mozart e o requiem

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Texto de analise musical

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O peso de Mozart no seuRequiemPorFrederico Toscano, emAnlise de obra,Histria da msica

Autgrafo do RequiemPor diversas razes, oRequiem(KV 626) uma obra especial na produo deJoannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart(1756-1791), seu nome de batismo, e nunca ser demais escrever sobre essa composio enigmtica. Todos sabemos, pela maioria das fontes, que a obra foi encomendada secretamente pelo conde Franz von Walsegg (1763-1827) para ser executada no primeiro aniversrio de morte da sua esposa; que Mozart teria morrido antes de completar oRequiem; e que sua viva,Maria Constanze Caecilia Josepha Johanna Aloisia Mozart(1762-1842), teria agido desesperadamente para que algum aluno do esposo, secretamente, terminasse a obra para que ela pudesse cobrar a comisso prometida pelo conde Walsegg, sendoFranz Xaver Sssmayr(1766-1803) o discpulo escolhido.

Ilustrao de Mozart e Sssmayr durante a composio do RequiemComenta-se, ainda, que Mozart estava convencido da proximidade de sua morte enquanto trabalhava noRequiem, e que tal composio se tornaria sua prpria msica fnebre. Mas que parte do Requiem o prprio Mozart efetivamente concluiu? O quanto Sssmayr escreveu ou completou depois de sua morte? Oficialmente, afirma-se que o compositor deixou finalizado oIntroitus(Requiem aeternam) e esboou os temas doKyrieat o final doHostias. OLacrimosateria ficado apenas com oito compassos. Sssmayr, ento, terminara oLacrimosae teria composto totalmente oSanctus, oBenedictuse oAgnus Dei. Mas esse assunto est longe de se encerrar.

Eybler, a primeira opo de ConstanzePara comear, a prpria contribuio de Sssmayr est sob suspeita. Sua escolha foi praticamente um ato de desespero da viva, pois Constanze, ofendida com esse aluno de Mozart por razes que j no lembro, segundo ela mesma declarou, encomendou a finalizao da obra a outro discpulo:Joseph Leopold Edler von Eybler(1765-1846), mas este recusou (talvez por se sentir honestamente incapaz de produzir msica ao nvel da remanescente), motivo pelo qual Constanze no teve outro remdio seno encarregar o trabalho a Sssmayr.

O abade Stadler, velho amigo dos MozartA viva, em reveladora carta ao antigo amigo da famliaMaximilian Johann Karl Dominik Stadler(1748-1833), de maio de 1827 (quase 36 anos aps a morte do marido), reduz drasticamente a contribuio do aluno de Mozart: [] eu achei que qualquer um poderia fazer aquilo [] (possivelmente a ao pontual de copiar a msica doIntroituseKyriepara oCommunio). E continuando, ela diz: []porque TODAS as partes principais j estavam escritas[].

Fotografia recentemente descoberta de Constanze Mozart, aos 78 anos (outubro, 1840)Nessa mesma carta, Constanze narra que, nos ltimos dias de sua vida, Wolfgang trabalhou vrias vezes noRequiem, acompanhado por Eybler e Sssmayr, e queela mesmaparticipou do ensaio de vrias partes. Vale a pena ressaltar que Sssmayr estava morto h 24 anos nessa poca e Constanze, naquela altura j idosa, no tinha motivos aparentes para mentir pelo contrrio: agiu de modo a fazer justia memria de Mozart, ao divulgar detalhes valiosos sobre oRequiem.Em tal correspondncia, disse ainda a viva: [] Parece-me estar ouvindo Mozart quando dizia a Sssmayr: Voc est a como um pato no meio de uma tempestade. Voc nunca poder entender isto'[]. Isso j suficiente para qualificar como insuficiente e inapta a capacidade de Sssmayr para tal complexidade de trabalho, indicando que Mozart dificilmente, ou jamais, iria depositar expectativas sobre tal aluno com a misso de completar uma obra sua. Acredito, assim, que Mozart no escolheu Sssmayr para confiar a tarefa de completar sua missa fnebre. Aqui vem a pergunta oportuna: e ainda havia algo a ser escrito? Pelo que Constanze afirmou em sua carta (dito acima),no; tudo foi deixado pronto pelo marido. E onde foi parar o material original de Mozart?

Casa em que Mozart faleceu na Rauhensteingasse, centro de VienaPara agravar ainda mais a situao de Sssmayr, Constanze chega a sugerir a Stadler queele FURTOU apontamentos que Mozart tinha em seu quarto, aproveitando as circunstncias. Esse detalhe crucial e suficientemente grave para colocar em xeque a contribuio de Sssmayr noRequiemde Mozart. Teria Sssmayr copiado os rascunhos de Mozart com sua caligrafia e destrudo o material original para garantir sua participao na obra? No, ele fez piorA atitude de Sssmayr aps concluir o servio doRequiemfoi lamentvel: ele passou a divulgar e atribuir a si praticamente aautoria totalda obra, injustiando o verdadeiro autor e seu mestre. A reao geral contra tal absurdo foi forte e imediata entre os mais chegados a Mozart, desde Constanze at o abade Stadler. Apimentando a situao, o renomado pesquisador mozartiano Howard Chandler Robbins-Landon, recentemente falecido, deixou provado que, depois da morte de Wolfgang, seu aluno se aproximou do grupo deAntonio Salieri(1750-1825), conhecido como o maior rival de Mozart, e defendeu que, j nessa poca, ele jogava nos dois times.

Salieri, uma posteridade infelizAcredito, sem qualquer dvida, que Mozart j tinha, desde os primeiros momentos, oRequiemtotalmente planejado em mente, como era a praxe. Sssmayr havia ajudado Mozart como copista de suas duas ltimas perasLa Clemenza di Tito(KV 621) eDie Zauberflte(KV 620), tendo, ainda, composto recitativos secos para a primeira, devido ao curtssimo tempo disponvel para seu mestre concluir a obra. A julgar por sua produo, e registros disponveis, o talento de Sssmayr pode ser considerado mediano, nada excepcional.Em toda a extenso do Requiem, o resultado impressionante: a obra possui tal potncia expressiva, uma fora comovente to pronunciada (e, em alguns momentos, assustadora), uma coerncia e unidade sistmica irretocvel, que s pode ser obra de um msico excepcional Contra as pretenses de Sssmayr a prpria envergadura do Requiem mais do que suficiente. Na beleza e poderio da msica est a melhor prova de que essa missa teve um autor essencial: MOZART, como tambm defende o historiador Lincoln Ral Maiztegui-Casas.Com a morte prematura de Mozart, oRequiemeDie Zaubertflte(KV 620) passaram a representar a plena maturidade musical do compositor. Tais obras podem ser consideradas seus trabalhos mais refinados, pelo menos quanto ao processo tcnico de composio e capacidade artstica, ou mesmo em termos de esplendor artstico absoluto, como afirma o professor Christoph Wolff, da Universidade de Harvard, na sua obraMozarts Requiem: Historical and Analytical Studies, Documents, and Score(1994) estudo mais importante sobre a obra j publicado.

Schtz, genial precursorPercebe-se que Mozart usa oRequiemeDie Zauberfltepara exibir toda a variedade de estilos e conceitos musicais sua disposio, assim comoHeinrich Schtz(1585-1672) havia feito mais de 150 anos antes dele, quando foi contratado para compor uma obra fnebre para o conde Heinrich Posthumus Reu zu Gera, governante da Turngia (Alemanha), falecido em 3 de dezembro de 1635 (vdeo abaixo). perfeitamente possvel, e natural, que Mozart tenha resgatado e reutilizado msicas que marcaram sua vida naquela circunstncia de angstia, sofrimento e doena, como veremos a seguir.

Hndel, a luz barrocaORequiemcomea com a idia meldica central no fagote. Tal linha tem uma melodia coral que tambm foi usada porGeorg Friedrich Hndel(1685-1759) emThe ways of Zion do mourn(HWV 264), hino fnebre dedicado rainha Caroline von Brandenburg-Ansbach (1683-1737), da Inglaterra (udio abaixo) com textura orquestral muito semelhante aoIntroitusde Mozart. O uso desse material antigo por Mozart preserva o significado implcito desse texto fnebre enquanto o moderniza no estilo orquestral vienense, exaustivamente estudado pelo professor Daniel Heartz (University of California, Berkeley).

Michael Haydn, dono de um notvel RequiemMozart acrescentou um solo de soprano (Te decet hymnus) usando algo do canto gregoriano que havia sido utilizado como melodia porJohann Michael Haydn(1737-1806) irmo do clebre Franz Joseph Haydn (1732-1809) em suaMissa pro defuncto Archiepiscopo Sigismondo(MH 155), dedicada ao conde Sigismund von Schrattenbach (1698-1771), arcebispo e governante de Salzburgo (ustria), que o prprio Mozart havia cantado em sua juventude (vdeo abaixo). No entanto, ao invs de torn-lo uma mera melodia sobre um simples acompanhamento, Mozart acrescentou a linha de canto com todos os motivos precedentes doIntroitus.Mozart se inspirou em outra obra de Hndel para o seuKyrie: oDettingen Anthem, HWV 265 (udio abaixo). Aqui o mestre austraco exibe claramente o seu gnio contrapontstico ao trabalhar com uma rigorosa fuga coral. Para contornar a sensao arcaica desse movimento, Mozart, ao invs de cadenciar em acorde completo, cadencia num acorde neutro acorde sem tera: somente fundamental e quinta (a tera de um acorde determina se o acorde ser maior ou menor; Mozart, ao deixar um acorde sem a tera, causa uma ambiguidade, pois no h como se saber o modo no qual o acorde se encontra).Mozart comeou a trabalhar inicialmente sobre oDies irae, por ser esse texto (especialmente dramtico) o ncleo de qualquer rquiem (uma tradio austraca, possivelmente iniciada por Michael Haydn), dividindo as vinte estrofes do texto latino doDies irae(chamadoSequenz) em seis sees musicais para que se pudesse variar as texturas, foras musicais e caractersticas de estilo ao definir os diferentes cenrios/imagens do texto. O movimento de abertura usa todas as foras disponveis, remetendo-se ao estilo sinfnico. Duas sees com temas contrastantes so interligadas por cordas ligeiras e fascas de sopro que inflamam um motivo cromtico e fortemente marcado emQuantus tremor est futurus.O prximo movimento,Tuba mirum, usa um trombonecantabilee o baixo solista para espalhar o assombroso som do Juzo Final. A melodia do baixo solo busca a sonoridade de uma trompa natural para acompanhar o canto do trombone. Este desperta mais trs cantores que fazem, cada um, uma declarao e, em seguida, envolvem-se num discurso iluminado. ORex tremendaefaz uso de recursos do barroco francs com seu ritmo duplamente pontuado e alternncia de registro e dinmicas.

W. F. Bach, msica no DNAPara a elegante fuga do tipoEmpfindsamer Stil(ou estilo sensvel, tcnica de composio desenvolvida na Alemanha do Sc. XVIII com o objetivo de expressar sentimentos verdadeiros e naturais, bem como mudanas repentinas de humor) noRecordare, Mozart se inspirou na Sinfonia em R menor (vdeo abaixo) deWilhelm Friedemann Bach(1710-1784), filho primognito e predileto de Johann Sebastian Bach (1685-1750), aplicando com sucesso essa texturagalant(com cadncias de dana) numa pea vocal dentro de um memorial fnebre.Mozart parafraseou sua prpria Sinfonia n 25 (KV 183) noConfutatis, usando o tema final (vdeo abaixo) para o coro masculino e instrumentos de sopro sobre uma figura furiosa (roulade) nas cordas, contrastando com o coro feminino que canta com uma suave melodia dos violinos. O coro e orquestra se renem em um dos esforos harmnicos mais complexos do Sc. XVIII, passando por sete pontos-chave antes de chegar parte final daSequenz, oLacrimosa. Oficialmente, Mozart teria trabalhado noLacrimosano dia em que morreu, e as figuras das cordas foram descritas como clamor em lgrimas.ODomine Jesu Christe o recanto barroco, a prola diferenciada doRequiem. Comea como um coro alemoconcertato, observando o contraste dinmico (o que o musiclogo e regente Nikolaus Harnoncourt chama de chiaro-oscuro) e o contraste entre os registros (agudo/grave) e de foras musicais. Certas sees ainda oferecem uma fuga coral (Ne absorbeat) e, em seguida, o tema original numa fuga para solistas (Sed signifer), seguido de outra fuga (Quam olim Abrahae). Mozart cria sujeitos e contra-sujeitos, enquanto mantm uma perfeita fantasia coral barroca. Este movimento se vincula aoHostias, um minueto completo comritornelli, como o utilizado nas cortes, inclusive usando a hemola nas cadncias das danas.

Conde Walsegg: tudo partiu de sua iniciativaOSanctus a nica parte verdadeiramente alegre de um rquiem. Mozart escreveu o seuSanctusdecorativamente elegante e sinfnico, enquanto usa tcnicas modernas, como a dinmica gradual. seguido por uma nica fuga noHosanna; Mozart utiliza o contraponto invertido junto ao acmulo (romntico) de sujeitos nostretto. OBenedictusque se segue um dueto duplo de pera, umtour de forcede conversa musical entre linhas de solo e acompanhamento orquestral suave.OAgnus Deiutiliza rico contedo harmnico e a antiga tcnina dobaixo andante, em contraste com simples e suaves seesa cappella. A transio para o movimento final,Communio, por meio de uma misteriosa desconstruo cromtica (requiem sempiternam) lembra o Quarteto Dissonante (KV 465) de Mozart (vdeo abaixo). Essa ponte bem moderna fecha a obra com dois movimentos que so uma repetio musical dos dois primeiros, bem como uma homenagem final sensibilidade barroca de simetria estrutural na msica.