consumidor – O Novo Regime das

Relações Contratuais, 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006; p. 799.

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Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (...) III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

A boa-fé objetiva, que deve lastrear assim a celebração como a

execução dos contratos em geral, é tratada pelo legislador com status de verdadeiro

princípio no campo do Direito do Consumidor.

As normas positivas que definem a abusividade, assim de práticas

comerciais como de cláusulas contratuais, representam detalhamento aplicado dos

princípios fundamentais que regem todo o microssistema do Direito do Consumidor.6

Pois bem. Como uma das garantias de equilíbrio das relações

contratuais, indispensável ao desenvolvimento da relação jurídica sob o primado da

boa-fé, o CDC proíbe o fornecedor de omitir a fixação de vencimento para sua

obrigação:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...)

6 A propósito, JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO escreveu que quando se fala no Código de Defesa do

Consumidor, se cuida de “um verdadeiro microssistema jurídico, por conter: (a) princípios que lhe são peculiares (isto é, a vulnerabilidade do consumidor, de um lado, e a destinação final de produtos e serviços, de outro); (b) por ser interdisciplinar (isto é, por relacionar-se com inúmeros ramos de direito, como constitucional, processual civil, penal, processual penal, administrativo etc.; (c) por ser também multidisciplinar (isto é, por conter em seu bojo normas de caráter também variado, de cunho civil, processual civil, processual penal, administrativo etc.)” (Manual de Direito do Consumidor, 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2005; p. 9/10).

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XII - deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério.

Essa proibição imposta ao fornecedor implica dizer que a fixação do

prazo para entrega do produto é direito do consumidor.

O Código impõe a obrigatoriedade de prazo determinado porque

sem ele não se pode falar em vencimento da obrigação, que é o termo final do prazo,

a partir do qual a obrigação passa a ser exigível.

Na definição de DE PLÁCIDO E SILVA, “em sentido geral, prazo sempre

se revela o espaço de tempo, que medeia entre o começo e fim de qualquer coisa.

Mostra, assim, a duração, em que as coisas se realizam ou se executam, ou

determina, pelo transcurso do mesmo tempo, o momento, em que certas coisas

devem ser cumpridas. (...) Termo é, propriamente, o vencimento do prazo, o término

ou o fim dele, em cujo momento certa coisa deve ser feita ou cumprida”.7

Como ensina CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, aliás, “uma das

circunstâncias que acompanham o pagamento é o tempo”8.

Assim porque não basta saber que ao devedor cumpre entregar a

sua prestação, mas imprescindível saber quando o deve fazer.

Na sempre oportuna lição de ORLANDO GOMES, “a determinação do

momento em que a obrigação deve ser cumprida é de fundamental importância,

atenta à circunstância de a dívida só se tornar exigível quando se vence. A esse

momento chama-se vencimento”.9 Sem a fixação do prazo e seu termo final — o

vencimento — não se pode apreender a caracterização da mora do devedor, no

caso o fornecedor de consumo. Por isso que o mestre adverte que “para se

7 SILVA, DE PLÁCIDO E. Vocabulário Jurídico, vol. III. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 1.192.

8 PEREIRA, CAIO MÁRIO DA SILVA. Instituições de Direito Civil, vol. II, Teoria Geral das Obrigações, 21ª

ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 341.

9 GOMES, ORLANDO. Obrigações, 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 118.

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determinar o exato momento em que o devedor incorre em mora, é da maior

importância saber quando ocorre o vencimento”.10

Enfim, intolerável juridicamente que a ré deixe de estipular prazo

certo e claro para o cumprimento de suas obrigações, notadamente a obrigação

principal do contrato, consistente na entrega do imóvel ao adquirente.

A ilícita previsão de tolerância que desvirtua o prazo e seu vencimento

A previsão contratual da ré que estipula a tolerância para o atraso

na entrega do imóvel constitui, pois, cláusula manifestamente abusiva, nula pleno

jure:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. (...) .................................... IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; .................................... XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor; .................................... § 1º. Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I - ofende os princípios11 fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual; III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.

10 GOMES, ORLANDO. Ob.cit, p. 199.

11 Consoante definido no art. 4° do CDC, são princípios fundamentais do sistema de proteção ao

consumidor (caput) o reconhecimento de sua vulnerabilidade (inc. I) e o equilíbrio contratual (inc. III).

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Comum se ouvir que o prazo de tolerância se deve à

imprevisibilidade de ocorrências que podem comprometer o andamento das obras,

como por exemplo intempéries, greves, escassez de insumos etc. Mas isso tudo faz

parte do risco do empreendimento da ré e já é (ou deveria ser) por ela considerado

na fixação do prazo de entrega. Daí porque tais intercorrências não aproveitam à ré

para autorizá-la a descumprir o prazo anunciado.

De mais a mais, também o consumidor está sujeito a uma

indeterminável série de imprevistos que podem lhe comprometer a pontualidade

como, v.g., desemprego inesperado, doença grave na família, morte de cônjuge,

roubo de seu salário etc. Nem por isso o contrato de adesão deixa margem para que

o consumidor possa impunemente atrasar a prestação do imóvel.12

O Direito positivo não se compadece então com esta sorte de

previsão contratual que estipula uma tolerância para a mora do fornecedor. A

menos, obviamente, que o mesmo contrato preveja idêntica tolerância também para

a mora do consumidor.

Enfim, ou se tem tolerância para ambas as partes da relação de

consumo, ou não poderá haver tolerância alguma.

A necessidade de multa moratória

O mero reconhecimento de um direito é desvalido juridicamente se

não fica assegurado o meio bastante para seu exercício ou a sanção bastante para o

seu desrespeito.

Com efeito, de nada serve ao consumidor ter um prazo fixado pelo

fornecedor, se o desrespeito a esse prazo não resultar para o fornecedor faltoso em

consequência efetiva e simétrica às sanções previstas para as faltas do consumidor.

12 O contrato da ré, aliás, não prevê exclusão dos efeitos da mora do consumidor nem mesmo

quando ela decorre de eventual desídia do fornecedor no envio do pertinente boleto bancário para pagamento da prestação. Com efeito, a cláusula 4 do contrato de adesão estipula que “A falta de recebimento de aviso de cobrança/boleto bancário não justificará quaisquer atrasos nos pagamentos” (vide exemplar a fls. 123 do inquérito civil que instrui esta petição inicial).

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A obrigação de adimplir pontualmente o pagamento está prevista

no art. 394 do Código Civil: “considera-se em mora o devedor que não efetuar o

pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou

a convenção estabelecer”.

Segundo CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, “uma das circunstâncias que

acompanham o pagamento é o tempo. A obrigação deve executar-se

oportunamente. Quando alguma das partes desatende a este fator, falta ao obrigado

ainda quando tal inadimplemento não chegue às raias da inexecução cabal. Há um

atraso na prestação. Esta não se impossibilitou, mas o destempo só por si traduz

uma falha daquele que nisto incorreu. A mora é este retardamento injustificado da

parte de algum dos sujeitos da relação obrigacional no tocando à prestação”.13

O devedor impontual pode ficar sujeito ao pagamento de

penalidade, que não tem caráter compensatório: a multa moratória, que pode estar

prevista em cláusula penal.

O eminente jurista explica que a cláusula penal “pode ser estipulada

para o caso de deixar o devedor de cumprir a totalidade de sua obrigação, ou então,

com caráter mais restrito, e por isto mesmo mais rigoroso, para o de inexecução em

prazo dado”.14

Ora, como fornecedora de consumo, assume a ré, perante o

consumidor, a obrigação de entregar o imóvel compromissado. Essa obrigação, como

visto, deve ter um prazo estabelecido e, para a hipótese de mora, deve estar prevista

uma sanção.

Eis clara então a necessidade de imposição de cláusula penal, a fim

de estabelecer, antecipadamente, uma penalidade contratual para eventual

impontualidade.

Daí se dizer, sem receio de excesso, que estabelecer prazo sem

qualquer cominação para a mora do fornecedor soaria mesmo como zombaria, que

escandalosamente destoa do bordão da boa-fé objetiva nos contratos de consumo.

13 Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense. 7ª. ed., 1984, vol. II, p. 209.

14 Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense. 7ª. ed., 1984, vol. II, p. 102.

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À guisa de estabelecer tal penalidade, no entanto, a ré prevê no

contrato de adesão uma multa moratória para o atraso na entrega do imóvel. Mas o

faz de modo iníquo, sem correlação equânime com as penalidades impostas ao

consumidor, seja porque os efeitos de sua mora gozam contratualmente da

malfadada tolerância de 120 dias úteis, seja porque os percentuais previstos são

substantivamente mais brandos quando a mora é dela, fornecedora de consumo.

Recapitule-se:

CONSUMIDOR FORNECEDOR (Ré)

não tem tolerância alguma, i.e., não pode atrasar sua obrigação um dia

sequer

tem tolerância, i.e., pode atrasar sua obrigação até 120 dias úteis

se atrasar, paga multa de: 2% + 1% de juros moratórios ao mês pro

rata die

se atrasar mesmo depois da tolerância, paga multa só de

1% por mês ou pro rata die

Equilíbrio contratual

A inexistência de multa moratória simétrica entre consumidor e

fornecedor, vista de ótica paralela, também se contrapõe ao princípio do equilíbrio

contratual. É que não se conhece contrato de consumo em que a mora do

consumidor não seja evento sujeito a multa moratória — que, nos termos do art. 52,

§ 2°, do CDC, não pode superar 2% do valor da obrigação em atraso.15 No caso do

contrato padrão da ré, a previsão é de multa moratória de 2% mais juros moratórios

de 1% ao mês pro rata die, para o consumidor em mora.

Para que existisse simetria entre fornecedor e consumidor, de rigor

então que se estabeleça, para a mora no cumprimento da obrigação de entrega do

imóvel, multa de 2% mais juros moratórios de 1% ao mês pro rata die até a efetiva

entrega das chaves.

15 CDC, art. 52, § 1º: “As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu

termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação.”

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A simetria entre as sanções contratuais para consumidor e

fornecedor é, aliás, a ratio lege da Portaria SDE nº 4, de 13.03.1998, da Secretaria de

Direito Econômico do Ministério da Justiça (DOU 16.03.1998), que prevê serem

nulas de pleno direito as cláusulas que “estabeleçam sanções em caso de atraso ou

descumprimento da obrigação somente em desfavor do consumidor” (item 6).

Oportuna é a lição de CLAUDIA LIMA MARQUES a propósito do

equilíbrio contratual, obrigatório e substantivo, nas relações de consumo:

“Efetivamente, com o advento do CDC o contrato passa a ter seu

equilíbrio, conteúdo ou equidade mais controlados, valorizando-se o seu

sinalagma. Segundo Gernhuber, sinalagma é um elemento imanente

estrutural do contrato, é a dependência genética, condicionada e

funcional de pelo menos duas prestações co-respectivas, é o nexo final

que, oriundo da vontade das partes, é moldado pela lei. Sinalagma não

significa apenas bilateralidade, como muitos acreditam, influenciados

pelo art. 1.102 do Code Civil francês, mas sim contrato, convenção, é um

modelo de organização (Organisationsmodell) das relações privadas. O

papel preponderante da lei sobre a vontade das partes, a impor uma

maior boa-fé nas relações no mercado, conduz o ordenamento jurídico a

controlar mais efetivamente este sinalagma e, por consequência, o

equilíbrio contratual. (...) o fenômeno de proteção dos interesses

econômicos do consumidor, seja através do controle de cláusulas

abusivas, seja através desta procura de um novo equilíbrio contratual, é,

em verdade, uma projeção dos princípios da confiança e da boa-fé

positivados no CDC (...)”16

Para que exista equilíbrio contratual entre as obrigações do

fornecedor e do consumidor, de rigor, pois, que se estabeleça multa moratória para a

mora do primeiro segundo idênticos critérios adotados para a mora do segundo.

A propósito, vale notar entendimento firmado pelo Egrégio Superior

Tribunal da Justiça acerca da matéria:

16 MARQUES, CLAUDIA LIMA. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, ob. cit., p. 287/288.

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“CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. PROMESSA DE

COMPRA E VENDA. ATRASO NA ENTREGA DO IMÓVEL. INADIMPLÊNCIA

DA CONSTRUTORA RECONHECIDA PELO TRIBUNAL ESTADUAL. RECURSO

ESPECIAL. PROVA. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7-STJ. JUROS

MORATÓRIOS, MULTA E HONORÁRIOS. APLICAÇÃO EM CONSONÂNCIA

COM A PREVISÃO CONTRATUAL, POR EQÜIDADE. CORREÇÃO

MONETÁRIA DAS PARCELAS A SEREM RESTITUÍDAS. INCC INCIDENTE ATÉ

O AJUIZAMENTO DA AÇÃO, POR VINCULAÇÃO À CONSTRUÇÃO. INPC

APLICÁVEL A PARTIR DE ENTÃO.

I. (...)

II. Multa compensatória, juros e honorários estabelecidos de

conformidade com a previsão contratual, por aplicação da regra penal, a

contrario sensu, por eqüidade.

III. (...)

V. Recurso especial conhecido em parte e parcialmente provido.

(...)

Igualmente sem nenhuma razão a apelante principal quando pleiteia

que seja eliminada da condenação a parcela relativa ao pagamento da

multa convencional no percentual de 0,5% sobre o valor do imóvel, pois,

apesar de não existir previsão contratual desse pagamento em caso de

inadimplemento da obrigação por parte da construtora, a solução

encontrada na sentença monocrática é justa, pois contempla o

promissário comprador - reafirmo, parte mais fraca na relação

contratual - com o direito ao recebimento de multa no mesmo

percentual devido à apelante principal se se tratasse de mora do

adquirente do bem.” (...)

(STJ – Quarta Turma - Recurso Especial Nº 510.472 / MG – Relator:

Ministro Aldir Passarinho Junior – Julgado em 02/03/2004 - DJ

29/03/2004 p. 247 – Grifos nossos)

No caso da venda e compra (ou promessa dela) de imóvel, o valor

da obrigação de entrega é o valor do próprio imóvel, sobre o qual deve então ser

calculada a multa moratória e os juros moratórios: multa de 2% mais juros

moratórios de 1% ao mês pro rata die até a efetiva entrega das chaves.

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Enfim, verificada a mora do fornecedor na entrega do imóvel, a par

de responder pela reparação plena dos prejuízos do consumidor, materiais e/ou

morais (CC, art. 395 caput), deve ele se sujeitar também multa moratória de 2% do

valor do imóvel, mais juros moratórios de 1% ao mês pro rata die (ou outros

percentuais eventualmente fixados em contrato para a mora do consumidor)17.

Sem essa estipulação, não há simetria, não há equilíbrio contratual.

Sem essa estipulação, impossível cogitar de boa fé contratual.

Sem essa estipulação, abusiva e ilegal é a prática do fornecedor.

Fácil é extrair do CDC a preocupação do legislador em impedir que

os contratos sejam concebidos de modo desequilibrado e assimétrico, inclusive no

que concerne ao direito do consumidor a indenização:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis; IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade; XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor; § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vontade que: (...) II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

17 Na espécie, a multa moratória sobre o fornecedor deve ser da ordem de 2%, mais juros

moratórios de 1% ao mês pro rata die, porque esse é o critério adotado para penalizar a mora do consumidor.

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O equilíbrio do contrato de adesão de compra e venda pressupõe a

imposição de prazo para ambas as partes cumprirem suas respectivas obrigações,

mediante instrumentos que documentem tais prazos, assim como a previsão de

sanções simétricas, em desfavor das duas partes igualmente, para o caso de mora.

O CDC e a arbitragem

Como visto, a ré estipula cláusula compromissória em seus

contratos de consumo, donde decorre que a conduta da ré viola, direta e

incisivamente, o disposto no art. 51, inc. VII, do Código de Defesa do Consumidor

(Lei 8.078/90), que preceitua:

“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem; (...)”

Em toda relação de consumo há observar, desde logo, os princípios

explicitamente adotados pelo Código de Defesa do Consumidor, dentre os quais o de

“reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo” (Lei

8.078/90, art. 4°, inc. I).

Sobre tal alicerce principiológico se postam todos os direitos e

garantias estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor, cujas normas são de

ordem pública e interesse social, ex vi legis.18

Dentre os direitos básicos do consumidor, o Código de Defesa do

Consumidor contemplou o controle jurisdicional do contrato de consumo, para a

modificação de suas cláusulas (art. 6°, inc. V) ou mesmo a declaração de nulidade de

18 Já em seu art. 1°, a Lei 8.078/90, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, proclama

estabelecer “normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias”.

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cláusulas que importem desequilíbrio contratual ou violação de qualquer disposição

do Código (art. 51, § 4°).

No capítulo dedicado à “Proteção Contratual”, o Código de Defesa

do Consumidor enumerou, no art. 51, cláusulas que se classificam como “cláusulas

abusivas” e que se reputam “nulas de pleno direito”. Em tal enumeração, não

exaustiva, o legislador de 1990 incluiu expressamente as cláusulas que “determinem

a utilização compulsória de arbitragem”, i.e., as chamadas cláusulas

compromissórias (CDC – Lei 8.078/90, art. 51, inc. VII).

De tal prescrição legal decorre, direta e incontornavelmente, a

nulidade pleno jure da cláusula compromissória utilizada no contrato padronizado de

adesão empregado pela ré.

Sobre a matéria, calha a autorizada lição de CLAUDIA LIMA MARQUES:

“As cláusulas contratuais que imponham a arbitragem no processo

criado pela Lei de 1996 devem ser consideradas abusivas, forte no

art. 4°, I e V, e art. 51, IV e VII, do CDC, uma vez que a arbitragem

não-estatal implica privilégio intolerável que permite a indicação do

julgador, consolidando um desequilíbrio, uma unilateralidade

abusiva ante um indivíduo tutelado justamente por sua

vulnerabilidade presumida em lei. No sistema da nova Lei (arts. 6° e

7° da Lei 9.307/1996), a cláusula compromissória prescinde do ato

subseqüente do compromisso arbitral. Logo, por si só, é apta a

instituir o juízo arbitral, via sentença judicial, com um só árbitro

(que pode ser da confiança do contratante mais forte, ou por este

remunerado); logo, se imposta em contrato de adesão ao

consumidor, esta cláusula transforma a arbitragem ‘voluntária’ em

compulsória, por força da aplicação do processo arbitral previsto na

nova lei.”19

19 MARQUES, CLAUDIA LIMA. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 2ª ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2006; p. 702/703.

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A arbitragem é regulada, no direito vigente, pela Lei 9.307/96, que

disciplina não apenas seu procedimento, mas também a sua convenção nos contratos

em geral. Em seu art. 4°, § 2°, a Lei de Arbitragem prevê os requisitos de validade da

cláusula compromissória em contratos de adesão.

Mas tal dispositivo, que cuida dos contratos em geral, não se aplica,

obviamente, aos contratos de consumo, que têm natureza especialíssima e regime

jurídico especial, “de ordem pública e interesse social”, definido pelo Código de

Defesa do Consumidor (art. 1º).

Para CARLOS MAXIMILIANO, no direito não se presumem as antinomias

ou incompatibilidades, mas antes se requer do intérprete e aplicador do direito

encontrar o nexo oculto que concilia suas normas positivas.20

Consoante lição do renomado mestre, o ponto de partida do

intérprete consiste em considerar “não ser lícito aplicar uma norma jurídica senão à

ordem de coisas para a qual foi feita”, donde, “se existe antinomia entre a regra geral

e a peculiar, específica, esta, no caso particular, tem supremacia”.21

Ora, a norma proibitiva do art. 51, inc. VII, do CDC, aplicando-se

exclusivamente aos contratos consumeristas, constitui norma especial, de sorte que

prefere à disciplina geral da arbitragem prevista na Lei 9.307/96, aplicando-se aqui o

adágio lex specialis derogat lex generalis.

Do direito incidente, de tal sorte, resulta a nulidade pleno jure da

cláusula compromissória adotada pela ré em seus contratos padronizados de adesão.

Nesse sentido, precedente jurisprudencial do Egrégio Superior

Tribunal de Justiça, in verbis:

“PROMESSA COMPRA E VENDA IMÓVEL. NULIDADE SENTENÇA.

INEXISTENTE. CLÁUSULA DE ARBITRAGEM. ABUSIVIDADE. REEXAME DE

PROVAS. SÚMULAS 5 E 7.

20 Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, 1980, p. 134; Forense, 9ª ed.

21 Ob. cit., p. 134/135.

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- A extinção do processo por falta de complementação de custas

processuais só pode ser decretada após a intimação pessoal da parte.

Precedentes.

- É nula a clausula de convenção de arbitragem inserta em contrato de

adesão, celebrado na vigência do Código de Defesa do Consumidor.

- Não se considera força maior o inadimplemento pelo atraso na entrega

da obra pela empresa devido a inadimplemento dos outros promitentes

compradores.

- O inadimplemento de outros compradores não constitui força maior

para justificar atraso na entrega de imóvel a comprador em dia com a

amortização do preço.”

(STJ – Terceira Turma – Recurso Especial 819.519 / PE – Relator:

Humerto Gomes Barros – Julgado em 09/10/2009 – DJ 05/11/2009 p. 264 – Grifos

nossos)O reconhecimento judicial de tal nulidade absoluta (Lei 8.078/90, art. 51, § 4°)

importará então na efetiva tutela: (a) dos direitos individuais homogêneos, do

conjunto de consumidores que com a ré já celebraram o contrato de adesão com

cláusula compromissória; e (b) dos direitos difusos da coletividade consumidora, no

que toca àqueles consumidores que, embora ainda não tendo relação contratual com

a ré, possam vir a contratar seus produtos e serviços.

Os PEDIDOS

I.- Os pedidos principais

Mercê de todo o exposto, o autor pleiteia a procedência desta ação

civil pública, com o acolhimento dos seguintes pedidos:

I.A. Declaração de nulidade de toda cláusula dos contratos de adesão da ré

que a exonere de qualquer forma de suas responsabilidades por

eventual mora ou estabeleça em seu favor qualquer tipo de tolerância

para a mora na entrega do imóvel (“entrega das chaves”), ou que por

qualquer forma expurgue ou mitigue a incidência da multa moratória

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respectiva, sem que idêntico benefício, com mesma duração, esteja

previsto para a mora do consumidor em relação a cada uma das

prestações de sua responsabilidade.

I.B. Condenação da ré à obrigação de não fazer consistente em se abster,

em todos os contratos de venda ou de promessa de venda de imóvel, de

estipular cláusula que a exonere de qualquer forma de suas

responsabilidades por eventual mora ou estabeleça em seu favor

qualquer tipo de tolerância para a mora na entrega do imóvel (“entrega

das chaves”), ou que por qualquer forma expurgue ou mitigue a

incidência da multa moratória respectiva, sem que idêntico benefício,

com mesma duração, seja previsto para a mora do consumidor em

relação a cada uma das prestações de sua responsabilidade. O

descumprimento desta condenação deverá sujeitar a ré a multa

cominatória (Lei 8.078/90, art. 84; Lei 7.347/85, art. 11; e CPC, art. 287),

no valor de R$100.000,00 por consumidor em relação ao qual se verifique

o descumprimento da obrigação.

I.C. Condenação da ré à obrigação de fazer consistente em inserir, em todos

os contratos de venda ou de promessa de venda de imóvel, cláusula

com expressa e clara previsão do efetivo prazo de entrega do imóvel

(“entrega das chaves”). O descumprimento desta condenação deverá

sujeitar a ré a multa cominatória (Lei 8.078/90, art. 84; Lei 7.347/85, art.

11; e CPC, art. 287), no valor de R$100.000,00 por contrato firmado em

relação ao qual se verifique o descumprimento da obrigação.

I.D. Declaração de nulidade de toda cláusula dos contratos de adesão da ré

que fixe multa para o descumprimento de suas obrigações em

percentual e bases inferiores àquelas impostas ao consumidor, por

colocá-lo em desvantagem exagera, bem como por ser incompatível

com a boa-fé e a eqüidade (Lei 8.078/90, art. 51, IV).

I.E. Condenação da ré à obrigação de fazer consistente em inserir, em todos

os contratos de venda ou de promessa de venda de imóvel, cláusula que

a sujeite ao pagamento de multa moratória para a hipótese de mora

(atraso) no cumprimento da sua obrigação de entregar o imóvel

(“entrega da chaves”) nos prazos previstos nos mesmos contratos, em

valor correspondente a 2% (dois por cento) do valor do imóvel, mais

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juros moratórios de 1% ao mês, pro rata die, sem prejuízo da reparação

por perdas e danos que o consumidor possa vir a demandar

individualmente. O descumprimento desta condenação deverá sujeitar a

ré a multa cominatória (Lei 8.078/90, art. 84; Lei 7.347/85, art. 11; e CPC,

art. 287), no valor de R$100.000,00 por consumidor em relação ao qual se

verifique o descumprimento da obrigação.

I.F. Condenação genérica da ré, na forma do art. 95 da Lei 8.078/90, ao

pagamento de multa moratória, no valor de 2% (dois por cento) do valor

do imóvel, a cada consumidor a quem tenha efetuado entrega de

imóvel (“entrega das chaves”) depois do prazo de entrega estipulado

em contrato, desprezada qualquer previsão de tolerância para essa

mora, mas autorizada a compensação de valores que a esse título

eventualmente já tenha pago ao consumidor lesado. Quanto a este

pedido, a liquidação e a execução da sentença deverão ser promovidas

pelas vítimas, nos termos do art. 97 do CDC; na hipótese de decurso do

prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível

com a gravidade do dano, o Ministério Público promoverá a execução da

indenização devida (fluid recovery), como previsto no art. 100 do CDC.

I.G. Declaração da nulidade pleno jure da cláusula compromissória (que

preveja a solução dos litígios por arbitragem) adotada pela ré em seus

contratos de adesão com consumidores;

I.H. Condenação da ré à obrigação de não fazer consistente em se abster de

estabelecer cláusula compromissória (que preveja a solução dos litígios

por arbitragem) em seus contratos de adesão com consumidores. O

descumprimento desta condenação deverá sujeitar a ré a multa

cominatória (Lei 8.078/90, art. 84; Lei 7.347/85, art. 11; e CPC, art. 287),

no valor de R$100.000,00 por consumidor em relação ao qual se verifique

o descumprimento da obrigação.

I.I. Condenação da ré à obrigação de fazer consistente em dar ampla

divulgação da decisão condenatória pelos meios de comunicação social,

a fim de garantir a efetividade da tutela. O descumprimento desta

condenação deverá sujeitar a ré a multa cominatória (Lei 8.078/90, art.

84; Lei 7.347/85, art. 11; e CPC, art. 287), no valor de R$10.000,00 por dia

de atraso, até o efetivo cumprimento.

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II.- Os pedidos acessórios

O autor requer ainda:

a) Seja determinada a citação e intimação postal da ré, no endereço acima

informado, a fim de que, com expressa advertência sobre os efeitos da revelia

(CPC, art. 285) e no prazo de 15 (quinze) dias, apresente resposta, se lhe

aprouver, aos pedidos ora deduzidos;

b) Seja determinada a expedição e publicação no órgão oficial do edital de que

trata o art. 94 da Lei 8.078/90, a fim de que eventuais interessados possam

intervir como litisconsortes;

c) A condenação da ré ao pagamento das custas processuais, devidamente

atualizadas;

d) A dispensa do autor ao pagamento de custas, emolumentos e outros

encargos, desde logo, tendo em vista o disposto no art. 18 da Lei 7.347/85.

e) Sejam as intimações do autor feitas pessoalmente, mediante entrega dos

autos com vista, na Promotoria de Justiça do Consumidor, sediada na Rua

Riachuelo, 115, 1° andar, sala 130, Centro, São Paulo/SP, à vista do disposto

no art. 236, § 2°, do Código de Processo Civil, e no art. 224, inc. XI, da Lei

Complementar Estadual 734/93 (Lei Orgânica do Ministério Público).

Protesta o autor por provar o alegado por todos os meios de prova

em direito admitidas, especialmente pelas provas testemunhal, pericial e

documental, bem assim por todos os demais meios que se apresentarem úteis à

demonstração dos fatos aqui articulados, observado ainda o disposto no art. 6°, inc.

VIII, do Código de Defesa do Consumidor, no que toca à inversão do ônus da prova

em favor da coletividade de consumidores substituída processualmente pelo autor.

Anota, outrossim, que a presente petição inicial vai instruída com os

autos do procedimento MP Inquérito Civil MP nº 14.161.213/09-5, instaurado e

instruído pela Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.

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Para efeito de alçada, à causa atribui o valor de R$500.000,00.

De tudo pede deferimento.

São Paulo, 17 de novembro de 2009

Paulo Sérgio Cornacchioni 6° PROMOTOR DE JUSTIÇA DO CONSUMIDOR