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BIBLIOTHECA DA GAZETA DE NOTICIAS MOTTA COQUEIRO ou A PENA DE MORTE POR JOSÉ DO PATROCÍNIO RIO DE JANEIRO TYPOGRAPHIA DA GAZETA DE NOTICIAS 72 RUA SETE DE SETEMBRO 72 1878

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BIBLIOTHECA DA GAZETA DE NOTICIAS

MOTTA COQUEIRO ou

A PENA DE MORTE POR

JOSÉ DO PATROCÍNIO

RIO DE JANEIRO TYPOGRAPHIA DA GAZETA DE NOTICIAS

72 R U A S E T E D E S E T E M B R O 72

1878

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JOSÉ DO PATROCÍNIO

RIO DE JANEIRO

72 R U A S E T E D E S E T E M B R O 72

B I B L I O T E C A DA G A Z E T A DE NOTICIAS

MOTTA COQUEIRO ou

A PENA DE MORTE POR

TIPOGRAPHIA DA GAZETA DE NOTICIAS

1877

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MOTTA COQUEIRO OU

A P E N A DE MORTE

1 A FORCA

Macahé, pequena cidade do litoral da província do Rio de Janeiro, não conhece a vida activa e estrepitosa das grandes cidades populosas.

Olhando ao longe o oceano que vem, ás vezes acovardado e murmurando ape-nas, ás vezes espumando e bramindo, es-teoder-se ou arremessar-se na praia d'ond9 ella eurge, o aspecto da cidade e o do oceano contrastam singularmente

E' que enfrentam o movimento das vagas, quasi sempre brusco e violento, e a mais traaquilla quietação; o ruido que pop horas de tempestade assoberba-se, avoluma-se e prorompe em escarceus medonhos, e o silencio que de continuo reina nas ruas e praças pouco transitadas.

Para ligar a vida da cidade e a do oceano s<5 ha os navios ancorados, que

ficam silenciosos, oscilando ao tom das ondas, de mansira que os seus extensos mastros como que fingem pontes move-diças interpostas a ambos.

No dia Ú de agosto de 1855 dir-se-hia que uaria inesperada mudança se havia effeetuado, trocando-s6 í'Gp6niinaméiiíe papeis entre si.

Ao passo que as vagas erguiam os collos azulados a roseiar-lhes a orla branqui-centa no colorido de uma serena madru-gada, a cidade já acordada enchia-se dos sussurros proprios de uma reunião po-pular.

De toda a parte afliuiam cavalleiros e carros de bois, conduzindo famílias, que presto apeiavam e seguiam em direcção ao mesmo logar.

Irisavam as ruas as roupas variegadas e vivas dos moradores do interior, e os transeuntes apenas cortejavara-se, sem

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MOTTA COQUEIRO

que nenhum (Telles reparasse que o outro, quebrando os esfylos da boa camarada-gem e sociabilidade sertaneja, não fizesse uma longa parada para informar-se por m i u i o d i saúde e negocios do seu conhe-cido.

Essa actividade insólita denunciava que toda aquella gente reuni -se para assis-tir a alguma scena extraordinaria, algum d'esses acontecimentos memoráveis que se gravam indelevelmente na memoria dos povos, desinteressada archivista aos factos qus mais tarde terão de ser julga-dos pela imparcialidade da historia.

Os pontos mais concorridos eram a praça Municipal e a rua que, atravessan-do-a, vai terminar na praça do Rocio.

No primeiro largo a população affiuia, estacionava, engrossava-se agora e para logo rareava, escoando-se para sul e norte pela rua seccante.

Contrapondo-se á tamanha actividade, á serenidade expansiva das physiono-mias, oadj havia o reflexo de um senti mento honesto, o sino da Matriz come-çava a dobrar por morto.

Esse facto, que destoa dos sentimentos religiosos das populações do interior,fica-ria, porém, cabalmente explicado para aqaelles que se acercassem dos grupos,que estadiavam pelas praças citadas e ar.np--

pêiáT cadeia da cidade.

— Homem ! eu se vim aqui não foi para regosijar me com a morte do infeliz ; te-nho certe/.a de que elle entrou n'isso como Pilatos no Credo.

— O Sr. está fallando serio, Sr. Mar-tins ?

— Se estou, era até capaz de jurar que elle nãa mandou matar.

— Ora isto é que é vontade de teimar. Todas as testemunhas foram concordes em dizer que foi elle.

— Então, Sr. Luiz de Souza, se eu fôr dizer aqui ao Sr. Cerqueira, e este a outro, e a outro que o senhor mandou

matar uma familia, isto, por ai , uma prova contra o senhor ?

— ValM-me Deus, isto não vem a p AIo O Motta Coqueiro não está n'esta ca ,o , era um.homem tido e havido por n;áu eno todo o Macabú; malquisto com seu.- vla-nhos sérios e só cercado de homer^ sgu^e.v ao Faustino, um fugido das galé*, e o Florentino, o tal Fiôr, bem conhecido pprperverso.

— Os senhores dizem só , mas não apontam os males que elle fez. O proprio Francisco" Benedicto foi por elle acolhido em sua casa, quando, tendo sido corrido pelo Di . Manhães, não tmíia onrie cahir morto.

~ Agora é que o senhor disse tudo ; para o desgraçado carnr morto era-pre-ciso me imo ir aggregar-se para a casá do faccinora, que não só lhe desmoral!sou uma filha, mas ain Ia lhe queria roubar as bemfeitorias do sitio.

— E o que me diz o Sr. Martins a cer ca da mulher de Motta Coqueiro ? interrom-peu um novo interlocutor.

Eu sou da opinião do Sr. Luiz de Souza; para mim, Motta Coqueiro era capaz da fazer ainda jnais, principalmente porque era açu lado pela mulher, a qual dizia que, para despicar o seu marido, venderia até o seu cordão de ouro.

— Por Deus ou pelos diabos; os senhores faliam só e não me deixam f&llar. Com os diabos, Motta Coqueiro já foi condem-nado ; dentro de uma hora ha de ser pen-durado pelo carrasco ; que eu diga que sim, que os Srs, digam que não, nada lhe approveita ; mas a verdade antes de tudo. Eu não fallo por mim. O Conceição é homem a toa ?

— Eu vou com elle até o inferno. — Pelo menos nunca ouvi dizer que

elle não fosse um homem sério. — Pois o Conceição diz que Motta Co-

queiro é innocente oo assassinato da fa-milia de Francisco Beneiicto,

— Ora essa I . . ,

• 4 .

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OU À PENA. DE MORTE

jL' E então porque não foi ser testemu-nha da defesa, se elle sabia do facto ? / — Não foi, e*fez muito bem; eram ca-pazes de dizer que ©11© também ©ra um dos co-reus, porque o Conceição, como sabem, estava na casa de Motta Coqueiro na noite-em qué se deu o crime.

— Ponhamos as cousas nos seuslogares, Sr. Martins, interrompeu Luiz de Souza. Niaguem diz que o Coqueiro foi o mata-dor, o que se diz é que elle foi man-dante, e não havia da dar as ordens á vista de Conceição. Já vê que este nada pode saber com certeza.

— Sr, Luiz da Souza, eu não quero brigar com v-:cê, e por isso o melhor é cortar questões, O Sr, fica com a sua opi-nião e eu fico com a minha, o tempo dirá qual de mói tinha razão. Eu digo que é falso, é falso, é falso ; o Coqueiro não mandou fazer taes mortes ; esae desgra-çado morre innoeente.

Pela conversação a que acabamos de assistir é f scii saber qua achamos-nos no dia em que a jiistiça publica, para tíesaf-frontar-se, ou meiiior, desaffrontar a in-dignação publica, ia levar ao caiafalso Manuel da MotU Coqueiro, que era geral-mente accus&do como mandante do assas-sinato execrando, que exterminou toda uma família á excepção de uma moça, que não se achava no logar do crime.

A noticia lactuosa correu veloz por todo o Brazil, e todo o povo ergueu um brado de maldição contra os assassines.

Pedia-se. em altos brados, nas reuniões e na imprensa, uma punição famosa, que passasse da geração em geração, attes-tando que ao menos os contemporâneos, impotentes para reparar o crime, tinham sido inexoráveis n'um castigo tremendo.

O nome de Motta Coqueiro ©ra profe-rido com horror e bam assim os dos seus cúmplices, e as mães, ao verem os pa?sar, ensinavam á« creanoinhas a maldizei-os.

O governo provincial e as auctoridades looaes uniram-se em solicito exforço para a captura dos réus, cffereeendo especial-

mente ao que prendesse o mandante uma quantia — com que nunca sonharam os pobres moradores das mattas, por onde Coqueiro vagava refugiado;—dois contos de réis.

Entretanto do meio do odio geral qu© cercava mais estreitamente o nome d© Motta Coqueiro alguns ânimos benévolos; concordes em amaldiçoar os criminosos, affastavam todavia o seu vereiicto da cabeça do principal accusado.

Era d'esse numero o ar lente Sr. Mar-tins, que sempre protestando não aceitar discussões a respeito do assumpto geral da conversação, não podia entretanto resistir a não chegar-se aos grupos para lhes ou-vir as opiniões.

Homem tão honrado e bondoso, quanto gárrulo, o Sr. Martins n'aquella manhã discutiu com quasi toda a população de Macahé, e o maior numero das vezes con-cluiu repetindo a phrase final da sua con-versação com Luiz de Souza: E' falso, é falso; o desgraçado morre innoeente.

Desanimado e entristecido por não en-contrar na compacta massa d© poyo uma pessoa só que concordasse comsigo, plena-mente, na innceentação de Coqusiro, Mar-tins atravessava rapidamente o becco do Caneca, quando foi detido por uma vigo-rosa mão.

— Cam que o Sr. Martins veiu tam-bém assistir ap enforcamento da Fera de, Macàbút

Estas ultimas palavras foram, pore'm, proferidas com accento tão repassado de tristeza, que o Sr. Martins, sorrindo, abriu os braços © Telles estreitou o seu interlocutor, exclamando:

— Até que,emíim, encontro um homem que pensa commigo 1

E os peitos (Taquelles dois homens dei-xaram que perto batessem poc longo es-paço os c orações, que palpitavam por ura sentimento bem diverso do que animava á maioria da cidade.

Quanjo separaram-se ambos tinham os olhos rasos de lagrimas, e por um movi-

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MOTTA COQUEIRO

mento accorde corréram o olhar em redor.

Aquelle olhar na sua tímida expressão trahia o temor que ambos, mas principal-mente o novo personagem, tinham de ser vistos por alguém; tão grande era a èxaltação dos espirites que atemorísava até a livre manifestação de sentimentos benévolos para com o sentenciado, sem logo incorrer em censura.

— Não é verdade, Sr. João Sèberg ? O Coqueiro morre innocente.

— E' verdade, meu amigo, e ainda agora mesmo acabo de conversar alli com a D. Maria; respondeu Seberg, apontando para uma casa que tinha a porta e as janellas fechadas.

— E a D. Maria é também do numero das que se arrebicaram para vêr a execussão.

— Não é, felizmente. Acaba de contar-me que as suas duas filhas lhe vieram pedir para virem, em companhia das vi-sinhas, vêr este novo assassinato. Negou-lhes a licença e até reprehendeu-as forte-mente. Ainda agora quando o sino dobrou pela vez, que será penúltima, antes de separarmos-nos para sempre do des-graçado, ella que estava conversando commigo, empallideceu, mandou que ac-cendessem as velas do oratorio, e chamou as filhas para que ao ultimo dobre peçam a Leus que perdôe-nos a cegueira da nossa justiça.

Faz pena a pobre senhora ; nem que fosse parenta d'elle. Só ouvindo-a; ella narra diíferentes obras caridosas feitas pelo infeliz Coqueiro, e só interrompe-se para chorar.

— Isto revolta mesmo a gente, Sr. Se-berg: vêr morrer um amigo innocente e não ter força para salval-o.

— E elle que resistia sempre que se lhe queria dar meios para fugir ou . . . suici-dar-se, o que era muito melhor do que ir parar ás mãos do carrasco.

— Desgraçado,

— B nem ao menos vêr na hora dí -1« / : rer a esposa, e os filhos, que não s ; vn ti-veram a estar aqui, temendo que enforcassem também.^

— B' um escandalol — E1 uma requintada jnfamia. Obsta-

ram a defesa, difíiaultaram as prov.v, andaram com elle de Herodes para Pila-tos, e afinal chamaram requintado cies avergonhamènto aquelje grito de deses-pero, com que elle acabou de responder ao ultimo interrogatorio.

Não viram nas barbas e nos cabsilos que de todo embranquecerem, na maci-lenta côr de seu rosto, nas palpebras sem-pre entrecerradas, a expressão de um generoso coração, que, talvez conhecendo o culpado, não condemnava ninguém.

Adeus, Sr. Martins, rezamos por elle, e que Deus perdôe a quam o faz morrer.

Separaram-se, e o Sr. Seberg, com a cabeça baixa e vagaroso passo, tomou para a banda da praça Municipal. A sua longa barba grisalha c&hia-lhe na sobre-casaca preta toda abotoada, o seu porte, o seu ar, como que se iluminavam com as scintillações da justiça.

N'aquella hora, esse homem severo, completamente vestido de preto, e com o semblante embaciado pela mais sincera tristeza, parecia o latente remorso de uma população inteira, que vinha assistir á tragedia judiciaria para mais tarde lavar a nodoa que manchava as victimas da lei.

Ba repente Seberg estacou, como que detido por um braço de ferro.

O sino da Matriz dobrava e, na outra extremidade da praça, o povo que se api nhava, enoontroando-se, bradava:

[ Lá vem elle ; lá vem elle ! Os gritos que, avassallando o sussurrar

perenne da multidão, como que chumba-ram os pés de Seberg ao chão da praça, so-bre-excitavam cada vez mais os espiritos.

Os vários grupos dispersos puseram se em desordenado movimento. Cada qual queria chegar primeiro ao ponto d'onde

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OU Â PENA DE MORTE - 7

os gritos partiram. Os mais nroços corriam rapidamente, e assenhoras idosas, camba-leando aqui e acolá, e praguejando no puro estylo do beaterio, aproximavam-se como um bando de ganços espantados.

Os pais e mais, no intuito de darem desde a infancia um exemplo â sua pro-genie, levavam comsigo os filhos, e na velocidade de que precisavam dispôr, quasi que os arrastavam, ao som de ralhos impertinentes.

Toda essa gente apr,essava-se, corria, agglomerava-se, encontrava-se, e alguns mais imprudentes, querendo a todo o transe romper caminho no mais denso do ajuntamento, provocavam, da parte dos desalojados, violentos empurrões e phra-ses duras, a ponto de ssr necessaria a intervenção da auctoridade para evitar eonflictos.

Não foi um rebate falso o que se espa-Ihára.

Já a campainha, tangida por um dos irmãos da Misericórdia, badalejava lugu bremente á porta da cadeia.

Pedia-se silencio e repetiam-se insisten-tes psios por toda a multidão.

— Ouçamos o pregoeiro ! ouçamos o pregoeiro! bradava se por toda a parte.

Esse novo fermento lançado á soffrega curiosidade de todos, fez com que alguns se destacassem, porque temendo não po-der vêr d'ahi o spectaculo, queriam bus-car em outro logar melhor ponto de ob-servação.

O Sr. Luiz de Souza muito interessado em coadjuvar a justiça, quanto estivesse em suas forças, elegeu se capitão dos re-tirantes e suando em bica, bufando e abanando-se com o chapéu, gritava a bons pulmões:

— Vamos para o Rocio, lá o bicho não nos escapará.

Dentro em pouco o Rocio recebia mais um numeroso contingente de espectado-res, anciosos por verem o epilogo d'esse rosário de horrores, do qual durante tres annos esteve pendente a attenção publica,

A praça do Rocio, em que devia ter logar a execução, estava quasi l i teral-mente cheia, e, soturnamente sonora, transbordava esse zunido abafado {que derrama o vento atravessando um tunnel.

Reinava ahi a alegria e o dia esplen-dido, todo luz e céu azul, aqui e acolá sa- > rápintâdo de nuvens alvadias, como que santificava esse regòsijOj a não ser que na opulência de brilho um poder occulto ten-tasse _ver se era possível que tim raio ao menos peneirasse n^quellas consciências.

Abertos òs guarda-soes e reunidos em grupos, os curiosos matavam o tempo commeutando as peripecias do crime e do processo, louvando a maioria o bom an-damento da justiça.

Um d'esses grupos chamava a attenção pelo ar de mysteriosa intimidade que o envolvia.

Tinha a palavra um moço alto, de com-pleição fraca, elegantemente vestido, e em tudo differenteyos habitantes do logar.

— Se eu tivesse influencia, dizia elle, obstaria por hoje a execução do Coqueiro.

— Era violar a lei, doutor; o codigo or-dena que a execução se effectue no dia im-mediato ao da intimação da sentença ao reu.

— Sim, senhor; mas se o réu estiver tão doente que nem se possa levantar, se o reu estiver moribundo?

— Mas eu vi o Coqueiro quando chegou da côrte e não me consta ainda hoje que elle esteja em tal estado.

— Pois esteve bem mal esta noite. Ce-dendo á vergonha ou ao desespero tentou suicidar-se, e para isso serviu-se de um pedaço de vidro com o vqual faz um feri-mento no pulso.

— E o que faziam os guardas f — Não sei á uma fabula inventada pelos

amigos ? — Não, senhor, fomos vêl o, eu e o Dr.

Silva, e ambos ligamos-lhe as veias. — Embora, doutor ; elle p<5de ser con-

duzido em uma padiola; e eu tenho cer-

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MOTTA COQUEIRO

teza de que não sahirei hoje d'aqui sem vel-o pendurado acolá.

Na direcção indicada pelo interlocutor estava levantada a machida sombria da justiça social.

A sua fealdade commovente, brutal encarnação dos sentimentos da popula-ção, pavoneiava-se, entretanto, com o epi-theto honroso de instrumento da dcsaf-fronta publica.

Todos fitavam-a com sympathia, cam estremecimento mesmo, e caía um bus-cava tomar posição apropriada a têl-a de frente.

Talvez pela imaginação exaltada do povo passassem as imagens das victimas immoladas á sanha faccinorosa dos seus matadores.

Diante da horrorosa construcção, a me-moria popular avivava recordações de outros tempos, ouvidas em serões de fa-milia aos pais já finados.

— Ainda hoje isto é bom. Contava-me meu pai, que ouviu ao meu avô, que, no tempo de D. João VI, primeiro o carrasco desmonhecava com um golpe as mãos do padecente e só depois é que elle era levado à forca.

— Era o que esse precisava; eu sigo a letra do evangelho; quem com ferro fere com ferro seja ferido.

O gracejo por sua vez vinha pagar tri-buto á reunião piedosa de tantos corações jusfceiros, que n^quelle momento se ex-pandiam folgadamente n'uma espontânea conformidade de sentimentos.

De vez em quando toda a massa popu-lar ondulava, afíluia para um ponto e refíluia depois.

Era uma voz que se levantava para apregoar que estavam rufando os tam-bores e que, portanto, em breve se desdo-braria o painel anciosamente esperado.

Serenava o susurro; as mãos arqueia-vam-se em torno dos pavilhões das ore-lhas, e todos tomavam a attitude de quem escuta.

Tamanha anciedade denunciava bera que, em meio de toda essa gente, não havia quem reflectisse no que ha de io"-quidade n'essa desaffronta do crime peie crime.

A justiça, dynamisando a barbarida».•.•»,, folga e jacta-se de dar aos descendentes dos cffendidos uma reparação, mas não vê que não será multiplicando a orphan • dade e o desamparo que ella chegará um dia a trancar as pri&ões.

A baba do sentenciado ca: como ináe-levelmancha negra sobre to^os os seus; e não pó le haver maior torpeza do que condemnar a quem não mereceu a con-demnação.

Os magistrados e os que mandam exe-cutar essas barbaras sentenças dormem

„ tranquilamente na p^z de uma consciên-cia honesta, porque entregam ás mãos do carrasco as pontas da corda ou o cabo do alfange.

k sociedade por sua vez applaud*, na magistradura e em si mesma, a segu-rança dos laies e o amor da justiça, no dia em que das alturas da Orca pende mais um cadaver.

E todavia pareço que ha menos torpeza em um h jmem matar outro, do que em reunirem se miihsre* para t»atir, um £Ó.

Não pensavam, porem, d'este modo os grupos que estscionavam no Rocio no dia em que se devia executar osaccusados pelo assassinato da família de Francisco Bsne-dicto.

Ao contrario: havia quasi duas horas que do Rocio á cadeia andavam ancio?cs a espera de ver coasammar se a execução.

Todas as janellas estavam cheias, e as mulheres, coradas pelo sol e excitadas pelo desejo de emoçõ:s, debruçavam-se cos peitoris espiando para o logar de on'e devia vir o préstito.

Um incidente inesperado veiu pôr bem patente a approvação publica ao decreto dos tribunaes.

Espalharam-se dois boatos ao mesmo tempo.

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Propalou-se que a munificência do poder moderador reservara-se para ir no alto do caiafalso tirar do pescoço dos padecentes o baraço infamante, e assim rest i tui l-os á vida, ao remorso e ao arre-pendimento.

Ninguém quiz dar credito apparente-mente, mas, em consciência, cada um sen t iu se profundamente despeitado e de-n u n c i a v a o despeito repetindo entre um s o r r i s o : não é possivel!

D'ahi~a pouco, porém, ajuntava-se um complemento ao boato, e a população alarmou se seriamente.

Divulgou-se que pessoas fidedignas ti-nham visto chegar á toda a brida um cavalleiro. Accrescentava-se que o recem-chegado era campista e desconhecido no legar.

Podia bem ser mais um curioso, mas também podia ser o portí dor do perdão, visto que o segundo defensor de Motta Coqueiro era residente em Campos e pro-mettera salvar o seu cliente a todo o custo. A noticia inspirou geral desagrado e ou-via-se em todos os grupos unisonamente dizer-se :

— Se fizerem isto, fica estabelecido que podemos de hoje em diante matar a qu^m nos aprouver, sem que possamos ser pu-nidos. Quem perdôa Motta Coqueiro não pôde condemnar a mais ninguém.

Ainda os ânimos não tinham siquer contido o choque produzido pelo boato, e já um outro corria de ouvido em ouvido.

Ebte era ain !a mais grave e mais pro-prio para irritar os justos instinctos dos curiosos.

Aífn mava-se o primeiro boato, e caso elle se não realisasse, nem por isso o principal sentenciado deixaria de burlar a sentença.

O r»eio empregado era simples. A corda fôra embebida em agua-raz e portanto não poderia resistir ao peso do padecente.

Logo que ella arrebentasse, a bandeira rta Misericórdia seria collocada sobre

Coqueiro e os seus amigos impediriam a que à execução se renovasse.

— E' um attentado sem nome, excla-mava colérico o Sr. Luiz de Souza. Mas emquanto eu fôr vivo, veremos se faz-se ou não se faz justiça.

A ultima palavra de Luiz de Souza era a que pairava em todos os lábios, e a idèa que motivava a satisfação do. povo.

Não se riam, não se alegravam por des-humanidade; regorsijavam-se crendo que se effectuava uma justa vingança.

Luiz da Souza era a imagem da in-dignação profunda e dos desejos da muitidão, a que acabava de reunir-se mais um espectador.

Era Seberg que, sem saber por que, di-rigira-se para o legar onde lhe estava reservado um golpe tremendo.

N'uma das continuas viravoltas que dava, Luir. de Souza embarrou com Se-berg, e communicava-lhe o occoriido, quando uma circumstancia poz-lhe ponto á narração.

Os écos do clarim da força publica an-nunciavam o sahimento do préstito.

A tropa, que estava postada na frente da cadêa, mano breu e dividiu-se em dois pelotões, formando alas á porta da prisão; e alguns soldados de cavallaria, andando a passo lento, começaram a abrir um claro por entre os espectadores.

A' porta do mal seguro e abarracado edifício,—que desempenhava as funeções de calabouço, com exhalaçoes insalubres de enxovias sórdidas e compartimentos abafaios esem luz,—um irmão da Mise-ricórdia movia compassadamente uma enorme campa, cujas badaladas tristes como que acordavam a commiseração nas almas dos circunstantes.

Semelhante a um bando de aves agourei-ras, tendo pendentes dos hombros os seus balandraus negros, a irmandade da miseri-córdia assomou na porta da cadea e distri-buiu-so em paralleiàs ás alas dos soldados.

Alguns dos irmãos, segurando em uma das mãos uma vara de prata e na outra

OU A PENA DE MORTE 9

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MOTTA COQUEIRO 1 0

uma saccola negra, lá se foram pelo povo dentro a esmolar para os suffragios do que ia morrer.

E aquelles mesmos homens que ainda ha pouco indignavam-se com a s<5 idéa da possibilidade de um perdão, concorriam com o S6U obulo nara "iie a religião se in-cumbisse de redimir na eternidade a;alma d'aquelld a quem attribuiam um crime, que j osfcamente revoltava a todos os espi-rito s bem formados.

Sublime contradicção entre o homem religioso e o cidadão: este consente que a cabeça de uai irmão vá ter ás mãos do carrasco, aquelle dá sinceramente o seu obnlo para queda ignominia social passe o suppliciado ás felicidades sonhadas pela crença,

Tanto é verdade que, em consciência, o povo nlp quer as penas irreparáveis !

Após a confraria app ireceu a bandeira santa, outrora symbolo de esperança, a que se dirigiam os olhares do condam-nado, que ao vel-a, através da memoria afogueada pelas saudades da familia, dos amigos, do trabalhoe da patria, contrapu-nha á imagem horrorosa do cadafalso o sonho consolador do perdão.

Mas h lei inexorável eoademnou desapie-dadamente esta esperança, de maneira que é hoje um apparato v *o o painel em que a pallida Maria, n'um abraço estrei-tado a o cajavoT de Jesus, consorcia-se com o fliho adorado para a conquista da redenapí/ão humana,

A religião no seu painel mostra que possue prra as suprenias desgraças o supremo pori&o; a socieiada com o seu carrasco, alimentado com a lama das en-xovias, diz-nos que para as accusações forrai *aveis ella f ó conhece o castigo ini-quo> e i; i eparavel.

S- gaú, se icnme iiatamenteso painel um. sacardc-te tendo na^ mãos urna grande cruz, na qual abriam-se os braços e con-fraugia-seo corpo Si vido de um Christo ensanguentado, cuja face voltava-se para o lado do padecente.

A poucos passos da cruz e latéraln, r ia a ella, vinha o porteiro tendo nas mà um papel, em que esteva exarad a a s n-tença lavrada pelo tribunal contra o vm.

Quando esta parte do préstito pasmou ^ limiar da prisão, o enorme derramam™ popular, que assemelhava-se a um latiu est agnado, tamanho era o se a silencio e quietação — agito u-se inopinadamôire, brotando n'um surdo morosurio.

O murmurio fez-se sussurro e o sus-surro intenso rumor e ouviram se gritos e choros de crianças.

E' que na porta do calabouço, vestido com a alva foneraria e acompanhado por um sacerdote, acabava de assomar o réu. i

O seu nome era Manuel da Motta Co- 1

queiro. Fôra, havia tr<rs annos um homem „ abastado, inflaencia politica de um mu-nicípio, um dos convidados indispensáveis nas melhores reuniões; agora não era mais do que um padecente resignado mas tido por perigoso e por is:-;o espionado e guar-dado solicitamente pela força publica, em-quanto que, o'hado como um ente repul-sivo, servia de p^ut ? á curiosidade vinga-tiva de uma sociedade inteira.

Com o andar vagaroso, porém firme, veio collocar-se no meio da clareira. Acompanhou-o o saca-dota, que em uma das mãos tinha um livro aberto enaoutra um pequeno crucifixo.

Aos lados d'esses dois homens inermes viam-se o carrasco e oito soldados, com as baionetas caladas.

Pairava sobre este grupo a sclemnidade da morte.

Alto, magro, com as faces, escaveiraáas e ictéricas, marcadas por uma grande mancha arroxeada, as pálpebras entre-cerradas, completamente brancos os com-pridos caballos, as sobrancelhas extrema-mente salientes e espontadas, e as barbas longas de sob as quaes pendia-lhe de volta do pescoço até á cinta, entorno da qual se enroscava, o baraço infamante; Motta Coqueiro tinha mais a apparencia, de um martyr do que a de um scelerado.

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OU Â PENA DE MORTE

Crusados sobre o peito os braços al-gemados, a cabeça inclinada, os olhos fitos no chão., immovel no meio d^quella multidão agitada, que se collocava nas pontas dos pés para melhor âtal-o; o seu porte solemne, a compostura evangelica do seu semblante fazia pensar ou na mais requintada hypocrisià, ou no mais inexplicável dos infortúnios.

Ao lado d'esse rosto, cuja expressão fôra amortecida pela desventura, con-traste enorme, apparecia o carão negro, estúpido e truculento do carrasco, sur-gindo de sob ò gorro vermelho como um vomito fulig noso da gargaata de uma fornalha.

Fu?,ilava-lhe nas feiçoas o garbo bestial do crime.

Com a mio esquerda collocada á ilharga e arqueado o braço íemi-nú, esprai& va pela mó de basbaques meio ater?orada5 o olhar sanhudo, coado atravez de umas pupill&s n-egras, borradas n'uma córnea injectada de sangue.

Pelas narinas carnudas e achatadas a sua boçal ignorância aspirava com o ar o alento necessário aos seus instmclos de fera.

Após elles vinham o juiz municipal, revestido com a toga de magistrado, e o escrivão, trajado da preto.

Uma linha de praças fechava o préstito funerário.

O silencio, in -tantes quebrado, foi para logo restabelecido e dentre elle só partia o soar agoureiro da c^mpa, tangida em badaladas espaçadas, quando o porteiro começou a apregoar em voz alta a sen-tença ps a quU Manuel da Motta Coqueiro era condenando á soffrer a pena capital, por ser mandante dos assassinatos de Fran-cisco B nedicto, sua mulher e seis filhos.

Ao termo da leitura, soaram os tambo-res e as cornetas unisonrs com o badalejar logubre da campa, * o préstito d^flloo.

Então á semelhança is uma floresta que á tomada de assalto por um tufão e ao passo que se retorce e anceia, desfaz.se

em susurros e farfalhos prolongados, o povo movenio-se para acompanhar os personagens da medonha tragedia, enchia o espaço de um ruido confuso.

Era como ouvir-se ao longe o roncar de uma cachoeira.

Contidos por algum tempo pelacom-misòração, ãs exclamações, os comucen-tarios, as pi agas jorravam agora da todos os lados.

Alguns mais exaltados negavam-se á supplica que lhes era dirigida pelos cari-dosos irmãos da Misericórdia.

B"esse numero era uma velha, que tendo ii® dos bra.ç^s passado ao redor da cintura de uma rapariguinha morena, de olhos es-bugalhados e boquiaberta, via pnssar o préstito, parada a um dos cantos da Praça Municipal.

A darmos credito aos muchôchos que provocava aos vizinhos, a feia da valha, era uma dessas beatas impertinentes, que não se importam de incoaunodar aes mais com tanto que eJlas não sejam ao de leve prejudica la i nos seus commodos.-

Quando Coqueiro passava-lhe defronte, a velha enrugando aináa maia as enregi-lhadas pelancas, que outfrora tinham sido faces, taramelou para a companheira :

— Olha aqaelle pedaço de malvado; vai alii que parece um santinho. Credo 1 que mal encarado.

— Oh I nhaahan, coitado, vai tão triste. — Cala a bocca, tola, resmungou a

velha, ao passo que apertava um pouco mais o pollegar e o indicador na cinta da pequena.—Ter dó d'e11e, te arrenego, tinhoso ; é pena que o malvado não tenha no pescoço tantas vidas quantas arran-cou, para espirrarem-lhe todas nas unhas do carrasco. Deus lhe perdôe, mas está se vendo mesmo que foi elle.

— Uih 1 exclamaram n'outro grupo, que carrasco tão feio, meu Deus 1

— Oito mortes, oito, entre velhos e crianças, a vida d'elle só não paga. Eu, c i no meu pensar, entendo que se devia

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fazer o mesmo á família d"elle, para que elle soubesse se era bom 1

— Deus te perdôe, Deus te perdôe ! escapava mais adiante ao anonymo po-pular,

E o préstito caminhava, parando, po-rém, a todas ás esquinss para dar logar á leitura da sentença.

De cada vez que o préstito parava ou-via-se um como cicio psrtido dos lábios dos sacerdotes e do condemnado.

Uma d'essas vezes, poude-se distinguir algumas das palavras segrejadas pelo ministro de Deus :

— Confesse toda a verdade, irmão, pu-rifique a sua consciência ná hora de com-parecer perante Deus.

— Repito, meu padre; não mandei fazer taes assassinatos.

E duas lagrimas tardas e volumosas, d"essas que só os bypocritas confessos ou os desgraçados sabem chorar, escorrega-ram pelas faces cadaverosas do padecente.

Ora envolvido no rufo rouco dos tam-bores, ora atravessado pelo badalejar da campa e pelo clangor das cornetas, o préstito seguiu vagarosamente pelas ruas mais concorridas da cidade, até parar em frente á igreja, onde o pregoeiro em alta voz leu ainda uma vez a sentença irrevo-gável, qua devia manchar na cabeça de um homem o nome de toda a sua familia.

Parte do préstito já estava dentro do templo; algumas das seatinellas, que custodiavam mais de perto o réu, já transpunham o limiar, quando um in-cidente inesperado veio pôr em alarma a todos os circumstantes.

Um homem desconhecido, com as faces macilentas, o clhar e*gaseado, cs vestidos em desordem, e entretanto, revelando pelo seu traje, pelo próprio desespero, ser um cavalheiro; rompera á força uma das alas de praças e viera collocar-se em meio do precito.

Agarrado pelos soldados, debatia-se nas suas mãos, exclamando :

— Daixem-me fallar; deixem-me fallar!

Os pulsos vigorosos dos agentes pu-zeram-o fóra; mas elle, sem conter-se proseguia, dizendo :

— Ddxem-me fallar ao Sr. juiz» Dei-xem-me 1 Eu sei. . .

E1 fácil imaginar a confusão qua n'esse instants reinou no interior do templo.

Os espectadores redemoinhavam, gesti-culavam, apertavam-se em estreito cir-culo em torno do desconhecido.

Este, vencendo a onda popular poude de novo approxima^se da ala, e cami-nhava em direcção ao magistrado, quan^i parou repentinamente.

O sentenciado com os cabellos erriça-dos, a pelle pergaminbada do rosto e os lábios contrahidos, meio erguidos os bra-ços algemados, fitava no desconhecido ~ um olhar profundo, em que se misturava a suppliea e a reprehensão.

Todos pasmavam, O desconhecido, como se fosse instantaneamente petrificado, não deu mais u^i passo; a cabeça pendeu lhe como que humilhada, ao passo que_as lagrimas corriam-lhe em fios.

O juiz ia talvez ouvir o desconhecido mas ao passar pelo sentenciado, este, di-rigiado-se ao sacerdote, murmurou:

— Peça que o deixem ir. E' um homem de bem; esfcima-m«; queria talvez dizer-me na hora da desgraça algumas palavras de consolo.

O préstito continuou a entrar no tem-plo. Ninguém buscou interrogar aquelle homem que soluçava, encostado á porta principal da igreja. Respeitou-se lhe a dôr, porque elia mostrava ser bem pro-funda e filha de um sentimento gentroso.

A tropa descançcu as espingardas en-chendo o recinto sagrado do barulho pro-duzido pelo choque das coronhas no assoalho.

O sentenciado ajoelhou-se, e os seus lá-bios começaram a ciciar uma prece, e o s-icerdote que desde o incidente empal-lidecera ainla mais, e tomara um ar ainda mais contricto, ajoelhou-se também.

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OU Â PENA DE MORTE

Ao mesmo tempo o povo que enchia o recinto começou a separar-se abrindo fi-leiras. Era o desconhecido, que tropego e banhado em lagrimas, deixára a porta e caminhava em direcção a c&pella mdr.

Chegado junto do altar curvou os joe-lhos e deixou pender a cabeça sobre os geus frios degráus.

Commovido por esta scena, o sacerdote, inclinando sa para o padecente, disse lhe ; como se desejasse não ser ouvido por mais ninguém :

— È.B, jsntre vós ambos um segredo sa-grado ; eu não o quero perscrutar. Res-ta-jme apenas absolver-võs3meu irmão, em nomô de Deus.

— O a ! obrigado, exclamou o senten-ciado, que não poude mais conter as la-grimas, e fitou os olhos amortecidos na imagem silenciosa do Christo.

As seis luzes da banqueta do altar-mór, meio offascadas pela claridade do templo, cobriam de tons sangrentos a Svidez do Homem do Câlvario.

Dir se-hia que se trocava um mysterio-so olhar da intelligencia entre os dois sen-tenciados, e que os seus corações conver-savam na luctuosa intimidade de um inaudito sacrifício: tamanha era a ex-pressão do semblante do réu e tão ani-madora a sttitude do divino martyr.

Entre elles estava baqueada a coragem do desconhecido, completando a desolada trindade de um martyrio inenarravel.

Cousa singular, tfesseg sofrimentos o que parecia mais sereno era o do mori-bundo, que de vez em quando levantava os braços algemados para embeber o panno da alva nas lagrimas perennes.

A impressão produzida por este quadro sombrio parecia ter apiedado a multidão, que se mantinha em sincero recolhimento:

Algumas pessoas visivelmente commo-vidas diziam já :

- Ha uma voz que me diz que o Co-queiro não foi o auctor dos assassinatos.

A isto objectavam outros,mas a maneira pela qual o faziam ; as palavras de que se serviam eram muito mais comedidas.

Para o desventurado estava, porém, marcado o destino e apezar das innocen-tações de uns, das accusaçõas de outros, dentro em pouco elle devia áesapparecsr do numero dos vivos.

Teriam decorrido dez minutos após a entrada do préstito, quando um prolon-gado tilintar de campainhas, vinio do lado da sachristia, annunciou que o sacri-fício da missa ia principiar.

Logo depois o sacerdote, paramentado com uma casula negra, orlada e listrada de largos galões amarello?, approximou-se do altar-mór, e, em seguida á genuflexão, exordiou em alta voz o sacrifício pelo ín-troibo in altare Dei.

Os sons enternecedores do orgão espa-lharam-se como um sopro de melancolia pelo âmbito sagrado.

E o celebrante, acompanhado pelos altos améns e et cura spiritu tuo do sachristão e os soluços angustiosos do desconhe-cido, proseguiu resmoninhando o latim do missal.

A educação religiosa dos assistentes tinha n'este momento extinguido quaes-quer outros pensamentos quê não fossem os da respeito pelo acto, que se effectuava.

Havia, porém, um homem em quem a solemnidade singella do officio divino não produzia a mencr impressão. Era o car-rasco, o monstro negro, que brincava distráhidamente com o seu barrete, revol-vendo-© entre as mãos.

Estatua informe da escravidão, cujas falhas foram cheias com o asphalto do calabouço, argamassado com o sangue que os açoutes lh.9 tiraram do corpo, o desgraçado folgava talvez na sua brutali-dade de féra.

Os brancos fizeram d^elle uma victima; prohibiram-ihe que afinasse os senti-mentos pela comprehensão exacta da fa-mília, d» religião e da patria; devia ser-

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MOTTA COQUEIRO

lhe grato poder vingar-se de um dos seus oppressores.

Revolvendo nas mãos o gorro vermelho illudia porventura a impaciência que lhe causava a demora da execução.

Negaças de tigre antes de dar o bote á presa.

O sacerdote acabava de resar o prefa-cio , e a campainha do ajudante acompa-nhava a invocação dos santos, quando a campa funerário, do irmão da Misericórdia apregoou a retirada do préstito.

O barulho dos que se levantavam para sahir perturbou o recolhimento devido ao acto da celebração, e grande parte do povo já estava de pé e de costas, quando a Ostia, levantada pelo celebrante, alvejou por cima do altar como uma estrella de amor, perdida na escuridão do odio.

Lá fóra rufaram as caixas os runs-runs contestadores, com que a justiça enlucta ainda mais a perspectiva do tu-mulo; depois o pregoeiro declamou ainda uma vez a sentença, e o préstito seguiu o seu caminho.

A serenidade que, desde a sahida da prisão não deixara de illuminar a phy-sionomia do condemnado, persistia inal-terada, porém, a fraqueza do corpo des-dizia a fortaleza do animo.

O desventurado quasi não andava, ar-rastava se; e algumas vezes o sacerdote teve de ir-lhe em auxilio, para que não désse em terra. Outras vezes o carrp^ impacientado pela morosidade do passo, impellia a victima, que nem siquer dava mostras de censural-o por isso.

Já os irmãos da Misericórdia, do des-empenho da sua caridosa missão, embara-f ustavam pelo meio dos curiosos que esta-cionavam no Rocio, e os soldados abriam caminho para a entrada do préstito.

Motta Coqueiro, desfigurado e tremulo, ao ouvir os gritos que annunciava a sua chegada, com a voz entrecortada disse ao sacerdote:

— Aconselhe-lhes, meu padre, que não zombem de quem vai morrer.

— Perdoa-lhes, irmão, elles não sabem o que fazem.

Na embocadura do largo o pregoeiro cumpriu pela penúltima vez o seu dever, e as caixas expandiram-ss em rufos pro-longados.

\ Pela cara angulosa do carrasco passou um vago estremecimento, semelhante aos frémitos electricos que percorrem os lom-bos dos tigres, e ao mesmo tempo tomou o aspecto metallico de uma camada de mercúrio.

— Coragem, eoragem, meu irmão; chegado o transe derradeiro; exclamou o sacerdote para o sentenciado.

— Peça a Deus por nós, meu padre. E caminhou, seguro no braço pela ca-

losa e rude mão do carrasco. A poucos passos levantavam-se os dois

esteios negros que sustentavam a ma-china monstruosa da justiça humana.

Se a machina tivesse alma devia estar bem desvanecida de ver a curiosidade que despertava a sua brutalidade, e pro-curar attituies especiaes para relevar ainla mais 03 seus toscos e hediondos contornos.

A parte superior dos esteios era ligada por uma grossa trave, e abaixo, mediando pouco mais da maior altura de um homem, corria um tablado, terminando, de um lado, rente com a face dos esteios.

Do tablado até o chão corria uma es-cada de degraus estreitos e roliços. Tudo tosco, brutal, como o fim a que era des-tinado.

Para ahi condusiu o carrasco o homem aferretado pela condemnação publica.

Ia emfim desdobrar-se a ultima scena do assassinato legal, esse que, mais digno de reprovação do que os outros, é feito a sangue frio, premeditado nos commodos de uma cadeira de juiz de facto, de uma poltrona de desembargador, e confirmado pela irresponsabilidade do poder mode-rador.

j Oè jaizes chegam ao tribunal com os es-\tomagos cheios e os corações affagados

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pelos carinhos da familia; riram! ao almoço satisfeitos com a graciosidade dos brincos dos seus caçulas; riram á en-trada do tribunal, alegrados pela jocosi-dade dos amigos ; applaudiram os tropos ardentes da accusaçlo e da defeza e en-thusiasrn&ram-se com a arte revelada pelos juristas na elaboração do libello e do contra-libello, e depois retirados para a sala secreta, submettem os quesitos, não ao c r i t é r io formado pela sensata apre-c iação do entrecho do processo, mas aos preconceitos que em em suas mentes de burgu&zas honestos foram arraigados pelos commentetrios e legendas abortados da igooraneia popular, tão officiosa em cooperar para o mal do proximo, quanto remissa para fazer-lhe bem.

O sentenciado chegara junto ao patibulo. Para juntar a ironia á inalvadeza, uma

bandeja com alguns pratos cheios de con-feituras, um cálice e uma garrafa de vinho generoso foram apresentados ao preso, como symbolo da solicitude social, e da maxima e indisivel piedale que vem cevar a victima antes deimmolal-a.

O réu voltou nobremente o rosto á in-juria asssucarada dos seus matadores, e, ou fosse pela dor que esta affronta lhe causasse,ou fosse pelo terror inspirado pela visinhaça do patibulo, os joelhos ver-garam-lhe, e teria baqueado se não fosse arrimado pelo sacerdote.

Não longe d'este grupo uma face negra de mulher banh&va-se em pranto copioso. Era o protesto de uma raça contra o pro-cedimento de um de seus membros, por que ao passo que a baa da preta chorava, o carra xo esvasiava um cálice do vinho regeit !c pelo condemnado, e apreciava-lhe o eabor dando estalinhos com a lingua.

Dispertado da prestação, revivido do desanimo pelos soluços da commiseração espontanea a'aquella mulher, o réu co-brou de novo forças, e voltou-se para a lacrimosa, dizendo lhe :

— Chora, minha filha, porque eu morro innocente.

Para abafar a voz do condemnado as caixas marciaes rufaram prolongada-mente, e fez-se signal ao carrasco para começar a sua missão.

O monstro apertou então ainda mais o braço do livido padecente; puxou-o para si em direcção á escada, e colloeando-se depois por detraz d'elle, fei o subir os de-gráus da forca.

Embaixo, os irmãos da Misericórdia e os sacerdotes, reunidos em torno da cruz, puseram o seu estandarte em posição de cobrir o sentenciado, caso arrebentasse a corda.

Era uma vã esperança: a corda fôra especialmente mandada por uma auctori-dade elevada da provincia, e os abusos da própria confraria inutilisavam a sua in-tervenção a favor dos infelizes, votados á morte infamante.

O carrasco e o reu tinham chegado ao tablado . O pregoeiro leu pela ultima vez a integra da sentença que condemnava á morte e as multas da lei o réu Motta Co-queiro, mandante dos assassinatos de Francisco Benedicto da Silva, sua mulher, um filho de desoito para dezenove annos, daas filhas maiores de quatorze, duas maiores de sete e uma de dois para tres annos, e finda a leitura, o magistrado or-denou ao carrasco o cumprimento de seu dever.

O negro instrumento da morte, depois de conchegar á cabeça encarapinhada o gorro vermelho, e experimentar com vio-lentos puxõ es a segurança das algemas do preso, tomou-lhe o capuz, que lhe pendia nas costas e com elle cobriu-lhe o rosto.

Passou a desenroscar a corda da cin-tura do padeceate e ajustar-lhe o baraço ao pescoço. Feito isto, conduziu o des-venturado para uma psquena escada posta entre o tablado e a trave; assentou-o em um dos degraus, e foi prender a corda em dois ganchos de ferro pregados no alto do patibulo.

Escarranchando-se na trave, agil incli-nou-se e segurando-se n^lla com um

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braço, com o outro empurrou violenta-mente o padecente, tirando de improviso a escada de sob elle.

O sentenciado ficou suspenso pela cor-da, esperneando, agitando os braços amarrados e balouçando como enorme pêndula.

Deixando então a primitiva posição, o carrasco, voltado para a multidão, segu-rou-se com as mãos robustas na trave e pendurou-se no ar.

Em um dos vai-vens dados pelo corpo do . sentenciado, os pés do carrasco alcança-ram cs hombros d'$quelle.

Collado um pé sobre cada hombro, o monstro carregava sobre o moribundo e impellia-o em largos balanços.

Durante toda esta geena que atterro-rava os mais exaltados, o negro execu-tor ria a sua fereza através de uns lábios grossos e roixos.

Talvez sentisse tfesse momento a sa-tisfação de Quasimodo quando bamba leava se no espaço, agarrado ás orelhas do siao grande da Notre Dame.

Esta scena durou o tempo immenso que duram sempre as scenas horrorosas ; miautos que parecem horas.

A um golpe dado na corda o cadaver do sentenciado bateu em cheio no tablado e o carrasco veio de um salto, collccar-se sobre elle,carregando-lhe com a mão sobre a boea.

Estava desaffrontada a sociedada. Ru-faram os tambores, clangoraram as cor-netas e o carrasco desceu para recolher-se de novo á fermentação silenciosa dos seus ruins instinctos.

A confraria desfilou precedida pela sua bandeira e fechada pela cruz, onde a ca-beça descorada do Christo parecia ter-se inclinado ainda msis.

E1 que, desfeiando-a, na historia da hu-manidade redimida negrejava mais uma iniquidade.

Uma hora depois, a praça do Rocio e as ruas principaes de Macahé estavam com-

pletamente vasias e a cidade recahia no sea silencio habitual.

No tablado do patibulo viam-se, porém, quatro homens vestidos de lucto, e com um sincero recolhimento collocavaai den-tro de um caixão mortuário o cadavef do justiçado.

Eram os amigos de Motta Coqueiro que tinham obtido da justiça, para dar á uma cova, os restos que ella condemnaria á valia commum.

O desconhecido, que era um dos quatro que seguravam nas argolas do caixão, ao pousal-o na beira da cova, disse para Se-berg, que chorava: — foi um homem de bam á? direitas ; e se alguns erros com-metteu, o ultimo acto de sua vida paga-os de sobra.

II O SITIO EM MACABU'

Um tapete de grama, desdobrado so-bre uma larga area de terreno, vireiecia de um lado uma vasta planicie e de outro uma pequena colliaa, alegrando a appa-rencia da localidade.

Aqui e alli erguiam-sa do chão atapeta-do grandes moitas de arbustos, ou isoladas arvores corpulentas, copadas umas, .nuas e esgalhadas o u t r a s , projectando sombras extensas ou sacudindo á viração longos flocos de musgo, postiças barbas brancas postas á velhice d esses raros represen-tantes das mattas virgens.

Na orla horizontal do grammal, o rio Macabú, comprimido entre as margens co-bertas de v e g e t a ç ã o esplendida, arrastava a sua pobresa de aguas, ora juncado das mortas folhas amarellas das figueiras, ora branqueado pela caduca floração dos ingazeiros.

O cimo da colima servia de base a uma casa avarandada, cujo caio era de distan-cia em distancia colorido por uns quadra-dos e rectângulos verdes, a que corres-pondiam outras tantas portas e ja&9llas

envidraçadas.

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Cerca de duzentos passos d'esta casa chamada—a casa grande—estendia se um lanço estreito, coberto de sapé, de paredes apenas barreadas, atravessadas de espaço a espaço por umas partas baixas e janel-las que teriam tres palmos de altura so-bre dois de largo.

Era uma linha de senzalas, miserável habitação dos escravos.

Entra as senzalas e a casa grande — duas casas — a do feitor e a do fabrico de faiinha, ou bulandeira, e além d'estas, do outro lado da casa glande, uma es-pecie de barracão coberto de telha, com o caio sujo e as paredes meio esburacadas, c o m p l e t a v a m o numero das edificações, se exceptarmos algumas palhoças collo-cadas mais para traz e que serviam p&ra guardar os animaes domésticos.

Como grande mancha negra no matiz da collina, via-se o curral, cercado por uma curva de baixos paus-a-piques, nos quaes preniia-se uma pesada cansella.

A casa grande estava quasi sempre fechada, porque o seu dono, Manuel da Motta Coqueiro, residia em Campos e a maior parte do anno passava-a ahi, ou en-tão na sua chacara da barra de Macabú.

A alegria dos logares habitados não era, pois, encontrada senão raramente n'este local, onde a primavera desfazia-se em florecencias esplendidas sem que houvesse quem a contemplasse.

Quando o vento indifferente, enredan-do-se na copa das arvores, transformadas em ramalhetes monstros pela seiva vernal, esfolhava-os desapiedadamente, a chuva de flores e folhas cahia sobre o gado, que fugindo á canicula, deitava-se-lhes á som-bra, ruminando silenciosamente.

Quando o calor abrasava, colhidas as azas e occultas na frescura da folhagem, as cigarras e as nuvens de passarinhos chilravam e gazeiavam por alli como se estivessem em logar completamente de-serto. Também de visinhança de homem só dava Mspaal uma espiral de fumaça que

se erguia por entre as negras telhas do casarão central.

Toda a vida e actividade estavam con-centradas em outros pontos, e fácil era ir ter, a elles tomando um caminho, que pas-sava perto do curral, e seguindo por elle em direcção ao occidente.

A um quarto de hora de caminho estar-se-hia no meio de compridos acairos, sombreados por enormes bananeiras que dividiam umas de outras as terras culti-vadas.

Ouvir-se-hiam então os cantos monó-tonos e ver-se-hiam, com uma saia de ris-cado e alviís camisas de algodão, expostos ao sol os collos negros das escravas, e vesti'os de calças de zuarte, os negros serui-nús levanlo para diante o eito, esti-mulados pelos gritos machinaes de arriba, arribai bradados pelo feitor, encostado ao cabo do seu rebenque.

Se no meio dos cafesaes e manfliocaes não fosse encontrada a gente do sitio, o tan-tan, tan-tan compassado dos macha-dos no cerne das arvores seculares annun-ciaria a sua estada nas mattas circ um vi-zinhas.

A's vezes o serviço era dirigido pelo senhor em pessoa; mss o aspecto da casa não S9 alterava, porque vindo só para o sitio, Motta Coqueiro apenas era visto em casa quando de manhã muito cedo dieta va ordens ao seu feitor ou á noite ouvia d'elle a narração do serviço feito. Em face d'elles quedavam então os escravos ali-nhados e taciturnos.

Quatro annos antes da época em que nos achamos, primeiros mezes de 1852, outra era a vida no sitio.

O campo era quasi sempre percorrido por cavalleiros e homens a pé, os quaes dirigiam-se de preferencia para o velho barracão que descrevemos.

Por esse tempo, a pedido de um amigo, Motta Coqueiro recebeu como seu aggre-gado um d'esses pobres homens do sertão, que vivem da pequena lavoura e sem meios para ter um terreno proprio, cultivam o

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alheio para usufruir-lhe as bemfeitorias. Francisco Benedicto,forte apesar da idade, que subia a mais de 40 annos, vira se, havia alguns mezes, sem um tecto sob o qual abrigasse a numerosa familia, e re-correndo a Coqueiro por um seu amigo, obteve concessão para estabelecer-se ém terras do sitio de Macabú, onde levantaria para si uma casa e cultivaria o terreno que lhe aprouvesse, sem prejudicar o pro-prietário.

Foi, porém, temporariamente hospedado no barracão cantiguo á casa granie até que terminasse os trabalhos preliminares do seu estabelecimento.

A belleza das tres filhas mais velhas de Francisco Benedicto, a intimidade por elle demasiadamente facilitada, fizeram logo da casa um ponto de reuoião, princi-palmente dos ociosos da visinhança.

Coincidiram com a chegada de Fran-cisco Benedicto e os primeiros tempos da sua morada na casa de Coqueiro, as de-moras d'este e sua familia no sitio.

Era causad'essas demoras ter Coqueiro, que negociava em madeiras, resolvido explorar as mattas próprias para obter os preços elevados correspondentes á ca-restia do genero no mercado.

Para accelerar o trabalho era necessá-rio que elle estivesse presente ao serviço dos escravos e empregados. Isto obriga-va-o a demorar-se no sitio e a sua esposa, para não constrangei-o a ir visital-a a Campos, resolveu acompanhai-o.

Entre a familia do aggregalo e a do proprietário travaram-se logo relações e Motta Coqueiro foi na primeira oppor-tunidãde escolhido^para baptisar o caçula de Francisco Benedicto.

Cumpre, entretanto, notar que a senhora de Coqueiro manteve sempre uma certa reserva para com o compadre, que não obstante ser bom homem, muito respeita-dor e trabalhador, tinha o vicio da be-bida.

Entre os vadios que passavam as se-manas assentados ao balcão da venda pró-

xima, tocando viola e desfiando a vida alheia, o compadre assentava-se ás vezes, e para matar o tempo e cortar o calor esvasiava tantos copinhos de aguardente, que o resultado era voltar para casa des-crevendo zig-zags.

Demais tinha relações com pessoas, que eram inimigos confessos de Motta Co-queiro, e que, segundo era fama, só não lhe bebiam o sangue porque não podiam.

Era d'est9 numero o André inspector, e osublelegado Oliveira, que se malquista-ram com o compadre de Francisco Bene-dicto desde umas eleito3s que elle venceu em Carsp9bÚ3.

Salvo esta queixi, reinava a mais in-teira cordialidade entra as familias. As filhas e mulher do aggregado frequenta-vam a casa grande e nunca sabiam de Já sem que a senhora peiisse os lenços das pequeninas para amarrar uma trouxi-nha.

Por seu turno estas de vez em quando traziam uma cestinha cheia de ovos e acercando-se da dona da casa, depois de lhe beijarem a mso, diziam-lhe :

— Eu trouxe isto para a senhora. A resposta era sempre, á chegada das

canoas da cidade, um embrulho de cassa ou chita, ou uas lenços novos, enviados pela esposa de Coqueiro á casa de Fran-cisco Benedicto.

Se a consorte de Coqueiro assim tratava a familia do seu hospede, aquelle por sua vez teve diversas occasiões de carregar as suas sobrancelhas salientes, e tomar um tom de voz energico para responder aos que fallavam do seu coaopidre :

— O que eu sei é que tirado o defeito da bebida, é muito trabalhador e a sua f imilia é boa gente.

Todas as tardes ao voltar da roça ou da derrubada, Coqueiro parava juato da casa de Francisco Banedicto, e alli espe-rava muitas vezes até á noite, mandando ao moleque, seu pagem, desensilhar O çavallo, porque só iria mais tarde.

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OU Â PENA DE MORTE 19

Havia t-fs iniiviiuos a quem tamanha familiaridade incommodava. Eram elles Manuel João,um mulatinho de viate e pou-cos annos, bem apessoaio efailante,—um peino^tico, seguido o Vianna da venda; o Sebastião Pereira, robuito rapaz que mcrava perto dcs terras de Coqueiro, e muito conheci.lo peia pericia em tocar viola e cantar o desafio ; e o Vianna da venda já meio ma luro—como dizia o An-dré iaspector, e creio mesmo que ligado por laços matrimoniaes.

Ca la um desses tres indiviluos suspi-rava muito em segredo por uma das mo-reoas do Chico Benedicta—por pena das pob es raparigas.

O porte airoso de Chiquinha, a filha mais velha, o seu olhar meio escarninho, meio melancólica, o confranger dos lábios para estalar um muchocho penalisaram mui t j a Sebastião.

O compassivo rapaz levava a sua sen-sibilidade a ponto de visitar sempre o Chico Bsnedicto.

A principio, ao IUÍCO fusco, com a sua viola a tiracollo, e montado n'um ossudo ca valia, a que todos chamavam—pangaré, e só elle chamava-o—Suspiro, era visto marchando para a casa, que lhe entris-tecia o coração.

Mas, devido mesmo ao continuado tra-balho, aggrav. ram-se as mataduras do lombo do animal, e o Sebastião tomou o expediente de vir em uma cacôa.

Um dia, ao chegar ao porto, Chiquinha estava lavando. O sol re vestira lhe de um anacardino intenso as faces graciosamente túmidas. Os cabelk s negros como os fruc-tos da baraúna, reunidos em duas tranças, que cingiam a cabeça pequena, afofavam-se em duas pa&tas, arqueadas por sobre as têmporas.

Entre as suas mãos delicadas alvejava uma peça branca de roupa, sobre a qual a moça inclinava-se, mettida dentro do rio. A posição curva,, que tomara, deixava vêr pela altura do collo umas saliências

ponteagudas, que faziam lembrar a fór-ma dos pecegos.

Demais a mopa antes de entrar no rio, colhera os vestidos até os joelhos, e atara-o á cintura com um lenço, e para não molhal-os, apertou-os e itre pernas, de maneira a formar com elles uma es-pecie de calçõe3 apertados.

O remador que adjudava com remadas viris o deslisar espontâneo da canoa pela correntesado rio. conteve a frágil embar-cação parou de remar, e deixou que ella ficasse remanseando, emquanto elle en-volvia n'um olhar ardente as formas sculpturae 4 de Chiquinha.

Esta que disfarçadamente observava o canoeiro com um olhar contemplativo, deixou-se ficar curvada, ostentando a cin-tura fina, accentuada ainda mais pelos amplos contornos dos qualris.

A canôa, entregue a si mesma, poz-se a boiar a mercê da correntesa, e como se mão noysteriosa a guiasse, veiu esbarrar n'um tosco branco de lavagem, que negre-java junto a Chiquinha.

— Que máu poupeiro que vosmecê é, oh seu Sebastião ; disse esta, eu não me embarcava com vosmecê, nem para o céu.

— Pois é pena, sá Chiquinha, porque eu iria com vcsmecê até para o inferno.

— Era preciso que eu quizesse ir, res-pondeu Chiquinha, soi rindo.

— Ejtá visto ; eu não queria nem esta canoa cheia de ouro se fosse contra a sua vontade.

— Deveras?... — Se duvida, sá Chiquinha, é só expe-

rimentar. Ao pronunciar a palavra Chiquinha ti-

nha-se sentido perturbada e para não trahir-se levantou a alva peça que lavava para batel-a no banco, que tinha diante.

O seu braço foi, porém, delicadamente s e g u r o pela mão de Sebastião, emquanto com a outra o moço tentava tirar-lhe a peça da pequenina mão.

— Não me segure, resmungou Chiqui-nha, fingindo se amuada; me deixe.

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— Não foi por mal, sá Chiquinha 1... murmurava Sebastião, ao passo que dei-xava o braço da moça. E' que para bater a roupa é preciso força, e eu sou mais forte.

Chiquinha dando uma das francas risa-das características dòs filhos da roça , exclamou:

— Uhê! seu Sebastião subiu a serra, gente!

O rapaz animado pelo,, dito e a risada de Chiquinha desembarcou,segurando nas mãos a corda que amarrava o banco da prôa da canôa, e poz-se a perfurar o barro do porto com o cabo do remo, dizendo:

— Eu pensei que você tinha-se zangado commigo.

— Não me zanguei, não; foi só para você não se metter no que não sabe.

— Então eu não sei bater roupa ? — Qual sabe o que; isto não é viola. — Pois fique sabendo que a gente

quando quer sabe tudo, até amar. — Ora, is to . . . tem muito que saber. . . — E tem mesmo; como eu você não

acha outro. — Agora, como se faz na caixinha dos

tres desejos, diga, seu Sebastião — a quem ama ?

— A você I . . . — Gentes I como você está adiantado I

exclamou Chiquinha,depois de ter contra-hido os lábios corados n'um terno mu-cfcôcho.

Desde esse dia, Sebastião Pereira come-çou a sentir grande pena pela familia do Chico Bsnedicto, e a ter manifesta aver-são pela familiaridade de Coqueiro junto d'esta familia.

A partir de uma noite em que, sobra-çado o seu ponche de baeta negra, forrado de fianella vermelha; posto no alto da ca-beça o chapéu do Chile com largas fitas negras pendentes, oVianna da venda, en-trou na casa de Chico Benedicto, a sua alma de tendeiro começou a pesar ouro fio os generos da vendola e a recordação de sá Antonica.

A sala sem assoalho, com o chão ac-cidentado por altos e baixos, ornada por uns bancos de pau, umas caixas e uma meza velha, em que assentava um orato-rio junto do qual espirravam dois can-dieiros de folha de Flandres; semelhante sala luzia na memoria do homem com ÉS scintillaçõss de um paraiso de amor.

E1 que ao entrar j fôra recebido por uma estrepitosa ovação, e ouviu á Antonica chamar os seus quasi quarenta annos — um mocetão bonito.

Não ha alma de tendeiro da roça, por menos vaidosa que sêja, fortalecida para não penhorar-se com semelhantes sau-dações.

N^quella noits o Yianna, naturalmente folgazão, levou as lampas aos mais pago-deiros ; tinha mettido no mesmo chinello o Sebastião e Manuel João, que improvi-savam estrophes com a fluência do jorro de uma cascata, e com as mesmas quédas.

Achava-se ahi por ter merecido um convite de Francisco Benedicto para uma brincadeira de Santo Antonio.

O programma da festa era uma ladai-nha, e em seguida um fado com muitas raparigas, um leitão assado, dous garra-fões de aguardente, ou melhor— de boa canna, e um garrafão de vinho, o qual fôra dado de presente á Antonica, pelo compadre capitão, o Motta Coqueiro, que fôra passar a fasta na cidade.

Na casa não havia nicas, era casa de pobre ; e o Sr. Viaxma estava alli como se estivesse na sua venda. Podia também levar quem lhe aprouvesse.

Cantada a ladainha, começou calorosa-mente o fado. A viola retinia febril-mente ferida pelos dedos apaixonados de Sebastião Pereira; rufavam entusiasti-camente os adufes, e os pares rodavam, sapateavam, peneiravam, enchendo a sala de palmas e castanholas.

Uma das rodas era formada pelo Yian-na e Antonica, Manuel João e Mariqui-nhas, a mais nova das tres filhas moças de Francisco Benedicto.

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Era a roda em que se dançava melhor. Maravilhava pela certeza dos meneios,

pela precisa cçadencia dos sapateados e pela assonancia das palmas, ás vezes ba-tidas junto da breca aberta, para reper-cutirem um som cavo, delicia dos dan-sarinos.

Excitava-a o enthusiasmo do amor. Invejosos da maestria das damas, os

cavalheiros de outrc s grupos, pela maior parte em mangas de camisa, tentavam frequentes furtos, que eram habilmente repellidos pelos cautelosos pares.

Em vão, de um pulo, es invejosos reali-savam os bt m planejados assaltos; era-lhes frustrado o intento, porque encon-travam a dama cobiçada bem amparada pela perna dopar, inteiriçada e meio su-mida entre as sai&s murmurosas da ri-sonha defendida.

Os assaltos mallogrados eram novo in-centivo a feri ilidade poética dos cantores. Manuel João viotorioso frendia a corrente do desafio, c stropnes allusivas e dizia no seu ameno tenor :

— E1 capricho ; hei de guarda-la Qual na moita o passarinho, Co as lindas azas abertas, Guarda os filhos no seu ninho.

Respondendo rapidamente á volta, o violeiro apaixonado, tornava no seu ba-rytono selvsgem :

— Eu ta mb e tn morro de zelos Por ums joia querida; — Os sorrisos de CniqUinha, Cadeias da minha vida.

Continuavam a trccsr os promptos im-provisos , alLudindo cada um a dama que o captivava.

—_Quem tem jóias preciosas Não as neixa assim roubar; Meu thesouro é Mariquinhas, Minha joia éseu olhar. Mas eu conheço outros olhos

• Que têm um brilho melhor; São negros, a gente os yendo Fica perdido de amor.

E longo tempo persistiam os cantores rociando de ardentes galanteios os cora-ções agradecidos das suas preferidas.

Descuidos contratadores deram, porém, occasiões a separarem-se os paras predi-lectos. Prompta era, entretanto, a juncção, porque á retirada áos cavalheiros seguia-se uma frieza visivel nas damas; desappa-reciam os ademanes graciosos, os reque-bros francos e as zumbaias lascivas e ele-gantes.

Os intromettidos, despeitados pela sú-bita mudança, presto retirávam-se e se al-gum mais rusgusntolevava a imprudên-cia até a fazer notar que percebera a má vontade das moças, ellas acudindo á cen-sura com o seu melhor sorriso, respondiam com apparente ingenuidade:

— Credol que luxo; não quer que a gente fique cançada.

Mas, em reapparecendo os dois, o can-çaço extinguia-se milagrosamente; a frie-sa tran*furmava-se em fogo, e a roda gyrava com tanto garbo, com tanta ale-gria que algumas das visitas, cobrsndo pareas á maledicência, resmungavam de mau humor :

— São muito faiscas estas moças. Francisco Benedicto havia-se approxi-

maio do violeiro, e o alegre Sebastião, casando os ais da prima aos soluços do bordão, kvant*u as despedidas.

Cessou o rufar do adufe, o soar das palmas, e os pares separaram-se.

Era a ceia que vinha sustar por algum tempo o folguedo, e dar aso a expansões que, mal contidas, ameaçaram irromper inconvenientemente durante as alegres danças.

Todas as damas e cavalheiros retiraram-se, precedidos por Francisco Benedicto, que não muito em linha recta,alumiava-os c >m um dos candieiros que esclareciam a sala.

Sé a travessa Antonica ficara, talvez maliciosamente, assentada a uma das caixas, a pretexto de que não queria ceiar, e sim descançar.

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MOTTA COQUEIRO

A solicitude de Yiaana não podia resig-na r-s 3 a mastigar o leitão da brincadeira, quando Antonica, bonita como diabo, conforme elle dizia, ficara lá na sala so-zinha e quem saba se amua ia comsigo.

Assim pois, resolveu vir ter com ella acompanhado de um prato com a iguarias da mesa e um copo, o único que havia, até meio de vinho.

Apresentou lhe o prato e o copo; a moça não quiz servir-se, e pediu-lhe que a deixasse descançar.

— Oh! sá Antonica, eu fiz-lhe algum mal ? interrogou Vianna, ou sou algum bicho que lhe metta medo ?

— Não é, nã~; mas ea não quero ouvir a bccca do povo.

— Qual historia, sá Antonica, elles de mim não faliam, porque todos elles têm a barriga lá em casa.

— Já sei, já, seu Vianna; mas eu quero ficar sozinha aqui, ou então vou-me em-bora. Que aborreciment3, home f 1

— Está bom, eu vou, sá Antonica. Mesmo póle estar aqui alguém que vá contar a elle, e depois...

— Contar a quem, seu Vianna? não se dá esta ? te arrenego !

— E olhe que não seria a primeira vida que elle mandaria tirar. Eu sou pobre e elle ó capitão, é rico, é magnata.

— Olhe, seu Vianna, eu chamo papai pira ouvir o que é que está ahi dizendo.

— Não precisa, não, sá dona\ depois não se arrependa.

— E\ vocês todos são assim mesmo; eu dancei com você, e agora fica mal com-migo.

— Qual zangado 1 não estou; é que penso; eu sei lá, o Manuel João é quem diz que você gosta do capitão, e eu já estimo você tanto. . .

— E gosto, e agora? nunca me fez mal. Quem manda aquella coisa espiar os outros ? Nãoé o capitão quem nos dá casa?

Vozes partidas do interior gritavam: — Oh 1 Vianna, onde está este diabo ? Galgando a janella de um salto, o ten-

deiro agachou-3e e cosau-se com a parede correndo, e só depois de alguns minutos, gritou de fora :

— Eh, tá com o berreiro; já vou, já vou. As pessoas que entravam na sala, en-

contraram Antonica, seatada muito tran-quillament5», e ninguém su peitou, siquer, a scena que antes se passara.

Recomeçando o fado, o Vianaa mostrou-se por largo tempo menos expansivo; esquivava-se de dançar, tíizendo-se fati-gado, e só se achava bem junto dos gar-rafões, em companhia de Caico Benedicto. - Antonica t&mbem não figurava nas rodas senão espaçadamente e tinha o ar de quem queria chorar.

O Sôbastiãí» Pereira, que ao lado de Chi-quinha parecia ter-se alheado de tudo mais, não prestou a principio attenção ao mau eatar dos dois nam.r<*dos, mas sendo obrigado a chamar alguém para substituir a sua viia, que precisava sahir, f ji ter com Antonica, e as lagrimas represas da moça revelaram-lhe o segredo do seu afastamento e tristeza.

Diriginio-se á Vianna, Sebastião ata-cou-o logo de frente, sem meias palavras: —Você pare3e criança; lá está a Antonica a chorar, seu Vianna. O pai já está prom-pto e se vem a sabar d'isto, temol-a tra-mada. Vá tirar a rapariga, e o mais corre por minha conta.

No dia seguinte ao re'.irar-se da casa de Francisco Benedicto, o vendilhão levava a roupa e o coração igualmente machu-cados.

Combinando, .porém, algumas palavras de Antonica, poude abraçar-se a uma es-perança, ao passo que dava de mão a uma teimosa somma debita ia ao pai da moça.

O sacrifício de seus interesses e o de sua tranquillidade puseram muito natu-ralmente o fcom do tendeiro na contin-gência de condoer-sa da sorte da familia de Chico Banedicto.

Mais apressado do que os seus dois companheiros de compuncção, andou Ma-

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OU A PENA DE MORTE

nuel João na conquista da sua sensibili-dade pela familia de Mariquinhas.

A sua posição de feitor no sitio de Motta Coqueiro aplainou-lhe facilmente o cami-nho da familiaridade, de que elle serviu se para conquistar o coração benevolo da moça.

Nunca tinha tentado siquar revelar aos quinze annos de Mariquinhas o que lhe ia de ansiedade pelo seu coração, quasi sem esperanças.

Acreditava mesmo que seria uma lou-cura, elle, pobre feitor dô ro?a, e de-mais disso homem de.côr, ir afrontar os escrupulos da familia, quanrlo Mariqui-nhas era tão bonita que fácil lhe era esco-lher um marido entre os robustos moços trabalhadores dos arredores.

Limitava-se a obsequiar generosa» ente, e facilitar a Francisco Benedicto os meios ao seu alcance para melhorar as condi-ções de vila no sitio.

Encostado ao seu rebmque, elle nem dava attenção ao serviço; perdera mesmo as asperesas do seu ofíhio e deixava que os escravos trabalhassem quanto lhes aprazia.

Estes, sorprehendenio as distracções e a tristeza do feitor, segredavam se no eito :

— Seu Manuel está com mandinga; é cousa feita psla genta do sggregado.

Aos domingos, Manuel João, pondo a tiracollo o polvarinho e chumbeiro, pe-gava da espingarda e lá se ia mat o den-tro, precedido pelo farejar de alguns cães de caça.

Quanio voltava, trazendo grandes en fiadas, nas quaes misturavam-se a escura côr hydragyrada das azas das juritys, aos tons escarlates dos peitos dos tucanos; Manoel Juão parava sempre áp^r t a dos fundos da casa de Mariquinhas e, depois de uma conversa, presenteava-a com a sua ca?ada.

Os prementes continuos eram o único palpavel indicio da affeição do moço feitor, mas uma observação mais detiia

descobriria sem grande trabalho quão in-tensa lavrava a paixão per aquelle es* pirlto.

Quando acompanhava o seu amo, e via o parar á porta do velho hospede, fi-cava de máu humor, principalmente se com a familia vinha Mariquinhas, em cujas faces Motta Coqueiro batia branda-mente com as pontàs dos dedos, excla-mando :

— Está já moça, e peior do que isso, bonita.

A jovialidade do amo, e o acolhimento grato que lhe fizia Mariquinhas, inci-neravam todos os sonhos de felicidade do feitor : tinha então diante de si um supposto rival, tanto mais digno de odio quanto era mais poderoso.

Em troca d'essas injustiças sem eco, a bella Mariquinhas esmerava-se em pa-tentear a sua sympathia pelo ciumento. Era ella quem lhe tivzia a chicara de café, nas noites em que elle vinha con-veivar-lhe o pai, e dispensava o do tra-balho de fuzilar fogo ao isqueiro, apre-sentando lhe um cavaco esbrazeado.

Nos dias de brincadeira, s<5 estava ver-dadeiramente alegre quando o tinha por p a r ; ao contrario mostrava se aborre-cida.

Mas a própria bondade de Mariquinhas era um incentivo á prevenção do seu amante. Aferia o p e r i g o , que julgava-a correndo, pela sua própria bondade, e nas horas em que, no silencio de sua morada, revolvia os seus anhelos e as suas duvi-das, exclamava com voz colérica:

— Ella ó um anjo e aquelle demonio pôde perdei a.

Ha uma força mysteriosa e fatal, que insensivelmente attrahe e combina os es-forços humanos : 6 a affinilade dos sen-timentos e das opiniões.

Contra ella não são resistencia sé.ia nem os isolamentos systematicos, nem os temores profundos, nem as virtudes im-maculadas; u m a h o r a soará em que,rum-

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do em terra as barreiras, ella se imporá invencivelmente.

Foi por essa força que as affeições ti-moratas dos tres secretos amantes das filhas de Francisco Benedicto expan i-ram-se um dia em plena luz, e formaram um sombrio triumvirato entre o violeiro, o feitor e o tendeiro.

Era domingo de tarde, e tres a quatro mezes já eram decorridos depois da brin-cadeira de Santo Antonio.

Em cumprimento ao dever que se havia imposto, Sebastião Pereira dirigia-se á casa de Chiquinha, mas quiz primeiro chegar á venda do Vianna.

Esta visita tinha por fim premunir-se de contentamento e distracção para o velho Francisco Benedicto, que não bus-cava resistir ao sabor do vinho e da aguardente.

Pouco depois da chegada de Sebastião, parava no porto uma canôa, e d'ella des-embarcavam Manuel João, o irmão de Chiquinha e um preto.

— Olé, exclamou Sebastião ao ver Ma-nuel Juão, você agora aqai é ouro sobre azul.

— Então vá já dizendo quem morreu por cá.

O violeiro abaixando a voz, e aprovei-tando se da distancia em que estavam os companheiros do feitor, segredou-lhe.

— E' cousa só entre nÓ3 tres. — Está entendido. Manuel João interrompeu logo a con-

versação de Vianna com o Juca Benedicto, exclamando:

— Aviem-se, rapazes; faz-se tarde e é melhor ir de dia do que de noite. Vocês têm de remar rio acima.

Uma piscadella de olho poz de sobre-aviso o Vianna, que tratou de despachar com presteza os freguezes.

Um quarto de hora depois estes despe-diam-se levando uma encommenda do violeiro, e o Manuel João, que simulara querer ir com elles, fingiu que cedia á

insistência de Sebastião e Vianna, e disse aos que partiam:

— Vão, vão; estes demonios não me deixam agora, e o melhor ê ficar um pouco por aqui.

Estavam só- . Sebastião Pereira, depois de accender o cigarro, convidou os deis companheiros para debaixo de uma man-gueira, e começou a fallar.

— Vocês me conhecem è eu lhes co-nheço. Aqui o Vianna está pelo beiço com a Antonica e o mestre Manuel João ar-rasta a aza á Mariquinhas.

— Não senhor, respondeu de chofre o feitor, é menos verdade.

— Deixemos-nos de partes, seu Manuel João, os outros não são cegos.

Manuel João não replicou, e o violeiro continuou.

— Eu cá, se a Chiquinha não fôr mi-nha, não ha de ser de mais ninguém por mais pintado que seja.

Ao dizer estas palavras, a sua mão es-tava posta sobre a cintura e logo uma granie faca polida luzia fóra da bainha, e Sebastião exclamava, brandindo a faca.

— Varo seja Deus, seja o diabo. — Voeê3 não ignoram que o malvado do

capitão tem maus fins com aquella gente; vamos, pois, acabar com isso. Se vocês ajudarem-me, elle não leva o bcccado á bocca; ou eu não sou eu.

— E o que havemos de fazer ? pergun-tou Vianna.

— Escutem: o Chico já ha de ter perce-bido que nós gostamos das filhas ; vamos lá hoje eu peço a Chiquinha e vocês, se houver vasa, faliam logo a elle de estucha.

— Mas nós não nos podemos casar j i , resmungaram Manuel João e Vianna.

— E qu«m fei que disse que vocês casas-sem? DUer não ó fazer. Eu também agera não tenho geito; mas é um modo de atra-palhar o capitão. Cada um pucha a brasa para sua sardinha.

— Assim vá lá, disse Vianna. — Pois, eu assim não quero : não hei de

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— Homem, eu sei lá, isto é com vocês creançss. A rapariga pode não se arramar e quem fica mal sou eu, e . . . no fim de contas, seu Sebastião, eu estou aqui de fresco, e sem fazer escândalo, perdoe que lhe diga, eu não conheço bem você.

— Pois tire indagações, seu Chico; olhe não lhe hão de dizer que eu seu desor-deiro, nem ladrão, nem que tenha feito mortes,

— Eu lhe digo já, seu Sebastião, pelo q te você me parece, está feito, mas sem-pre quero ouvir o que me diz o . . . uma pessoa.

Aquelle uma pessoa proferido pelo velho causou um estremecimento nos tres; Manuel João principalmente quasi per-deu os sentidos.

O valho, porém, ora coçando a cabeça, ora esfregando as mãos desfez a meio a impressão desagradavel, murmurando:

— Com que seu Sebastião quer que a gente coma doce breve ?

— Sim, senhor, seu Chico, se não tiver contra mim alguma receita de gente do bocca amargosa.

— Qual, não ha d« ser tanto assim. Um aceno de Sebastião levou o Vianna

da venda a tartamudear para o Chico Be-nedicta:

—E que diria vosmecê, seu Chico, se eu viesse nas aguas de Sebastião ?

— Sem escandalo, respondeu o velho com uma longa risada; dizia que a vista faz fé.

— Muito obrigado, seu Chico, eu ó com sá An tónica, se vosmecê fizer gosto.

— Olé, quer ver que vocês todos tres querem me depennar a casa ?

E poz-se a rir muito, sendo imitado pelos tres, e em seguida levantou-se, encheu a caneca e apresentou-a aos triumviros rústicos.

— Vá este coãorio á boa harmonia. Eu nada decido; mas vá á saúde.

Na sala immediata ouviram-se n'este instanie risadas, cochichos, e o ruf-ruf de saias engommadas.

enganar a moça; tudo menos isso, inter-vrfiu energicamente o feitor.

— Assim mesmo pedaço dê tolo, não queiras; o Manuel Joãí temboabocca, seu Vianna ; os outros comem a carne e eile róa os ossos.

— Por Nossa Senhora das Dores, vocês estão zombando. Eu arranco a lingua áquelle cachorro, se elle se atrever ; vá elle para as profundas do inferno. Eaco-ro-o no caminho e manio-o d'e ta para a melhor. E sabe o que msis, o que você quizer que eu faça & só dizer.

— Está dito ; está fechado; a ofensa de um é a offensa de todos : juremos 1

— Juramos! Ao anoi tecer estavam os tres na casa

de Francisco Benedicto, que já dava fre-quentes risa ias, graças á chegada do seu filho, e de umas garrafas que elle trou-xera á@ parte do Sebastião.

Os visitantes foram recebidos somente pelo velho e sua mulher, porque as me-ninas, desde manhã estavam na ca«a do compadre.

Depois das primeiras ccnversae, Sebas-tião Pereira disse ao velho que vinha a uma cousa de interesse acerca da qual queria fallar-lhe, sendo ouvido sómente pelos dous am?gos.

— Pois venha de lá e3te golle; disse o velho que tinha nas mãos uma caneca; molhe se a palavra primeiro.

Sebastião começou por fazer ver que tinha o seu pedacinho de terra, que era bom falquejador, remador e trabalhador de enxada. Nunca tinha passado misérias e ao contrario quando mettia a mão no bolso tinha sempre o seu vintém. Se não era rico, também não lhe faltdva a graça de Deus, e a moça que se cssasse com elle não ficaria de máu partido.

— Ora, eu teaho amisade á sâ Chiqui-nha, filha de vosmecê e fazia go&to em casar com ella, se vosmecê quizesse.

O velho, depois de arregalar muito os olhos, e coçar a cabeça, respondeu vaga-rosamente:

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26 MOTTA COQUEIRO

— Oh! meninas venham fallar aqui, exclamou o velho.

Ao mesmo tempo entraram na sala Ma-riquinhas e Antonica, emqujnto o velho murmurava com bonhomia:

— Aí?clem lá, suas matreiras, velha-quetes de uma figa; aonde está a que falta, fugiu ?

— Não senhor, respon leram as moças ao mes mo tempo que lhe beijavam a mão ; vem ahi com seu capitão I

Um pigarro impertinente começou a impacientar Sebastião Pereira, e este in-clinou se na janella para escarrar," porém logo voltando-se para dentro, disse:

— Mas eu não os vejo por aqui. —• E1 que nós fomos á roça, respondeu

Mariq rilhas; elles ficaram mais atra-zados colhendo limas, e cós com a familia de seu capitão viemos andando. Mas elles já devem estar ahi pela baixada.

— Q lai o que, quando vierem, vieram, respondeu o velho. Está em muito boas mãos. . =*Lá isso é, accrescentou Sebastião in-teiramente despeitado e olhando para os seus companheiros.

— Aquôlle compadre é um folgazão, riu ove'lio, que f zia uma libação á caneca; brinca com essas raparigas como se fos-sem todos crianças.

— E é bem de vêr, rosnou Sebastião. — E-<á v ndo, Mariquinhas, aquelle

malvado tem dor de canellas; resmun? goa ÁDtonica.

— Deus esteja n'esta casa, exclamou fôra a vez grossa de Motta Coqueiro ; li-cença para d.is.

Cniquinha entrou apre;sada e foi beijar a mão pfctarnt eem seguidacomprimentar os hospedes.

Estes de pé responleram á saudação da moça e a da Motta Coquoiro que, parado ao limiar, todo vestido de branco, arrima-do com a mão esquerda a um polido man-guá, e tend J na direita o chapéu do Chile, deixava ver o seu alto porta e a cabeça ao masnn tempo sympatica e severa, ornada

de caballos e barbis grisalhas, esbatidas em faces magras, porém coralas, uma aVlas mareada por um signal roxeado e longo. Por debiixo das sobrdiicalhas sa-lientes as palpebras meio carradas eoavam-Ihe um olhar penetrantemente bom e por entre os bigodes grisalhos riam-lhe os labics finos um sorriso despretenciosa-mente austero.

Voltando-se depois para as irmãs, entre risonha e seria, disse-lhes Chiquinha :

— Vocês fizeram da bôa; vieram e deixaram ncis srsiahos.

— Moleque, chamou Motta Coqueiro, entrega as limas das moças e leva as ou-tras para casa.

E continuou logo sorrinJo : — Está entregue; agora vou cantar

n'outra freguezia. Bôa noite, meus se-nhores.

Sahiu-riscnho e apparentemente satis-feito, mas quan 'o estava um pouco dis-tante da casa; repetia em voz baixa : aquelle ompadre Eã? tem um pingo de juízo.

Logo que se acharam sós, exclamou Chico Benedicto para &s filhas :

— Então o que andam • vosmecês f* zenio, qu3 me vem h' je dois pe sidos de casamento sqai; isto é modo, meninas ?

As moças naJa disseram, e o velhopro-seguiu :

— A velhaca da Chi fuinha,quem diria que gosta do Sebastião, e a sonsinha d* Antoni:a do seu Vianna? 1 Sua alma, sua palma Fico ainda com a Mariquinhas e as tres pequenas.

— Mas falta ainda a receita, seu Chico, resmoneou S bastião.

— Não f-ilta nada, gargalhou o velho que tinha esvasiado mais uma canecà. Sabem que mais? conversam p'ra ahi com a mulher e átfxatn-mí ir a um ne-gocio.

Oj tres acompanharam o valho até a porta 0 ahi permaneceram por algum tempo.

Emquanto a boa da velha entrou para

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OU Â PENA DE MORTE 27

trazer o Cífé aos hospeles, os tres aeer-ciram-se das moças e cada um começou a conversar com a sua predilecta.

Manuel João, com a voz tremula, dizia para Mariquinhas, que empallidecêra desde que ouviu ao pai dizer o motivo da visita de Sebastião, e Vianna:

—_Só sá Mariquinhas é qua ainda não tem noivo.

— Eu não posso obrigar ninguém a querer cisar comigo, e eu mesma não quero.

— Talvez, sá Mariquinhas, hsja quem - queira e não possa.

Boas; quam quer pode sempre. — E se fosse um pobre f íito sem eira

nem beira. — Eu também não sou princeza, e, tra-

balhando nói dois, haviamos de viver. — E se seu pai não quizesse ; se ficasse

zangado com vosmecê ? — Paciência; mas eu queria sempre. Esta ingénua revelação do amor puro

da Mariquinhas, quasi enlouqueceu o des venturado feitor; sorria emquanto que as lagrimas lhe escorregavam pelas f*ces. Por sua vez Mariquinhas tinha os olhos pregados no chão e com as pontas do in-dicador e pollegar beliscava o vestido so-bre os joelhos.

Não havia duvida, o fdtor era amado, e isto era para elle a maior de todas as venturas.

— Ficou zangada comigo, pelo que eu z, sá Antonica ? murmurava Vianna. — Eu o que não quero depois ê estra-

la la ; vocês voltam a cabeça da gente e depois... passe muito b m, porque os po-bres não regulam.

j - Não diga isto, sá Antonica ; o diabo não é tão feio como se pinta.

— Não digo, não : está lembrado do que me disse na brincadeira de Santo Antonio ? Case e depois com ce com historias.

— N'aquella noite eu estava meio tonto, minha negra ; aguas passadas não moem moinho.

— E \ . . quem ouve agora o capêta! Debruçadcs na janella,conversavam Se-

bastião e Chiquinha. O violeiro esforça va-te por convencer a moça de que devia ceder a um pedi lo que lhe fazia.

Tinha cousas que dizer-lhe mas não queria qus u ouvissem.

— O' Chiquiaha, dizia élle; que diabo de me lo é este ? eu não s u bicho; e já peiivociê.

— Não é por isso; é qu3 papai pôde ficar zanga lo; você bem sabe o génio dVlle, em scismando e&tá tudo perdido.

— Mas elle está lá com o compadre e sóaca-o toda a noite. Você diz que vai dormir e sai pelos fundos da c;&a: eu estou no cajueiro da baixxda.

— Veremos... — Eu espero. A velha consorte de Francisco Bsne-

dicto entrou trazendo duas chicaras de café, ao passo que Mariquinhas sahia da sala e para logo voltava com uma outra chici.ra,que offereceu a Manuel João.

— Meu pai foi cavalleiro, disse Sebas-tião ; eu já me fazia na picada e assim aproveito.

— Tão cedo?... — Nem todo o dia é dia santo, e ama-

nha tenho serviço. Sebastião despe iiu-se e após meia hora

de palestra os outros retiraram-se tambam. Lisongeado com o pedido feito pelo

violeiro e pelo tendeiro, dupl<4 f^ce da independencia sonhada para as filhas no rendimento de uma ven iola e na posse de um sitio, Francisco Banedicto quiz logo saber o acolhi mento que este facto me-recia do seu compadre Motta Coqueiro, que melhor conhecia os pretandentes.

Ojvèlho firmara-se no proposito de nada resolver, senão de accordo com o seu bem-feitor, fosse embora prejudica lo, fosse mau grado seu, obrigado a dar de mão á risonha perspectiva de felicidade, que lhe ^ dominava o cerebro aguardentado.

— E' minha obrigação, dizia elle; am-parou-me e tem sido meu amigo apezar

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28 MOTTA COQUEIRO

das más línguas; não houve cão nem gato que não me mettesse o dente, e elle fez a todos ouvidos di mercador. Hoje, nas horas de Deus, tenho onde metter a ca-beça, e com os diabos, se eu não ouvir o compadre não devo ouvir mais ninguém.

Taes eram as disposições do velho ag-gregado ao dar o clássico—oh! de ca?a— á portada sala d e j m U r da casa grande.

O bom humor de Motta Coqueiro, e os modos prasenteiros de sua esposa, rece-beram alegremente a visita em meio da familia reuni 'a em torno da mesa de jantar.

Vieram primeiro a narrativa do passeio e os elogios á prosperidade das roças do aggregado, tudo isso meio exagerado pela amisade que a dona da casa deli-cava ás meninas do seu hospede, que lhe respondia a gra lecido:

— A gente vai fazendo o que pódeLsá comadre; somos só dois a trabalhar : eu que já não presto para nada e o Juca, que ainda não se póle dizer que é um homem. Na plantação e na colheita é que as raparigas e a minha velha ajudam. Mas vai-se vivendo, conforme Deus é servido.

Uma creoula pousou na mesa, em frente a Fraacisco Benedicto, uma chicara de café. 0 velho despejou o café no pires, e ao leval-o á bocca, demorou um pouco o braço no ar, dizendo para Coqueiro:

— Eu queria que seu campadre e sá comadre me dessem uma palavra á parte.

— As mulheres não podem ser padres, meu compadre, e não sabem também guardar segredo.

— Mas não todas, sá comadre ; a mi-nha velha ó das taes, que o que se lhe diz é ccmo j«gar n'um poço.

— Vamos ao caso,compadre; disse Motta Coqueiro, que se havia levantado e tom iva o corredor que comn.unicava a sala de jantar com a de visitas.

Chegados ahi e sentados, o velho referiu miu lamente a visita de Mam ei João, Vi-anna e Sebastião Pereira, o pedido que

esses dois últimos lhe fizeram e concluiur — Eu e<tou velho, não tenho nada de

meu, não disse que sim, nem que não;; fiquei assim ; vosmecês o que acham?

O embaraço interceptou por algum tem-po a resposta; mas afinal a senhora de Co-queiro rompeu o silencio para expender uma evasiva:

— Eu não posso dizer nada, meu com-padre, o senhor sabe que não moramos aqui; eu estou sempre na cidade, e, quando venho para o sitio, nã > saio de casa; por-tanto nada posso dizer.

— Sá comadre tem razão de não que-rer fal lar; respondeu o velho, mas seu compadre pôde me dar um parecer.

— O melhor ó você fazer o que enten-der, comp idre, respondeu o interpellado.

— Não senhor, eu preciso de saber do parecer de seu compadre. Sou novato aqui; debaixo de Deus só devo a seu com-paire a casa em que estou morando e as terras em que trabalho. Quem dá o pão, -dá o castigo; quem me avisa meu amigo é.

— Ouça bem, compadre, o que eu lhe vou dizer: nem o Vianna, nem o Sebas-tião querem casar com as meninas. Eu n&o pretendia dizer palavra, porque não ^ gosto de envolver-me n'estas coisas ; mas emfiaa, não quero que você tenha razoes de queixa, quando se arrepender. Eunoseu cato o que faria era dizer-lhesque não me viessem em casa, e se as meninas teimas-sem em querel-os para maridos, só lhes abriria a porta no dia do casamento.

— Ora vejam só que biscas aquellas, disse o velho sacudindo a cabeça ; e me prosaram com uma venda, com um si t io. . .

— E' verdade que o Vianna tem uma venda, mas vive com uma mulher e pa-rece até que é casado com ella. O Sebas-tião tem umas terras, mas não as cultiva e não gosta de trabalhar. A vida d'elles é fados e namoros. Eis o que tenho a dizer; o compadre é livre, faça ú que entender,

— O diabo é que eu vejo a cabeça das

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raparigas meio viradas para elles, . u r a inferno; não ha nada peior do que ser pobre.

A ultima consideração do velho de-nunciava uma quebra do proposito com q u e e n t r a r a na casa d e Coqueiro : a imagem do sitio e da venda suffocava-lhe a r e f l e x ã o . Além d"isso tinha esvasiado alguns canecos de aguardente, e o arras-tado da lingua e o cuspinhar conti auo d e n u n c i a v a m umà anormalidade nas fcuas faculdades.

Motta Coqueiro, como se se tivesse arre-pendido, mostrava-se contrariado, e mais ainda do que elle a sua esposa, que apro-veitou, para retirar-se, o ensejo que deu-lhe a longa pausa succedida ás ultimas pala-vras de Francisco Beneiicto.

Logo qua a senhora retirou-se, Motta Coqueiro reatou a conversa a respeito dos espon?aes das filhas do seu compadre, porém, procurando desvial-a e flxai-a em outro ponto, e tanto msis decididamente quanto mais o valho mostrava-se propenso a não attenier o seu conselho.

— E sem que se dê por isso, compadre, vai quasi para dois annos que voceestá aqui comnosco.

— E' verdade, meu compadre, e em tão boa hora o diga, ainda não tenho uma queixa de nenhum dos donos da casa.

Muito obrigado. O que você devia, compadre, era cuidar de fazer a sua casa. A em que você mora, está velha, e muito longe do seu trabalho.

— E' verdade, meu compadre, mas as plantações, têm-me atrapalhado. Agora se essss dois rapazes quizerem sgudar-me, eu, o Juca e elles sempre somos quatro e a cousa vai depressa.

Não havia duvida; Francisco Benclicto já fallava dos seus genros, os dois rapa-zes, e contava com elles.

— Pois faz muito bem: aproveite os para alguma coisa, disse MotU Ccqueiro, levantando-se.

O velho comprehendeu que eram horas de retira r-se.

Emquanto esta scena se passava na sala da casa grande, tfn lo por únicas teste-munhas algumas cadeiras vasias, e uns apparadores de jacarandá, lá fóra, no campo do sitio outra se desdobrava ao luar, no silencio e no ermo.

O triumvirato de amantes dissolvera se por aquòlla noite, mas um Vtlles apenas, o Vianna, reti -ara se immediatamente para a sua morada.

Os cutros podiam ser encontrados nas circumvizinbanças da casa do velho ag-gregado,

Sebastião Pereira, conforme tratara com Chiquinha, foi esperai a na baixada. Era um logar apropriado para uma entrevistf; os amantes alli ficavam pela jropria na-turesa recatados aos olhares curiosos.

Uma grande entrada quasi circular, co-bsrta de grama, levantava se do sopé ao cimo da collina. D\h i um enorme cajuei-ro vergava todos os seus galhos sobre a entrada, cobrindo-a com uma especie de cupulã. Um banco de pau ornava o silen-cioso e pouco frequentado recinto.

Daixando a casa do velho,Sebastião Pe-reira tomou cautelosamente o caminho que conduzia á baixada e deitou-se no bmco, cobrindo o roíto com o chapéu. A sua immobilidade, o nenhum ruido da sua respiração repreza faria crer a qualquer sertanejo, que alli entrasse, não serem mentirosos os contos de alaaas penadas e phantãsmas de que lhe fallavam desde a infanda.

Aos segundos súocederam os minutes, e a estes os quartos de hora, tardos como afiguiMm-sea quem espsra. Nenhum gesto de sofregui ão foi, entretanto, feito pelo violeiro; nem ao menos puchou pelo isqueiro e o cigarro, inseparáveis compa-nheiros dos homens do sertão. Continha-o a paciência do mal, inalteravel nos seus planos.

Passada maia hora, um leve ruido de saias engommadas, produziu em Sebas-tião o effeiío de um choque eléctrico; poz-se em pé de um salto e conchegando

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30 MOTTA COQUEIRO

o chapéu á cabeça, guindou se como um gato, pela face do escondrijo.

Quando já as mãos do viol-iro tocavam o cimo da collina, a voz de Chiquinha, tremula e fraca disse de manso :

— Não está aqui, meu Dsu*, não está. — Psit : sibillou Sebastião ; e continuou

com voz gutural : espera 1 A moça sem dizer palavra caminhou

para debaixo da copa do cajueiro. Quem a visse ahi parada, ao passo que

ainda de dentro do escondrijo ló haviam sahido os braços e a cabeça de Sebastião, que tinha o resto do corpo pendurado, jul-garia ver a presa magnetisáda e immovel diante da serpente enorme, que lhe vai dar o bote.

O violeiro conseguira sahir ; e cami-nhanio apressado para Chiquinha, pren-deu nos braços e beijou a face da moça que o repellia, dizendo quasi a chorar.

—- Me deixe, me deixe ; não foi para isso que eu vim cá.

—• Fallou certo, sá dona ; eu e que não lhe devia tratar bem.

— Porque ; eu lhe fiz mal ? — Escute só ! — disse o brutal amante

segurando e puchando pelo braço a ame-drontada Chiquinha.

— Onde é que você quer que eu vá, seu Sebastião ? falle aqui mesmo.

— Não quero ; podem ver-nos de lá ; vamos para a baixada.

— Não quero ir ; manai pdde me pro-curar ; papai pode chegar ; as outras pe-dem dizer; não quero; não posso demo-rar-me ; me deixe.

De feit a, a leviana rapariga, psra acce-der ao convite de Sebastião, que desvai-rou-a com os seus versos de desafiio e os repinicados da viola, tinha dito á sua mãi que se ia deitar por estar muito cançada, e não podendo illudir ás suas irmãs, que foram comsigo para o quarto, dissera-lhes que ia fdra um instantinho fallar com o noivo.

Nada objectaram estas, cuja educação não se oppuaha a que os noivos tivessem

as maiores familiáiidade3. Todavia es-tranharam que Sábaitião tivesse deixado de coGVfrsar em^asa, e lecommeadaram á irmã q-íe voltasse logo.

As observações de Chiquinha não pro-duziram nenhum effeito sobre Sebastião: elle continuava a segural-a e a puxal-a para si. Forcejando contra elle, e tentando fem o b aço, que tinha livre, abrir o cir-culo que lhe fizera a mão do amante em volta do pulso, choramig-.va tristemente.

— Não vou, não vou I Segurando-a pelos dois pulsos, Sebas-

tião trouxe-a violentamente para junto de si, e depois impslliu-a de chofre. -

A moça cahiu sentada naTdva acom-panhada na queda por uma injuria.

— Pode ir, pòie ir, minha sapeca ; eu já sei de tudo. Ainda ha de estar cansads; tem medo que eu lhe faça o mesmo que o santinho do capitão.

A moça levara a mão aos clhos, e so-luçando deixara se ficar sentada.

— Pó le ir, continuou o desapiedado; elle pôde sentir falta e vir proçural-a, eu sou quem já se vai.

E foi se pendurando novamente na borda do escondrijo, e deixando-se escor-regar pela grama.

Como se fosse victimade uma allucina-ção inopinada, a atemorisada Chiquinha deitou a correr pela encosta em direcção ao escondrijo, e ahi, soluçando, lançou-se-nos braços do violeiro. Affluiam-lhe as desculpas. _

— E' mentira; ê mentira; eu nao. O moleque Carlosbem viu, nem seu capitão disse nada. Que falsidade, meu Deus I

— Pois então, porque você me fez ficar zangado ? Olha que eu sou capaz de esfa-quear um diabo por sua causa; seja seu pai, seja quem for. Qaequer? eu estimo tanto você; raios me partam se assim não ê; parece feitiço.

Entontecida pela revelação calorosa da paixão do seu amante, e ao mesmo tempo traspassada de susto, Chiquinha não dós-

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OU A PENA DE MORTE 31

viava a face dos lábios, cem tentava f u g i r dos braços de Sebastião. ,

A sua vez fraca, coma se tentasse não serouviia pela própria moça, murmu-r a v a machinalmente desculpas para acom-modar o amante, era quanto este, dando azas á seducção, inundava-a de phrases namoradas.

A esta sobrexcítação, saguiu-se um pro-fundo silencio"; depois sahiram silencio-sos e caminharam para o casarão, em cuja porta trocaram-se adeuses em voz sumida»

III «

CADA UM EM SEU POSTO

O suspeitoso Manuel Jcão concebeu a respeito da demora da Chiquinha e do ca-pitão na colheita das limas a mesma idéa, que atravessou a lúbrica imaginação do violeiro e occasionou a entrevista na baixada.

Era seu dever tirar a limpo a verlade; impunha lh'o o juramento que, havia poucas horas, empenhara ^um pacto de solidariedade inquebrantável, s, tanto como o juramento, o proprio conceito que levedava-lhe a paixão no mais azedo ciúme.

A desconfiança, esse feio ouriço que se nos revolve interiormente, espetando-nos nas suas myriadas de espinhos a alegria, a boa fé, a bsnevdencia e a tranquili-dade, sangrava-o no mais intimo, no mais sagrado do seu affecto.

Na conspiração horripilante, mas sem éco, celere nos movimentos devastadofèp, mas" silenciosos, o hediondo monstro mo-ral, com as secreções purulentas como o vomito do phtisico, manchava qua&to o amor podia phantasiar mais estreme, e a dedicação requintar mais esplendido.

Onde estava um brocado superpunha um andrajo; onde clareava um phanal urdia uma emboscada, onde brilhava um raio de luar estendia um bulcão ; e, em vendo vicejar uma flôr, lembrava cavilo-

samente a, das nymphéas que se nutrem das aguas pútridas dos brejos.

Contrastado pela suspeita, o feitor via no lhano entregar-se de Mariquinha:-, não uma prova da bondade d'aqutlle coração ingénuo, mas a cilada indecorosa da n u-lher .decahida., que planeja, a rehàbilita-ção na profusão dos &ffagos.

Os ..-preconceitos haviam o por varias vezés esmagado, porque p-rtencia á raça mixta, á raça a que traçam raias ao co-ração e aos aífectos..

Mariquinhas devia partilhar a opinião geral e, portanto, a sua acquiescencia ao amor, que lhe votara, devia ter um movei òu muito generoso ou miseravelmente baixo.

A primeira ponta do dilemma não feria a imaginação tresvairada de Manuel Jcão; •malferia-o, porém, a segurda.

— E' bonita de mais para um hemem de côr, dizia elle; e fisava a scismar.

Um observador perspicaz, ao ouvir estas palavras, comprehénderiairnmedia-tamentô que na memoria de Manuel João desenhava-se na suavidade do seu amo-renado a pedir uma piixão selvagem, indómita, a imagem de Mariquinhas.

Parava como em extasis, deixanlo ade-vinhar que no seu espirito coava-se o olhar mac io da moça, filtrado atrávez de uns cilios negros, seiosos; olhar de pouco brilho, despretencioso, animador — uma gotta de oleo contendo um raio de luz, a derramar-se eminundação diaphana sebre um rosto oval, de linhas harmon;ces, transparecendo singeleza e sinceridade.

Mariquinhas era realmente bella; ar-queavam se lhe sob as narinas finas os lábios semelhantes as azas do tigé no san-guineo colorido, e orlavam-lhe a testa pe< quena bastos cabellos negros, descendo em ondas lustrosas a envolver-lhe dois terços da estatura mediana. Seu collo igualava a curva de um arco toam talhado, da que partissem a pequena distancia as extre-midades ponteagudas de duas settas.

Quanálo nas. horas de trabalho ella

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32 MOTTA COQUEIRO

com as mãos aristocratieas conchegava ao corpo a saia de chita, esta compressão e a justeza do corpinho faziam lembrar os contornos de uma estatua.

O moço feitor fascinara-se decde logo pela serta&eja encantadora; e agora que o ciúme assolava-lhe as faculdades, elle, para concluir que havia uma torpeza no desapego de Mariquinhas por si própria e pelos preconceitos sociaes, punha-se em parallelo com ella.

RefUctia-se no seu despeito sem causa e via-se bem differente do harmonioso

; conjuncto da sua amante. Seu rosto modelado pelo typo indigena

|tinha a côr do genipapo; seus olhos grandes, á flor das palpebras orladas de èobrancelhas negras, lançavam olhares

/ásperos, amplos e incisivos. Por sob o / cheio buço ondeiavam-lhe em horas de

ternura uns sorrisos atoleimados, em-bora através de duas linhas de dentes claros. As suas mãos eram calosas de mais para ameigarem-se n'uma caricia, e o seu porte desenvolvido ostentava a mus-culatura rija e abundante do homem de trabalho.

O que tinha, pois, em si que podesse attrahir á mais linda das filhas d'aquelle sertão ?

Poiia b9m ser que ella só visse n^lle um nome de esposo, para encobrir al-guma fraqueza dos quinze annos, e a falta de piedade de um fazendeiro rico.

Seria, porém, baldado esse intento, porque saberia sorprehender o ardil, e desmascaral-o.

Ruminando sinistras conjecturas chegou o feitor á sua casa, depois de ter pedido na senzala vizinha um tição, com o qual accendeu o candeeiro.

Chegou para junto da mesa um mocho e assentou-se, cruzando os braços sobre os quaes deitou a cabeçi, na borda da mesa, e absorveu-se nos seus pensa-mentos.

Só se lhe ouvia espaço a espaço, le«

vantando a cabeça e dando uma fôrte pu-nhada, exclamar :

— Não pôde ser; aqui anda coisa, por força.

E recahia no silencio e na primitiva po-sição.

Com um taboleirinho, em cuja taboa viam-se um bule de lata, uma chicara, e um prato com tapiocas; um molecote des-empenado, de semblante alegre e meneios francos, assomou na porta do feitor, gritando:

Oh I seu Manuel João, está aqui a ceia. Quando acabou de fallar, já o taboleiri-

nho estava sobre a mesa. Manuel João levantou-se como quem

acorda sobresakado ; mas em vez de assentar-se de novo á mesa, caminhou direito á porta, fechou-a á chave, e de-pois veio ccllocar se ao pé do moleque.

— Oh I Carlos, disse elle ; tu queres ganhar uns cobres ?

— Se vosmecê me der, eu gosto bem. — Eatão aqui, disse o feitor, que tirara

do bolso do paletot uma nota de dez tostões.

Carlos arregalou os olhos, e, tartamu-deou sorrindo:

— Qual é a empreitada, seu Manuel João ?

— Jura primeiro que não contas a nin-guém o que vou te perguntar ?

— Por Deus, disse o moleque, cruzando dois dedos e beijando-os.

— O amo, a ama, os meninos e as filhas do Chico Benedicto foram passear hoje de ta rde . . . . .

— Sim, senhor, e eu também fui, por signal que apanhei áquellas limas .que vosmecê v iu . . .

— E' isto mesmo. O amo ficou com sá Chiquinha e os outros vieram anda»: do, não é?

— E' sim, eu logo vi que havia de dar na vista.

— O que ? elles onde ficaram . . ' — Não houve nada, não senhor; mas

é que é feio»

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OU Â PENA DE MORTE 33

— Escuta bem, Carlos, não me enga-nes ; falia a tua verdade.

— Não houve nada, não ; senhor e sá Chiquinha ficaram" sentados na pedra, e eu trepei na limeira. Se houvesse alguma cousa eu via tudo, que éu bem que estava assumptando.

— Nem um beijo. — Qaal o que, seu Manuel João; se-

nhor já está velho ; e elle não gosta de sá Chiquinha, não senhor, que ainda agora eu ouvi lá na mesa elle estar fallan to com a senhora por causa dò Sebastião.

— Butão elle gosta de alguma ? — E1 de sá Mariquinhas, porque elle

estava dizendo que é a mais socegadade todas, e de mais juizo.

A' revelação do moleque correspondeu uma explosão colérica do feitor; estava fulo de raiva, espumava :

— Pois olhe, elle que se divirta, aquelle velho sem vergonha ; racho-o de meio a meio, f»ço-o voar na bocca de um baca-marte, o traste. Quem o vê ; se ella tem juiso, ou não, que lhe importa f Não ê filha d'elle...

— Mas não é por mal, seu Manuel João, é porque as outras são faiscas.

— E ella 6 a mais tola e por isso elle vai-se chegando para ella, mas Deus o livre, eu não sou de brincadeira....

— Pôde ser l . . . — Yocê me espie o sujeito, Carlos;

qualquer cousa que você veja, venha ter commigo ; deixa estar que não perde o tempo.

— Deixe por minha conta! O moleque diiigiu-se á poita, abriu-a e

sahiu; Manuel João sentou-se á mesa e começou a tomar café.

Carlos havia de estar chegando á casa grande, quando um outro interlocutor veio substituil-o junto ao feitor.

Era uma créoula de dezeseis para dez-esete annos, exhalando sensualidade dos olhares maliciosos e atravez do crivo da camisa branca.

Desde que Manuel João empregava-se 3

còmo feitor no sltlõ de Motta Coqueiro, intimas relações foram travadas entre elles. Separados durante o dia em virtude de suas posições, ella—escrava do eito e elle—feitor, reuniam-seánoite na igualda-de do amor, e ceiavam juntos entre risos e caricias.

Ninguém suspeitava siquer esta al-liança: a creoula morava na primeira senzala, e para entrar na casa do feitor bastava dar alguns passos.

O moleque que trazia a ceia para Ma-nuel João, com o seu grito aporta do feitor, advertia a creoula de que eram horas de reunir-se ao seu amante. Fi-cava então £ espreita e logo que este se retirava, fazia ella a sua entrada.

Q jando o senhor não estava no sitio ainda mais fácil tornava-se a reunião. A parceira incumbida de apromptar a c o m i d a mandava pela amante o taboleiri-nho da ceia do feitor.

Na noite em que nos aehamos a rapa-riga poz-se á espreita do moleque, se-gundo o habito, e sorprehendida da de-mora, veio pá ante pó encostar o ouvido á porta para ouvir, e de vez em quando espiava pela fechadura para vero que se passava. .

A principio foi-lhe impossível formar um sentido com as pouca» palavras soltas, que excediam o diapasão do dialogo á meia voz; mas persistindo na sentinella, poude para o fim saber ao ceito do que se tratava.

Contendo o primeiro impeto, a crioula manteve-se no seu posto até que o mole-que sahiu. De um pulo, collocou-se ro vão entre a sua senzala e a casa do feitor, para logo voltar á entrevista de todas as noites. a . .

Ao entrar fechou a porta sobre si, e foi como de costume assentsr-se no mesmo banco ao lado do feitor. Este, porém, re-cebeu a friamente, sem levar-lhe á bocca a ohicara para dividir com ella o café que tomava.

_ Que é isso, o que é que lha f « * W*

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34 MOTTA COQUEIRO

Carolina! perguntou ternamente ã dissi-mulada crioula.

— Estou doente hoje, respondeu sec-camente o feitor.

— Se é quebranto, eu sei rezar. Eu curo-o hoje e de hoje em diante vosmecê traga no pescoço uma figuinha para livrar de máu olhado.

— A doença que eu tenho você não cura, sorria tristemente o feitor ; é mo-léstia para outro doutor.

— Então já não está aqui quem fallou. Calaram-se ambos; Carolina poz se a

beber pela chicara de Manuel João, em quanto este pecava sobre a mesa o fumo e ajustava uma palha de milho pai a fazer o cigarro.

Emquanto bebia, a creoula fitava de soslaio o seu amante, e o seu collo, negro como as penas do anum, arfava larga e tumidamente. Rompeu por flm o silencio:

— Sabe do que estou me lembra IGO, seu Manuel ?

— Sim... — Da primeira vez que vosmecê fallou

commigo no aceiro, quando eu passava com o barril d*agua para a gente.

— E por que lembrou você isso? — Vosmecê estava debaixo das bana-

neiras, tirando fogo do isqueiro; cha-mou me e deu-me de presente um lenço branco. Quando isto foi, ainda não era nascido o caçula de senhor ; e d'ahi para cá vosmecê tratou-me sempre bem; ficava alegre quanio me via...

A creoula enxugou duas lagrimas que lhe desligavam pelas faces, e Manuel João, prendendo-a com o braço pela cinta, exclamou:

— Da que é que você está chorando, Carolina ?

— Pois não é assim; eu não lhe sujei as suas barbas e vosmecê já não faz caso de mim.

Manuel João tinha-se inclinado para Ca-rolina e os seus lábios quasi roçavam os grossos lábios da amante,quando se poz de

pé, de um salto, como se uma occulta força o houvesse repeliido.

— Não estou zangado, não; exclamou contrariado, mas hoje quero estar sozinho

As lagrimas seccaram-se nos olhos do Carolina ; e a dignidade da amante er-gueu-se de pé e solemne diante do feitor.

—- Escute bem, seu Manuel João; eu não lhe estimo nem por medo nem por ganân-cia. Quero-lhe bem, está ahi tudo. Desde que lhe estimei, ninguém se pode gabar de ter visto õs dentes d'esta negra. Não pense, não, que eu deixando vosmecê voa andar por ahi. Pode perguntar ao Jaca Bene-dicto como é que eu lhe respondo, e não hei de mu lar, não, ainda que o senhor passe a feitoria para o pai d'elle.

— O que ? o que é que você acabou de foliar ?

— Digo que nã<> hei de mudar,ainda que seu Chico Benedicto fique sendo feitor.

— Vccê está mentindo; o amo ainda não se mostrou zangado commigo : não pode despedir--ne assim, sem mais nem menos.

— Todo o mundo já sabe que o senhor vai chamar seu Chico; pergunte, para vêr se é mentira.

Dando este golpe certeiro no amante in-fiel, a creoula sahiu victoriosa, apezar das rogativas de Manuel João.

— Anda, dizia ella, lá fdra; vê quem vale ma s, se são as brancas ou as negras.

— Feitor! feitor! elle, o pai! excla-mava de vez em quando Manuel João; não ha duvida, uma das filhas ê o pago de tanta amizade.

Chegando á sua senzala a creoula con-servou-se algum tempo sentada na grossa esteira do seu leito miserável, sugando de seu cachimbo negro densas fumaças opa-ladas.

Um caco de barro vidrado, em cujo fundo aspesaava-se uma camada de escuro azeite de mamona, d'entre a qual partia, para A borda do caco, uma torcida de algodão embebida do oleo e accesa na extremi-dade, dava luz ao cubículo.

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OU A PENA DE MORTE

Por únicos ornatos via-se ahi uma velha caixa de madeira, uma corda estendida n ^ m dos cantos do quarto, na qual penduravam-se as saias brancas engom-madas e o vestido de cassa domingueiro.

Pouco aciaia da cabeceira do leito, pen-dia da parade um quadro envernizado, em cujo fundo o ar-tista desenhou uma bella mulher, de semblante sem tristeza, mas tambem-sem sorrisos, na^alma ioef-fa*el da pureza. Rosto encantador, cuja testa debruavam crespos cabelios ne-gros que lhe desciam até os hombrcs ; o corpo de perfeição irreprehensivel, ves-tia-o uma túnica amarrotada em pregas caprichosas, e sotoposta a um manto azul salpicado de estrellas. Os pés pequenos pousavam sobre uma grande nuvem da alvura das camélias e amparada por hom-bros e cabeças de anjinhos alados. Todo o conjuncto emmoldurava-se n'uma ellipse de nuvens brancas, aífastadss por um ciarão.

A religião tinha santificado este quadro, consentindo que se escrevesse sob elle: Nossa Senhora da Conceição.

D ante d^ssa mulher immaculada, Caro-lina como que não se atrevia a dar som aos seus pensamentos sombrios: eva-porava-os silente nas baforaias de fumo.

A semelhança dos pantanos que dissi-mulam a existencia da lama de suas bacias, mostrando a superfície azulaia coberta de grandes ilhas íluctuantes, vi-rentes e tocadas de flores; a desditosa recalcava no coração os odios vingadores, emquanto que nos olhos merejavam lhe as lagrimas, essas tristonhas flôres em que desabrocha ò seffrimento das almas deliiadss.

De súbito, porém, arrancou d'entre dentes o cachimbo, pousou o no chão junto da cama, levanteu sa e abriu a velha caixa que lhe estava em frente.

De dentro de urá grande escaninho tirou algumas peças de roupa. Eram umas tou-cas de lã, umas camisinhas para recem-nascidos e alguns pannos de algodãosinho.

Depois de deedobral-os entre as mãos e tornal-os a dobrar, a preta veiu coilocar se diante do quadro da Virgem; e as lagri-mas até então contiias rolaram lhe em fios para logo estancarem-se.

No rosto de Carolina a expressão pun-gente foi então substituida pela da mais sombria raiva. As roupas foram feitas em tiras, calcadas e cuspidas, e a negra amante do feitor, depois de assoprar o candieiro, sahiu apressadamente do seu domicilio ssm conforto.

Cosida com a parede das senzalas se-guiu até a quinta janellin?»» e, pondo o queixo sobre o peitoril, chamou com voz abafada :

— Oh! tia Balbina, oh! tia Balbina; faz favor de abrir *

Lá dentro soaram uns estalidos de pa-lhas seccas comprimidas ; .a janellinha abriu se.

— Queé que você quer com tia Balbina, quando o gallo não tarda a cantar ?

— E' porjnuita precisão, tia Balbina; deixe-me entrar.

E Carolina, apoiando-se no peitoril da janellinha, pulou por ella para dentro da senzala.

— Que é quê foi; deixa accender o can-dieiro. _ . • '

A luz encheu o quarto, e deixou ver a interlocutora de Carolina.

Era uma preta, alta, corpulenta, de olhos máus, injectados de sangue, nariz grosso e beiços tumidi s.

Atava-lhe a cabeça um lenço de chita vermelha com frisos brancos, e vestia a até a cintura uma camisa branca de al-godão trançado, e d^hi até os tornozellos salientes uma saia da mesma fazenda.

Era cabinia e chamava-se Balbina. Havia, pouco tempo que se achava no sitio entre os escravcs de Motta Coqueiro, entretanto a sua auctoridade sobrè elles era maior do que a de seu senhor.

Ouviam-a como a um or&caló e as suas ordens eram attendidas como se fossem decretos.

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36 MOTTA COQUEIRO

Affavel nas horas de bom humor, rindo umas risadas expansivas, t o d a v i a nenhum dos seus parceiros atrevia-se a reques" tar-lhe a reluzente frescura da sua pelle de trinta e tantos annos.

O a s c e n d e n t e sobre os crédulos e broncos escravos do sitio foi c o n q u i s t a d o por Bal. bina pelo dom especial que ella tinha de conheceras hervasefficazes no curativo de todas as moléstias e ainda mais aquellas qué tinham certas virtudes especiaes, taes como amansar os senhores, apate-tar os brancos, e assentar o juiz) dos amantes volúveis.

Diziam que ella tinha nas suas mãos a vida e a morte de todos, e para dal-as bastava apenas um olhar ou um assopro.

No eito tinham-a por vezes visto che-gar-se junto ás cobras adormecidas, ou enraivecidas, e enxotai as. Os reptis fita-vam-a, agitavam as linguas e as caudas, tomavam mesmo a attitude de dar o bote, mas de chofre acovardavam se e corriam amedrontadas á voz da negra que lhes ordenava a retirada immediata.

Alguns timidos denunciaram a tia Bal. bina como feiticeira, e Motta Coqueiro, depois de descobrir em poder da preta os instrumentos proprios de tal arte, para prevenir os envenenamentos possiveis, fez castigar severamente a cscrava.

O castigo germinou no coração de Bal-bina um odio encanecido, e ella desde então só fitava o senhor de travez.

Accesa a vala, a feiticeira insistiu na pergunta:

— O que é que você quer com a tia Balbina, quanto o gallo não tarda a cantar.

Carolina crmeçou a fallar: — Vosmecê sabe que eu estou pejada,

mas não sabe de quem é. Balbina, abaixando a golla da camisa,

deixou ver o seu ctllo carnudo, onde se desenhava grosseiramente um olho aberto:

— Balbina sabe tudo, exclamou a feiti-ceira ; casa não tem parede, gente não

tem segredo, bicho não tem maldade para Balbina. Filho da você ê de Manuel João; mas o pai nãa se importa mais com a mãi de seu flllao.

O espanto avassallou a creoula, que se debulhou em lagrimas.

— Não chora, não, criança; mundo é assim mesmo, Balbina criou o filho dos brancos, Balbina foi boa para o menino. Quando o filho dos brancos estava doente, Balbina sentia como se fosse filho d'ella. Menino já está grande; os brancos jogam fô a Balbina; põ9m a escrava de outro dono no meio dos escravos dos brancos. Lingoa má corta em Balbina,brancos dão ouvido ; Balbina é surrada, como negro ladrão. Balbina soffre calada, porque maior é Dews. Tem amisade ao filho dos brancos, que não é filho de Balbina. Podia soprar a, casa grande; mandar a cobra coral tirar nos brancos o sangue que cor-reu das costas de Balbina, mas não quer; soffre calada.

— Mas eu não quero seffrer assim, tia Balbina; não quero dar meu peito ao filho de Manuel João, basta que eu veja elle casado com aquella faisca.

— BLCO! disse a feiticeira, levantando um dedo aos lábios. Você está dizendo peccado. Escuta primeiro a voz do cho-calho de Balbina.

A feiticeira abriu de novo a janella e es-preitou para fôra, depois tornou a fechal-a cautelosamente. Tirou de um gancho de páu pendente do tecto por uma corda, uma cesta de taquara; pegou do candi-eiro e do braço de Carolina e dirigiu-se para a repartição interior da senzala.

Collccou o candieiro n'uma especie de prateleira pregada á ombreira da porta do interior, e ordenou a Carolina que se conservasse de costas para ella.

Voltou então ao logar em que estiveram e abriu uma caixa de onde tirou uma trouxa coberta com uma baeta vermelha, e tornou para junto da creoula.

Desdobrou então sobre o chSo.abaeta, e çspalhou sobre ellas umas figa»

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OU A PENA DE MORTE 3 7

-na rollos de enxofre, uns maços de ca-bellos lanosos, um pequeno boneco de-forme de feiçòes gateadas e toscas, e uns ossos amarellados.

De dentro da cesta tirou um embrulho de arruda secca e um chocalho feito do espherci ie de um cuité, tendo por cabo uma

haste de taquara. de ter queimado um galho

de arruda, e vendado ccm um lenço os olhos de Carolina, a preta acocorou-se e poz-se a tanger o chocalho perto da ore-lha, dizendo: ^ ,

— O chocalho falia que Caralma ha de dar tres patê c as p%ra elle e uma vela para Nossa Senhora das Djres, cutra para S. Benedicto e outra para S Miguel.

— Faço, sim senhori, tia Balbina. A feiticeira tangeu de novo o chocalho. — O chocalho esta dizendo que o filho

de Carolina tem de s ffrer captiveiro do máu senhor. Brancos podem surrar, podem vender o filho da sua e s c r a v a , e a escrava ha de chore r e tomar ogirisa dos brancos. Antes o filho não nasça, se ha de passar tantos trabalhos; antes vá para os anjos no taboleiro com rosas e gira-rdes. A cobra zangada ou morde a quem a zanga, ou morde o seu corpo cfella. A mãi que tem de ficar sem o filho, que ê seu sangue, é como a cobra zangada.

— Sim, sim, tia Balbina. — Escuta ainda, criança, continuou a

africana, tangendo sempre o chccalho; —a coral briga com o lagarto ; a cobra faz rodilha e sacode a lingua de fogo ; o lagaito pára,estica a cabeça chatae es-pera. A cobra dá o bote, o lagarto faz roda e chicoteia, e quan io é mordido sabe no matto a herva contra adentada, que mata. Zambi, que está lá em cima, foi quem lhe en iaou O remedio. Carolina foi mordida no co<ação, Zambi lhe ensina o remedio.

De manhã, em jejum, o caldo do limão corta, a cinza do burralho come.

— Sim, sim, tia Balbina. — Mas é pàlo máu senhor, que morre o

filho de Carolina, que devia ser bonito

como seu pai, com seus cabellos cachea-dos e p»lle de capixaba.

Carolina pôz se a soluçar. — A mãi chora porque tem bom cora-

ção, mas tem também máu senhor. Se é pelo feitor não tem que sentir. O Chico, pai da que tirou o socego de Carolina, en-trou na casa dos braaços em tempo de lua nova. A semente que se planta n'esta lua, morre, a madeira que se corta, r&cha e apodrece. A lua apparece um bocadinho e entra logo, e tudo-fica escuro.

A camaradagem de Chico com a casa grande dura pouco; veiu na lua nova. As filhas do aggregado gcstam de gente de que o macôta tem queixa, e quando elle souber, briga com o aggregado.

— Já sabe, já, tia Balbina, exclamou Carolina, que tinha ouvido a conversa do moleque com o feitor.

— Melhor para Carolina e para nós todos. O mau senhor disse a Fidélis que Manuel João não puchava pela gente, e que o melhor era dar a feitoria ao Chico, d J quem a gente resmunga. Mas a gente nãa terá tal' f-itor, porque tiles já estão rus-gando. Fidélis ha de chamar seu senhor para mostrar o que o aggregado faz na roça dos brancos, e o Chico não &erá mais feitor, porque elle e soberbo.

Balbina viveu na c sa grande de sen pri-meiro senhor, e sabe como são os brancos. O moleque Carlos vai contar aosenhor que vem toda a noite gente de fóra pousar na casa do Chico, a mucama diz á senhora o que fazem as filhas, e tudo e&tá acabado entre o aggregado e o máu senhor.

Carolina vai primeiro do que os dois» juato de seu senhor, dizer que tem um fiího do feitor, e Manu l João perde a feitoria e a filha de Chico volta logo as costas para elle. Carolina conta tombem a Manuel João que o Chico anda pedindo a feitoria-, ha briga entre os dojs e Ma-nuel João não volta mais a casa do pai da moça de que elle gosta. B atina faz omto-

- Está direito, tia Bal binâ; eu faço tudo. Houve uma pausa, a feiticeira levantou-

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38 MOTTA COQUEIRO

se e foi queimar outro galho de arruda. Depois revolveu a ce&ta e tirou de dentro ã'ella uns busios e uma bolsa de panno toda cosida e pendente de um cordão preso nas extremidades da bolsa, e collocou-a no pescoço de Carolina.

Acocorando-se de novo, sscudiu na mão por tres "vezes os busics, atirou os sob^ a baeta, e agitou o chocalho ainda uma vez. Ergueu se então, e pegando de um dos rôlcs de enxofre chegou-o á chamma do candieiro, enchendo d'esta fôrma 0 recinto de um cheiro nauseabundo.

Depois lançou novamente os busios, e enrolou abaeta com os instrumentos caba-lísticos, e desatou a venda dos olhos de Carolina, dizendo-lhe solemnemente :

i — A cobra, quando vai lavar-se e beber

agua no rio, lança o veneno na folha da herva que está mais psrto. Pôde morder agora que não tem veneno para matar. Carolina ouviu o segredo do chocalho, está nas mão* da criança perder tia Bal-bina. Como o carreiro bota a canga no pescoço da junta de boi, o máu senhor mandará pôr o tronco pesado nos pôs da feiticeira. Da madrugada na revista, o chicote tirará sangue das costas da má escrava, e Carolina ficará querida.

Mas a cobra, que perdeu o veneno, faz a rodilha junto do brejo; o sapo vem pulando e gritando e ella olhando o bicho pucha-o, pucha-o para a bocca e d'elle tira novo veneno. Carolina não pôde dizer nada do que ouviu ao chocalho; será seu o mal da tia Balbina.

Depois de affirmar muitas vezes á feiti-ceira que guardaria o maior segredo, a creoula saltou de novo a janella e reti. rouse para a sua senzala, onde, refocilada na perspectiva da vingança, adormeceu facilmente,

O candieiro continuou acceso na sen-zala de Balbina, e quem espiasse pela fresta da janella, e applicas se attenta-mente o ouvido vel-a-hia untada, com o caximbo negro á bocc<*. De vez em quando

porém, ella tirava o caximbo e pronun-ciava estas palavras agoureiras.

— Hum, hum, os brancos ? "A negra crecu o menino ; era a mãi preta, e elles não deram nem um canto da casa grande para ella morar. Tomaram o menino das mãos da negra e metteram n'ellas a en-xada. Depois o chicote fez feridas nas costas da feiticeira, e o menino nern olha mais para ella. A ririô machucada morde, a ascr&va desprezada mata,

O csnto do gallo tão apregoado por Balbina fez-se ouvir afinal, e a preta que estremeceu ao ou vil o, deitando se presto, apagou o candieiro.

Ao passo que nas senzalas das duas pretas e na casa do feitor o despeito, o ciúme, eoodiocolligavam-se em ameaças medonhas e planos te^niveis ; na casa glande desflzera-se já a passageira con-trariedade motivada psla consulta do ve-lho aggregado.

Motta Coqueiro substituiu o máu humor pela piedade, e ao voltar á sala de jantar para o meio da familia, conversando a respeito dos esponsaes, reflectir á sua senhora:

— Quem sabe se eu não teria evitado os casamentos se houvesse dado ao com-padre a feitoria do sitio ?

— Qual o que, Sr. Mofcfca, respondeu-Ihe a senhora, o compadre está tão namo-rado como as filhas pelas cantigas de Se-bastião, e além disso é necessário não esquecer o vicio da bebida.

— Foi o que impediu-me e hoje se eu lhe désse tal logar, cs genros mudavam-me até o sitio com as casas e tudo.

— Agora é que é aturar o compadre; se elle sem motivo nenhum andava sem-pre em grande gala, quanto mais agora que tem razão para estar alegre.

— E' verdade ; ha de ficar insupporta-vel; o que vale é que eu já lhe disse que tratasse de fazer a sua c&sa,

— E será bom fíJlar-lhe sempre; não deixai o dormir.

A conversa desviou-se d^ste ponto

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OU A PENA D E MORTE 3 9

sendo substtuida pelo das trivialidade Í domesticas, e algumas medidas urgentes* no entender da senhora.

Uma delias sustentada com mais calor e af rro era a de apressar-se o corte da madeira. A razão occulta do enthu-siasmo da senhora na sustentação d'esta urgência era a sua antipathia pela red-

i dencia no sitio, obrigatoria agora peles interesses píecuniarios da casa, muito res-peitados pela senhora.

— Descance, aíiirmou-lhe Motta Cquei-ro, dentro em quinze dias hei de começar a carreiar a madeira, e com certeza den-tro em um mez poderemos mudar-nos para a ciia ie.

— Deus 0 permitta; não pôde haver logar mais triste no mundo do que este sitio; parece um logar amaldiçoado. Por minha vontade, Motta, você desfazia-se d'estas terras,

— E o resultado era não encontrar fa-cilmente outras com tão boas madeiras.

— E* o que não falta por ahi. Sempre que a conversa sobre tal as-

sumpto chegava a este ponto, os esposos por uma inspiração do bom-senso passa-vam a occuparse de outras matérias, quando não a interrompiam de todo.

Na noite em que nos achamos a oonver-sação teve o seu ponto final no da ultima phrase da senhora, e a familia, levantan-do-se da mesa, cada um de per si, foi para os seus aposentos.

D'ahi a pouoo o somno fez silenciar toda a casa, excepto uma saleta onde o moleque Carlos, deitado da costas sobre uma esteira, posto um dos braços sob a cabeça, com a bocca escancarada roncava forte e continuadamente.

Cinco dins decorreram sem que ^ne-nhum successo importante viesse artiou-lar-se aos que deixamos narrados. A fei-ticeira e a creoula pareciam ter esquecido o plano de oombate traçai o em palavras cabalísticas. No eito e á noite ao voltar á casa não se trocavam senão as saudações usuaes, e isto mesmo friamente.

À astuta africana prevenia assim quaes» quer suspeitas, que porventura podessem gerar-se no pen amento do feitor,que todo absorvido nos seus projectos de sorpre-hender os imaginados amores de Coquei-ro e uma das filhas de Francisco Bene-dicto, talvez a Mariquinhas, nem siquer reparára, que a zelosa Carolina já não o visitava mais*

Durante todosressesdias Manuel João não se tinha encontrado coxn os seus companheiros e nem podia atinar com a empreza a que tinha ido o violeiro.

Também a sua preoccupação espacial era vigiar estreitamente os passos do amo e os das filhas de Francisco Benedicto.

Coimo o jacaré, no tempo do choco, vai collocar-se a alguma distancia, e de lá, olhos attentamente fixos, ouvidos solici-tamente prestados, todos os sentidos, em-fioa, aguçadamente applicadcs, vigia o ninho dá onde ha de nascer-lhe a prole, e ao menor estremecimento, ao menor ruido acode prompto como um raio, feroz como uma pantherá, decidido a atacar, e a morrer ou a matar; Manuel João, entre-gue á conflagração dos zelos" e á guarda da sua amante, seguia os menores e mais insignificantes movimentos do seu amo e resolvido a punil-o desapiedadamente.

A's vezes, pelas estreitas picadas da matta virgem passava tranquillamente o fazenieiro, cortando com o facão de matto os galhos inclinados sobre o trilho. Dirigia-se áo logar onde os seus escravos e jornaleiros trabalhavam no falquejar da madeira e na derrubada das arvores seculares.

Os seus gestos machinaes, comnauns a todo o h mem do sertão quando caminha, provavam que elle estava bera longe de desconfiar de uma emboscada e prevenir-se contra ella.

Entretanto, diversas vezes 6 beira da estrada, ocoulto por d e t r a z dos trançado» de cipós e d*s enrediças de unhas de gato, alguém, esconiido, t#spreitav*-o, Era o

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40 MOTTA COQUEIRO

feitor, que, de espingarda engatilhada, vacillava em disparar-lhe a arma.

O transeunte desapercebido era -defen-dido apenas por um resto de consciência, que ainda sobrevivia límpida na alma rebolcada do feitor, e que lhe aconselhava verificar primeiro a existencia de causa josta para tamanha vingança.

A fria premeditação do feitor espojava-se então na hediondez dos instinctos sangui-nários, como o porco farto no lamaçal do chiqueiro, e como nO focinho alongado e negro do animal ficam a branquejaras duas longas presas curvas, no rosto do assassino intencional ficavam sempre á mostra o despeito e o odio.

Automaticamente o emboscado deixava cahir cautelosamente o cão sobre o ou-vido da espingarda e afastava-se por en-tre o matto.

Não era porém um arrependimento o que o decidia; a reincidência provava que esta resolução era um simples adiamento da sua fixa decisão.

No sabbado da semana a que nos repor-tamos, uma triste contrariedade veio pôr em movimento toda a familia de Motta Coqueiro.

Pelas nove horas da manhã appareceu em casa, arquejando de cansaço e lavado em suor, o preto Fidélis, pedindo á toda pressa um lençol para improvisar com elle uma rêde, e assim conduzir Carolina que estava cahida no aceiro a estrebuxar com um ataque. Dava gritos como o uivar dos cães â noite, eoseu desejo era principalmente esganar-se e despedaçar a roupa. Esforçava-se para levantar-se e em seguida cahiria em cheio no chão, se dificilmente não a contivessem os parceiros, que tinham deixado o serviço para soccorrel-a. Depois de uma serie de movimentos bruscos, a doente ficou im-movel, inteiriçada como um defunto, mas logo crispando lhe o rosto ininterruptas contracções, começou a prantear como se fôra uma creança, e renovou os phe-nomenos assustadores.

A narração dos symptomas, feita pela geringonça do preto, encheu de espanto a familia de Coqueiro, e este ordenou ao escravo que montasse a ca vallo pára que o soccorro chegasse mais prompto á en-ferma.

Passada cerca de uma hora de ancie-dade, entravam na casa grande tres pretos e o feitor, dois dos quaes traziam aos hombros a rede; os outrcs tinham vindo revesando.

Tirou-se de dentro da rede Carolina des-figurada, sôM sentidos, inerte, um quasi cadaver. O seu rosto tinha perdido o re-luzente brunido da saúde e substituirã o a feia côr dos pannos pretos mofados. O suor borbulhava lhe inestancaVel por en-tre a pelle da testa e das grossas narinas.

A dona da casa principiou logo a mi-nistrar os mais sérios cuidados, e os mais eíficazes remedios caseiros que tinha á mão.

Andava para lá e para cá; aqui esten-dia um synapismo, alli pisava no almofa-riz umas sementes. Gritava por uma es-crava para que trouxesse a agua quente para o escalda-pés, e a outra que fechasse a janella para não entrar o ar. Era uma dobadoura.

No meio da inopinada tarafa, a boa da senhora não perdera o tino administra-tivo de que era dotada ; harmonisou logo os cuidados á enferma com cs cuidados diários da casa.

Disse a Manuel João que não voltasse para o serviço antes de almoçar, porque assim poupava-se o trabalho de arrumar o seu almoço entre o dos pretos.

A um dos escravos que vieram, o preto Domingos, ordenou que esperasse um pouco para levar o cesto do almoço da gente e despachou os outros para a roça.

Graças & tanta habilidade e sangue frio, os trabalhos domésticos retomaram todos a sua marcha habitual, e logo foi aviado o preto Domingos.

Agil e expedito, e ainda mais acossado pelo appetite, o africano chegou prompta-

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OU Â PENA DE MORTE

mente á roça, e chamcu os seus compa-nheiros para ã refeição.

Era um caracter nobre o do preto Do-mingos. A resignação tornava-lhe sym-pathico o rosto chato e feio. Amadurece-ram-lhe os ânuos e atê certo ponto a própria severidade do seu senhor o ias-tincto da obeiiencia. Tinha a fidelidade do cão, e a passividade da besta de sella. I n v e s t i a contra os que atacavam a casa grande e os brancos, e resfolegava e re-cuava diante do abysmo de perversidade dos seus parceiros, que muitas vezes ti-nha-se-lhe aberto diante, attrahindo ocom suggestões iniquas.

Depois de tirado o eito, os escravos com as enxadas ao hombro dirigiram se para o aceiro, onde sentaram-se, depôndo os instrumentos de trabalho.

Domingos distribuiu por elles as di-versas cuias, onde uns pequenos quinhões de carne secca assada sob esahiam da al-vura do pirão de farinha de mandioca.

Feito isto, o preto, honesto e discreto, affastou se do grupo e foi sentar se dis-tante sobre um largo tõco á sombra de uma laranjeira.

O acaso fez com que no centro do grupo ficasse a tia Balbina, que modifi-cara os trages em que vimol-a na , sua senzala apenas em trazer hoje uma saia

* de zuarte. Acompanhando com os olhos o preto

que se retirava, a feiticeira, provocou a hilaridade dos parceiros, dizendo.

— Bem faz Domingos, foge dos maus escravos para não perder a carta de for-raria.

— O nome d^lle está sempre na bocca da senhora; exclamou Fidélis, chas-queando.

Todos começaram a comer com o sadio appetite de homens de trabalho. Alguns juncavam á refeição da casa as iguarias que prepararam de vespera, e as offere-ciam fraternalmente aos outros.

— Quer um p9daço cfeste gambá enso-pado, tia Balbina ?

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Perigrino, o parceira que fez a pergun-ta acompanhou com os olhos a interroga-ç ã e exclamou em seguimento a esta :

.— Uhê, o que ê que tia Balbina tem, gente?

Todos olharam para a feiticeira. Bal-bina, pousado o queixo na mão e apoiado o cotovello no joelho, olhava distrahida para o céu. A sua ração estava intacta diante de si.

Sabiam todos que semelhante pcsição correspondia sempre ás grandes dôres ou preoccupações da cabinda, e por isso per-guntaram em côro :

— O que ê que tem, tia Balbina ? — Não é nada, creanças. Estou imagi-

nando na minha vida. — Qual; vosmecê tem alguma cousa. — Para não fallar mentira, estava ima-

ginando outra cousa. Carolina está muito doente...

— E' verdade, parece cousa posta; que moléstia tão ruim 1 disse Fidélis.

— E' verdade, respondeu o côro. — Carolina está para morrer porque

está com um filho de Manuel João, que anda agora ás voltas com a filha do aggre-gado. A creoula tem sangue de cobra, ficou tinindo quando soube. Depois lem-brou que o filho ha de ser escravo ; nasce para o chicote e para o eito. Náo quer mais que o filho abra os olhos, coitada! Ella pó 'e ir se embora também, se Bal-bina não fôr salvar a creoula de sen senhor. .

— Antes morra, se ha de ficar boa para soffrer.

— Que tem que ella seffra ? Nós vamos scffYer, e ella é nossa parceira. 0 aggre-gado vai ser feitor; senhor disse, Fidélis ouviu. Homem máu, seu Chico, homem máu aquelle 1 Enche a bocca de negro captivo; hoje elle não ê ai ma feitor, mas diz:—vou fallar com o meu compadre para maadar metter o chicote no negro. A fei-toria vai para seu Chica, ou Manuel João fica maia bravo para n<5a. De hoje em diante nenhum me passa d'aqiu (a preta

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assignalava com o dedo o pescoço) ; tão bom como tão bom. Fidélis polia bem livrar a gente; senhor falia com elle. Era dizer: Manuel João não está mais na roça uma hora inteira; Chico Benedicto farta as roças de senhor. O macóta bufava, e a gente e>tava livre.

— Isto é que é fallar certo, exclamou Peregrino, um dos pretos do grupo.

— E' verdade. — Eu sei lá; vocês depois dizem a

senhor que Fidélis é que não gosta dos dois.

— Nós ? . . . — Quem é que vai dizer ahi ? interveiu

tia Balbina; ceu está vendo nós; onde vai quem disser ? O gálio quando canta é vida para o que faz bem e morte para o que faz mal; tia Balbina entende o canto do gallo. Onde vai Fidélis ? Vai salvar os escravos do macóta; é bem para todes. Onde vai quem fallar contra Fidélis ? Vai perder seus parceiros; é mal para todos. Balbina adavinha; o ceu vê; Zambi cas-tiga.

— E está muito direito. — Pois, diabos me levem ! no primeiro

geito eu aprumo a cama para os dois. Teve toda a razão a dissimulada Balbina

quando considerou gravíssima a enfermi-dade de Carolina.

Attentando contra a vida do filho, con-forme o expediente aconselhado pela fei-ticeira, poz em risco a própria vida.

Dir-se-hia a revoltada natureza indig-nada contra a degeneração doa sentimen-tos da mulher, que deu de mão aos sonhos maternaes, mundos roseos e bri-lhantes, onie branqueiam azas de ar-chanjos atravez de irradiações de amor,

A innocencia condamnada parecia pedir á riôr as mais aguçadas púas para com ellas broqueiar asaelvajadamente o orga-nismo enfraquecido da creoula.

Não havia abonançar-lhe o soffrimento: o dia inteiro passou o ella debatendo se em ancias dolorosas bem semelhantes ás da agonia^derradeira.

03 remedios, como se fossem uma in. jecção caustica, longe de acalmarem-lhe, exacerbávam-lhe as dores.

Era o cadaver da vingança galvanisado por paiecimentos horríveis, ou melhor, pela electricidade da dôr. Ora quedava inerte, quasi algida, com a respiração imperceptível, inundai a em suor viscoso; ora levantava-se sobre os punhes, com a cabeça pendente, o corpo descrevendo so-bre o leito um angulo obtuso, e, arque-jante, prorompia em gemidos agudos, compungentes.

Era o prenuncio do ataque assustador, medonho, com as contorsõas da serpente, e as unhadas do jaguar; com o ganido dos cães leprosos, e o ranger de dentes dos condemnados eternos.

Qual fosse a moléstia ninguém estava hab litado a diagnosticar; inclinavam se todos a uma idéa—o feitiço.

— Carolina amanheceu boa, diziam; alegre, como sempre aniou, febres não eram, porque não teve os calafrios das sezões, andaço na localidade; não tinha nenhuma chaga; não era pleuriz porque não se queixava de dôr no peito; logo era feitiço.

Todos involuntariamente lembraram-se da tia Balbina, sem todavia attribuir lhe maus intentos para com a creoula, que nunca foi por ella maltratada; mas ao contrario sempre quer .da.

— Talvez a Balbina conheça, dizia a dona da casa; o melhor é mandai a vir, não ê, Motta ?

Depois de reluctar,não sd quanto ás ge-raes manifettaçõ s sobre a moléstia, mas ainda quanto á vinda da Balbina, Motta Coqueiro cedeu afinal, e a feiticeira tran-cou-se sosinha no quarto com a doente.

Sentada á borda do leito, esperou tran-quillamente a occasião opportuna para fallar-lhe.

Ninguém que a visse ahi poderia sus-peitar que a feiticeira contemplava a sua obra sombria de vingança; estava serena,

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nada denunciava siquer um traço de re-morso.

Quando lhe pareceu chegado o momento de fallar, começou:

— Garolina vai sahir d'aqui e vai con-tar a sua senhora porque é que a creoula está doente. Mas não diz que tomou re-medio da tia Balbina ; conta outra cousa..

A creoula fez com a cabeça um signal afíirmativo.

— Carolina está sofFrendo, mas o pai do seu filho ha de soffrer também. Tia Bal-bina ha de vingar a creoula.

A feiticeira sahiu e revelou á senhora a moléstia de Carolina : era um aborto.

Infelizmente este conhecimento nada aproveitou á tranquillidade da familia; mallograram-se to ias as esperanças de melhoras, e alta noite creram todos que a doente não amanheceria.

Resolveu-se então que se Carolina não morresse n'essa noite, logo pela manhã a senhora acompanhai hia para a cidade afim de serem prestados os soccorros mé-dicos á creoula.

Esta inopinada mudança do sitio seria entretanto definit va. Ocdrte da madeira estava quasi concluido e brevemente Motta Coqueiro podia deixar de resiiir ahi. A senhora, portanto, não precisava mais de voltar para contrariar-se era residir em um logar, com o qual antipathisava.

No dia seguinte effectuou-se a mudança, e uma canôa, vigorosamente remada por braços robustos, voava em direcção a Campos.

A cisa grande cahiu na mais sombria tristeza; dir-se-hiá que a torturavam sau-dades amargas ao recordar-se dos dias em que repercutia sonora as alegrias da familia.

Alguém no emtanto contrastava com esta tristeza; era Manuel João, que ap-plauiia se por ter agora occatião de vigiar de perto os passos do seu amo.

Ficando só, Motta Coqueiro passava as poucas hora3 de laz*r n a casa do com-padre, mas, com grande espanto de Ma-

OU A PENA DE MORTE 4 3

nuel João, nunca penetrava no interior do casarão. Assentava-ae á porta ou ct n-serva va S9 a cavallo emquanto entieti-nha-se a narrar cousas banaes e ao pala-dar dos ouvintes.

Um dia, porém, o feitor teve occasião de recordar-se-do que lhe dissera Carolina no dia em que cortaram as relações.

— Compadre, disse Motta Coqueiro; eu vou começar amanhã o cerrei amento da madeira e precisava que você e seu filho ajuiassem-me.

— Eu S9i, compadre; mas, eu já estou velho e o Juca para que diabo serve t

— Então vocês não prestam nem para amarrar uma balsa f Saiba, comadre, a qualidade dos homens que tem.

A familia riu-se muito e Motta Coqueiro continuou:

— E eu que tive tenções de chamar e^íe mpu amigo para feitor; estava bem arran-jado !

— Mas isto era outra coisa e se o com-padre quizer. . . .

—Yeremos;por agora quero somente que vocês se occupem de embalsar a madeira.

A larga faca de Manuel João iuziu fora da bainha; o despeito esbrazeiava-lhe as faculdades revoltas; não pensava, não discernia; o cerebro exhalava-lhe espessas labaredas de odio e de cólera.

Surgindo d'entre uma espessa moita de pèxiriqueiras, collocadaperto da parede do casarão e quê lhe servia de escondrijo, o feitor seguiu pé ante pé, e teria realisado os seus fins se não se desse uma circums-tancia feliz.

tylotta Coqueiro que se conservara a cavello, em quanto conversava com o com paire, so dizer-lhe as ultimas pala-vras, tinha se feito ao largo.

K> feitor, para atacai o, devia investir de frente; mas era bastante cobarde para não tentar semelhante commettimento.

Indignado contra si proprio e contra a fatalidade que sempre defendia o seu rival imagiuario, o feitor tomou o cami-nho da venda do Vianna.

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Ao chegar, o vendeiro que desco-brira nas feições descompostas o tumul-tuar dos sentimentos do amigo, pergun tou-lhe sobres alta do o que tinha havido no sitio.

— O diabo, um inferno, mil raios me partam; maldicta a hora em que eu entrei para semelhante casa 1

— Mas o que foi, horcem, desembuche! — Qíier saber, seu Vianna, eu estou

aqui e estou na cadeia; não aturo desafo-ros ; por onde anda o diabo do Sebastião?

— Espera um pouco; oh ! com os dia bos, você parece maluco; o Sebastião não ha de tardar por ahi; accoinmode-se...

O vendeiro, hypocrita como todo um mosteiro e astuto como cincoenta rapozas, percebeu logo que a situação do triumvi-rato era perigosa.

Desde o domingo em que péla ultima vez esteve na casa de Francisco B<na-dicto, reflectindo com madureza, resolveu impeliir com todas as forças o violeiro e o feitor e conservar-se em uma distancia, que o prôsertvasse de ser tido como ctim-plice em algum acto reprovado dos dois.

Sabia elle já a que fôra o violeiro quan-do os deixou no casarão ; sabia mais qce Sebastião ia todos os dias ao sitio e ahi encontrava-se com Chiquinha, ora no po;-to, ora na baixada.

Conhecendo de perto o caracter de Motta Coqueiro nas suas asperezas e nas suas delicadezas, evitava o seu d*sagrado; era a isto levado por uma questão moral mas principalmente por nma questão econo-mica.

Supina imprudência seria irrital-o e in-dispol-o contra si, qaando por outro lado o Chico Benedicto nada valia, nem apre-sentava d ificuldades serias.

O vendeiro pensando em Antonica via simplesmente um breve afastamento ; as circuinstancias aplainariam as difficulda-des, e o borradore as prateleiras da ven-dola dariam a ultima de mão ao probl *ma.

As palavras de Manuel João impressio-naram entretanto a alma do calculista, fria

como o chumbo oxidado dos peses da sua balança enferrujada.

Tomando um copo e enchendo-o de vinho, Vianna caminhou para Manuel João, e pondo-lhe um braço sobre o hom-bro, emquanto com o outro apresentava-lhe o copo, resmungou :

— Então com que você quer nos deitar a perder, seu homem ; isto não é por força que vai, ê preciso geito. Vá lá o codorio e depois vamos á falia.

— Beba vçcê primeiro, seu Vianna. — Não senhor; venha de lá. Manuel João bebeu, e a convite do ven-

deiro sentou-se com elle no balcão. — Então com que o cabrinha es-tá com

o diabo na pelle? quer pôr o mundo abaixo ? interrogou Vianna, que tirava de sobre o pavilhão da orelha um cigarro e levava a elle o isqueiro.

— Você eitá com caçuada, seu Vianna, e eu hoje não estou para graça. Filie-mos serio, o Sebastião vem aqui, ou não vem? si elle iião vem, eu vou á casa d'elle.

— E' verdade que o demo está tardan-do, respondeu Viaona já impressionado; o melhor ê irmos á casa do bicho. Espera, eu vou bu&car os remos.

— Vamos mesmo, porque eu sou capaz de fázer uma asneira.

Passados alguns minutos, Vianna fe-chava a porta da vendola e os dois com os remos ao hombro caminhavam em direc-ção ao porto.

Era a hora serena do crepusculo, hora em que as sombras invadem o céu e as consaiencias, em que surgem as estrellas e os salteadores dos seus escontirijos; em que o Armamento começa a inundar se de luar, e os viajantes a mergulharem-se no temor das emboscadas; em que a poe-ia desdobra-se em chimeras e o crime es-praia-se em torpezas.

Manuel João entrara pela pequena canôa que estava no porto, e Vianna já a havia desamarrado de uma estaca, quando ouviram o prolongado oh! com

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que os canoeiros snnunciam a sua appro-ximação de alguma casa conhecida.

— Ouve; é elle, disseram cs dois ao mesmo tempo.

Passado algum tempo toda a confusão q u e porventura podesse haver, desapare ceu. A voz sonora e agradavel do violeiro, repassada da suave melancolia das mu-s i c a s sertanejas, ergueu estas estrophes predilectas :

Quando chega a primavera Ahre-se a arvore em flores; Q aando chega a mocidade Veste se o peito de amores.

Pois que amar é sorte nossa Quero pagar meu quinhão ; Não dou ouro á minha bella Mas lhe entrego um coração.

A prôa da canôa, lordada pelas ondas espumantes que abria e levantava no rio, appareceu na curva da corrente, e ouviu-se o estallo forte da pá do remo batendo em cheio na superfície das aguas.

— Olé, bradou o violeiro; o frade sahiu hoje do seu convento, vem dar noticia do baptisado.

— Q jal, respondeu o vendeiro ; está bravo como um cão damnado.

Manuel João nada aisse. O canoeii o desembarcou, assoviandor e

foi reunir-se aos dois. — Então que novidades ha no becco,

seu Manuel João; melhor cara tenha o dia de amanhã.

— Sabe que mais, Sebastião; você veja o que faz, respondeu o feitor ; eu já não posso mais; eu estouro.

— Credo, isto agora é que não é do trato. Oh seu Vianna; e&te bicho está certo ?

— Não é graça, não ; aqui anda cousa; vamos ao caso, Manuel João.

O vendeiro via talvez pelos ares a sua vendola e queria o mais brevemente pos-sível saber o que devia fazer.

Foi promptamente satisfeito, porque o feitor começou a narrar a conversa que ouvira aos dois compadres, e concluiu dizendo:

— Olhe, seu Sebastião, eu saio d^alli, mas vou para a cadêa, porque eu tiro a vida ao patife do capitão.

Os dois guardaram silencio durante a narração; quando o feitor concluiu, Se-bastião tomou a palavra.

*•— Você não me faça tolice, seu Manuel João; que tem você com o Coqueiro ? se elle faz roda á pequena; seja você fino. Eu cá não serei logrado; faça o que eu fiz.

— Mas o que é que você fez ? deixe-se de rodeios....

O violeiro chegou-se para mais perto do feitor e segredou lhe algumas palavras; depois levantando a voz, disse sorrindo:

— Olha, o Vianna não sa amcflaa tam-bém ; mais dia, menos dia... Você anda por ahi como um palerma. Veja que não vá morrer de fome se sahir da casa do Coqueiro.

Manuel João tinha os olhos em fogo, e as narinas infladas ; parecia allucinado.

— Seu Vianna, interrogou elle com ex-forço depois de uma grande pausa, é ver-dade o que disse Sebastião ? você é ca-paz f

— Ora, tire ocavallo da chuva, respon-deu o vendeiro, você ou é um tolo ou é um bregeiro de conta. Olhem que santi-nho !

O desgraçado feitor nada respondeu; talvez tivesse vergonha das palavras que devia proferir.

Até então nada podia provar que elle adherisse ao segredo soprado aos seus ouvidos pelo violeiro, tinha até nos olhos uma onda de lagrimas, as derradeiras lagrimas puras que elle choraria em sua vida, se após ellas não viessem as do ar-rependimento.

Mas, ao retirar-se comprehendia-se que a sua cólera tinha asserenado e que se elle não levava uma resolução, affagava ao menos uma esperança.

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Quando Manuel João destanciou-se, o vendeiro disse para o violeiro :

— Aquelle demónio é bem capaz de perder-nos.

— Não pense n'isio, respondeu Sebas-tião, squillo ê um covarde.

IV

A EXECUÇÃO DE UM PLANO

Ao voltar ao sitio o feitor foi recebido por uma repreh«nsão aspera de Motta Coqueiro.

E1 que sahindo precipitadamente, es-quecera de que dispunha de heras de trabalho, consagradas a uma séria obri-gação—fazer a revista.

A' noitinha os pretos vindos da ro?a de-puzeram na cczinha os feixes de lenha, e encostando os machados e as enxadas da parte de fora, postaram-se em linha no terreiro.

Depois de «sperar por largo tempo, a conselho de Fidélis, levantaram a sau-dação usual: —-louvado seja Nosso Senhor Jesus Cbristo.

Só então Motta Coqueiro sppareceu na janella, e admirando-se de não vêr Manuel Joã!, responderam lhe que ainda não tinha chegado em casa.

— Elle não esteve assistindo ao ser-viço ? perguntou Coqueiro.

—• Já ha muito, respondeu Fidélis, que quando o senhor vem embora, s?u Ma-nuel João acompanha o senhor.

— Está bom; podem ir. A delação era grave e a censura foi-lhe

proporcional, mas nem assim altarou o bom humor em que ficou o feitor depois da consulta ao astucioso violeiro.

Sentado á soleira da porta, cousa que não fazia havia tempo, Manuel João poz-se a tocar viola, cantarolando quadras amorosas, até que veiu interrompel-o o moleque Carlo?, que lhe trazia a ceia.

— Olé, exclamou o moleque, seu Ma-nuel João está adevinhando passarinho verdet

— Mais respeito, sêu vadio, nós não somos da mesma igualha.

— Já estou na moita, meu branco, disse o moleque e já se f*zia de volta, quando o feitor agarrando o por um braço inque-riu-lhe sobre novidades.

— Tudo velho, respondeu Carlos, hoje é que eu hei de v?r cousa nova.

— Boa ou ruim? _ 1

—• Eu quero ver para acreditar; tia B ilbina diz que viu lá na baixada,quando foi procurar uma herva para Caroliaa....

Pelas palavras de Sebastião, ditas em segredo, e a ultima resposta do Vianna, o feitor suspeitou qual seria a visão da Bal-bina, e como não lhe conviesse que o se-gredo fosse aos ouvidos do amo, tratou de dissuadir o moleque.

— Balbina é uma tonta, disse elle, pode ser pêta e você perde o tempo.

— Qual pêta, seu Manuel, ella diz que viu uma das fiihas de seu Chico entrar.

— E' que ella estava pssseiando. — De noite? sósinha? Ai! que seu Ma-

nuel João é o meço, s t inei ! . . . — Máu, máu I faça ponto na graça, e

já lhe digo que estas cousas não são da sua conta.

— Mas foi vosmecê quem me mandou que espiasse...

— Mas é então o senhor ? interrompeu o feitor sobre altado.

— Qual senhor, nem meio senhor; pobre do velho.

— Está bom, Carlos, você está se adian-tando de mais; fica o dito pór não dito.

Carlos nata respon 'eu, mas ao sahir passou a mão pela cara e depois agitou-a brandamente no ar, voltando-lhe a palma para a casa do feitor.

E' o signa! de que se servem os roc?i • ros para dizer que vão tirar desforço da offdnsa que lhe foi feita.

Simples mimica da vingaoça, ella é muitas vezes o omeço de uma compli-cada trança de ardis, cada qual o mais t univel, até chegar muitas vezes a um desenlace fatal.

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Manuel João ficou visivelmente preoc-upado com as palavras do moleque; tinha certeza de que á communicaçao ^este facto a Motta Coqueiro, que sabia da sua amisade com a familia do aggre-gado e podia dar-lhe a auctoria, seguiria como consequência a perda da feitoria, iá imminente.

Depois da ceia, começou a medir a passos lentos a sala, anianio de um para outro lado, e afinal sahiu cautelosamente,

Rodeiou as senzalas applicando-lhes o ouvido ás paredes, principalmente na em qae residia Balbina.

Reinava completo silencio, ninguém ocdia velo nem interrogal-o, a não serem as myriadas de estrellas que tremei uziam no céu, e cs vivos e rápidos meteoros que se despenhavam de vez em quando, mudas interjeições de luz, que talvez Deus enviava dos céus aos arcanos d'aqueHe espirito.

Certo de que estava só, o feitor diri-giu-se para a baixada.

Quando estava perto, deitou se na relva e, rastejando, chegou até o cajueiro, pelo qual trepou ligeiro, tomando entre a ra-magem uma pcsição onde não podia ser Viitl.

Aboletado no seu e scondr i jnão tardou muito que se visse obrigado a desalojar-Se. Um vulto appareceu da parte oppost* e para aproximar-* e da baixada serviu-se do mesmo expediente posto em execu-ção pelo feitor. Mas em vez de entrar no ponto da entrevista, o vulto arrastara-se até uma pequena moita próxima e con-servara-se deitado.

— B' elle, pensou o feitor, e chamou & meia voz: oh! Sebastião, oh! Sebastião.

Longe de obter resposta, reparou que o vulto tentava esconder-se caia vez mais entre os arbustis.

— Que patife, resmungou o feitor, até a mim quer enganar, flaorio!...

A* proporção que fallava, o feitor dei-xava-se escorregar pelo cajueiro, e, na firme convicção de que era o violeiro

que por gracejo buscava esconder-se, rastilhou em direcção á moita.

D'entre a moita o vulto surgiu arras-tando-se imperceptível mente e quando Manuel João chegou ao logar em que elle se achava, não o enccntrou mais, nem pôde descob r il-o quer no escondrijo, quer ào longe no campo.

A natureza supersticiosa do feitor aceor-dou-se então em sobresalto, porquanto entendia elle que era impossivel a quem estivesse ccculto na moita dei parecer ante seus olhes.

Demais o ar a pouco inodoro impregna-va-se agora de um intenso cheiro de ar-ruda, a planta predilecta do demonio.

Assoviando baixinho, para dissimular o susto, o feitor subiu a encosta da col-lina e tomou o caminho que costeava os fundos da casaria.

De espaço a e?paço olhava para traz, impressionado com o som dós proprios passos, e por fim trocou o trilho pelo grammal, qi,e lhe abafava o ruido do caminhar.

Só cobrou animo quando chegou ao ca-sarão em que morava o Caico Benedicto.

Eacostando-se á parede, tirou do is-queiro e poz se a ferir fogo, e, uma vez acceso o cigarro, foi apalpar a porta dos fundos e d-pcis a de uma janella, que olhava paraa banda da baixada.

Com grande espanto seu, sentiu que a janèlli cedia ao leve impulso que lhe imprimira, e abria-se com o fino guin-cho das dobradiças sem oleo.

O feitor estremeceu como se o percor-resse um calafrio. O que não se pôie dizer é se elle atem.risara se ou se reluctava contra algum desejo de súbito incendido.

A qualidade do oflicio que tinha no sitio impunha-lhe até como dever esse percurso nocturno em volta da casaria, e o amo que sahisse fôra e o encontrasse alli, não podia censural-o, antes teria motivo para elogios,

A janella aberta explicava-se facilmen-te para isto bastava dizer a verdade, e o

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remltado seria uma profusão de agradeci-mentos.

Mas nem por isso a posição do feitor era menos embaraçosa. O que havia de f zerf accordar a familia ? prender a janella por fóra ?

A noticia, dada a Francesco Benedicto, seria motivo para uma explosão tremenda contra as filhas; subir ao peitoril para d'ahi puchar a porta da janella e pren-del-a, era demasiado arriscado.

Se passasse alguém e encontrass í-o em tal posição,não attribuiria por certo a uma idéa nobre o que visse, e a diffamaçâo corresponderia á expulsão do sitio.

O feitor recuou involuntariamente, mas como se obedecesse a uma força magica de attração veiu novamente collocar-sejunto á janella.

Ahi conservou se a principio em uma immobilidade de montanha, contendo a re piração, para depois exhala-a n'uma onda. Era a estatua da voluptuosijiade profanando com o seu htilito o sanctuario do pudor.

O cicio do resfolegar das moças, que dormiam no quarto,derramava se no am biente n"uma cadencia magica, e, se pode dizer — ad&esiva.

A mão avelludada e macia que se es-mera n'uma caricia,o olhar meigo que se enlanguece a'ama supplica, ou se aban-dona n'um consentimento, o lábio que se entrega morno de amor, são fontes de delírios indisiveis, de sonhos inenarrá-veis. O re pirar da mulher amada, ou-vido-peio amante, falia primeiro á imagi-nação, penetra-o suavemente de uma sensação que tem alguma cousa de an gelica e ao mesmo tempo de infernal Como um condensador elactrico attrahe e repelle; é ao mesmo tempo um incen-tivo á affoiteza e um anteparo á reso-lução. Faz pensar ao mesmo tempo na profanação e no cavalheirismo, e envolve o espirito em uma rede incommoda onde se misturam, matizados pelo mesmo colo*

rido, fios q ie nos guiariam ao crime, a outros que nos levam até a abnegação.

E' que se imagina que o hálito extra-is do vem impregnado dos anceios do co-ração amado,das imagens que lhe povoam o cerebro, que desejamos se estreite para tudo mais que não seja o pensamento do nosso amor; e esse imaginar sébreexci-, ta-nos o egoísmo, que conta com o periao e atreve se por elle, ao mesmo tempo que a consciência levanta-se tentando ccmba-tel-o e vencel o.

A pouco e pouco o feitor foi movendo-se, a principio tomou a posição de quem escuta, mas logo desejou mais do que ouvir. Collccou a cabeça sobre o peitoril e poz-se a olhar.

A tibia claridade da noite deixava apenas perceber a alvura dos lençóes alheridos ás curvas formadas pelos ccrpos das adormecidas, mas a phantasia, esse clarão indiscreto que inunda os mais re-cônditos arcanos, esta divisou talvez mais, muito mais.

Gradativamente erguendo-se, o feitor chegou a collocar até meio corpo dentro da janella, e a flrmar-se nos pulsos, para realisar o salto dentro do quarto, mas o estallar das articulações obrigou-o a des-cer sobresaltado, e a recuar de novo.

Arrastou-o, porém, a vertigem do crime, e resoluto voltou ao logar de onde sahira.

Apoiando-se então afoitamente sobre os punhos e erguendo se vagarosamente, sentou se no peitoril. Então levantou gei-to*amente as pernas para passal-as pela janella. Mas a extrema cautela não poude prevenir um desastre; as pernas bateram na porta da janella e esta foi, guin-chando, esbarrar na parede. O miserável escal&dor conteve-se em meio do salto e atirou se para fóra precipitadamente.

Uma palavra, um grito podia perdel-o aos olhos de Motta Coqueiro e este,se sabia relevar com braniura, sabia também . punir com severidade,

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Levaatando-se de prompt-?, o. feitor dei-tou a correr como se fôra' perseguido..

Entretanto Èó o perseguia a consciência da infâmia que tentou levar a effsfto..

Meio acordadas pelo barulho?-as moças ansn*s revolveram-se nos leitos, voltà-ram-ee e continuaram a" dormir.

Na carreira que levava,-o feitor cosi eisu sem trop€ÇJ 0 casarão e a casa grande, mas. ao *ahir do vão entre e?.ta e a ca;,a eáTque residia:, foi ' obrigado a deter' se.

A laz que sabia de uma das senzalas cuja porta estava abè.ita, deixava ver um vultò de mulher.

O'cansaço embargou por algum tempo a voz do corredor ; demais, filiar era no mesmo inst&nte dar logar a uma suspeita contra si, caro alguém da fami-; lta ãe Chico Beiedicto houvesse accor-dado ao barulho que fizera ua escalada,

Por outro lado a auctori-la-le qua exer-cia no sitio obrigava-o a fallar, sob pena de'ver psrdida a soa força moral.

Depois de descançar um pouco, Manuel João caminhou áin ia arquejante até á porta da sanzala, e dissimulando o es-panto coro um a admiração, fi agida® ente benavola, perguntou :

— O que é que você faz ahi, tia Bal-bina ?

— A negra perdeu o somno4"veiu sentar na soleira, da porta, para ver o céu de Deus.

— M;*s porque é que você perdeu o sornso ? não trábslhou hoje, não é ? amankã ha de sor dobrada a doze.

~r A negra veiu cansada, sim, e foi para a sua cama dormir. Mas o canta da coruja ve-.u com teu agoi o tirar o somno de Balbina. A lembrança de Carolina, que foi que si morta parar nas mãos do doutor, veiu apertar o coração 4a negra. A pobre da creoula devia ter um filho bonito, e o filho vai morrer também. Balbina, que sabe, tem pena de mãi e de filho, e a negra chorou o não poude dormir.

4

— Está bom, tia Balbina ; veja se vai dormir.

/ ,

No timbre d a voz de Manuel Joio tra-hia-se uma profunda angustia; era um soluço do remorso articulado no tom da bonhamia.

Balbina, porém, não ; apiedou-se do sofMmento que percebeu e replicou-lhe . pela ferocidade de uma ironia cruel: >

— Vosmecê pôde dormir, porque nada. tem com a creoula, nem com o filho d'ella; Balbina, não; elía estima Carolina corso se fosse sua mãi,

Manuel João calou-se e seguiu para a -sua morada. Quando a luz do candieiro deixou verem se-lhe as feijões, havia n'ellas o cunho da extenuação e do scffri-mento.

Os &UCC&FSGS da noite enohiam-« de um pânico supersticioso; vigiava-se como se julgasse seguido e não ousava apagar o candieiro.

N'om continuo vai vem, o desgraçado ora apertava a cabeça entre as mãos, ora segurava a larga faca polida, que lhe pendia da cintura, e brandia-a.

Adevinhava-se que aquelle espirito nu-tava entre o suicídio e o remorso.

N'um accesso de fúria o feitor, com os olhos injectados de sangue, os lábios e as mãos tremulas, segurou, entretanto, re-solutamente da faca, que parecia fas-cinal-o. :

Olhou para o tecto e em seguida le-vantou o braço tendo a ponta da faca vol-tada contra o peito; mas o instrumento assassino cahiu lhe da mãe* e o desgraçado cahiu sobre um mocho, collocado junto á mesa e escondeu a cabeça entre os braços.

Entre o silencio gemeram os pios agou-reiros da coruja.

Sobre tamanha angustia a noite passou deacuidosa, como a criança que brinca junto da um leito de moribundo. E' que a natureza é surda e céga para a peque-nhez humana: carregada de sombras ou inundada de luz, a vida do soberano des

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seres creados não desvia uma linha a prescripta ordem dacreaçao.

Para recompensai-nos ou punir nos nos rei,ta a serenidade do bem ou as tor-turas do mal que praticamos.

O céu ou o iufdrno edificamol os nós mesmos diariamente a jorros de honesto heroísmo ou agolpes de infame covardia: para o primeiro a consciência, tranquilla. nebulosa, cria as constellações da paz e da virtude ; para o secundo e^pessa-nos a memoria as trevas relam^eautes do re-morso.

Ao romper do dia ninguém poderia dizer quão amargurosas tinham sido as horas d* noite para o coatradictorio ca-racter do feitor.

Desperta io ÍO torpor, que o avassallara, pelo barulho dos escravos, Manuel João acomp*nhou-o8 até o terreiro com appa rente bom humor, levando o seu recalcar de soffrimentos ao ponto de sorrir benevo-lamente á repetição da ceauira, que na vespera lhe havia sido feita pelo amo.

Este ordenou-lhe que no mesmo instante dé-se providencias p*ra começar o car-reto das madeiras, a fioo de serem embal-sa as por Francisco Benedicto, seu filho e outros empregados que mais tarde çon tract »ria.

Ao concluir a ordem, Motta Coqueiro, misturando a asperesa á longanimidade, disse para o feitor:

— M*s veja bem, Sr. Manuel João, é preciso não perder tempo ; não f«ça ct mo h^ntem.

— Um dia não são dias, respondeu-lhe Manuel João, e meu amo o verá.

D sde esta hora a gente do sitio poz te em activida ie e quanio o sol a pino ele-vava intensamente a temperatura do ambiente, os bois já não eram vistos, ruminando tranquilJamente á son br* d&s arvores annosas; to contrario, c m os museulis distendidos, as grandes e ruas lioguas pendentes, av grossas ventas des-mesuradamente abertas, caminhavtsm a passo lento e regulado, arrastando após

si immenafts zorra», que sulcavam o campo aopeso de enormes toras fálque-jídas.

Na casa de Francisco Benedicto o dia correu através de com dentários acerca da janella aberta.

À maioria opinava por uma explicação muito natural ao3 espirites educados na mais grosseira super-t^ão.

— Isto, diâa a velha, ha de ser aviso de algum conhecido que ,morreu ôu não tarda m u í t a morrer.

Cniquinha , porém, conservou-se im-pressiona la desie o amanhecer, e sento naturalmente risonha, não tivera uma «xpáDsão durante o dia.

— E' muito medrosa esta Chiquinha, diz am-lhe as irmãs, ficou com medo-do tútú.

Nem o gracejo, nem os carinhos das irmãs conseguiram dissipar a tristeza da moça que, no isolamento, chegava até as lagrimas.

N'uma das occasiões em qu* achava-se só, Chiquinha depois de absorver-sa em prolongada meditação, ao enchugar as lagrimas que lhe borbulha vão, exclamou resolut&mante:

— Não quero mais enganar os meus; vou acabar com iato.

No dia seguinte 'evia começar a execu-tar sa o contracto feito entre Motta Co-queiro e seu cornp dre, para o embasa-mento da madeira, e o fazendeiro foi portanto lembral-o ao apgregado.

— Amanhã não me falte, está ouvindo, compa ire ? eu tenho pressa do trabalho.

— O compadre está desejoso de matar saudades, mas olhe que não ha tanto tempo assim que ficou s' m a comadre.

— E' isto, mas também outras razões, e eu quando fôr agora paru Campos não t< rno cá tão cedo.

A familia de Francisco Benedicto, que assistia á conversa, intei veiu então para mostrar-se penaliza ia com a nova. An-tonica levou, porém, a demonstração de

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OU Â PENA DE MORTE 51

pezar a tsl exagero, que não ptssou des- i apercebido a Motta Coqueiro.

Conhece ser dos seus aggregados e do commum dos roceiros nas mesmas con-dições, Motta Coqueiro, reatando a con-v e r s a , ' d i r i g i u - a de mo 3o que puzêsse bem patente as suas intenções.

— Este trabalho que faz-me grande conta, disse elle, e também um adjutorio que o 'compadre tem para fazer a sua casa. Eu vou-me embora, e o compadre bem s&be o que são negros; em eu voltando as cosias pintam a manta por aqui.

— Lembra muito bem, compadre, eu tenho da ir hoje ao Vianna e lá Miarei com e le sobre o regocio

Depois do jantar Francisco Benedicto disse á sua molhei* que ia á venda buscar provifeões.

— Vamos agora para o serviço do com-padre» e eiie é amo com quem não se brinca ; começada a obra não ha arre-dar pé.

Pouco depois da sabida do pai, Anto-nica pediu a su& mãi que a deixasse ii' até a caáa grande falUr com a Izabal cosi-nheira, que lhe ficara de ciar uma camisa, para fazer-lhe por ella uma gola de crivo.

— Eu quero vêr se mando vir pela canôa um vertido para © Aano Bom, e quero segurar estas cobres, mamai.

A valha mãi não oppoz obstáculo ao pe-dido da filha.

Motta Coqueiro estava sentado na sala de jantar da essa grande, quando Anto-nica passou tão apressada como se não desejasse ser vista.

— Então v&e fugida, perguntou elle; parece um pé de vento.

— Vim faliar com a Izabal. — Eutâo não perca tempo; faz-se noite

e por &hi andam lobis-homens. — Que me importa, respondeu a moça;

é cousa de que eu não tenho medo. Antonica passou pela fazendeiro e en-

trou pela primeira porta. Dapois de al-gum tempo, quando talvez Motta Coqneiro já não pensasse n^ella, a moça appareseu

na porta do corredor ; e disse com voz suavemente modulada:

— Iziâbei M buscar uma caaoisa para servir de molde á q*m ella quer que eu faça.

Motta Coqueiro, que estremecera ao ouvir âs paUvras de Antonica, voltcu-se entretanto,disfarçando ã coeimoção, e ex-clamou com intimidade:

— Ah! você faz camisas para vender; eu hei ãê lhe mandar panno para você fazer-me também «soa de peito bordado.

— Ora, seu capitão tem muito quesa faça, não precisa de uma matuta feia.

— Não pregue mentiras qua é o que é feio.

— Então eu não sou feia ? É como é que nioguem gosta de mim?

— Ai'! que você é uma grande menti-rosa, Sra. Antonica. O ssu pai já dile-ma as cavalarias altas que lá vão per casa com o . . . o . . Para que está ficando vermelha; levante os oifcoâ, deixe o lenço socegado... Ah! so asinha.

Antonica experimentou, de feito, uma sensível mudança quando Motta Coqueiro revelou-lne que sabia de seus tsponsses com o vendeiro.

Com os olhos baixos, as faces em bra-zas, e as mãos a enrolarem as pontas do lenço, que lhe cingia o pescoço, a moça

' estremecia como se fôra presa de reniten-tes c&lafrios.

Não querendo augmentar a perturbação de Antonica, o fazendeiro calo o-se. Entre elles estendeu-se o silencio eléctrico que precele ás grandes explotõss do corarão, como o relâmpago preeeie o fulminar do raio.

Juntava-se a este silencio a solidão e melancolia do cwp osculo a cercai em e*se encontro inesperado.

Como se oopiróe o palpitar contido dfaquelles c o r a i s , urn velho relogio de parede movia a pêndula, batendo com-passada menta.

Antonica foi a primeira a romper o

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silencio, e, dando á voz a brandura da pel-lucia, ponderou:

— Mas £© o seu capitão quizer eu não me caso.

— Eu, filha ? Eu nada tenho com isto. — Nada f! perguntou ella admirada. Mas a comprehensão de Motta Coqueiro

não illuminou-se apezar de ouvir esta dolo-rosa interrogação, em que a moça parecia haver encarnado a alma inteira.

N'esta simplissima palavra encârráva-se toda uma historia de padecimentos indes-criptiveis, eexpandia-se a confissão quei-xosa de um segredo, que ninguém jámais percebera, g jardado peia mais reflectida precaução, calculado hora á hora para co-ro ar-se com a victoria.

Entretanto uma desillusão amarga, fria e acerbamente reprehensiva vinha mal-lograr todo o trabalho de loiago tempo, e esvaecer a esperança que morosamente fecundara-se, e, crescendo dia á dia, olhava como cer^a a realidade.

Durante todo esse padecer o coração de Antonica, fugindo de exhibir se á luz, £ó uma vez não poule conter-se e deu forma aos seus sentimentos.

Foi na noite fest;va da Sa^to Antonio quando o violeiro prenunciou desatten-ciosamente o nome de Motta Coqueiro.

N'esta mesma occasião.porem, mascarou com a gratidão o eeu amor, eteve d'ahiem diante força para não permittir nunca a mais leve franqueza a sua psixão, que para satisfazer-se não mediria consequên-cia, não obstante procurar esmagar-se de encontro a um casamento de conve-niência.

Para dissuadir-se e esquecer-se, apro-veitava a ausência da Motta Ciqueiro, as quebras temporarias do magnetismo do seu olhar, para dar ouvidos e provo-car os galanteios de outrem.

Assim era que tinha animado os dese-jos de Vianna, sahindo-lhe ao encontro com uma lisonja, e favoneando-lhe a esperança com um medido abandono,

Mas esta resolução inconsistente, e aéria deáapparecia logo, e a moça reca-hia no tédio e na abstracção.

Era tão zelosa do seu ideal, que perce-bia ao longe a mais imperceptível sombra que se dirigisse para e l l e ; e sd ella interpretou quanto havia de tr&voroso na ironia do violeiro, apreciando a demora de Chiquinha e do capitão.

N'aquella alma tão trabalhada, e que de repente viu-se forçada a quebrar o sigillo que se impuzsra, o despeito chegou até a allucinagão.

A principio quedou immove! com a ca-beça encostada á ombreira da porta, mas em seguida caminhou para Motta Co-queiro.

Santificava-lhe o desalinho das feições a solemnidade da tristeza e recatava lhe a desenvoltura da phrase a eloquencia da dôr.

— Então, disse ella, não se importa que eu me case com outro; não vê què êu não quero, que eu não serei feliz ? Não tem nada para me dizer; nada ? nada ?

Motta Coqueiro levantou-se estupefacto; eúa scena era tão inesperada que elie temeu que estivesse diante de uma louca, e só poude dizer á Antonica:

—• Pois se você tem tanta aversão a este casamento, não ceda, minba filha ; deixe estar que eu fallarei com seu pai e hei de protege-la.

Ao dizer as ultimas palavras um dos braços do fazendeiro tinha cingido a moça que soluçava.

Antonica deixou pender a cabeça sobre o peito de Motta Coqueiro, e levantando para elle os grandes olhos negros, mur-murou :

— Sim, sim, não deixe; eu lhe juro, não gosto d'âile.

— Descance, filha, descance, seu pai não ha de obriga-la ; vôce ha de casar com quem quizer.

— Se seu capitão soubesse, continuou Antonica, as dôres que eu tenho passado, como tenho escondido de todos o que eu

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OU Â PENA DE MORTE

Soffro ! Ninguém póle desconfiar apenas. Eu tinha medo de lhe dizer; vosmecê me estima só cotno a uma criança, e nâ/» vê . . .

— O que e que eu não vejo, Antonica... Como uma fera, que, sendo desapie-

dadamente fustigada, avsnça contra o aggressor,_mss é C3nt'da no impeto p^los ferros da jaula; assim enraivecida, Anto-nica levantando os punhos cerrados e ran-gendo os dentes, fitou os olhos esgazeados na face pallida de Coqueiro, que recuara instincti va len te .

A moça quiz fallar, mas não ponde; tentou avançar, e eahiu arquejante e lí-vida.

Entre o susto e a piedade, o circumspecto fazendeiro tomou-a nos braços, e os lábios pousaram na frvnte descorada de Anto-nica.

Depois conduziu-a para um canapá que estava proximo, e deitou-a, poussndo-lha a fronte sobra os seus joelhos. Era um pai velando uma filhe doente.

— Não tem culpa do que faz, murmu-rou Coqueiro, depois de contemplal-a longamente; é a inexperiencia que a impelle.

— E1 a ingratidão que me mata, res-pondeu Antonica, e levantando-se de chofre, sahiu sem lançar sequer um olhar ao seu honrado guardador.

Apenas Antonica sahiu, uma voz vinda do corredor que desembocava na sala, perguntou huaoild emente :

— Senhor quer que accend», o candieiro. — Deixa-me com mil dsmonios, patife ;

nisgaem te chamou cá, respondeu Co-queiro.

A extemporânea pergunta, que dizia claramente que alguém tinha presenciado pelo menos o fiaalda geena, que procura-mos descrever, era feita pelo malicioso Carlos.

O diabrete negro tinha visto Antonica entrar na casa grande e veiu disfarçada-mente collocar-se, a principio, n^raa sa-leta próxima á sala de jantar, e em segui-da poude esccnder-se por detraz da porta,

que separava esta ultima sala áo corredor, e à'ahi espreitou quanto se passava.

A curiosidade guiara-lhe os passos e elle regozijou-se interiormente, certo de que a narração do que vira lhe recon-quistaria a familiaridade rendosa do feitor.

— Moleque, gritou Coqueiro, depois de algum tempo de silencio.

O moleque com os braços crusados so-bre o peito veiu po3tar-se diante d'elle.

— Ouve bem, continuou o senhor, s<5 vosmecê entreu aqui a esta hora; se uma palavra só, das que se disseram aqui, for sabida, eu mando-té surrar e atiro-te para a enxada; não serás mais meu p3gem.

Carlos sff* stou-se si-encioso. Antonica entrou em casa fingindo-se

extremamente contrariada com a escrava, a quem sc^usava de teí-a f?ito esperar por muito tempo e finalmente adiar para o dia seguiote a soluça-) do negocio.

O ardil produzia o desejado effeito, por-que ninguém reparou na desfiguração que lhe causara a violência das paixões ernptas durante a malfadada entre-vista.

A fortuna, que ainda havia pouco lhe for ?, tão adversa, protegia-a agora mila-grosamente, proporcionando lha meios de esconder o seu soffrimento.

Chiquinha, dizendo se indisposta, reti-rou-se para o q mrto ; Mariquinhas fôra para o interior da cisa preparar o trem para fizer o cafó para o seu pai, quando voltasse; o irmão era o companheiro obri-gado do velho; e a religiosa mãi de An-tonica, assentada a cochilar n'uma ban-quinha de costura, quitava se com a Vir-gem, de quem era devota, desfiando em o seu louvor o rosário de grandes contas negras.

Para poder dar curso ás lagrimas, que nSo se continham, a moça ssntou-se a coser junto á velha mesa da sala.

Seriam oito horasdanoite quando Fran-cisco Benedicto, empurrando estouvada-

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MOTTA COQUEIRO

msníe a psrta, estrou em casa, gritando com voz arrastada:

— Oh coca seiscentos: já domem por squi, suas malandras?

Aatoaiea e Ma? i^uiah&s, deixando os seus trabalhos, vieram beijar a mão ao pai, e a velha resmungou íá no seu canto:

— Ave Mima, que modos estes, seu Chico.

— A agua ç que já estava lá dentro rísoma&ndo ie Unto fe ver; rimes coiso peão dormindo, accrescsntou Mariqui-nhas.

— Bico, sua posta.; não seja respon-dona ; eu quando f^llo ê porque sei; onde está Chiquinha ?

— Está doente, pipai. — Díga-lae que o Sebastião esteve

commigo na venda e quer es enxovaes prooaptos para o Natal, senão vai tu fo raso.

As moças a Afastaram se e Chico Bene-dicto M atirv.r-se sobre ura mocho como um corpo inerte. • -Q%ibuso dds bebida? alcoolicss tinham-o

posto no hrthwso ê§t%$o de não poder perfilar se, e a Jingoa trôpega mal podia prestasse á falia, que era justamente o sestro do sggregado, quando SG embria-gava .

— Oh t senhora, exclamou elle para sua lher, isto por aqui não me está cheirando be&i. Aiada agora o Vianna pre?ou-me lá um sermão de quaresma por causa da Antonica, e ' isse-me que aminbS quer fechar o negocio ; ou ca^a ou não casa !

A voiha n*da respondeu; continuava, pachorrentamente a rolar entre os dedos as contes do seu rosário.

— On ! rapariga? br*dou Francisco Be-nedicto, deixa iá esta costura e vam para o pé de mim.

Antonica obedeceu e co^coou-se junto ao pai que, seguranlo-lhe das mã*s, con-tinuou :

•— 01 h% bem para teu pai; amanhã ha de vir cá o Vianna, você não se ponha com piégas; trate-me bem ao rapaz, se '

não poaho-te peia porta f<5ra, porque não fstou para desaforos. Fica entendido; ponho te os quartos na rua. Póíe i r , . .

Estas ultimas palavras foram acompa-nhadas por um safanão brutal e Aatoaica silenciosa voltou para a sua costura,

— O que foi ? perguntou la dentro a boa Mariquinhas ao seu irmão.

— Ora o que havia de s^r, historias do casamento- Papai faltou com o Sebastião e o Vianna, para ajudarem a fazer a casa e Sebastião disse que sim, comU ato que pelo Natal elle havia de estar com Chiquinha em seu poder, e o Vianna fez uma casaa de Antonioa.

— Veja só este papai; estão Antonica é que ha de ir vê? seu Viatma lá na venda.

— Eu não sei, o que eu ouvi foi o Vianna dizer que papai já deva na venda vinte mil réis de • mantimentos e qae, se Antonica não tem de sar «Telíe, quer o seu dinheiro, porque não está para tra-balhar p&ra o bispo.

— Esse desavergonhado; e tem uma carinha d« santo; eu se fossa" pspai nlo queria mais que elle caí asse com a mana.

— Ainda você não sabe tudo; elle disse que, se Antonica não quizer casar com elle, hsja o que houver, elle ha de mandar citar papai e fazer penhor* nas bemfei-torias; do céo venha o remedio.

Mariquinhas, depois de ter servido a seu irmão, foi á sala levar o café a seu pai, que continuava a reprehesader severa-mente a misera Antonica.

Então poude c/onfirm&r a exactidão das palavras de seu irmão, porque ouvia a Francisco Benedicto esta phrase expres-siva :

— E sabe o que mais, minha malandra, lá está uma conta de vinte «oií réis, qus vocês comeram; eu não tenho dinheiro 3gora ; o que vou receber do compadre é para a cms ; senão quizer casar com o Vianna, você tem um remedio, pague-lhe os vinte mil réis.

— Vãi para dentro, meninas! gritou a velha mãi, ao passo que tomava a chi-

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OU Â PENA DE MORTE

ca* a das mãos de Mariquinhas. — Você também lembre-sé que tem de trabalhar a m a n h ã , seu Chico, ou eu mando chamar o compa >re.

Depois de rogar innumeras pragas, e romper nas mais torpes obscenidades, Francisco Benedicto caminhou camba-leando para o seu quarto, e ena fiai a casa cahiu em absoluto silencio, á excepção do quarto em qae dormiam as moças.

Ahi ouviam-se soluços abafados, mas perennes; era a desditosa Antonica, que encostada ao braço da marqueza, pran-teiava inconsolavelmente

De manhã, ao levantarem se, suas irmãs encontraram-a no mesmo logar; dor-mindo o somno da extenuação.

Apezar do cuidado das moças para não accordarem-a, Antonica estava de pé dentro em pouco.

Cobria-lhe o rosto uma pallidez mortal, mas os seus olhos não tinha lagrimas, nem uma queixa siquer escapava-lhe dos lábios.

Pelas dez horas da manhã só Antonica e sua mãi estavam em casa; o pai e rs irmãos tinham sah do todos para o porto; Chiquinha e Mariquinhas para lavar a roupa, Francisco Benedicto e seu filho para a empreitada do embalsamento da madeira.

Antonica, que de vez em quando ia es-piar á janella, viu no campo o sizudo fa-zendeiro, que vinha a c wallo, em direc-çlo á casa. Após elle corria o moleque Carlos. e caminhavam. a passo os escra-vos, tocando os bois ajoujados.

D pois de amarrar o cavallo, do qual o senhor tinha apei^do no terreiro, Carlt s correu até o casarão e cowmuoicou á An-tonica que seu pai pa^ia para que lhe mandassem o almoço no porto.

Sob o sol ardmte, a moça, com um ces-tinho á cibsça e um longo e fino caniço deitado sobra elie, atravessou o campo em direcção ao porto, onde asseotado á soaibra de uma enorme figueira brava esparavam-a o pai e os irmãos.

Com um sorriso ella reprehendeu as irmãs, lembrando lhes que bem podiam ter ido alasoçar em casa, para não a obri-garem a trazer tanto peso.

A' proporção que fallava, Antonica assentava sobre a g? amma os pratos que tirava do cestinho, e / final, segurando no caniço, poz-se a desenrolar-lhe a linha é a espsrioaentar-lhe a estrova e o anzol.

— Ea como já almocei, dis^e Antonica, vou piscar um bocadinho.

— Eu logo vi que você fallava de bar-riga cheia, interveiu o irmão.

A m ça foi assentar se á margem do rio em frente a um logar onde as aguas negras e morosas reman eavam, abrindo' em rodomoinho silenciosos sorvedoiros.

Estava a pouca distancia dos seus, que em g rupo riam e conversavam, ora menos-cabando, ora elogiando a refeição e o apparelho.

— Como estão bem lavados os pratos 1 — E as facas como estão amolladas ;

parecem navalhas. — Este quitute foi temperado por An-

tonica. — Vocês assim espantam-me os peixes,

gritou Antonica. — E' gosto, observou Mariquinhas, não-

façam barulho que eu quero assar no dedo a pescaria.

— Pois, sim senhores ; de criada vai o Vianna bem arranjado ; é papa fina.

Esta consideração, formulada por Fran-cisco Benedicto, foi recebida com uma longa risada dos filhos, que assim demons-travam approvar o gracejo paterno.

Quem estivesse ao pé de Antonica, ve-ria, porém, que ella bem longe de acom-panhar o acolhimento jovial ao gracejo, impre sionara se dolorosamente com elie.

Não sorriu mais os seus tardos sorrisos e a pallidez como que se lhe augmentou n^s faces.

Os olhos amorteciios e avermelhados prenderam^e-lhe como que fasciaados na superfície da corrente, e, apezar das

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56 MOTTA COQUEIRO

amigáveis provocações que lhe eram di-rigidas, nada respondia,

A linha, cujo anzol boiava a flôr das aguas, deixava evidente que Antonica não prestava a minima attenção á pesca. Outro cuidado a impressionava, e este brouton-lhe no soluçado de um canto:

— Moco fidalgo da corte Se encantou de D. Branca; A moça foge aos amores, O seu pranto naa se estanca.

Já tam véu, j l tem grinalia, Tem sapatos de setim, Da côr que tem a nebrins E as azas do cherubim.

Chega o dia do noivado Branca triste inclina a fronte, Mas pede para mirar-se No claro espelho da fonte.

Ouve o canto da Mãi d'agu'i D'entre os lábios de caral, E na harpa de fios de ouro Sobre concha de crystal:

— « Vem a mim, filha querida Vem findar as tuas dores; Eu tenho ricos palscios Para guardar teus amores.

Em casa todos procuram: D. Branca onde estará ? O noivo já no seu carro Na porta de casa está

Pobra pai, os teus rigores Vão muc3ar-se em fundssmsgaas;, Da tua filha s<5 resta O véu branco Fiobre as águas.—

Ao flsa da ultima estrophe, Antonica, toda inclinada para o rio, olhou triste-mente o ceu e deixou-se precipitar na corrente.

Ao som do baque nas aguas ur-a grito de desespero respondeu no grupo :

— SGCCCTFO, Loccorro ! gritaram todos. Francisco Baaedicto e seu filho,rápidos

como um tufão, atravessaram a pequena distância que mediava entre o rio e o logar em que se achavam, e precipita-ram-se ao mesmo tempo, ao passo que as moças no auge da afflicção gritavam a plenos pulmões :

— So acorro 1 Soccorro 1 Ao mesmo tempo vieram á tona os dois

nadadores e a pallida Antonica, que se debatia quasi suffocada.

F r a n c i s c o Binedicto, porém,j % não tinha forças para res is t i r a correnteza, e foi des-viado pslo r edomoinho das aguas, e só o seu filho pouie aproximar-sede Antonica., no momento em que ella submergia-se de novo.

O corajoso rapaz mergulhou no mesmo ponto, e, quando subiu á flôr do rio, trazia segura pelo corpinho do vestido a moça já sem sentidos.

A affl cção cresceu nos espectadores ; a pouca idade do mocinho não lhe fornecia a força neces aria para levar acabo a em-presa ; era um joguete da correnteza-prestss a ser esmagado por ella, que lucra, ria sssim mais uma victima.

O-velho pai, agarrado ao galho de um ingazeiro via, entre as torturas da impo-tência, esta dupla a m e a ç a feita pela morte ao seu coração angu tiado.

Mas de repente uma esperança conso-ladora luzia em todos os espiritos ; a vio-lência das éguas ce.leram diante da ro-bustez de ura naiador decidido.

Era Motta Coqueiro. Ouvindo os gritos de soccorro, e vendo

o grupo correr em direcção ao porto, o prestativo fazendeiro sentiu atravessar-lhe o espirito a lembrança das palavras de Antonica : — é a ingratidão que me mata — , e alevinhou logo o que se pas-sava.

Montando no possante aUzão em que sempre andava, e cravando-lhe desapieda-

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OU A PENA DE MORTE 5 7

damente os alicates, Motta Coqueiro pôde em. alguns minutos arriscar á sua vida pára salvar-a moça,

Nãlou direito a ella e segurando-a com um dos braços,com o outro remou á mercê das aguas até podar sgarrar-se a um dos galhos da vegetação da margem.

Dent ro era alguns minutos Motta Co-queiro de i t ava sobre a gramma o corpo i m m o v e l de Antonica.

A viveza encantadora de seu rosto fôra subs t i t u ída pelo morte côr de uma longa s y n c b p e ; a luz suave e seductora dos seus olhos fôra trocada no brilho estagna-do, proprio dos olhos dos cadaveres, e além de tudo isso os braços, quando eram levantados, cahiam com o abandono da inércia.

— Está morta! está morta! minha irmã! minha filha! pobre moça ! exclamavam todos chorando.

Só o fazendeiro não havia até então perdido o sangue frio entr-3 a m<5 de pa-rentes, escravos e aggregados que cerca-vam Antonica.

Ajoelhando se junto á'ella, poz-lhe a mão sobre o coração, e seistiu que elle ainda batia.

Então como se fosse presa de uma lou-cura instantan^a, tomou nos braços o corpo molhado da moça, apertou-o contra si, e cobriu-lhe de beijos a face livida.

A visiáhança do tumulo santificava esta explosão]mdomita do coração e longe de prcvccar e^tranhesa serviu apenas para aviventar uma esperança.

— Ella vive" ainda, não é verdade, com-padre ; minha filha não morreu.

—• Vive, sim, para n<5s, p?»ra o seu amor, para a sua felicidade ; respondeu Motta Coqueiro, que não tinha mudado de posição.

Depois, como se accordas?e de um sonho, levantou-se e gritou para os es-cravos e os çircum st antes:

— Estamos aqui todos pasmados ; va-mos, levemol-a para casa; Deus a sal-v ará.

Durante mais de uma hora de ancie-dade a trabalho, ninguém, a excepção de Motta Coqueira, alimentou amais fugitiva esperança de ver salva a moça.

Todos abanavam a cabeça, exprimindo assim a certeza que tinham de que eram baldados os esforços feitos pelo fazendeiro, que sobre-excitado aconselhavae tomava ao mesmo tempo múltiplos expedientes,

Antonica jazia desacordada na immo-bilidade dss estatuas, e apenas com um leve respirar correspondia á robustez da esperança do seu incançavel salvador.

À proporção que desanimavam de todo, as pessoas da familia retiravam-se para ir mais longe derramar as lagrimas, que Motta Coqueiro não queria ver correr.

Havia já largo espaço que, a sés, o fa-zendeiro velava junto á cabeceira de An-to aica, quando esta pela primeira vez, depois da frustada tentativa de suicidio, abriu as p&lpebras roxeadas.

Tudo quanto ha d© mais infantil e mais amoroso, de mais santo e louco passou pelo espirito e encarnou-se no olhar e nos gestos de Motta Coqueiro.

— Veja se dorme, se descança, mur-murou elle; não deve fallar, não deve fazer nenhum movimento. Oh! que susto que nos pregou!

O olhar de Antonica, mixto de espanto e de pudor, continuou fixo a eavolver o seu solicito velador, emquanto que TJO canto do lábio pairou-lhe na ironia de um sorriso toda a amargura da sua situação.

— Porque não me deixou morrer, por que não teve animo ao menos para p » r em paz sobre a minha cova.

— Mas, minha filha, repare que esta exaltação lhe faz mal; descance, is o ha de passar ; você verá, ha de passar.

As palpebras de Antonica cerraram se de novo e pelos seus cantos as lagrimas começaram a dv>slísar.

Um incidente veiu impedir, tdvez, que uma involuntária quebra de resolução maculasse o papel digno que Motta Co-queiro desempenhava junto da moça.

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MOTTA COQUEIRO

Francisco Benedicto, de pé na porta do quarto em que esta scena se passava, disse á meia voz:

— Oíi! compadre, não será bom acor-dsi-a e dizer que está ahi o Vianna ; tal-vez...

Odendo á commoção que lhe causaram estas palavras o fazendeiro, repetiu alto:

— Talvez... — N'est,e caso eu vou chamar o rapaz.

O compadre se o visse; está lá fóra a chorar e a praguejar.

Logo que Francisco Benedicto retirou-se o sorriso ironico de Antonica reappare-ceu-lhe nos lábios e as pálpebras de? cer-ravam se-lhe para lançar um olhar pene-trante ao ja sereno o Coqueiro.

— Quero mostrar que não sou ingrata, seu capitão, murmurou ella, hei de tratar muito bem ao meu noivo.

— B para ter mais franqueza, eu retiro-me, respondeu Coqueiro, levantando-se e dirigindo-se á porta.

Depois que o fazendeiro sshiUjAntonica, que se assentara no leito; envolveu n'um sorriso um grito do coração:

— Vai; não és tão indiferente como finges.

— liTcá, v?nha por cá, dizia lá fóra Fran-cisco Benedicto, não façamos barulho.

A estas exclamações accrescentou logo uma pergunta e uma observação:

— Acordou a sempre, compadre ? São sempre assim, mesmo morrendo,.. Oh! meu Deus foi um milagre.

A ultima exclamação foi feita á porta do quarto, e era meti *ada peia posição de Antonica.

Capuchoso no desempenho do seu pa-pel o vendeira entrou precipitadamente emittindo plirases etn aliuvião :

— O que foi isto, sá Antonica ? que diacho de o u s a ! quasi que foi para a cova; vejam que brincadeira,

— Ora o que fut ? um banho, respondeu Antonica,

Toda a familia veiu para o quarto A

chamado de Francisco Bene Jicto> que não podia eontsr-se de alegria.

Choveram cocomentários do perigo e manifestações de regozijo.

— Só você podia cural-a. s m Vianna; abaixo de Deus, o compadre valeu-nos muito, mas não é o noivo.

A vaidade lisonjeada do vendeiro operou alguns requintes do estylo da modéstia forçada,'a divindade universal que tem altares desde o sertão até os mais civili-sados centros, e afinal cahiu inanida do esforço no mais parvo mutim o.

Tendo dado franqueza ás expansões, Motta Coqueiro assomou á porta no mo-mento em que Antonica, para desafiar os enconjuros de sua mãi, dizia:

— Era bem bom que o banho fosse até o fim.

— Já não ha perigo, disse o fazendeiro; agora parto para o meu trabalho.

Um coro de agradecimentos rompeu de toda a familia; só Antonica fez excepção, e dirigindo-se ao fazendeiro, verteu todo o seu despeito n'uma pergunta:

— O que seria melhor para uma pessoa, seu capitão, morrer ou querer morrer por alguém que não merece ?

— Conforme, respondeu elle; se a pes-soa fôr moça, o melhor é casar-se com quem mereça.

A conversa continuou animada junto do leito de Antonica, mas já não colla-borava nos ditos de alegria e espirito a voz da doente.

Concentrando se a pouco e pouco, e responden te ao aca^o, Antonica termi-nou por dizer que se santia peior, e peiir que foliassem mais baixo.

Alguns minutos dept is deítoo-se quei-xando-se de dôres na cabeça e calafrios. ' — Parece que tenho febre, di.ise ella, e

pe iiu ôs pessoas que estavam no quarto para que se retirassem.

Ficou apenas no aposento a velha mai de Antonica, que para l^go teve de pedir auxilio, porque a moça começou a convul-sionar, como se fora morrer.

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OU Â PENA DE MORTE 59

Esta r e c a t a d a inopinada aggravou se a s s o m b r o s a m e n t e e d e novo a familia julgou perdida irremediavelmente a en-ferma.

Ataques violentos obrigavam aos maio-rm cuidados © a quasi continuo exce do de forçá para impedir que durante elles a doente são sa maguasse ainda mais, ou

' fosse victia.a de algum dos ssus bruscos movimentos.

N'es te honroso empenho, durante dous dias e duas.noites, velou a familia de Í Francisco Benedicto á cabeceira da An-tonica, mas o cançaço diminuiu por fim a boa vontade e dedicação.

Estavam todos extenuados» Dous o ff areei mentos espontâneos apres-

saram se em pedir á familia o encargo dos quartos á enferma, Motta Coqueiro mandou uma de suas escravas, e Manuel João offereceu sé para velar com ella.

Por hora adiantada da ,noite um aesesso violento obrigou os bons serviços de Ma-nuel João e da escrava, e além (Telles appareceu no quarto a bondosa Mari-quinhas,

Apezar do barulho, que foi feito pelas vascas da doente, ninguém mais acordou, o que provava quão pegadio era o somno dormido pela família.

Passado o accesso, a escrava foi sentar-se a um canto do quarto, Mariquinhas sentou se para os pás do leito & Manuel João a cabeceira.

A escrava não velou por muito tempo ; em breve euviu-se o seu franco resonar.

Estavam, pois, sós Mariquinhas e o feitor.

Os seus olhares e nbebiam-se recipro-camente na mais expressiva ternura, trocando as phrsses que o respeito á en-ferma impediam de pronunebr-se.

Pelos lábios de M «riquinhasserpeiavam esses sorrisos indefiníveis da mulher que se c> è amad», quando vô-se contemplada pelo seu amante ; sorriso feito de um tom de vaidade sobre esplendido colorido de

gratidão e que é o melhor coroamento d» amor.

Para se deixar fitar mais a vontade, em toda a franqueza e seducção dos seus en-cantos, a moça collocou o braço no da marqueza e na concha da mão pequenina deitou a face morena.

Contrastando com a immobilidade do busto, Mariquinhas balançava disfcrahi-damente uma das p®rnts, com um movi-mento compassado e languido, >

Talvez para mais encantar o contempla-tivo feitor, a moça de quando em quando cerrava as palpebrás nacaradas, para sus-pendei as depois no raio húmido e amplo do seu olhar avelludado.

— Porque não vai dormir, sá Mariqui-nhas ; eu e a rapariga bastamos para qualquer cousa.

—• Eu estou bem aqui, respondeu Ma* riquinhas.

Fizeram ambos silencio em seguida, porque a doente revolvara-se no leito.

Foi este um pretexto para que Manuel João se levantasse e logo-inclinado sobre a face da Mariquinhas, com os lábios quasi a roçarem-lhe o delicado pavilhão das orelhas; lhe segredasse:

— Vá dormir, sim ? olha que me está fazendo mal.

Quanta felicidade não devia ter derra-mada n'alma ingénua da amante de quinze annos esta solicitude respeitosa e acariciante.

— Está bom, respondeu Mariquinhas ; eu vou aqui para a sala, se precisar de alguma cousa, chame.

Mais de um longo quarto de hora tinha-se já escoado apds a sahida da fas-cina iora amante do feitor, quando este depois de observar de perto o rosto de Antonio», levantou-se com precaução.

C >m menos ruido não dedisa a íagri* ma de resina polo córtex do pecegueiro.

A passos lentos'caminhou até junto da escrava adormecida e chamou-a por tres vezes; a preta não deu o minino dignai de ter acordado.

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60 MOTTA COQUEIRO

Manuel Jcão .caminhou então para a ssla com a mesma cautflla.

Deitando um braço sobre a mesa e a ca-beça sobre elle, Mariquinhas resonav* -brandamente através dos lábios virgíneos o somno do csnçaço e da confiança.

01?-ncinho branco, que ella diariamente trazia ao pescoço, havia-se desatado, e o corpinho, formando pala posição contra-feita da meça uma abertura concava, dei-xava vsr o collo moreno. Assim as pétalas da rosa superpoem-se de modo que não ró deixam entrever-se.. mutuamente , mas frsnqueaxia ainda a vista a dourada re-gião dos estames.

Um tosco a mal limpo candieiro bruxo-leava ao lado de Mariquinhas, como se tentasse apagar-se para não dar logar a que um olnar profano se atreves e a de-vassar tamanhas perfeições.

Pé ante ré o feitor approximou-se e parou junto da adormecida. Contemplou-a com avidez; corrert-lhe de leve a mão de,sde o alto da cabeça até a meio de uma d>js tranças que ammounhava o arfar do collo immaouladO, e finalmente ajoeihan-do-se, roçou nos lábios entreabertos da iroça um b°ijo, que alava-se no terr-or.

O somoo de Mariquinhas era profundo como soem ser es da fadiga ; a profanação poude continuar.

Ao piimei.ro beijo, seguiu outro e ainda outro, até qce menos pela grosseria do sttentado do que pela susceptibilidade do puior, a moça dispertou scbresaltsida.

Ao ver de joelhos o seusmente, ella que não podia adevinhar a torpeza de que elle era capaz, não teve uma queixa á vibrar-lhe, mas antes uma caricia para pèrd*al-o.

— Ea não sabia que era santa, está fazendo oração ? Olhe o oratorio está aqui, eu abro-o. <

O crime espojou-se diante de tão gra-ciosa impunidade; e "a semelhança de um forçado que, evaiindo-se da prisão, encontra diante dos seus instinctos máus, não a mão pesada do carcereiro, mes um

dia limpido como o ether, um céu sereno e uma tranquilla floresta suspirando a báfcgem farfalheira de um vento sem rancores, e ecoando o gazeado mavioso de milharei da passarinhos; e então ri acs planos sombrios de novas emprezas; o feitor encontrando, ao retrahir-se da sua baixeza o olhar velutino de Mariquinhas e a suavidade da sua palavra, riu inte-riormente a uma esperança lasciva.

— Não Mie alto, que podem ouvir. Deixe que ao - meu os hoje eu esteja junto de você; é tão diffiz-il isto.

— Deveras ? pois você não vem sempre aqui,

— Mas nunca tive uma vasa de dizer-lhe que lhe estimo muito, muito, como a ninguém n-este mundo.

— Pois sgora já disse; o que quer mais? — Quero que você diga que também

paga-me essa amisade com a mesma força; que é capaz de fazer tudo por ella, sem medo, nsm de Deus, nem do mundo.

— Ai 1 ai! você está a dizer peccados, vá fazer o quarto e deixe-se de parte?.

— Não brinque, sá Mariquinhas; eu não saio hoje õ'aqui sem saber se devo viver ou morrer. Eu »Sò vim cá por sá Anto-nica; eu vim para cer t i f icar me de que você me estima. Qaero que jure-me, que" repita uma, cam vezes : eu só serei tua, só tua . . .

Estas palavras seguiu-as o feitor com os movimentos precipitados da paixão, e quando padia a moça que j urasse .já a tinha cingido e beijava-a apezar do es-forço que ella fazia para libertar-se do assalto.

— Deixe-me, deixe me, exclamou Mari-quinhas, você está abusando, eu chawio a rapariga.

Dita ámeia voz, mas com o sccínto im-ponente do pudor e da dignidade, a phrase de Mariquinhas repelliu para longe o feitor, não amedrontado, mas allucinado.

O seu plano de sedocçSo mallogrou-se, evn mister levar a cabo o segundo : 6 da

I violência.

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OU A PENA. DE MORTE 61

Levou a mão á cinta; estava desar-mado; voltou então para junto de Mari-quinhas e travando-lhe do punho, disse-lhe com um accento qua a fez tremer .

__ uma palavra mais, e eu que ta es-t i m o como um ãoido,, arranco-te a lingua como um malvado. Olha que já ha noites que eu penso n'isto; en?orquem-me de-pois, mas eu hei de çhamar-te minha hoje, j á . . . Uma palavra mais e . . . esta casa'tem armas e no meu pulso ha força.

— Para que ha de ser máu p'ra mim ; murmurou Mariquinhas,; que esperava abrandai o pela humildade.

Foi porém um novo incitamento. Da chofre Manuel João apertou sobre os lábios de M a r i q u i n h a s a s u a mão vigo-rosa, emquanto com o b r a ç o , que lhe p&ssára a c i n t a e um esforço b r u t a l , f sz ia vergar-lhe o corpo delicado.

O candieiro, talvez psla agitação doar durante a lucta, deixou de i Iluminar a sala.

Y. LM CUMPRIMENTO DE PALAVRA

A moléstia de Antonica deu logar a mais uma intimid&ds perigosa na sua familia.

Na qualidade de .meàinheira foi cha-mada a tia Balbina para debellar o mal que assombrosamente devastava o organismo da moça.

A feiticeira tinha para insinuar-se a maciez da dissimulação e, apezar das asperesas do seu exterior, o trato, re-fâlsadamente humilde, era agradavel como o contacto do pello da lontra.

Esperando pacientemente a opportuni-dade para arriscar uma palavra, pene-trando até o funlo das consciências com o seu olhar que poásuia a calma perspicá-cia da vingança, Balbina era dotada de uma espesie da talisman fatiáico que at-trahiapara si todos os espirites, que se lhe acercavam.

Dois factos chamaram promptamente a attenção da cabinda, que andava sempre

á cata de elementos psra com elles forta-lecer a teia em que buscava enredar os seus senhores: for*m a tristeza de Chi-quinha e um visível spaíetamento que obscurecia as fácaldaies de Mariquinhas.

Chiquinha chegou se um dia á Balbina e queixou-sa-lhe de que passava cs dias oppressa por uma tristeza inextinguível ora p o v o a d a cia scbresaltos, ora de visões encantadoras- e carinhosas.

— Não sei o que tenho, tia B úbina, parece que estou sempre sonhando. „ . .

— Além d'issa, continuou Chiquinha, tudo me aborrece e tudo me preocçupa;.não tenho vontade de comer e se alguma força faço sobre mim caio n'am enjoo, que só se acabappr vomites. Vouemmagre-cendo a olhos vistos.

Os symptomas dados por Chiquinha eram claros de mais para a arte dá feiti-ceira e assim podia esta fallar com tola a segurança.

Mas o poder de Balbina era o myste-rio e ã dubiedade de sentido das suas pa-lavras, que lhe deixava s e m p r e aberta naja sahiia. Preferia o labyrintho á linha recta. -

Secundo os seus hábitos Bilbinares-w O poadeu á queixosa:

— O coração da gente bate as vezes com força; os oluos não vêoi, o corpo não foge. Á hora da lua o matta-p&sto de fiôr amarelia fecha, como os captivos SBUS olhos cançados, as folhas que são o relogio do escravo. Mas o coração não dtixa de bater, não quer se trancar dentro do peito; que,' voar como o vagalume.

Da manha, quando o sol nasce, a folha é que se abre então, e o coração é que muitas vezes fica fechado. Balbina nao pôde pi-ohibir qua o grilio verde rôa a folha que se abriu ao sol, nem que a tris-teza more no coração que se abriu aos raios da lua.

— Mas quem é qua lhe disse que meu coração se abriu na hora da lua I pergun-tou lhe a moça admirada.

— Carolina gemia; a alma da Balbina

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62 MOTTA COQUEIRO

ficou triste como o carneiro que vai morrer, e a cabinría sahiu para pedir ás hervâs de Deus o soeego da creoula. Na baixada cresce a herva de S. João com o seu cheiro bom e com a saa penugem de pombo novo. A cabinda queria traser a herva para remedio da doente. No meio da colheita Balbina se assustou, porque viu um vulto branco como a boneca da paina...

— E quem era este vulto ? interrogou a voz tremula de Chiquinha.

— A negra não ê quem pôde dizer á filha des brancos, respondeu Balbina lan-çando á moça um olhar, que a fez enver-inelhtce . A negra viu o vulto branco, mas não poude saber quem era o outro, que tomou pelo cammho da baixada.

— Mas diga, tia Balbina, diga o qu* é que eu tenho; diga peio amor de Deus.

— Balbina só póie fallar dentro do ouvido de sá Chiquinha; escute.

A pret* começou então a segredar, e a proporção que ella fallava, Cniquinha empallidecia.

Quando Balbina terminou, as lagrimas corriam em borbotõss pela face da moça, que só teve forças para exslamar.

— Oh I meu pai do céu5 salvai ine por que eu estou perdida.

— O pai do céu é bom; se a filha dos brancos disfarçar, se não ficar sempre triste, póie esconder dos olhos da seu pai, até que possa apparecer com seu marido. Sa Chiquinha não ha de ser infeliz como Carolina, qua foi quasi a morrer parar nas mãos do doutor, porque o pai desprezou o filho da creoula.

Cuiquinha começou desde esta hora a esperar o dia em que devia ter uma fatal certeza, e Balbina continuou na sua tarefa gratuita de tudo observar.

Antonica tinha entrado em convales-cença e já passava horas inteiras a con-versar com sua mãi e irmãs.

Atravez do aaúo inherente á enfer-midade já escapavam-lhe do coração para os lábios uns fugitivos sorrisos.

Ainda uma extrema fraqitesa iMpedia-a de levantar-se sdsinha, e todavia os ser-viços de Balbina foram dispensados pela familia do aggregado.

Ponderando que as moças não deviam afFa&tar se por muito tempo de *-ntomea para convêrssrem com ella e adjudai-a a mover-se, Motta Coqueiro quiz que-Bal-bina continuasse no casarão, e a preta foi incumbida da lavagem da roupa, e dos trabalhos da cozinha.

Francisco Banedieto e seu filho volta-ram ao trabalho do embalsai ento, ao qual reuniu se mais um novo empregado, Faustino Silva.

Homem de i&á nota nos arredores, Faus-tino guardava entretanto o aprumo do respeito diante do capitão Motta Coqueiro, a quem dava mostras da maior conside-ração.

Filho do logar esteve por longos annoã fóra d'elle por ter sido condemnado a 20 annos de galés, por um assassinato.

Madrugava-lhe ainda a mocidade quando commétteu esse crime, e a convi-vência de scelerados, combinada com a própria indcle, conveitôu-1 Be o coração n'uma pedra lascada e arestosa, cujo con-tacto feria, ou ao menos escore&va.

Robusto e varonil, com quarenta annos de semi-òciosídade e de vida gargalhada na ignominia da grilheta, e depois nos requebros dos fados, Faustino era um d'esses productos communs da ignorân-cia, que tanto abundam paios sertões.

Lia-se-lhe no rosto trigueiro, cercado por uma grossa barba negra, nos olhos mal encarados, a torpeza de sua alma, e todos que o conheciam terminavam as suas apreciações ácerca do novo traba-lhador, dizendo : — aquiílo sempre é ho-meai que mata os outros por dinheiro.

Tal era Faustino, segundo dizia o povo, que muitas vezes, que o maior numero das vezes, exagera os defeitos do indi-viduo.

Um irmão de Faustino, o Bento Silva,

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OU A PENA DE MORTE 63

contava a seu respeito uma passagem romanesca.

U aa noite, á hora da revista, urna das fort lezas do Rio de Janeiro, foucvu se a rebite peia fuga de um dos condem-nados.

Poz-se tudo em actividade psra effec-tuar-se a sua captura immedi&ta, mas todo o esforço maliogroa-se.

Os escaleres expedidos seguiram todos na direcção da terra, da pai te que ficava mais próxima á fortaleza, mas o preso mais atii»do fceguiuem direcção cpposta. Na iou ao largo da bahia.

Sd pela madrugada conseguiu pôr pé fór* das onlas„ mas estava, salvo. Nin-guém o perseguiu, e eile poude embarcar como marinheiro a bordo de uma escuna, que partia para Macabé.

Ahi de*p»diu-se do navio, e internou se para M&cabú, seu torrão natal, onde levava a vida de trabalhador.

Eatre Faustino e Franci co Benedicto manteve-se a reserva que ha sempre entre individuos, que reciprocamente se co-nhecem.

Nenhum d^lles gosava da boa fama, porém cada um considerava-se m-dhor do que o outro, e tinha escrupulos na fa-miliaridade.

Francisco Bôneiicto nunca, por dife-rencia ao menos, coavidou o seu compa-nheiro para ir á sua casa, facto que ofendendo profundamente o desalmado Faustino, fizia com que elie dissesse quando faílava-se no aggregado : „ — Aquilio é um cachaça; um dia eu parto-lhe c;s ossos e mais ao magarefe do filho Vai tu lo ra&o; porque eu não gosto que me toi çam o f jcinho.

Mas apesar da reciproca antipathia, os homens harmonissivam durante o traba-lho, e ifeto tastava.

Na casa do aggregado ficavam ep^nas as mulheres. Para espairecer da funda hypocon iria que lhe ia minando a < xis-tencia, Mariquinhas costumava a sahir á hora da sesta e ir sentar-se com a sua

costura á sombra de uma arvore que fi-cava perto.

Ahi estava guardada pelo movimento das pessoas de cas* e podia dar de mão ao temor que tinha de poder ssr outra vez assaltada pelo feitor.

Um dia, porém, foi sorprehendida justa-mente pela pessoa a quem queria evitar & to io o transe.

A voz do feitor plangente e submissa, buscanao rodeios namorados, veiu aba-lar lhe a apathia intima em que vivia.

— Ainda não me perdi o», sa Mariqui-nhas.

A moça não respondeu, mas abaixou ainda mais a cabeça, e poz-sea cantaro-lar entre dentes.

As suas feições tinham, porém, tomado | um sccento soioame—a gravidada do pudor

offandido, e * ra bem fácil comprehender a causa d'esta mudança.

Mariquinhas amava sinceramente o feitor. D sra-lhe as primícias immaeuladas dos seus sonhos dos quinze annnos, bando louro de miragens a entrançar-se em choréas festivas para desfazer-se afinal nos vapsras roseos de um anhello iudefl-# nivel, que ihe dominava o coração enchen-do-o de um sussurro longínquo de sauda-des sem causa, de anceios sem objecto. Fizera das faces trigueiras de Munuel João o ho ris anta do seu viver modesto, e ima-ginára-se muitas vezes na sua casinha de sapé, a estender no terreiro a roupa de trabalho ou o seu fato domingueiro ao lado da camisa de morim, que se lhe aper-tava contra os &eios, oppressa p^las bar-batanas do seu vestido.

A* tardinha iria esperal-o á porta, 9a a meio caminho para acabar n'um be jo um sustosinho que se ihe ia alevantando com a appiosimação da noite.

Custir-lhe-hia tanta felicidade, talvez, o aesíiffícto" de seus pais, porque o seu amante era homem de côr, e pobre; mas tudo isso compensar-lhe ia o seu amt-r.

Um coração feminil vxve de tanta Chi-mera aos quinze annos!

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MOTTA COQUEIRO

Esse feixe facetado e iriante de illusõss desatou-o brutalmente o feitor na noite em que, acicatado pela lubricidade, tres vezes covarde, atirou sa como fóra esfai-mada sobre a canlura, o amor, e a fra-queza de Mariquinhas.

Ao acordar do pesadelo atroz d'aquella noite, em vez dos sonhos innocentes em que se balouçava, Mariquinhas EÓ poude desde então ver dentro em sua alma uta pugilato medonho entre o amor e a digni-dade.

Esta venceu por fim, deixando aquelle a anelar prostrado na liça.

Interpretando como um acolhimento benevolo e digno o silencio de Mariqui-nhas, Manuel João continuou ainda mais submissa e humildemente:

— O amor é mim. mesmo, sa Mariqui-nhas ; ás vezes fica-se doudo. Quem ama deve perdoar.

Ditas estas palavras, o feitor achegou-se vagarosamente de Mariquinhas e cur-vou-se para prcfanar-lhe m&is uma vez as faces morenas.

Tudo quanto a dignidade tem de mais solemne quando uma provocação iniqua vem sobrelevai-», irrompeu da fraqueza de Mariquinhas.

Pondo se de pé; com gb punhos cerra-dos, os lábios trémulos, e a vos repas-sada de ameaçadora amargura, recuou para logo avançar corajosamente sté o feitor.

•— Escute bem, seu covarde; exclamou Mariquinhas; eu já lhe estimei muito, mas hoja tenho até nojo de você, seu mal-vado. Dsixe me passar.

E adiantou se para passar. Foi, porém, tolhida pelo feitor, que s-gurara-lhe o braço, exclamando.

— Perdõe, sa Mariquinhas ; eu hei de me casar com você.

— Nunca! exclamou a moça, que se poude livrar; preíiro morrer; péde fazer o que me disse; mate me.

Manuel João ficou de pé com o ar boçal

de uca larapio sorprehesáilo, em quanto Mariquinhas se af f^Uva.

Delib^rava-se talvez a se^uil-a, mas no mesmo instante passcu por junto d'elie a tia B ilbina, sobraçando um feixe de gra-vetos.

Balbina tinha ouvido quanto era bas-tante para comprehender que um acto de violência tinha &ido commettido pelo feitor contra a meça, o Manuel João por sua vez convenceu-se de que a feiticeira estava de pc-s^e do seu segredo.

Era d@ seus áias no sítio a descoberta dos instrumentos de feitiçaria ©m poder da escrava ô portanto fácil lhe fci atinar com um meio que, no seu estender, frus-traria toda a importancia das accusaç5es que ella, porventura, tencionasse fazer contra si.

Confiado na solução rasoavel que enge-nhou para a sua melindrosa situação, o feitor esperou a opportunidade para pol a em obra.

A convalescença de Antonica adian-tava-.se com felicidade e rapidez, graças a em tratamento de prompta effisacia, a mediesçao da esperança.

Motta Coqueiro alliava, no fino quilate do seu caracter, duas qualidades de todo o ponto heterogéneas, mas por isso mesmo de fácil combinação, a bonhomia e a austeridade.

Foi a segunda qualidade a que recebeu a declaração de Antonica, mas quando o fazendeiro viu as consequências da sua recusa franca e digna, o seu animo essen-cialmente benevolo increpou-o rapida-mente, dando-lhe a responsabilidade da

I tentativa de Antonica. O resultado foi Motta Coqueiro resol-

ver-se a contemporisarcom aquella paixão arie^te e que resolvera fazer-se impôr pela própria loucura, ou respeitar-se pelo remorso.

Em uma das remis- ões da febre delira-da da filha do aggregado, esta ao abrir os seus grandes olhos amortecidos encon-

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trou o olhar com a observação eommo-vida de Motta Coqueiro.

O quarto silenciava xfqma triste pe-numbra, só, destuada por um listrão im-palpável de luz, coado pela fresta da porta semi-aberta e no qual turbilhonavam sem ruido innumeras partículas de pó.

N'este ponto foi fixar-se o olhar da moça.

__ Tive ainda fôgora um sonho, disse ella depois de uma demorada contemplação; como alli eu vi uma grande facha de luz, onde em vez de poeira subiam e desciam anjinhos. Entra elles e sobre a luz boiava eu como uma folha no rio. Eu tinha os olhos abertos, via, mas nem podia mover-me nem fallar. Ia á mercê de um empur-rão invisível, mas de repente parei, meu corpo havia-se encostado sobre o peito de alguém. Se este sonho se re&lisasse eu preferia morrer.

— Isto foi um delírio, minha filha ; não pense mais na morte, e não terá d'estes sonhos. Veja se pódé acalmar-se; eu estou aqui ao seu lado.

— E ha de estar sempre ? — E por que não hei de estar ? Pensa

que não lhe estimo muito, muito. . . — Como estima a toda a gente, que

precisa que sa lhe faça bem. — Mais do que isso, Antonica ; é a

estima que se dá a um coração, que sa-bemos que bate por nós. Se você morresse, eu nem sei o que seria de mim.

— Eu tinha vontade de morrer, porque sei que seu capitão ficava descansado.'

— Quem sabe do futuro, Antonica 1 talvez eu não sobrevivesse multo.

O egoísmo incandescente do amor es-panejou-se triumphante no coração de Antonica; revelou-o eloquentemente a ternura de seu olhar. Uma alegria infan-til dourou a pausa que houve no dialogo, alegria de um moribundo, que voluntaria-mente escondia na sombra de um tumulo as mais risonhas illusões, e que de súbito affasta a sombra ominosa e secte inundar-sedos esplendores da ventura.

— E" mentira minha, é mentira, ex-clamou Antonica; eu estava sem tino, o que eu quero é v i v e r , seu capitão, viver 1...

— Sim, você ha de viver para seus pais, para mim, que tenho na sua ami-sade o melhor premio do pouco*bam que tenho feito.

Este unicoaceno amistosc ao ideal de Antonica, roseo colorido dò alvorada em céu 'borrascoso, reanimou-a, ou melhor ainda, resuscitou-a.

As simples phrases da benevola conso-larão foram o esplendido flat no vácuo do existir de Antonica; decompuzeram-se e transformaram-se em outras tantasestrel-las, asterismcs tranquillos, convergindo os raios em um único fóco — a possibili-dade do amor.

Effectuou se a cura radical da loucura pela pelarisação da luz da esperança.

O restabelecimento caminhou desas-sombrado e rápido e o amcr atulhou com pétalas de flôres a sepultura já hiante aos pés da desventurada amante.

Os serviços de Balbina foram definiti-vamente dispensados e a escrava tornou para os ingratos labores do eito e para o meio da consideração supersticiosa dos seus parceiros.

O feitor era agora inexorável e exigen-te até a insensatez. Por maior que fosse, a agilidade dos escravos achava-os sem-pre morosos, e não raras vezes vibrava o chicote sobre as, costas nuas dos miserá-veis trabalhadores.

A sua attenção voltava-se peculiar-mente para a tia Balbina, a quem alcu-nhou—a m ar r alheira.

— Arriba 1 arriba 1 gritou elle um dia, á medida que estalava o chicote sobre as espaiuas da preta; não dormes de noite ocsupada com a feitiçaria e de dia estás a cahir de preguiça. Vê se ficas asseiada com este espanador.

Nem um ai escapou aos grossos beiços da feiticeira, amargou calada a vingança, a ruminar a desforra.

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66 MOTTA COQUEIRO

A' noite a preta foi de novO sorprahen-dida pela cólera do feitor, que veíu pâs-sar-lhe revista á sensala. Achou só mente uns registros de santos, porque o mais a prevenida Balbina tinha po&to em logar seguro.

Mas nem por isso o feitor julgou-se quite com a feiticeira; na hora da revista matutina, conscio de que Motta Coqueiro acredital-o-hia, Manuel João lavrou car-regando as côres um libello contra a escrava.

— Não se pôde aturar, disse elle, nio quer trabalhar, continua com as feiti-çarias, e já me contaram que ella quer que o meu amo mande-a para a casa do seu senhor; porque — diz ella —• vosmecê está comendo o suor alheio com o traba-lho d'ella.

— Então ainda não te desenganaste, negra? bradeu o fazendeiro; eu vou d&r-te o senhor e o feitiço. Fidélis 1 Pere-grino ! agarrem-zse aquelle demomo.

Balbina não articulou uma queixa, nem uma desculpa, deixou-^e ficsr cem os braços cruzados e a cabeça baixa, Os dois escravos obedeceram e fizeram-a chegar até junto de Coqueiro.

Principiou então uma destas seenas repugnantes e iníquas; os escravos ata-ram os paUos de Balbina e amarraram-a péla cintura a um âoi esteios do terreiro © cada um empunhou um azorrague.

O castigo ia ter logar com a barbari-dade de que são sempre alvo os feiticei-ros, entes mal dietas e execrados pelos homens do sertão.

Pelo braço de Mariquinhas appareceu, porém, no terreiro a agradecida Antonica. Ao ver Balbina em semelhante posição; lavando-se em lagrimas a maça pediu que peraoassam a escrava, que tão prestativa lhe fôra na enfermidade.

O fazendeiro attendeu. — E' assim que se botam a perder os

negros, resmungou Manuel João; mas eu hei de mostrar, ,

Motta Coqueiro ouviu o resmungar do feitor ô resolveu examinar com 03 pro-prios olhos a cansa qus motivava tanto azedume contra Balbina.

O sol era ardente, o calor abrasava. Era a hora em que o canavial inclina as folhas como as permass de um cocar enor-me; em que a cigarra chilra tanto quanto falia um energúmeno, sem pausa, sem termo ; em que a araponga branca, á se-melhança de uncLsedueo d á espuma sobre o verde-mar do CCÃSBO, tina entre a folha-gem do ipê vestido de novo os seus cantos aguios e tristonhos*

Võam as nuvens áe tiés ô gusxãs pian-do, tonto;? de calor, o as tiribas gárrulas coçam as azas de esmerai ia entre a som-bra rarifeita das embaúbas.

Sob a copa das grandes arvores do des-campado, o chão acolchoado da folhas assemelha-se a uma praia cobsría de con-chas de ouro, mas conchas sonoras, como pequenas m&rimbis eujàs cordas dedi-lhasse o teaue sopro da'aragem. E' a multidão dos canarios que ahi se abriga da crueldade da camouia.

No meio da floresta ouveaa-se todos cs sons conhecidos; desde o uivo s&turno da turubiaa em actividade, imitada pela cachoeira que ao longe sa despenha na grota, até o tilintar do martelie na bi-gorna imitado pela araponga; desde o som do cornetim toca io ao de leve, fingida pela alegria curiosa dos gallos da serra, até o gemido profundo, soluçado pelas juritys.

E' a glorificação da sombra pelo mais harmonioso dos córos, e a mais cadencia-da das orchestras, regidos pela natureza.

Os escravos de eito não se abrigavam, porém, senão sob a copa rendada das sambab&ias, e as alas de cafazeiros.

Manejando as enxadas polidas, consoo sachristã:» maneja a camp,;inha na hora da elevação da estia, cff-reoiaat aos céus, entre os cantos monotonos, o maior de todos -os sacrifícios, o grande s&crificia do trabalho,

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OU A PENA. DE MORTE 67

O eito subia rápido e já estava em mais de meio. Lavada em suor Balbina encos-tou a enxada a um cafezeiro e dirigiu-se ao feitor participanào-lhe que ia beber agua.

Dentro de alguns minutos a cabinda estava de volta, para não dar pretexto á explosão da raiva de Manuel João»

— Oh! tia, bradou elle, a agua tinha espinhas ?

— Balbina não demorou, respondeu a preta; o eito ainda não andou nem o cabo de uma enxada. A carreira de café que Balbina limpa^ ficou sem adjutsrio, por-que ella pediu aos seus parceiros. Bal-bina ha de chegar com elles ao fim do eito.

— Vamos I continue oom o seu pala*-vriado ; êu estou ouvindo.

— Vosmecê perguntou, eu respondi» Manuel João incumbiu ao seu rebenque

a contradicta á lógica da escrava, mas ainda não tinha descarregado a segunda lambada, quando foi sustado por um grito*

Motta Coqueiro tinha acompanhado á distancia a gente e, escondido, seguia todos os movimentos do feitor e àa preta Balbina.

Certo de que uma injustiça era a motora do castigo, o homem que só se inspirava na rectidão e que só por ella era severo, indignou-se e fulminou na mesma hora o culpado.

— Sr. Manuel João, está desobrigado da feitoria do meu sitio; eu quero castigos mas não vinganças.

O miserável rapaz ficou por muito tempo estatelado sem poder pronunciar uma única syllaba.

— Mas, meu amo, observou elle por fim», eu não posso sahir hoje d'aqui; não tenho para onde ir. Se meu amo não está sa-tisfeito commigo como feitor, deíxe-me ficar por emquanto como trabalhador.

Motta Coqueiro tinha-se voltado para os escravos e caminhava para elles, si

mulando não ter ou fido ao confuso Ma-nuel João*

— Oh 1 lá, vocês ficam por ora ás or-dens do Fidélis; é com elle que têm de se entender.

Olhando, porém, para o ex-feitor Motta Coqueiro fraqueou na resolução de fazel-o sahir immediatamente do sitio»

O homem, que por vezes tinha-lhe feito emboscadas, cujo rancor pelo fazendeiro era extraordinário, quedava covarde-mente após tão grande desfeita na mais humilde posição.

Tinha o chapéu de lebre sobre o cabo do rebenque e os braços cruzados sobre este.

O rosto exprimia simplesmente o vexa-me que o acabrunhava, mas nem de leve um indicio de cólera; parecia resignado a cumprir a pena, que a sua imprudência havia provocado.

Completamente desarmado pela attitude inesperada do ex-feitor, Matta Coqueiro, querendo dissimular a própria falta de energia, dirigiu-se a elle, dizendo :

— Eu preciso de trabalhadores; se quer ficar, faça o que entender; mas lembro-lhe que o sitio está a cargo do Fidélis.

Era a melhor evasiva encontrada de prompto pelo explosivo, e ao mésmo tempo bondoso coração do fazendeiro.

Em rápido raciocínio convencera-se de que Manuel João não se decidiria a sub-metter-se á auctoridade de um escravo sobre o qual ainda havia pouco tinha po-deres descricion&rios.

A proposta, pensou Motta Coqueiro, irrital-o-ha e assim evitarei que elle con-tinue. Mas a baixeza da caracter do ex-feitor excedia todos os limites imagi-náveis.

— Não importa, não, meu amo; o que eu quero é trabalhar, ao menos até ar-ranjar outra ca&a»

Retiraram-se tombos» o fazendeiro quasi arrependido da severidade com que punira o empregado e este eom o desemb&raçt do homem desbiicso.

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68 MOTTA COQUEIRO

Os pretos ficaram sós, mas nem por isso a actividade diminuiu nem o trabalho des-acalorou-se.

Um desafogo intimo substituiu a pressão moral que os opprimia, e agora podiam livremente medir o esforço para o obrigado labutar, sem fim na vida, como a mon-tanha de Sisipho.

As bagas mornas de suor como que se converteram em estrophes, aladas em sons melancólicos de monotonia pungente, ins-piração de poetas desconhecidos, talvez martyres de igual destino, e por isso mesmo privando a intimidade de todas as tristezas, desillusões, desalentos, quei-xas e suspiros da escravidão.

Um desses cantos era assim :

Nasce a fior, rebenta o fructo, Secca o fructo, a folha cai,

Ai!

Mas a agua do ribeiro Rolando, rolando vai, E se espedaça na grota, Porém das bordas não sai.

Ai!

Corre a enxurrada roncando Grita aos rios:—transbordai!

Ail

Mas a agua do ribeiro Rolando, rolando vai. Suspira e chora na grota, Porém das bordas não sai.

Ai!

Some-se a lua na aurora, No sol a estrella se esvai,

Ai!

Mas a agua do ribeiro Rolando, rolando vai; Em vão soluça na grota, Porque das bordas não sai.

Ai!

Triste sorte a do captivo Seja filho, ou seja pai,

Ai!

E1 triste como o ribeiro Que sempre rolando vai, E se espedaça na grota Porém das bordas não sai,

Ail

A tia Balbina, mais do que nenhum outro, deixava transluzir no semblante o jubilo que lhe ia n'alma. Duas vezes vic-toriosa elevava-se ante o ex-feitor e isto firmava cada vez mais os seus créditos' de invencível.

A's horas do jantar, contentes como bons amigos que se banqueteam, os infe-lizes riam alegremente diante das cuias, e adubavam a refeição com lisonjeiras observações.

— A tia Balbina matou dois coelhos de uma só paulada.

— Tem mão certa. — Quando ella diz uma cousa acon-

tece por farça. A feiticeira recebia prasenteira as ma-

nifestações amistosas dos parceiros, pre-conissndo a protecção dos céus para os innocentes, e a sua punição para os in-justos.

A refeição ia já no fim, quando chegou ao logar o novo feitor, o destemido Fidé-lis, typo completo do negro de fazenda, com todas as suas virtudes e defeitos; " trabalhador e intrigante, supersticioso e vingativo.

Não tiaha-lhe favoneado a vaidade a inopinada distincção que mereceu ao se-nhor, odiava os brancos e sabia que, des-tinguindo ou castigando, o senhor só tem em vista tirar o maior proveito possível de seu escravo.

Recebeu a investidura de feitor pela mesma ràsão porque levantava-se de ma-drugada para a revista, e em seguida tra-balhava do sol nascente ao sol posto; re-

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OU A PENA. DE MORTE 69

cebeu - a porque era escravo e para este só ha uma lei — obedecer.

No mais era uma creatura da tia Bal-bina, que o considerava a ponto de rir se para elle.

Por isso mesmo a siia nomeação foi re-cebida com enthusiasmo pela gente de roça, convencida de qúe ia melhorar de sorte. Assim é que foram cordialmente recebidas as prirceiras palavras da nova auctoridade, pondo em eiercicio as suas funcções. Mandando recomeçar o traba-lho, Fidélis disse com lhanura a seus parceiros:

— Vamos rapazes 1 é preciso mostrar que não é necessário chicote para se fazer o serviço; o negro não é boi, que precisa de carreiro e ferrão.

E os escravos voltaram alegremente aos seus cantos^ e a manejo das suas enxadas operando verdadeiros prodigios de trabalho.

Quando á tardinha o fazendeiro, mon-tado no seu alazão, revistou o serviço do dia, ficou cheio de pasmo: tinha-se feito tres vezes mais do que ordinariamente.

Emquanto de modo tão expressivo os escravos festejavam a sahida do ex fe'tor, este amargava em silencio bem tristes decepcções. Andava como que envolvido n'uma gargalhada geral, desdobrada pelo céu limpido, pela aragem tranquilla, pelas arvores virentes, e o que mais lhe doía, pela própria Mariquinhas.

Era, prrétn, uma gratuita injustiça feita ao caracter da moça, a quem a no-ticia da demissão do feitor, se alguma cousa causou, foi dó.

Corrido diante dos seus proprios olhos, Manuel João não tinha forças para au-sentar-se do sitio; ligava-o ahi o casarão, a imagem de Mariquinhas e a própria mfamia que contra ella praticou.

Acabrunhado pala infelicidade nem ao menos lembrou-se dos seus companheiros e conselheiros; não arredou pé do sitio, temendo talvez q U 9 i s t o lhe custasse a perda do proprio logar de trabalhador,

que lhe dava occasião de vêr a mulher, que o apaixonava.

Foi justamente esse apego a causa da sua prompta expulsão.

Balbina não podia soffrel-o nem mesmo depois de vel-o assim decahido; a sua presença era uma ameaça ao seu bem estar e ao dos seus parceiros» e além d'isso

'ella tinha dado palavra á Carolina de punir o seu abandono. s

Resolveu, portanto, perdei o da uma vez aos olhos de Motta Coqueiro, cousa facílima agora que Fidélis era o feitor da casa.

Uma noite a feiticeira convidou o feitor para a sua senzala e dirigiu-lhe a pa-lavra.

— Balbina, disse ella, queria fallar ao seu parceiro que é hoje feitor.

— Eu quero escutar, tia Balbina, se bem que vosmecê deve estar zangada commigo pelo que se deu n'aquelle dia de manhã no terreiro.

— Balbina não se zanga com o galho de maricá, cheio de espinhos, que ati-raram no caminho, e espetou o pé da negra. Fidélis ia ferir Balbina como o galho de maricá.

— Bem contra a minha vontade, eu juro por DÔUS.

— A cobra que largou a casca, pro-seguiu a feiticeira, nem por isso perde o veneno. Outras escamas novas vem lhe cobrir o corpo e ella continua a seguir a sua vida. O senhor não despediu o feitor para sempre e pôde trocar Manuel João por outro. O mal fica do mesmo feitio.

— Qual 1 não é assim, não, tia Balbina; o senhor está contente com o serviço.

— Tôlol o branco mula de pensar como a mangueira muda de folhas. O de-monio anda nos olhos das filhas do aggre-gado como o canto da coruja que adevinha morte. Quem sabe se é na casa grande, quem sabe se é na senzala do captivo. Fidélis é preto e o branco terá sempre

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má fé com elle. E" preciso ganhar a ami-zade e o respeito âo seu senhor.

A cabinda começou então a dar o plano infallivel de que resultaria a total derrota e perda de Manuel Jcão.

Era o mais simples dos planos; atacal-o pelo coração, que suspirava ardentemente por uma palavra de esperança, por um consolo no perdão.

Carlos se incumbiria de dizer ao ex-feitor que Mariquinhas o esperava para fallar-lhe, e Fidélis trataria de sorprehender com o maior comprometimento a entre-vista.

Balbina reservou-se a parte mais diffi-cil, a de fazer com que Mariquinhas se encontrasse com Manuel João.

Antes, porém, o feitor faria saber ao seu senhor todo o movimento da familia de Chico Benedicto, conhecido pela feiti-ceira.

O plano de Balbina mereceu inteira approvação de Fidélis, que tratou logo de pôr Motta Coqueiro de sobreaviso. O fa-zendeiro não viu, porém, nas communi-cações do feitor mais do que a realisação das suas suspeitas acerca das intenções dos noivos, tão caros ao seu compadre, e mais um motivo para insistir com elle a apressar a construcção da casa longe da em que estava agora.

Estava quasi a fíndar-se o trabalho do embalsamento e brevemente Motta Co-queiro devia retirar-se. Urgia, portanto, tomar todas as providencias para que o sitio ficasse em paz durante a sua au-sência.

— Compadre, disse um dia Motta Co-queiro a Francisco Benedicto; eu vou de-marcar as terras em que você ha de le-vantar a casa.

— A fallar verdade, compadre, respon-deu o aggregado; isto não me está chei-rando bem. Parece qu© me quer pôr fóra de sua casa,e não tem franqueza de dizer.

— E' uma desconfiança para que não lhe dei causa, compadre; o que eu quero

é que você cumpra o trato; no caso con-trario é outra cousa.

O modo brusco pelo qual Francisco Benedicto respondeu ao fszenieiro, e de-pois o amuo com que o tratava, contra-riaram-o extremamente. Motta Coqueiro percebeu que as suas relações estavam estremecidas e desde logo retireu-se tam-bém do familiaridades com a familia do aggregado.,

Antonica voltou de novo á exaltação da sua insensata paixão, e já agora não tratava de oecuital-a. Um dia em que o Vianna veiu á sua casa, rorapeu des-abridamente com elle, pondo assim a des-coberto m feernfaitorias do pai, « respon-deu rudemente a este, dizendo-lho que não o temia, porque teria por si a pro-tecção do fazendeiro.

Arrependida de ter assim procedido, a moça tentou em seguida remediar o mal causado, reatando a amizade entre a sua, familia e o fazendeiro e foi procural-o á essa grande.

A allueinação impedia que Antonfaa pensasse na impropriedade da hora esco-lhida, e Manuel João que, louco também, farejava os arredores do casarão, viu-a sahir e seguiu-a.

Tanto bastou para que os ciúmes vehe-m entes do ex-feitor se reaecendessem nTum incêndio devastador. Então . passeu-lhe pela razão desvairada um argumento cri-minoso, que lhe Explicava o affastâmento e o odío de Mariquinhas.

Antonica tinha tratado núpcias com o vendeiro ; tinha-a visto dar ao seu com-panheiro as mais claras provas de affecto na sempre lembrada noite dá Santo An-tonio, tão cheia de doçuras para elle ; e não obstante o ex-feitor via a noiva do seu amigo acobertar-se com a noite para entrar sosinha na casa grande.

Quem podeha desconvencel-o de que igual scena não era representada pela preferida de sua alma, causa de todos os dissabores que lhe entiesticiam agora a existencia?

MOTTA COQUEIRO

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OU A PENA. DE MORTE 7 1

Esporeado pelo desejo de viagar-se de Motta Coqueiro, o ex-feitor correu até o casarão, mas em vez de bater á porta quedou estatelado.

NVte homem tão malvado quanto ap-prehensivo, a covardia exceda a todos os defeitos moraes, que o convertiam em um ente execrando.

Ponderou talvez quão tremenda era a odiosidade que o seu passo ia provocar e recuou diante d'elle, sam lembrar que, att*nta a • idéa q m fazia da visita da moça á casa grande, era um perjúrio o seu. silencio.

Não foi só p i ra o ex-feitor que a visita áe Antonica teve uma interpretação pouco lisongeira; o próprio Motta Co-queiro deu-lhe uma explicação injusta.

Recorda a 1o-se das informações que acerca da familia da Francisco Benedicto lhe foram ministradas por Fidélis, o fa-zendeiro viu apenas n© acto de Antonica um ardil vergonhoso para que o aggre-gado podesse continuar a residir no ca-sarão.

>

Naturalmente sítencieso para com todos, Motta Coqueiro foi entretanto desabrido para com Antonica, e sem dar credito aos protestos da moça, que se desfazia em prantos e desculpas,concluiu por dizer-lhe:

— O SEU pai faz muito mal em pol-a a serviço de &eu pouco joizo ; eu não sou o homem que elle pensa. Pôde dizer-lhe que se serviu de sráns recursos. Estes são para o Vianna,, o Sebastião e o Manuel João. Arrependido estcu eu de ter consen-tido que e:.le viesse para as minhas terras; bsm razãís tave o Dr. Manhães. Isto já passa de escandalo e eu vou acabar de unia vez.

A visita foi pouco demorada e só alguns minutos haviam decorrido depois que Manuel João assistiu a entrada de Antonica, quando viu a sshir soluçando.

O zeloso ama* ta retirou-se então para casa, e, sem poder, explicar o que vira, perguntava a si mesmo se não Desvaira-va n'um pesadelo. Um recado, que muito

cedo lhe foi transmittido pelo moleque Carlos, veiu tiral-o da anciedade em que se achava.

Mariquinhas convidava-o a ir imme-diatamente encontral-a, em quanto não havia quem os visse, Ella esperava-o por detraz das casinholas dos fundos das sen-zala.

O ex-feitor correu promptamente e C3m effeito ahi encontrou Mariquinhas, graças a tatica da tia Balbina ; o que, porém» não poude gozar foi aeffasão de affectos com que o desgraçado contava,

A cólera irrompeu-lhe erriçada e bru-tal, e Mariquinhas seria por elle estran-gulada, se um soccorro inesperado não o impedisse.

Fidélis apareceu de súbito no momento em que espumando, como um cão hydro-phobo, Manuel João puchando pelas tran-ças de Mariquinhas, fel-a tombar em terra.

O preto não disse uma palavra, mas, vibrando vigorosamente o cabo do reben-que sobre os punhos do aggressor, conte- t ve-o na sanha feroz.

O cobarde daitou a fugir pelo campo do sitio.

VI

A CONSPIRAÇÃO LATENTE

Na verdade foi alumiado por uma boa estrella, quanio fugia miseravelmente, sem reagiu sequer pela palavra contra o castigo que recebeu.

Uns minutos msis de demora ser-lne-hiam mais desastrosos, senão de todo f&taes, porquanto fôra mister haver-se com o amo possante e justiceiro e agora quasi allucinado ao saber do repugnante attentado.

Chegando ao logar em que Mariquinha» tinha sido duplamente desacatada por Ma-nuel João, Motta Coqueiro, ao ver a moça C3m o rosto sumido entre as mãos e a so-luçar inconsolavelmente, accenieu-se em uma cólera tarbilhonante, indómita, as-sombrosa e querendo punir o aggressor,

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que fugira, ordenou,com gritos freneticos, que lhe trouxessem o alazão.

A circumstancia da hora impediu o prompto cumprimento da ordem; ainda o valente animal de largo folego e car-reira tempestuosa pastava namorando com relinchos galanteiadores o lote que o cercava.

Em vão d'ahi a pouco aos repetidos upas do cavalleiro, o alazão, quasi cosido com a gramma, mediu á brida solta o campo do sitio e depois em rapida an-dadura o caminho que ia ter á venda do Vianna.

O brutal aggressor tinha podido occul-tar-se em logar seguro e d'ahi observar sem ser visto todo o movimento dos es-cravos e de Motta Coqueiro para captu-rarem o. ^"Entretanto Manuel João não tinha cor-rido até grande distancia; achava-se a meio caminho da venda e d'ahi podia illudir todas as pesquizas.

Quando estas afrouxaram, Manuel João, deixando o seu escondrijo, cami-nhou cautelosamente até o logar onde o presentimento conduzira também, havia poucas horas, o fazendeiro.

Como uma aranha enorme no centro de immensa teia, Vianna estava no meio da vendola sentado n'um caixão e com o tronco recostado em um sacco de milho.

A ociosidade zumbia-lhe em torno a desaflar-lhe bocejos e pairava-lhe já nas palpebras, que pestanejavam morosa-mente.

Fóra chilravam as cigarras e estalava ao calor, um panno de fructos de mamo-na estendido ao sol.

Manuel João penetrou de um salto no interior da taberna e antes que o vendeiro tivesse tido tempo de espairecer o susto, já o hcspede tinha entrado para uma sa-leta que se abria scbre a sala da venda.

— Veiu alguém procurar me aqui ? per-guntou o ex-feitor.

— Temos novas artes, bregeiro ? quem ê que havia de vir procural-o ? Tu andas

procurando uma farda para estas cos-tas .

A alegria hospitaleira do prudente ven-deiro foi logo obrigada a retrahir-se. Manuel João tomara a palavra e, depois de narrar todos os seus soffrimentcs e torpezas, acabou por interessar vivamente o vendeiro :

— Agora escute bem, seu Vianna, eu ao menos tenho uma gloria, é que hei de vingar-me d'squell9 áemonio. Daixe-me pensar e verá. Elle me fez uma ; ha dê pagar-me com juros,ou não estou fallando com você.

O vendeiro, vivamente impressionado com o qne acabava de ouvir, ficou medi-tando por largo espaço. Tinham-se-lhe extinguido os bocejos,e as palpebras como que se lhe paralysaram» Temia que fosse descoberta a sua familiaridade com Ma-nuel João de quem fôra até certo ponto o instigador.

Diversas vezes o vendeiro levantou os olhos e cravou-os no rosto do ex feitor, mas, encontrando as feições decompostas do amigo, desviou o olhar. Vis ivelmente o Vianna temia emittir a sua opinião.

— Quer dizer-me alguma couza, seu Vianna; falle porque eu ainda tenho ou-vidos.

— Você não se zanga ? — Pdde dizer para ahi. — Bailando verdade, Manuel João,

você foi um desastrado, e a cousa póile custar caro.

— Pois sim; se não fosse por is-o era por aquillo ; o diabo andava-me com sede.

— Mas se você não provocasse. — Deixe passar o tempo; você não ha de

fallar mais d'este modo, pó ie ir pondo as barbas de molho. Lembra-se do dia em que sa Antonica ia-se affegando ?

— Tenho de cdr. — N'esse dia foi que se descobriu qual

das ti es era a que elle estimava ; beijou sa Antonica á vista de todos.

A testa do vendeiro enrugou-se.

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—Dapois, continuou Manuel João, com estes olhos que a terra ha de comer eu vi muitas vezes sa Antonica entrar na casa grande, sosinhae de noite.

— Ora elle é como pai d'ellas; inter-rompeu o vendeiro profundamente des-peitado ; não extranko que ella o procure,

— Mandou uma negra fazer quartos a sa Antonica e, quando esta peiorou, man-dou para lá a Balbina, o estupor da fei-ticeira.

— Tudo isso não prova nada. — E' verdade; mas o que prova é que

ha muito tempo que você pediu sa Anto-nica, e o pai não ata nem desata, e ella mesmo não faz caso de -você.

Manuel João tinha tocado a chaga que sangrava o fingido vendeiro. Vianna sen-tiu-se mordido peias presas afiladas do despeito, quando Antonica maltratou-o positivamente, e desde então ruminava no isolamento a desforra ao dasabrimento da moça.

Fechava~se com esta idéa e não queria vêl-a transpirar ainda a costa da própria vida, pensava que ninguém tinha ainda percebido a friesa de Antonica para com-sigo e por isso contemporisava. Agora porém sabia de improviso que outros olhos, outra perspieacia devassaram a causa das suas meditações de vingança.

— E o que tam você com isso ? excla-mou o vendeiro. Cuide de si e olhe que não lhe sobra tempo.

— Eu já sabia que havia de ficar sosi-nho, atalhou Manuel João ; mas não sou eu quam é o noivo da sa Antonica e por-tanto não sou tambam eu quem mais raiva mette ao capitão. Não tome tento não e eu lhe mostro.

Certojlo effeito das suas palavras, Ma-nuel João retirou se da tabsrna, deixando Vianna entregue ás mais assustadoras conjecturas acerca do seu destino.

No sitio de Motta Coqueiro duas pes-soas padeciam horrivelmente; eram An-tonica e o fazendeiro.

O accaso parecia divertir-se em agglo-

merar contrariedades em torno de Motta Coqueiro e esbarral-o de encontro a ellas.

A cànôa que levara a familia para a cidade tinha voltado e uma carta escripta pela esposa de Coqueiro, veiu collocal-o em posição embaraçosa.

Na carta, a Sra. D. Maria, depois das expansões peculiares a uma ausência de consorte, occupava-se com a moléstia de Carolina, nestes termos :

— A rapariga está salva, graças aos cuidados do medico, mas ainda está muito abatida. Vou, porem, communicar-lhe uma cousa curiosa a respeito :

O medico,admirado do desvello com que tratava-se Carolina, disse-me que ella não o merecia, porque a doença não era na-tural, mas sim provocada pela escrava.

Como era de meu dever interrogu9Í-a e depois de muito negar, confessou por fim que era verdade o que o medico revelou* me, e contou-me o seguinte :

« No dia em quo adoeceu, accordou-se mais cedo do que devia e, para não ser enganada pelo somno e assim faltar a revista,resolveu-se a não^tornar a deitar-se.

Como o luar era claro como o dia, diz ella que, para matar o tempo, sahiu e poz-se a passeiar por perto das casas da fazenda. Assim foi andando até a casa do compadre.

Ahi ^tornou um violento susto porque inesperadamente estacou diante de dois vultos.

Estes, percebendo a sua chegada, cor-reram e ella pouáe reconhecer Manuel João e uma das filhas do compadre, que lhe pareceu ser a Mariquinhas, aquella Mariquinhas, que nds tinhamos por uma santa.

O choque soffrido por Carolina fez-lhe mal e quando voltou para casa sentiu já os primeiros symptomas da moléstia, que quasi matou-a.

Não querendo dar parte de doente, por-que se envergonhava de dizer o que ti-nha, decidiu-se a tratar-se por si mesma,

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tomando um chá que lhe disseram que era bom.

O remedio, porém, longe de fazel-a me-lhorar, dea em resultado o trabalho que temos tido para cural-a, e o susto que tivemos de perdel-a.

Vim depois a saber por uma das mu-camas que Manuel João era amante de Carolina e ella confirmou m'o.

Avalie quanto estes factos devem ter me incommodado. Eu sempre tive escrupulos das relações com a familia do compadre, e agora impressiona-me extraordinaria-mente a lembrança das suas familiari-dades com essa gente.

Ha por força um fundo de verdade na confissão da Carolina e péssima vista fará a sua convivência em uma casa, que dá guarida aos caprichos dos feitores.»

Depois destas considerações e de re-commend&çõss familiares, havia na carta e:.te post-scriptum :

— O embalsamento da madeira parece que não terá fim tão cedo.

Ba primeira leitura Motta Coqueiro comprehendeu apenas que havia esperdi-çado os seus se a ti mentos generosos, quando encarregou-ss espontaneamente de punir o que elle chamava um miserá-vel abuso do ex-feitor.

Também da sua memoria varreu-se a lembrança de M muel João, por isso que o seu acto appareceu lhe então ante a me-moria revestido cem as rudes mas justifi-cáveis asperesas de uma geena violenta de arrufos, - Nascau-lhe, porém, uma repugnância invencível para com a familia do com-padre, a quem por piedade dias antes recomeçara a tratar brandamente.

Um incidente veiu ainda eggravar esta aversão. •Visinho» ás terras 'lo sitio morava Lucio

Ribeiro, alcunhado o capaáocio. Era um mulatinho de vinte e dois annos, fran-zino, de modos bruscos e palavras atre-vidas. Desde longa data entre a familia

de Lucio e Motta Coqueiro reinava a mais irreconciliável desavença.

Lucio vivia da ser votante, uma profis-são muito rendosa e uma posição muito respeitável na roça. Sómente é preciso saber fazer o oflâcio de votante, que tem callos bem doloridos.

O votante é o guarda-costas da aueto-ridade e da influencia do logar; deve expôr por elles a própria vida, como es antigos germanos expunham a sua pelos seus chefes.

Quande algum individuo iacommoda de qualquer forma a influencia ou a auc-toridada, estas esmeram-se em acobertar o seu resentimenèo e impellem contra o individuo votante. — especie de cão de fila que dorme 1/KS á porta.

A díffereaçs entre os dois animaes é que — um ataca de frente, corajosamente, na-valhando e dilacerando com os dentes amolados; — o outro assalta traiçoeira-mente e maneja a espingarda ou a faca, pelas costas da victima.

Lucio, bavia algum tempo, tinha ser-vido para significar a Coqueiro o desa-grado em que tinha incorrido para com o subdelegado de Macabú, honrado con-servador que dominava o logar, e que, para avigorar-lhe a dedicação, ameaçava constantemente, o fiel Lucio com um es-pectro horrendo— a praça.

O resultado obtido paio rapaz foi gsnhar uma inimizado, e esta demonstrava a cla-ramente o fazendeiro negando a Lucio e a todos os seus parentes passagem pelo seu sitio.

A prohibição tinha sido respeitada por muito tetopo, mas agora acontecia o con-trario ; Lucio, a pretexto de visitar Fran-cisco Benedicto, fazia do sitio o seu ca-minho.

ConhecUa por Motfa Coqueiro a quebra da pena qao tinha importo a Lucio, e infirmado de suas relaçõ s com Francisco Benedicto, o fazendeiro fez d'isso um motivo para renovar, mas já

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em tom de intimação, o pedido ao com-padre para que fizesse a sua casa.

— Ouça, compadre, disse elle a Fran-cisco Benedicto; você pensa que é por lhe querer mal que eu insisto em querer que você faça a sua casa; e no entanto quero apenas evitar questões. Ainda hoje disseram-me que o Lucio faz ca-minho pelo sitio e desculpa-se com visitas á sua familia. Eu não posso prohibir que você se dê com este ou aquelle, mas não posso con j&entir que entre pela minha casa dentro um individuo que insultou-me gratuitamente. Em todo caso, quando voltar ao sitio, desejo achal-o mudado.

Francisco Benedicto nada objectou. O silencio de Francisco Benedicto foi

apreciado por Motta Coqueiro a boa parte, e o fazendeiro e atendeu que estava resol-vida a grande questão da mudança.

Por esse lado creu estar descançado e continuou a cuidar nos seus trabalhos para termin&l-os o mais promptamente possivel e deixar o sitio que tanto encom-modava-o agora.

Pensava em Antonica maldizendo a fa-talidade que arraigara tão intensa paixão para a qu#l nem por um fugitivo pensa-mento elle quizera contribuir, e no em-tanto eollaborara com a esperança.

A moça vingava-se do desabrimento com que foi tratada na ultima vez que tinham Miado, deixando delir a sua for-mosura por um» consumpção rspida e fatal.

Como a nuvem negra que, embora car-regada de aguaceiro, deslisa sem ruido pela face do ceu, Antonica, embora aver-gada ao soffrimento, vivia seaa um ai ao lado do eleito dos seus sonhos.

Procurava evital-o sem affsctação, mm uma só esperes* de despeito, mas, ás vezes vencida pelas necessidades do cora-çao e ao mesmo tempo contida pelo orgu-lho do amor despregado, guardava um meio termo que aliciava-lhe os olhos e sopitava-lhe o tormento.

Quando á tardinha o fazendeiro se sen-

tava no terreiro da casa grande ora a ler, ora a fumar distrahidamente, ella collo-cava-se junto da moita que ficava ao lado do casarão e, pelas malhas do trançado de arbustos, contemplava-o extatica. Só a noite tirava a do seu observatorio.

Uma tarde esta contemplação foi per-cebida por Motta Coqueiro, que se apiedou do desditoso affecto a que elle, por sua honra, não podia bafejar.

Teve sinceramente piedade de Antonica e dluas vezes agitou o lenço chamando-a para junto de si.

Uma recordação prohibitiva interpõz-se-lhe, porém, aos sentimentos compas-sivos, lembrou-se da carta de sua esposa, e uma força invencível impeliiu-o a re-lêla .

O só contacto do papel fêl-o estremecer; parecia ter entre mãos uma sentença cruel. O presentimento tornou-lhe maior a avidez da leitura, que ante mão assim abalava-o.

O,? primeiros períodos desfizeram quasi totalmente o estado moral que o abatia, e Motta poule sorrir ás veladas insinua-ções âa sua esposa. Para o fim da carta a impressão foi bem diversa e o fazendeiro chegou a repetir alto os dois períodos.

« Avalie quanto estes factos devem ter me incommodado. Eu sempre tive es-crúpulos das relações com a familia do compadre, e agora impressiona-me extra-ordinariamente a lembrança das suas familiaridades com essa gente.

Ha por força um fundo de verdade na confissão de Carolina e péssima vista fará a sua convivência em uma casa, que dá guarida aos caprichos dos feitores, »

A odiosidaáte de que vivia cercado em Macabu, as provocaçõss de que era alvo para que desorientassem-o áos caminhos da prudência e perdessem-o n'uma pre-cipitação; as calumnias que arrebenta-vam do anonymo, á semelhança de uma nuvem de mosquitos de um pantano, e assediavam-o entre zunidos importunos e mordidela» incommodas; as ciladas

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que a todo o momento enredavam-lhe os passos; o seu viver de isolamento que, averbado de misantropia, abria largo e attrahente campo ás intrigas as mais abstrusas, tudo isso borbulhou da me-moria do fazendeiro e, escoando-se pelos raciocínios exaltados, alagou lhe o cora-ção de uma inundação de fel.

A carta cahiu-lhe com as mãos sobre os joelhos, ao passo que o olhar se fixava no céu.

A pouco e pouco, porém, as rugas da testa e a saliência exagerada das sobran-celhas, que lhe davam uma apparencia de intratabilidade antipathica, foram esvae-cendo-se e o semblante retomou a sym-pathica seriedade, habitual.

E' que a paz da aons ciência asferenava-lhe os temores, e a ingénua confiança da honestidade espancava com os seus cla-rões os phantasmas evocados pelo receio.

Viá-se-lhe na physionomia, mysterioso livro onde a consciência nos escreve dia a dia, hora a hora, a historia de nossos actos; lia-se-lhe na physionomia uma serie de interrogações e respostas, no passar repentino da serenidade para a perturbação.

Ninguém, salvo má vontade extrema, poderia encontramos seus actos para com a fautiilia do aggregado uma nodoasiquer, tinha sabido repellir.a principio com bran-dura e depois virtuosa rudeza, o coração que lhe offerecia, e se alguma culpa tinha na pertinacia do sffecto de Antonica, de-via ser lançada á conta da compaixão.

—Não ha um s<5 coração bem formado que possa por um momento fazer-me se-melhante injustiça, disse convictamente o fazendeiro.

Os olhos abaixaram-ge-lhe de novo so-bre o papel, que parecia magnetisal-o, e, tomando-o machinalmente, Motta Coquei-ro continuou a leitura.

Agora encontrava ahi um balsamo para a ferida que d'ahi mesmo tinha partido. As lettras ameigavam se combinando-se em palavras de amor e caricias ; recor-

dações sagradas das alegrias e saudadas . de seus filhos e além d1 elias gravavam o nome da esposa, o querido nome da com-panheira de infelicidades e de venturas.

Entretanto, como uma cascavel occulta sob flôres, negrejava sob a assignatura o maldoso post-scriptum: Oembalsamento da madeira parece que não terá fim tão cedo»

Apezar da apparente despretenção da phrase, Motta Coqueiro sorprehendeu a suspeita que n^ella delicadamente se en-volvia.

De feito, a moléstia de Antonica tinha occasionado uma demora no trabalho, por isso que era impossível exigir de Fran-cisco Benedicto que abandonasse a filha gravemente enferma e se consagrasse aos interesses do fazendeiro. Demais o proprio Motta Coqueiro não zelou taes in-teresses, porque maior cuidado o absorvia.

A crise moral reappareceu no espirito já abonançado do homem que se infelici-tava pelo bem alheio.

Havia pouco descsnçára na confiança de que ninguém de boa fé poderia julgal-o mal, e agora via diante cie si, represen-tando este juizo, a pessoa por quem devia ser mais conhecido, a sua consorte.

Como explioar-ibe a demora pela mo-léstia de Antonica ? A explicação, que era bastante para justificar Francisco Bene-dicto, era inteiramente deearrasoada para si e serviria apenas para aggravar as suspeitas.

Assoberbado pela difíiculdade da sua posição, Motta Coqueiro perdeu-se n um pélago de soluções, as quaes repeliia logo por improcedentes e compromettedoras.

A noite veiu encontral-o no mesmo logar e longo tempo correu sobre elle, profa-nando com a indifferença da aragem e do luzir das estrellas aquelle padecer injusto.

Havia bem perto alguém que padecia igualmente, alguém que, pela presciencia do amor, advinhava que o fazendeiro soflria.

Era Antonica. Postada no seu ponto le

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observação, ella via sempre Motta Co-queiro retirar-se do terreiro logo ao oahir da noite. Hoje, porém, o f4^«dmro pa-recia nem siquer aporc«b«í'sm do que havia muito que a melanaolid do crepús-culo tinha dado logar ao mortiço treme-luzir das estrellas.

Sem saber como nem porq ue, Ari tónica veiu insensivelmente approximando-se do fazendeiro, e, quando já perto d^eile, teve a dolorosa certeza de que uma dôr pro-funda o acabrunhava e absorvia.

Com os braços cruzados sobre o peito e as palpebras fechadas, a cabeça descahida para traz, Motta Coqueiro jazia em im-mobilidade de cadaver.

E' fácil descobrir qual o fio dos pensa-mentos da amante diante do homem que fascinou-a. O amor leva seu egoismo a attribuir-se todas as felicidades e desven-turas do ente amado; imagina que o riso ou a lagrima só el!e tem força para pro-vocal-os, só elle tem o condão de meta-morphosear a existencia em bulcões ou luares, em abysmos trevosos ou em fir-mamento constellado.

Uma injustiça pungente sangrava ainda o coração de Antonica; ella, que se aban-donava somente á correnteza de uma fascinação, ao deslumbramento de uma paixão, tinha sido accusada como instru-mento ignóbil manejado por seu pai.

Não seria o arrependimento de tão amarga injuria a causa do abatimento do homem que involuntariamente havia monopolisado a tranquiliidade do seu existir ? . . .

Tal pensamento atravessou talvez o cerebro da moça, e, como ainda mais do que as próprias, torturavam-lhe as dôres do fazendeiro, Antonica approximou-se para levar lhe o perdão.

Faltaram-lhe, porém, por muito tempo as forças ; a voz sumia-se-lhe, emquanto que os lábios eram attrahidos pela palli-dez da fronte do pensativo.

Afinal, derramando uma ternura infi-nita, Antonica murmurou timidamente.

— SOFF REMUITOJ TEU ESFÂTSO 1 <PLSAA 3B» faz mal!

A voz da moça repassam ss s ^ phyitro irresistível de p a i x ã o z m o Bor-dão dan-ic-se espontâneo, sem m mmos, uma supplica; era o consolo a iiLtíbs^r que o recebe&sam as ma.gnas sobrancei-ras que se fee&âvam no propilo varar , como &e nisto sa receissseau

Também o íãas&áeirô, como se já espe-rasse a inopinada e^Dsoíação, responieu-lhe sem scbresalto,

— Sim, padeço maiio. A resposta foi recolhida na tepidez de

um suspiro, ao passo que a anciedaáa apressava-se em ouvir uma confissão 11-songeira.

— E sou eu a causa ! eu que não tenho juizo 1 Meu Deus, para que me fez tão má!

As exclamações de Antonica, se é pos-sível dizel-o, eram feitas de lagrimas volatilisadas'; cunhavam-as uma implora-ção suave e uma piedade indisível. E como não ser de outro modo se ella, que daria, para que o fazendeiro tivesse um sorriso bom, a sua mocidade brunida pela formosura, os seus sonhos que ainda não tinham voado ao limiar dcs vinte annos; se ella, amante apaixonada, tinha-o ante os seus olhos... soffrendo.

As palavras da moça não for»m res-pondidas e Motta Coqueiro en^urdecia-se na lethargia da dôr.

E eu que, ha tanto tempo, estou a vêl-o d'alli, continuou Antonica, e que não descobri logo que scffria. Não estava como nos outros dias, e eu não vim. Pensei que estava zangado commigo. Só fiquei certa de que seu capitão estava triste, porque já tão noite e ainda está aqui fóra.

Como quem desperta por uma sacudidela brutal, o fazendeiro levantou-se e correu os olhos em torno de si, e depois para as mãos, em uma das quaes tinha a carta amarrotada.

Antonica, assustada por esses movi-mentos, ficou immovel, como se os pés se

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lha tivesâsín grudado aO MG, ô já fcome-çava a reprehender-se da nova imprttdeh-c iá , èspérfiiiiO hífta dâS éíplosSas de geniOj tãd fáêeis em Mattâ Coqueiro»

Mas em ve« da cansara temida* ehcsh* trdu a bêíievòlôíi&iãj e se as ffiãosj sè 09 gastos hão se avelludaram em affag^ss* a voz transudou uma dompaikã& grata 0 amiga.

— Yôòê fâsí-me pénâí diise Motta Co-queiro | não eohhècà a Vidã$ é Yâi até 0 precipicio, querendo ãi-i-afetai* cômsigtf aquelles a quem tístMa*. Déifca-ffiè em jtôzi Mtôíiisá. Mâgti§m melhor £ue eu |dâe avaliar o seu séffrimeatoj mas tealld dêceâsidâde dê sé? cMel. O Con-trario era a minha deshonra, 0 déâaso-eegò dê tòda a íâihhâ Vidà ê A Sik des-g r a ^ j Ahtoâidâ; Haja vseê âgaria satis» feita cêta as tíiiáhas CaíMâs j aáâtíiiiã, qtiãnâò òs sétiã $mis líié sém as gôftaãí qhâhde m m apshta^èíi^a éhtrè mofas e èsêarfieô⧠teria de ãm&l-diçoar-rile; Neffi Vdêê iiáagiâa qti&hta »1-gumâs palavras qda lhê télhò dito* éfcã* tam-me em áríepéndiMêntos Jtdgd-mê cfimiúôSô áhtè Ôã ffietis filhos ê ffiiiiha mtílhéf, es èntrétâxlta ã miôhâ m i m á pfer si haO é sehão â dê ttiftf âi. TéfihÔ dd dê út

Mas, meu Deus. desgi^â ê a íni-íiiia qtiê hãtí pòssô nem esstàr àd pê de vôsmèõê um iúfetàtitêj sèfn quê tògd mê mande embora; seu cá|)ltld pÓdê fícii? Horas. inteiras a Olhar pára um fcâpei e fite põdô tóê Véi* nêífl hm ínsímtiúM.

Busêafidé éóMmotef, a moça MO fi?' mais do que âvitar âindâ mais na meatê de Goquéiftí a íespofisabilidadô que lhô cabia fia átiéáâ quê se páfesata.

o papéi píèfôriíiô era a earta êm que estava gravada a suspeita da sonâMê dtS fazéadêírOi e íémbral-o importava justi-fidar a delicada fepféhéhsla qiiê ho p á p l oocúltata.

— Não devo cOtíSèfitir, èij&tiritiôu O fa-zendeiro, porque tenho familia* pôíqué téáhS digaidadéi Basta já âe tíOmpFóffle-timehtOS; é & sua d iflifíhft freídigSò. Bõ

alguém âppareeesse agoia, este papfei que você vê teriá toda a razão, e minha mulher poderia com justiça étecusár-mé»

— 1 que tem sua mulher e seus filhos com a M&ha amizade? Pois que me matetâ.

— Louquinha, faz-me pena» — {'aòienciai mas é assim j í^atem^e

Sáqui2érem,mas hei de estimai o sempm O silèáfeiô permeiou a tristeza â'esse&

dois cêra|õôs. Passado algum tempo5 Motta Coquèird}

corâo se hoUvessê encontrado uma solu-ção decisiva para a Sua situação^ pegou da mão dè Antonica e pefgdiitou-lhe com voz commovida.

^ Eátão efetima^me muito^ Antòhitía. A mú^a respondei! movendo afíitma-

tivamsfité a eabi^ât — E é é&p&É tazer tudo qua&to m

lhê pegtk — BiM, rê§^biiaêti aiê^eméãté â&tô4

nica. — i ' o maior saerifieio da tiia vidâ,

màs àêrá tua tràhquillidàaê mMs tãMê* e o socego dos meus. £ramette faèer-me ?

^ Digâi digá já-. Eil jtiío que htíi de velar pôr fci*

éòihb ãô fbsfeô SèU gaij mas Vôcô ha dê fazêfr à vontade ã sttâ fáfnilia, ácôôitando O bâsâmêhtò cbffl O Viahha.

— Ah 1 mètt Dêtiô 4, iato é âô Mais» Emc[hafitÔ Múttâ Coqueiro àáãim dedi-

davâ-Sê ab zelo |>elft vépúmçU dê Anta' •Màú e p i a tíahquillidâdâ do Jâr» trè» hòtoéris t r a t à t a k da miáar sôm raidô 0 edifício de paz que elle tentava côfiStruiP êm ròda de sii

tím jurafâénto de muttm defôía Viíieti-lâva a reciproca dedicação colligâhd0-lhè8 m esfói^cs. Eãsês homêns mm. Mishuel João, Sebastião Baptista Ott melhor SB* bfestião í3tííéira--app6ÍÍiao què 0 Violeiro hérdoú a hm SéU ahtigb amo; e 0 Viann»» o mais conhecido dos véhdèitos d& visi» nhança.

O e i fôitòr dó Sitio de Mâtfàbtt, o fcóvárde Mahtièl ú mMé ôonspii^v&m

78 MOTTA COQUEIRO

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uifla causa rasoavei; tihMâl lévâid &ití-famia â caga do sgg^egâdõ ê téffiiéUl ã punição d'ès.gé Atito, ptmiçl© qtíe élléá iMà» gioavam tremenda, porque éspê£aVaifi-& fttltfcinâdã ^ Motta COqtieiíO.

A sittíaçlo do f i&léifO ãggfíWatfâ-âe ás férffia qdé tfcta qtialquôr páítè <|tié èllê olhasse não déáeèrtihâfã é. perigos. • -

Bui Uffiá dás éfitíefistâã êOttt CM^iiiina O ânimo âestémidô âú viéMrO hí*VÍ& éii-fráquscido e baquéiádo MâémOi

S&staâd@4$fò intãmpastitaáiénté as pansões, cort&ndó-llé de• HáS gêlpè & fiS dos galanteios" seductores, A í&éç& féí* gunWti-líiQ Bm dia:

— Yoeê pensá qfie ê Mtíité feltó ? Sebastião riu se com a bóa tdhtádé dé

quem tem p&r hdriáòiSté $ £ò&& dá§is-sembraáo dé utíiá áffôiçãd qtíé ãédá,< géiSI pedir, coasb retri&uiçltf máM do que fim* hora de ts©m ftttufofip, ê áíg&iiiaâ défldéS» cefídenciâs ãMgãs.

•r* Bia péfgúntft eg-tá* GMfitiáíiAy pondeu Sebastião; âetttí erti teíihd íaZãd para yiêttmt? de èxftra aBsÈneirâ.

O semblante -jEttetOfilo dé dfiiqfitóM in«ffídtítt-sé dát tfifctezâ eotnndoVetíté àé desesperação représâ. Era íiiátef eMrar &m u&a revelação dkfte?éââr <pe gertaf-baria nsíessártasacíeiSté' a fefóci-áâdé. alar* deadss âlácfétfíeâté plOifeU ãí&afité,

A delicadesa do áfi&tOr pe<!iÉ-Íhe qtie Sé calaÊse^OíjÈíelmdíe d® pu^Oí acOvardaVa-a, mas o perigo da suâ poáiçio dé iHfiâ-fâ* tiailia exigia que elía fiasse o áacíiáeio e desvendasse aos olhos» de Sebastião o ftí-turo que a esperara.

— Você vive feliz, hão é verdade ? ge-meu a voz dá íhoçiíSpois eu vivo bem triâté.

— Ora mst agora, M Chiquiíihá; ê quem foi que matott ás guâs pitem í

Esta nova resposta éè gaftastiSõ ôOii-vencia á Wtiç* ã&qteUmn longe estavá do pensamento ã® se&amâttté aquilatar st extensão da desgraça que ea-haumdhe a pouco e pouco ai esisttfnclafc

Áê íágrifcal déatífíêiârâm-líiê © êoff f iíhM-to que ptdr ihuitd têmptf áe íófeíliítfa ââ

á éeffiéihâú^à dê iitfi beãótiío fiôgrd no ôatlicô de tifriâ a#&sáà.

Apôí lM grôlSas ê tardââ ligriffiáê êrârfí a èèriè dêsâoíâdá dá^ âídêfítêfe illusõôs dé Ohf^OrM, tiòjé M6§ câdâferèá j êomãffi Síriadaè ^élô Sàtígtté de tiffi cõrâçáo úieè-cerado; impunham respêito, ê tésteMtt-fiháfâffitâ êifiééHdadê áòf de quém as chorava.

Selbãístiâíí fôi õâím|fâ§sifõ Mõ èiitíôfítro dâ tdfttifâ qtlé tâtittí âíquèfcfávã á ffiO^á.

Conchegou amOrOsââSéiité aô sêu ô tídn-cO dMittâgfèSiáõ dê Ôíiipiãhá, é áêitdu-im & éâbèffà sõftfê 6 âéd hétffiWd;

— "Vejâm êdistO, dilêé èílê têtflâiííêâté; éâíâ aíílicta âisiM é nió nieí diàse Máâ . Diga ,quem é a causa de seu chorô | êtí Az-IM álguMâ éotíâa t àlgúéM ihé óffèiSdêti t

¥tôrmpãã9 éÊi SOÍufôi «f ig t íê t tô^ qtiô eht íécOítáfárà-ihé m {raíàVrâá, Chi-quinha arrancou do intimo de êíiâ álíríá tíéte grito déèOladôj qtie íhé máltràtâVâ O cúfãÇiòj eôíâo se ffié titíiá Mlèt éntffc vaáâ.

^ Mú ê isto ; ê tiiÉsi dmgMÇãdã ; hé já cfoiâ mesieá taívéz quê m êótf fhãi.

A dôr dé ÕM^uiàíid í^pêiChtití intéiiSá tíó tíôrd0Q do ttóleiío ' éía a e^fl^ão fòl-caõiôà qtíé, a O pàsssõ quê ésbfâséiâ a ói-à-téfáj tíõbfe o éspsíço dê fujEâO,- olátf ééá e vOMit^â Vê^âlélhésé fâz eàfò&áétíèf todd úêólú m ãmeâéfi,

rnpêisf dê ttmà l&ngá pâtisà, qtíe péáOti QÔIMÔ itmâ ba f t â dé férrô sôbré <x ôi&p ção da moça, Sebastião &m úê olfio^bâi-xos e á voz afinada na entoação da àh-gtistiá.

— Só há uni tmeâíOi mnfmióH ; íú* gimôs.

— Fíigif, maá túêa p i , méu irmão hão de peréegtííMíôS; á â s VOeÔ ptôtíiêtm câsatr^e é&mmígò. Md queí-O fugií, nãd devo.

O violei fd estâva dé /eito? cotômovido, & nlo érâ coítí 0 fim de fuítaí-sé á réã-ponsábilidade c(aé fírepuzeíA o álvitté X

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80 MOTTA COQUEIRO

Chiquinha; era o meio mais expedito para sabtrahil a ás iras da familia.

— Você disse muito bem, sá Chiquinha, ó uma desgraça, soluçou o violeiro. O que não vai ser de nós ; esse maldito capitão, seu pai; é uma desgraça, e o único re-medio ó este, fugir, Mais tarde eu reme-diarei o mal, juro. Prometta-me que sa-hirá d'esta casa.

— E' o que quizer, respondeu Chiqui-nha; eu já não sai o qua faço.

Desde então os amantes esperavam só-mente a opport unida de para levar a effeito o expediente desesperado.

O violeiro, certo da gravidade do passo que ia dar, julgou-se desde logo irreme-diavelmente perdido aos olhos de Motta Coqueiro e ateve se resignado-se ao seu infortúnio.

N'este estado de espirito foram encon-tral-o no dia em que Manuel João tinha sido forçado peias circumstancias a dei-xar o sitio.

Sebastião era a cabeça que dirigia to-dos os planos astuciosos do triunvirato. De improviso elle achava os meios para obviarem-se dificuldades consideradas insuperáveis, e além d'jsso integrava com a coragem temeraria a covàrdia dos seus companheiros. Era o Tyrteu no meio d'aquelles dois lacedemonios ir resolutos.

Manuel João procurou o seu valioso amigo sómente na qualidade de hospede, porquanto não tinha outra pessoa a quem recorresse. Também limitou-se a narrar

- o que se passava com elle, deixando á margem as relações do fazendeiro com Antonica.

Vingava-se d'esta sorte do vendeiro que, em vez de consolal-o na sua desventura, achara azada cccasião para censural-ò. Certo de que o Vianna nada resolveria por si só, encobrir a Sebastião o que dizia respeito ao vendeiro importava tor-tural-o ao menos por alguns dias.

Mas infelizmente para o ex-feitor o seu calculo foi de relance burlado; duas horas depois da sua chegada á choupana do

amigo, o Vianna gritava á porta o fami-liar— olé âe casa 1 e entregava ao critério do protector e guia ccmmum as suas ma-guas e sustos.

O violeiro ouviu cam o maior sangue frio a exposição dos acontecimentos que se atropeliavam a favor áos tres con-jurados, respondendo apenas á saciedade do Vianna com um frequente—continue.

Quando Vianna concluiu a narração a afflictissxmo começou a dar aos -diabos o pensamento de possuir Antonica, o vio-leiro desatou n'uma gargalhada estri-dente e franca e exclamou com uma. alegria feroz.

— Então o Thebas está pelo beiço pela Antonica ! E' verdade mesmo, o diabo não abandona os seus.

Não era isto o que os dois interessados esperavam ouvir de Sebastião; a calma do violeiro percudiu-lhes a derradeira esperança e ambos bradaram furiosos:

— Com os diabos I você está sempre a vêr motivo para risadas, mesmo quando o caso não é para isto.

— Pois o que é que vocês querem, con-tinuou Sebastião, que não parava de rir-se; estou com o melro seguro. "Vocês vão ver.

Apó3 a expansão estrondosa, que sobre-maneira desnorteava os dois timoratos conjurados; Sebastião, assumindo um ar grave,poz-se a pasaeiar de um para o outro lado da sala desornada.

Durou ptiuco a meditação. Acercando-se de Vianna disse o violeiro seriamente :

— Isto de amisade do mais arranjado com o pobre ó sempre uma boa pulha. Diga portanto cá, seu Vianna ; você quer gastar alguma cousa ou não quer ?

— Assim como vão as cousas, respon-deu o vendeiro, ha de ir tudo pelos ares. Estou prompto para a despeza.

— Pois dê-me de cinco a dez mil réis, e deixe rolar o dado por minha conta. Vá

; para a sua bodega sem medo, porque sé o individuo não lhe mandar tirar a vida pelos escravos, ha de pagar-nos com lín-gua de palmo.

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— Mas o que é que você vai fazer ? homem.

— Isto é segredo, esaorrupiche o cobre, que ê o que; serve.

Satisfeita, não sem escrupulos e pezar, a exigencia de Sebastião, o vendeiro tor-nou para a sua vendola, cujas portas teve a precaução de especar solida e cuidado-samente.

No dia seguinte pela manhã, o violeiro, esgsnchado sobre a ossada do — Suspiro, ao qual o micuim convertera o couro em um archipelago, marchava para a casa de Lucio Ribeiro.

Depois doscumprimentosao capaãocio, o recem-chegado, arranjando uma entoa-ção de gracejo, perguntou-lhe de súbito:

—Então como vai de amizade com o tútú cá da terra, o grande capitão ?

—Mudemos de conversa, respondeu Lu-cio ; aquillo é bise asinha que nunes me passou da garganta.

—Isto é fumaça, seu Lucio ; se o ho-mem ficar com o governo, você ha de mudar.

—Veremos ; mas alli fica a serra dos Olhos d'Agua e a minha espingarda não •nega fogo.

— E se alguém mostrasse um meio de livral-o do bicho, você tinha coragem ?

— Experimente , respondeu resoluta-mente o capadocio.

—Se tens coragem, meu velho, põe os arreios ao teu panga e vamos ao Lycerio. Tu és também da autoridade e o Lycerio é unha e cama do subdelegado.

Dentro em alguns momentos os dois trigueiros pernosticos marchavam em di-recção á casa do amigo do subdelegado.

Joaquim Lycerio, conhecido pelo al-cunha cigano, tinha grande influencia na localidade, peia sua dupla posição de ne-gociante e chicaneiro.

Os moradores do sertão confiavam-lhe todas as suas causas e embora as perdes-sem, diziam convictos a seu respeito :

— Aquilio ó que é um homem para pen-dências.

0

Branco, elle não desdenhava sentar-se á mesa com os genuinos da raça africana, nem com os filhos do seu cruzamento; fazia este sacrifício a bem de seu negocio. Também era elle quem apresentava no mercado campista o melhor peixe sal-preso da Lagoa Feia, e a melhor gara-poca das mattas de Macabú. Trabalha-vam-lhe a rasto de barato.

Activo, diligente, intrigante, tudo a bem do negocio, estava sempre trabalhando, porque dizia elle—a familia vai crescendo, é preciso aguentai-a. o

Devotado de alma ao subdelegado, a quem chamava— o meu homem—só havia uma âffeição que lhé era mais cara— qualquer transacção commercial por me-nor que fosse; a esta consagrava se em alma e corpo.

Quem fosse a Lycerio e lhe acenasse com uma nt ta do thesouro ou do banco, podia descançar, que, se ella chegasse para o preço, estava servido.

Tal modo de pensar congraçava em torno do negociante rabula uma clientella immensa e devotada.

A sua casa de negocio, sortida de todos os generos, desde o medicamento até a carne de xarque, desde a ferragem até as finas cassas, adaptava-se ao verso e * reverso da vida humana : era para a saúde e para a enfermidade.

Alli reunia-se a guapa rapasia do logar, os galhardos dançadores do' fado, amantes do murro, das brigas de gallo e apostas de natação, e o emporio, graças a este ajuntamento diário, assemelhava-se a uma officina de toques e cantilenas.

Lycerio animava a freguezia, e demo-rava com aneedotas e intrigas aquelles que se queriam afiastar; a causa era o borrador, o seu caro borrador.

Taes eram homem e casa procurados pelo violeiro para desfechar o «golpe em' Motta Coqueiro. .

Recebido pela amabilidade de Lycerio, o violeiro cortou as 'expansões do nego-ciante, bradando;

OU A PENA DE MORTE 8 1

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82 MOTTA COQUEIRO

— Êta l i , meu branco; eu não vim para á prosa, mas para serviço ; aqui está uma de cinco e eatre ps,r, o eseriptorio.

— È' requerimento, seu diabo, já sei; alguma citação para conciliar ; eu tem-pero a cousà.

— Qual reiuerimattto, interrompeu Lu-cio ; é uma carta de recomméndação pára o bom capitão, o nosso amigo Çtqueiro.

— Caspite ! exclamou Lycerio, que per-cebia o sentido dss palavras de Lucio, e a quem é que se vai recommendar & joíâ í

—• A' pessoa que ha de gostar muito da festa ; porque o bicho deu em .passari-nhem) cU pois dos quarenta ; quero fe-commendal-o a quem se interessa por esta nova.

Rindo muito amistosamente, os tres in-terlocutores, depois de uma libação a um5

copo de vinho, entraram para o escripto-rio de Lycerio.

VII i

AS INTRIGAS

De volta <?a casa ds Lycerio, o violeiro" congregou os seus companheiros parai effectuar a distribuição dos papeis, qué não tardaram muito a ser desempenhai os;

As operações deviam começar com á partida de Motta C cqueiro ps ra Campes é esta effectuou-se alguns dias depois, pelà influencia dolorosa que teve no espirito do fazendeiro a cai ta de sua esposa,

N» véspera da partida, protegido pelá 08rteza que todas as pessoas do sitio nu-triam de que elle não ousaria approximar-S3 do seu ex-amó, Manuel João conseguiu f iliar a Carles.

Vinha pedir-lhe uma coisa muito sim> pies: ser poitador de uma carta para á Sra. D. Maria.

Um generoso porte espiou iramedial-tamente a boa vontade de Carlos que, não obstante, tev& medo da empreza por uma circumstancia que lhe foi addicio-nada. . .

— V ocê leva a carta} disse Manuel João, e lá um dia deixa-a ficar na cestinha da

costura ou em qualquer outra cousa em que a senhora tenha de mexer.

— Qu^l o que, seu Manuel J /ão, eu en-trego mesmo na mão da senhora; é mais certo.

— E* verdade, mas como o amo anda. zangado com migo pôde se aborrecer com você por levar uma carta minha á se-nhora, e a final você vem a soffrer.

.0 moleque, lembrando-se da ameaça do seu senhor na noite da primeira entrevista de Antonita, aceitou plenamente a obser-vação, e concordou com o expediente mo»trado pelo'ex-feitor para que a carta chegasse so seu destino.

Estava desfechado o primeiro golpe, cuja profun Jidide o tempo e os aconteci-mentos incumbirarn-te de mostrar.

A opportuaidade para o segundo não tardou a apresentar-se.

Ofendido peia intimação de Motta Co-queiro, o aggregado tratou de angariar elementos para a construcção da casar e alguns dias depois, graças a emprestimos de dinheiro por p.rte do subdelegado e dos serviços cfferecid^s por Lucio, o ins-pector André, Sebastião e Vianna, come-çaram-se a fincar os esteios.

Lisonjeado pelo acolhimento que rece-beu dos seus visinhos, F r a n c i s c o Bene-dicto convenoeu-sa logo, o que era fácil ao seu caracter, eátar invulnerável diante do seu compadre, fossem quaesquer os abusos que para contrarial-o praticasse.

Assim, contra a vontade do feitor, e zombando até das ameaças d'e«te, lançou mão de bois do sitio para carregar a ma-deira que tinha necessidade e provia-se dos cereaes de que precisava nas roças do seu compadre.

Essas represalias continuadas punham patente a mudança de F r anc i s co Benedicto no modo de pensar a lespaito do seu pro-tector, e pela sua gravidade mesma não podiam passar desapercebidas aos olhos do violeiro.

O vendeiro foi logo posto em campo para extremar de uma vez esta ^situação.

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OU A PENA DE MORTE 83

Já a nova essa, como um grande es^ queleto, erguia-se completa no seu madei-ramento. At» lad o à^ella aval t ova ca gran des pilhas da sapâ, que era,m destinadas a c u b r i r e m a Cumieira; e junto das pi-lhas, em- enormes buracos, revolviam-sô as enxadas amassando o barro para su-pgpar ss paredes.

O vendeiro, que tinha contribuído assaz para a rapida promptfficação da casa, travou conversa com Francisco Benedic-' to a respeito do casamento.

— Então, seu Chico, é d^sia ou áa outra que ha de s ahir o casamento.

— A sahir, seu Vianna, ha de ser d'aqui, com o favor de D^us. Aquellâ amaldiçoada , casa não me vê mais dentro de oito dias,

— Está-lfee esm muita gana hoje, mas já gostou bem d'ella.

— O» passado, passado. Hoje até me parece que ;.se o casamento sahisse de lá vocês haviam de ser infelizes, tem-me acontecido alli o diabo; estou com os ca-belios brancos.

— Na verdade deu-lhe agua pela barba. — Aíoecêu-me a Antonica proseguitt

Francisco Banèdicto, que desde a queda no rio nunca mais teve saúde ; Chiquinha está que parece opllada,e se ella já tivesse ido á igreja bem se podia dizer ao marido que era tempo da tratar das toucas de lã; a minha Mariquinhas, que era d'antes um gaturamo, que passava os dias can-tando, an la-me agora com uma cara de poucos amigos, bisonha e aborrecida.

— Mas então posso contar com o sim da sua parte, seu Chico ? perguntou Vianna.

— Palavra de hoara 1 e vai vêr corno isto se decide hoje, respondeu o aggre-gado.

A' noite voltaram para o casarão é Francisco Benedicto, chamando sua mu-lher, dúse-lhe que tratasse de vêr o que se havia de fazer para os enxovaes de Antonica.

Á moça, que estava cosendo a um esnto da sala, interveiu dissimuladamente na conversa.

— MÍSS eu não tenho vontade de ca-zar-me, papai; estou muito creança ainda.

— Cra vá d'ahi, atalhou bruscamente Francisco Benedicto ; quem sabe se você deve ou não deve casar sou eu ; pôde metter a viola no saçco.

O que passou no coração de Antonica. é ifâdiscriptivel, mas, a julgar pelo Seu semblante, o golpe foi tremendo. Ella nada respondeu, mas o seu olhar fulminou, com a indignação e o despreso, o pertur-bado vendeiro.

Convencido de que Antonica submetter-se-hia á vontade de seu pai, Vianna es-merava se em multiplicar obséquios ao aggregado, todos os dias de manhã vinha en^ontrar-sa com elle no casarão e d'ahi acompanhava-o á casa nova, onde não se poupava no trabalho do embarréamento.

Era chegado o dia em que se devia dar a ultima de mão á obra ; faltava apenas embarrear algumas paredes interiores e assentar as portas e janellas, que não eram muitas.

Todos os amigos de Francisco Benedicto apresentaram se logo de manhãsinha para, em companhia da familia d'este, festejar o final da construcvão.

Em ra acho festivo partiram para a nova casa, acompanhados pelo aggregado, sua mulher, o Juca e Mariquinhas. No casa-rão ficaram Antonica e Chiquinha, cujo estado de saúde impedia-as de caminha-rem através do campo, das picadas dos capoeii ões ainda orvalhados.

Pouco tempo depois da partida do ran-cho, chegou ao casarão, silencioso, o ven-deiro que trazia as mãos carregadas de garrafas e o coração cheio de alegria.

Antonica véiu recebel-o á porta e noti-ciou lhe seecamente a partida da familia.

Contrariado pala friesa da recepção, Vianna apressou-se em despedir-se. Quan-do já se havia affastado alguns passos do casarão, Antonica fèl-o parar e aproxi

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MOTTA COQUEIRO 84

mou-se d'elle, dissimulando o Sflio que lho gerara a persistência do vendeiro no desejo de recebei a comò esposa.

— Ohl seu Vianna, exclamou ella, vosmecê está se enganando por seu gosto, ouvindo o que papai lhe diz. Eu não quero esse casamento; e não se deve obrigar ninguém para esse fim.

— Isto é criançada que ha de acabar com o tempo, sa Antonica; respondeu Vianna dando ás suas palavras uma pun gente entoação de mofa.—Quer saber, eu apanhei outro dia uma jurity no ninho; íevei-a para casa, e prendia-a n'um vi-veiro. Que bonito passaro ê a jurity, não é ? Pois esteve bravo e quasi morreu, tanto bateu com a cabeça nas taboas do viveiro. Hoje está mansinho como um cordeiro e macio como um velludo. As mulheres todas fazem como as juritys; amansam-se. Bom dia, sá Antonica

A dôr de tamanho escarneo encheu de desanimo a debilitada Antonica, A's conti-nuas vigilies pranteiadas, que eram o seu viver desde que ouviu a seu pai a senten-ça que tanto lhe torturava o coração, a moça debatia-se em meio das mais atro-zes angustias.

De um lado flagellava-lhe o seu amor prudentemente regeitado, de outro a im-posição cruel feita á toda a sua vida. Do meio d'esse flagello elevava-se-lhe o espi-rito para logo desmaiar em acerbas in-consequencias

Já não sabia resolver-se, boiava á mer-cê de esperanças, & feição de illusoes ca-ducas. Imaginara muitas vezes que as suas lagrimas teriam forças para conven-cer o vendeiro de que elle só conseguiria fazer a sua infelicidade, e então deleitava em sonhar a piedade d W e homem com-movendo-se diante da sua sinceridade, e salvando a de um martyrio sem fim.

Assim, pois, em vez de romper como era de esperar do seu génio fogoso, Anto-nica apenas desculpou-se e supplicou.

— Nem sempre as juritys se amansam, á3 vezes as coitadas morrem de desespero.

Pensa que eu não lhe estimo ? E máu pensar; não lhe estimaria mais uma irmã. Pois se vosmecê foi sempre bom para mim e a prova é gostar ainda de uma pessoa que já lhe maltratou. Mas escute, eu juro-lhe por Deus que nos está ouvindo, se eu pudesse... mas não está em mim, ê um feitiço; tenha dó, vosmecê teve mãi e pai, pelo amor que lhes teve me perdôe. E' que eu nunca viveria con-tente.

Estavam claramente provadas as affir-mações de Manuel João; o vendeiro ouviu no soluçar da supp!ica de Antanica a reve-lação de um amor profundo, arraigado, mortífero.

Não era igual a esta a affeição que elle votava á moça; era uma cousa que im-pressionava ás vezes, mas que nunca lhe „ ensombrara a razão ssq jer um momento; nunca lhe arrancara lagrimas e soluços; nunca lhe diminuíra ao menos o apetite.

Molestou-o, ê verdade, o mau trato que recebeu da sua noiva, mas do mesmo modo que o melestava a firmeza de um freguez quando, para não chegar ao preço, ia fazer negocio em outra ven<ta. Demais elle não pensou nunca em triumphar senão em virtude da sua posição de nego-ciante e credor do pai de Antonica. O seu casamento foi sempre, no seu entender, um problema que, mais do que o coração, a gaveta do seu balcão podia render.

Ao dar de face Com esse mundo de ago-nias plangentes, a sua innata grosseria, a sua alma semelhante ás prateleiras da sua vendola, pouso e attracção do mosqueiro, a sua falta de sensibilidade emfim só en-controu uma pergunta bestial, e uma condicção miserável.

— E' a quem é então que sa Antonica estima? Se me disser o nome talvez eu ceda.

O pudor da moça cobriu com um veu roseo o nome pedido, e o seu olhar in-fiammado, convergindo para o collo, para esse espesso involucro do coração, fazia pensar na espada de fogo do archanjo

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OU A PENA DE MORTE 8 5

velando ãs portas do Eden. M ® » P»-S S e r a o corado de Antonica habitado ««la imagem do fazendeiro, P ò p X > silencio da infeliz dea aio a UI!— EntSífnsítèmõs nada feito; ria des-d e n h o s a m e n t e 0 vendeiro. Afinal nSo v a . e a p » a W mysterio d-a<,uUlo que todo

o mundo sabe. „ Qaem? interrogou!Antonica, é um

segredo só meu, e por isso mesmo deve-se ter dó. .

Sim, eu tenho dó de seu .pai, que vive enganado e deshonrado pélò mal-vado do capitão. _

— E' fklso; é uma calumaia. Eu 3a não lhe paço nada. Faça o que quizer. Digo-lhe só isto : não hei de dobrar me á vontade de meu pai; não hei de ir atu-rar as suas maldades, seu malvado; só se Quizer c?sar com uma defunta.

Vianna pez se a rir desaforadamente, e a sácudir o corpo com um movimento convulso; depois parou de chofre e per-guntou, entre uma gargalhada.

— Fica 10e >mo aqui no casarão, ou o capitão manda fazer casa nova ?

A vehemen-ia do insulto occasionou um verdadeiro accesso de loucura na hu-milhada Antonica. Com uoaa temeridade inaudita, a sua mão pequena agitou-se no ar e, certeira, inesperadamente espal-mou-se na face do vendeiro,

— A larga faca polida, a companheira inseparavel dos roceiros, luziu vibrada pela mão possante do vendeiro; que vo-mitou colérico uma pungente injuii*.

Antonica immovei, braços erusadoa so-bre o collo offaganta, o olhar vivaz e percuciente, esperou impassivel o desfe-char do g*olpe sem pôr dique á sua cólera indomável.

— Podes mat?r-me, seu miserável; antes o casarão do que a casa de um co-varde, E' até Iam beneficio; mate-me de uma vez. Mate-me porque é a verdade : eu amo, sim, ao capitão e só elle, qua não é miserável como tu, infame, homem que

julga deshonrada a mulher com quem quer ca£ar, malvado.

Apezar da provocação, em vez da la-mina polida o violeiro desfechou sobre a moça uma gargalhada, tres vezes peior do que o golpe.

—• Dascance, Sra. dona. . . . não ha de perder a sua vez ; por ora é ceio; mas não ficará para semente.

A crueldade dos desdens de Vianna esntiveram a desgraça ia moça. Ao passo que o insaltador, despeitado, aff a stava-se" ella quedava perplexa, não adiantava. Havia de feito entre elles um grande charco de lôlo; — era o caracter do ven \

deiro. A sua phothographia perfeita foi feita

n'uma phrase de Antonica relembrando o insulto que foi vibrado por Vianna, quando lastimou a deshonra paterna pelo capitão. Era o requinta da hypoerisia fundabu-lando com a mais negra das torpezas.

Depois da longa quietação, semelhante-mente ao que sacode um pesadelo, e por-que ainda ante os olhos vê as larvas tru-culentas que o affiigiam, foge ao logar em que dormia e não se liberta da impressão desagradável senão ao ouvir uma voz humana; Antonica, ao recupe-rar a calma após a lucta violenta com o vendeiro, correu até o quarto em que, suspirando á vergonha, e carpindo o seu erro, Chiquinha madornava a pros-tração moral que a extenuava. ° Ahi , como a criança amedrontada, subiu apressada ao leito e conchegou a cabeça afogueiada ao collo de Chiquinha. Às"lagrimas' deseíicadeiaram-se-lhe, e, com ellas, um soluçar nervoso.

A enferma soffria assaz para saber com. prehender as dôres alheias, porque des-graçadamente é preciso a dôr para aferir a dôr.

Com a voz húmida de ternura e com-paixão, escondendo nas palavras o es-panto, Chiquinha, anediando os oabellos de Antonita, perguntou-lhe com a delica-

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86 MOTTA COQUEIRO

deza que os sentimentos fraternaes em-prestam á mulher:

— B' possível, minha irmã, que também você seja tão desgraçada como eu ? 1 . . .

— Mais ainda, Chiquinha, soluçou An-tonica, eu amo, e nem devo dizer—amo.

Uma scena tocante de amor fraternal, consorcio de sentimentos puros na des-graça, sem estudo, sem arte como a fusão das aguas de dois affluentcs em um vc-lume único, largo, magestoso, correntio e limpo, seguiu-se ás primeiras palavras das duas moças.

As lagrimas, o sagrado baptismo do infortúnio,lustravam:lhes o passado, onde as douradas iliufcões do amor converte ram-se a pouco e pouco em phantasmas ominosos, cuja projecção assombrava-lhes o presente e agourent&va-lhes o futuro.

A communicabilid&de das dôres since ras estabeleceu se promptamente eatre as duas irmãs, e d'ahi a pouco nenhuma d'ellas tinha segredos para a outra. Chi-quinha não tinha pintado exactamente a sua situação; mas sobre o que occultou impunha-lhes silencio o pudor.

Seriam duas ou tres horas da tarde quando Sebastião, oue na qualidade de homem entendido em carpintaria tinha desempenhado o papel de mestre da obra, pegou de um martello e repicando com elle sobre um banco de carpinteiro annun-ciou o completo acabamento da casa.

Francisco Benedicto, que desde a che-gada ao logar da nova habitação, teste-munhava a sua alegria repetindo visitas ás garrafas, ergueu no ar um caneco cheio de vinho e agradeceu os serviços dos trabalhadores por um brinde laconico e sincero : vivam os bons amigos 1

Todos acompanharam a expansão e, rindo alegremente, foram sentar se á sombra de uma copada angelineira que bracejava a ramagem robusta perto do terreirinho do eaiflcio rústico.

Sobre o chão estufado pelafolhagsm morta e caliida da arvore, a mulher do aggregado estendeu sobre uma toalha, da

alvura da albumina, o banquete ccmme-morativo do acontecimento.

A essa nova, immovel, apresentava ao norte áf rente rasgada até meia altura por uma porta estreita e duas janellas a pouca distancia d'egt% ; parecia um eon-viva irrosoluto no brodio sertanejo.

Tres j&nellas lateraes &briam-se para o oriente e outras tantas para o occidente. Ao fundo, como uma aza cahida, declivava do tecto um-a. meia agua que era defetisa-da a desempenhar as .func^ões de Gozinha. Tudo vestiâ-se de duas eôres apenas,— o avermelhe do do barro e o pardacento do sapé e da madeira das portas e janellas nào pintadas.

Em torno da casa adeusava-se a mata, só rareiada em uma largura de duas eu tres braças, as quaes davam logar ao leito da estrada, que se alongava a per-der de vLta, em plena franqueza de suas curvas caprichosas como as áo serpeiar da cobra.

Sobre tuio isso reinava a eterna rotina da natuieza; o? mesmos garganteios acontraltacios do nhambú, os pios e chilros da passarinhada, os zumbidos dos insectos, o murmur dos veies á'agua nas grotas, o azul intenso das serras pró-ximas e o desmaiaáo azui do firmamento e da cordilheira distante.

Alegres e lisongeiados pelas provas de gratidão que recebiam, os hospedes e protectores d-3 Francisco Benedicto senta-vam-se á mesa com o desembaraçado ap-petita de quem acaba de t r i l h a r braçal-mente. Demais erguiam se das terrinas uns vapores trahiudo adubos esmerados e conscienciosos.

Cumpre notar que o contentamento ge-ral nãc privava todavia a solicitude hos-^ pitaleira da familia e assim foi que não passou desapercebido o mau humor de que dava mo^tr-ys o Vianna da venda, um 'dos que mais tinham contribuído para o feliz êxito da construoção e para a ap-parencia lauta do banquete.

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Além d'isso, Antonica e Chiquinha, que tinham chegado por ultimo áreunião, coh-sérvavam-se visivelmente tristes, e man-tinham tão grande reserva csm os çirr cumstantes que foi necessário explicar pela moléstia este factomespèrado.

No fim do jantar o subdelega© Oliveira, a quem já o gárrulo aggregáíp havia an nunciado o proximo enlace de Antp^ica com o vendeiro, admirado do affasta-mento requintado entre os'-noivos, acer-cou-se do inspector André e disse-llie muito á paridade:" "

Oii! seu Á.Xíà.vê, não lhe ^àrecé que aíida caça escondida à'este mátto ?

— V. S. que o diz é porque' é ; mss tombem se ha é tio arisca que ha de castar a sahir da toca.

— Pois bem, fique você'na espera, com todos os cinco sentidos, emquanto eu vou pôr-lhe Q# cachorros.

— Mais fácil é sp.r mordido por umar jararaca do que arredar pó um momento, respondeu o inspector, aproveitando o encaixe para um riso apigarr^do de adu-lação.

A' pouca distancia d'estes interlocuto-res conversavam muito intimamente o vendeiro e o violei o, Graves questões debatiam a julgar pela gesticulação ani-mada e um cerro ar d® irreâoluçlo que envolvia o ven d airo.

O subdelegado toco ou. nota do qi?e se passava «ntr* os dois e bem assim dò olhar attento com que A « tónica os seguia, nãp obstante parecer cuicu&nfctameniô absor-vida em uma eonver -açiío com Colqui;. tia.

Batendo as palmas jovialmente, Oliveira achou se logo cercado pqr todas as pes-soas presentes, © começou n) tom n^ais «ordiai de meiuoria ue feoaens:

— Para aqui junto de mim, Sr. Chico ! eu não metto prego sem e.-t» pa. D.ga-mí! cá, não síe faz.im os convites para o receio a vós % Ande lá que parece querer 4ei-xar-me ficar no tinteiro ?

— Bsm f&llado, meu senhor, muito bem fallado, respondeu o aggrega,do;

OU A PENA DE MORTE 8.7

m^s eu não sou o dono da festa, a culpa, é toda do Vianna que, sempre que a, gente falia no caso, fica extranhão como uma creança de peito. 7 .

-r ppis isto não se faz aos amigos, Sr. Viaana, continuou o subdelegado, á meáida que caminhava para o vendeiro.

Pond^ lhe depois as duas mãos sobre, os hombros e sacudindo© amigavelmente proseguiu:

— Já tem padrinhos, seu maganão ? O segredo nestes negocios é grande ta-leima. - *•„.

Via#|ia, porém, nao deu em resposta senão o riso alvar da acquiescencia con-trafeita e Antonica denunciou claramente a repugnância que lhe causava a audiçãç de palavras referentes ao consorcio.

— E' novo isto, exclamou Oliveira, os noivos parece que se zangam com a gente porque lhes falia no casamento. O Viãn-na está macambusi© como um boi mor-dido de cobra, e a Antonica arnarellou como uma fiôr de abóbora E M bom, esiá bom, n|ose casam, não; quem é que disse qua vocês se casavam ? Ora é boa, nS©' faltava mais nada ; calumnias 1 Ha muito. mâ-lingua n'este mundo.

Uma risada estrondosa acolheu o gra-cejo dó subdelegado, que regosijou-se in-tíricrmente com a cèitiza de ter desco-berto c segredo dos noives, é, satisfeito com esfía victoria da sua perspicácia, mul-tiplicou os epigrammas, com o fim de ccn eguir pela irritação o que não podia obter espontaneamente.

— Já ha via-me passado pela cabeça uma idéa, disse elle ; era servir de padrinho ao Vianna, se isto fosse do seu agrado, e nãa houvesse pessoa msis considerada já convi-dada. Depois eu disse com os meus botões: não, não me bffareço ; o Cfiico é lá aggre-gaio do capitão e ha (te querei'que elle seja o padrinho; já lhe deu a baptizar uma filha...

— Mas hoje, interrompeu o 8ggreg[&(iOj não lhe dou por meu gosto nem um c<5ço

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cfagiia. E' bichinho que entra cOm pés de lã e depois arranha e morde.

— Isto é o que você pensa agora, mas antes elle era o sau deus; e o Vianna ainda hoje não tem razão de queixa. Não é ver-dade, santinho ?

— Queira perdoar vosmecê, seu subde-legado, mas eu hcje estou , um pouco doente e vou-me chegando á casa, respon-deu o vendeiro. -

— E dispensa uma companhia ? inter- rogou Oliveira.

— Está visto que não, até gostarei. '—• Pois n'este caso eu vou comsigo; a

conversa abrevia muito as viagens. — O melhor é irmos todos, ponderou

Sebastião; não ha nada mais a fazer aqui e para palestrar estamos muito melhor lá no casarão.

Quando o farrancho ia a entrar na casa do aggregado, o violeiro, apontando para o porto, chamou a attenção geral para essa parte do campo.

— Parece que chegou canôa da cidade e se não me engano aquelles que lá estão no porto são o Faustino Silva e o Pe-regrino.

Dentro em alguns minutos não houve mais duvida ; as pessoas que estavam no porto, com os remos ás costas e cestos á cabeça, tomaram a direcção da casa grande.

— Agora não sai ninguém d'aqui, exclamou o aggregado; o Faustino ha de candongar por força ao amo e eu quero metter-lhe ferro por saber que vocês estiveram commigo. E' uma paga-sinha dos desaforos que me tem feito.

E' direito, muito direito ; acrescentou o violeiro ; mostre-se áquelle inchado ca-pitão que a gente não morre de caretas.

Todos concordaram com a resolução do aggregado, patrocinada pela arrogân-cia do violeiro, ainda que não muito por vontade do subdelegado e inspector, que só ficaram para não mostrarem-se me-drosos.

Na porta do casarão, com o chapéu de lebre na mão e rosto carrancudo, assomou Faustino Silva, que apenas saudou o aggregado e seus hospedes, e logo reti-rou-se depois de ter entregado a Fran-cisco Benedicto uma carta que lhe era dirigida pelo capitão Motta Coqueiro.

Um movimento de sorpreza descorou todos Os rostos e ainda os mais corajosos estremeceram involuntariamente. Da feito, era singular que em tão pouco tempo de ausência já o fazendeiro tivesse motivos urgentes para dirigir-se ao seu compadre.

A pedido de Francisco Benedicto, o sub-delegado collocou os seus oculos, quebrou a obreia da carta e leu com voz pausada:

a Compadre, a Ao sahir do sitio tinha-lhe pedido que

se apressasse a fazer a sua casa no logar que demarquei para servir-lhe dô situa-ção. O tempo que o compadre gastou para levar a effeito esta condição do trato que de viva voz fizemos, quando entrou para nossa casa, faz me crer que o compadre ainda não ccmeçou o trabalho, ou que não o terá muito adiantado. Aconselho-lhe agora que ou não comece, ou pare a construcção.

A razão por que lhe aconselho isto é ter deliberado montar melhor o meu sitio, e tirar proveito d'elle de todos os modos.

Sabe o compadre que o sitio não tem grande extensão e por isso não posso mais dispensar terras para estabeleci-mento de aggregados ; ao contrario pre-ciso de adquirir maior terreno.

Proponho-lhe um negocio que lhe será vantajoso ; o compadre passar-me-ha por uma avaliação as suas bemfeitorias e fi-cará morando no casarão até que eu lhe possa arranjar um outro fazendeiro que tenha terras devolutas.

Recommendo-me a todos e faço votos para a inteira cura da Antonica. »

— Não se pôde crêr em tanta infamia, exclamou o subdelegado, ao terminar a leitura.

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. Eu já esperava por'esta,'ajuntou Se-bastião ; elle é capaz de mais ainda.

Franci&co Benedicto vociferava como um possesso contra o compadre, e lasti-mava-se ao mesmo tempo, e concluiu por uma interrogação e uma ameaça. ,

BU S(5 queria saber quem foi o demó-nio que me indispoz d'está sorte com o diabo do malvado ; havia de moei-o a pauladas ; ôésse no que désse;

_ Nada- é mais simples do que descobrir a causa, interveio Vianna ; procure bem por aqui mesmo; indague bem dentro de sua casa e verá.

Todos olharam-se espantadosj e cada um sentiu-se vexado como os apostoles quando o Christo annunciou a sua próxi-ma traição por ttm dos que com elle .se. reuniam no Cenáculo.

Antonica foi quem soffreu o golpe mais rude ; tinha a certeza dolorosa de que as palavras de Vianna eram o prologo de ima vingança desapiedada e inexorável. Sentiu faltarem-lhe as forças e não pôde retirar-se da sala, como erâ seu desejo, i — Eu vou contar uma historia, excla-

mou Sebastião no meio da perplexidade da todos ; é uma historia que me conta-ram ha muito tempo. Havia um< trabalha-dor já idoso que tinha muitos filhos, entre os quaes algumas moças, que todos diziam ser muito bonitas. 'Um dia o ve-lho achou-se meio do matto sem casa onde morar, sem trabalho; uma des-graça. Um fazendeiro da vizinhança

! mostrou ter dó d'elle e ehamou-o para a ' sua casa, mas infelizmente o velho tinha

filhas que eram umas jóias, e o fazendeiro gostou d*ellas. Queria d'este modo cobrar-se do favor que tinha feito. 0 que houve o que não houve entre as moças e elle não sei, não me contaram ; o carto é que desde que as moças foram pedidas em casamento o fazendeiro começou a mal-tratar e a perseguir o pai a quem tinha antes protegido.

Ora eis ahi como foi o caso; êntrou por

uma porta, sahiu por outra e manda el-rei que conte, outra.

A applic&ç&o da historia contada pelo violeiro era f&cil de mais para que todos immediátamente não a fizessem. O sub-delegado que desde o principio do conto percebeu onde elle ia bater, desejoso de tornar mais explicita a censura, que tanto infamava Motta Coqueiro, reteve a erupção da cólera de Francisco Benedicto, ponderando ao violeiro:

— Ora, outro ofiB.cio, Sebastião, isto é uma historia da carocha.

— A's vezes são verdadeiras, respondeu o violeiro, ,e esta ê, eu lh'o juro.

Vianna que, depois de atirar a suspeita, se havia calado, collocou-se então na frente de Francisco Benedicto, cujas mãos segurou, e disse, voltando-se primeiro para o subdelegado e depois para o ag-gregado: * — Infelizmente ha historias da carocha que são verdadeiras, e aqui temos uma prova. Seu Chico, escusado é ir longe buscar o seu inimigo; Antonica pôde dizor o que ha ccm o capitão.

O effôito das palavras do vendeiro exce-deu á máis caloulada espectativa: aama-rellidão cadaverosa que tingiu as faces de Antonica, o tremor convulsivo que a obrigava a tiritar, o stupor chispante que estagnou-lhe o olhar faziam pensar a todos os circumstantes não em um pro-testo doloroso a uma effensa pungente, mas em uma confissão estorquida de sú-bito a um sigillo que se julgava invio-lável.

E tinha justificação eloquente a pertur-bação da desventurada moça; pobre pé-rola perdida em um etterqujlinio de ca-racteres em decomposição, sentia se ali-nhavada nos farrapos sordidos de. uma vingança baixa e v)llã,que, sem coragem para um desforço não já em uma lucta de honra, mas sequer em uma embos-cada, lançava mão da intriga e por ella espojava-se em uma alegria insensata.

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Umaintuiçãoperspicaz esoobrir-ibe-hia nó espirito, de pé solemnes e egaaes na estatura, a revolta da mulher p i r a insul-tada, e a vargonna da amaate ao sentir em nudez profanada o intimo da sua alma povoada da perdoei e e^p "ranças, de máguas e abnegação; dôr santa e ve-neranda porquanto, n*essa hora em que a iniquidade consumava tanta.torpeza, ella estava só,indefesa, entregue á ia dgnação da boa íé paterna ilíaquead* e aos golpes rudes do despeito friu&iphante.

Via todos os olhos -cravados na sua perturbação inevitável, cheios de cruel dada e de interrogações aviltantes, agora que a sua consciência chorava as amar gas lagrymas do puior angUí.tiado, e, o que mais penoso era, via essas lagrymas serem grosseiramente confundidas com as rio. o rio feminil acordaio da chofi-e de uma lethargia moral por uma sacudi de a de censura.

O* lábios negavam-lho uma unio* pala-vra, porque t s combinações do alpbb.beto o doa sons faliecem irremediavelmente nas horas das granaes crises dos senti-mentos. Também de que lhe seryiria fallar, se todos es nrgv mentos estavam de antemão con:í era nados, se um grito . de desespero seria julgado uma explosão de vexame ou reíkumfsnto de hypocrisia ?

Com a boa vontada de um sequioso que - farta-ee a. beber agua salobra, o vendeiro

saciava n'eí=te mar.yrio a sus desforra indigna ; eorvejavam-lU* jub'l sos, sobre a hediondez do c^rsírt -r, osm t<netos-ca perversidade fri;» e calculista. • — Anda de lá, velhaca ; bradou- brus camente Francisco Benedicto, conta-ma, antes que eu perca o tine, a» tuas sape-carias, sons.* dus diabo que «eshonras as barbas do teu e®TlíJ-»"o rtSo ta esgano, que é quwot1» tu mereças.

— Calma 1 tau^a c-lm- , -eu Chiou, disse ameigando a voz o subdelegado; ella JÍ> Ti o é a roais culpada.

O prudente »r. Oliveira já a esse tempo braçára se com o aggregado, que, voei-

/

farando, forcejava por desembaraçar-se. e dirigir-se á filha, a quem cercavam soas irmãs e mãi, banhadas em pranto. .

— Homem, escute, arrazoou Sebastião para o possesso pai; não é perdendo o. siso que você ha de desliodar a meiada. Não estejatamfoats fazendo futuros máus. Você é criança oii é um pai dè familia ? Attenda primeiro, com seiscentas'_mU raios. Está a 'descompôr á íôa a rapariga.

Vencendo'a pertinaz reaistancia do ag-gregado, o Sr. Oliveira e S-bastíão" con-seguirem. tii al-o para fóra da sala e acal-mai-o um pouco.

Feito isto, o violeiro, que impressiona-' ra-sa vivaments com o estado de abati-mento de Antonica e ainda mais com os olhares supplices de Chiquinha,'ou me-lhor pela evocação dos seus . actos, segu-j ou Vianna per um braço, e. faliando-lhe á parte, disse-lhe terminantemente :

—Fique sabendo qne o negocio é só;/ com o capitão ; deixe-se, portanto, dei accus&r a rapariga. Faça carga no bichfl e poupe os mais, ou eatão eu parto parf

cidade e vou na presença do capitã!» desarmar toda a igrejinha.

— Mas já lhe contã o qu:r ella me fej, respondeu colérico o vendeiro ; eu n^p sou homem para aguentar desaforos.

—Está bom,'está bo*, seu Vianna; nenhum de r:ós engana um ao outro; •vecê não qusr nem queria casar sa copa Antonica a podia fazer «orno nóa, não ouiz por tolo. Venta à\*hi o veja se acom-nioda o velho. Nós temos sido amigos até hoje è não devemos-brigar por cousas. de p o u c a monta. A zanga da menina ha de pass r ; a^ im s*ja vorê b«m para ella a0, ora. "Os 'esorupulos de consciência, o sonho ia. victona lo am^r ^elo amor, nascem da s i n c e r i d > a e do affreto a da limpeza das iutu.çõ««i quau^., ^ é a . , * paixão li-mita-se ao de^-jv da pcçse material da mulher, quaisquer que s e j a m es meios são sempre attranentes e exequíveis.

Aooresse que as paixões doesta ordem

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OU A PENA DE MORTE 9 1

vegetam sempre nos corações apodreci-dos pelo vicio ou pela ignorancia, do mesmo modo que certas parasitas pre-. ferem as a rvo res mortas para se .prove-rem de seiva. o;

O vendeiro não podia, s«3r classificado senão na ultima das: du«s classes de amantes, e por isso mesmo condescendeu com a espei'811Çs dada por Sebastião..;

Sepitando-se ao lado de Francisco Bene-dicto, começou a asserenal o, quando lhe pareceu opportuno.

Ò velho, já vencido pela argumentação t e r s a do sub ielegado e pelas meias pala-vras consoladoras de Sebastião, havia pon-derado criteriosamente.

— Quem pôde dizer se eu tenho ou não motivo para damnar é o Vianna, elle é quem sabe do negocio, mas está ahi ca-lado como um garrafas lacrado ; é qu j elle pensa commigó.

Tem seus conformes, seu Chico, obser-vou o vendeiro; eu ainda não fillèi n&da.

— Pois safe se d*ahi logo com o qtli sabe, gritou o violeiro ; é prêciso a gente saber a quantas anda. Vamos por ora ás apalpadelas. ' —T O que eu Sei é isto : quando sá An-tonica por ura triz que não se afogou, o capitão veiu de pressa em seu soccorro, mas em vez de se portar como um homem sqrio beijou muito a ccítadfi. Foi pelo menos o que me contaram...

— A vsrdada é esta, entende, meu se-t nhor ; interrompeu o aggregadò drigih-do.-se ao Sr. Oliveira.

— Depois, coulinuoa o venáei; o, eu vi com estes olhos o cuida io ào c«pitHO du-rante a doença de Antonica. Mandou es-cavas servil-a e ella proprio passava hor*s esquecidas'veiando a doente.

— Poitso jnrar r.os E^sng^lh^ coroo tudo está s-^ndo dito o ire to, rbservou Francisco Bentídicfcu.

— Ninguém desconfiava nada, prose-guiu o commentador, porque o capitão é compadre da c«sa e um homem de idade. Depois de passada a doença houve,porém,

quem visse Antonica ir por diversas vezes á casa grande sosínha, e quasi sempre de noit°.

E ainda não querem vocês que eu tire das costas d'&quell& sirigaiata os passeios sem licença dos seus pais ? I

— Bu por minha parte nada suspeitei nunca, mesmo depois que me contaram o caso, mas hoje sa Antonica me fez uma partida que me fez pensar muito sério. Depois de tudo tratado,disse me sem mais nem menos, que não me estima, já, e que por vontade a'eÍl<*jáão se casa. Emfim eu não digo nada,mas uma cousa á'estas.tem muito peso.

Apezar de attenuaia de alguma fórma a culpabilidade de Antonica, todavia o aggregado não se mostrava propenso a forrar-se da supposição desairosa para com sua filha. A tacíica do "Violeiro tor-nou;sé necsssaria, indispensável, para multiplicar a queixa do seú inseparavel amigo.

-r- Pela parte ãe sa Antonica pdíe des-cançar, seu Chico; ellaó incapaz de virar a cabaça. Ha testemunha de vista de um caso. O Manuel João foi despedido d'aqui por causa d'isso e. disse-me tudo tim-tim por tim-tim. E' d^ste geito.

Uma noite o capitão viu passar sa; An-tonica sosinha por defronte, da casa grande e f á divetir-se com a menina. Esta, porém, não ?<5 ficou muito amofi-nada, mas até ameaçou de vir dar parte a você; está entendendo, seu Chico. Por-tanto, o qua é que tem sa Aatoniea a ver aqui.

— A mim também parece que, se hou-vesse alguma cousa, ó capitão não que-reria que vc-cê fosse morar para mais longe; pmrWou o Sr Oliveira.

— E&tá'visto. Se ha alguma cousa, é raiva do capitão por não ter conseguido os seus-fins ; isto e?tá saltando aos oihos; O que a Jmlra é que o scismatico do seu Vianna venha aqui contar historias ainda. Quanto mais se faz menos se merece. *

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A argumentação frouxa e descabida mesiáo dos interlocutores abrandou a có-lera superflci&l do aggregàdo, cólera que rompia mais directamente de um gráu já bastante elevado de alcoolismo do que de um sentimento nobre.

Porfim Francisco Benedicto fallava com menos calor na mâculação das suas barbas braiicas e dom VGhemencia, com odio na força do seu compadre e M própria fra-queja.

— Ser pobre é o mesmo que ser boi de ajeito, repetia freneticamente o aggre-gado ; trabalha um iiômeâà e de íimá hóra para outra não tem mais onde metter a cabeça, porque tudo quanto se tem é pouco para a guela do rico.

Sollicito em desvanecer esta derradeira nuvem que pairava sobre o espirito de Francisco Benedicto, o subdelegado Oli-veira resolveu dar»lhe por virtude da sua auctoridade local uma prova inequívoca de zelo e de poder, que teve força de re^ nascer a confiança do aggregado.

— Quanto ás terraâ, Sr. Chico, ponde-rou csubclelegados[corre por minha conta; ba^ta você fazer-se duro por ellss e o seu compadre ha de ver se tonto» Elle não o pôde deitai o fóra assim como quem en-xota um cão ; são necessárias certas for-malidades da lei; por exemplo, requerer ao juiz de paz, etc., etc.. Ora, o juiz de paz é um amigalhaço do Coqueiro, não iria nem para o céu em companhia d'elle. Tê, pois, você que está s9guro.

— E se elie lançar mão da força, o que hei de eu fazer senão ceder ? interrogou o aggregado.

—Amor com amor se pagi, e uma mão lava a outra. Se elie tem muitos capan-gas e escravos, você tenha geito para to-mar um despique. Pela minha parte dou-ihe carta branca, e digo-lhe até mais: será um beneficio para e*te pobre povo ver-se livre de tal monstro. Em resuoco, Sr. Chico, vou dizer-lhe a minha ultima palavra sobre isso : ha certas questões que EÓ se liquidam a pau.

sempre o cacete é a melhor justiça, tíen&rmou todo risonho o inspec-tor André '; não ha melhor cadeia cTeste» mundo do que uma camisa de grumarim„

— O mais que lhe posso oferecer, acres-centou o violeiro, é o adjutorio do meu braço, cago es do seu Chico e seu f&feo não cheguem.

Após estes effarecimentos feitos por. todos, á excepção do Vianna, a reunião dissolveu-se a maldizer e desfeiara emusa da mudança áe humor de Motta Coqueiro para com o seu compadre.

A maio caminho de casa e quasi ex-tremo cansaço do magro suspiro, o vio-leiro fei detido por Lucio Ribeiro qua, a largo e continuo galope, vmha ao seu en-contro.

O capicocio narrou miudamente que havia ssais de duas horas que estava sof-frego» esperar o violeiro para communi-car-lhe © a conversa que tinha ouvido a Faustino.-

— Outf, disse elle, ao demonio do ca-boclo, que fa* rendimento de tirar a vida dos outros, dizer que o capitão está lá na cidade a r ran jande-me írm covados de pana o para as costas. Dê nd que der eu hei de ir para a pra§a.

— E você esqueceu, com o susto, o ca-minho da serra dos Olhos d'Agua a as bibocas dVstes morros, forte medroso.

— Depois o Faustino contou tazfôbem que o 'homém* dá você aos diabos e pTo-mette-lhe ca tigo, O Faustino logo se offe-recau alli á vista da tedos para ficar a cargo dVdle o ser viço contra você. A du-vida é o capitão dar lhe cem mil réis; se elle chegar &o preço, o Faustino diz que é bem capaz da tirar a vida nio só a você mas ao Chico Beneiicto a á familia inteira. Eu quiz logo aviial-o porque o Faustino é hoLiem de dizer e fazer.

— Mas ainda não se lhe deu o dinheiro. — E1 o menos para o capitão, e, se não

me engano, já ha um dinheiro para o Faustino por um vale do capitão.

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OU A PENA. DE MORTE 93

— Ora adeus, Lucio ; eu não estou dor-mindo. • . . .

Depois de sepaiarem-se, o violeiro per-deu a apparencia de calma que o revertia sempre nas situações perigosas. Ia á merce do Suspiro que, abanando as longas ore-lhas, r e t a r d a v a cada vez mais a sua mar-cha lerda. ' ,

Quando entrou em casa, respondeu a anciedade de Manuel João com um sub-terfúgio e foi sentar-se calado e a fumar em utQ canto da casa.

__ Que tem você para ficar assim em-barrado, homem, falie porque isto diz-me também respeito; perguntou o ex-feitor.

— Cile-se d'ahi, seu maricas, isto é o fructo dss suas trapalhadas.

Os dois reoahiram em absoluta silencio, e assim conservaram-se por largo tempo. Afinal surdiu atr&vez do incommodo dè ambos a alegria expansiva do violeiro.

— Estou ficando tãq roim como vocês; assusto-me por pouca coúsa. Contaram-me uma fabula que é a minha felicidade, e no entanto eu fiquei amedrontado. Mas passou ; vamos á prosa, seu Manuel João.

Os dois sentaram-se a fumar descança-damente, emquanto o violeiro narrava os successos do dia.

O plano magistralmente urdido pelo violeiro produziu resultados tão exactos e précisos quanto graves e terríveis.

A calumnia, a intriga, e a dissimulação, entrançadas em uma teia consistente, en-laçaram-se como um baraço assassino ao socego e dí scuidos Íntimos das duas fa-mílias, e e&tmngularam-os desapiedada-mente

A existência de Antonica, verticiliada em risos eillusõss juveni*, transíormou-se em uma serie de humilhações pun-gentes, e o fazendeiro viu também sucee-der ás prasenterias do lar o retrahimento da esposa, ferida pela de, confiança na sinceridade do seu aííecto.

Para Motta Coqueiro só houve, depois do penoso conhecimento da afieição de Antonica, alguns dias de tranquillidade :

foram os que se seguiram logo á chegada á sua chácara em Campos,

Lançando um olhar retrospectivo á cons-ciência descobriu ahi algumas sombras tristonhas, mas tão delgadas e diaphanas que desde logo acreditou que para dasfa-ze-lãs bastava um sopro áe raciocínio e resignação.

O isolamento em que vivia no sitio e que constrangia-o a diminuir até a attenção intellectual para que pudesse ser compre-hendido pelas pessoas com quem estava em immediato contacto; semelhante iso-lamento foi substituido pela convivência polida e delicada de uma sociedade intel-ligente e desdobrada em pensamentos para a familia e para a p&tria.

Desrie a manhã era visitado por amigos que intermeiavam as conversações fami-liares com observações judiciosas acerca do movimento social, e assim chamavam-lhe o espírito para a actidade sadia dos espíritos educados.

Vivia n"uma especie de aturdimento intimo; tal era o atropello das questões que era obrigado a discutir e apresentar solução, e força é dizer que semelhante estado agradava lhe, porquanto redunda-va-lhe em um como soterramento das magnas domesticas.

A chegada de Motta Coqueiro era espe-rada com anciedade porque uma vira-volta politica tinha abalado o partido conservador campista, do qual o fazen-deiro era membro proeminente e influen-cia decidida.

O abalo tinha sido produzido por uma desastrada mudança na chefia do par-tido, não por serviços prestados, mas por um simples despacho do governo, que dava a direcção da familia conservadora da localidade a um novo juiz de direito nomeado.

Esse homem, que começava então a sua carreira politica, peiàsando em tirar da sua posição proveito, mais util á sua pessoa do que aos interesses do partido, inaugurou a sua direcção concentrando

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em si toda a actividade sobre os co-reli-gionarios.

Graças á sua intelligôucia superior é illustração acatada e reconhecida por todos, o juiz de direito ponde em pouco tempo dizer : o partido cénsérvador sou eu.

Mas como sempre essa absorpção dá collectividade promoveu dissabores que foram intumescendo, silenciosamente à principio, e mais tarde proromperam ém protestos enérgicosj reduziàos a factos è e&tereoty pados em tuna dissidência irre-conciliável.

Motta Coqueiro, cordato por índole, achou-se por isso mesmo a braços com grani es e insuperáveis difficuldadês, visto como insistia no congraçá mento dos cam-pos dissidentes, único meio de fortalecer o partido.

Nada, porém* conseguiu a não ser tra-balhos, sâcrificios e decepções.

Emquanto absorvia-se todo no serviço politico, á sua attenção não voltou-se es-pecialmente para os modos descominu naes da sua consorte, e no entanto elles erám por domais sensíveis.

A Sra. D. Máríá, desde três dias depois da chegads. d® Coqueiro, não era a mes-ma. O seu coração parecia andai? envol-vido n'uma &tmo»ptoa de gelo, e uma frieza quasi indelicada recebia por élla todas as communicações mais expansivas do m arido.

Úm dia em que, .10 de leve. o fazen-deiro apercebeu se da indiffarençá da Sra. D. Maria, e lh'a observou com bénevo-lencia, a ment ida senhora, escondendo no avelludado da palavra uma censura amarga, respondeú-lhe com apparente simplicidade.

- - O senhor não tem rssão para enfa-dar-se; é preciso que eu preste toda a minha atten^ão aòs int>res?es da nossa casa, agora què o senhor se Occupa exclu-sivamente com os estranhos.

Motta Coqueiro tinha, de feito, achado óccasião para a aâvertencia amistosa no

meio de uma conversa relativa ao par-tido. Foi ao terminar a deseripção de um ataque decisivo ao rei da situação politica de Campos que a sua váidide fel-o notar a indiffarença da Sra. D. Ma? ia.

Longe de irritar-se com a resposta, Motta Coqueiro procurou acalmar á es-posa e prometteu-lha, rindo com o desem-baraço da confiança, livrar-se o mais de-pressa possivel dos enredos partidarios, s os quaes attribuia o máu humor que lhe tinha sopitado o enthusiasn; o descriptivo.

O ^fazendeiro, porém, enganava-se ra-dicalmente quanto ao verdadairo motivo de queixa dà sua consorte.

A fonte da desharmonia conjugal era uma espertssad moleque Çarlos, em dar , conta de uma empreza a que se compro-mettera com Manuel João.

Eatrando sorrat eiramente no quarto de <$ofmir da sua senhora, o moleque depo-sitou sobre o lavatorio a carta que lhe tinha sido confiada. A curiosidade feminil incumbiu-se de tornar bem succedido o ardil do triumvirato para a satisfação doa seus Cálculos ulteriores.

A Sira. D. Maria ao ver a carta repre-sentou a eterna scena de Eva diante do pomo prohibido.

Habituara se, désáe os primeiros tempos de casada, a abrir toda a carta que lhe fosse dirigida, em presença do seu ma-rido. Era uma obrigação que voluntaria-mente se impusera e que desempenhava satisfeita^

Ao vêr, porém, aquelia carta myste-riosamant© còllocada em logar reservado, a Sra. D. Maria sentiu quebrar-se-lhe a cadeia do. passado e affogueal-a uma nova resolução.

Rasgou soffregaménte a sobrecarta e leu avidamente as linhas tortuosas lan-çadas sobra um papel ordinário.

Terminada a leitura, a senhora conser-vou se por muito tempo no quarto, de pá diante do movei, pa l i t a como se a ti-vesse accommettido uma instantanea ane-d i a . De vez em quando erguia a carta e

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repassava alguns dos períodos em voz baixa e tremula.

Quando sahiu aceitou com triste boa - vontade as caricias iniíoceníes àoh seus - filhos, e a^ercanío ao cslio y cabula dis&e-

lhe, como se pi^es^e ser por elle enten-dida. ;

—Deves querer muito bem a tua maioãi, filhinho, porque teu pai já náo* & estima.

O inysterio da tri^t^za da Sra. D. Maria foi, porém, sarpnehendido. por Motta Co-queiro quando eila menos esperava.

Joaquim Lycerio vinha, frequentemente a Campos p-&ra effectúar. transacçôis indis-pensáveis ao seu negocio, e por isso che-gou também a Campos uma semana de-pois de Coqueiro.

, Sendo forçado a deinorar-se por mais tempo do que desejava, resolveu despa-char os seus empregddoS por ser este < x-penaíiíe fecoatelsiado pela boa economia, e ficar sd na cidade-.

Partiria depoij em qualqwr canôa qué fôsbe para Macabú, o. que não era onfíi-cil purque havia sempre grande numerei d^ilas em viagem para lá.

Infelizmente, na oppítitunidade da par-tida, Lycerio não eocontrou a sahir se-não as canôas das balsas • de Motta Co-queiro, D2is nem por i»so julgou o obstá-culo custoso da remover-se.

Lembrando-sa tf a carta que havia ès-cripto e que aevia ter chegado ás máos da destinatária, entendeu què O melhor meie de captar a benevolência ao fazen-deiro era informal-o das ciladas que lhé armavam.

Certo áà prccedencia ú W e meio, pre-curcu encantrar se com Mjtca Coqueiro.

Pensando achai o in t i spo í to contra si, Lyce i io a im i r ou se de ser recebido affa-velmentò e o seu pedido receber lison-gêiro deferimento.

Para retribuir á bondade do fazendeiro* o rabula de fíacabú entendeu que devia reduzir á obí a a resolução, e no correr da conversa perguntou a Motta Coqueiro:

— Se não é indiscricão, V. S. poderá dizer me como arranjou as cousas para aquietar o Chico Benedicto ?

— Da fórma alguma, porque até esta data naó tem havido nada que valha a pena entre nés*

— Pois não é isto o que se diz por lá ; 0 que consta é que Y. S. ê seu compadre já andavam queimados um com outro.

— Sabem mais dò que eu ; sálvo se o compadre zangou-se porque lhe ordenei que fizesse prompíameáte a sua casa.

— Não é este o caso, ráspendeu Lycerio; com franqueza, Sr. capitão, V. S. não tém noticia de uma carta que foi esçripta á Sra. D, Maria- ?

— Ah S exclamou o fazendeiro admira-do, então escreveu-se uma carta a minha mulher ?

— Sina, senhor, eu conheço a pessoa que a escreveu, e seftambem que foi mandada escrever por um dos genros do Chico, se não me engano, o Sebastião, e sei mais que n'esta carta faila se em V. S. o na m»niua Antonina.

— O senhor está bem informado, bra-dou sorprehendido o fazendeiro. ?

-r Por estar é que lhe aviso ; queira indagar e certíflcar-se-ha.

Açulado pela responsabilidade que via despenhar-se de chofra sobre si, Motta Coqueiro dirigiu-se a Sra. D, Maria, re-solvido a liquidar a intriga

—r A senhora vai fazer-me o obsequio de mostrar-me uma carta que recebeu de Macabú, disse elle secamente á sua es-posa, aquém tinha convidado para um gabinete affastado do maior movimento da familia.

— A carta diziá-me só respeito, res-pondeu finamente a esposa; lí-a e ras- ' gueia.

— Botão tenha a bondade de dizer-me 0 lhe mandaram dizer.

— Já não me lèmbro ; más o senhor se quizer saber bem pddé ir passar mais um mez no sitio e confirmar com a sua pre-sença o que me communicaram.

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Esta resposta denunciava claramente qual ji gravidade da accusação, e por ella Motta Coqueiro concluiu que não era pos-sivel que sua senhora tivesâe rasgado a carta, em que a accusação tinha sido feita.

Intimou portanto a sua esposa á imme-diata entrega do libello escripto contra a sua pes?oa e obteve o depois de um chu-veiro finíssimo de ironias. . Podia-se dizer que a maldita carta tinha

o laconismo de um punhal brandido por um matador professional.

Tremulo de cólera o . fazendeiro leu o seguinte:

« V. Ex. não tem necessidade de saber quem lhe dirige esta,s linhas/" é um con-selho da prudência esconder o meu nome. Devo entretanto affirmar que falla-vos um homem de bem, e um amigo agrade-cido, que se julga obrigado a dar-vos um desgosto para evitar mal maior.

O aggregado, que o marido de V. Ex. admittiu no sitio, entenleu que devia retribuil-o com a pessoa da menina An-tonica, hoje convertida em amante do Sr. capitão.

A ausência de V. Ex. incitou o a não guardar as conveniências e hoje todo o mundo em Macabú conhece essas relações criminosas de um pai de familia alta-mente coliocado com a filha de Francisco Benedicto.

Sd V. Ex. poderá evitar as eonsequen-' cias que poderá ter esto facto ; as exigên-

cias não satisfeitas do aggregado pode ter sérias consequências.

Um amigo de V, Ex. »

— E a senhora acreditou n'esta infa-mia? perguntou Motta Coqueiro.

— E o senhor porque temeu- tanto a vinda d'esta communicação que chegou a descobril-a?

Para não faltar a consideração devida a sua esposa, o fazendeiro retirou-se sem responder-lhe a pergunta.

Depois de oscillar n1um oceano de alvi-tres, achou um que pareceu-lhe o mais

acertado : tratar de despedir do sitio o compadre, que tanto o incommodava. Escreveu então a carta cuja leitura foi feita pelo subielegado na casa de Fran-cisco Benedicto, carta que devia acom-mctdar também a sua esposa.

De feito a Sra. D. Mana concordou com o expediente tomado.

VIII

(SOMO SE PAGAM BENEFÍCIOS

No domingo da semana em que a carta de Motta Coqueiro foi recebida por Fran-cisco Benedicto, effectuou este a mudança para a casa nova.

A familia achava-se agora augmentada por mais um membro, verdadeiro mons^ tro encanecido desde o nascimento, feroz, sanguinário. O seu nome era o Odio, o seu caracter a perfil dia, o seu culto a vin-gança. Cégo e surdo corria por toda a parte, desgrenhado, brutal, insultuoso a provocar intermináveis quarellas com uma sanha inquebrantável, com um des-garra revoltante.

Era agora este o fiel conselheiro do aggregado e o seu inseparável compa-nheiro. Pregava a destruição e incitava para realisal-a a natural petulancia de Francisco Bsnedict >, presentemente èxa-gerada pela protecção do subdelegado e do inspector que lhe garantiam a impuni-dade para todos os abusos que fossem commettidos em prejuiso de Motta Co-queiro.

A gmte do sitio era diariamente alar-mada pela pilhagem acintosa exercida nas roças e no campo do sitio. Nada es-tava seguro, porque sempre o furto, o roubo, a depredação espiava o gado, os cafesaes, as mattas e assaltava-os para destruil-os. Além d'esses meios de vin-gança outro mais temivel foi posto em pratica; a seducção dos escravos.

Aconselhavam-os para que fugissem, acenando-lhes com a perspectiva do des

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OU A PENA DE MORTE 97

canço, acaordando-lhes a eterna aspiração do espirito humano—a liberiade.

Em vão a tenacidade inesperada de Fi-délis tentava eppôr ,diques a esta desen-freada to r ren te de cólera, que iaundava de desordem s ruinas a propriedade do seu senhor. A franca resístencia do es-cravo encontrava â astúcia precavida dos inimigos de Coqueiro, de maneira que era impossível punil os.

vezes, aos cl&rõss suaves dos cre-puscalos de setembro e outubro, os gran-des capoeiross começavam a fumegar desdobrando no espaço uma enorme e negra cortina âe fumo; logo depois, ver-melhas como um ferro em braga, ameaça-doras labaredas principiavam a trepar pelo horizonte, a inteiriçar-se e a correr um immènso reposteiro de fogo, que amea-çava os eafésaas, os mandiocaes e milha-raes contiguos.

O eontinuo arrebentar dos taquarussús, estron loso eomo uma descarga de arti-lharia, dava rebate medonho, que obri-gava a gente do:-- eito, cansada pelo trabalho de um dia inteiro, a accumular fadigas penosissimas-ao seu cansaço.

Outras vezes grande parte da madeira que estava amontoada no porto amanhe-cia afundada nas aguas, e a gente era fèrçada a ficar, logo de manhã, por largo tempo molhada para não deixar perdidas as grandes toras de arvores preciosís-simas.

Não havia, eoaflm, acto por mais iniquo e detestável, que não fosse com-mettido para desafogo do cdio do ag-gregado.

Fidélis, o resoluto feitor, só dispunha de dois recursos: ameaçar os provoca-dores e participar essas desagradaveis occorrencias a seu senhor.

Taes meios eram escrupulosamente uti-lisi los, porém tornavam-se improfícuos porque o aggregado não temia ser cons-trangido pela severidade da lei a cohi-bir-se, nem também que a arbitrariedade

arreliadora de que se servia fosse retri-buída por igual.

Motta Coqueiro, preso em Campos pelas suas ©ocupações e pela suspeita, contida mas não extinta, de sua mulher, apenas podia reprehender por meio de cartas os desmandos do seu compadre, que sempre quê rscebia ordem de não continuar a fazer bemfeitorias nos terrenos do sitio multiplicava-as por acinte, preferindo sempre afastar-se da zona que lhe fôra mareada.

,Os avisos eram também um incitamento aos estragos.

Verdade é que esta violação do con-tracto tinha sido posta em pratiea desde o primeiro dia da desavença : a casa er-gueu-a o aggregado no logar em que lhe approuve.

Uma circumstanoia veiu por algum tempo diminuir a petulante intensidade da lucta aberta por Francisco Benedicto. Foi uma tamporaria falta de combustível á machina da vingança, cuja pressão era regulada pelo odio e pela impunidade.

Sebastião, o amigo predilecto e obse-quioso do aggregado, tinha desaparecido da sua intimidade, deixando após si um rasto ináelevel a deshonra do lar do amigo.

Um dia a familia de Francisco Bene-dicto foi torturada por um acontecimento cruel. Chiquinha, que sahira a espairecer a sua enfermidade, passeiando pelos aceiros das roças, não tinha voltado á casa.

B iteram se todas as circomvisinhanças, mas debalde ; a moça não appareceu.

A primeira idés* que assaltou o espirito do aggregado foi a de ter sido victima de uma cila ia de seu compadre, que pelo aprisionamento de Chiquinha tentava impossibilital-o de continuar a vingar-se. Se tal hypothese procedesse era medida tão justa como a que antigamente toma-vam as nações, exigindo refens, para conterás invasões das outras..

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98 MOTTA COQUEIRO

As pesquizas do subdelegado e do ias peetor provaram, porém, que semelhante supposição era mais um producto mons-truoso da imaginação encadeeida do ag-gregado, e flzeram-o ver claramente a verdadeira . causa da ausência de Chi-quinha.

A moça tinha sido raptada pelo vio-leiro.

Em consciência, este desgosto tinha sido dado á familia de Francisco Bene-dicto mais por vontade da raptada do que pela do seductor.

A tia Balbina advertiu á moça de que ella não poderia ficar nem mais um mez na casa paterna sem que o seu estado fosse conhecido por todos.

De feito, o proprio Francisco Benedicto repetia por vezes o gracejo acerca da mo-léstia de sua filha :

— Era caso para perguntar-sa quando era o baptisado, se o Sebastião já tivesse effectuado o recebo a vós.

E phrase ainda mais significativa disse o inspector André na noita da mudança pára a casa nova.

Para testemunhar o seu jubilo pela en-trada de Francisco Benedicto no numero dos pequenos proprietários da localidade, o inspector não só compareceu á brinca-deira, que foi preparada, mas também concorreu com uma leitôa.

Ao entregar o presente ao aggregado, o dissimuladissimo André disse ttravez de sua galhofa maliciosa e perenne:

— A minha brinquinho deu-me nada menos de uma dúzia de leitões d'essa bar-rigada : dois d'elles são para esta casa; um cá está, o outro virá no dia que sa Chiquinha sabe.

Ainda a impressão (Testas palavras não se havia desfeito, ainda a insinuação im-piedosa que tinha feito feria os brios de Chiquinha, e novo golpe, e e3te maia cer-teiro e profundo, foi desfeshado pelo ins-dector.

Acercando-se da moça, André segre-

dcu lhe com a maior ingenuidade pos-sível:

— Os nomes que mais assentam em creanças bonitas são Francisca e Ma-nuel.

Não havia, pois, nenhuma duvida para Chiquinha. Olhos demasiado curiosos e ânimos pessimistas já penetravam o seu segredo, e as palavras destacadas, e os epigrammas apparentemente despreten-cíosos acabariam por dispertar a attenção geral e perdel-a no conceito de seus pais.

Apegou-se, pois, a uma derradeira esperança : consultar a tia Babina; mas da consulta resultou a certeza dolorosa de que não era possível illudir por muito tempo. Então, impelliia pela vergonha, insistiu com Sebastião para abreviar o consorcio, e finalmente submetteu-se á única solução que o violeiro achava rasoavel — a fuga.

Certo da deslealdade do amigo, Fran-cisco Benedicto descortinou por alguns dias a serie de males que o esperava, compreiíendeu que não tinha junto de si o apoio decidido e leal com que contava, e nem ousou vingar-se de Sebastião, nem a continuar com as provocações ao fa-zendeiro.

Sentia, tarde já, que a inimizade com o seu compadre punha-o inteiramente a descoberto dos insultos de toda sorte, ao passo que os seus amigos Oliveira e André adiavam sempre a punição d'elles.

Náo tinha em quem confiar. O Vianna tinha cortado completamente s« relações consigo e sem que Francisco Benedicto, por uma insignificância qualquer, lhe ti-vesse cffsndido, perseguia-o pela divida contrahida na sua vendola.

Os seus amigos, auctoridades do logar, longe de promoverem a conciliação dos dois, tinham até concordado com o Vianna que o melhor meio de cobrar a conta era obter penhora dos bens do aggregado.

Além d'esta queixa uma outra veiu es-friar a confiança entre os amigos.

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OU A PENA. DE MORTE 99

Uma tarde Mariquinhas desceu para um ribeirão que serpeiava algumas braças distantes da casa.

Antonica e sua mãi, sentadas no terreiro e occupadas em Costurar, ouviram o can-tarolar monotono da moça, que tinha ido dobrar a roupa lavada.

De repente, a inonodia ©svaeceu-se e a l g u n s minutos depois era substituida por gritos de soccorro soluçados do lado do ribeirão.

Correndo apressadas para lá, Antonica e sua mãi receberam nos braços Mari-quinhas, pallida de susto e offogante de c a n s a ç o . O cor pinho, do seu vestido estava quasi todo dilacerado e pelo pescoço da m o ç a merejava o sangue, dentre arra-nhões extensos.

Quando Mariquinhas recup^ou a calma e poude fallar, interrogada pêlos s e u s insistentemente, respondeu, fundindo-se em pranto. ,

— Foi . . . . fo i . . . . um quilombola 1 O irmão de Mariquinhas, assim como

seu pai' tinham corrido immediatamente attrahidos pelos gritos, mas ao passo que Francisco Benedicto correu para a frente da casa, Juca Benedicto dnigira-se para os fundos.

Quando chegou á casa, o rapaz per" guntou se não tinha estado ahi o ex-feitor-

— Nãol respondeu Antonica, admirada. — Pois não se me dava jurar que eu

vi Manuel João correndo para dentro da matta, e até lhe fiquei obrigado pelo ser-viço. VccÔ não o via por lá, Mariquinhas ?

A moça meneiou negativamente a ca-beça, mas os seus soluços como que do-bravam de força.

Convencido de que era o ex-feitor o auctor dos ferimentos de sua filha, o aggregado foi pedir providencias ao seu amigo inspector, mas este respoadeu-lhe serenamente:

— Descance, seu Chico; eu por ora não posso fazw nada ; as eleições estão pró-ximas e eu não hei de recrutar o rapaz que já me jrometteu votar comnosco.

í !

Em passando as eleições falle commigo. O desengano era por demais expressivo

e não havia contar ccm a punição do ex-feitor.

Todos esses acontecimentos que sobre maneira entristeciam o aggregado tinham influencia bem diversa no espirito de An-tonica. .

Firme na sua afeição pelo fazendeiro, cujo caraeter nobre e generoso conhecia perfeitamente, cada uma das decepções que seu pai recebia, cada offensa que fa-

' ziam-lka os seus suppostos amigos, eram motivo de alegria para a moça que d'esta sorte via vingado o eleito dos seus sonhos.

As suas faces que tinham perdido a côr agradavel da saúde, iam agora readqui-rindo-a, e os lábios, que pareciam ter desaprendido as crispaçõas leves dos sor-risos joviae?, já abriam se agora, rubros como pétalas de rosa, para darem pas-sagem a francas risadas.

Os olhos, amortecidos outr'ora, tinham presentemente o brilho peculiar da tran-quillidada e os olhares escarninhos e ousados que lhe eram congénitos.

Dava-se em Antonica uma verdadeira resurieição: as cinzas tristes do coração da moça, as mortas chimeras da mocidade recompunham-se e afeiçoavam-se pelo divino galvanismo do amor.

Antonica era de novo feliz, porque não contava com a inconstância da fortuna.

A amisade do violeiro e do aggregado não demorou a reatar-se por vínculos in-dissolúveis na vida. A necessidade reci-proca era o nd que os prendia e desdai-o era um perigo cujas consequências fu-nesta» já a experiencia podia aquilatar.

A inactividade, em que Francisco Be-nedicto jazeu durante o tempo da indis-posição com o violeiío, provava exube-rantemente o aaerto da alliança, e por isso mesmo o pai de Chiquinha não duvi-dou seeitar as desculpas que lhe foram oferecidas pelo amigo.

Bem simples foram estas*

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1 0 0 MOTTA COQUEIRO

Sebastião confessau-se culpado de le&a-amisadé, mas attenuando a „ sua culpa pelo impossibilidade de resistir a torrente das circumstancias que o arrastou na sua onda vertiginosa.

Chiquinha padecia a olhos vistos: não tinha mais a frescura da mocidade, já no seu semblante não brilhava o plenilúnio d i paz intima que se esbatia em sorrisos deseuidosos, em galanteios delicados.

Ao contrario: as lagrimas destruiam-lhe a pouco e poueo a grasiosa carnação do corpo, e, como os deposites sedimentares a contextura primitiva do mundo, altera* vam-lhe a harmonia dos contornos, e a regularidade feerica das feições.

Semelhante ao passaro cujas azas foram molhadas pela tempestade, e sem tentar um vôo queâa tristemente pousado no galho secco de um pequeno arbusto; Chi-quinha, sentindo ss suas aspirações pre-sentemente cerceadas conservava-se re-signada no seu desconsolo.

Mas o passaro entristecido lamenta-se em pios plangentes; assim também a moça desventurada carpia a sua desdita em fiebeis suspires.

Havia *só dois caminhos para mim, accrescentou ainda o violeiro, ou aban-donar a infeliz Chiquinha, o que seria a sua morte; ou adoptar um meio qualquer para aviventar-lhe a esperança, até que seja possível effectuar o eonsorcio.

Prevenindo a objecção muito procedente: —ninguém na casa de Francisco Bene-dicto impedia-lhe as visitas e familiarida-des, o violeiro defenáeu-se logo com a conversa que Lucio Ribeiro disse-lhe ter ouvido a Faustino.

O resultado das explicações do atilado Sebastião foi hão s<5 o perião, mas tam-bém o reconhecimento do aggregado pela coragem com que o seu amigo se expu-nha aos golpes do fazendeiro.

— Já vê, seu Chico, as cousas como se passaram: eu mandei dizer a D. Maria o que fazia por cá a joia do marido; elle já sabe que fui eu quem mandou escrever

a carta ; por força ha de tar dado ordem, ou ha-de mandar dar ordem aos escravos para me fazerem uma espera. Livra-te dos ares que eu te livrarei dos males; foi o que eu pensei. Indo todos os dias á sua casa, seu Cliico, era fácil uma escora e depois .quem perdia a vida era eu, por que o diabo tem muito dinheiro para com-prar a justiça.

— Não fallemos mais nisso, Sebastião, decidiu Francisco Benedicto; o que lá foi lá foi, tratemos do dia de amanhã.

O armistício involuntário que tinha sido concedido ao fazendeiro estava definiti-vamente findado pela volta de uma das potencias belligerantes ao pacto de guerra.

Cumpre, entretanto, affirmar que as novas operações reduziram-se a simples escaramuças com o fim de arranjar pro-visões.

Um serio confficto, que evitou-se por uma felicidade quasi milagrosa, acirrou os odios e reaccendeu o fogo' dos commet-timentos.

O feitor Fidélis acompanhára alguns dos seus parceiros ao mandiocal, para arrancar-lhe as raízes nutritivas. Ahi encontrou o Juca Benedicto provendo-se indevidamente; e este, longe de descul-par-se, continuou no seu furto sem dar a menor importancia ao feitor.

— Glá, exclamou Fidélis, isto é então roupa de francez, ou easa de viuva ?

O rapaz, sem responder palavra, e fin-gindo não ter visto os recem-chegados, nem mudou de posição. Todavia como ti-vesse arrancado um pé de mandioca, em vez de quebrar simplesmente o caule frá-gil, tirou da cintura uma larga faca de matto e com ella decepou as raízes. Em seguida tomou a rama do arbusto e a re-petidos golpes partiu-a em pedacinhos. Feito isto passou a arrancar outro pé.

— Formiga quando quer se perder cria azas, resmungou Fidélis; e levantando logo a voz, bradou : ohl seu Juca, você errou o seu mandiocal, este é de meu se-nhor.

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1 0 4 MOTTA COQUEIRO ,

— E eu parque sempre accordo a esta hora.

— Deve ser assim mesmo, sa Antonica; é para não desmentir o verso :

Quem tem amores não dorme, Q lem dorme não tem pensão.

— Seja o que vosmecê quizer; sabe mais da minha vida do que eu.

— Eu s<5 lhe digo que se farte bsm de vel-o boje; faça matalotagem para a sua saudade, porque amanhã... porque ama-nhã o sitio já ha de estar vendido.

Uma risada prolongada acompanhou as ultimas palavras do violeiro, emquanto que ás faces de Antonica véstiam de uma livdez cadaverosa, que exagerava ainda mais a côr, os discos de amethista que serviam de palpebras aos olhos tristes.

Òvioleiro tinha comprehendido ajusta causa da madrugada de Antonica; vinha com éffeito beber com os olhares ternos o philtro da seducção que a assenhoreiara e ao qual ella não ousava resistir.

— Yeja se quer governar-me também, respondeu despeitada; e lembra-se que ainda vem a esta casa porque ha homens que não merecem este nome. Não se sa-tifez com desgraçar uma das filhas do amigo, quer diffamar a outra. Pdde con-tinuar v

Ha uma força invencivel sobre a terra, ê a dignidade nas suas explosões sinceras. Antonica, por intermedio d^lla, pôde re-tirar-se, fazendo calar a mofa do violeiro.

Francisco Benedicto veiu d'ahi a pouco tomar mais agradavelmente junto de Se-bastião o logar deixado pela moça.

— Então, já está prompto ? perguntou o violeiro.

— Estou, mas devemos sahir com horas differentes, para não haver suspeita.

— E se elle vier primeiro ? — Qual; ha de esperar que eu vá lá

fallar ; o aggregado é o mesmo que um escravo.

— Aonde então hei de ficar á sua espera ?

Francisco Benedicto meditou um pouco e depois respondeu vivamente :

— Nos taqaarussús; ahi não pôde falhar.

— B' como esperar um veado no rio. O violeiro não demorou muito; despe-

diu-se da família e partiu. Ao ver o seu gratuito apoquentador

retirar-se, Antonica poude emfim res-pirar.

Tal presença incommodava-a dupla-mente : nunca lhe perdoara o desgosto, por elle causado á sua mãi pelo rapto de Chiquinha, e além d'isso seria testemunha da sua perturbação, e um vigia a por-lhe obstáculos.

Rápido contentamento ; maior contra-riedade do que a presença do violeiro veiu logo turvar lhe a alegria que sentira ao despertar.

O seu egoísmo de amante regosijava-se com a exigencia paterna, descommunal embora. E' que via ahi uma demora no ajuste e portanto maior espaço para con-templar o fazendeiro.

Mas estava marcado, talvez pelo desti-no, que para ella não haveria mais esta-bilidade ; todo o sentimento grato devia esvaecer-lhe como um sonho.

Francisco Benedicto, segurando o seu forte manguá, sahiu depois de ter dito á mulher que ia dar a r e s p o s t a ao com-padre e que depois seguiria in continenti a conciliar-se com o Yianna.

A resolução do aggregaio foi uma pu-nhalada cravada no coração de Antonica: frustrava-lhe a occasião de vêr o fazen-deiro, e, perdida esta, qaando se apresen-taria outra ?

Era mais de meio dia quando Motta Coqueiro, cançado de esperar peio ag-gregado, resolveu ir procural-o para obter a decisão do negocio que tanto interessava ao seu bem estar.

A Sra. D. Maria, sempre prevenida para com os sertanejos, queria que o seu

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esposo levasse em companhia dous escra-vos p a r a defènderem-ó de qualquer assal-to, por ventura planejado; mas o Corajoso fazendeiro, .referindo o que se tinha pas-sado dous dias antes, os modos humildes, e a deliberação em que Francisco Bene-dicto fingiu estar acerca da venda do si-tio, hegou-se a ouvir o conselho que sè lhe d a v a e: partiu s<5, cavalgando o seu fogoso e celérè alazão.

Não obstante a resistencia do marido, a cautelosa senhora não abandonou a sua prevenção, e pouco depois de Motta Co-queiro fez sahir Carlos no seu encalço.

O moleque? obedecendo a meio,a ordem recebida, seguiu a principio a galope, porém logo depois na vagarosa marcha do animal, guiando-se pelas pegadas das patas do alazão.

Para atalhar caminho, o fazendeiro entrou pelo interior das suas roças, con-duzido ora pelo gàíõpar largo, ora pela andadura veloz e uniforme do seu corre-dor, distanciando-se assim cada vez mais do seu pagem.

N|o tardou muito a achar se diante da casa de Francisco Benedicto, onde foi in-formado de que este sahira justamente para' áicidir a venda.

— Então não ha tempo a perder, obser-vou Motta Coqueiro; vou encontrar-me com elle em caminho.

Bando de radeas ao valente alazão, to-mou pela estrada geral, que apresentava o seu lombo vermelho no meio do capoei-rão, como disforme coral estendida a fio comprido sobre um capinzal.

Quando elle sumiu-se na grande volta do caminho, Antonica veiu encostar-se ao umbral, embebidos os olhares lamen-tosos na direcção tomada peio cavalleiro. Transluzia-lhe no semblante a eloquen-ciá arrebatadora da saudade, e logo se lhe deslisou do coração aos lábios uma queixs, repassada de tristeza : -

— Nem perguntou por mim: soluçou baixinho a sua voz commovida. I

Parecia que as forças haviam-a aban-do o ado, tornando-sa-lhe impossível dar um s<5 passo. E' que a dominava um des-falecimento hypocondriaco, um d'esses spasmos moraes que entorpecem os mús-culos e concentram todas as faculdades em um ponto único, semelhantemente a um abat-jour á luz de um foco enorme em superfície restricta.

De súbito, porém, electrisada por um presentimento, voltou-se para dentro e perguntou á sua irmã :

— o capitão não d"isse se hoje falloú já com papai ?

— Não, respondeu Mariquinhas distra-hidamente, perguntou sómente por elle.

— Meu Deus, meu Deus 1 eu sinto tanto medo, parece-me que vai scontecer al-guma desgraça, murmurou Antonica.

— O que é que você está dizendo, mana? — Ah! sim, gritou a infeliz ; eu dizia

que ó mais certo que papai tenha ido pri-meiro visitar Chiquinha.

— Ha de ser isto. Antonica terminou o dialogo sahindo

apressada e cautelosamente, e quando já não podia ser vista correu incansavel-mente até a margem do ribeirão atola-diço que espreguiçava o seu dorso limoso algumas braças distantes do fundo da casa.

Atravessou-o animosamente por sobre uma tora estreita que se lhe superpunha e, trepando pela margem opposta, re-folegou, para de novo correr por urna picada do câpoeirão até á beira da estrada.

Pensava que, por maior velocidade que pudesse obter do seu invejável alazão, o fazendeiro não podia ainda ter passado por aUi.

De feito a topographia do logar funda-mentava esta supposição. O valle, ser-vindo de escoadouro a enormes brejaes, obrigava a estrada a uma volta alcmga-dissima e extremamente caprichosa,acom-panhando mais ou menos a fralda dos morros visinhos.

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Para bem figurar o traçado, imagine-se uma secção feita pela altura de um cone, cujo vertice era occupado pela casa nova,

Quando chegou a estrada estava deserta, Amendrontada por sua própria cora-

gem, Anto ica, offegando de cansaço, não atreveu-se a ir adiante; ficou occulta entre os arbustos marginaes da estrada.

Pendiam-lhe sobre ella, carregados de cachos vermelhos, os ramos de enorme arueira ; em torno e em cima estendia-se o silencio do céu a transbordar de luz ; da natureza asphyxiada pela canicula.

Para distrahir-se e desfarçar o temor, Antonica puchou um dos ramos pendentes e. cortando com os dentes um dos cachos de fructos, começou de arr-ãnca-Ios repe-tindo baixinho, bem me-quer, mal-me-quer.

O estrupido de um proximo galopar veiu tiral-a promptamente da sua distrac-ção, precisamente no momento em que se despegava o ultimo fructo,correspondendo a uma grata lisonja : bem-me-quer.

Impellida pelo coração, sentou-se á beira do caminho e, derribando os olhos, esperou por aquelle a quem se sacrificaria sem escrapulos.

De chofre o som io galopar extinguiu-se, e uma voz alegre fez ouvir.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo, sa Antonica.

Ainda Antonica não tinha voltado a si da profunda decepção, quando Carlos, que era quem a saudava, continuou:

— Senhor já passou por aqui ? Esta pergunta chamou Antonica ao

triste presentimento que a trouxera até alli, e acudiu de afogadilho:

— Vai, vai já, Carlos; um momento mais e talvez... vai, vai já .

O moleque, talvez recordando a scena a que tinha assistido na sala de jantar, não se deixava comoaunic ir pela anaiedade da moça; ficou frio e perguntou em tom es-carninho:

— Ha onça peio caminho ou algum boi bravo ?

— Não, não ha, mas pdde haver coisa peior, muito peior; Carlos, uma embos-cada e teu senhor morrerá.

N'este momento atroou, reproduzindo-se por longo tempo no écO, ã detonação de um tiro.

Quem n'este momento estivesse cerca de um quarto de leçua de distancia do logar em que se achavam Antonica e o psgem, sssistiria a uma scena da mais cruel deshumanidade.

Sobre a estrada pouco espaçosa incli-navam-se, formando uma abobada folhuda e virente, as ramificações e as pontas dos estipítes de taquarussús gigantescos.

Uma continua escuridão entristecia o logar, porque a estrada, estreitando e en-curvando-se como um pescoço de cysne, fazia com que as arvores marginaes qnasi entrelaçassem os galhos, improvisando uma espessa cobertura.

Os raios do sol apenas coavam-se, dese-nhando no solo um crivo de sombra e luz que, oscillando á mercê da viração, orà abria as grandes malhas lúcidas, ora adensava as largas manchas de sombra.

Ahi, d'esde o amanhecer, estavam em-boscados á espera do fazendeiro o aggre-gado e o violeiro, para executarem um assalto conforme o plano traçado por este.

Era de feito o melhor logar; não s<5 a estrada estreitava-se, mais ainda fazia uma depressão, erguendo de um lado um alto barranco. O declive ia terminar n'um brejo que estendia o seu atoleiro até meio da estrada.

Qualquer transeunte era, portanto, obri-gado a aproximar-se muito dos taqua-russús para não atufar-se no lodo.

Aquelle que se emboscasse entre a enor-me toceir-a das grandes taquaras podia sem perigo accommettér sem temor de represalia : defendia-o uma couraça tres-dobrada.

Quando Motta Coqueiro, no largo e des-cuidado trote do seu alazão, ia costeando o meio da grande curva da, estrada, Francisco BeneSicto desfechou-lhe a pri-

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meira paulada, que foi bater no hombro do fazendeiro. ;

O alazão estacou de súbito, e o seu dono tomou a attitude da defesa. Engatilhou rapidamente a pistola, e esperou como sangue frio que lhe era peculiar.

O aggregado apparéceu então sobre a ribanceira.

— Matame, seductor e ladrão da gente pobre; acaba assim a tua infâmia, não será a primeira que tenhas feito.

_ Ora, compadre, você nunca tomará juizo, homem f Yá para casa dormir que é do que você precisa. Eu perdôo-lhe por esta, mas a menor cousa que me conste eu lhe farei as contas. Passe bem.

Confiado na arma que empunhava, e ainda mais no seu possante alazão, Motta Coqueiro tentou seguir.

— Babado, não e? estou b ,bado; esta é a resposta.

O manguá vibrado pelo aggregado le-vantou-se sobre a cabeça do fazendeiro, que disparou a sua arma, ao mesmo tempo que esporeou o animal.

O manguá foi arrebatado pela bala das mãos de Francisco Benedicto; mas ao mesmo tempo o alazão esticou se em rá-pido arranco e Motta Coqueiro foi vare-jado em terra.

Um novo inimigo veiu collocar-se-lhe em frente, e este, mais pujante e mais te-mível, era Sebastião Pereira.

Fôra elle a causa da quéia * do fazen-deiro.

Manejando um grosso cacete arrancou as redeas da mão do cavalleiro, que foi inopinadamente arremessado pelo alazão.

Começou uma scena horrível; um homem inerme era forçado-a defender se contra dois outros que tinham a favcr n&o só as armas, mas também a fria premedi-tação do crime.

— Eiswos agora em frente, descaio, exclamou o violeiro ; ou morres d'esta ou has de guardar sigaal para toda a vida.

O fazendeiro não respondeu; tcdo o seu

cuidado era defender-se para impedir a derrota inevitável.

Uma paulada, vibrada por Sebastião, lançou-o por terra afinal, inundaio n'um lago de sangue.

Upa, upa, ouviu se n'este momento, ao mesmo tempo que o estrepiâo de uma galopada.

— São 03 escravos do malvado; não ha minuto a perder ; fujamos, seu Chico.

Os, dois miseráveis galgaram preste o barráncó © internaram-se na matta, a-ados pelo teoôor ^o castigo.

De feito, não se haviam enganado. Ouvi 3 o o tiro disparado por Motta Co-

queiro, um grito desolador, arrancado peia paixão ao coração de Antonica, sanctiflc&do pélp soflrimento, misturou-se á detonarão, que transudava do seu roufenho arruir um pensamento ãe morte no espirito da moça.

A desventurada amante cahiu de joe-lhos, e com voz quasi sumida, murmurou:

—f Meu pai matou seu capitão 1 — Malvado, bradou o molequê, hei de

matal-o também. Curvando-se sobre o cavallo esporeou-o

e partiu á brida solta, gritando com o duplo fim de annunciar o proximo soc-corro e incitar o corredor na sua dis-parada.

Era uma tosca imitação do despeia mento indomável do tartaro de Mazeppa. Os arbustos, como que amedrontados, passavam semelha-ntes a relampagos por diante do cavalleiro, e o ar, vibrado vio-lentamente, assoviava o cântico ironico da vertigem.

Atoleiros, pequenas pontes, tudo era passado de súbito. O chão e os cascos do animal formavam uma engrenhagem in-visível, rodando com o movimento do tur-bilhão.

Não era uma corrida, mas um vôo ; as azas emprestavam as o temor e a dedica-ção.

— Upa, upa, bradava continuamente o cavalleiro ; upa, valente !

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108 MOTTA COQUEIRO

Áo entrar na grande curva do caminho, empinando-se bruscamente sobre as patas trazeiras, o corredor- obstinou~se a não seguir, e tomando o freio entre os dentes, voltmi na mesma desfilada.

Era impossível resistir-lhe ; Carlos pu-lou resolutamente e correu.

A poucos passos do logar em que o Ca-vallo refugara, jazia Motta Coqueiro es-tendido sobre a estrala e banhado em sangue.

— Soccorro! soccorro Imataram o meu senhor, bradou Carlos dando de face com o corpo do fazendeiro*

S<5 o éco incumbiu-se de repetir-lhe, como por'éscanieo, as palavras cunhadas pela sua sífilcção, e quando o som da sua voz extinguia-se em successivos susurros gradativamente esvaecidos, sobrevinha o profundo silencio dá matta, que exage-rava a tristeza do quadro. .

— Meu senhor, meu senhor! conti-nuava o pagem; sou eu, Carlos, o seu es-cravo Carlos.

E o afílicto rapaz apalpava e sacudia o desmaiado com uma impaciência febril.

— Ah! meu Deus; podem pensar que fui eu. Soccorro!

A mão de Carlos collocou-se sobre o coração do fazendeiro.

— Está vivo; meu senhor 1 diga que não fui eu; <5iga a todos.

O infeliz pagem delirava e estafava os pulmões em gritos de soccorro, disfar-çando <festa sor to principalmente o te-mor de ser considerado o assassino do seu senhor.

Alguém veiu dentro em pouco tempo segundar os seus exforços para chamar o fazendeiro á vida.

Offegante, com os olhos avermelhados e as mãos tremulas, Antonica desceu cor-rendo a pequena ladeira, e veiu sentar-se junto d'elle, collocando sobre o seu collo a fronte ensanguentada do fazendeiro.

— Morto 1 os covardes mataram-o por minha causa, por mim que o amo.

—Não, não diga, o coração de meu se-nhor está batendo» veja.

Felizes aquelles que sabem amar : têm na própria desventura, nas horas da maior angustia, alegrias indisiveis. Para ssrem venturosos basta-lhes somente a espe-rança.

Antonica certificou-se de que ainda ba-tia um coração sob o peito do eleito de sua alma, e depois fez os seus lábios tes-temunhar de que ainda por entre os Ja-

» bios d'elle passava o sopro da vida. Nas-ceram-lhe espontaneamente os desvellos de mãi, e, solicita, tráteu de prestar os primeiros soccorros. " Coroou-lhe a felici-dade os exforços ; as palpebras do fazen-deiro venceram em fim o torpor que as parslysava.

— Está melhor, não é ; já está melhor? sorriu a dedicada amante.

— Covardes 1 murmurou o fazendeiro, e cerrou novamente as palpebras.

A soffreguidão avassallou o animo de Antonica ; nao podia mais conter-se ; queria convencer-se de que Motta Co-queiro não estava irremediavelmente ferido.

— Esc ato ; sou eu. Antonica ; os mal-vados já se foram, estamos eu e Carlos. Tenha animo. Deus ê grande; ha de ficar bom.

As palavras da moça chamaram era fim o fazendeiro á realidade. Sentou-se cheio de espanto, e olhou ao redor de si.

Devia iulgar-se no curso de um pesa-dello, porque na verdade era incrível tão nobre dedicação na filha do ingrato que lhe pagava os bsneficios recebidos com ua£>a tentativa de assassinato.

Não menos para sorprehender era a dor estampada no semblante de Carlos. O generoso escravo esquecia n'aquelle momento que estava em face de um se-nhor, e chorava como um homem de bem a morte de um amigo.

— Antonica 1 exclamou elle, depois do primeiro espanto; p m ê você, minha filha ?

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OU A PENA DE MORTE 1 0 9

— Vim pedir o seu perdão para a mal-dade de meu pa i ; vim. pedir lhe que não me tenha odio ; eu não pude evitar, res-pondeu Antonica.

As. lagrimas corriam-lhe em fios, e os s o l u ç o s trancavam-lhe as palavras. Pai-r&va-Iha sobre o semblante a solemnidade de uma boa acção, ô amor conquistava n'osta hora um perdão que se podia crer imporsivel—ó perdão do aggregado,

Porque havia eu de o;iial-a, Antonica? Nem odeio a teu pai ; são a embriaguez e a malv&deza d*s Sebastião os seus anjos èíáus; perdôoo sim, porque tu és boa, és uma santa. •

— Eu hei de estimai-© ainda m á s . Bom e santo é voss-.e;:ô; Deus ha de pagar-lhe.

Uma eífoaSo de ternura immaculada correspondeu ás palavras de Antonica. O olhar do fazendeiro COÍBO quecreava em torno de si um mundo para os seus co-rações afinados ambos pela bondade.

Machinalmente cingiu contra o peito a meiga filha do aggregado e pagou com um beijo, rcçsdo na sua fronte descorada, tanta coragem e amor.

Mas comô se uma força mysteriosa os repellisse, este abandono do amor não demourou-se ; os lábios do fazendeiro re-tiraram-sa e ao beijo succeieu um estre-mecimento.

— E' necessário que você parta, que volte para a cara de seus pais.

— Porque? — Porque ninguém acreditará que eu

lhe voto o respeito de que você é digna, Antonica; hão de jdgar-me seu smante.

— E que me importa a mirn ? não sa-birei d'aqui antes de vel-o partir.

— E' um comproraettimento, minha filha, Q bastaria que alguém aqui ncs visse, p^ra que seu pai justificasse o seu crime. Parte, parte já, minha filha.

O fazendeiro ordenou em seguida ao seu pagem que seguisse Antonica, e ellá, sem íerçss para resistir, apenas protes-tou abaixando os olhos.

—AdeusI disse commovido o fazendeiro.

— Adeus l respondeu Antonica n'essa triste entoação da condescendência quei-xosa, e levantou-se.

— Talvez não nos vejamos nunca mais, minha filha; quero que também me con-cedas um perdão; cohceães ?

Antonica acenou afirmativamente a cabeça.

— Perdoa-me o s-.ffrimento de que eu teaho sido causa; perdoa me, porque eu não faço mais do que cumprir com os de-veres de honra para comtigo e para com os meus.

— Eu já não me queixo, respondeu An-tonica. ê o meu destino. Adeus.

Apenas alguns passos tinham sido dados pela moça, quando Carles avisou a seu senhor de que se aproximava a gente do sitio.

Tanto melhor, respondeu Motta Co-queiro, não ficarei sdsinho.

Com effeito, ouvia se perto? o tropel de uma cavalgada e antes que Antonica ti-vesse tido tempo de occultar-se, Carlos exclamou cheio de espanto :

— É' minha senhora, meu Deus, é mi-nha senhora.

Na extremidada da curva appareceu, montada em um forte mursello, a Sra. D. Maria. Os pés de Antonica negaram-se a caminhar; a apparição produzia lhe o effeito de um espeetso.

Apeiando-se apressadamente a corajosa esposa, que adivinhara o acontecimento pela" chegada do alazão, disparado e só, apertou nos seus braços o fazendeiro.

— Bem m'o dizia o coração, soluçava ella; mas havemos de vingar-nos, seja embora necessário vender o meu ultimo cordão de ouro. Covardes 1

Houve um momento de silencio/De re-pente a Sra. P. Maria, tendo olhado em volta de si, exclamou com a v<5z travorada de cólera:

— o que veiu aqui fazer aquella mulher I Motta Coquiro respondeu severamente: — Ouviu os gritos de soccorro, e teve

a coragem de vir.

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110 MOTTA COQUEIRO

— Então não foi ella a causa da embos-cada ! . . .

— Não ; é uma infeliz ; culpada, não.

IX

UM COMPROMETTIMENTO FATAL

• respeito que, pela modéstia, sobrie-dade de palavras, e maduresa de animo, o fazendeiro conseguiu sempre inspirar á sua esposa, obviou milagrosamente as sérias dificuldades da situação embara-çosa.

O coração da mulher é, como pensava o poeta inglez, um bello defeito da natu-reza. Divide o em duas partes distinctas e contradictorias uma separação fragi-lima, feita de apprehensões e susceptibili-dades: em cima azula-se um firmamento, em baixo ennegrece-se um abysmo.

Um abalo é bastante para oecasionar uma explosão de trevas ou um transbor-damento de luz; as temeridades do ciúme ou os s&criflcios do amor.

Ha uma só excepção; é a que encerra os corações apathicos e indifferentes, verdadeiras monstruosidades.

A Sra- D. Maria não era excepcional; amava com a boa vontade de um espirito que encontrou no mundo um outro para còmpletal-o nas alegrias, assim como nas dores, e por isso mesmo deixava-se facil-mente avassallar pelo pânico de perdel-o.

A presença de Antonica revivera-lhe as angustias que lhe tinha causado a carta anonyma forgica la pelo violeiro, graças ã pericia de Lycerio, o rabula venal.

Demonstrava-se claramente o amor da filha do aggregado para Motta Coqueiro, e embora estivesse absolutamente con-vencida da nobrasa de caracter d'este, todavia arreceiou-se de que de futuro não se alevantassem mais alto do que a refle-xão os vôos da sensibilidade e da com-paixão.

Nem sempre o amor é filho da exalta-ção dos sentidos, muitas vezes nasce da piedade, e em todo o caso por mais pla-

tonico, por mais alheio aos anhelos sensuaes, o affecto votado pelo fazendeiro á Antonica era uma espoliação ao con-sorcio.

Convinha, portanto, desarraigal-o, dés-truil-o como se faz com as hervas e os animaes damninhos.

A resposta de Motta Coqueiro proferida com um accento simples, mas solemne dè decisão, impedia á Sra. D. Maria tomar qualquer expediente, qua não fosse o da indiffer<»nça ou o da gratidão.

Escolheu o primeiro caminho,e a amante retirou-se acompanhada por Carlos, em-quanto que por sua vez o fazendeiro e a sua esposa acompanhados peles escravos, seguiram para o sitio.

O ferimento capital não apresentava gravidade, e o sangue poude ser facil-mente estancado, a vista do que Motta Coqueiro manteve-se na resolução de tomar por única desforra a retirada de Francisco Benedicto de suas terras.

Sua mulher, porém, não se resignava, nem podia satisfazer-se com tão pouco; incandeciam-se-lhe á proporção que pas-savam as horas os seus brios de fazen-deira respeitada, e senhora de alta socie-dade.

Só por uma lição estrondosa, entendia ella, o seu marido poderia de novo entrar nas salas de seus amigos com a cabeça erguida.

— O que tenciona o senhor fazer a esse ingrato e ao seu cúmplice ?

— Entregal-os ao desprezo, respondeu fieugmaticamente o fazendeiro; são tão miseráveis que nem vaie a pena perse-guil-os.

—E o que havemos de dizer aos nossos amigos, quando se espalhar o boato de que o senhor foi espancado por um aggre-gado, que assim vingou a seducção de uma filha ?

— Direi que ó uma calumnia tão mal engenhada que basta uma simples consi-deração para confundil-a': o. homem que foi companheiro do supposto paioffendido

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na desaffronta imaginam) de sua honra, raptou-lhe uma das filhas.'

— Aeaiumnia será de preferencia acre-ditada porque a aggressão realisou-se, e não tardará que todos venham a saber que é real o amor de uma das filhas do aggregado peio senhor,

— Pac iênc ia ; eu não posso retribuir a violência com a violência.

— Ha um méio, é punir o crime ; para isso é que existe a lei.

O dialogo terminou pelo sileneio de Motta Coqueiro.

As considerações da esposa tinham uma base irrefutável e não podiam ser abando nadas ; por outro lado o pedido de Anto-nica, no momento em que expunha a sua r e p u t a ç ã o de mulher honesta è a própria vida,— porque a brutalidade de seu pai não poupal-a-hia caso sorprehendesse-a em meio do acto meritorio, — fazia-o va-cillar.

Um expediente apreeentou-se; mover o processo contra o aggregado ò deixal-o mais tarde, quando a primeira impressão desapparecesse, correr á revelia.

Harmonisados d"esta sorte o coração e o dever, resolveu notificar o aconteci-mento ao Sr. Oliveira, subdelegado do logar, e pediu a sua presença para ser cumprida a lei.

Estava, pois, satisfeita a vontade da esposa.

Tranquiliisada por esta resolução de seu marido, a Sra. D. Maria teve um verdadeiro desafogo ao saber de uma outra nova.

Ao chegar em casa, a indignada con-sorte despachara immediatamente os es-cravos Fidélis, Peregrino e Alexandre, ordenando-lhes que percorressem as m&t-tas visinhas afim de descobrir o escon-drijo dos criminosos.e piendêl-os

— A gente poáii fazer isto, minha se-nhora, &e elles não se alevantassem contra nós; como ha de acontecer, observou Fi-délis,

— E vocês não tem mãos ? Se elles re-sistir em tragam-os á força, tragam os seja quando fôr, estejam aonde estiverem.

Fidélis sahiu satisfeito; a feitoria esta-va-lhe definitivamente entregue; não havia mais possibilidade de passar ás mãos de Francisco Benedicto.

Além disso facilitava- se-lhe uma oppor-tunidade para vingar-se dos insultos do aggregado, mas, apezar da boa^çoatade e zeloso esforço para capturar os fugitivos, o feitor nâo regosijou-ae com a realisa-ção dos seus desejos.

Os criminosos tinham-se prevenido con-tra esta consequência necessária do seu acto; a essa hora descançavam tranqui-lamente á grande distancia, d completa-mente fóra do alcance de qualquer vin-gança.

Quasi ao anoitecer os escravos vieram participar a senhora o mallcgro das suas pasquizas, mau grado a solicita diligencia que tinham feito para o êxito da empreza.

— Está bom, respondau-lhes a Sra. D. Maria; elles hão de apparecer em qualquer teSapo.

Fideli3 retirou-se duplamente contra-riado p*lo sangue frio de sua senhora e pela sua f&lta de pericia no ^desempenho da commissão.

Uma outra pessoa da casa mostrava-se profundamente sentida pelo aconteci-mento ; era a tia Balbina.

Os seus soluços e imprecações conse-guiram captar novamente a sympathia da Sra. D. Maria e desde aquella hora abriram-se lhe as portas da casa grande.

Fatal imprevidência 1 A dôr de Balbina encontrou se com a

decepção de Fidélis, sinceramente empe-nhado em des«ffrontar Motta Coqueiro da aggressão recebida I

— Ah ! tia Balbina, disse Fidélis, eu antes queria ser surrado do que não achar o diabo do aggregado ; queria quebrar-jhe os ossos áquélle desalmado.

— O feitor deve estar sempre do lado dos brancos» respondeu a feiticeira, O

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grito vai sempre paia o lado que segue o vento. Fidélis já não é como seus par eeiros, Os signaes do castigo estão nas costas d'estes, não importa ; o sol qu i ^ a ã sambabaia e mata as pucaçús, o eito s<5be sempre ; o escravo &úa a tirar fóra a camisa, não importa ; o feitor manda seguir sempre para diante pcrque é o lucro do seu senhor. Fidélis já não é um parceiro, é um senhor-moeo; quem offen-de-lh© offanda ao senhor.

— Porque vosmecê diz isto, tia Balbi-na ; eu tenho sido máu para os escravos do sitio ? ! . . .

— Não sahiu isto da bocca de Baibma, nem da de seus parceiros: todos querem bem ao feitor, mas nem por isso esquece-ram o rigor do c&ptiveiro. Fidélis sente a áôr de seu senhor; Balbina lembrou se de uma dôr sua. Um dia, ainda cahia ne-blina e o céu tinha a est^ella granie da madrugada, e Balbina foi amarrada no cabeçalho do carro. O frio faria como es-pinhos de jurubeba o corpo da encrava, e o senhor de pé na porta* embrulhado no seu capote, disse com má voz^surrem-me esta negra. Os parceiros de Balbina foram dizer que era e;H a que gerava a doença nos escravos e nos animaes do sitio. Na senzala da feiticeira estavam o Deua que Balbina oonheceu na sua terra, e as her-vas.com que a escrava tinha amisade quando era criança e livre. Bastou para se ver ahi a feitiçaria que mata.

Os chicotes bateram SQJH dó nas costas da feiticeira, como as varas fortes sobre as vagens madura? do feijoal. O sangue já corria, mas o castigo não parava. O filho dos brancos, creado por Balbina, o fiiho dos brancos querido por Balbina como seu, estava amarello e magro; o doutor cançou de tratar, não sabia a moléstia. E' feitiço da ercrava, diziam todos. O pai qusria vingar o seu filho e não teve dó de Bal-bina, que não chorava por que tinha odio só, e não sentia que a iam matando.

Quando o castigo acabou a nrgra ainda ferida foi para o eito, e lá não houve

nmguem que tivesse pena dV.Ha; todbs fu-giam da feiticeira, eomo se foge de cobra

— Hoje o senhor de Baibma apanhou das mãos do aggregado, e mulher e filhos e escravos, todos choram e F:d-l?s antes queria ser surrada, do que voltar para a casa de seu senhor sem o ter vingado.

— Para que ha de guardar este odio", tia Balbina ? Nós não encontraremos me-lhor senhor.

— Balbina não tem od o, chor ou tam-bém a desgraça, mm lembra que ninguém chorou per ella, Hoje ninguém diz que é o castigo de Deus pela maldade com a innoeente; paciência.

— Ah I sa o senhor soubesse d';sto tia Balbina; o que vosmecê não soffreria'

O feitor affastou-se lentamente, mas quando ia a ai-uma distância; foi detido # pela voz da feiticeira :

— O parceiro de Balbina vai levar aos brancos o que ouviu; mas Deus está vendo que Balbin % nãfl quer o mal d'elies.

— Náo é meu costume, tia Balbina, respondeu nobremente Fidélis ; eu tam-bém sou escravo.

— Jura pete morta de tua mãi, que sempre foi escrava, que soffreu como Ba bina, e não teve quem a chorasse quando soffria.

— Para que me lembra minha mãi, tia Balbina ; o escravo não tem mãi. Juro, juro sim.

— Balbina quer que se faça o castigo do aggregado, inimigo dos escravos; mas não quer que Fidélis se esqueça de que é escravo. Quem mandou ao feitor prender o aggregado ?

— A senhora mandou que o trouxés-semos á forç%, e eu havia de trazel-o ainda que fosse morto.

— Sim, sim, meu parceiro; acudiu promptamente a feiticeira. A senhora disse; cumpre, hoje, a manhã, sempre. Será menos um branco; acrescentou n'um murmurio,e a perdição dos outros. - O açodamento com que a tia Balbina recebeu a revelação do feitor sob rosal-

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OU A PENA DE MORTE 1 1 3

Iatrodazido na sala de visitas, accsdeu sem resistencia ao convite para passar aos aposentos do fazendeiro.

'Uma pallidez a proposito s.ttenuava o colori "sadio do rosto do subdelegado, e 4331 cerrar de mãos, assim como um me-dido accento ioterjectivo mascar avam-ihe as intençõe?, á. semelhança de um rotulo esmerado á mercadoria falsificada.

— Ninguém poderia pens&r ao menos em que tal acontecimento fosse a paga de tantos favores, exclamou elle. Esse mise-rável que em parte alguma obter ia siquer passagem pelos terrenos de um homem ssrio a com taflo conseguiu terras, casa, e a amis?ide de V. S. Que alma, que torpe, caracter a do tal Francisco Benedicto I Faça-m.e o favor.

— Eu lastimo-o, não condemno-o abso-lutamente, respondeu Motta Coqueiro ; é extremamente ignorante e além d'isso embriaga-se. Não ó perdél-o que tenho esca vista mas' simplesmente intimidal-o.

— Como ?l Perdoe-me V. S , ha de cumprir-se a lei. Yá lá que se tenha pie-dade para com o velho desmiolado, mas

'com o seu cúmplice, éimpossivel; Qual-quer brandura com elle é nada mais, nada menos do que soltar uma fera em todò essa Macabú. Se elle sem protecção faz d'estas, o que não fará se tiver a justiça por si.

— E' o que eu. penso, Sr. Oliveira, in-terveiu a Sra. D. Maria. Parece fabula o que essses homens têm praticado com-nosco. V. S., que é auctoridade, parecé-me que deve fazer cumprir a lei, apezar da bondade do Sr. Motta.

— Co ate commigo, minha senhora; apesar de reparado do Sr. seu marido em politica, tributo respeito ao seu honrado caracter.

A conversa, desviada para assumpto, diverso do que dava motivo a familiar e expansiva visita d> subdelegado, voltou por direcção d W e ao ponto primitivo.

—« V. S. fará o favor de convidar as suas testemunhai para a audiência na

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i o u A p r o t a t a Q B t ® ; © q u e h a v e r i a ú é è r A b e r t o a e s c r a v a Q v U m t ã o to-

' p i e s e t ã o n a t u r a l ? 4

• -Depois d e separarem-se, a i n d a FidsÉp--pensava no t o a i - e s p e c i a l c o m q u e B o b i n a , l h e fállara po r . ultimo, o, de s -c o n f i a d o , ím t e n ç ã o d e .rómmuniear a s u a s e n h o r a P q u e s ô p a s s a m e n t r â e l í e s .

— Q u e b r o o j u r a m e n t o , - g a a s n m i m -p o r t a ; d e s c u b r o a malvadeza q u e a s sa f e i t i c e i r a e s c o n d e . .

U m a h á b i l manobra a a t i a B a l b i n a i n u -t i l i s o u © p l a n © ée F i d é l i s .

- A o s-àMr d a r e v i s t a , a f e i t i c e i r a a ce r -j . i J m ««ffnm/kn/ifli «S« nslâV?8S C0U-S9 UU leiWíi" c p o â " " ^ » » - - --comas lagrimas,-'dissé-lhe "dolosamente:

— B a l b i n a j á sa a r r e p e n d e u d© t e r f a l -l a d o d o s e n h o r , p o r q u e e l l e é b o m . C a r l o s c o n t o u q u e o b r a í i e o v a i p e r d o a r o a n t r o q u e o e s p e r o u p a r a m a t a r . B a l b i n a p e r -d e u o Odio, p o r q u e t e m c o r a ç ã o , e p e d e p e r d ã o a o s e u p a r c e i r o .

— F o i D e u s q u e m l h e f a t i o u , t i a Ba l -b i n a , f o i D e u s ; r e s p o n d e u F i d é l i s ; e r a m u i t a m a l d a d e .

N o d i a s e g u i n t e d u a s p e s s o a s e n t r a r a m na casa . g r a n d e e x t r a o r d i n a r i a m e n t e c o m m o v i d a s . U m a e r a a t i a B a l b i n a a q u e m f o i p é l a S r a . D . M a r i a c o n f i a d a , a l a v a g e m d a r o u p a d o s e s c r a v o s d o s i t i o , e d a d o u m q u a r t o n a c a s a g r a n d e , h o n r a q u e só r e c e b i a m a s b o a s e s c r a v a s »

A o u t r a e r a o s u b i é l j s g a d o Ol ive i ra , , q u e a t o d o o g a l o p a a t r a v e s s o u o c a m p s do s i t i o , e apeisnsio-sQ p r e c i p i t a d a m e n t e á p o r t a d a c a s a g r a n d e , a p e r t o u c o m a m b a s

. a s m ã o s a s d a S r a . D» M a r i a , e x c l a m a n d o t o d o c o m m o v i ^ o ;

— E ' i n c r i v e l 5 m i n h a s e n h o r a ; é i n c r í -v e l q u a p o s s a h a v e r s o b r a a t s r r a t a n t » mgraturãfi.

A s melhores e «aaU t o c a n t e s e x c l a m a -çÕ3s guatadou-*s p r u d e n t e e a i t i s t i c a -m e n t e o S r . O l i v e i r a p s r a o e f f a i t o s c s -nicOjO d e s l u m b r a n t e q u a d r o final do p r i -m e i r o a c t o d a t r a g e d i a d a i n t r i g a .

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minha casa. Logo que se pronunciem os reus, eu fal-os-hei prender; nao me escaparão, eu lh'o juro.

— Eis uma dificuldade que nao posso remover, ponderou fieugmaticameiita o fazendeiro; a emboscada foi feita em lo-gar ermo; não houve testemunhas.

— Ora, meu amigo, acudiu o Sr. Oli-veira, V. S. não tem razão para desani-mar per tão pouco. A cousa mais simples d'este mundo é arranjar testemunhas. Deus defenda aquelle a quem se queira perder; com trabalho diminuto ccnse-guem-se testemunhas de vista para accu-sar um paralítico pela auctoria de um assassinato a vinte cu trinta léguas de distancia.

—- Mas ha para mim um embaraço grandissimo ; ainda que o facto seja ver-dadeiro, as testemunhas serão falsas, e d'esse meio creio que nenhum homem de bem se serviria.

— E' um modo de pensar que teria como consequência a morte de todos os homens de bem ás mãas da canalha. V, S, parece-me exagerar muito a noção da moralidade da justiça.

—Pôde ser, mas não creio que V. S. te-nha razão. Por este systema de distri-bruir a justiça, po leremos chegar ao la-do opposto: obter testemunhas venaes e por meio d'ollas condemnar innocentes.

—Não contesto absolutamente; nada é perfeito n'este mundo, mas declaro-lhe francamente que estou convencido de que sobre cem individues accus&dos um, quan-do muito, é innoeente.

—Será, mas não penso que a sociedade tenha o direito de punir a quem não com-raettsu delicto, pelo irraso&vel pretexto em idênticas circunstancias. Assim ne-nhum de nós estaria seguro em sua casa. JPor minha parte afílinço-lhe desde já que se não houver testemunhas .contra o compadre, eu desistirei do processo.

— Pois olhe ; eu cão sou suspeito, dou-me com o Chico Benedicta e Sebastião, mas nãD tômillaria jurar qiíe foram ellé?»

E quer V. S. um conselho ? entregue..a causa ao Lycerio. Não se ha de arre-pender.

Eu concordo e aceito o conselho, disse a Sra. D. Maria.

Depois de reflectir por algum tempo, o fazendeiro decidiu-se também a consti-tuir Lycerio seu advogado, mas a ver-dade é que ao communicar a sua reso-lução pairavá-lhe nos lábios o vago sor-riso da desconfiança.

Retirando-se' o Sr. Oliveira, Motta-Co-queiro perguntou distrahidamente a sua mulher :

— Crê na sinceridade do subdelegado ? — E porque não ; eu não sou descon-

fiada como o senhor, e demais quer elle queira quer não eu saberei desafíron-tar-me.

— Pôde ser que você tenha razão, mas eu tenho até repugnancia do tal homem. O meu parecer era buscar com todas as forças obter a mudança do compadre.-

— Isto, quer elle queira, quer não, ha de fazer se, mas pagará também o in-sulto.

Alguns dias depois, a causa era con-fiada a Lycerio com plenos poderes, e Mótta Coqueiro e sua familia ausenta-vam-se do sitio com um protesto da Sra. D. Maria.

— Èu não voltarei aqui antas que o ággregaio e sua familia se mudem.

Êm vão eapa? ou-se durante o primeiro mez, o segunrjo e os que se lhe seguiram, uma solução legal para os graves fac-tos oocorridos no sitio ; nada se resolverá e para cumulo de maíes ss noticias que de lá écoavam na checara de Campos de-nunciavam novas e perigosíssimas pro-v o c a i s do aggregsdj.

Entre Fidélis a Juca Benedicto dera-se outra scena da violência, e tal foi a exal-tação de animo e vehemencia de p?rte a parte que ó feitor correu ao encalço do filho do aggregado até proximo da casa nova.

1 1 4 MOTTA COQUEIRO

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OU A PENA DE MORTE 115

Taes factos eram meras consequências d a a n i m o s i d a d e áo Sr. Oliveira pára com o f a z e n d e i r o . Apadrmh&va-os o pensa-mento político de provar praticamente a nullidade do chefe opposicionista, e assim arredar - lhe a popularidade.

A trama para chegar a taes fias foi de simplíssima urdidura ; uns pequenos abusos de auctoridade. Depois de rèsal-var a sua imparcialidade, pondo um si-mulacro de sincero interesse ao baixo serviço de mesquinha vingança ás derro-t a politicas, b subdelegado, sahindo da casa de Motta Coqueiro, dirigiu-sé a Ly-cerio e pol-o ao corrente dos aconteci-mentos.

— A alma do rabula pensando no lucro liquido que lhe viria do pleito, esque-ceu-se das conveniências politicas, bradou n'um excesso de enthusiasmo.

— E eu que antipathisava com^o Co-queiro! Ohlelièpòde descançar, have-mos de esmagal-o; ha de pagar caro.

— Não ha melhor occasião para tédu-zil-o a nada, observou o sabdelegádô; os votantes verão que nós sabemos vencer.

— Está claro; perder dois votos não coisa de grande monta. D0Í3 víddiviaos, dois biltres, o peseta do filho, grande coisa, mando recrutar o malandro, que tem boas castas para a farda, e metto o babado do pai e o tal Sebastião na cadeia.

— Escuso de estar com estas cousas, porque estamos sós, é não precisamos de enganar-nos.

— Sim, não precisamos. — Arranja os cobres do Coqueiro, que

é o principal e dãixo-o dar os páus. — Mas... — Eu me responsabiliso pelo que so-

brevier ; tenho certeza da que elle não atinará com a es tm.

— Porém... eu fui incumbido de éasti gar os criminosos e tenho meios.

— E eu lhe digo que não tem, que não deve ter.

— Ahi isto é outro filiar, mas assim & primeira vista.

— Yocè parece que está tresleado; pro-teger e fazer justiça a um adversario 11

— Então V. S. entende que. . . — Que se lhe deve negar agua e fogo*

eis ahi. E' o que se faz em politica. — Está bem, está bem ; eu fico as or-

dens de Y. S. — Adeus, eu vou mandar asserenar o

coitado do Chico i se eu estivesse no seu logar fizia o mesmo. Os negocies de fa-milia são muito sérios.

Familia 1 Esta palavra por si só impel-lia o ardiloso Lycerio aos maiores com-promettimentos, e por si só bastava para dissipar-lhe os escrúpulos

O rábula era uma óptima, estofa para a famigerada communidade religiosa de execranda memoria por um lado, de su-blime e civilisadora recordação por outro, e que elevou como dogma o celeberrimo principio: o fim justifica os meios.

Em falta de mais largos horisontes, de uma côrte para intrigar, de uma herança pisgue a reverter pelo bem da companhia em bem da humanidade, de uma cons-piração da magno alcance a dirigir, o bom e prasenteiro Lycerio atinha-se acs enganos nas sommas das dividas dos fre-guezss e aos bandeiamentos largamente remunerados nas causas que lhe eram confiadas.

Resignado sabiamente ao seu destino eatfêgava-se com a melhor vontade e humor á procreação do vinho e ao de-longar dos pleitos. Tudo por amor da familia.

Ora, justameúte este amor foi invocado pelo Sr. Oliveira em defesa de Francisco Benedicto, restava, portanto, ao amoroso rabula verificar atá onde era levado peio aggregado o mais nobre,, o mais santo dcs sentimentos humanos.

Uma vez recebida a procuração ple-naria do fazendeiro, Lycerio foi enten-desse com Francisco Benedicto.

Munira-se da suas mais francas é pro-longadas risadas e igualmente da mais aturada atteatfSo, pfrr* b«m otofcrYar ao

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1 1 6 MOTTA COQUEIRO

provas praticas da affeição paternal do velho,

Dôscubrm em breve uma prova. Um bailo mandioca! estendia-se viçoso e at-traheate por uma grande extensão. Fa-zendo a redacção dos alqueires de farinha em unidades mor&es, viu claramente que Francisco Benedicto possuia um optimo ooeflB.ciente para os seus deveres no lar domestico, tanto mais que o trabalho de Lycerio para com essa expressão era simplesmente reduzir termos semelhantes do mesmo Isignal. Mais amor de Motta Coqueiro, mais amor do aggrêgado.

Consaio de que o subdelegado não o havia illaáidoquanio converteu em ques-tão de honra o crime de Francisco Bene-dicto, o cauto e intelligente rabula abriu-se desassombradamente. ,,

— Sabe a que venho aqui, seu Chico ? — Para honrar ia casa do pobre, meu

senhor; e dar-nos gosto. — Sim e não. Um negocio muito serio

é principalmente a razão da minha visita. — Faz favor de dizer qual á, eu jé> ade-

vinho que vem sfaliar das eleições. — Não, venho fallar das cacetadas no

seu compadre. — Mas não fui eu ; e já o subdelegado

resolveu o negocio. -— Não senhor ; elle não pó de resolver,

ha processo e está prov&do com testemu-nhas. COÍEO você e o Sebastião disseram que iam fazer espera ao capitão.

— Ninguém pôde dizer isto. — Ouça o Manuel Joãô. . .

Aquilio é Um mentiroso, que nem me p5a es pés aqui.

—- O Lucio Ribeiro. . . — Ora, estef jura por dinheiro. — O Faustino, toios ouviram. ~ E' uma mentira : s<5 quem podia

dizer era o Sebastião, mas por este juro. —. Mas então o Sebastião sabe como

você acaba de dizer e portanto eu sou maia uma testemunha. Deixemos de partes: ou você entra n'uma conciliação ou eu faço andar o processo. Escolha.

— Diabos leve a hora em que entrei n'este logar; bradou furioso o aggregado; o que é que eu hei de fazer para conciliar.

— Por exemplo dar-me este mandio-ca! ou uns cincoenta mil réis; como lhe for mais acommodâdo; eu não lhe quero fazer mal.

— Mas isto é roubar o meu suor; não quero.

— Então vai para cadeia; passa lá uns cinco annos e come de lá a farinha. Passe muito bena ; talvez quando se arrepender seja tarde.

Lycerio dirigiu-se immediatamente para a porta, mas ao transpor o limiar, parou. Queria vibrar o derradeiro golpe.

— Ouça, disse elle, cesteiro que faz um cesto faz um c e n t o v e j a se vem dar-me pauladas também.

Dspois de coçar desesperadamente a cabeça, o aggregado chamou Lyçerio. para dentro e disse-lhe :

— Emfim, com seiscentos diabos, vão-se os anneis e fiquem-se QS dedos. Eu quero mostrar áquella traste que não se ma-chuca os outros assim sem mais nem menos. Perco dinheiro mas dou uma lição. Está fechado o negocio com o mandiocal. Serve ?

— Ora até que a f i n a l , exclamou Lycerio esfregando as mãos; estava a parecer que tinhajperdidoo juizo. Está feito, está feit<?, só para concilial-os eu não ganho nada com isso, o que faço é perder o msu tempo emquanto cccupo-me com esse negocio. Posso então mandar arrancar o mandio-cal por minha conta?

— Quando vosmecê quizer. — Ora muito bem. Desde que o amor paternal de Fran-

cisco Benedicto ficou tão eloquentementè assentado na convicção de Lycerio, o processo estagnou o seu curso natural.

Sobre elle só pairavam, como lindas mãistfagua, as recordações dos lucros havidos pelo rabula á bôà fé dss paytea.

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OU A PENA DE MORTE 117

Dir»se-hia que a justiça já proferira a sua ultima palavra a respeito da enibos-cada; tão grande era a quietação.

Só uma pessoa impsçientava-se seria-mente com esta indiffsrença; era a Sra. D. Maria.

A boa esposa não podia conformar-se com a desusada solução de uma quéstão que envolvia a reputação do seu esposo, e por meiaâos do anno de 1852, sete mezes depois do acontecimento, entendeu ella tomar a peito a punição do compadre. ,

Uma opportunidsde apresentou-se para v nue a Sra. D- Maria nudesse interrogar

—- — — — - — - r\ # •

peremptoriamente o fazendeiro, e fel-o com a seriedade que lhe era própria.

Uma canôa chegada de Macabú a Cam-pos trouxe a seu bordo além dos empre-gados e escravos da casa, umliomém das circumvismhançis.

Florentino Silva, era o seu nome, vinha pedir a Motta Coqueiro "para que o rece-besse como seu empregado, e ao mesmo tempo comprasse-lhe a posse de um sitio na serra dos Olhos d'agua.

Quanto &o primeiro pedido foi de prompto attendido pelo fazendeiro, que adiou a resposta ao segundo, visto que não conhecia o terreno que o seu empre-gado offerecia-lhe.

Os escravos afeiaram os desacatos e tro-pelias do aggregado e concluiram por declarar ao fazendeiro, em nome do feitor Fidélis, ser um perigo a vida no sitio.

Ainda na noite de Santo Antonio ti-nham estado na casa de Francisco Bene-dicto o inspector André, o subdelegado, Joaquim Lycerio, Lucio Ribeiro ;e vários individues. Resolveram fazer uma grande foguéi ra e m i o u v o r <j0 santo e, para servir de combustível, escolheram um eafesal.

%

Soprava espeto o vento e em breve as labaredas, enroscando se pelas aleias e trepando crepitantes e fumivomas avas-sallavam grande parte do plantio que ficou completamente destruído.

Alvoroçada, a gente do sitio correu para apagar o incêndio, mas foi detida em meio camisho pelas ameaças dos folga-zões, no numero dós quaes contavam-se as auctoridades do logar.

— Daus incumbiu-se de evitar a des-graça que parecia inevitável. O fogo ex-tinguiu-se por si jnesmo.

Ouvindo esta narração, que foiconfir-mada por Florentino Silva e Faustino, a Sra. D. Maria observou a seu marido que era urgente cortar pela raiz o mal.

— Felo que acabamos de ouvir, disse ella, o subdelegado, longe de punir, pro-tege Francisco Benedicto.

— Eu tinha certeza de que isto viria a acontecer, o que quer a senhora t a auc-toridadé cai sempre em mãos de seme-lhantes homens. ,

— Assim pois o mal é sem remédio ? — Parece que pela justiça é, mas res-

ta-nos um meio, obrigar o compadre a muòlar-se.

— 0 que eu noto é que o senhor não se agasta muito com isto, e não ha explica-ção razoavel para o seu procedimento.

— Se eu perdesse a cabeça e fizesse alguma asneira ser-lhe hia agradavel? Pelo amor de Deus, sejamos prudentes.

— Â maior prudência era vender o sitio. — Se apparecesse comprador. — Nunca apparecerá, porque D senhor

ainda quer adquirir mais terras n'aquelle maldicto logar.

— Mas em que nos prejudica termos ou não termos terrenos em Macabú, não me dirá?

Apesar do tom de azedume do seu ma-rido, a Sra. D. Maria insistiu longamente sobre os negocios do sitio. O seu fim era obter uma resposta decisiva, que lhe pau-taria de futuro o seu procedimento. . — Eu lhe repito: não posso admittir

que esse estado de cousas continue. O senhor diga com franqueza : aquelle ag-gregado ó ou não castigada.

— Já ih'o disse, senhora : o compadre ha de sahir das minhas terras.

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1 1 8 MOTTA COQUEIRO

— Não basta, é preciso que pague a emboeead .

— O meio de que poleria dispor era processai o, o subdelegado é meu inimigo e protege o criminoso, é impossível fa-zer seguir o processo. Não tenho outro.

— Era o que eu queria saber. A conversação foi cortada bruscamente

por uma ultima phrase da Sra. D. Maria, phrase que felizmente não foi toda ouvida por Motta Coqueiro.

— Eu hei de mostrar quem pôde mais, Sra. Antonica.

Antonica foi a única palavra ouvida por Motta Coqueiro, e bem fácil ê aquila-tar qual seria o movimento intimo que lhe correspondeu.

Seria saudade ou seria piedade ? O certo é que voltando a conversar com os seus empregados, Motta Coqueiro ponde-rou lhes :

— B* muito faliz o tal meu compadre ; tem por si a protecção, a saúde própria e a dos seus.

— Quanto á saúde dos d'elle não é lá muit*, pi incip almente de sa Antonica.

— Ah 1 ella está doente. — Anda com umas queixas rio peitô, e

uma tosse que v&i mettendo medo. A Sra. D. Mari», que se* conservava á

distancia de poder ouvir o que se dizia, amargou em silencio a decepção que causou- a simples exclamação do fazen-deiro.

— Hei de acabar com isto, repetiu a si mesma.

Quando a canôa fez-se de volta a Ma-oabú, a esposa do fazendeiro ordenou a Peregrino que transmittisse a Fidélis al-gumas ordens.

Queria que o feitor fizesse respeitar a propriedade do seu senhor pelo aggre-gado e sua familia. Caso não fosse atten dido, ficava-lhe o direito de valer-se da força.

Fidalis esperava semelhante auctori-sação para operar, e para exprimir a energia oom que trataria de obter a mu-

dança deJ Francisco Benedicto, disse sem reserva :

— Aquelle branquinho tem agora de tratar ccmmigo : ha de mudar-se ainda que eu lhe faça cómo aos maribsndos; ainda que lhe queime a casa.

Qs expedientes tomados pelo feitor conseguiram intimidar por algum tempo o aggregado, que se acovardou princi-palmente desde o dia em que,perseguindo-Ihe o atrevido filho, Fidélis não duvidou chegar até ás portas da sua casa.

Então Francisco Benedicto julgou mes-mo ser prudente ceder á proposta dó fazendeiro para à venda das bem feitorias» e incumbiu d'esse negocio um amigo commum.

As hostilidades arrefeceram e entabu-lou-se a negociação procrastinada pelas exigências irrasoaveis do aggregado, que entendia receber o dobro do justo valor na vencia,

— EU© ha de ceder por fim, observava o intermediário a Motta Coqueiro; deixe passar mais algum tempo, não é muito para quem tem tido t&nta paciência.

Irritááo, porém, peia resi-tencia que as suas pretenções encontrav&m no ani-mo inabalável do fazendeiro, e além disso instigado pelas auctoridades que vi-savam a retirada do competidor tfaquelles logares, Francisco Benedicto recomeçou desabridamente os seas desmandos.

Um dia em que em uma das vendolas, quasi totalmente ébrio, o aggregado vo-ciferava diante de Faustino e Florentino contra. Motta Coqueiro, disse Florentino:

__ Você é um malvado, seu Chico; é um homem que devH morrer.

— Se me pagassem bsm, eu arranjava isto, resmungou Faustino ; queira o ca-pitão e eu ponho um ponto á pendencia.

Uma troca de insultos de parte a parte seguiu se desastradamente e terminou por uma intimação formal de Faustino a Francisco Benedicto :

— Cala a booca d'ahi, velho cachaça, ou faço-te calar á força. Quanto ao teu

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genro torto, pódes dizer-lhe que se elle continuar com os desaforos, ejà visto-lhe uma camisa de pau. com vento» fresco. E' o que falta a vocês dois, bêbados!

A altercação na vendola surgiu (^ahi a alguns dias corporada em uma ca-lumnia assás comprometedora,

pizia-se por toda a parte que Motta Coqueiro tiaba encsrregáclo Faustino e Flpre»tino de assassinarem a Sebastião pereira I

o mais grave, o mais iucrivel era que Sento Silva, irmão de Faustino, era um dos que se apcarrQgav^pcx de propalar se-melhante veris|Q. e dizeM© qug ouvira §o próprio Faustino.

Para cumulp de infelicidade sobreveiu uma desordem entre o aggregado e os ésçravo3.

Corriam os primeiros dias de setembro. Uns madeireiros-de Macahé,entre o» quaes vinha o Sr. Conceito, chegaram ao sitio íte Macabú para comprar o resto das ma-deiras ao fazencieiro8 que so achava em Campos.

Uma canôa foi despachada paya avisar Motta Coqueiro, e'íidelis com os seus parceiros começaram de§de logo a em-balsar as madeiras, por isso que o Sr. Con-ceição declarava que era negocio decidido e tinha pressa de conduzir as balsas.

No dia 9 da setembro pela manhã, che-gando Fidélis ao porto,encontrou cortadas as amarra* das balsas e grande parte da madeira no fundo do rio. Evideaciava-se que a maldade fôra a conselheira do facte, e esta não podia ser attribuiia senão a Francisco Benedicto, que já outras vezes tinha praticálo actos mais gravas»

O feitor catou se & durante a dia não ^ m m siquer t^usparecgii' a raiva que

mentia, APenas commumcou c? occorrida aos

hospedes de seu Eeahor, p^diodo-lhes que oescuip^gem a flexora iovoiímtaria,

».nQ!íe* ^ P 0 ^ revista, Fidélis em-, p i c a n d o sapingíiyda cbamou os seus parceirog ?m%v'm% õ

Carlos que tinha sido mandado para o sitio por eastigó de algumas peraltadas, e ordenou-lhes que o seguissem.

Alumiados por um facho, os tres se-guiram pelos aceiros da roça é dentro em pouco achavam-se diante da casa do ag-gregado,

As portas e Janellas estavam fechadas, porém partiam vozes do interior.

— Estão acordados, disse Fidélis; tanto melhor porque demora menos.

Quando o feitor ia bater á porta, par-gxmtott-lhe Carlos, a quem o acoento da voz do parceiro impressionara profunda-mente;

—• O que é que você vem fazer na casa gessas feras ? Isto dá em desgraça, Fi-délis.

— Bê no que der; eu tenho ordem dos brancos, respondeu o feitor, e bateu bru-tal e prolonga lamente á porta.

— Más horas de visita é esta, disse de dentro Francisco Benedicto; emfim va lá.

Apenas a porta abriu-se, Francisco Be-nedicto, atemoí isado pela qualidade dos visitantes, recuou até o meio da sala, gri-tando compungentemente;

— Estamos perdidos, estamos perdidos. — Não tenha susto, não, seu Chico;

vosmecê é tão valentão que até a gente não acredita que âque logo tremendo. I to é só um aviso.

A' proporção que fallavft, Fidélis, acom-panhado por Perigrino e Carlos, entrava pela sala da aggregado, e apoderava-se de uma espingarda que OBtava onoostada em um canto.

— Nós não somos assassinos; não fa-zemos emboscada, não, meu brama; mas eu sou feitor, e quero dizer-lhe que isto de andar vosmecê, sen filho a seus amigos destroçando o sitio, não me vai cheirando bem. Canalhada, can^lbada e meia; hoje amanheceram as balsas corta-das; todos os dias ê um desaforo: morte nos gados, fogo nos cafesaes, o diabo a quatro. Eu venho sahev se vo*mac§ quer ir parfem eç ppr w r ir por mal

OU A PENA DE MORTE 119

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não me custa nada a pôr fogo n^ste ran-cho, como se faz na casa dos maribondos, que não são tão maus como vosmecê, E \ decidir.

Fóra zuniu o desfechar de uma paulada e em seguida euviu-se um brado colérico:

— To me pagas, desgraçado; tu me pagas já .

Os tres saltaram precipitadamente fórg da sala, porque reconheceram a vez do parceiro, que tendo deixado o facho pro-ximo á casa, corria pelo terreiro após um vulto, que elle depois disse ser Juca Be-nedicto.

— Ahi vccês fazem-se pimpões; pois esperem; Mo de s&hir amanhã mesmo cTâqui. Esperem.

Suspendendo o facho, Fidélis chegou o até á beira do tecto de sapê. Bastava uma pequena demora, para que a casa fosse irremediavelmeEte perdida.

— Não faça, não faça, tio Fidélis! gritou Carlos.

E abaixando mais a voz : — Foi sa Antonica que foi socccrrer se-

nhor,e ella não tem culpa do que o pai faz. — Ah ! velho cachaceiro dos diabos, ê

o que te vale ; se nãí> hcjê mesmo havias de dormir no m&ttc. Mas se não mudas de pensar eu não attendo a reais nada . . . Deixa essa desgraçado ! braçtou em segui-da ; isso é úm fedelho.

Os escravos affâstaram-sa commentando o caso, mas quem attentasse para o grupo de'bananeiras que ficavam a pouca dis-tancia da casa, poderia descobrir um vulto que seguia attentamente todos os movimentos.

Quando a luz do facho extinguiu se completamente, e o terreiro silenck-so recabiu na obscuridade, o vulto sahiu d'entre as arvores, parou e estendeu úm dos braços, que-agitou no espaço,

Uma voz rouca e abafada articulou estas mysteriosas palavras:

— Bom 1 muito bem I Agora começo eu I

X /

A SCENA DE SANGUE

N& manhã do dia seguinte o inspector André recebia de Francisco Benedicto uma denuncia gravíssima contra Motta Coqueiro e seus escravos.

Dizia o aggregacio que a sua casa tinha sido alta noite atacada pelos escravos Fi-délis, Carlos, Alexandre, Peregrino e . . • Domingos, que por mando do seu senhor tinham ido espancal-o e pôr fogo á sua casa, crime que não* se efísctuou por ter elle, Francisco Bsnédieto. eaoeíeado um dos escravos, pondo assim os outros em fuga.

— É creio que não vinham, sós áccres-tou o denunciante, porque se não me en-gano ouvi quando os malvados se retira-vam as vozes de Faustino Silva e do Flôr.

O inspector André, qúa até então tinha ouvido sem protesto e danlo acs diabos o fazsndeiro, reluctou ante a veracidade da presença dos dois últimos indigitados.

— Ainda o Faustino vá lá, porque é capaz de mais , porém Flôr , causa-me espanto ; é tão mettido comsigo e nunca houve desordens com elle.

—J Nunca ?! ora, André, não acre-dite. Ainda ha poucos dias elle disse-me que era bem bom que eu morresse ; por-que sou um malvado. Veja s<5 vosmecê.

Em seguida F r a n c i s c o Banedicto narrou a altercação travada entre elle, Floren-tino e Faustino, e, para garantir o effeito, carregando artisticamente o colorido e a disposição dos adjectivos.

O i n s p e c t o r André, sentindo no hálito do queixoso um cheiro pronunciado de álcool, teve siso bastante para descsntár-lhe os exageros descriptivos e çonsegtiiu asserenar-lhe os assanhados temores* cal-mando em seu auxilio a galhofa, /

— Mas diga-me cá, sm Chico; o Co-queiro anla pela terra? perguntou elle.

— Qae eu saiba, nâo; mas deu ordem para que me desancassem.

120 MOTTA COQUEIRO

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— Mas os escravos depois da sova de pau hão de custar muito a cumprir a ordem.

— Pôde ser que não; virão todos contra mim e o meu filho, e nós não poderemos resistir,

— Leva sustos,seu Chico; você o que precisa é ter mais confiança na gente. Ouça, depois de amanhã, que é domingo, eu levarei um leitão para comermos e depois conversarmos a respeito da cousa; verá como, tudo se arranja.

— Então eu espero por vosmecê. — E mais o leitão. O inspector não dava inteiro credito á

denuncia do aggregado eaté eonvencia-se de que o assalto, a se ter dado, devia ser por motivos que Francisco Benedicto não ousava commusicar lhe. ;

Assimf pòis5 nSo tomou nenhuma pro-videncia e nem mais pensou no aconte-cimento.

Francisco Benedicto, porém, sahiu a espalhar pela vizinhança que o sen com-padre mandara matal-o pelos seus escra-vos e que o assassinato não realí&ou se graças á sua coragem.

A credulidade sertaneja, sempre incli-nada a se deixar penetrar fpor embustes e falsidades, ouviu, murmurou, commen-tou e finalmente em altcs brados spre-goou por toda a parte, como verdade, a delação do aggregado.

Só á noitinha Francisco Benedicto vol-tou da. sua peregrinação. Trazia a alma desafogada, porque o dia tinha lhe sido uma apotheose. Lucio Ribeiro, Sebastião e outros tinham*o acompanhado, glorifí-candò-o por tanta valentia em annos tão adiantados.

Na entrada geral, nos mesmos taquaru-çús em q\ie Sebastião e o aggregado rea-usaram o seu plano contra o fazendeiro, dois homens est&vám desde manhã cedo emboscados.

Um d'elles, troncudo e baixo, de f«i^o?s grosseiras,côr da casca do genipapo, nariz chato e beiços grossos, cabellos duros e

corridos, tinha a acentuação medonha da misantropia. Riam-lhe a cólera e o escar-ne© ao canto dos beiços, nos quaeâ ouriça-vam-íe raros alguns pellos de barba.

Olhava sempre de travez o seu compa-nheiro e só fallava-lhe quando instigado.

Vestia se de uma calça de algodão mi-neiro, cuja Côr branca, havia muito, mudara-se em côr de cinza intenso/mos-queada^ por largas manchas de barro. Uma camisa de chita escura, em cujo campo arre iondavam-se uns olhos Ver-melhos como sangue, abria-se lhe no col-larinho deixando vêr o collo carnudo e queima lo.

Um chapéu de palha da Angola, de abas desmesuradas e cahidas, atado por uma estreita fita negra por debaixo do queixo, escondia-lhe a testa o fazia-lhe sombra ao ro&to, tornando ainda mais temerosos os olhares lançados por umas pupilas distendidas e negrejantes sobre córneas sanguineas.

O olhar, interrompido apenas por mo-rosos pestanejares, tinha a fixidez espe-cial de das aves noctivagas. ,

O outro, comparativamente franzino, escondia quasi todo o rosto em um lenço que, de sob o m e n t o , subia-lhe até orneio da cabeça; maa, viam-se-lhe as pomas salientes e as orbitas fundas, e a testa terminada pelas sobrancelhas negras e o nariz avolumado, caracteristico da raça cruzada.

Era um typo vulgar,-sem um traço apeoas que o recommendasse a uma observação aturada.

Ao ouvirem a conversação dos tres companheiros de viagem, o mais franzino des emboscados, disse precipitadamente ao outro:

— Agora não nos escapará,; a escuri-dão permittirá que não nos descubram e ninguém pensará que somos n<5* os aucto-res. Vamos ; prepare-se.

O mi anthropo nada respondeu, apenas levantou os olhos desdenhosos, e dei-

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MOTTA COQUEIRO

xou se ficar sentado, como até então estava. -

Confuso ;qom sssa inliffarença, o que fallQU, prpseguiu:

— Já não me engano facilmente, e sei perfeitamente distinguir a voz d'ôlle, esteja em meio de inilhoas de ostros. Escute; o malvado aproxima-se.

De feito, as vozes destinguiam-se clara-mente e podia-se mesmo ouvir a conversa dos transeuntes

— Foi aqui que o bicho quasi esticou a lanella e foi dar contas ao dis.bo; que pena não lhe acertar bamo cacete 1 dizia Lucio Jfèibeiro.

— Qual, foi só uma arranhadéia que lhe fizemòs.-^Com um tiro, disse em seguida Sebastião, levantando a voz, hei de varar a qualquer desalmado que ahi no3 esteja ouvindo.

— Só se for alguma cobra? porque os negros ficaram bem convidados e já não cahem n\>utra nestes mezes mais proxi-mos, advertiu Lucio.

— Cautôlla em todo caso; passemos rente á barreira porque os-taquaruçús são boas to3as de onças. E nós que o diga-mos; observtuo aggregado.

Dentro da toceira das gigantescas ta-quaras 03 dois emboscados representa-vam uma, scena silenciosa, emqu^nto blasonando cs tres atravessavam a es-treita curva da estrada.

O homem possante, rastejando sem raido sobre folhas seccas, viera protegido pelas arvores collocar-se á beira da estrada, e com elle o scffrego companheiro.

Este, descobrindo o grupo, levou o dedo ' ao gatilho de uma espingarda que trazia comsigò,mas $qou logo sem movimento, porque a mão do outro tolheu-o CÍ m a força das dqas peças de um torno, aper-tadas vigorosamente.

Os pairar; ores pass&rnm impunemente. Quando já se haviam distanciado» P mais ifflp&cieiatf, dos embosca 1QS, m% disa9 aa outra, qaç tomtam s a p p ^ a

de pé e sorria o habituai sorriso de es-carne o •

— Eu não posso mais; ha quasi um anno queporveíi-s temos tido çcqasilo de acabar com isso, e 4eixa sempre com vida o nosso inimigo. Se pão nos é posgivel vingar nos, p melhor é çuidar-lí ps de oútra cousa.

O corpulento emboscado sorriu e sacu-diu os hombros.

- - Qu$m quer vingasse não faz cçmo vosmecê ; parece mais o anjo da guarda do que uma pessoa que eatá zangada e quer desforrar-se de outra. Eu vou seguir o meu caminho, como enteado, e o resto fica entregue á minha go te,

-r Não, ifoto n | o pôde ser mais, arras^ tou-sa a voz rouca do emboscado: eu dei a você, e só a você, o meu segredo, que morava conamigo lá vão muitos annas, E' obrigarrme a ser mau, porque eu mato-o se desconfiar que quer fugir de mia*, perder me e sacrificar o meu odio.

E parque são se decide, porque a demorar isso ? Mate-me, é atá um bene-ficio-

— Não mato por oífioio, mato por vin-gtnça. Ainda Francisco Benedicto pão tinha um filho, e eu já o seguia como um ema de qaça $ pista dos caitetúa. Tenho* o tido muitas vezes ao alcance da minha faca; bastava um salto para enterrada até o cabo n'aquelle coração ieprosp, Não qqiz, n m o fls, Nos primeiros tempos eu derramaria apenas o sangue d'elle e da mulher, a não me bastava, Nao se apaga uppa forja Qum pingos d'agua.

Depois veiu um Albo, depois outro, mais outra, e eu dizia cammigo: 4 tempo» ha sangue bastante n'esta raça para sa-ciar, qqe pão para extinguir, Q meu odio. Um pensava depois e lembrava-me que

bavia no corpo do meu inimigo forças para augmentar q pasto $ minha ira, e esperei. "

JSu sou filho de caboclo; do goytacaz que Qieia geín b&r^no, aus s o t o q q ^ x a r ^ qçie juprre çejg ffêKW?

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OU A PENA DE MORTE 123

pai acostumou-me' em criança a passar o dia á popa da umâ eanôa á espera que o piau terto se levantasse do fundo do rio, e viesse collocar-se ao alcance das nossas flechas. Estas atravessavam as aguss sem ruido e a morte do peixe, que durante lon-gas horas espiávamos, se annúnciavà ape-nas pela côr do sangue que vinha á flô r do rio.Espero, esparei para matar assim. Do que me serviria matar, para vingar me, se ao cabo iria parar a uma prisão, onde a minha existencia séria ainda mais cruel.

Eu não peço a você que me sjude, peço apenas" que não me faça perder tantas annos dedicados ã minha vingança. Este odio é a minha vida, tirem-m*o, é eu mor-rerei. Para satisfazeis, hei de fazer cahir quantos encontre em meu caminho. E qual é a causa que o move ? No dia em que nos encontramos, vosmecê disse-me sdmente: c Não é assim que um homem se desforra; segue-me. * Acompanhei o ; nunca perguntou-me siquer por que razão eu ia perpetrar um crime, e nunca tam-bém me disse o seu nome, nem perguntou pelo meu. Pensa talvez que eu sou lavado por uma questão^èm valor, po- uma criançada, e zomba de mim.

— Se eu não lhe tivesse lido no coração, não chamal-o hia para junto de raim. Quem se resolve ao que você resolveu-se, é porque tem uma dôr grande.

—Pois saiba que ê mais do que uma dôr, é uma desgraça. A filha do nosso inimi-go venceu-me, flz-me seu escravo. Vivia s<5 por ella sem importar-rae com o mun-do : não tinha nada com elle. Houve um dia de loucura na minha vida, porém «Luiz pagai o com o gran ie amor que te nho áquella mulher e no entanto ella fu-

e o m o a u r » cão damnado. Foi então que você deeidiu-sa a ma-

tâl-a, expondo-sa á justiça. Creança I 0 odio precisa de crescer, reforçar-se e orear cabellos brancos para depois ter, acção; ao contrario tem a sorte das crenças, que brincsm com espingardas; ferem se ou suicidam-se.

Ó narrador não parecia ter attendido ao s^u interlocutor, e continuou :

— O mais cruel é que eu penso que ê por um outro qua ella me despreza. Este é rico e foi t e ; pode tudo e insuitou-me, e córreu-me. Oh í se elle lia de pagar-me !

O pai d'ella tentou perseguir-me, ao passo que anda de mãos dadas com um mi-serável que me perdeu, e lhe perdeu uma filha. Porque ? ha alguma differença entre nós ? ambos somos da mesma casta, ambos "pobres. Porque, pois, repellirem-me. Hei da vingar-me, e duplamente, porque elles escarneceram da minha fraqueza !

Tenha pena de mim, abrevie o meu sofrimento ; veja que eu não posso por muitq tempo conservar-me na casa de um hciíiem a quem Qdei^; bem posso um dia perder a cabeça e então 14 se vai toda a minha esperança, E'uma crueldade fazer-me seguir quasi sempre os passos do in-fame aggregado ; é uma feita de piedade; se vosi^ecê ngo quer já acabar com elle, p$ra que havemos de espreitai-o sempre ?

— Supponha que é para descobrir o melhor ponto para cravar-lhe uma bala, ou varal-o de lado a lado com a minha faca. Mss não ó isto o que nos im-porta. Qual é o outro homem que o in-sultou, qual o seu nome ?

— Motta Coqueiro, o dono d'este sitio. — O Hlho do Goytacaz sabia; mas

queria que você confirmasse, para lhe di?er o seu plano, Hontem, quando á noite eu estive no terreiro da casado nosso inimigo? os escravos doesse homem appareceram para tomar contas Is mal-feitorias de Francisco Benedicto, Depois um a^Ues quis pôr fogo % caum» Hoje toda o Maçabií deve saber d'isto, porque de jde pela m r t » Francisco Benedicto anda de um para outro lado,

— Mas o que temos oomisto ? — O que temos I E é você que diz que

sabe odiar! O que temos : você uma dupla vingança; a araho» nós alibep-dade.

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1 2 4 MOTTA COQUEIRO

— Ah! exclamou o interlocutor, le-vando a mão á testa.

—. Entendeu agora ? Pois "bem, trate de saber quando chega o fazendeiro; até lá esperemos.

Os dois personagens mysteriosos sepa-ram-se taciturnos e cabisbaixos, sem que ao menos houvessem trocado um aperto de mão.

Viâ-se-lhes no aspecto que a sua allian-ça carecia de um sentimento puro, que os fizesse desdobrarem o intimo nas expan-sões, que se esbatem á luz, serenas e des-cuidadas.

Ao contrario faziam recordar as lendas das feiticeiras e demonlos que se reúnem nès logares ermos, obumbraáa a clari-dade do ceu por um reposteiro de tre-vas e só eatãocomeçam o tripudio som-brio, em que as visagens e es esgares me-donhos substituem as palavras meigas e os sorrisos affaVeis.

O mais robusto dos dois intemou-se pslo capoeirão, caminhando sem hesitar, como quem era assaz pratico em romper por entre a rede espessa de lianas, trançado de galhos, e cs accidentes do sala do logar.

Sob cs seus passos de longe em longe estalitavam as folhas e* os pausinhos sec-cos, mss tão imp&rceptivelmente que ninguém poderia crer que por alli passava um homem.

Após meia hora de caminho, parou sob uma arvore frondosa, cuja ramagem cahia como uma cup da. sobre as franças de outras menores, reco; tandc um enoríne disco virente.

Um vasto recinto circular, estofado por folhas mortas, fechava se ahi pelo tecto e tapagem de arvores, e servia de habitação aos dois companheiros.

O lecem-cbagado, fazendo fusilar o seu isqueiro, accendeu uma pequena fogueira e depcíis-tirou do ouço da arvore um co-bertor escuro, e um sacco, e separando as folhas do chão trouxe para junto de si duas foices polidas.

Sobre o cobertor estendido deitou a es-pingarda, que trazia cemsigo, e em se-guida foi para junto do fogo onde come-çou a aquecer provisões para uma sóbria refeição.

Visto ao clarão avermelhado da pequena fogueira, aquelle rosto onde a maldade esteriotypara-se na sua mais precisa accentuaç&o, lembrava os génios máus da floresta, creados pela imaginação su-persticiosa dos selvagens.

Em ''quanto no isolamento e no myste-rio o recem-chega-lo qaedava acocorado junto da fogueira, o soffrego companheiro d'esí8 homem, que durante longos annos apascentava em silencio os mais ferozes pensamentos de horrorosa vingança con-tra Francisco Benedicto, caminhou em busca da noticia da qual dependia o espa-nej amento dos seus instinctos sanguiná-r i o s em uma alegria satanica.

O caminheiro, andando com uma pres-teza incrível, chegou ao sitio antes da hora em que a voz do Mtor ordenava o recolher e por isso não esperou por muito tempo para ouvir alguma cousa que o interessasse.

A principio collocara-se par detraz das senzilas todo attenção e ouvidos, mas p a r a logo attrahido pelo echo de duas vozes, arrastando-se cautelosamente veiu postar se entre o vão da casa do feitor e o lanço em que moravam cs escravos.

Na porta da senzala, Carolina, que, já restabelecida tiaha voltado para a roça, conversava com a tia Balbina.

— Parece que vamos ter chuva, disse Carolina, vosmecê não vê que nuvem tão negra está alli parada rfor cima da casa grande ?

— Pôde ser que seja o quarto da lua com trovoada e a pedra do raio; é quasi gempre assim, mas a pedra do raio nao cahirá sobre a casa dos brancos.

— Deus ha da livrar-pos (fiato: lá está na porta a Estrella do céu.

_ Mas a agua da chuva pôde fazer cahir a oração, disse a feiticeira ele-

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OU A PENA DE MORTE

vando a voz; já tem se visto, e, qlaando a Estrella cai, Dsus fecha os olhos para a banáa da c? sa que a perdeu.

— Ava Maria! tia Balbina, Deus não ha dô permitiu* que venha ainda mais esta desgraça.

— Não ; a felicidade é para os brancos, a desgraça é para os capUvcs. Quando das costas da Balbina as feridas do chicote lançavam fumaça, como a bocca aberta em dia da frio, a senhora brincava com o caçula doente, batendo-lhe com a pon-ta do dedo nos seus beicinhos vermelhos.

A mucama, para la junto «Telia, ria con-tente sem se lembrar que a sua parceira, cheia da dôrss, arribava o eito, gemendo no coração.

Quando, de noite, o caçula tossia a sua doença, todos logo de pé corriam para vêr e saber o que é que elle tinha, e quando de noite, a escrava quasi a morrer de raiva e de caneaço veiu dei-tar-se na esteira da sua c«ma, sé a pobre Carolina teve uma lágrima e um pouco d'agua com que lavasse as feridas da in-feliz. Não; a felicidade é para os brancos, a desgraça ó só para os captivosl

— Foi assim mesmo, tia Balbina, mas-vosmecêjá está vingada; basta só o nego-cio doaggregaio.

Balbina sorriu, sacudiu os hombros, raspou as mãos uma sobre a outra, e de-pois disse dissimuladamentô :

— Pôde ^sr. — Está mesmo vingada, -porque se dis-

seram que vosmecê era feiticeira e o se-nhor acreditou, hoje também o aggregado foi espalhar que o senhor tinha mandado pôr fogo á casa d'elle e todo o mundo deu-lhe credito.

— Engaç.0 CIE VQQ creança, ninguém disse isto.

— Antes não dissessem ; mas o Carlos contou me q u e tinha ouvido na venda. Vosmecê bem sabe que elie boja não tra-balhou; porque está com o pó destroncado por um geito que deu. hontem de ,noite, quando foram á casa de seu Chico,

, — Quem ? elle fo i . . . . — Com Fidélis, Peregrino e Alexandre.

O filho de seu Chico arrumou uma cace-tada «Ên Alexandre e elles correram para defender o outro. No pulo que deu, Carlos destroncou o pé.

— E o que foram elles fazer ? Balbina dormiu o somno do captiveiro antes que 0 gálio cantasse ; estava cançada; não pòude ouvir ao seu anjo da guarda o que fiz&pm de noite os escravos do mau se nhor.

— Eu lhe digo, tia Balbina. Fidélis aturou até agora tudo que o aggregado tem querido fazer ; .mas os brancos disse-ram á minha vista qu9 Fidélis tratasse de botar para fóra aquelle homem, fosse como fosse. Hontem as madeiras amanhe-ceram fundeadas no rio e o feitor vendo que só o aggregado faria esta maldade, 01 á casa d\slle para metter-lhe medo.

Emquanto Fidélis arrasoava lá com seu Chico, o filho veiu por fóra e deu uma cacetada em Alexandre, que estava da parte de fóra, Então o feitor muito zan-gado quiz pôr fogo á casa do aggregado, e se ella não aráeu foi porque Carlos lembrou lhe que o senhor gosta de sa Antonica.

—• E quem foi que disse á Carlos que o senhor gostava da filha do aggregado ? perguntou a feiticeira.

— Eile viq e a senhora já sabe também e tanto que é a causa da maior raiva. Não sei porque, mas eu tenho uma cousa que me diz que, amanhã,quando o senhor chegar, ha grande desgraça aqui.

— Como se não ouvisse mais as pala vras de Carolina, a feiticeira, levantan-do-se com os olhos fitos po ceu, ergueu o braço e, apontando para a nuvem negra, resmungou junto da face de Carolina.

— Olha a nuvem; cresce cada vez mais. Está como o lucto da morte; negra, negra. O quarto da lua traz trovoada e a pedra do raio; a estrella do céu vai cahir da porta dos brancos. Balbina saberá do canto .do gallo quem disser que a estrella cahiu

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126 MOTTA COQUEIRO

da casa do mau senhor» Vai dormir, criança,

Sem farças para resistir á intimação da feiticeira, a creoula entrou logo na sua senzala e só depois de ter fechado a porta saudou com voz tremula a vingativa escrava»

Balbina affastou-se lentamente é dentro em pouco entrou em casa, fazendo arruir a fecha lura.

Tudo ficou silencioso e o vulto do espião perfllou-se no oitão da casaria.

— Amanhã; bem ouvi, âmmhã, res-mungou elle; nao quero parder um mi-nuto írnis, tenho sede de sangue d^quella raça. Oh! meu amigo, qual nao será a tua alegria.

Alta noite, na hora em que a supersti-ção prende sob os tectos os moradores do sertão, duas pessoas affrontavam cora-josss as appariçõss de almas penadas e o rasger de dentes dos lobis homens.

Como se uma das grandes nuvens negras, que escureciam o ceu, tivesse des eido á terra e deslisasse, cuslda com as paredes, pela face da casaria do sitio; um vulto, que pulara a janella de uma das senzalas, aproximou-sa a pouco e pouco da casa grande. Na ultima porta que abria sobre a sala de visitas, alvejava um papel, no qual desenhava-s9 uma larga cruz, emmoldur&ndo algumas linhas de caracteres typdgraphicós.

O vulto parou diante da porta, e depois de escutar attentamente, subiu á soleira e correu a mão sobre o papel. Esperou algum tempo, e afinal levou de novo a mão ao mesmo ponto da porta. Tinha desspparecido d'afei o aignal que alvejava nas trèVas.

\

Com a mesma precaução o vulto tomou para a senzala de onde tíu^a sahido, e a luz de um candieiro illuminou o interior.

Quem olhasss pela fresta da janella viria agora a tia Balbina, diantado candieiro, sari iadp e remirando um papel que tinha nas mães»

Depois de minuciosa exame, a feiti-ceira chegou á chat»ma o p^pel que tinha nas mãos, e atirou-o ao chão. A combus-tão foi rap ida; em alguns segundos estava convertido em cinzss.

— Agora, disse ella fifcanio-o; raça de brancos, sèm coração e sem piedade, zomba do raio de Deus que vem na nuvem negra do quarto da lua, e foge também da vingança da escrava. O s signaes do castigo ainda estão vivos nas costas da feiticeira» e, emquantò ólles durarem, Balbina não terá pardão. Viesse embora o caçula, alvo como a flôr da canema aper-tar nos braços, e beijar a sita.sina; a lem-brança do castigo, e a sede da vingança não sahiriam da alma da negra. A "cobra offendiía espera para matar ou para morrer.

A escuridão estendeu-se nó interior do quarto.

A esta hora ainda o espião aventura-va-se atravez da matta em demanda do pouso, em que o esperava o seu compa-nheiro.

O homem, que durante annos assanhara gradualmente o sonho de seVa desforra contra Francisco Benedicto, depois da re-feição começou a passseiar de um para outro lado doesondrijo, trahindo, »pezar da estagnação do semelhante, uma im-paciência febril.

Por vezes avivou o fogo, engatilhou a espingarda, e alimpou no sacco a folha das foices, recomeçando depois o seu auto-matico passeio.

Afinal, parou e tirou da bainha uma larga faca e olhando a e correndo-lhe o dedo peio fio, rosnou entre um sorriso:

— Dsves estar envergonhada da minha fraqueza. Eu já não te mereço o gume que corta no ar um fio de cabello da reça do meu inimigo. Perdão minha companheira.

E os lábios da fera pousaram, e demo-raram-se nVm bsijo longo sobre a la-mina poliria e lanceada da arma. Era o idylio do crime, alumiado por um br a* tfáro, a faísr tóaabr&r as soenas que •

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OU A PENA DE MORTE 127

imaginativa religiosa desenha nasgrutas inflâmmadas do inferno.

Interrompido brusçamente o beijo, o faceinora disse resOlutamtiite i

— Não cedo, não quero ce ler nem uma gotta de sangue da g ração que ha lon-g o s a n n o s condemnei. Que me importa a mim que outros queiram vingar-se?Ne-nhum;tem soffrido toais do que éu. Te-nho mulher e não panso n'elía ; tenho filho e fujo de atfagabo ; e, coitadinho, quando eu volto á càsa vem esperar-me no terreiro para pedir-ina a benção. Mu-lher e filho agradecem-me o pouco que posso conseguir çpn$ heras de trabfifc lho roubadas ã minha vingança ; choram de alegria, e eu nem demoro-ise para con-solar-lhes as continuas saudades. , Qual é o outro que tem igual direito

ao sangue da raça amaldiçoada ? Ódio de dois dias, sem rãizes e sem sacrifícios, eis 0 que deseja partilhar commigo a vin-gança! Não cedo, não quero cederá minha, minha s<5 a vida da familia indig-na; só eu hei de saçiar-me no seu sangue. Juro I.

Quasi ao romper d'alva o espião reu niu-se ao seu companheiro.

— Chegst amanhã á noite; amanhã, amanhã,, exclamou elle, parando diante do taciturna companheiro.

O silencio d'este impressionando-o pro-fundamente, psrguntou-ltie o espião, mor-dido pelo despeito :

— Então vosmecê não se alegra. — Não. — Pois não vai acabar os seus des-

go tos. — Sim, mas Dsus quer que não seja ©u

quem me vingue; escolheu outro para ma ejar a arma.

~ O&tro; eu, não é verdade j sou eu ? de manejai s, hei-de ? com a força do

meu odio. — Não éa tu também, é outro. —_Ohl homem malvado, eJsolamòti o

eipiio, pois você pensa que m consentirei? antes morrer.

— Gala te ahi já! Se eu não devo fartar-me*no sangue do outro, quem me dia que não posso beber o teu, a quem confiei o meu segredo e que me queres perder Ouve bem ; não irás amanhã á noite a casa âo inimigo; .deixa que as mãos escolhidas por Deus se incumbam da vingança. Escuta e pensa; eu ando sem ruido como o peixe nada no rio; mudo de pouso como o vento muda de rumo; se não] me attenderes, fugirás em vão. Para que me pudesses descobrir era preciso pôr em terra todas as mattás é arrazar todos os morros; desde os que se sobem er rrendo, até os que ser vestem de nuvens. Ainda assim era preciso «ecoar todos os rios ; eu corro como o veado, mergulho como a anta e boio sobre as aguas como a vagem do ingá a mercê da correntesa, Escuta e pensa; o sangue do inimigo só currerá pelas mãos escolhida^ por Deus.

— Maldita a hora em que nos encon-tramos; eu não recuaria com medo 1 não eeria fraco!

De um salto o homem robusto tinha em-polgado e atirado por terra o companhei-ro, ao qual subjugava com um joelho sobre o ventíe e uma dás mãos sobre a garganta, em quanto na outra brilhava a faca luzidia.

Mas a explosão de oolera extinguiu se de chofre o o espião foi deixado em liber-dade, ferido apenas por um sarcasmo.

— Criança; vê se eu sou medroso e fraco; alli estão as armas, mata-me!

— Oh ! meu Dsus; eu sou bem desgra-çado, soluçou o miserável.

A noite calada e escura e apds ella uma aurora triste, parcamente gazeada e to-o ida apenas par uns ephemeros tons aver-melhados em estreita barra de um céu côr de chumbo, estenderam-se entre o silen-cio dos dous companheiros*

S e g u i u - s e da mesma sorte ó dia, suando por entre nuvens carreged;;s baça e tris-tonha claridade, que se humedecia pas-sando atrâVez de i m ^ ^ u ^ t ^ s chortabo*

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128 MOTTA COQUEIRO

periódicos, que, batendp na folhagem, enchiam a nratta de abafados susurros^

Ao anoitecer, o filho dos goyt&cszes acercou-se do seu companheiro e disse lhe buscando armar-lhe pelo carinho do accento a boa vontade.

— Esta noite você vai descançar na, casa do amigo. Pôde ir sem rancor cie mim; a sua vingança nem por isso deixará de ser levada a cabo. O rio que volteia pela serra ha de chegar a cahir na varzea. Agora ou logo, que importa ? Vai em paz.

O ouvinte não respondeu; taciturno, pegou da sua espingar da e dè uma das foices e caminhou para á sahida do es-condrijr.

— Não mereço mais nem um adeus ? I Não faz mal; não tardai á que você com-prehenda que eu soube pagar a confiança com que scompanhou-me, sem saber ao

.menos o meu nome. Breve voarão sobre à cabeça do amigo os senhos serenos; o pesadello da offansa ha de mud&r-se no desafogo da vingança. Se esta não é to-, mada pélas suas m ã e s , Deus sabe a causa. Ambos temos soffrido muito, mas a sorte não quer que sejamos nós os que demos a satisfação ás nossas dôres. Paciência. Entretanto ninguém mais do que eu tinha o direito de dizer ante a vida da familia condemnada : — é minha, minha só; mas você vê bem que eu não desespero. Algum áia vir-se-ha a saber a historia do homem que vecê encontrou no caminho, da vingança; comprehenderá então como era triste. Pôde partir.

— Não será mais do que a minha, adeus 1

O cabaclo não se demorou muito no escondrijo após a sahida do companheira. Antes porem cie retirar se . cavou com a foice um buraco, enterrou o sacco das provisões, e abriu com a ponta da faca na casca da arvore uma enorme cruz.

— Por mais que tu cresças, disse elle ofhando para arvore, não se apagará este gignal, e os meus poderão saber se eu tive ou não coragem de vingar-me.

Seriam dez horas da noite quando cs leques das bananeiras, qua se erguiam no terreiro da easa áe Francisco Be&eâicfco, estremeceram ao da Uve5 como o capin-zal por onde as preás correm amedron-tadas. •

Um vulto sahiu d'éntre ellas e cami-nhou vagarosamente em torno de toda a casa. Certificou-se de qu? ninguém o via.

Voltando á frente ria casa e agarr&n-do-se aos entulhos da parede, marinhou até á cobertura de sapé, cuja superficie: molhada pela chuva não deixou ouvir o menor estaliio.

Separando cautelosamente as ramas do tecto, conseguiu em poucos minutos des-aparecer atravez d'eJÍe.

Na sala de visitas, onde dormiam tres creaneas alumiadas por uma lamparina collocada sobre uma velha mes ar diante de um tosco oratorio, appareceu o homem que tinha gravado a cruz na casca da arvore.

Depois de se ter inclinado sobre as creanças, e fitado-as por algum tempo, abriu sem ruido a porta, sahiú, caminhou até as bananeiras e voltou logo trazendo comsigo a foice e a espingarda.. Fechou de novo a porta e guardou a chave -sob o oratorio,

Como quem conhecesse perfeitamente a disposição dos aposentos, seguiu pelo cor-redor que abria ao fundo da sala.

Na sala dá jantar, sobre um estrado, re~omnava o bom somho da confiança o filho do aggregado. O visitante nocturno viu-o, graças á claridade que frouxamente derramava-se na sala, e sorriu.

Depois abaixou-se sobre elle e-balan-çou-o, dizendo baixinho ao moço que as-sentára-se sobresaltado :

— Não me cíinheces, não é verdade ? Pois sabe qu® sou um amigo de infância de teu velho pai. Ouvi hontem a historia do assalto dado aqui pelos escravos do capitão. E>te chegou hoje e não tardará que venha concluir a sua obra. Vem com-migo, e d'alli das bananeiras cora a»

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nossas duas espingardas defenderemos a casa. Vem.

O moço, que não teve tempo de reflec-tir, leyantoú-se de um pulo e, seguindo o que elle julgava amigo familia, sahiu compile pela porta dos fundes, que foi fe-chada por fóra.

Logo porém qu© chegaram junto ás ba-naneiras, com aJ agilidade e cortesã de um bote de tigre, Juca Benedicto foi co-lhido peUs mão a vigorosas do homem possante, e sem que tivesse podiío profe-rir uma palavra, cshiu, em cheio por terra.

O homem voltou- de sevo á casa, accen-deu com o maior sangue frio uai can-dieiro e dirigiu-se á cozinha.

Tirou da,bainha a faca ensanguentada e, cortando cóm ella uma corda que se estendia de um canto a outro do vão, di-rigiu-ae em seguida ao quarto da sala, depois de ter trancado e guardado as chaves de todas as portas, e postó a foice por detrás <lo e^tra lo.

Dormiam rfesse quarto Francisco Bene-dicto e sua mulher.

O intruso, de uma reviravolta, amarrou os braços que o adormeci lo tinha cru-zados sobre ò peito.

O aggregado levantou-se de chofre; mas não pôle clamar por soccorro porque foi no mesmo instante amordaçado.

Bispert&da pelo abalo que produziu no leito o pulo do marido, e vendo diante de si aquelle homem com um sorriso mau a contrahir-lhe os grossos beiços, ao passo que o marido forcejava para liber-tar-se de suas mãos, a pobre senhora precipitou-se corajosamente sobre o mal-vado.

Franc isco Benedicto já hav i a cahido, porque com uraa ponta da corda foram-lhe amarrados os joelhos.-

O faccinors esperou calmamente o as-salto da fraqueza feminil, encorajada pela dedicação e o amor.

As mãos da esposa seguraram-se como duas tenazes aos braços do homem;

emquanto» que sua fiebil voz, querendo bradar, murmurava apenas:

— Malvado, que mal te Azemos nós ? Oá elhos do aggressor fuzilaram fran-

camente a cólera longos annos represa, a ella respondeu apparentemente sereno:

— Nenhum! Bem sabem que nenhum. — Silvai-nos, meu Deus; estamos todos

perdidos, exclamou angustiosamente a senhora.

— Nem Deus, nem o diabo 1 Proferindo estas palavras, os punhos do

aggressor, calcando sobre os hombros da áesveaturada esposa, fizeram-a cahir de joelhos. ..

— Mite-nos, sa tanto deseja, mas poupe nossos filhos, que não lhe fizeram mal nsnhum. o

O monstro riu-se e á proporção que, posto um joelho sobre o estomago e ar-queada a mão sobre a garganta da in-M k , esfcrangulava-a cynicamente, dizia entre dentes :

— Eu não esperaria tanto tempo para vingar-rae se bastasse-me tão pouco san-gue. Irão tedos, um oor um, desde o me-nor até o maior. Bem sabe que já perco um d:s da tua raça ; é demais.

E o monstro continuava na sua pressão feroz, ainda que sob elle já não estivesse mais que um cadaver, cujoè olhos des mes unidamente abertos e salientes pare-ciam querer feril-o como se fossem dois punhaes.

— Amigo . Francisco, disse o monstro que se levantára; vais vêr como seé leal e bom pagador.

O aggregado apenas podia soltar gemi-dos abafados. O monstro arrastou-o até á sala de visitas.

Ouviam se dentro os gritos das duas fi-lhas mais velhas, que batendo á porta do quarto, a qual o faccinora tinha tido o cuidado de fechar, exclamavam angus-tiadas :

— Abram-nos a porta } perdão ! perdão para nosso pai.

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130 MOTTA COQUEIRO

Por sua vez as tres. creanças acordadas, vendo o velho pai estendido1 per terra, e o homem de má catadura caminhar para ellfts, choravam, peiindo-lhe que &ão as matasse.

— Berra, corja miada, berrai ás em vão. As portas estão fechadas, e a estas horas não passa viva &lma peia estrada.

Pegou então na menor das tres crian-ças, empurrando as ostras que, ae joe lhos e agarradas á irmãsiaha, pediam por ella. As duas pobresiahas calmam abra-çadas uma com â outra,. emquanto que o monstro, sacudindo pelos c^bellcsa crian-cinha, esbofeteava-a sorrindo.

Depois cr&vcu-lhe aa garganta as u&hss de fera, balançou-a no ar e atixou-& ao lado do angustiado pai, que v&squejava a sua desgraça.

— Por istosinho disse elle apontando o cadaver, nem valia a pena incommodar-se um homem; porém era uma viborasiaha que ficava. Vamos ás outras.

Durante o estrangulamento da irmasi-nha as duas meiímaa tinham se levanta-do e corrido para o interior, debalde, por-que não tardaram a ser descobei tas pelo a cassino, que as arrastou até á sala.

Uma delias teria oito annos, <a a outra onze.

— Vamos primeiro acabar com a mais moça, amigo Francisco, resmungou o mal-vado. L' preciso que eu ganhe força para sahir perfeito o trabalho.

Com violento empurrão a menina foi estirada no chão, e o d^monio do odio levantando o pé, bateu-lhe em cheio nas costas. Uma gjlphada de sangue espada-nou e foi cahir sobre o aggregado, e mais uma victima foi immola&a a uma vingança de causa desconhecida.

A menina de onze annos foi então arras-tada pelo monstro, que assentando-se n'un môcho obrigou-a a Bentsr-se nos seus joelhos.

A lubricidade veiu então miaturar-se á ferocidade.

— E' realmente bonita, e, peias'dores que tenho soffrido, ju.ro-te, amigo Fran-cisco, o mau coracão está & peâir-me que eu não mate-a,

Houve u a instante de silencio, durante o qual o pudor da menina, quasi desfal-lecila, foi posto a tratos peio facciaora.

— Ah! seu capitão ! que mal lhe fize-râBD as' creanças, tenha dò d*elías.~

Este grito de desespero, proferido por Antonica, deteve em meio uma scena de iniquidade indisivel.

O malvado ergueu-se de súbito e arras-tando apds si a preá», acocorou-se junto de Francisco Benedicto. «

— Ouviu o que disse a sua filha, amigo Francisco? Ella pensa qoe é o capitão quem se desforra n1esce moxneato; e todos, quando encontrarem esta casa contendo os pedaços -áa tua raça, liãii de p-ansar também que foi o capitão o auetor d'esta vingança, fí eu vigerei tranquillamente; nem ao menos podes levar a, esperança de que eu eoífra um pouco, uma hora só mente l Quanto é bom ter-se como tu, amigo Francisco, inimigos a cad» canto I Oá que t ã j mais offendidos podem casti-gar sem temor. HA quem sofíra por elles.

A faoa do assassino sumiu sa na região thoraxica da indefesa menma, e duas vezes mais cravou-se lhe no seio.

Quando a victií&a não dava mais sig-naes da vida, o monstro passou pelos beiços a lamina ensanguentada e disse demoradamente:

— Oh I como é tão deca e cheiroso o sangue dos teus. Devias amar muito a tua mulher, amigo Francisco, para que tivesses filhas ião banitas. Faltam-xte aindii duas e é preciso que eu dê conta da tarefa antes que © dia clareie.

A poria do quarto, em que o assassino tinha prendido as duas moças, abriu-se e elie, encostado á foice que antes escon-dera, esperou que as desventuradas s&-hissem.

As infelizes, abraçadas n'um canto da casa, soluçavam de modo a commover ás

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OU A PENA DE MORTE 1 3 1

feras P pavor tolhi*~lb.e£ o movimento. Eram duas estatuas de desespero esnfan-d i n4o uns'lagrimas o seu desconsolo.

—É preciso venham temar a benção a seu pai antes que se separem d'elle, d i s s e o monstro; ea quero ser bom para vocês.

— oh i isto é demais 1 bradou-Antomca» p r e c i p i t a n d o se sobre o assassino ; mate-nos mas não escarneça.

A coragem da moça commumcou-s» á s u a i r i ng e ambas atiraram-se valorosas sobre o frio matador.

Mas a foice, vibrada vigorosamente, fendeu pelo maio o craneo de Mariqui-nhas, e a. desventurada vacillou, e para logo baqueiou inundada por uma onda de sangue. .

Anton i cã tentou em vão fugir ás mãos do homem desapiedado. N'um lance (folhos fôra por elle subjugada e arras-tada até junto do velho pai, a quem a vida era ainda conservada a custo de tanto tormento.

— Mate-oié; é um beneficio; mas diga a quem lhè mandou aqui, diga a elle que mesmo na hora em que mandou ma-ta r-me eu disse que o ornava.

O monstro buscou inutilmente profanar aos olhos do pai subjugado a grinalda virgínea da inféliz amante, o heroismo do pudor teve forçss para resistir-lhe e o barbaro e deshumanb assastino viu«se obrigado a santificar com a morte a vir-gindade de Antonica.

— Confessa, amigo Francisco, disse o escarne o da fára; confessa qua eu sei vingar me. Já não contavas coimmigo, e entretanto não esqueci a divida de ou-t rora ; pago-a com juros. Morre , pois, oh ! cão I

A planta do selvagem co51ocou-se sobre a garganta de Francisco Benedicto, que estrebuchava violentamente. Dapois o monstro recuou um passo e disse como que arrependido do seu acto ;

— Não! envenenaste a minha vida, morre como o sucuruiú.

Uitfa foiçada, desfechada nas têmporas do aggregsdo, pôz tern o ao seu inenarrá-vel seffrimento.

Concluída a matsnça5 o monstro ateiou fogo aos quatro-cantos da casa e sahiu lentamente, deixando sobre a mesa a lam-parina, cuja luz allumiava agora cinco cadaveres! __ ' . .

A escuridão do terreiro epancou-se pelo clarão vermelho d^lgumás labaredas, e o monstro, parando e voltando-se para a casa incendiada, exclamou com tremulo e sombfio accento :

— Ninguém I Amanhã tudo isto será um montão de cinzas e não haverá um criminoso pela extineção da familia do malvado.

As ultimas palavras foram porem acom-panhadas pelo ronco longínquo de um trovão, e alguns segundos depois as nuvens negras do céu despejavam sobre o incêndio uma chuva torrencial.

XI

INDÍCIOS I8REFUTAVEIS.

Sob o temporal de feito, singrava rio acispa uma canôa, cujo impulso repre-sando e foz ando espumar ruidosamente a corrente abria duasgrandes azas niveas na escuridão das aguas e da noite.

Gradativamente os remadores foram alli viando os remos, e afinal a canôa pa-rou.

—Nas horas de EMus! exclamaram elles ; estamos em casa,

Estavam de feito no porto do sitio de Macabu, propriedade do capitão Motta Coqueiro, que, vindo a bordo, tratou de desembarcar logo que ouviu annuncio dos canoeiros.

—Rapazes tratem de cobrir. as cargas, disse elle, e os Srs. venham commigo. Qae viagem torrivei!

Pouco depois via-se luz na sala da vi-sitas da casa grande, e ouviam-se falias entrecortadas por francas risada»,

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132 MOTTA COQUEIRO

Recostado n'um canapé, junto do qial estavam assentados alguns hoioens de physionomias distinctas, Motta Coqueiro presidia uma conversa de amigos.

O mais jovial e que mostrava ma s pri-vança com o fazendeiro era o Sr. Con-ceição, negociante residante.em Macahé.

O seu rosto cheio e vulgar era entre-tanto attrahente porque illuminava o um olhar cheio ds insinuante sinceridade.

No mais era um homem de estatura mediana, sem reservas aristocratiças, sem posições estudadas; o antigo typo do homem do commercio, que se perdeu no diluvio fervido do aperaltamento moderno, que olhando, para a fidalguia, fica sempre no ridiculo.

— Se você nao tivesse chegado hoje, dizia o Sr. Conceição, amanhã só encon-traria aqui muitas lembranças nossas. Batiamos azas sem mais demora.

— O que custa é o mais desejado, res-pondia o capitão ; e a além d"isso as mi-nhas madeiras são como o vinho, quanto mais velhas mais caras. Está ahi porque

. me demorei. — E lá ficaria se ò vento não o fosse

busear. Pelo que eu vejo você não chega aqui sem tempestade.

— Nem'sempre ; aconteceu hoje para que vocês paguem-me não só as madeiras mas ainda o incotr modo da viagem. Eu levo só dez por cento. Antes isso do que ir para a estrada*

— Homem ! por fallar em estrada, é verdade ; que se deu aqui um desagui-sado entre você e um aggregado ?

— Er verdade; mas eu nem penso mais n'isso, porque o tal aggregado, que^é meu compadre, gosta de mais do copo.

— Mas n'e&te caso cozinhe as caraspa-nas em casa, e não se engane com os cacos alheios. Se fosse commigo o negocio não ficaria ass<m.

— Eu também quiz processal-o ; mss não só tive de luctar com a animosidade do Oliveira e trampolinice do Lycerio, mas também de compadecer-me do tal

meu compadre, attendendo a que tem uma familia numerosa. Elle ha de achar quem o insine, porque ninguém as fsz que não as pague. Ha cousas que dão ma muito mais que pensar..*

^ Ah 1 tern também seus segredos; deixe èstar que eu hei-de pôl-o em bons lenhes còm a D, Maria. Vejam o sonsi-nho.

— Qual, por este lado não ha que temer; já tenho os meus cíncoenta sobre as costas. O que me impressiona mâis hoje é a eleição de deputados geraes, para cuja Victoria o governo mandou para Campos um juiz de direito, escolhido a dedo.

— Ora deixe-se àMsso ; você bem sabe que, trabalhando, taboqueia o bicho.

— Não é tão fácil; os diabos dos cau-dilhos do governo têm-me intrigado á grande. Pois o que é a connivencia do Oliveira com o meu aggregado, se não um meio de desmoralisar-me ? Agora a verdade é que o finorio perde de todo o seu tempo.

A conversação estendeu-se por mais de uma hora sempre salpicada pelos epi-gr&mmas e malignidades joviaes do Sr. Conceição, que assim confirmava uma regra geral; os caracteres sadios e vi-gorosos são intimamente alegres.

Já pela madrugada os amigos separa-ram-se e tomaram os seus aposentos.

O sol, apezar de alto, illuioinava furti-vamente o céu, quando de novo o fazen-deiro avistou-se com os seus hospedes.

Estes, que tinham pressa de voltar para Macahé, não deixaram esperdiçar um mi-nuto e occuparam-se durante todo o dia em discutir o preço das madeiras e as condiçõQs do seu transporte.

A mais perfeita tr&nquillidade de espi-rito expandia cs modos e as palavras d'essa reunião de amigos, á excepção do fazendeiro que parecia estar preoccupado.

Quem, á tardinha, affastande-se da casa grande, se dirigisse á casa nova, assistiria abi a uma geena de requintado cynismp.

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OU A PENA DE MORTE 1 3 3

O assassino da indefesa familia andara durante todo o dia rpdeiando as tuas v i c t i m ^ s como um ccfcvo em torno da carniça. >

Qaasi ao pôr do stíl o companheiro, que na vespera fôra por elle despedido,,. veiu também farejar as cercanias da casa do inimigo coinmum.

O silencio profundo que reinava alli f e l - o apprõxi^ar-se mais e mais,.até que finalm;mta collocou-se entre as bana-neiras.

O aspecto da casa fêl-o pensar na pre-visão do seu companheiro e para certifi-car-se chegou até mais perto.

O bafio do sangue apodrecido e o som do intenso eperenn^ zumbir do mosqueiro certificaram-o de que lá [dentro jaziam cadaveres.

Olhou em torno de s i ; depois espreitou pela fcesta da porta, <e esmo se o et picas-sasse o remorso, recuou espavorido, e, arrancando violentamente o lenço que lhe encobria parte do rosto, exclamou dolorosamente.

— Míri^uinhgs, minha Mariquinhas 1 ea havia de saber poupar-te.

Ao dizer a ultima palavra os cabellos erriçaram se-lhe, « agacho a-se transido de terror.

E' que a pesada mão do companheiro tinha se-lhe calíoc&do sobre o hombro, apertando-6 fortemente.

— Trahiste a tua cobardia, ou mentes como um cão. O a assassinaste a esta raça damnada, ou querias enganar-me,

Mmuel João que era o companheiro do assassino, tremia miseravelmente e não ousava responder.

— Ct imo tu és cobarde, bradou o selva-gem ; c^mo virias comprometter-me, se

. e u s confiasse a outras mãos a nossa viogança. Felismente ainda ha homens de coragem. O capitão chegou hontem e eis aqui os destroços. Bem t'o dizia eu !

Depois de uma breve pausa, continuou: —E' preciso 'que nos affastemos d'aqui;

se nos vissem estariamos perdidos. Vai,

não tornes nunca maia a este logar amal-diçoado. Eu também seguirei o meu Jestino.

O silencio e o abandono invadiram de todo o triste iogsr, onde o odio havia executado uma tremenda sentença.

Talvez no mesmo in&tante em que o monstro imputava ao fazendeiro o seu ne-fando crime, os amigos á'este reunidos na casa grande reparavam no seu mau estar.

Já não era possível esoondel-o, porque á proporção que a noite se avisinhava,

Motta Coqueiro entristecia cada vez mais, e chegou a tal estado de melancolia que, durante o jantar, foi amigavelmente in-terpellado pslo Sr. Conceição.

— Hcimm, você está com a cara da noite de hontem. Quer até parecer-me que o nosso amigo deu agora em forreta e áfctá arrependido, de não nos ter carre-gado mais dez por cento no preço das madeiras. Mas não vale zangar por isso; nós ainda estamos aqui, esfolle-nos a seu gosto.

— E' mesmo verdade que eu estou triste, respondeu o capitão e o mais sin-gular é ser por uma asneira.

— Perdão, interveiu o Sr. Conceição, é o mais natural.

— Hontem, ou melhor esta madrugada, quando deitei-me, continuou o fazen-peiro, tive uma especie de pesadelo. Fi-gurou-se me estar em um um logar de-serto e como que ouvi gemidos dolorosís-simos. Procurei por toda a parte e não vi viva alma. Porém, d'ahi a pouco des-cobri perto de mim grandes línguas de fogo, é depois um montão de cadáveres.

O mais exquisito ê que durante todo o dia eu tenho pensado n'este sonho.

— Ha de ser lembrança d^quelle clarão que o Sr. disse-nos ter visto na viagem, pouco antes de çahir o temporal, inter-rompeu ura dos amigos.

— Ora sonhos! exclamou o Sr. Con-ceição.

— Ha de ser mesmo, proseguiu Motta Coqueiro, porque fiquei bastante imprea-

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134 MOTTA COQUEIRO

sionado. Parecia o clarão de um incêndio mas de repente extinguiu-se.

— Pois víicê queria que houvesse um incêndio que resistisse á chuva de hontem.

O Sr. Conceição, que foi quem proferiu essas palavras, poz-se a rir da melbor vontade, baseando desfazer a impressão profunda cio fazendeiro.

Inútil esforço; depois do jantar Matta Coqueiro, pedindo lieença ao seus hospe-des para ir saber ao feitor o que se tmha passado durante a sua ausência,• confir-mou plenamente qus fôra bailada a ten-tativa de Conceição.

Apertando a mào doeste, disse-lhe per-turbado :

— De&culpe-me esta fraqueza, mas, ha cousa de um anno que este malGicto sitio só serve para dar-me trabalhos. Em che-gando aqui, fico logo desatinado.

O Sr. Conceição não galhofau á'esta vez; e, ao contrario, depois da sahida do fazendeiro, di&se aos outros que também ficara impressionado com a tristeza cío amigo»

Na mesma hora ©m que na sala de jan-tar entreahava-se a conversação, que dei-xámos exarada, perto da casa grande a tia Balbina dava toda a attençáo a um in-terlocutor.

A feiticeira, que desde o dia daembos-, cada contra Motta Coqueiro, fôra passada

para os serviços da casa grande, gozava de cartas regalias e d'elUg usava sem o mínimo prejuizo.

Durante a noite, quando acabava a la-vagem da roupa, não> era mais cccupada para nenhum trabalho, e ficava-lhe com-pletamente o tempo e o seu emprego, sem quebra da ordem esíabsleoida para todos os escravos.

Balbina, que sahira a disfarçar o cap-tiveiro, segundo a sua phrase, encon-trou-se, junto do casarão, com um homem que lhe era totalmente desconhecido.

Esta começou por perguntar-lhe se, de facto, havia chegado o capitão, è obtendo

da feiticeira resposta afíirfíiativa, prose-guiu:

— EHe já sabe da sorte do aggregado ? — Veiu vender madeira, respondeu Bal-

bina ; nem pensou ainda no compadre. — Pois aconteceu uma cousa hurrivel,

minha velha, e é preciso que tile saiba, — A casa grande está aberta ; pode ir

fallar com o senhor, ou se q r z t r faiie com o Fidélis, que é o feitor,

— Não, não quero fallar ao tm senho**, minha velha; sou pobre, mas sou homem de bem; não poderia encarar com elie. Escuta e dá ao teu senhor este recado.

Dize lhe que ha quatro noites uio homem de bem estava por acaso janto da casa de Francisco Benedicto, quando via che-garem quatro escravos úVste sitio, alu-miados por um facho. Bateram á porta e um à1elles, qae parecia ní&nd^r sobre os outros, a queoa chamavam Fidélis, en-trou como um c - valia disparado dentro da casa do aggregado do capitão.

Fallou muito lá dentro, Da rt pente ap-parece junto do encravo, que tinua ficado;., fora cóm o facho, o filho d© Francisco Benedicto e ariuma-llie uma pnuiada mortal. Mas errou o alvo. Todos os ooti\ s escravos s&hiram em soccorro do compa-nheiro, mas não puderam agarrar o ra-paz.

Efltao FUelh qaiz pôr fogo á casa, e se conteve se foi devido a um segredo qae lhe dúse um moleoote, que estava no grupo.

Pesaram dois dias sem que nada mais acontecesse ao aggregado, poique ainda hontem eu o vi.

Hoje, porém, tive diante de meus olhos uma vista horrível. D.osde & estrada eu reparei que tolas as portas e janellas es-tavam fechadas, & estremeci.

Mais perto dobrou-ss me o temor ; a frente d& casa tiuha sign&es de fumaça» e a coberta ú@ sapé estava qoasi toda queimada. Pensei logo que se tinha reali-sado a ameaça de Fidélis e corri. Não era só isto o que eu devia vêr. Qaando em-

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OU A PENA DE MQRTE 135

pairei s porta, não pude conter o choro; a os.:?8 de Francisco Benedicto é hoje um cemiterio; mataram todos, todos.

— Jesus! exclamou Balbina, nem pou-param a moça qne o senhor estimava tanto, fAnt-s os brancos não tivessem dado oràem !

— "Vai, vai, minha velha ; conta a teu senhor e&ta desgraça.

Balbina, temporariamente commoviáe,' apressou o pi$so em direcção á casa grande, e o desconhecido, sorrindo então 'desdenhosamente, . disse com uma infle-xão de voz que f«ri& estremecer ao fleugrnauíico dos homens.

— Túvn pena a desgraçada, e eu lasti-mo que fique sobre a terra uma filha d'aqtiell4 raça. Os malditos tinham pouco sangue,,

Dspoi.; de umab^eve pausa, disse ainda: — Tenho peaa do capitão; t?*lv©z venha

a softrer pela morte a'aquellas viborss. Deus o defcnd». ,

Ditas estas palavras o desconhecido affastou se cora passo lesto e firme.

Q ciando Bídb^n;. chegou ao terreiro er-controu ahi o fazendeiro, diante do qv.al, com o chape a na mão, Fidélis faikva humilde utente.

O feitor depois de contar as diversas tropelias feitas pelo aggregado, junte il-ibes a narração do estrago feito nas bsisas e o expediente que tomara, como feitor.

— Eu fui fallar cora s<m Chico, disse elle, xr:a? não fai at tendi 1o, e ainda o filho <?eu vw;* cacetada era Alexandre.

ea põr fogo á ca^a, n:as não cheguei

— E vigera d,60 lhe ordem para faaer c o o , a ? interrogou o fazen-

deiro.

— S&nhora mandou qne puzesse fdra o sgxregado de qualquer so>t«.

— E o qus u7, depois o cowpadre. ' — P-ívec ' que foi dar parta a« inspector.

— Po e ir, pede ir embora, excUmou Motta Coqueiro dirigindo se ao escravo,

mas saiba que não pode de hoje em diante fazer nada sem minha ordem.

O fazendeiro, que durante algum tempo conservara-se no mesmo logar com a ca-beça sumida entre as mãos, levantou-se por fim e entrou na sala de jantar com-pletamente disfigurado.

Balbina que observava todos os movi-mentos, ao vel-o assim perturbado, res-mungou at i a vez do odio encanecido :

— A Estrella do céu já não defende a porta dos branccs e Deus não olha mais psra a banda em que ella está. A escra-va pode rir, vai ser vingada.

A noite foi uma longa tortura para o fazendeiro, que estava ainda muito longe da realidade horrorosa <?a sua situação.

Via no acto doá escravos, auctorisado pela senhora, o descredito da seu nome e, o que lhe doia igualmente, uma arma se-gura com a qual os seus adversamos combatessem lhe a popularidade.

Com qoe presliglo, elle que mandava incendiar a ca?a de um pobre e seu hos-pe íe. poderia pedir ao povo da localidade apoio e dedicação, se depois, esquecendo hHo, viria talvez a perseguil-03 cruel-mente !

Tarde da noite Motta Coqueiro, cuja momnia afeiava cada vez mais o acon-tecia? ento, foi ter com o sen amigo Con-ceição « coremunicou-lheo oacorrido.

O honrado negcciante Biostrou-se tam-bém profundamente abalado e só depois de lons;í> silencio disse para o fazendeiro:

— Ovunioo remédio é psgar pelo preço que Francisco Benedicto pedir as bem-feitorias do sitio.

— I to é o menos, roeu amigo, o que eu queria era que vocâ visse como se me preparam desgraças.

Antes do nascer do sol, Motta Coqueiro, que passara a noite em atroz vigília, sahiu para ojterreiro, e, depois de orde-nar qne lhe trouxessem o «avalio, porque desejava sahir logo dep»is do almoço; poz se a passeiar de um para outro lado.

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136 MOTTA COQUEIRO

Os escravos vieram alinhar-se e com elles appareceram taoabam no terreiro Faustino Silva e Fiorentino.

O primeiro vinha pedir ao fazendeiro que lhe cedesse algum assucar, e o se-gundo tratar acerca da vénia da posse na serra dos Olhos d'agua.

Despachado Faustino; Motta Coqueiro dirigiu se a Florentino para desculpar-se com elle por não poder cumprir já a sua palavra.

— São terras, Sr. Flôr, e não é possi-vel comprai as sem ver. Ora eu estou doente e além d'isso não posso demorar-me ; tenha paciência, trataremos do ne-gocio mais tarde.

Efíectuando o movimento habitual dcs sertanejos, quando aighma cousa não sa effectua conforme os seus desejos, Floren-tino levantou os olhos para o céu.

Em seguida erguendo o braço e apon-tando para o ocidente, disse com extraor-dinário espanto.

— Olhe, seu capitão, que grande nu-vem de urubus está a fazer verão acolá.

— E' verdade, confirmou o fazendeiro, e em seguida perguntou a Fidélis : por que diabo não manda você enterrar os animaes mortos ?

— Não faltou nenhum cá no sitio, meu senhor.

— Isto p8lo que eu vejo, anda desgar-nellado, seu mestre; disse Motta Coqueiro para o feitor; havemos de ver se falta ou não. Yá já, com alguns dos seus parceiros, fazer enterrar o animal, que encontrar morto.

Fidélis, acompanhado èos seus parceiros Carlos, Alexandre, Sabino, Guilherme, Peregrino e Domingos, seguiu em direcção á negra revoada.

Todos os outros escravos e os dois ho-mens livres retiraram-se, ficando apenas no terreiro o desventurado fazendeiro e Balbina que ao longe resmungava sarcas-ticamente:

— Fingimento de branco, sé Deus poda vôr no coração d'elle ; o rosto não muda.

Manda matar os malungos e fica tão fresco como se mandasse surrar o escravo. O forro atinou logo com os urubús, e o outro tratou logo de se pôr na picada.'

Só os negros foram depressa para fazer o enterro dos defuntos que o fogo não queimou. Enterrem : Balbina irá mostrar o logar. A etárella do céu fugiu da porta dos brancos para que a escrava podesse vingar-se do senhor sem coração, que a mandou surrar e dos parceiros que não tiveram dó d'ella. Balbina não terá pena. O caçula ficará sem o pai, e o pai sem os escravos, Balbina estima o caçula mas não terá dó de seupsi.

O3 hospedes do fazendeiro vieram en-contra-lo em agitação febril, dir-se-hia que era cruciado por invéscivsis remorsos»

O máu humor trahia-se-lhe pelos mo-nosyílabos que resumiam as suas respos-tas, e a instabilidade das posições, que to-mava, denunciava a suá impaciência, de tal forma que o Sr, Conceição viu-se for-çado a dizer-lhe á puridade:

— Oh ! meu amigo, não é preciso que todos saibam do que se passou.

Estavam sentados á mesa, almoçando, os hespedes, que deviam seguir viagem. n'este mesmo dia, quando Fidélis en-trando, arquejante de cançaço, disse para o seu senhor que lhe precisava fallar em particular.

O semblante do negro, onde estava gra-vado o espanto, fez com que o fezendeiro se levantasse precipitadamente.

Foram ambos até o corredor que com-municava a sala de jantar com uma sa-leta interior, na qual achavan-se Balbina e outras pretas.

Chegados ahi, Fidélis com a voz quasi embargada pelos arquejas contínuos,disse com uma inflexão dolorosa :

— São elles, meu senhor ; estão toáos mortos.

— Quem ? mas quem é que está morto ? interrogou assustado o fazendeiro.

— Já estão mortos, sim senhor, seu Chico, a mulher e os filhos todos.

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OU A PENA DE MORTE 137

— Ok 1 meu Deus, meu Deus, que des-graça, bradou em lancinante desespero o malfadado Coqueiro; que mal fiz eu para que caia sobre mim tamanha pu nição.

— o que é, gritaram os hospedes, que vieram prestes cercar o fazendeiro, que apertava com ambas as mãos a cabeça, e desfézia-se e.n lagrimas.

— Díixem-me, deixam-me, pelo amor de Deus ! Ea sou um desgraçado. O que será de minha mulher, de meus fílftos. Malditos negros i

Cambaleiâiido COÍBO um ébrio, Motta Coqueiro foi eahir sobre uma cadeira na Sida de jantar, emquanto os hospedes estupefactos olhavam sem coragem >J.& mteiTCgal-o,

Depois de iam silencio kngasaente so-luçado paio desventurado; erguendo-se com os punhos cerrados e a cabeça vol-tada para o ceu, exclamou eil© ccm uma entoação, que provocou as lagrimas dos hospedts.

— Mas não é pessi vsl,, meu D .us, tu bsm sabes que não é possível que se screiite que eu fosse capaz de semelhante barbari-dade. Não, eu não creio que os meus ini-migos sejam tã.> máets que atirem sobre mim esta mancha.

Como qu-3 um momento lúcido foi então concedido á razão do infeliz fazendeiro. Attentou nos seus amigos que o cercavam commovidos, e, redobrando de soluços, disse-lb.es resolutamente:

— Oá senhores precisam de pattir, não se demorem por minha causa. Demais seria talvez compromettel-os. Daixem-me só ; eu agradecerei sempre tanta bondade e espero muito da vossa lealdade. A . eus, rez jm a D.us por mim.

Perplexos, os hospedes reluctarnm em obedecer a peremptório, intimação, mas a insistência do fazendeiro, solemnisada pelo desespero e as lagrimas, re&olveu-js por fim.

Tocante despeiidaesta; como que fcodc s os cora oei temeram que .a palavra lhes

atraiçoasse a sinceridade do sentimento, externando-os em inflexão menos pró-pria. Modas, apertara m-se as mãos, mu-des sahiram e por muito tempo cami-nharam.

O Sr. Conceição rompeado aflasl o silen-cio, dissse ao embarcar-se na canôa que os esperava :

— Não sei porque, mas tremo pelo fu-turo de Ccqneiro.

— Grande desgraça o fariu, responde-ram os outros.

Dapois de ficar sd5 o fazendeiro, mais feroz que uma panthera esfaimada, ati-ro u-ss contra Fidélis, esbofeteand-o e bra-di&do : •

— Dize-me, negro do diabo ; onde apren-deste a ser tão malvado. Crianças, velhos, todos, miserável.

— Senhor, meu senhor, respondia hu-mildemente o feitor, não fomos nds-

A negativa enfariceu ainda mais o fa-zendeiro», que deixou o encravo para ar-mar-s a de urra cadeira que, manejada, espedaçou se de encontro a um portal, não tendo apanhado Fidélis, que se defendeu da aggressâo e csrreu.

— Ta me pagarás, desalmado, tu me psgarás, gritou o fazendeiro, depois de desôiigan&r-se de que não podia agarrar o feitor, que fugia seguido dos outros encra-vos com que sahira de manhã.

Ficaram, porém, no terreiro Carlos e Domingos.

A cólera do fazendeiro descarregou-se to ia sobre o molecote, que em vão pran-teiava, affirmando a &ua innocenoia,

C jmprehendeedo que a fúria de seu senhor chegaria ao maior excesso, Do-mingos interveiu submisso ponderande-lha judiciosamente:

— Perdão, meu senhor, vcsoaecô vai se perder; este moleque morre.

Da feito Carlos já estava estendido por terra, com a cabeça quebrada e o corpo todo ralado paios tombes repetidos.

Ainda assim talvez fosse inútil a pon-deração do esuravo, se não chegassem na

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138 MOTTA COQUEIRO

me?m& oecasião Faustino e Flôr, que ambos assustadíssimos disseram ao fa-zendeiro que tínha-seido chamar as aucto-ridadfs para verem o que havia na casa de Francisco Benedicto, que estava fe-chada e sobre a qu-sipairavam os urubus.

— E o que tenho eu com isso; res-pondeu Motta Coqueiro.

— Antea nada tivesse, seu capitão; mas estão a dizer que s gente de Fran-cisco Benelicto foi morta por ordem de vosmecê ; soluçou BUorenti&o Silva.

— Equal fai o miserável qu© lsmbroa-se de accusar-me, diga-me o ssu nome, quero fazei-» engulir a caiuiania I

— Todos os que estavam na vénia . . . — Todos 1 A suais" diladerante angustia fU resu-

mida n^sta u&ica palavra. Encarnava a revolta da dignidade de hom m de bem e a dôr 'agudíssima a sangra" um ca-racter serio. GonoretisaçSo do desespero de um coração, lapii&do'pela severidade p*ra a^.alanar-se com as irradiações da bondade a da juitiça, n'essa uaica paiavra gemia todo um pastado de honestidade e nobreza dy sentimentos agora desapieda-damente trucidado p*la calu-mnia.

O fazendeiro sestiu-se no vácuo, mas esse vácuo horiivel do pesadelo, onde ce-h ridos como fogos tatu os &uccedeo>se e aprofuavam-se infinitos circalos lumi-noso?, aos quaes nos quarexnos segurar quando se nos tfl»ura que íolamos e sentimol-os ao nosso contacto des,fazsrem-se em fumaça.

< Ó q«e bo pssacíe1© ê uma succsssão de círculos luminosos era no espirito do an-gustiado um tumultuar de seatimeatoi-, que não tinham ecnsisteaeia para obstar

a queda na con letnn&çSo soei-d. — Todos, repetiu o <?esventara4o ; mi s

que e mal âz eu a t«d:i essa gente psra qi e assim ma julgue?! • — O que quer v-smeeô, seu capitão; .acontece qua*i ampre assim, d.us© Flo-rentino. Ea no seu caso e na sitaporíçSo

ia para Campos j á ; os seus amigos lá hão de defendei o.

— Sim, sim, exclamou o fazendeiro, hei de faze confundir os caltimniadores e a desforra será tremenda.

Dentro em pouco tempo uma canôa, re-mada com extraordinária boa vontade, voava pelo rio Macabú. Lavava e a si o fazendeiro', que ia .buscar no saio da fami-lia consolo para a sua afflícçãt».

- - D-urante toda © dia n?nguem aíreveu-se a approximar-se da casa, em que apodre-ciam os cadaveres da familia da Fraccisco Stneiicto. Só a nuvem de corvos, «ras-nando áa espaço a espaço attrahid» pela carniça, fazia sôiatinelía á mortoalha, ora concentrand-j-se e a immensa e*ph$ra ne-gra, ora desdobrando-se e sbatendo-se repentinamente sobre o tecto meio quei-mado.

A' noite, po"Mm, um vulto chegou cau-telosamente até á frente da casa, empur-rou a porta e entrou sem hesitar, fechan-do-a de novo sobre si.

Lá dezit>'0 ouviu-so apenas o ruido das íiicsfías espantadas psia visita inespe-rada.

'Passado algum tempo, o vulto sahiu com a mesma precaução, e, entrando pe-las roças, seguiu paios aceiros, depois pelo campo, e afinal dirigi a-£ a para as senzalas do sitio.

Abriu uma delias e entrou, accendenlo jogo depois um ca/tdieiro. A' luz deixou então conhecer a pessoa que, zombando de temores supersticiosos, não trepidou aventurar S3 na escuridão e no isolamento áquePe domínio da morte.

Era a tia Balbina, que trazia sobraça ia uma enorme trouxa da roupa ensanguen-

A feiticeira começou então a estender demora lamenta no chão os vestuários impregna los pelas exhalações dos cada-ve.-fcs.

Depois reunin-as de novo, e f<<i colo-cai os em ama velfta caixa, ao cauto do quarto.

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OU A PENA DE MORTE

Feito isto, sentou-S9 per algum teeopo na beirada da cama e tomou a posição de quem medita.

Não se prolongou per muito tempo a sua inacção, porque para logo levantou-se e foi acocorar-se no meio do quarto em exercícios de nigromanoia.

Por vezes os busios foram lançados, e o cheiro de enxofre renovado no aposento. Depois, como se hoovese conseguido o que desejava, Balbina-guardou os seus instru-mentos cabalísticos, e poz-se u canta-rolar, sentada scbre o leito.

Uma voz, repassada de tristeza, veiu destoar da alegria da feiticeira.

—Oh I tia Balbina com'? e&t'á tu Io isso em debando, que desgraça.

—SeCarolina tem muita pena dos bran cos é peior para ella. D us qute que elles pagassem & maldade para ccm os escra-vos, e por isso deixou que mandassem mater por Fidélis e os outros a família do aggregado.

—Mas, sempre f«z pena, tia Balbina. —E' verdade., respondeu friamente a

feiticeira, que repetiu á creoula os horro-res -ia matança, ts.es coco o 03 ouvira ao desconhecido.

•Por fim di&ie ella, bocejando : —Víi.mcrS dormir, criança, hoje vou re-

somnar como a:a branco rico um somno descansado. D.us te abençôe.

No dia seguinte^ 15 de setembro de 1852, as auctorida es de Macabú entravam em nome da lei ir* casa em que, ircnicç, frio e desapie-la o, o desconhecido tffeotaara o vandalico morlicimo.

A justiça incombiu se então de arran-car bo bico adunco dos corvos os cadave • res já putrefactos, e o povo que asompa" nhou as auctoridades sentia duplicar-se" lhe a indignação porque presenciou um espectáculo verdadeira,merste repugnante,

O assassino não contf^ntarfe-se em im-molar oito victinus; pelo que «e via na posiç-ão e nadca: do* cada veres havia le-vado acanha até a violação do pudor das

donzôllas e ao desrespeito do recato de esposa.

O inspector An^ré revelou então "aò subdelegado a denuncia que lhe fôra dada pelo chefe da familia assassinada contra os escravos õe Motta Coqueiro,, e alguns dos cirçumstantes' juntaram a esta reve-lação a da malquerença de Faustino e Flôr com o finado Francisco Benedicto.

Aocrefcia que o fazendeiro tinha che-gado nà-noite dos assassinatos e que um dos homens livres, Flôr, tinha vindo cohi elle na -mesma CKnôa. Faustino-matava por dinheiro e dissera qua se Matta Co-queiro lhe pagasse bsm não trepidaria extinguir a raça de Francisco Benedicto.

Assim, pois, o inspector, redigiu aparte do crime, imputando-o a Motta Coqueiro, na qualidade de mandante, aos seus es-cravos, e Faustino Pereira da Silva e Flo-rentin© Silva como auctores.

Presta&ss as honras fanerarlss á fa-milia do aggregado, a policia tratou ioumediatamente de pôr csrco ao sitio.

Provou-* e até á evidencia o funâamento da suspeita publica pobra a auctoria do cri ate execrando.

Não foram encontrados no sitio nem Motta Coqueiro nem muit' s dos seus es-cravos, e pelo depoimento» a a prata Balbi-na, a quem conseguiram verifico^-se ain-da que os escravos ausentes eram justa-mente' os dsEuncíados po;:* ella como instrumentos demandante, Fidélis, Ale-xandre, Círios, Sabino, Peregrina e Do-mingas.

O clamor public 3 entume&oea se como um vulcão sobra a cabeça do fazendeiro, e como o volcao -se desfaz em raios e aguaceiros, prorompau em calummas e maldições.

— Foi elle; aquelle sanguiaari» capitão; já não é a primeira; Um morto muitos escravos em surras 1 Mss, pôde fazer, por-que é rico, tem dinheiro.

A {. ffioiobidade popular para a diffama-ção rio proximo dava-sa ai.as e voava de&empádidautiente.

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Os escravos do fazendeiro ficaram d'esda logo á disposição das auctorid*des, mss, o Sr. Oliveira, nãrs obstante desenvolver maxima actividade para a captura dos indigitados, criminosos disse todavia ao inspector:

— Era capas de jurar a favor do ca-pitão", não me parece capaz de semelhante crime.

—• Mas as provas, que são tolas contra elle, dizes justamente o coatrario, com perdão de V. S.

— Não vou fôra disso, mas Em todo o caso as eleições se approximam e em quanto o cap:tão deslinda o negocio podemos descançar.

Na mesma hora foi expedido uai prrprio psra Campos sfií» de communiear á po-licia o acontecimento e p?dir o seu auxilio para a captura to principal criminoso que lá devia estar.

O Sr, Oliveira não se enganava quer quando negava a sua consciência & sasc-cionar o clamor do povo, quer quando previa que Mottá Coqueiro estava em Cflm;oí?.

No dia da diligencia no sitio, o fazen-deiro tinha chegado á sua chacara na ci-da~e, acompanhado pelo preto Domingos, sobre quem não piirava no espirito áe Coqueiro a menor duvida a respeito da sua isempção no assassinato da familia, de Francisco Benedicto.

Sentndos sob um csrarnfmchão estavam a Sra. D. Maria e seus filhos tanto os do primeiro consorcio, como os do segun-do, com o fazendeiro.

Um dos filhos do primeiro consorcio era já uma influencia campkta ; desem-penhava as funoçoes de collector, e gozava de consideração geral.

O fazendeiro que atravessava cabisbai xo a alêa que do portão da ohacara dii i" gia se em linha rccta a tê á entrada da casa, foi dispeitado da. abstracção com que andava, pelos psios do grupo e logo conduzido para elle pelos meninos que lhe sahiram ao encontro.

Os senis affagos para [os filhos e entea" dos foram misturados de lagrimas, e os abraços eram tão eitreiíos, os beijes tão soffregos que a esposa e o enteado ex-clamaram ao mesmo tempo :

— Olhe qua d'esta maneira faz-nes pensar que perdemos o nosso quinhão.

A jovialidade de ambos foi, porém, bruscamente mudada em recolhimento tristonho, porque em vez de sorrisos o fazendeiro só teve^lagrimas ao abraçal-os.

— Faça com que as creanças se reti-rem, porque é necessário que fiquemos SÓ3.

Depois que a fâmiiia retirou se, os me-nores cantarolando e gargalhando , sem ccn&trangioaento, o collector pergunto a ao seu padrasto qaal era a nova desgraça succedida no maldito sitio de Macabú.

— A maior qua se podia imaginar, res-pondeu Motta Coqueiro; Francisco Be-nedicto foi assassina-lo com toda a sua família!

— E quem foi o auctor de tão tremendo crime, ioterrogoa o collector que se pu-zera de fé, tremulo e perturbado ?

— Não s i ainda ao certo, mas diz-se que feiram os nossos escravos.

— Meu Deus. meu filho, meu marido, exclamou a Sra. D, Maria, eu sou a cau-sadora d W a desgraça, eu sou a assas...

Um violento atalo nervoso, convulsio-nado prolongadamente, cortou em meio a accussçã> £,erigosissiaaa que a Sra» D. Ma-ria pronunciava c-;ntra si própria.

Soccwrrida a esposa, que foi desie então prtsa de uma febre d-..vastadora, o fazea-deiro e o collector reataram a conversa-ção dolorosa.

— E onde ficaram os escravos ? — Fagiram os priacipaes' auctores e

ficou apenas o Carlos, que deixei ficar na barra de Macabú para tratar-se. Quasi mstei-o na primeira explosão.

Passadio um breve sileacio, durante o qud o collector, c m os olhos rasos de la-grimas, foi pouco a pouco desenrugando a fronte; exclamou:

1 4 0 MOTTA COQUEIRO

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OU A PENA DE MORTE 141

— Não ha o que temer; não desani-memos.

— E1 o qae lhe parece5 meu amigo; ha tuio a temer.

— Porqua, haverá alguém que acredite que minha mãi fosse capas de mandar as-sassinar uma familia? Explicaremos tado e a verdade triumphará.

— E' engano sau. H* um my&teri© para você n?:S acontecimentos do sitio, e este é o ponto mais sério. Escute-me.

A voz do fazendeiro abaixon-se de modo a <sar ouvida sómente pelo seu Interlocutor, e a gravidade da confidencia pôde apenas ser suspeitada pela commoção do collec-tor, que pôr fim sem se pader conter disse bem alto :

— Estamos perdi ios 1 — Já vê que pronunciar o some de sua

mãi n*este negocio é deshonrar toda a nossa familia.

— Ninguém acreditará na sua innocen-cia; e condemnal-a-hão. Mmha desventu-rada mãi!

— Esperemos e confiemos em Deus 1 Concebe-se facilmente os horrorosos pa-

decimentos do fazendeiro, seu enteado e sua mulher duraste esse dia; todavia não eram senão • o prologo da historia do infortúnio «'essa familia,

No dia seguinte, o collector, que tinha sahido pari indagar se já cm Campes ha-via noticia do fatal acontecimento, en-controu se com o Dr» B., que abraçou-o chorando e disse-lh© tristemente:

— Falla-se já com insistência em uma tristíssima historia, em que anda envol-vido o nome da sua familia; previnam sa em quanto é possível. Temam, porque é quasi inquebrantável a força da calum-nia.

— Mas, objectou o collector, exforçan-do-se por dissimular o pânico de que foi logo assenhoreado, é cousa assim tão grave ?

— Si é.meu infeliz, amigo diz-se que seu padrasto mandou assassinar uma familia inteira,

— Ah ! miseráveis, bradou o collector' havemos de ver quem vence.

— Saiba mais, meu amigo, o incoaa-modo já não é pnísivel evitar, porque ha uma parte do subdelegado de M&cabú.

— K hssta isto para aviltar-se cfoota sorte um homem de bem ?

— Infelizmente não é preciso mais. Ha entretanto tempo para que o nosso amigo se ausente, porque o juiz de direito ac-tualmente eoa exsreicio reiucta em expe-dir o man Jado de prisão.

— Estamos, pois, salvos porque tere-mos tempo de confundir a calumnia.

— Não se illuda com esta esperança; o proprietário da vara chamal-a-ha a si talvez amanhã.

— E. . . — Bam sabe quanto sou mal visto pelo

juiz de direito e qaanto devo ao &eu pa-drasto. Demais a influencia d'este é te-mida pelo juiz, que se quer fazer depu-tado e tem uma chapa a impôr. O melhor caminho é aconselhar o Coqueiro que se ausente até se aclarar a questão.

Quando o collector seguia o caminho das Covas d'Areia, onde era a habitação de Coqueiro, foi attrahido pela conversa-ção de um grupo.

Dizia um dos reunidos : — Não se pé de dar maior escandalo ; o

delegado de policia sabe do facto e não sa move ; o juiz de direito interino não expede o maniado, e o criminoso está muito a seu gosto em sua casa. Não ha como ser chefe de partido n'esta terra.

— Ora que queres tu? interveiu outro; o delegado tem no Coqueiro o seu braço direito ; seria muito engraçado partir d'elle o golpe. E' capaz de demittir-se. Verão.

— Nada se perderá, o Coqueiro ha de ser filado talvez hoje mesmo, porque o Sayão Lobato assume a vara. Istc afian-çou-me pessoa muita séria.

— Santo Deus, santo Deus, murmurou o collector; estamos irremediavelmente perdidos.

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142 MOTTA COQUEIRO

Caminhando como um allccioado, o enteado do fazendeiro chegou quasi louco ã chaeara das Covas d'Areia.

—• Fuja immadi&tarjoente; um minuto mais aqai e será indignamente enxo-valhado. Fuja I exclamou ©lie abraçando-se com ©ip&dastro.

— Fogem os criminosos; os que não têm culpa esperam até justificar-se.

— Mas lembre-se de que tem inimigos, e estes não hesitarão em per-iel o. Evite á nossa familia o golpe devêl-o sahir a'aqui preso a com um mfammta l&béa.

— Não quero fugir ; seria talvez expor outrem, á calumnia.

O collector não desanimou apezar da resposta formal de Motta Coqueiro^; pro-seguiu na sua insistência, ponderando q^e d'esta sorte ser-lhes-hiam mais façais os recursos, porem Motta Coqueiro resistia sempre, e só cedeu quando um pagem en-tregou-lhe uma carta que trazia no sobre esaripto — urgentíssima; — aára-a logo qualquer pessoa da familia.

Embora anonyma a lettra dá carta em assaz conhacida por ambçs os qu dis-cutiam.

— Le:;a o que o nosso amigo .ssianda-nos dizer, disse Motta Coqueiro, passando o papel ao enteada; farei o que elle ordenar.

A tremula vóz do collector fez ouvir o seguinte:

« São quasi seis horas, prepara se a força policial para cercar a sua casa. Lego que chegue o delegado, que sahiu para uma diligencia, usas que voltará até á ; seis horssj porque doseja ir pessoal-mente capturai será cumpriio o que manda a lei. Todas as sahidas foram tomadas e amanhã será publicada uma circular a todas as auctoridades da pro-víncia para que o prendam onde o encon-trarem. Ausente-se, se ainda está ahi, é o único meio de evitar um grande desgosto aos seus amigos. Escuso-me de demorar-me em dar lhe as razões por que assim procedo: não creio que por sua ordem fosse commettido tão execrando crime,

P . S.—Leve com sigo esta carta e outra em que tenha a minha assignstura; mostrs-a © peça pouso aos fazendeiros do município.»

—• Então, perguntou o collector ; insis-tirá ainda em querer ficar ?

— ^Obedeço, eu saio já. Abraça por mim os meus filhos e, quando sua mãi melho-rar , diga-lhe que tudo foi remediado e que eu parti para Iiabapoana a negocias. Adeus, poses abraçar-m© sem escrupulo; eu não intervim de forma algum*, n'este crime. Se eu não me puder justificar re-pete sempre estas palavras a meus filhos: teu pai era innocente.

A resignação, que accsntuava estas pa-lavras,fez estreosecer o ouvinte, que tentou avivar a fortaleza ctc fazendeiro, visivei-menta depauperada, afiançaado-lhe que não havia muito que temer.

— Ah I Motta exclamou Coqueiro, que já havia dado alguns passos.

Parou e pediu ao collector que lhe desse papel. A lápis escreveu o fazendeiro estas linhas:

« Uma palavra sua acerca do que orde-nou aos escravos é a minha sentença de morte, lavrada por meu proprio punho. Se alguém da nossa f«milia deve appa-recer e soffrer, eu trnho forças. Peço a mãi de meus filhos que em nome Telles poupe se de ser mal julgada. Adeus. »

— Entregue este bilhete a sua mãi, quando fôr opportuiao ; diga-lhe que o queime apenas lel-o. Agora um ultimo pedido: posso esperar que os meus filhos não ficam ao desamparo ?

As lagrimas e um abraço estreitado pelo collector ao fazendeiro incumbiram-se da resposta, e Motta Coqueiro sahiu sem ter procurado è»contrar-se com a familia*

Infelizmente não lhe foi dado eximir-se doeste tremendo golpe. Uma das suas

* filhas, para quem ainda não tinham desa-brochado todas as flórea da meninica, sa-hiu ao seu encontro, pedindo que lhetrou-xesse uma lembrança do passeio*

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— Não posso, minha filha, soluçou elle, misturando os beijos e as lagrimas nas faces da creaaça: os homens são tão maus para o teu papai que nem qaerem qaeeile possa trazer na volta forinqaedos para vocês- D sus te abençôe, e pergunte aos meus inimigos, se quem tem. filhos da tua idade, taxi a, coragem para mandar, matar creanças!

•A meniua poz-se a chorar o pranto es-pontâneo da cresnça, ao passo gué se a pai affastavs-s® quasi correndo.

Uai quarto de hora depois a chacsra erã estreitamente cercada, mas as portas não foram abartas, porque já era.noite, e além d'isso o delegado não tinha exigido,

O relogio da igreja da. Misericórdia batia onze beras da noite, quando um homem, ve .tido da preto, com a cabeça coberta com um largo chapéu do Chile e um lenço negro atado ao rosto, chegou á rua B-;sra Elo.

Campos, abella cidade fluminense, dor-mia silenciosa espelhando nas sguss sem rai io da Pàrahyba as su/ss casas caia las e a luz avermelhada doa seu* lampeD-ss».

O homem, que Tinha acompanhado por um preto, desceu a margem do rio, em-barcúu-se em uma canôa, que foi logo impeUida pelas remadas do preto e em breve tempo ganhou a margem opposta.

Ahi disse o home® ao pr^to : — Não hei de esquecer-me de t i ; vai,

Domingos, e são digas a ninguém para que lado segui. Diz ao meu enteado que alugue te em qualquer casa.

Por essas palavras e o tom de vez vê-se que o homem qae atravessou o rio, era Motta Coqueiro.

No outro dia pe-a manhã, a casa das Covas d1 Areia foi franqueiada á policia ; mas esta não encontroa ahi o criminoso procurado.

Quando esta nova divulgou-se, o povo, que se agglomerara para assistir a dili-gencia, prorompen em accusações contra Coqueiro.

Diaía-se geralmente: — Foi elle, e tanto assim qus tratou

ioga á® fugir. Qa-j monstro i deve ser enforcado.

XII

A FERA DE MACABU1

O malíogro d A diligencia, attribuidopela população a firme proposito da auctori-daie policial em deixar impune o crimi-noso, entrou logo. em fatal contribuição coiitra Motta Coqueiro.

O Cruzeiro e o Monitor Campista, fo-lhas qaetlo minavam a opinião de Campos, o primeiro no intuito da triumphar na opposição pessoal ao delegado, o segundo eaim-diíado na rede ôi, animosidade pu-blica, acirraram ãmãe lojo o ssu estylo em desabsno do réu.

No €ruzeiròf sob a ruferiea de sito effeito: Coso horroroso', no Monitor, sob a tres vezes mais compromettedora: A fera de Macaòú, o submisso dií clcnario foi explorado pelos publicistas, intpellidos pela, sede vesana d® adjectivos, ora senti-mentais como um livro de Lama»tiae e que eram consagrados em nenias aos as-sassinados, ora infamantes como um ba-raço e estes effarecidos, dedicados e con-sagrados a Motta Coqueiro.

Hurrahs congrátulatorios respondiam ás noticias recebi las pelo correio de Maca-hé,quando sabia-se da prisão de algum es-cravo, ou de algum cúmplice àa fêra, e em altos brados exigia-se aexpe lição de tropas para todos os pontos, a fim de que fosse promptameate capturado o barbaro man-ãante, cujo 'procedimento atroz merecia punição tremenda, para ser descon tada a civilisaçSo da Campos, Macahé e Ma-cabú 1

NSo demorou muito qua fossem p?epos Florentino Silva, Faustino Silva, e Do-mingos, mas o princ pai criminoso pa-recia zombar de todas as pesquizas. A policia, cuidadosa em segair-lhe ao en-

OU A PENA DE MORTE 1 4 3

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144 MOTTA COQUEIRO

calço, chegava sempre depois que elle estava distanciado.

A' medida que se decorriam os dias form&va-se uma lenda tristíssima. Já não era só dizer-se que os cadáveres foram encontrados, segando o Cruzeiro, já la-cerados pelos cães e aves carnívoras; accrescentava-se que, tendo podido es-capar á matança, sppareceu uma infeliz filha de Francisco Benedicto, rota e fa-minta, ainda mais, digna de compaixão pelos seus poucos annos.

Pobre menina 1 dizia-se, estremece ao ouvir o nome do fazendeiro, e pergun-tada porque tinha tanto medo d'esse nome, respondeu:

« — Estav? mos eu e minha iram escon-didas em uma arvore ; eu que era mais velha subi até as grimpas e minha irmã ficou occulta no ouço da arvore. Em casá choravam e gritavam meus pais e meus irmãos, mas a pouco e pouco todos caiaram-se.

Appareceu enfão cá fóra o Motta Co-queiro, alumiado por um escravo seu que trazia um facho. Procurou em roda da casa e depois chegou se á arvore, onde viu os cabellos de minha irmã, pelos quaes tirou-a do escondrijo.

— Mata este d^moninho, disfe elle ao preto.

— Senhor, é muito pequena, tenha peaa d'ella.

— Covarde, tu me pagarás; exclamou o fazendeiro, e segurando com a mão es-querda a perna de minha irmã, com a direita armada de um facão, partiu.-a pelo meio e depois fel-a em postas.

— Falta-me ainda uma, disse depois. Eu tremia, continuava a criança, mas

felizmente elle não lembrou-se de subir á arvore.»

E a crédula população bradava indig-nada :

— E' a um malvado d'estes que querem livrar. Miséria da nossa terra; muito

óde o dinheiro I Mas se o jury absolver, o povo far-se-ha carrasco.

Eisiqaaaío assim era julgado, extenua do pelas continuadas jornadas, Motta Co-queiro arrastava-se pelas maita&, p;:ra fugir á injusta pos?ção.

Sedento, meditava primeiro e esprei-tava minuncú sãmente para chegar-se a algum ribeiro, qne murmurando descia pelas grotas, brotando em s^ns tristes como um soluço. , Um i&ez depois da sua sabida da cidâ-le sentiu que as forças abandonavam-o é lembrando-se da família, dos filhos inno-centes que ficariam ao desamparo e infa-mados, caminhou para uma casa que al-vejava ao longe, e ahi pediu agasalho.

Receberam-o com a de'icadeza hospi-taleira innata no sertanejo brazileiro, mas gradativamente foi diminuindo a prasen-teria da família.

E' que ha?ia chegado o dono da casa, e antes só ahi estavam mulheres.

Francisco José Diniz, chefe da familia, que hospedara o for&giio, era inspe-ctor âe quarteirão, e embora o seu tino policial não tivesse finura especial, a sua psrspicacia estimo! a va-se com a lembran-ça dos prémios no valor de dois contos de réis, offerecilos pelo chefe de policia da província e a delegacia de Campo3.

Ao vêr aquelle homem vestido de preto, com um lenço atado ao queixo, e uma physionomia em que a desventura sul-cara rugas indeléveis, o Sr. Diniz lem-brou se do criminoso, cuja captura era esperada com anciedsde geral.

Deixanlo só o hospede, foi procurar um ofíicio que lhe tinha sido dirigido pela delegacia, e chamando a sua mulher leu-o para que ©11a ouvisse:

— cc Fsça prender Mano al da Motta Coqueiro, alto, magro, corado, de sobran-celhas salientes e espessas, com uma grande mancha no roito, casado, maior de 50 annos, e assim os escravos, que o acompanharem. »

— E que tem este pobre homem de com-mum com o malvado, que querem pren-dei ? Pois não se está vendo que um ho-

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OU A PENA DE MORTE 145

mem como esto, era incapaz de matar uma mosca 1 exclamou a esposa.

— Biles disfarçam.muito, os scelerados! — E mesmo que fosse, aqui dentro é

nosso hospede. — E eu sou s?o>pre i&spector, aqui den-

tro, ou fora d'aqui. Vou confrontar. O inspector postou-se diante de Motta

Coqueiro, q«e sentado á mesa da sala de jantar ceiava tranquiliamente.

— Não me parece; mas é elle mas mo, está se vendo; vamos eonversal-o.

Depois da ceia, Motta Coqueiro ccnser-. vou-se. sentado, e segundo cs estylos per"

guntou pelo numero de membros da fa-„ milia de seu agasalhador e pelos seus

negocios. E ata bolada a conversação, o inspector

/ affectando a mais sincera familiaridade, perguntou ao hospede:

— O Sr. vem de Campos ? — Estive lá, mas venho do sertão de

Santa Rita, — E quando passou por Campas não

ouviu fallar do Motta Coqueiro. O fazendeiro sern pestanejos sequer,

respondeu com firmeza. — Ouvi. — Qae malvado, heirn ? Uma familia

inteira, velhos e erianças, e até a própria casa, tudo destruiu. Nem enforcado oito vezes paga o crime que commetteu.

— Talvez se o senhor o conhecesse não dissesse o mesmo. Eu não acredito que Motta Coqueiro tivesse alma para seme-lhante horror. E' um homam serio o Motta Coqueiro, que eu conheço.

— Quanto á certeza do crime, já não ha duvida : os proprios escravos e cs dois homens que ella pagou para o mesmo fim confessaram o crime.

— Os dois homens que elle pagou, acudiu Motta Coqueiro commovido ; mas quem é que*espalha isto, santo Deus ?

— Oh ! o senhor conhece bem o assas-sino ; mostra-se tão penalisado !

— Sim, fomos amigos. Tenho até bem

gravado na memoria um signal pelo qual ó fácil conhecel-o.

— Ba também sei: uma grande man-cha no rosto.

— Exactamente, e d'este lado. O incauto fazendeiro affastou o lenço e

deixou ver o maldicto signal, que o dava conhecer.

— Está preso! gritou o inspector. — Porque ? perpretei algum crime ? per-

guntou oJiospeâe-perturbado. — — Os tribunaes dirão. Está preso por-

que o senhor é o Motta Coqueiro; não pode nega-lo, e foi o senhor mesmo quem acabou de mostrar a mancha que Deus poz-lhe no rosto para que seja conhecido em toda a parte. Está preso.

— Senhor, disse humildemente o fazen-deiro ; não tento resistir, e entretanto, se eu fosse um malvado,bem sabe que á pri-meira voz de prisão, te-lo-hia feito eahir varado por uma bala. Deixe-me seguir ; o senhor é pai, ê marido, pdde vir a ser perseguido sem culpa, como eu hoje sou ; compadeça-se de minha desgraça.

A mulher, e os filhos de Diniz tinham todos corrido para a sala de jantar, e olhavam espantados para o hospede,cujas barbas crvalhavam-se de lagrimas.

O fazendeiro precipítou-se sobre as crianças e ajoelhando-se, e cingindo-ás em seus braços, continuou:

— Olhem bem para mim, meus filhos, olhem. Digam; eu tenho cara de um mal-vado, digam, digam a seu pai? Peçam-lhe que não desgrace uma familia inteira, perseguida injustamente.

As crianças pallidas tremiam abra-| çadas pelo angustiado fazendeiro; a es-I posa de Diniz chorava, mas este desapie-

dado e inexorável, vendo o hospede com os seus filhos entre os braços, após ins-tantes de hesitação, atirou-se furioso sobre elle e agsrrou-o pelas costas, gri-tando :

— Rapazes tragam-me cordas. Dois pretos aproximaram-se immedia-

tamente e o fazendeiro foi amarrado,

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apezar dos seus regos e protestos de que mesmo sem esta medida não tentaria fugir.

A's seis horas e meia da tarde, do dia vinte e tres de outubro, desde a rua Beira Rio até a Praça de S. Salvador, onde está situada a cadeia de Campos, a população curiosa agglomerav&-se para assistir um triste espectáculo.

Descalço, com as mãos algemadas, os olhos baixos, as faces emmagreciáas e lividas, Motta Coqueiro desembarcou da Barca de Passagens acompanhado por grande numero de soldados.

O delegado de policia, Dr. Almeida Bar-bosa, que esperava o preso a sahida da barca, era alvo das mais enthusiasticas manifestações, mas em vez da natural expansão do seu semblante conservava-se frio e até mesmo comoaOvido.

Ao ver o modo porque o preso era con-duzido, o nobre doutor estremeceu, mas a sua commoção não poude ser percebida; porque uma nuvem de assovios e alguns projectis atirados contra Motta Coqueiro, causando indignação em vários grupos, desviou a attenção geral.

Contida pela polícia a baixa manifes-tação do odio popular, o desventurado fazendeiro foi conduzido á prisão, cuja guarda foi dobrada.

Declarado incommunicavel pela cruel-dade da lei, desfizera-se-lhe a única es-perança que o alentara durante a vergo-nhosa e fatigante viagem: a esperança de haurir nos beijos de seus filhos e nas lagrimas de sua esposa e enteado a triste consolação da amisade.

A grade da prisão trancou-lhe, porém, não só a consideração social, mas tam-bém a entrada á affeição da familia.

Felizmente superior á lei está a no-breza de alguns caracteres, e o gelo dos artigos legaes não basta para petrificar algumas almas eleitas Sob a togados ma-gistrados bate muitas vezes coraçõ s de homens!

Alta noite uma das filhas do fazendeiro

era introduzida pelo carcereiro até diante das grades da eel ula em que elle jazia, destroço de um grande nome, solemne no seu infortúnio.

A baça luz de um grande lampeão alu-miava o corredor e pi ojectava a clari-dade crepuscular no interior da cellula.

— Papai, papai, exclamou a menina, pondo os braços por entre as grades ; ve*-nha comctigo para ver se mamãi deixa de chorar. Ella está muito doente.

Um punhal vibrado, pela mão do ver-dadeiro assassino de BVancisco Bene icto, não teria ferido mais fundo no coração do desventurado réu.

Da um salto veio collocar-s© junto da grade e seus lábios procuraram sofíregos as faces da menina.

O carceiro, com os braços cruzados e encostado á parede em frente á grade, assistia immoveí á triste acena de expan-são do &mor paterno e da innocencia fliial.

A menina, aproveitando a occasião em que seu pai deixára-a um instante para enxugar as lagrimas, dirigiu-se ao car-cereiro.

— Para que é que tem fechado & porta do quarto de papai ? Elle precisa de ir vêr mamãi; abra-lhe a porta.

— Elle está preso, minha menina, disse o carcereiro, que se abaixara e beijou a menina; não se pôde abrir o quarto d'elle.

— D^ixe o senhor, minha filha ; elle não pó ;e fazer o que você lhe pede. Ve-nha conversar com sea pai.

Um leve ruido, vindo do lado da porta principal da cadêa, dispertou a atteoçlo do carcereiro, que de xou a menina e, pó ante pé, dirigiu se a escada.

Tres homens embuçados chegavam n'*ste instante ao patamar. Disfarçadas as physionomi&s por meias-mascaras de panno negro.que cabia?» lhes das sobran-celhas até a altura dos lábios.

Antes que o carcereiro tivesse ti1© tempo de profer r uaaa &6 palavra, um dos embuçados, arrancando do rosto o panno negro, deu-se-lhe a conhecer.

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OU A PENA DE MORTE 1 4 7

— Ah 1 exclamou o carcereiro; perdoe-me V. S., mas eu não podia desconfiar siquer.

Quando o carcereiro concluiu .a descul-pa, já o embuçado tinha se de novo mas-carado e perguntou:

— Não tiaha o senhor recebido ordem para não consentir que ninguém fallasse a Motta Coqueiro ?

— Sim, senhor, tartamudeou o carce-reiro» mas. . .

— Mas entendeu que não devia cum-pril-a. Tenha a bondade de ir ouvir o que diz aquella menina ao seu protegido.

Como se estivasse obedecendo a um su-perior, o carcereiro aff&stou se sem fazer á mínima observação.

Ficando sós, disse aos outros o embu-çado, que se deu a conhecer ao carcereiro:

— O signal está já demorando; quem sabe se nao resolveram o contrario ?

— Nãoé possivel, respondeu um outro; dentro em meia hora, eu tenho certeza de que elle poderá estar em minha casa.

— E dentro em duas completamente fóra do alcance dos seus calumniadores, respondeu o terceiro.

Passados alguns minutos, o a viu-se um assovio prolongado e agudíssimo, e um grito de alerta da saatinella.

Os tres embuçados disseram ao mesmo tempo :

— Eil-os. Caminharam então para a ceilula de

Motta Coqueiro. — Eu não quero compromettel-o, se-

nhor, dizia o preso para o carcereiro; deixe-me abraçal-a, somente; bem sabe que eu não tornarei a vel-a tão cedo. O senhor foi generoso consentindo que elia visse-me, complete a obra de caridade, deixando que a possa abraçar.

— Abra, disse o embeiçado que influia no animo do carcereiro ; eu ma respon sabiliso.

A grade rodou sobre os gonzos, e a menina foi colhida pelos braços do fa-zendeiro, que murmurou :

— Obrigado, obrigado, meu amigo, eu bem vi que me não havia abandonado.

—- Prudência, prudência ; é pretiso que não nos ouçam, ponderaram os embu-çados.

— Vós ?! oh já não sou tão desgra-çado.

— Crê que eu seja um homem honrado, perguntou o embuçado ao carcereiro.

— Sr. doutor! . . . — Agradecido. You pedir-lhe que me

preste um grande serviço. 0 senhor irá para a sua sala e consentirá que tran-que-o por fóra. Ainda mais ; guardará silencio sobrô o que se passa agora aqui segredo absoluto.

— Estou prompto, respondeu o carce-reiro; tenho apenas a lembrar-lhe o com-prometimento que d'ahi resultará para V, S. e também para mim.

O embuçado, sem responder a objecção dirígiu-se immediatamente ao fazendeiro.

— Não ha tempo a esperdiçar, meu amigo; siga-nos,

Motta Coqueiro, sahiu levando nos braços a filha e todos dirigiram-se para a escada.

Os embuçados desceram alguns de-graus, mas foram obrigados a parar in-terrogados pelo fazendeiro acerca do que iam fazer.

— Fugir, e já; reponderam elles. — Não; não quero fugir, afflrmou elle

nobremente; era compromettel-os talvez e certamente deixar ainda mais ennegre-cido o meu nome. Quero justificar-me.

— Mas lembre-se de que só tem em torno de si odio e calumnias; lembre-se de que pôde ser condemnado, porque todas as provas são contra si.

— Não importa; Deus defender-me-ha. Adens : entrego-lhes rainha filha.

E voltou resolutamente para a eellula, onde nâo era já encarcera lo pela vigi-lancia\dos agentes policiaes mas pela sua própria dignidade.

As' cinco horas da manhã do dia vinte e quatro de outubro de 1852 desceu al-

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148 MOTTA COQUEIRO

gemado a escada da cadeia de Campos a amaldiçoada victima da leviandade pu-blica.

A' porta agrupava-se a multidão e aii-nhava-se uma companhia da força poli-cial, que devia acompanhar o famoso réu até a cadeia de Macahé, termo em que foi perpetrado © crime.

A attitude humilde do fazendeiro tinha o sainete da dignidade inalteravel das consciências limpas,e o seu passo, embora1

tardo, cobrava firmeza á esperança de prompta justificação. Vã esperança que nem ao menos demorou seus enganos lisonjeiros !

Alguns dias depois' da sua chegada a Macahé, cuja população recebeu-o com as mais hostis e ruidosas manifestações, augmentadas de odiosidade dia por dia, graças aos libellos dos homens de influen-cia, e muito particularmente do Dr. Velho da Silva, por esse tempo delegado de po-licia e juiz municipal; Motta Coqueiro foi mandado para Macabú afim de ser inter-rogado.

O seu eloquente advogado, o Dr. Fon-seca tomou-se de tanto receio peia sorte do fazendeiro que exigiu sérias provi-dencias para que fosse respeitada a vida do infeliz.

E' que as trevas do futuro escondiam o lobrego aspecto do patibulo; ao contra-rio talvez aquelle honrado caracter cer-rasse os ouvidos e os olhos aos sinistros planes, que suspeitava tramados.

A desiliusão de Motta Coqueiro foi atroz ao chegar ao logar, onde outrora tinha sido,senão respeitado, paio menos temido.

Os inquéritos tinham sido começados e a mais baixa gente, a eacor^a popular, íõra chamada de preferencia.

Vinham depôr testemunhas dos logares aaais afiastadcs de Mácabú e homens que eram notoriamente conhecidos como ini-migos dos réos.

Os nomes das testemunhas sds basta-ram para despersuadil-o cia possibilidade ;ÍG justificação.

Os depoimentos deviam ser tomados a Balbina, Sebastião Corrêa Baptista, mais conhecido por íâebasfciáo Pereira, o Vianna da venda, Lucio Francisco José Ribeiro, Manuel João de Souza Moço, Joaquim José Lycerio, Amaro Antonio Baptista, José Pinto Netto, José Antonio do Rosa-rio, Joaquim José da Costa, Carolina, Fernando, Thereza e José de Sousa Ma-rins, alcunhado o Botão, única que não se quiz prestar a depôr sobre o que não sabia.

Compareciam também ás audiências os réos presos Faustino Pereira da Silva, Florentino Silva, Domingos e Bento Pe-reira da Silva, que trocou depois o banco de accusado pela cadeira de testemunha I

Commentando este facto diziam es ami-gos de Coqueiro, não sem razão :

— Parece que a auctoridade policial ooiiosou os seus policiados n'esta posição diante de Coqueiro: condenanai ou sereis • condemnados.

Balbina jurou qua sabia que o seu se-nhor tinha mandado matar a familia de Francisco Bensdícto pelos seus parceiros Fidélis, Alexandre, Carlos e Domingos, e sabia porque tinha! ouvido ao fazendeiro perguntar no corredor aos escravos se tinham morto a todos. A morte foi feita em um domingo, e o senhor chegara f.o sitio na vespera. Com os esír&vos não tinha ido pessoa fôrra, e a senhora achar va-&e na cidade.

Chamada, porém,a s e g u n d o depoimento, jurou que ouvira no corredor perguntar o seu senhor:

— Então o qua eu mandei fazer já está prompta ?

— Tuáoíiáho, responderam Fidélis e Alexandre, a familia toda.

— Pois quero a casa queimada; tornou-Ihes o senhor.

Carolina disse que Motta Coqueiro na sexta-feira tinha mandado quatro escra-vos matar a familia e atacar fogo na casa, morte que elles só fizeram no domingo, e

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OU A. PENA DE MORTE

N,

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na segunda feira atacaram fogo. Isto con-t a r a m - l h e as m u c a m a s Justina, Catharina e Izabel. No dia da matança achava-se em cása o Flôr.

No s e g u n d o depoimento declara que ouviu, na segunda-feira, a pergunta do senhor aos escravos sobre a execução do crime.

Thereza declarou que só sabia do facto por tal o olvido aos parceiros, que tam-bém, quando ella observou que Carlos tinha um lenço á cabeça, disseram-lhe que no fazer as mortes o homem lhe que-brara a cabeça.

Fernando declarou que tinha ouvido Miar no crime ás escravas Balbina e Carolina,

P a r t e das outras testemunhas juram / também por ouvir dizer; outra parte, * porém, bsseiava-se em razões de grande

valia para as auctoridades de então. Sebastião depoz que o fazendeiro man-

dou mater a Francisco Benedicto para apoderar-se das bemfeitorias do sitio. An-tes, querendo pôr fóra, o aggregado, man-dara lhe roçar ao redor da casa para im-pedi!-o de trabalhar, e a senhora de Motta Coqueiro promettera não voltar ao sitio sem ver morta a familia de Francisco Be-nedicto e principalmente uma das filhas.

Florentino tinha amiss.de com o Motta Coqueiro, havia seis mezes, e este man-dara por aquelle e Faustino, que já tinha feito mortes, assassina 3-o por iatrigas nas-cidas de espoasses tratados entre elle tes-temunha. e uma filha de Francisco Be-nedicto .

Manuel João de Soisza Moço declarou que tinha também sido convidado por Motta Coqueiro para matar, quer Se-bast-So, quer a familia do aggregado pedido a que elle testemunha não acceden. Antes, mandou-o Motta Coqueiro cobrar cem mil réis a Anacleto Vieira e entre-gal-os a Faustino, mas não se havendo ffactoado a cobrança, este revelcu-lhe que devia receber e?sa quantia pelas mortes de Sebastião e dos outros.

Soube do assassinato da familia e as particularidades d'elle porque, por uma noite chuvosa, indo ao sitio conversar com uma das pretas, ouviu a narração aos escravos.

A causa do crime era ter querido Motta Coqueiro seduzir uma das moças assassi-nadas, e, não conseguindo, expulsar o pai das suas terras.

Joaquim José Lycerio soube por ver os corpos assassinados e porque, no dia de-, zeseis, ouviu Peregrino contar que Motta ^ Coqueiro encarregara dos assassinatos os seus parceiros, os dois homens livres, e um outro homem de bem, cujo nome não dizia. Faustino snffocou o velho; Flôr a sua mulher e depois mataram as filhas, e o filho que correra para o matto.

Também Faustino contou-lhs que foram os escravos Alexandre, Carlos, Fidélis e Domingos, em presença de Moita Coquei-ro, que assim vingava-ae de não ter conse-guido seduzir uma das filhas de Fran-cisco Benedicto.

Sabia mais que Faustino e Flôr faziam mortes por dinheiro.

Lucio Ribeiro depoz que encontrou-se com Faustino e que este lhe contara que andavam culpando-o pela morte da fami-lia de Francisco Benedicto, mas em se-guida o proprio Faustino ihe dissera que os réus a causados eram os verdadeiros auctores.

Entrando nas particularidades do crime, disse-lhe Faustino que, antes do perpetra-rem o barbaro crime, as moças foram desacatadas e violadas pelos dois homens livres, em seguida pelos escravos e só depois as m a t a r a m e com ellas as crianças.

Foi uma boa patuscada, tíisse-lhe Faus-tino, e sobretudo não havíamos de perder assim duzentos mil réis que nos dava Motta Coqueiro.

Tinha outras provas ; a elle proprio o fazendeiro ofifereoen uma egoa para ser do numero dos assassinos, offerecimento que elle recusou.

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Dizia-se qae Faustino tinha espetado um pé, correndo após o filho de Francisco Benedicto, e com effeito elle testemunha viu Faustino manco Os escravos confir-maram-lhe a narração de Faustino, que era useiro e veseiro em taes crimes.

Para provar que Faustino era crimi-noso bastava dizer que elle tratou logo de esconder-se nas mattas.

Do que elle testemunha se admira é de ver Florentino no numero dos assassinos !

Passando-se a inquirição dos cúmplices, disse Banto Pereira da Silva que não sabia porque estava preso e quanto ás mortes tinhão sido feitas pelos outros, porque o seu irmão Faustino lh'o disse, convidando a elle réu para ir ressucitar Francisco Benedicto de quem. era amigo.

Não se admirara d'este procedimento de seu irmão que havia antes assassinado a João de Carvalho, pelo que foi senten-ciado, e nao concluiu o cumprimento da pena por se ter evadido da prisão.

Faustino Silva, respondendo ao inqué-rito, confirma a segunda parte do depoi-mento, porém nega a primeira,affirmando que ouviu dizer que as mortes tinham sido feitas por um preto desconhecido, o Botão e escravos de Coqueiro, mandados por este.

Tratando de contrariar as testemunhas, apresenta-as como seus inimigos, e pon-dera que os que dizem que sabiam que elle réu queria matar Francisco Benedicto são também criminosos, porque não avi-saram a auctoridade.

Florentino Silva, depois de expor a sim-plicidade de suas relações com o fazen-deiro, concluiu por imputar o crime a Faustino, Manuel João e os escravos.

Domingos limitou-se a narrar o que se tinha passado á sua vista; confessa não ter visto Carlos ferido, e clama pela sua innocencia.

Seguiu-se o interrogatorio do fazen-deiro.

Sem accusar ninguém, porque não de-sejava fazer juizos temerários, Motta Co-

queiro buscou apenas, na simplicidade das suas respostas, deixar clara a sua inno-cencia.

Os factos occorridos no sitio foram ex-postos minuciosamente, e invocados sé-rios testemunhos para explicar a coin-cidência da sua ultima .chegada ao sitio com o assassinato da familia

A temerosa accusação da cobrança do valie foi desfeita com a singella narração de uma pequena transacção comraiercial.

Confrontado este com os contradictorios depoimentos das testemunhas, ficava por demais provada a innocencia do réu, mas a exaltação dos espíritos, o clamor popular impediam a boa marcha dos es-píritos.

O subdelegado Oliveira apressou-se em pronunciar os réus, como auctores do cri Í e de homicídio previsto no srt. 192 do codigo criminal, adduzindo as circums-tancias aggravantes de paga ou esperança de recompensa, entrada em casa do effen-dido com intento de commetter o crime; resultar, além do crime, outro mal ao offendido ou pessoa de sua familia, aug-mento da tíôr physica por circuestancia extraordinaria; augmento áo crime por circumstancia extraordinaria de igno-minia, pala natureza irreparavel do dam-no; e, finalmente, augmento da afflicção ao afílicto.

Conclusos os aaetos ao juiz municipal substituto de Macahé, foram enviados ao promotor que, depois da apreciação das provas, pediu que se fizesse a devida justiça.

Motta Coqueiro, declarado incopamuni-cavei desde a sua prisão até a vespera de seu julgamento, continuou a sua peregri-nação de infortúnio.

Apregoavam por toda a parte cts seus detractoras qae sempre fôra um homem perdido no conceito publico, e entretanto não o julgaram seguro na cadêa de Ma-cahé, pelo que foi manda iio para a capital do império.

1 5 0 MOTTA COQUEIRO

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Cousa extraordinaria! Desde que o mandante do nefan o morticínio foi en-carcerado, as auctoridades, que tão soli-cites se mostravam na captara de todos os réus, esqueceram os demais escravos ãe Motta Coqueiro, que tinham sido ac-casados e ninguém mais ouviu fallar em diligencias á casa do fazendeiro afim de prendel-os!

E1 que a população pedia sangue para desaffronta^-see já havia quatro victimss para satisfazer-lhe a seccura das fauces justiceiras.

Fossem ellas justa ou injustamente immoladas, pouco importava; o que era mister, o que não podia ser dispensado, era o espectáculo da morte para reparar a morte.

( O verdadeiro criminoso devia alegrar-se na sua barbaridade ao ver como a socieda-de demonstrava comprehender a justiça.

Em quanto na paz insensata da vin-gança elle passava de* embaraçado, tal vez por diante dos mesmos magistrados, que se jactavam de ler na physionomia do fazendeiro os attestados do crime; uma familia esmagada pela execração publica fraqueando diante de tão dolorosa sen-tença, buscava retractar-se de um delicto que não tinha commeítido, e riscava do nome o appelliáo herdado a seus pais I

E Motta Coqueiro, o cavalheiro que repeilia evadi.r-sô para justificasse ; o ho-mem poderoso que contsmporisava com o aggregado para não parecer que abu-sava da força da que então podia dispor, era apontado, injuriado paio anonymo popular e pala imprensa como um typo da maldade e de cysismo.

Longe, porém, da sociedade polida e amiga da justiça houve um coração a quem a sorte do fazendeiro compungiu até a loucura.

Sabendo m interior das mattas de Ma-cabú, por onde errava foragido, qual a aoeuaaç&o que pe.a™ sobre seu senhor, Carlos,queinvoluntariamente contribuirá

para ella, sentiu revoltarem-se-lhe os.íns-tinctos generosos.

Q<jizera poder fazer acreditar a todos a innocencia do seu senhor ; quizera pela verdade confundir a calumnia que já ameaçava a vida, depois de haver tis-nado a reputação e a honra de um ho-mem de bem. Mas era impossível que lhe dessem credito, a elle, um escravo e de-mais accusado também como auctor do crime.

Ia pellido pelo impotente desespero, que o assenhoreara, o nobre escravo resolveu protestar de maneira solemne contra a injustiça que se fazia, quer a si, quer ao seu senhor.

— Basta que matem aos que lhes cahi-ram as mãos ;—disse elle uma tarde em que sentado a margem parecia fascinado pela correnteza do rio.

Ditas estas palavras, Carlos atou aos pés com cuidado extremo duas enormes pedras e ajoeihando-se então ; bradou como se quizesse que a sua voz echoasse bem longe :

— Perdão, meu senhor ; c<5s fomos 09 culpados da desgraça, mas somos também innocentes.

As aguas do rio abriram-se espumando e fecharam-se logo sobre o corpo de um suicida, que prestava com o seu sacrifício homenagem a innocencia do fazendeiro.

Infelizmente para este, o nobre suicida não fazia parte da sociedade, que o devia julgar e que amaldiçoava-o antes de ou-vi!-o.

Não obstante a coragem brônzea de Motta Coqueiro não se quebrava; e foi com a maior serenidade, senão com a mais santa esperança que em um dos dias de janeiro de mil oitocentos cincoenta e tres, entrou pela sala do jury, na cidade de Macahé»

Pelas dez horas da manhã immenso concurso de p»>vo affloia para o?ediflcio, que servia de templo á justiça humana, vendada desde o seu nascimento por um sonho de imparcialidade doentia, e agora

OU À PENA DE MORTE 151

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ainda mais oega pela sobreexcitação sen-timental que a solicitude da calumnia tinha sabido dispertar.

Os pais de familia honestos 0 de con-sciência transparente disputavam-se logar nas bancadas mcommodas do tribunal, cheios de uroa anciedade indisivel.

Todos queriam var o réu principal, de-cididos a apascentar as manadas de apos-

'trophes de promotoria e odio insaciavel, quebaliam-lhes esf aimadas, conchegando -se agora e.para logo estramalhando se do aprisco moral, construído por uma certa boa fé de convenção, que levava os homens, ainda os mais sisudos, a trapilharem mal-dições nos esterquilinios formados pela intriga em roda dos caracteres limpos.

Uma balaustrada dividia a sala em dois planos. No mais elevado em que via-se uma comprida mesa coberta por um pan-no verde orlado de galão amaréllo, e cujos lados e cabeceira do fundo estavam cercados de altas cadeiras negras de en-costo de pau. A cabeceira, que ficava pró-xima á balaustrada, era ílanqueiada por quatro bancos de assento de madeira. Junto d'estes bancos uma pequena mesa fazia as vezes de trbuna da defesa.

Ao longo das paredes encostava-se grande quantidade de cadeiras de assento de palhinha.

Fóra da balaustrada a gala, que dava entrada a uma estreita escada, era occu-pada por muitas linhas de compridos banoos.

Este lado destinava-se aos espectado-res ; o outro aos juizes, que deviam ou pautar-se pela opinião publica, ou arcar com a responsabilidade tremenda que lhes sobreviria de qualquer decisão que a desgostasse.

Também emquanto os espectadores da-vam largas ás suas expansões, um recolhi-mento religioso ssolemnisava a attitude dos juizes,

O presidente do tribunal fez soaracam painha presidencial, para acalmar um

prolongado susurro que se derramou no recinto.

Appareceu ^ntão no topo da escada, todo vestido de preto, Manuel da Motta Coqueiro acompanhado por Domingos, Fiorentino Silva e Faustino Pereira Silva, rodeiados pela força publica.

Os desgostos tinham descorado as faces do fazendeiro e branqueado de todo a*s barbas, que cahiam-lha como um disco de arminho sobre a golla da sobrecasaca preta.

Entrecerravam-lhe as palpebras o cons-trangimento e o vexame, mas o andar era firme, e o corpo conservava o aprumo da confiança.

Os outros rens careciam da serenidade apparente, que envolvia a figura princi-pal do quadro.

Florentino Silva denunciava mais do que todos o pânico pelo qual estava subju-gado ; tremia como se fosse presa de um violento calafrio.

Faustino, embora apparentando mais sangue frio, trahia entretanto a sua per-turbação.

E' que sabia ao certo que, fosse qnal fosse o resultado do processo, seria con-duzido de novo á pri ão para n'ella viver sepultaio durante es annos que lhe faltavam da pana, que se lhe tinha com-minada como assassino, além da que devia soffrer pela evasão.

O ignorante Domingos, ai ida que não pudesse demonstrar paio rosto negro e sem mobilidade o que lhe ia no intimo, deixava não obstante bem clsro que um prssentimento sinistro fazia-o desanimar.

— Qual jury, nem meio jury para esses malvados, fosse eu auctoridade e lhes diria onde paravam elle? a^ora, excla-mou um espectador vendo entrar os reus.

— Não, senhor; curopra-se a lai, ella quer assim, seja assim. Póie ser que elle trará documentos que provem qae é in-nocente. Quem sabe lá ?

— Ora vá bugiar, meu amigo; maa-dou-se intimar a mulher e um amigo

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d'elle e nenhum drs dois appareoett. Se elle f >sse innoeente câ estariam todos os seus parentes e não me consta que esteja aqui nenhum.

— Qaanto a isto n lo ; você lembra se do dia em que elle chegou aqui pela pri-meira vez; lembra-se também da hora do desembarque da corte ? Se vissem algum parente enxcvalhavam-o por força, e embora um homem seja muito criminoso não quer qx?e se desattenda a sua familia. Eu dou-lhes razão,

— Pobre homem, exclamou em outro banco um expectai!cr; Deus o proteja e o defendsu

— Ora essa, homém 1 responderam a esta manifestação de piedade; pois o senhor tem pena d*aquelle demonio? E' preciss ou ser u i santo ou ser tão bom

( como elle. Matar uma familia inteira, velhos e creanças, e ainda haver quem se condoa de semelhante assassino ? . . .

— O senhor g<5 póderá fa lkr assim de-pois da decisão do jury ; por ora não.

— Pois tranque-me a bocca, se não qui-zer que eu falle e além d'isso os incom-modados são os que se mudam.

— No vapor em que elle veiu, narrava um homem que parecia merecer conside-ração aos ouvintes, teve occasião de es-capar-se. Durante toda a noite, as praças que enjoaram desmesuradamente, ficaram desacordadas, e elle se quizesse podia ter-se atirado ao mar. Já bem perto de terra, elle, que estava completamente livre, teve quem o aconselhasse a fugir, e apenas sa-cudiu negativamente a cabeça. Portanto é fdra de duvida que o infeliz espera justi-flcar-se.

— A mim também parece que isto é um sonho; porque sempre ouvi dizer que Motta Coqueiro não tinha animo de fazer mal a ninguém. ^ — Ora até que afinal o encontro; já fui á sua casa e a todos os pontos da cidade em que o Sr. costuma parar. Reaorda-se que hontem á noite o. senhor sustentava que todos os parentes e inclusive a mulher

de Motta Coqueiro tinham-o abandonado? Eu dizia-lbe que estava completamente enganado, e, como não gosto de dizer as cousas sem provas, queira ouvir a lei-tora d'esta carta, cuja copia foi tirada pelo advogado. Escute:

a Meu caro enteado,—Brevemente devo ouvir do tribunal do jury ou a confirma-ção da calumnia com que nos perseguem, ou a satisfação que a sociedade deve á minha innocencia.

A principio quasi desanimei da minha sorte, lembrando o modo porque f ai tra-tado pelo Oliveira e a iniquidade da pro-nuncia com que conseguiram prolongar a minha diffamação, mas hoje escrevo-te com á maior esperança, apezar de saber qual o juizo que em geral se f&z de mim.

Consta-me que minha pobre mulher, e tua infeliz mãi vai ser intimada como in-formante. Eu entendo que é desnecessário o comparecimento d'ella, não s<5 porque em cousa alguma adianta, como também porque, se a minha desgraça levar-me até a ser condemnado, ella não teria re-signação para lembrar-se da recommen-dação que lhe fiz,quando começou a phase negra da minha vida.

Peço-te, pois, que a convenças de que não deve comparecer. Seria aggravar os seus incommodos, e talvez aventurar-se a um desrespeito da população.

Bem sabes, meu caro enteado, que a fé é o melhor consolo dos infelizes; quero, portanto, pe^ir-te que durante o mez de janeiro, todos os dias reúnas os meus in-nocentes filhos e todos rezeis por mim.

Deus ha de ouvir os s?eus rogos. Adeus, beija os meus filhos, adeus; a

esperança faz-me escrever-te: até breve. Manuel da Motta Coqueiro. »

— Então, insistirá ainda em dizer que as relaçSss da familia Coqueiro estão cortadas ?

— Mas quer estejam, quer não, esta carta não serve para provar que elle não

um refinado malvado.

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— Não tratei (Tisto; quiz só mostrar-Ihe que escava em erro.

Pela maneira por que o leitor da carta mostrou-se tão empenhado na defesa do fazendeiro é fácil reconhecer o Sr. Martins, o gratuito sustentador da mnocencia do principal dos réus, apezar de tudo e de todos.

— Veremos ainda quem vence, excla-mou ella; só se não ha mais do que cegos n'esta terra.

A sessão tinha sido aberta, e fazia-se o sorteio dos jurados, acompanhado pelos commentarios dos espectadores.

Havia nomes que eram spplaudidos e outros que provocavam susurro e repro-vação nas galerias.

— Ora é baa ; este ê conhecido como apaniguado do assassino; sa escolhem jurados iguaas, a fera está absolvi-la por força.

— Ainda hontem seccou a guela em vociferar contra o juiz municipal, por ter pronunciado Coqueiro, e hoje entra no conselho. Esta terra vai pela agua abaixo.

Felizmente para esses zelosas amigos da justiça, o desgosto que os afifectava era passageiro, porque a voz do promotor, com um accento severo, bradava logo : —recuso 1

Houve um momento de verdadeira con-fusão na assembléa. Afifectos e desaffectos do réu não pronunciaram a principio uma única palavra, mas de parte a parte des-cobria-se profundo e sincero receio.

A sorte ordenou qU0 f o s s e B m nome, em torno do qual agremiavam se justamente as sympathias germes:—João Seberg.

Um homem vestido de preto, alto, de compleição robusta, fronte descalvada e olhar intelligente, ergueu-se de uma das cadeiras lateraes, e fez ouvir com voz firme:—presente.

Caminhou direito á mesa e tomou o logar que lhe fui designado.

Finda a especie de stupc?r,que dominou

a assembléa, principiaram os commen-tarios :

— E* notorio que se davam muito, e quanto a fera vinha aqui a negocies, passavam horas e horas conversando é muitas vezes ao sol.

— Isto não me íncommoda, se elle en-tender que o homem é criminoso,condem-na-o. Tivesse elle de julgar o proprio pai e se acreditasse que era ci iminos-o, tenho certeza de qu© o condemnava. '

— Bem, acredito; mas o que é verdade é que um amigo olha sempre os actos dos outros cora o desejo de descobrir o melhor lado.

Organizado o conselho, a sessão come-çou a marchar no meio do maior silencio.

Foi lido o processo e em seguida feita a inquirição das te&temunhsss e dos reus.

Seguiu-se. a accusação cuidadosa de causar HM vimenvos de indignação contra os reus, graças sos serviços conseguidos á benevolencia da rhetorica enferma dos judstas.

Quando já os adjectivos tropeçavam e retardavam-fce de tão estafados, o promo-tor pintando o quadro de um pai afílicto, uma velha mãi desesperada, duas pobres moças ameaçadas duplamente na sua vir-gindade e vida, e finalmente tres crian-cinhas acordadas de súbito, « abraçadas amas com as outras, tremulas de receio, emquantc lá fóra, um moço, desarmado e atacado d v totíos os lad.cs, cahi» inundado em sangua, precedendo aos seus. na longa viagem da morte: desenhado assim com manifesto zelo e descriminação de planos e exuberancia de tons este quadro com-movente, o promotor em nome da huma-nidade, da civiissação e da lei, pediu para oâ reus a pena de morte.

A assembléa teria prorompi lo em pal-mas e bravos sa a camp.&inha, tangida pelo magistrado, não tivesse a tempo sus-tado m & ni fefrta»; ão.

JMbtCa Coqueiro tinha enlividecido e duas grossas lagrimas o rva lha ram- lhe preguiçosamente as faces.

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Coube então a palavra ao advogado da defesa.

As suas primeiras palavras dominaram absolutamente o murmurio das galerias, que foram a pouco e pouco abonançando até a commoção.

Era a força magica da verdade e da jus-tiça que vencia na lacta as tríplices for-ças da animadvercão popular.

Entretanto o respeitável advogado não tinha atacado o assumpto se não pela face jurídica; limitava se apenas a analy-sar o depoimento contra dictorio das tes-temunhas e a cegueira aos magistrados na instrrçcçSo do processo.

Ciciava pelos espectadores o pânico da derrota; como qua accorlavam de um longo pesadelo, cheios de despeito por-que viam fogir-lhes tí'entre as mãos as presas,que tinham deliberado inamolar em holocausto á justiça.

Mas ao mesmo tempo a malignidade descobriu meios para justificar as teste-munhas, em serio perigo de serem decla-radas perjuras.

Um anonymo achou e fez circular por toda a aséembléa uma evasiva, que M sancionada como sensata:

— Ora, segredâvam-se os espectadores; nao ha nada a admirar na confusão das testemunhas; sâo pobres homens e mu-lheres que ignor&m o sentido das palavras e que Bão atinam com a finura e atila-mento do advogado, que cs quer perder.

Qirnsi certo da Victoria, pela esplendida derrota que tinha obtido das inimigos do

.seu cliente, o advogado desistia da pala-retumal-a após a replica da

promotoria. A resposta seria a coroação L 0 triumpho que h eloquência a serviço da uma nobre causa acabava de obter.

O promotor publico, porém, d«sistiu do direito de replicar ; ou melhor a justiça, q«e havia conservado os réus incommu-mcave s, que dm azo a que circuUssem boatos de uma execução illegal, negava amda aos réus o direito de ampla defeza

quando a opinião começava a abaiar-se e a voltar-se a favor dVíles !

Digamos em uma única phrase: a jus-tiça prostituiu se por não ter a coragem de suicidar se»

O conselho retirou-se para a sala secreta afim de responder os quesitos formulados pelo magistrado.

A anciedade dos espectadores chegava já até a irritação; questionavam, ag-gredia-se cora phrases injuriosas; apos-t&va-se pro e contra os réus,

Q a ando abria-se a porta da sala para onm se retirára o conselho, todos silen-ciaram repentinamente.

Foram então lidos em alta voz os que-sitos e as suas respostas.

Por unanimidade de votos reconheciam-se o crime e as circumstancias aggravan-tes e negavam-se todas as attenuantes.

O advogado da defeza, que sa fôra gra-dadivãmente alevantando á proporção que ouvia as respostas do conselho, ficou finalmente de pé, livido, com o braço in-teiriçado e tremulo, estatua da indignação, impotente para obstar um crime.

No semblante de Motta Coqueiro pairava a solemnidade das grandes desgraças.

Terminou-se enfim a longa leitura dos quesitos pelo magistrado, e logo depois foi ouvida H sentença, que, pela decisão do jury, oondemnava á morte e ainda nas custas os malsinados réus. O juiz, poiésn, appell&va em nome da lei.

A força publica tomou conta das victi. mas que deviam expirar ás mãos do car-rasco, e a sala foi prompt&mente esva-siada pelos espectadores que foram abrir alas á porta do edifici© com o proposito de indultar, atada uma vez, o infortúnio dos seus semelhantes.

Chegado á prisão, o fazendeiro que fôra tão rudemente ferido por um desen-gano atroz, pediu que lhe deixassem es-crever á sua familia.

A magnanimidade da justiça attendeu-lhe o pedido e o desventurado, molhando

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0 papel com as lagrimas, escreveu quasi mintelligivelmenta:

« Meu caro enteado, — Acabo de sor condemnado á morte. Sirva de pai a meus desgraçados filhos, »

XIII

A DESAFFRONTA SOCIAL

A noticia da eondemnsçao do fazen-deiro voou ruidosamente, levando comsigo a satisfação e a confiança ás consciên-cias dos cradulos adoradores da justiça luimans.

Os nomes cios jurados eram. repetidos por quasi todos entre applansos, congra-tulações e exageros tendentes a afeiarem sinia mais a reputação de Motta Co-queiro.

Nenhuma esperança restava pois ao infeliz, contra o qual a socieiaáe "obsti-na va-seá fechar os olhos para não ver iram só atfceuuante, que ao menos ameigasse a monstruosidade da pena.

O cadafalso negrejava tremendo nas brumas do futuro, e era dia por dia arrastado pelos quatro esteios, e appro-ximado inexoravelmente dss vistas do ciíodemnado.

Contrariedades e desgostos corriam ao seu encontro, COÍBO temerosa roa til ha de cã8shydrophobos,e atassaíhav&m-lhe COEI

as presas envenenadas a propriedade e os brics.

Os credores e o fisco escancaravam ss guélas enormes e não as fechavam sem terem engolido oarte do trabalho do fa

c. a.

zendeiro durante longo» annos. Além d'i!?so o repetiam sempre estribilho hp-diopdo da sua imaginaria barbaridade contra a familia do aggregado.

Tinha sido de novo transportado para a côrte, e arsim ficavam-lhe sobre ma-neira difficultadas as suss relações, quer com sua espo?a e filhes, quer com seus amigos.

Em troca dos carinhos e consolações que estes lhe cfferaceriam, tinha apenas

ss palavras seccas do carcereiro e os olhares repulsivos de todos que por acaso rel&nceiavam-lfte o semblante.

O is fartum o havia por fica afugentado os caris aradas que outrora o cercavam ; affíistaram-se todos, porque a convivência com os scelerados ó indicio de mau ca-racter.

Como os lazares, nos passados tempos, eram postos fóra das portas das cidades, o infeliz fôra expulso d© toda a sociedade.

Ficava-lhe do feliz e sorridente viver de quadra melhor apenas — s saudade, pa-lheta encantada que esbatia rica de colo-rido, frescos commoveutes, em que eram representadas as crianças descuiâosas e prasenteiras, a espesa desvellada e tran-qoilla.

Mas repentinamente o quadro desappa-recia como a . brancura de um velino debaixo de um borrão, e o vulto negro e horripilante do cadafalso surgia d'entre esses festivos sonhos como a careta de Quasímodo entre a alegria dos eleitores cio Summo Doi-lo»

Então o desgraçado, com os cabellos arrepellados e o olhar fiammejante,media gjlencioso o estreito recinto da pvisão, o só parava quanác, extenuado,cahia fobre o leito afogado era soluços e em lagrimas.

— Vejam como o remorso tortura aquelle malvado, dizia o carcereiro ao vSi-o baqueiado nVwaa dôr profunda. Afinal de contas não lhe valeu ter di-nheiro; n*o se pôde livrar da forca, nana póie fazer calar a consciência,

E os que faziam na pnsão a aprendi-sagem da dureza do coração e do cynismo riam desafogadamente escarneos pun-gentes á santidade dVquelle ^ ff ri mento. * Fóra da prisão reinava a inexorabili-dade, e mais ainda a torpeza.

Uma das influencias de Macahé, muito empenhada em ver perdido iiremediavel-mente o desventurado reu, panejou uma acena, cujo effeito demonstraria ainda aos mais afanados deffensorea a culpabili-dade de Motta Coqueiro.

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Bestava da familia de Francisco Bene-dicto uma única filha, a qual diziam ser casada com uoaa das testemunhas do pro-cesso, Sebastião Corrêa Baptista, conhe-cido em Macabú por Sebastião Pereira.

A solicita influencia resolveu mandar vir para Macahé a moça,, cuja presença confundiria infallivelmente o malvado, que persistia em mostrar-se apparente-mente tão sereno, que muitos já o consi-deravam victima.

Approximando-se a segunda sessão do jury a que da viam responder os reus mais odiados que têm apparecído em tri-bunaes brazileiros, a zeloza influencia apressou-se em realisar os seus desejos.

Chego a emfim o dia da sessão, e os réus compareceram para ainda uma vez af-frontar a odiosidade popular, a rhetorica da promotiria, e a sensibilidade dos ju-rados.

Os espectadores, alegres por não verem na tribana da defesa o advogado que na primeira sessão tinb.£-os amea-çado com um profundíssimo despeito-maaifestaram francamente os sentimen-tos contra Motta Coqueiro em um passa, geiro incide ate.

Os julgamentos do fazendeiro © do es-cravo Domingos foram separados do julga-mento dos outros dois réus.

— Faze lá o qua quizeres, matreiro, sorriam os desalmados ; já não ha quem possa tirar-ta a corda do pescoço ; estás ahi e estás a dançar sob as unhas do carrasco.

— O diabo é que ella assim deraora a confirmação da sentença dos outros. Eu se fosse juiz não consentia que se rom-pesse a eambulhaãa; mataram juntos, deviam ser condemnados juntos.

Quando começou o interrogatorio de Motta Coqueiro, houve um grande su-surro, que não cedeu nem ao toque da campainha presidencial.

— Está ahi embaixo; eu estou vendo d'«qui; deve ser ella.

Diversos espectadores mais soffregos

levantaram-se apressadamente dirigindo-se á escada, e outros debruçaram-se ás janellas do edifício, prolongando assim o susurro.

— Ora, bem parecia-me que não era, ex-clamou-se afinai; a filha do pobre assassi-nado não tem meios para vir aqui.

— Por isso não, porque ©Dr«... man-dou-a buscar.

Afinal o ruido dissipou-se e a voz de Motta Coqueiro, tremula de commoção, poude ser distinctamente ouvida.

Depois de expor as suas relações com Francisco Benedicto áur&nte quatro an-nos, desde a sua chagada no sitio e mora-dia na casa próxima a em que residia a sua familia, até o espancamento que ihe foi feito pelo aggregado; exposta amsreha do processo, o procedimento de Lycerio e a indisposição de Lucio Ribeiro e Manuel João ; Motta Coqueiro declarou q^e tinha grande parte de Macabú por sua inimiga, mss que não sabe a quam attribuir o as-sassinato da familia do seu aggregado; seria fazer juizos temerários.

A voz fort&leceu-se então e adquiriu timbre que encarnava em si a maldição a ao mesmo tempo a resignação.

— Quanto á imputação que me fazem de semelhante crime, eu, perante o Sr. juiz e os Srs. jurados, perante Deus e o povo, declaro que estou innoeente : 'tal não mandei fazer!

Prolongada hilaridade nas galerias re-cebeu este brado da co&sciencia flagei-lada do fazendeiro, que ouvindo a garga-lhada alvar dos insensatos, cahiu como que fulminado sobra o escabeilo infa-mante»

O infeliz Domingos nem podia ao menos ligar cs factos para expol-os; li-mitou-se a responder ás perguntas da perspicácia doentia do magistrado, e con-cluiu por affirmar com a maior sinceri-dade : eu não fiz crime 1

O conselho retirou-se para a sala se-creta, mas d'esta vez a sua demora já não abria horisont© aos alvores da esperança

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no coração de Motta Coqueiro, estorte-gado pela cruel certesa de que seria no-vamente condemnado.

O sol dò diá vinte e oito de março de 1853 descambava triste para o occidente, e para elle como para um caracter nobre e leal estava perto o occaso; a região das sombras e dos mysterios.

A espectativa dos assistentes, posta por muito tempo a mal sofMdos tratos, foi emfim satisfeita: os jurados apresen-taram-se com a dezej&da resposta aos quesitos.

Confirmaram por unanimidade que o reu Manuel da Motta Coqueiro tinha man-dado matar Francisco Benedicto, sua mu-lher e seus filhos, alguns dos quaes me-nores de sete annos.

Por oito votos reconheciam as circuns-tancias aggravantes de losrar ermo á noi-te, e tentativa de incêndio ; por unani-midade as aggravantes : motivo frívolo ou reprovado, premeditaçao, entrada na casa do offendido, e ajasíe com os execu-tores da matança.

Aos quesitos formulados a cerca do reu Domingos, respouáeu o mesmo conselho confirmando por sete votos que o reu ti-nha morto a familia de Francisco Be-nedicto ; por nove reconhecendo as cir-cumstancias aggravantes de togar ermo e de noite, tentativa de incêndio, motivo reprovado ou frívolo ; por dez, a aggra vante de ter entrado na casa do offendido com o fim de matal-o; por sete a cir cumstancia de premeditaçao-; por oito negando attenuantes a favor do reu, que não foi violentado por força irresistível nem medo. '

O magistrado que presidia a sessão, deu então a sentença marcada pelo codi' go~a pena de morte ; e appellou d'esta decisão.

— Ail resmungou o desgraçado Do-mingos, os brancos são c.égo&; não que-rem vêr a verdade I

Motta Coqueiro, com a cabeça pendida e sem poder conter as lagrimas, ouviu si-

lencioso o veredicto tremendo que o perdia para sempre.

De feito que palavras poderiam escar-nar em si a amargura da um espírito que, certo da sua innooenci», não trnha forças para impedir que a saciedade, em nome da justiça, lhe estorquísse tudo quanto mais presava,a honra, a família e & vida ? I

O que havia elle de dizer a uma socieda-de que execra a memoria dos barbares porque destruíram ©s monumentos da arte antiga, e no entanto julga-se coin o di-reito de destruir o seu semelhante, o mo-numento sagrado da natureza ?

Que palavras merecia uma sociedade qu© exara nos seus codiges como circum-st&ncia aggravante a superioridade de forças do offensor &obre o of&n-iido, eque no entanto aponta mil espingardas contra o peito do réu, slgema-o, ata-lhe ao pescoço um baraço, e fal-o subir ao cadafalso f

Ha áõres para as qu&es não ha mani-festação possível; o coração humano li-mita-se apenas a sentil-is, quando não é por ellas espedaçado.

Efitre os agentes da força publica os dois réus s&hiram do tribunal, e com elles os espectadores, magistrado e ju-rados.

A solidão ssntou-se então no meio da grande sala ainda ha pouco povoada,-e esírondante de maldicções. Havia ahi a solemnidade das ruínas dos grandes tem-plos da antiguidade, e na verdade aca-bava-se de esboroar um templo de senti-mentos tranquillos,erguido por um cara-cter de tempera*

A' porta do edifício um homem, com os braços crusados sobre o peito, os olhos fixos no solo, permaneceu immovel em quanto a multidão desfilava.

Este homem tinha feito parfce do conse-lho qm acabava de condeamar á infamia e á morte um dos chefes políticos de Cam-pos, conhecido outr'ora pela sua severi-dade e vida immaculada.

Dtr-se-hia que era uma estatua, ou uma apparição sobrenatural, tal era a palli-

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dez de seu rosto, a expressão tristíssima do seu olhar.

E a multidão, distendendo se, dividindo-se, rareou e sumiu-se ao longe, nas ruas e praças, e o homem sempre immovel con ervava-se como alheiaão do que se passava em torno de si.

Um transeunte aproximou-se-lhe e disse lhe jovialmente :

— O a muito bem; temei um optimo logro, sahi correndo de casa para ouvir a decisão do jury e no emtanto acho todo concluido. Felizmeote para mim encontro aincia o Sr. Seberg, que póie dar-me a noticia que desejo. O senhor não fez parte do conselho ?

Seberg não respondeu, nem mudou de attitude, peio que o recem-chegado ba-

I teu-lhe de leve no hombro, e per^uateu precipitadamente :

— Dar se-ha o caso qua absolvessem aqusllà fera ?

— Não senhor; foi condemnado á morte, respondeu Seberg tristemente.

— Ah! exclamou o reaem-ehegado; eu logo vi que não havia a temer de um jury em que entrassem como juizes de facto homeos iguaes m Sr. Seberg.

— Diga antes que não ha que fiar em tribcmaes onde entram para julgar ho-mens que nem ao menos conhecem os processos.

— Está me parecendo que houve algum jurado que tentou fazer tramóia. Vejc-o tão inoommodado....

— Desculpe-me, acudiu Seberg brusca-mente ; desculpe-me; tenho necessidade de fallar já o já a um amigo.

E o nubre Sr. Seberg tomou, quasi a a d i r e c ? ã 0 P e l a qaal seguiram a

multidão e o s r á u s > emquanto que o recem-chegado, perplexo acompanhava o com os olhos.

Alguns minutos depois o jurado entra-va pela ca U tíe M.cané, pedindo per-missão par.* f»l>ar a M< tta Coqueiro.

A luz do candieiro fuliginoso que ardia no corredor da cadôa guiou Seberg até á

prisão do fazendeiro, que, de pé com os braços apoiados na grade e a cabeça dei-tada sobre elles, amargava em silencio o seu laraentavel destino.

•— Perdoe-me , perdoe-me; exclamou Seberg abraçando por entre a grade o condemnado; reconh@ça-me para perdcar um dos seus algozes.

Oâ soluços de ambos embargaram-lhes por largo tempo a voz, mas finalmente Motta Coqueiro, fazendo um grande ex-forço, pouáe dirigir se ao seu inesperado visitante...

— Os Srs. cumpriram o seu dever; não lhes quero mal por isso. Perdoo mesmo aos que me perderam, mas o que eu não posso explicar é a razão por q«e foi con-demnado o meu pobre escravo, o infeliz Domingos. Ea tinha inimigos, mas eile... o desgraçado!...

— Não perca a esperança, exclamou Seberg ; tudo ainda não está perdido. O que nossa exaltação impediu-nos de ver até hoje, talvez & tribunal superior possa descobrir. Tenha fé em Deus, meu amigo, resigne-se e espere.

O fazeadeiro meneiou a cabaça. Era a muda confissão do desanimo, respondendo á consolação da amissde.

Seberg abraçou peia ultima vez o des-venturado e affastou-se dirigindo-se para a sahida da cadeia, onde parou de cho-fre. Uma mulher coberta com um véu, o acompanhada por dois homens, entra-va. n'este momento.

Quando estas tres pessoas passaram, Seberg exclamou tristemente :

— Pobre familia; que desgosto e que vergonha!

As tres pessoas que entraram, atraves-saram uma pequena sala, e, guiadas pelo carcereiro? foram tomar o logar ha-via pouco deixado pelo Sr. Seberg.

O con<íemn>ido, pertransido peia sua agonia, Hão pwcebeu que junto de si olhos curiosos espiavam-o, e nem oviu o que se dizia a seu respeito»

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1 6 0 MOTTA COQUEIRO

Afinal um dos recemchegados tomou a < palavra -.

- O Sr. Coqueiro dá licença que lhe apresentemos uma pessoa'que o veia vi-sitar ?

— Gill meu senhor, respondeu o senten-ciado, heje uma visita é a prova mais sinsera de amizade, que me poda ser dada. Eu sou t io odiado I . . .

O hoaiem que faliou, acercou-se então da mulher e lev&ntou-lhe o véu.

•— Minha senhora, exclamou Coqueiro; eu lhe agradeço muito a sua cempsixao. Hei de ensinar a meus filhos a repetirem o seu nome.

— E não será muito difíicil que elles o decorem ; é a Sra. D. Chiquinha, fillia de Francisco Benedicto.

O efíeiío dramatico produzido por estas palavras cenícndiu profundamente no primeiro lance ao inclemente recem-che-gado. Esperava talvez vêr o fazendeiro recuar espavorido diante da mulher, cujo nome e feições, reccráavsm-lhe as vicíi-mas que a maioria do povo julgava terem sido por elle barbara mente sacrificadas.

Os movimentes do sentenciado contras-taram, porém, com a espectativa do des-humano preparador d'esta scena, tanto mais cruel quanto era. já irremediável a perdição de um actores.

Estendendo os braços por entre a grade e buscando abraçar a moça que se esqui-vava, disse Motta Coqueiro:

'— Pobre Chiquinha, eu imagino o golpe que feriu-te o coração ; pai, mãi, irmãos, todos os qae eram mais caros a tua alma. Podes bem avaliar o que são as grandes desgraças; e ter piedade da minha sorte. Também t, mim, Chiquinha, roubam-me os qae mais estimo; a diíferença é que para voc§ ha a pie dada geral, e para mim o odio ou o desprezo.

—- Sr. Coqueiro, exclamou o reoem-cfce-gaio, que tinha conseguido já dissipar a primeira impressão; eu nunca pensei que tivesse de assistir ã semelhante esforço

de dissimulação; quem. tem o coração tão frio podia assassinar o imundo inteiro.

A nobreza do fazendeiro terao u-o in-vulnerável ao insulto venenoso, que ihe era dirigido pelo brutal visitante ; a con-sciência abroquvlou-s^-lha com a digni d&d-, e o desgraçado rtospoaleu rc&igna-damente.

— Era, pois. mais uma tos tara que me haviam preparado. Viram, psróm, que eu não tremi; tão grande é a frieza do meu coração.

Cambaleando e soluçando o fazendeiro retirou-se para o fundo da prisão, dei-xando por fcígum tempo immoveís os in-dignos qaa conspiravam contra a sua paciência.

Despeitado pelo mallogro do seu plano, o cruel visitante convidou aos seus com-panheiros para sahirem,e só quando fóra, ouvindo os soluços mal contidos de Chi-quinha, teve coragem de fá 11 ar :

— Malvado, mil vezes malvado; mil vidas que lhe fossem tiradas não desaf-rontariam a sociedade. E' uma féra.

— Não diga, não diga, seu doutor; ninguém viu as mortes, exclamou Chi-quinha, e eu não posso acreditar . . . .

— Generoso coração, disse o doutor ; como devia ser honrado o seu infeliz pai para educar uma filha tão piedosa!

Após o grupo sahiu o Sr. Seberg, que, kó na volta, ponde conhecer uma das pes-soas que deile faziam parte.

A afflicção do nobre espirito de Seberg crescia á medida que se passavam as horas ; como que um remorso esmagador, insupitavel, polvo invisivel que lhe ap-plic&va sobre o coração as suas insaciá-veis ventosas, ia-lhe aog poucos haurindo a vida.

- E' impossivel, dizia elle alta noite, . passeando de um lado para outro da sala , de jantar da casa em que morava; ó i impossivel; se houvesse a isempção de > animo exigida pela lei não ter-se-hia dado

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OU A PENA DE MORTE 1 6 1

semelhante escandalo. Meu Deus, meu Deus, fazei com que se elucide a verdade.

Mais, tarde accrescentou ainda: — Oh como fui cruel, meu Deus!

aquelles infelizes são innocentes. No dia seguinte, pela manhã, Seberg

sahiu para despedir-se de Motta Coqueiro que devia partir para a côrte.

Com grande admiração de todos foi elle visto na praia, meditativo e com os olhos rasos de lagrimas, acompanhando o bote em que Motta Coqueiro e seu escra-vo se' dirigiam para bordo do vapor an-corado ao longe. • — E1 um homem incomprehensivel este

Sr. Seberg, diziam, condemnou Motta Coqueiro, e no entanto cliora agora t a l v e z ter tido coragem de proceder assim.

Quando o bote sumiu-se; quando já não podia acompanhar com a vista o in-feliz condemnodo, Seberg seguindo va-garosamente pela pittoresca rua de Ma-cahé,1 que descerra as janellas da sua casaria olhando para a vastidão do mar, entrou finalmente n'uma pharmacia e perguntou pelo seu proprietário.

Um homem de attralientes feições, agra-dável timbre, cie voz, sahiu de um gabi-nete lateral e, estendendo a mão a Seberg disse-lhe jovialmente.

— Por Deus, Sr. Seberg; tanta cere-monia fez-me pensar que procurava-me um desconhecido.

— Não me admiro que assim pensasse, respondeu Seberg, eu sou o primeiro a desconhecer-me. Preciso fallar-lhe muito a sós.

O Sr. Appolinario Pacheco, substituto de juiz municipal de Macahé, e que era a pessoa que fallava a Seberg, apontou para o gabinete.

— Aqui podemos estar a vontade; o meu caixeiro tem a particularidade de

, não ouvir o que ,eu quero que elle não ouça, ealém d1 isso ficamos retirados.

Sentaram-sc um em frente do outro . tendo de permeio urna, pequena mesa redonda* e Seberg, apoiando sobre a

mesa os cotovellos, movimento que foi logo seguido pelo Sr. Appolinario, disse com solemne gravidade.

— Venho confiar á sua honra a solu-ção de uma séria questão de consciência, para a qual invoco também os seus ser-viços de magistrado.

— Oh! Sr. Seberg, pode contar desde já com a minha dedicação, e ouso pro-mettel-a por que sei com quem fallo.

— Hontem, como sabe, foi ojulgamento de Motta Coqueiro e do preto Domingos, e eu fiz parte do conselho que os con-demnou.

— Pobre homem! fui eu quem sustentou a sua pronuncia e entretanto faço lioje a seu respeito juizo bem diverso do que então fazia,

— Queira ouvir-me, e reflicta sobre o que vou contar-lhe. Hontem depois de re-colhido o conselho de jurados á sala se-creta e effectuada a votação dos quesitos acerca deMotta Coqueiro, percebi que não havia no conselho aqueila imparcialidade que era de esperar em assumpto de tão grande alcance.

Passando-se a votar o primeiro quesito relativo ao preto Domingos, certifiquei-nie do meu juizo, e, ainda mais, fui obrigado a assistir a um grande escandalo.

Procedendo-se á contagem das cédulas o secretario do conselho contou treze, c como era natural reclamei, e pedi ve-rificação. Nova contagem do secretario chegou ao mesmo numero. Pedi então que se procedesse á nova votação e fui acompanhado por mais cinco jurados, porém o presidente entendeu melhorpro-ceder por si mesmo a contagem e cousa singular appareceramapenas doze cédulas.

Lidos os votos encontram-se sete cédulas reconhecendo o crime, c cinco apenas negarxio-o.

Com ggande pasmo certifiq uei-me dc que os ^cinco jurados tinham negado o crime, o eu C011J

~ Mas isto é. .um iniquidade; (< pre-ciso arrancar a mascara a esse homem

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que tão baixamente abusou da sua po-sição.

— Eu não quero fazer juízos teme-rários, porém, entendo que este facto deve ser já verificado, para descanço da consciência de todos.

— Mas não ha duvida, meu amigo; havia com effeito treze cédulas e uma delias que dizia não foi escamoteada pelo presidente, que depositou na urna duas cédulas afirmando o crime. Oh! havemos de sabel-o, eu liro juro; o Sr. invocou a minha honra de magistrado, eu comprometto-a,

O Sr. Seberg sahiu relevando no sem-blante o allivio intimo que experimen-tava, e o Sr. Appolinario sentando-se logo á escrevaninha ofíiciou ao juiz de direito, narrando a communicação que acabava de lhe ser feita.

Infelizmente a questão que parecia fácil de ser derimida, morreu abalada nas pastas do juizo municipal.

Uma grave enfermidade obrigou o dig-no substiiuto a passar a vara a outro magistrado, e este oíficiado pela aucto-ridade superior para continuar nas pes-quizas a respeito, discutiu o assumpto e deu-o por esgotado, sem inquérito.

Na tarde do dia em que Seberg deu o honroso passo a favor de Domingos, foram condemnados também á morte Faustino Pereira da Silva e Florentino, e todos os réus enviados para as prisões da capital.

Usando do recurso ordinário que lhes restava, o tribunal da relação não se dignou attendel-os, negando-se a con-hecer das appellaçóes por não ser caso delias.

Este despacho está também na appella-ção do réu Domingos, em que foram re-conhecidas circumstancias aggravantes por numero de votos superior ao que confirmava o crime I

A desillusão do fazendeiro tinha chega-do ao auge; não lhe era mais permittido uma única esperança, porque sabia bem

que o poder moderador não attenderia á sua supplica.

Accresce que para aggravar ainda mais o supplicio moral dos condemnados o processo seguia com dolorosa morosi-dade, e só após dois annos de espera veiu o golpe final.

Domingos, intimado a fazer petição de graça, não a "fez no prazo de oito dias conforme a lei, e portanto estava irreme-diavelmente condemnado.

Pobre escravo ! como poderia elle com-prehender, ouvindo a intimação do escri-vão, que uma demora custar-lhe-hia a vida?

No dia 23 de Junho de 1855, o cortejo fúnebre-da justiça recreiava a espectação geral da cidade de Macahé.

Um dos reus do barbaro assassinato da familia de Francisco Benedicto ia subir á forca.

A victima chorava e caminhava quasi arrastada pelo carrasco e a população commentava desapiedadamente este hor-ror da morte.

— Olha o negro, dizia-se; pensava que o dinheiro do senhor havia de livrai-o. e por isso não chorou quando matou a po-bre familia. Agora é que lhe correm as lagrimas.

— Sabes? ouvi ainda ha polico e de pessoa muito séria uma cousa que está impressionando-me.

— Então conta já essa novidade. — Dizem que o Domingos ao sahir da ,

cadeia disse para o padre que, se elle não é innoeente, a corda não rebentará, mas se elle é innoeente á corda ha de arre-bentar.

Este boato circulou, cresceu e dominou logo todos os espectadores e na praça do Rocio, onde se erguia a forca, os logares eram. disputados com tanto interesse que muitas vezes houve emprego de violência.

Chegou a desejada hora da execução. A anciedade popular era febril e todos intimamente receiavam assistir ao mi-lagre prophetisado pelo escravo.

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OU A PÈNA DE MORTE 163

A irmandade da Misericórdia collocou-se sob a forca em posição de ir em auxilio do condemnado, caso fosse prote-gido pela fortuna, e o carrasco ao som do credo, resado pela multidão, subiu ao seu posto.

A escada foi logo retirada, o desven-turado ficou suspenso pelo baraço, mas o seu corpo, impellido pelo carrasco, pouco tempo oscillou e foi logo caliir no solo.

A confusão foi immensa, todos corriam, impelliam-se, encontroavam-se phreneti-camente:

— Está salvo, está salvo, este era inno-cente,

A agglomeração não permittia que todos se pudessem approximar do senten-ciado, e dentro em pouco tempo a des-consolação pintava-se em todos os sem-blantes .

Fallou-se a principio em segredo, e com immensa precaução; em seguida as vozes foram elevando-se, elevando-se e ouviam-se em todos os grupos discussões calo-rosas.

— E' muito boa, dizia o Sr. Luiz de \

Souza, caliiu morto e muito bem morto. — Não está má a capa; todos nós vimos

a. corda arrebentar. O pobre Domingos! bemdizia elle que era innocente.

— Arrebentasse, ou não arrebentasse, a verdade é que elle eahio já morto.

— Ora valha-o Deus, Sr. Luiz cie Souza, mais de cem pessoas estão promptas a jurar que Domingos caliiu vivo, e que o carrasco poz-lhe terra á boeca para as-phixial-o.

— F: falso. — Não é tal, exclamou um novo inter-

locutor ; eu vi com esses dois olhos que a terra ha de comer. Barbaridade sem nome!

Nada, porém, é mais fácil do que asse-renar a indignação do povo, o eterno le-viano que applaude ou insulta, victoría ou calumnia conforme os boatos e as in-trigas, que o impressionam.

Atravez da versão da seva asphixiação de Domingos pela ferocidade do carrasco, surgiu uma evasiva.

— Então o que queriam que fizessem com um scelerado como o assassino que morreu; que perdoassem e surtisse effeito a machmação do senhor?

— Quaes historias! Domingos prophe-tisou o acontecimento.

— Eu. também prophetisava se tivesse um senhor qúe tivesse dinheiro e amigos na Misericórdia, que é d'onde vem as cordas para os enforcados. Com dinheiro e amigos tudo se arranja : até milagres.

O povo julgou rasoavel esta explicação, e quando se retirou da praça levava mais satisfação do que pezar.

O cadaver de Domingos foi entregue â policia para ser sepultado, e os autos pas-sados no mesmo dia ao Dr. Velho da Silva, juiz municipal, que os fez conclusos no dia cinco de julho ao juiz de direito.

A sociedade começava a indemnisar a sua divida com a familia de Francisco Benedicto.

A cova aberta para o justiçado Domin-gos tinha dimensões para quatro cada-veres, e conservava-se hiante á espera de ser atterrada com destroços humanos.

A justiça, um mez depois da execução do escravo, metteu mãos ao resto da obra da desaífronta publica e os tres outros réus foram notificados da sua morte pró-xima.

Para Florentino e Faustino esse golpe nada teve de descommunal; havia longos mezes que, aífazendo-se á atrocidade do seu destino, esperavam todos os dias ouvir o ranger das portas do calabouço e logo depois'a intimação para seguirem até o logar em que deviam ser suppli-ciados.

Florentino, perdido no dédalo de con-jecturas limitadas a que podia chegar o seu raciocínio pouco esclarecido, acabava por fundir em lagrimas o seu desespero e, sem consolar-se, calava-se e ficava si-

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Icncioso a contemplar a perspectiva do seu fadario.

Faustino concretisava no corarão re-voltado as exalações da sua indignação, e rompendo bruscamente o silencio, exte-nuava-se em cobrir de baldões a terra e de blaspliernias o céu.

Para o desventurado fazendeiro o fu-turo era mais ameaçador e o presente mais cheio de torturas. O presente repre-sentava-lhe o abandono em que vegetava, sugando a existencia das angustias e do desconsolo, como a planta infezada a seiva de um terreno maninho ; no futuro antolhava-se-lhe o abandono tres vezes mais cruel em que ficaria a sua familia.

Quando, em uma tranquilla manhã de agosto, foi-lhe dada a noticia de que em-barcaria brevemente para Macahé, afim de submetter-se à'pena que lhe fôra im-posta pelo jury o desventurado sentiu íraqueiar-lhe a coragem que até então mantivera-lhe o sygillo sobre o nome do supposto culpado cio morticínio.

Sese'p<5detraçar paralíelo asemelhante soífrimento, era corno o do Christo diante do cálix de amargura na tremenda noite do Horto.

Ambos, porem, acabaram pela resigna-ção, e tiveram a'serenidade heróica de encarar, caminhar e subir ao putibulo, dando de esmola á atroz perseguição o perdão sincero dos seus espíritos calmos.

Para desafogo do seu tormento Motta Coqueiro escreveu á sua familia, noti-ciando-lhe o horroroso desfecho da sua vida de probidade e de respeito aos seus semelhantes. Depois de escrever corre-ram-lhe as tardas lagrimas que desligam das consciências immaculadas o deixou-se avassallar pela horripilante catadura, do tumulo.

Igual serenidade não foi. porem, parti-lhada pelo dedicado enteado, parn quem a iniquidade da sentença era um grito de alarma aos justos sentimentos.

Demais, vira nos escuros horizontes de sua familia uma esperança consoladora.

Como' fecunda nebulosa appareceu nas trevas cio seu viver uma petição das senhoras campistas a favor do senten-ciado, e era de esperar que o poder mode-rador attendesse a tão espontanea mani-festação popular.

De repente a miragem da salvação des-penhou-se e atufou-se no lodo da enxovia, em que a justiça prendia para enlameiar o infeliz sentenciado, e em vez da espe-rança appareceu como um espectro a crua realidade.

O collector abriu tremulo de commoção a carta que lhe era dirigida por seu pa-drasto, cuja letra fôra trocada por uns signaes difíiceis de serem entendidos.

Leu-a a primeira vez e não convences-se de que tinhã-a lido: releu-a, portanto, mas (festa vez em presença de sua mãi.

« Tudo está acabado; não ha mais pos-sibilidade de fugir ás mãos do carrasco; as minhas supplicas como que atleiam ainda mais a accusação que me fizeram, e tornam mais inexoráveis os meus juizes.

Dize a tua mãi que se resigne á sorte que me foi prescripta e con?ole-se; aos meus filhos repote-lhes que. na hora em que não havia mais uma esperança de salvação para si, O seu pai dizia sempre que matavam-o por um crime que não commetteu. Paraimpetlir-lhes a suspeita, pondera-llies que não é fácil mentir-se diante da morte.

Nunca, nunca digas-lhes a parte invo-luntária que tua mãi teve na minha per-dição e no destroço d"aquella familia. A minha desgraça deve santificar este pedido.

Quero igualmente que me façam uma derradeira vontade: desde o dia quinze de agosto até o fim do mez mandem sem-pre celebrar missas por minha alma; que seja ao menos permittido ao sentenciado pensar na paz além tumulo.

Adeus, meu bom amigo; abençoa por mim os meus infelizes filhos e abraça, a, tua mãi; adeus, até á eternidade! »

A Sra. D. Maria, a quem os desgostos

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OU A PENA DE MQRTE 165

t i n h a m depauperado extraordinariamen-te, ouviu immovel a leitura compungente e fatal; a dôr resignada, que de continuo a trucidava, como que lhe havia anesthe-siado o coração e ella parecia já insen-sivel a novos golpes.

Entendendo mal o estado de sua mãi, o o collector pergúntou-lhe, machucando entre as mãos o papel.

— E a senhora o que diz a isto?. — O que hei de dizer, meu filho; se a

minha voz não tem forças para desviar o golpe que nos deve ferir?

— Senhora, senhora, esta resposta é uma infamia.

— Meu Deus, soluçou a afílicta esposa, não quiz eu por tantas vezes correr até os tribunaes para accusar-me, e não fui contida por ti mesmo, meu filho?

— Mas então havia a esperança de fazer reconhecer a innocencia de seu marido ; hoje não, hoje é mister que evite a sua injusta execução.

— Devo pois, entregar a minha ca-beça ao braço do carrasco...

Um ai repassado de afflicção embargou a voz á pobre senhora, que, levando as mãos á fronte, baqueou sem sentidos.

— Covarde, covarde mulher! gritou o filho allucinad^; tenho vergonha de ser teu filho. Queres evitar a morte á custa da morte de um innocente; não, não, eu não o consentirei!

E o homem, que levava a honradez até a suffocacão dos mais santos affectos, sahiu correndo, como se temesse que a sua permanencia junto de sua mãi inhi-bisse-o. de proceder conforme lh'o aconse-lhava o seu caracter.

A familia sobresaltada pelo baque e ainda mais pela carreira insperada, af-fluiu toda para o gabinete em que o col-lactor conversara com sua mãi, e encon-trou ahi a Sra. D. Maria estendida no assoalho.

Vendo que apezar dos seus esforços a senhora conservava-se livida e desacor-dada, os desamparados filhos apressa-

ram-se em mandar communicar o acon-tecimento ao Dr . . . . um dos aimgos de seu pai que lhe tinha guardado mais l^ildade.

Acordando-seporém, de chofre, adoente encheu de espanto a quantos a cercavam.

— Meus filhos, soluçou ella, fiquem aqui bem perto de sua mãi; não consin-tam que me levem d'aqui, eu não quero morrer; sou mài, não quero morrer !

Mal proferira estas palavras desgre-nhando violentamente os cabellos em-branquecidos pelo soffrimento, a desvai-rada senhora levantou-se de um pulo, rindo prolongadamente urçia gargalhada insana.

Acercou-se então da maior da suas filhas e disse no meio da gargalhada constristadora.

— Vamos, vamos todos; é preciso que vamos todos.

O pranto filial recebeu esse convite do desvario com a profunda tristeza de co-rações, que se julgavam já orphãos de todo.

A mãi allueinada pegou então dos bra-ços das duas filhas e caminhou para a porta principal da casa, repetindo o con-vite medonho:

— Vamos, vamos de pressa! Ao transpor o limiar a Sra. D. Maria

foi embargada pelo Dr. que entrava. Vendo a transfiguração do semblante

da esposa do seu amigo, perguntou-lhe sobre,saltado:

— Qual é a nova desgraça, minha se-nhora?— tenha confiança em Deus.

— Vamos, vamos de pressa, repetiu automaticamente a desvairada.

— Para onde quer ir, minha senhora I —„ Para onde? gargalhou a infeliz, para

onde? Nãe sabe então que eu devo ir para a forca, não sabe que eu sou a assassina; não ouviu meu filho dizer?

— Ohl santo Deus, tende piedade des-tas crianças que não fizeram mal a nin-guém, exclamou o Dr.

E1 fácil imaginar-se a tristeza d'esse

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quadro, e a dificuldade do Dr. em conter a allucinação da enferma. Afinal triumphou a piedade do amigo e a Sra. D. Maria foi recolhida ao seu quarto em que jazeu sobre o leito durante muitos mezes.

O collector presa de igual desvario, ti-nha montado a cavallo e galopava pela estrada que se dirigia a Macalié.

Já havia chegado para Motta Coqueiro o declinar repentino da vida, e talvez na mesma hora em que a sua familia era victima de tanto martyrio, elle punha pé na cidade que se regosijava com a sua condemnação.

Foi esperado por um amigo, que, sem affrontar claramente a animosidade, que lhe resultaria das manifestações amis-tosas para com o sentenciado, todavia não evitava-a a ponto de sacrificar os de-veres da amisade.

Seberg tinha pago caro a facilidade com que, homem de boa fé, dera ouvidos á infamante accusação feita ao fazendeiro.

A leitura da carta, que o Sr. Martins mostrou na primeira sessão do jury ao seu impertinente contendor, a scena da prisão, cujo fim só mais tarde veiu a saber, a resignação evangelica de Mçtta Coqueiro, tudo, emfim, provava-lhe que tinha condemnado á morte um innocente, e o seu caracter profundamente ferido exigia-lhe a mais inteira dedicação ao sentenciado.

Arguia-se diante de todos os seus ami-gos ; e trucidava continuamente a própria consciência, conservando-se ao lado de Motta Coqueiro, ouvindo-lhe os soluços, e vendo o crescimento gradativo do seu desespero á medida que se aproximava o dia da execução.

Na vespera do derradeiro dia da exis-tência do fazendeiro, Seberg ao sahir da cadeia encontrou-se com uma das auto-ridades macahenses, notoriamente infen-sas ao que ia morrer.

— Amanhã effectuar-se-ha a"demorada

execução dos assassinos, ou haverá ainda adiamento? perguntou o famoso inimigo.

— Creio que será amanhã mesmo, res-pondeu Seberg tristemente. -

— O seu voto contra aquelle malvado, Sr. Seberg, é uma das maiores provas da fortaleza do seu caracter.

— Penso justamente ao contrario; creio que é a maior prova de fraqueza e ce-gueira que tenho dado em minha vida.

— Bondade sua, Sr. Seberg; era im-possível cine semelhante scelerado não acabasse ás mãos do carrasco. Felizmente nem o diabo o poderá salvar agora.

Seberg não respondeu, caminhou di-reito á sua casa, e voltou logo á caclèa.

Não poude, porém, fallar ao amigo, que recebia do sacerdote as consolações da religião.

Esperou, passeiando machinalmente cie um para outro lado do corredor da cadeia.

Quando o sacerdote retirou-se, Seberg aproximou-se da grade e disse para a victima que soluçava:

— Meu amigo, não se submetta á in-justiça dos homens e á malvacleza da lei, não se submetia.

— Mas o que hei de eu fazer para evitar.

Houve um momento de silencio, que-brado depois por Seberg, que fuzilando nos olhos as flammivomas agonias do re-morso, segredou a Motta Coqueiro, cujas mãos segurava fortemente :

— Suicidar-se! Eu condemneio-o á mor-te; venho agora ensinar-lhe o meio de effectuar por si mesmo a sentença. Mate-se, mate-se; não consinta que os seus ini-migos, que chegaram a iIludir até os seus melhores amigos, triumphem rfesta causa iniqua.

Motta Coqueiro ficou só, perplexo, a recordar o conselho de Seberg.

Olhou em torno de si; não havia uma arma, um meio de realisar o suicídio; nem ao menos podia enforcar-se porque as sentinellas á vista passeiavam decon-

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OU A PENA DE MORTE 167

tinuo diante da grade e vinham frequen-temente espiai-o.

Da parede da enxovia como um pun-gente escarneo ao luxo,pendia um pedaço de espelho. O fazendeiro caminhou até elle, e recuou espavorido gritando an-gustiosamente :

— Meu Deus, meu Deus; é horrível es-perar assim pela morte!

Voltando depois ao mesmo lugar agar-rou do pedaço de espelho, cravou-o no pulso e rasgou, um profundo e amplo golpe.

Foi porém sorprehendido e impedido de terminar o seu intento.

A noite veiu em seguida adiar por al-gumas horas o eterno descanço da vic-tima. Dir-sé-liia que o tempo colaborava na obra atrocissima da sociedade.

Durante toda a noite Motta Coqueiro repetiu sempre ao sacerdote do Cruci-ficado :

— Vou morrer innoeente! Mas o ministro da religião do Martyr

immolado ás iras pharisaicas, não cria na pureza da victima, e insistia em pe-dir-lhe a verdade em nome da condem-nação eterna.. Só no dia seguinte, quando o préstito entrava no templo, quando a alva do condemnado infamava um nobre caracter, abrirám-se os olhos do sacer-dote.

E1 que n'este momento um desconhe-cido tentou revelar um segredo relativo ao padecente; e no mesmo instante um olhar d'este impediu a revelação.

Ninguém sabia quem era este homem; diziam apenas que era um cavalleiro que tinha vindo das bandas de Campos.

^De feito, o desconhecido tinha chegado doeste cidade, e, se tivesse podido foliar, ouvir-se-liia um filho denunciar á sua mãi como involuntária mandante do bar-baro assassinato.

Mas a grandeza cfalma do esposo fez mallograr o acto de heroísmo, e d W a pouco um negro; instrumento da socie-

dade desaffrontava-a, assassinando juridi-camente a Manuel da Motta Coqueira.

N'esta hora os sacerdotes campistas le-vantavam as Os tias consagradas, offere-cendo ao seu Deus o incruento sacrifício em favor da alma do condemnado.

E as Ostias erguidas no espaço, em-quanto pendia do baraço o cadaver do justiçado, traziam ao pensamento cVa~ quelles que tinham certeza da innocencia da victima um quadro de consolação infinita.

E1 que se llies afigurava verem na região da paz infinita o Martyr Deus abrir os braços, e santificar com o seu olhar a execução do martyr das intrigas de uns bandidos, da cólera de um selvagem, § d.i cegueira de uma população.

A sociedade estava desaffrontada! Para as consciências dos magistrados e

do povo era verdade incussa, ponto de dogma a culpabilidade Motta Coqueiro e dos seus companheiros de destino.

Quem ousasse negar semelhante axio-ma correria o risco de vêr-se apedrejado e apupado por uma chusma de rethoricos, que zelavam com a mesma solicitude as victimas e os suppostos algozes porque tiravam d'essa correlação muitos tropos de effeito, e muitos lances de estylo admi-ráveis.

O povo crédulo tratava de continuar por lendas supersticiosas o engano fatal e a cegueira pertinaz que o levara a commetter uma infamante injustiça con-tra um homem que na medida de suas forças fôra sempre seu devotado servidor.

Pouco antes da complicação dos aconte-cimentos que tiveram por epilogo a tris-teza, o isolamento e a mancha do patíbulo, Motta Coqueiro começara a edificar um grande prédio á margem do rio Ururahy.

O edifício, abandonado em meio cia cons-trucção, semelhava a uma grande ossada de pé no meio da matta.

O local era mysterioso e tristonho. Uma velha ponte,-quasi desmantelada, ficava-

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lhe ao lado, e o rio de aguas verde-negras espumava-llie sem ruido ás plantas. _

Por noites dé luar a sombra do prédio vinha osciliar silenciosamente na face da eorreiítesa, e quando o céu era sem lua, ou- quando soprava mais forte o vento, via-se um' vulto surgir immenso da escu-ridão, ou ouviam-se crebos sons que lem-bravam um côroi de gemidos.

Ninguém, portanto, aventurava-se a passar por alli em horas de silencio e re-pouso; ninguém, porque era preciso animo inquebrantável para assistir ao espectá-culo que todas as noites se representava n'aquelle tlieatro escuro e não concor-rido.

Ou via-se um gemido agudo, horripi-lante de produzir calafrios; em seguida um phantasma, cuja altura entestava com a Cumieira do prédio, surgia como um jorro das trevas subterrâneas.

Como a sombra dos telhados pela super-fície das paredes, subia sem apoiar-se, até ao tecto do edifício, e ahi abrindo os bra-ços descommunaes tomava a attitude de um blasphemo ou de um precito apos-trophando o céu.

N'este momento tres outros phantas-mas appareciam inopinadamente ao seu lado, e todos prorompiam em gemidos e soluços assombrarlores.

Quando as quatro larvas se congrega-vam, como se as folhas, se as gçttas de orvalho, se as espumas do rio se conver-tessem repentinamente em fogos-fatuos, via-se uma alluvião d'estes ondular, reu-nir-se; desaggrega,r-se, afundir-se, e ale-vantar-se enchendo a matta da claridade ominosa do seu luzir.

Após a inundação dos fogos fátuos urn clarão vermelho, como um ferro ao sahir da forja, flammejavana escuridade, e os quatro phantasmas, acompanhados pelos fogaréus de baça claridade seguiam pelo cimo da floresta até perderem-se no lio-rísonte.

Eram as almas condemnadas dos jus-

tiçados, que penavam mysteriosamente na terra o seu crime sem nome.

Emquanto a superstição arraigava ^es-ta sorte a animadversão publica rião já para Motta Coqueiro, mas para a sua memoria, os seus inimigos e o verdadeiro assassino da familia do. aggregado viviam tranquillariiente. •

Balbina e Carolina, cujos depoimentos serviram de base á condemnação do fa-zendeiro. foram libertas pela generosi-dade popular, que não podia consentir em que os dois instrumentos tão úteis ao serviço da justiça, fossem traçoeiramente quebrados pela vingança dos parentes do ex-senhor das duas pretas.

Balbina podia sorrir tranquillamente; queria apenas vingar-se e conseguiu tam-bém a liberdade.

Sebastião Pereira, o Vianna da venda, Lycerio, Lucio Ribeiro e as demais teste-munhas e actores da dolorosa tragedia, desfiavam materialménte os annos na apathia de consciência que é a maior feli-cidade da vida. . '

Sd um homem dos que tinham entrado no entrecho e desenlace da tragedia ha-via desapparecido. Era Manuel João, a testemunha que talvez mais accusou e calumniou o desgraçado fazendeiro.

Ninguém sabia novas d'elle e também ninguém as procurava.

Onze annos tinham passado indifferen-temente sobre a cova dos justiçados e sobre as dores da familia de Motta Co-queiro, que herdara a pobresa de envolta com a difamação cio nome do seu chefe.

Onze annos chorados continuamente, por uma esposa que se condemnava como culpada cia perda de seu marido; onze annos repassados de vergonha para os filhos, que se viram obrigados até a repu-diação do appellido paterno, ' serviam apenas para aggravar dia por dia a si-tuação da misera consorte e ainda mais a dos lastimaveis descendentes do fazen-deiro.

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OU A PENA DE MORTE 1 6 9

Corria, portanto, o anno de 1866, un-décimo primeiro da desaffronta de Ma-cahé e Campos.

Um caboclo de raça, homem.de estatura heróica, de compleição robusta,appareceu na villa de Itabapoana, pequeno centro povoado das fronteiras da provincia do Rio de Janeiro.

Apezar das maneiras humildes e sub-missas, o recem-cíiegado não attrahiu nenhumas sympathias no logar- antes para a antipathía gèral concorriam pode-rosamente as feições do caboclo.

O seu rosto pentagonal, de pomas car-nudas e salientes, os beiços grossos, o nariz chato, e sobretudo os seus olhos que não se atreviam nunca a encarar, e só obliquavam uns olhares furtivos e maus, e 4 s e conjuncto physionomico induzia a população a guardar certa reserva para o espontâneo immigrante.

Para, explicar a repulsão que instinti-vamente sentia, a população dizia dissi-mulando os seus sentimentos.

— Nada de amizades com caboclos; são muito desconfiados; nunca se sabe quan-do estão pelos pés ou pelas mãos, e foi um dia. . . Têm-se visto muita cousa.

Uma circumstancia attenuou em breve tempo a indisposição geral contra o re-çem-chegado; é que em sua companhia andava um rapaz, que além da submissão natural da sua Índole, illuminava o sem-blante com as irradiações de uma cons-ciência limpa.

Herculano, o velho caboclo, desde muito que tinha em seu filho Marcolino a apre-sentação, que o recommendava ás povoa-ções onde estadiava, por isso mesmo o velho caboclo estremecia o moço traba-lhador.

Itabapoana foi o logar escolhido por Herculano para dar estabilidade á .sua vida até então nómada.

Como ao caminheiro da legenda christã, havia palavras, nomes, que faziam com que Herculano tratasse immediatamente de retirar-se do logar em que elles fossem

proferidos, restiltàssem-lhe embora da mudança grandes prejuízos pecuniários.

Essas mudanças rapidas e bruscas ex-plicavam-se por uma phrase:

— Todo o caboclo é scismatico, em dando para uma cousa é como o burro quando empaca. O melhor é deixal-o.

Itabapoana, já bastante affastada da localidade, de cujo nome soava mal aos ouvidos de Herculano, agradou extraor-dinariamente ao inconstante trabalhador.

Ahi deviam correr os últimos dias de sua vida sem ambições e, por isso mesmo, talvez sem maguas.

Official de ferreiro, conciliava o traba-lho com a liberdade de acção, ora ma-lhava aqui, ora limava acolá, e o pequeno salario era por elle recebido com a ale-gria cie quem satisfaz facilmente a sua sobriedade.

O independente viver do velho, e por seu lado, o amor do trabalho e bom ca-racter do filho, acabaram por dissipar a antipathía, e até mesmo transíbrmál-a de alguma fórma em boa vontade para com ambos.

Dez annos decorreram assim, dez annos tranquillos, felizes "te poetisados pela- de-dicação filial e pelo reconhecimento pa-terno.

Ao lusco fusco de um dia cios meiados de 1876, um preto velho, magro e rôto, bateu á porta do casebre em que, fóra cia vil ia residia Herculano.

A hospedagem é uma lei inviolável para o indígena; a porta foi aberta immediata-mente.

O preto e Herculano estremeceram in-voluntariamente ao fitarem-se, e entre-tanto não se conheciam. Era a repulsão innata da innocencia e do crime.

Trocadas as primeiras saudações, o preto pediu simplesmente a Herculano lhe obsequiasse com urna braza para ae-cender o cigarro,

— E' quasi noite, camarada, ponderou o caboclo j pouse aqui e saia de manhã.

— Não posso, respondeu o preto; Fide-

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lis não. pôde ter descanço, resmungou o desventurado

Quando o preto desapareceu, Herculano que ficara á soleira da porta e acompa-nhava-o com os olhos, exclamou sincera-mente commovido:

— E' um d'eiles; adevinha-me o coração que e um íelles! Ainda soffrem, e soffre-rão sempre.

Longo tempo o caboclo permaneceu n'uma attitude desoladora ; em seguida, -porém sacucliíi os liombros, levantoitse.' e entrou para o casebre.

Más a tranquilidade habitual' trocara-se-lhe em agitação ; e em breve, não po-dendo acalmar-se, saliiu para distraliir-se.

Quando voltou ao casebre deitou-se para não mais levantar-se.

A variola fez-se instrumento da justifi-cação de um nobre caracter.

Desde que sentiu que não poderia salvar-se, ao sacudir um dos penosos delyrios, Herculano chamou para junto de seu leito o entristecido Marcolino.

— Tenho uma grande confissão a fa-zer-te, meu filho ; disse o enfermo.

— Estou npto para ouvil-a e guar-dal-a até a ruinha morte.

— Não; não é um segredo que eu quero confiar ; é ao contrario um segredo da minha vida que desejo que tu espalhes por toda a parte apenas eu morra. Ju-ras-me que farás esta vontade a teu pai?

— Bem sabe que não sei desobedecer-' lhe-

— Deixa-me um instante ligar as mi-nhas lembranças!

Estas palavras já foram pronunciadas v com accento que trahia a perturbação

mental do moribundo. S<5 depois de meia hora de espera foi proferida a primeira, palavra do tremendo segredo :

— Meu filho, ha vinte e quatro annos appareceram cortadas a foice, esfa-queiadas, e estranguladas todas as pes-soas de uma familia. O assassino de toda essa gente fui eu! . . .

— Meu pai, meu pai; isto é pesadelo

seu, não diga tal, interrompeu-lhe o filho perturbado.

— Pesadelo julgaram talvez os que eu matei ser a noite tremenda da minha vin-gança. Não poupei nem os velhos nem as creanças ; depois lancei fogo á casa, mas a chuva do céu não quiz que a la-bareda, que é pura, se manchasse no sangue d'aquella raça.

— Meu pai, tenha piedade dos que mor-reram.

& — Morreram pela mão de um homem, " e mataram pela mão de um outro. Foi

simplesmente uma paga. Ouve ! A fraca e susurrante voz do moribundo

começou então a narrar a maneira, porque tinha assaltado a casa das pessoas das quaes se confessava assassino e a maneira pela qual eífectuara a carnificina.

Marcolino, perturbado e ao mesmq tempo reluctando dar credito ao que ou-via, perguntou ao narrador :

— E onde fez meu pai estas mortes ? — Em Macabu, respondeu o mori-

bundo. — E qual era o nome do chefe da fa-

milia que meu pai matou ? — Francisco Benedicto, sorriu o mori-

bundo. — Mas então meu pai foi também do

numero dos que foram pagos pelo Motta Coqueiro ? 1

Sentando-se violentamente no leito, o moribundo, como se quizesse fulminar com o olhar ao afflicto Marcolino, tentou bradar, e apenas disse baixinho :

— Teu pai nunca matou por ofíicio, matou a raça do seu inimigo por vin-gança.

— Mas isto não pode ser verdade. — E'; juro na hora em que vou morrer;

hora em que não se mente; Motta Coqueiro nem me conhecia, nem suspeitava que n'aquella noite devia sumir-se da terra a malvada raça de Francisco Benedicto.

— E vosmecê consentiu que elle mor-resse; porque não confessou, e não defen-deu o innocente?

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OU A PENA DE MORTE 71

— Ninguém viria em mim senão um instrumento de Coqueiro, e morreríamos os dois, e a verdade não seria sabida.

— Oh! Deus de Misericórdia ! — Escuta, escuta; já te disse, fui eu

quem matou o miserável. Devia-llie... — O que, qual era essa divida ? — A deshonra de minha família. Em vão Marcolino tentou arrancar o

resto da confissão; o moribundo tinha perdido a voz.

O Alho desvairado perguntou ainda uma vez ao moribundo, se era elle de feito o barbaro assassino de tantos infe-lizes. O velho forcejando por abaixar as palpebras, levou dificultosamente uma das mãos ao peito em signal de affir-mação.

Passados alguns minutos, Herculano era cadaver, e seu filho, obedecendo á

ordem que d'elle recebera, declarava diante de testemunhas que seu pai fôra o assassino de Francisco Benedicto e sua familia. Juntava quê Motta Coqueiro nem ao menos tinha conhecido Her-culano !

O povo de Itabapoana murmurou acerca da confissão de Herculano, tão baixo, quanto alto clamaram campistas e ma-cahenses contra Motta Coqueiro. E ainda mais, depois de vinte e cinco annos de opprobrio sobre uma familia martyr, ha corações tão miseráveis que ousam con-tinuar a infamar a memoria da victima da cegueira jurídica, mesmo depois da declaração terminante de um moribundo.

Homens perdidos que são estes ! São mais torpes do que os assassinos, porque buscam justifical-os envilecendo innocen-tes; mas nem semelhantes cabeças eu quizera vêr na mão dos carrascos.

FIM.