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Morte e ressurreição da aura

GUILHERME WISNIK

Haveria muitos caminhos possíveis para esta fala. Um deles seria comentar

casos específicos e eleger exemplos de arquitetura de museus

contemporâneos que tratassem da explosão da escala da obra de arte dos

anos 1960 pra cá, e a partir daí discutir como lidar objetivamente – em termos

espaciais, infraestruturais e técnicos – com essa transformação de escala e de

estatuto da arte. Mas achei que seria mais interessante fazer uma reflexão

mais ampla sobre a transformação do estatuto da arte na sociedade ao longo

do século XX. Acredito que esta seja uma ideia produtiva para tratar o tema.

Gostaria de chamar atenção para dois pontos de mudança, que nos

interessariam pensar. Tomo como ponto de partida um texto que é uma

referência crucial, fundamental e bastante conhecida: “A obra de arte na era de

sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamin1. Nesse texto seminal, de

1936, ele define justamente esse ponto de mutação da arte na modernidade.

Esse ponto de mutação tem a ver com o que ele descreve como a destruição

da aura. E essa é a questão crucial pra nós nesta discussão: a ideia de que

morre a arte aurática. A qualidade aurática, que sustentou a arte desde seus

primórdios até aquele momento, portanto, até a irrupção da modernidade, deixa

de vigorar.

Num certo momento do texto, Benjamin volta aos primórdios de fato, daí a

justificativa dessa imagem com a qual eu começo. Ele afirma que a arte até

então sempre se baseou numa espécie de binômio, numa dicotomia entre dois

tipos de realização: a arte como valor de culto e a arte como valor de

exposição. A arte como valor de culto é a arte ligada à dimensão da magia, do

mágico, e de uma transcendência. A arte como valor de exposição é a arte que

vai se afirmando ao longo da era burguesa como um objeto para ser visto pelas

pessoas. As pinturas rupestres estão, portanto, na origem do conceito de arte,

embora todo mundo saiba que isso não era considerado arte por quem as

fazia, elas tinham justamente uma função mágica. Elas eram feitas, a maioria

delas, em lugares completamente inacessíveis das cavernas, portanto, muito

remotos. Evidentemente, essas pinturas não eram feitas com a ideia de que

alguém fosse vê-las. A não ser os espíritos. Entende-se que essas pinturas

tinham a função de presentificação de algo.

1 Publicado em Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 2012 (8ª ed.).

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Ao pintar a caça de alguns animais, entendia-se que o animal seria então

caçado. Para eles é como se não houvesse uma separação entre realidade e

representação. O ato de desenhar uma caça significa a própria caça, através

de um ritual de magia. Digamos que a arte tenha sua origem nesse ponto, e

esse componente mágico não se desgarra da arte até pelo menos o fim do

século XIX. Claro que não como magia puramente, mas conservando aquilo

que Benjamin chama de aura, que é o que coloca o objeto de arte como algo

situado em outro plano, não terreno, como algo sagrado.

A arte é ainda um objeto de culto no século XIX, quando se visitavam os

museus e os grandes salões burgueses para adorar as obras de arte, que se

colocavam justamente no plano de uma relação que conservava algo do

sagrado. Objetos solenes e que eram feitos para a contemplação. O público

frequentador era um público aristocrata ou burguês que, inclusive, tinha acesso

a esses objetos antes do surgimento dos museus. Esses objetos de arte eram

conservados dentro de igrejas, palácios etc., e eram signos de distinção de

classe, elementos do poder, e apresentavam-se como algo muito distante,

digamos, de uma contemplação comum.

Na modernidade, com o fenômeno da multidão e da massa, essa relação

começa a se achatar. O próprio museu historicamente se inscreve nesse

contexto em que, retomando a ideia de aura, a arte vai se dessacralizar. O que

a arte moderna faz? A história da arte moderna é exatamente a história da

destruição dessa aura e, portanto, da retirada da arte desse lugar hierárquico e

solene, separado da vida, para um lugar muito mais mundano e imanente, a

ponto de chegar, digamos, na década de 1960, num ponto de redução total

dessa distância, em que a ideia de arte e de vida se fundem, e arte e vida

passam a ser quase uma coisa só.

Muitos autores falam em “morte da arte” porque, na hora em que arte e vida se

confundem, já não há mais como definir a arte, pois ela sempre esteve definida

por essa relação de distância que é a própria aura. A definição de aura é: algo

que, de certa maneira, transforma um objeto próximo fisicamente a você em

algo distante, situado simbolicamente em outro plano. Gostaria de recuperar

um trecho de outro texto de Benjamin, que chama “Experiência e pobreza”, que

traz uma imagem bonita da questão da modernidade2. Ele cita justamente um

artista e um arquiteto modernos – Paul Klee e Adolf Loos.

Ao falar dessas duas figuras, Benjamin afirma o seguinte: “Tanto um pintor

complexo, como Paul Klee, quanto um arquiteto programático, como Loos,

rejeitam a imagem do homem tradicional – solene, nobre, adornado com todas

as oferendas no passado – para dirigir-se ao homem contemporâneo, nu,

deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas da nossa época”. Então,

2 Publicado na mesma coletânea de ensaios já citada.

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esse homem nu contemporâneo é o homem moderno. É o homem que se

desapega de todos os esteios tradicionais, que faziam da arte algo ligado ao

valor de classe, aristocrático, e preso a esses adornos e a esses interiores

saturados, a essa visão palaciana que governa a ideia de museu até a

modernidade.

Na passagem do século XIX para o XX, portanto, na pré-modernidade, a

tipologia arquitetônica palaciana, ou clássica, aquela tipologia que antes era

usada para edifícios públicos, sedes do poder, vai ser transferida para edifícios

culturais, como os museus. Os museus são, de certa maneira, os grandes

templos da modernidade naquele momento. O Altes Museum, de Karl Friedrich

Schinkel, em Berlim, é um exemplo. Agora, é justamente disso que a arte

moderna quer se livrar, dessa tradição que faz da arte, naquele momento

ainda, um signo de tradicionalismo.

Feita essa introdução, passo a concentrar um pouco mais esta fala em dois

exemplos de museus modernos brasileiros que são grandes paradigmas para

nós: o MAM do Rio de Janeiro, projeto de Affonso Eduardo Reidy, e o Masp, de

Lina Bo Bardi. Para iniciar este assunto, gostaria de comentar um pequeno

texto e um projeto do Mies van der Rohe que me foram apresentados pelo

colega Mario Figueiroa, a quem gostaria de agradecer. Nesse projeto singelo,

chamado “Museu para uma pequena cidade”, de 19433, ele descreve o que

seria esse museu e cria algumas ilustrações,. bastante abstratas. Esse museu

é uma caixa de vidro, com uma planta livre e com objetos de arte moderna

completamente soltos nesse espaço, objetos que são pensados para que

sejam vistos contra a paisagem e a natureza circundante. Em volta desse

museu haveria também um jardim de esculturas. Tudo isso desfaz a relação

entre dentro e fora, interioridade e exterioridade, cria esse espaço contínuo

transparente, que é o espaço moderno dessacralizado. Walter Benjamin

também fala, em outra passagem de “Experiência e pobreza”, que o vidro é o

material mais antiaurático que existe, porque a transparência é justamente a

abolição de distâncias e dos bloqueios que significavam essas relações

hierárquicas. Nesse projeto, Mies van der Rohe funda, em certa medida, essa

ideia moderna de um espaço de grande transparência e neutralidade

despojada, que possa fazer vibrar e revelar o objeto artístico como algo solto e

autônomo em meio à paisagem.

Mies tem uma descrição bonita, dizendo que Guernica, de Picasso, é um

quadro difícil de expor. Então, seria interessante que ele pudesse ser quase

que um plano solto, e o público pudesse ver Guernica contra um fundo que é a

natureza ou as coisas que se movem, uma paisagem cambiante.

3 Ver “A Museum for a Small City”. Architectural Forum, vol. 78, nº 5, 1943, pp. 84-85.

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Quando Lucio Costa fez o Museu das Missões, por exemplo, em 1937, uma

das operações mais interessantes do projeto é que ele cria um museu com os

despojos da ruína dos povoados das missões. No lugar, há aquela praça, o

único remanescente arquitetônico das missões, com a catedral ao fundo, e ele

implanta o museu numa esquina de onde se vê a catedral. Ele usa elementos

arquitetônicos de ruínas que havia ali, mas, sobretudo, ele faz um pavilhão de

vidro, e imagina a exposição desses objetos soltos contra o fundo da igreja.

Então é essa ideia de exposição: trazer o elemento histórico (não era arte

moderna, mas um acervo histórico) e relacioná-lo com o contexto no qual ele

se inscreve. Há muita proximidade com essa ideia do Mies van der Rohe, de

colocar o objeto contra um fundo cambiante, que retira justamente esse objeto

de um lugar sagrado, isolado, neutro, puro, e o coloca em relação imanente.

Ainda antes do Masp e do MAM do Rio de Janeiro, do Reidy, Lina Bo Bardi

realizou, em 1951, o projeto de um “Museu à beira do oceano”, que foi um

projeto do tipo sem encomenda. Um projeto que é, na verdade, a colocação de

uma ideia, ou seja, a escolha de uma questão. Ela faz isso e publica na revista

Habitat. Esse “museu à beira do oceano” já é, justamente, o paradigma desse

museu moderno, que é a caixa de vidro solta na natureza, a ideia de que o

objeto de arte deve ser exposto nesse lugar imanente, onde a aura foi

completamente destruída, e a arte faz parte de um outro tipo de relação, de

inscrição social, que, nesse caso, não é urbana.

Há uma semelhança entre o tipo de representação da Lina Bo Bardi e a

proposta por Mies van der Rohe. Parece-me que não é uma semelhança

fortuita. Também no projeto da Lina, é interessante ver esses objetos de arte

moderna soltos, com a presença de um mar ao fundo, com uma ilha e o céu.

Há, nos dois casos, um mesmo tipo de “desencantamento do mundo”. A perda

da aura é uma espécie de desencantamento do mundo. São ideias

semelhantes, uma, de Walter Benjamin, a outra, de Max Weber.

Utilizo a imagem desta grande obra de Alexander Calder, Flamingo, que ocupa

a Federal Plaza, em Chicago, para falar desse corte, dessa transformação que

ocorre na arte moderna. No museu do século XIX, havia aquelas galerias

imensas, aquele acúmulo de obras, todas com suas molduras imensas etc.,

que justamente colocavam as obras nessa relação de culto. O que passa a

acontecer na arte moderna? A destruição dessa relação, e isso podemos

entender, de uma maneira muito simples, na progressiva abolição das

molduras nas telas, e das bases nas esculturas. A moldura da tela e a base da

escultura representam esse limite; de certa maneira, encarnam a ideia de aura,

essa separação entre o plano sagrado da obra e o lugar ordinário onde nós

estamos. O movimento de trazer a escultura para esse lugar imanente, que é o

chão, começa com Rodin, e se desenvolve ao longo do século XX com vários

escultores modernos, como Calder, por exemplo.

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Na pintura, um dos marcos importantes dessa passagem está nas colagens

cubistas, que justamente profanam o espaço da pintura, antes imaculado, com

elementos do cotidiano, como jornais, por exemplo. Trazem informações e

matérias desse lugar contaminado, que é o nosso, o lugar da vida, do

cotidiano, para aquele lugar sagrado e, com isso, criam um curto-circuito que

vai fazer com que cada vez mais essa separação seja impossível.

Os surrealistas e dadaístas também fazem essa “profanação”, de diversas

maneiras. Isso vai caminhando até que, nos anos 1950, Jasper Johns produz

um trabalho como Canvas (1956), em que o ato de pintar já não representa

nada, e extravasa o campo da tela, invadindo a moldura. Ele pinta também a

parede em volta, e está claro que esse limite já não faz mais nenhum sentido.

Mais ou menos no mesmo período, Rauschenberg pinta sua própria cama,

levanta-a verticalmente, pendurando seu colchão na parede em Bed, de 1955,

uma de suas mais conhecidas combine paintings. A cama, que é um lugar da

vida, um lugar de dormir e outras coisas, transforma-se num objeto a ser

exposto, num objeto de arte, que vem para a vertical, que é supostamente a

posição contemplativa da arte.

Para os artistas da minimal art, há um momento em que o próprio espaço

expositivo, o espaço da galeria, passa a ser a questão. O mito do cubo branco,

do espaço neutro da galeria, é atacado, e uma relação fenomenológica se

estabelece. Já não é mais possível supor a autonomia do objeto artístico,

porque a ação artística questiona sua própria inserção, e sua relação com a

arquitetura, com seu contentor, passa a ser fundamental.

Muitos artistas deixam de lado o espaço das galerias e dos museus, e passam

a fazer obras site specific. Há trabalhos como Measurement Room (1969), de

Mel Bochner, que é um site specific dentro de uma galeria, no qual ele mostra

ao visitante as medidas precisas de cada espaço.

Outra instalação importante é The New York Earth Room (1977), de Walter De

Maria. Ele encheu de terra um apartamento no terceiro andar de um prédio em

Nova York. O trabalho é uma instalação de longa duração, que foi comprada

pela DIA Foundation e, com isso, o apartamento transformou-se num lugar de

visitação, portanto, numa galeria.

Mas vários artistas partem para fora da galeria, primeiro para espaços,

digamos, da natureza, como o deserto, e, depois, para o espaço urbano. A

relação entre arte/vida está completamente posta em questão, as duas

instâncias não se separam mais, e aquela relação de separação que fundava

uma ideia aurática da arte – e, portanto de um museu que é uma coleção de

joias, um templo da cultura – está também abandonada. Com isso, há uma

passagem fundamental, essa passagem moderna, e que sustenta os museus

modernos.

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A ideia de perda da aura, de inclusão da arte num mundo de relação imanente,

onde nós estamos, dá alimento a especulações arquitetônicas muito potentes

no campo do projeto de museu. Há, por exemplo, uma indicação como a do

Mies van der Rohe, mas também alguns projetos brasileiros que atingem uma

força muito grande.

Os dois exemplos que vou mencionar, bastante conhecidos, são explicitações

dessas questões. O primeiro é o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro –

MAM-RJ, projeto de Affonso Reidy. A sequência de croquis do Reidy já

demonstra essa ideia. Ele começa com a paisagem. A paisagem é o aterro do

Flamengo e o mar. Dali, ele estabelece essa cota, porque quer garantir a visão

desimpedida entre a avenida, a cidade, o centro, o aterro e a paisagem, o mar,

os morros. É a partir dessa cota que ele imagina o museu e, assim, está

garantida a vista, tanto no plano do térreo quanto dentro do museu. É um

museu absolutamente transparente, com aqueles pórticos estruturais seriais de

concreto e a caixa de vidro.

Nitidamente, o lugar da arte não é mais um lugar de guarda de tesouros, que

remete ao universo aristocrático, e a arte deixa de ser concebida como algo

sagrado, ao contrário, o objeto da arte deve dialogar com esse universo onde

estamos. No projeto de Reidy, esse universo é, para um lado, a avenida, o

centro e a cidade, e, para outro, o mar. O edifício não obstrui essa relação, e o

objeto de arte faz parte da vida; portanto, a visita e a contemplação da arte

fazem parte dessa trama de relações cotidianas.

O segundo exemplo é o Museu de Arte de São Paulo – Masp, projeto de Lina

Bo Bardi, que tem semelhanças de diversas ordens com o projeto do MAM,

como partido arquitetônico, predomínio da questão estrutural, um grande vão, o

concreto etc., mas, sobretudo, radicaliza ainda mais a ideia desse plano de

imanência a que me refiro.

O projeto do edifício, sobretudo sua amarração à ideia de museografia da Lina,

procura explicitar essa questão. Lina foi, expressamente, uma arquiteta que se

colocou de maneira frontal contra tudo aquilo que representava a aura, e contra

esse salão burguês ao qual me referi. Ela era, em grande medida, contra a

ideia do museu visto como o lugar da guarda de tesouros, de imobilização do

passado. Entendia o museu como algo dinâmico e apontado para o futuro, e

procurou incentivar possibilidades de apreensão por parte do público que

prescindissem das relações de conhecimento prévio, digamos, elitistas.

A ideia de ter todos os quadros contra um fundo transparente, como que

voando num espaço que é transparente, porque é de vidro dos dois lados,

procura colocar, da maneira mais radical possível, essa destruição da aura e a

ideia do objeto de arte como algo, de certa maneira, “normal”. Normal no

sentido de que é acessível a todos. As etiquetas de identificação das obras

estavam no verso do painel, o que não é um detalhe. O visitante não se

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aproxima da obra com uma relação pré-concebida ou atendo-se aos nomes de

quem quer que seja; ao contrário, se aproxima porque olha, e aquilo chama, ou

não, seu interesse. A proposta aqui é de uma arte completamente próxima,

como se fizesse parte da vida. Isso aqui poderia ser, de certa maneira, um

espaço urbano, e não um lugar isolado, sagrado, separado e privilegiado.

O projeto do Beaubourg representa um segundo ponto de quebra. Falei que o

primeiro era a passagem para a modernidade, o segundo é a pós-

modernidade, embora o próprio conceito de pós-modernismo hoje em dia já

seja um tanto antigo. Mas podemos deixar um pouco em suspenso essa

discussão e entender essa quebra, de uma maneira mais ampla, de um mundo

industrial para um mundo pós-industrial.

O Beaubourg está numa posição interessante, porque ele não é uma coisa ou

outra, ele está justamente na passagem. Arquitetonicamente, é difícil definir o

Beaubourg como moderno ou pós-moderno. O projeto é de 1971, ano do

concurso, e a obra ficou pronta em 1977. Está inscrito numa região importante,

tradicional de Paris, o bairro do Marais, e causa muita polêmica no momento de

sua construção. Sua construção gera muita discussão, e inaugura um novo

momento na história da arquitetura, no que diz respeito à relação do museu

com o espaço urbano e ao papel do museu na sociedade, a ponto, por

exemplo, de ficar famosa a expressão cunhada pelo filósofo francês Jean

Baudrillard, que é “o efeito Beaubourg”. Expressão que, depois, foi expandida

para se referir a “o efeito Bilbao”, que é o mesmo efeito, de certa maneira. Quer

dizer, o “efeito Bilbao”, que é muito contemporâneo a nós, começa com o

Beaubourg, que inaugura nossa era, que é uma era na qual a destruição da

aura já é uma premissa, está dada, já não é mais questão para ninguém, e

aparecem os efeitos.

Porque, se a modernidade imaginou a destruição da aura como algo libertador

(a própria utopia da Lina Bo Bardi diz respeito a uma arte que fosse

inteiramente acessível a um público não letrado), a partir do “efeito Bilbao”, fica

claro o problema da fusão entre cultura e entretenimento. A perda da aura,

para os modernos, é uma libertação, porque ela é democratizante. A aura era

um símbolo de hierarquia, era aristocrata e burguesa. A perda da aura é uma

ampliação de campo, uma possibilidade de transformação numa direção

democratizante. A partir dos anos 1970, fica mais claro para todos que, se isso,

por um lado, é verdade, por outro, traz problemas. A massificação da cultura, a

operação da cultura segundo uma lógica econômica, ligada ao turismo, como o

grande motor da economia pós-industrial, tem feito da arte, que antes

representava privilégio e distinção de classe, algo que está próximo da

banalização. No momento em que já não é mais possível definir a fronteira

entre a arte e a indústria cultural, ou a cultura do entretenimento, a própria arte

passa também a ser dificilmente definível. Essa é uma das questões que o

Beaubourg inaugura.

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Os franceses perceberam, naquele momento, que a cultura era, digamos

assim, o petróleo da França, e que, portanto, o turismo e toda a reestruturação

econômica da França no pós-guerra dar-se-ia através desse capital cultural. O

Beaubourg alavanca esse processo, através de muita polêmica,

evidentemente. Há um aspecto irônico no projeto, porque podemos considerar

que a França é o país da aristocracia e da burguesia por excelência, que tem

um conservadorismo cultural de longa data, e justamente lá vão implantar esse

museu profundamente profano, que transforma aquilo que antes era um templo

da cultura em uma espécie de fábrica colorida, que coloca para fora todas as

suas vísceras, que são as máquinas, os tubos do ar-condicionado, a escada

rolante.

Todo o acervo ideológico formal que vinha do Archigram e dos grupos das

megaestruturas e da contracultura dos anos 1960 se realiza neste projeto, que

profana, de uma vez por todas, aquela relação sagrada que constituía o lugar

da arte. Assim que o Beaubourg foi inaugurado, houve uma visitação enorme.

Ele inaugura a visitação em massa a um museu de arte, inclusive, em muitos

casos, não tão motivada pela arte, mas pela experiência de andar na escada

rolante de vidro, que era uma situação nova. Economicamente ele é um grande

sucesso, e dá o tom para todos os grandes projetos arquitetônicos da era

Mitterrand, que vem depois. A visitação em massa ligada ao turismo, à

economia pós-industrial, à arquitetura que ironiza a relação hierárquica anterior

do lugar da arte etc. faz com que o “efeito Beaubourg” inaugure de fato um

novo momento histórico, que é o que vivemos hoje, em que os museus são

capitais culturais fortes na economia globalizada mundial.

Não vou me deter na análise do Guggenheim de Bilbao, mas ele é, até agora, a

ponta final mais importante desse processo, considerando apenas que,

arquitetonicamente, o Beaubourg é ainda muito moderno naquele sentido. Se

pegarmos um corte do Beaubourg, podemos perceber que ele é semelhante ao

do Masp e ao do MAM do Rio, no sentido de que há uma estrutura externa, um

vão livre interno, uma relação de transparência muito forte etc. Portanto, aquela

relação de dessacralização que os modernos inauguraram arquitetonicamente

é determinante no projeto do Beaubourg, mas no Guggenheim de Bilbao, não.

Ele não tem mais essa relação, digamos, tectônica entre estrutura e forma, ao

contrário, é inteiramente revestido, não é nada transparente, é todo voltado

para dentro. O Guggenheim Bilbao faz parte de um momento em que muita

coisa mudou na relação do mercado da arte, o valor das obras de arte explodiu

no mundo, e questões como conservação, umidade, ar-condicionado,

luminotécnica passaram a ter um peso determinante.

Não é mais pensável fazer um museu transparente. Aquela ideia do museu

transparente já não é admissível no mundo de hoje, pelo próprio lugar

econômico em que a arte está. Então, o museu se transforma em uma pele

reluzente para a cidade, e a arte volta a ser uma espécie de tesouro, não mais

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transcendente, mas sim imanente, que está lá guardado a sete chaves dentro

desse espaço que é feito também para ser um lugar de entretenimento. Com

isso encerro minha fala inicial. Obrigado.

GUILHERME WISNIK

Arquiteto e ensaísta, professor de História e Teoria na FAU-USP. Autor de Lucio

Costa (Cosac Naify, 2001), Caetano Veloso (Publifolha, 2005) e Estado crítico: à

deriva nas cidades (Publifolha, 2009) e organizador do volume 54 da revista

espanhola 2G (Gustavo Gili, 2010) sobre a obra de Vilanova Artigas. Colaborador do

jornal Folha de S. Paulo e curador-geral da X Bienal de Arquitetura de São Paulo

(2013).

Registro da participação de Guilherme Wisnik na mesa-redonda “Espaço museológico”.

Seminário Transmuseu, Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2012. Publicação digital, MAM-

SP, 2014.