morte digna_ “se você pretende morrer, o brasil não é um lugar legal”

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01/11/2015 Morte Digna: “Se você pretende morrer, o Brasil não é um lugar legal” | Brasil | EL PAÍS Brasil http://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/06/politica/1430942689_308908.html 1/6 MARINA ROSSI São Paulo 13 MAY 2015 - 18:14 BRT ANA CLAUDIA QUINTANA | MÉDICA DE CUIDADOS PALIATIVOS » “Se você pretende morrer, o Brasil não é um lugar legal” Médica especialista em cuidados paliativos conta como é lidar com a morte todos os dias Arquivado em: Eutanásia Doentes terminais Brasil Doentes América do Sul América Latina Assistência sanitária América Previdência Medicina paliativa A médica Ana Claudia Quintana Arantes olha nos olhos enquanto fala. Não envia mensagens pelo Whatsapp nem olha o Facebook no celular enquanto conversa com alguém. Especialista em medicina paliativa, seu trabalho é estar presente e essa é a postura dela mesmo quando não está exercendo o ofício. Formada em medicina pela USP, fez um curso do Instituto Palio após a faculdade e fundou a Casa do Cuidar,o primeiro curso aqui no Brasil de cuidados paliativos, de acordo com ela. Trabalha em São Paulo, no setor de geriatria do Hospital Israelita Albert Einstein e no Recanto São Camilo, onde cuida de pacientes em estado terminal, que chegam encaminhados pelo Hospital das Clínicas. É lá que ela pratica os cuidados paliativos. “Trato ali de pacientes que já foram avaliados pelas equipes médicas e já foi dito a eles que não há nada que a medicina possa fazer para modificar o curso da doença. Não há cura e não há controle”, explica ela. Todos são financiados pelo Sistema Único de Saúde. O Recanto São Camilo fica no bairro do Jaçanã, na zona norte de São Paulo, em frente a uma escola pública. A área de cuidados paliativos recebe pacientes em estágio avançado de diversas doenças, não só de câncer. E, embora sejam maioria, os idosos não são os únicos a receber os cuidados que, nas palavras de Ana Claudia, “agem sobre o BRASIL Ana Claudia Quintana com a paciente Terezinha. / VICTOR MORIYAMA

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Morte com dignidade.

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01/11/2015 Morte Digna: “Se você pretende morrer, o Brasil não é um lugar legal” | Brasil | EL PAÍS Brasil

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MARINA ROSSI São Paulo 13 MAY 2015 - 18:14 BRT

ANA CLAUDIA QUINTANA | MÉDICA DE CUIDADOS PALIATIVOS »

“Se você pretende morrer, o Brasil nãoé um lugar legal”

Médica especialista em cuidados paliativos conta como é lidar com a morte todos os dias

Arquivado em: Eutanásia Doentes terminais Brasil Doentes América do Sul

América Latina Assistência sanitária América Previdência Medicina paliativa

A médica Ana Claudia Quintana Arantes olha nos olhosenquanto fala. Não envia mensagens pelo Whatsapp nemolha o Facebook no celular enquanto conversa com alguém.Especialista em medicina paliativa, seu trabalho é estarpresente e essa é a postura dela mesmo quando não estáexercendo o ofício.

Formada em medicina pela USP, fez um curso do InstitutoPalio após a faculdade e fundou a Casa do Cuidar, oprimeiro curso aqui no Brasil de cuidados paliativos, deacordo com ela. Trabalha em São Paulo, no setor degeriatria do Hospital Israelita Albert Einstein e no RecantoSão Camilo, onde cuida de pacientes em estado terminal,que chegam encaminhados pelo Hospital das Clínicas. É láque ela pratica os cuidados paliativos. “Trato ali depacientes que já foram avaliados pelas equipes médicas e jáfoi dito a eles que não há nada que a medicina possa fazerpara modificar o curso da doença. Não há cura e não hácontrole”, explica ela. Todos são financiados pelo SistemaÚnico de Saúde.

O Recanto São Camilo fica no bairro do Jaçanã, na zonanorte de São Paulo, em frente a uma escola pública. A áreade cuidados paliativos recebe pacientes em estágioavançado de diversas doenças, não só de câncer. E, emborasejam maioria, os idosos não são os únicos a receber oscuidados que, nas palavras de Ana Claudia, “agem sobre o

BRASIL

Ana Claudia Quintana com a paciente Terezinha. / VICTOR MORIYAMA

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01/11/2015 Morte Digna: “Se você pretende morrer, o Brasil não é um lugar legal” | Brasil | EL PAÍS Brasil

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Os pacientes que estãomorrendo não têmtempo para desperdiçarcom a minha distração

sofrimento” dos pacientes. Adolescentes a partir dos 16anos também chegam, embora em uma frequência menor.“A morte chega para qualquer idade”, diz ela. Ali, eles nãosão entubados, não passam por cirurgias invasivas, nãorecebem nenhuma medicação para tentar curar a doençaque têm. Apenas para atenuar a dor. Chegam, muitas vezes,sem andar e sem falar. E não são raros os casos depacientes que voltam a falar, a comer e até mesmo a andar.

Em sua sala no Einstein, ela conversou com EL PAÍS pormais de uma hora. Depois, a reportagem acompanhou otrabalho dela por alguns dias no hospital de cuidadospaliativos. O resultado está nessa reportagem.

Pergunta. Como funciona ohospital de cuidados paliativos?

Resposta. É um hospitalcomum. Mas tem uma forma decuidados diferente da doshospitais. O tratamento passapor algo muito mais amplo quesó medir pressão, ver a frequência cardíaca ou medir atemperatura dos pacientes. As pessoas pensam quecuidados paliativos significa tirar ou suspender otratamento, mas na verdade você amplia. O processo deadoecimento, desde o diagnóstico até que a morte aconteça,esse período é recheado por muito sofrimento. O cuidadopaliativo vai agir sobre o sofrimento. Eu trabalho com essaquestão do conforto físico do paciente: tirar a dor, fazer ointestino funcionar direito, fazer ele dormir direito, buscartirar o cansaço... Só que a brincadeira começa quando vocêcontrola os sintomas. Porque é quando eu tiro a sua dor,que você começa a experimentar a finitude.

P. A maioria das doenças que esses pacientes têm é câncer?

R. Cerca de 60% dos pacientes que chegam têm câncer. Háuma visão um pouco viciada de que os cuidados paliativossão feitos só com pessoas com câncer. Mas as pessoasmorrem de outras coisas também. Anualmente, mais de ummilhão de brasileiros morrem todos os anos. Desses,800.000 morrem de morte anunciada, ou seja, de algumadoença.

P. Como é lidar diariamente com o fim da vida?

R. Eu digo muito para os estudantes: não tem problemavocê estudar para cuidar de doenças, mas é preciso terconsciência disso, você é um cara que curte doenças. Eucurto pessoas. É outra coisa. As doenças fazem parte, sãoossos do meu ofício ter doenças para que eu possa descobrirquem é a pessoa que está por trás dessa doença. Essetrabalho de você retirar o sofrimento, para mim, é umtrabalho magnífico. Não porque eu tenha um gostomórbido pela morte ou pelo sofrimento. É exatamente ocontrário.

P. Você não se apega aospacientes? Como lida com isso?

R. Eu me vinculo. Não tem como não me vincular.

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O processo cultural damorte é muito peculiar

P. E você não sofre quando ele morre?

R. Claro que tem um sofrimento, mas eu penso que issodeveria ser um exercício de todos. Porque não sou só eu queme vinculo. Você se vincula aos seus colegas de trabalho,aos seus amigos, à sua família. O que a gente não entende éque esses vínculos não são definitivos. Por exemplo, eu teencontrei hoje, minha vida pode mudar muito depois queeu te encontrei, eu posso ser uma outra pessoa depois disso,mas eu não sei se vou te encontrar de novo. Então quandoeu estou com você, eu estou com você. Eu posso favorecercom que este encontro seja transformador para nós duas, mas eu não sei se te encontro de novo, então esse momentoé o momento que precisa existir. Quando você trata comuma pessoa que está morrendo, você não disfarça. Ela olhapra você, e ela tem o poder de te deixar nua, ela sabedireitinho se você está falando a verdade, se você estáfalando mentira, se você está com medo, se sentindoinsegura. Ela identifica isso. Claro que talvez nãoidentifique numa porção de consciência que a gente querter acesso. Por isso, não importa quanto tempo eu tenhacom você. Supondo que eu tenha apenas 15 minutos praolhar pra você, eu estarei prestando a atenção no que vocêestá dizendo durante esses 15 minutos. A grandedificuldade de todo mundo é ficar mais do que 15 segundosprestando atenção. Os pacientes que estão morrendo nãotêm tempo para desperdiçar com a minha distração.

P. Existem peculiaridades culturais que se revelam no horada morte?

R. Tive uma paciente muitoamada, a dona Almira, que nãopodia morrer de cabelotrançado. Na cultura dela, ali no

meio do nada na Bahia, as pessoas não podiam morrer decabelo trançado. E aí, como faz? Deixa o cabelo soltodireto? Se você deixar o cabelo dela solto o tempo todo,você estará dizendo a ela que ela está pronta pra morrer.

P. E ai?

R. Foi uma história linda, porque ela não queria falar sobrea morte, ela tinha medo da morte. Mas ela foi vendo aolongo do tempo de fim da vida dela as oportunidades dedespedida, as emoções, a coisas boas que aconteciam, asrealizações, as demonstrações de afeto, os pedidos deperdão. Nos últimos fins de vida, ela pediu pra me chamar,segurou a minha mão e falou bem baixinho no meu ouvido:“Destrança o meu cabelo?”. E foi resolvido. Ela nãoprecisou fazer terapia por 50 anos para resolver as questõesdela, nem precisou de recursos de enfrentamento para amorte. A morte ensinou como ela deveria fazer ao longo dosúltimos meses de vida dela. Agora, imagina se essa senhorafosse morrer nos Estados Unidos? Quem ia entender detrançar ou não o cabelo dela? O processo cultural da morteé muito peculiar e vai fazer com que a sua família se sintamais ou menos confortável com a sua partida se isso forrespeitado.

P. E como vem avançando no Brasil os trabalhos de

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Pegar uma mulher de 60anos que é contra oaborto, tudo bem, elanunca mais vai abortar.Ela pode ser contra oaborto dela, mas ela nãopode dar palpite no dosoutros. É uma tendênciado ser desumano, detratar de assuntos sobreos quais não os dizemrespeito. Mas a morte dizrespeito a todos

cuidados paliativos?

R. Principalmente na medicina, quando você carrega abandeira da morte natural, você está na contramão do restodos médicos, que são umas crianças infantilóides queacham que a morte pode ser vencida. Não existe ninguémque tenha se curado do câncer até hoje e que não tenhamorrido ou que não vá morrer. Essa percepção de que amorte faz parte da vida humana está muito distante dafaculdade de medicina. Em 2010 foi feito um estudo pelaEconomist sobre a qualidade da morte no mundo, que estárelacionado a conversas nesse processo, número de leitos,de hospitais de cuidados paliativos no país, a formação dosprofissionais em relação a isso, e aí se estabeleceu umranking com 40 países. O Brasil ficou em 38º lugar. Entãose você pretende morrer, aqui não é um lugar legal.

P. Tem algum paciente que pedepara morrer?

R. Muita gente pede, quandonão suporta o sofrimento. Seestá impossível viver, você pedepara morrer. Se eu cuido do seusofrimento, sua vida ficagostosa, então você quer ficarmais um pouquinho. A maiorparte das pessoas que chega lá[no hospital], não foi para láporque queria. Mas uma vez queelas experimentam essescuidados, elas não querem irembora. Tá cheio de pacientesque chegam lá, passam um dia edizem “não me dê alta”.

P. Mas existe alta?

R. Sim. As pessoas melhoram.

P. Mas elas não estavam em fase terminal?

R. Sim, mas nos cuidados paliativos elas voltam a comer, afalar, a andar, voltam a viver. Porque antes elas tinham sidoenterradas vivas pela equipe médica e pela família.Ninguém olha mais pra a pessoa. Aí eu chego lá e digo:Você está com dor? Então vamos melhorar a sua dor.Vamos descer no Jardim? O que você quer comer hoje?” Aspessoas comem pratos alucinantes [no cardápio do hospitaltem pratos como feijoada, dobradinha e bife à milanesa].Alguns dizem “eu quero champanhe para brindar”, e nósarrumamos um champanhe. Outros dizem “eu quero vermeu cachorro”, vamos buscar seu cachorro. “Ah, eu queropassar o fim de semana em casa, ver meus amigos e ir naigreja”, nós programamos tudo para conseguir com que apessoa vá. Então eu escuto o que você quer e te ofereço oque eu posso fazer para realizar aquilo que você deseja.

P. Se a morte fosse encarada, culturalmente, de outramaneira, isso também contribuiria para que esse pacientechegasse antes ao hospital? Eles não chegam em um estágiojá muito avançado?

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A eutanásia ou o suicídioassistido é como você verum bolo lindo na vitrine.É lindo, aquele confeitoperfeito, morangosperfeitos, mas é feito deisopor. Não é vivo. Amorte fabricada é umamorte fake

R. Sem dúvida. Essa demora écultural. Se você tem umapessoa que você ama muito eessa pessoa está gravementedoente, você a leva ao médico eele diz "olha, infelizmente amedicina não tem mais comoreverter o processo de doença dapessoa que você ama". O quevocê faz? Diz “ah, tá bom”, emarca outro médico. Até que

você encontra um médico que diz “olha, tem um trabalhomostrando que, se a pessoa responder a um tipo detratamento, há uma chance de 0,01% [de ser curada], aívocê cai na roubada de dizer “nós temos esperança. E aí agente vai lutar e vender a alma para pagar esse tratamento evai salvar a alma dessa pessoa”.

P. As pessoas confundem o seu trabalho com um trabalholigado à eutanásia?

R. Confundem, direto. Mas a eutanásia, dentro do cuidadopaliativo, não tem espaço. A gente parte do princípio que agente aceita a morte natural. Eu não pratico eutanásia. Nãoqueria eutanásia pra mim e não faria eutanásia paraninguém. Há médicos que são especializados em suicídiosassistidos. Na Europa tem. Eles acreditam que eles estãofazendo muito bem para os pacientes, porque existe quemqueira e existe quem faça. Não sou contra ou a favor. Não éa minha prática.

P. Seu trabalho então é justamente o contrário daeutanásia?

R. Sim. Para que você tenha a possibilidade de viver até oúltimo dia da sua vida, do jeito que ela veio para você. Aeutanásia ou o suicídio assistido eu penso que é como vocêver um bolo lindo na vitrine. É lindo, aquele confeitoperfeito, morangos perfeitos, mas é feito de isopor. Não évivo. A morte fabricada é uma morte fake. Acontece, defato, tem aquela cena linda da despedida, do perdão e tal,todo mundo te beija e você morre. Que gosto tem isso?Como o processo da tua morte pode te fazer melhor? Comoo processo da sua morte pode transformar as pessoas à suavolta? Que legado você deixa de aprendizado quando vocêdecide enfrentar esse processo? É nesse momento em quevocê enfrenta a sua fragilidade, que você sabe o quãocorajoso você é, o quão grande você é. A grandiosidade nãoé você não depender de ninguém, é você deixar alguémtrocar a sua fralda. Isso é um ato de coragem.

P. Falase mais sobre o aborto do que sobre a eutanásia...

R. Como se todo mundo fosse abortar, né? Então falammais sobre coisas que não servem para todo mundo. E vocêse mete a dar opinião sobre aquilo que você não vaivivenciar. Pegar uma mulher de 60 anos que é contra oaborto, tudo bem, ela nunca mais vai abortar. Ela pode sercontra o aborto dela, mas ela não pode dar palpite no dosoutros. É uma tendência do ser desumano, de tratar deassuntos sobre os quais não os dizem respeito. Mas a morte

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diz respeito a todos.

P. E qual a diferença entre eutanásia, distanásia eortotanásia?

R. Tudo isso gira em torno do processo de sofrimento.Eutanásia, o prefixo eu quer dizer bom, então significa uma"boa morte". Culturalmente, uma boa morte é uma morterápida, que não tem dor nem sofrimento. Mas veja, adengue está bombando aí. Você quer pegar dengue? É umamorte rápida! Mas, na verdade, ninguém está a fim demorrer. A ortotanásia, orto  significa "certo", então é a"morte certa", a morte no tempo certo. E a distanásia é amorte funcional, é um processo de morte prolongado. Porexemplo, você tem 95 anos, câncer no fígado, nos ossos, nocérebro, tem demência, desnutrição e a sua filha diz pramim: "Dr. Ana, salve a minha mãe. Ponha ela na UTI, façatudo". Aí entubamos ela, fazemos diálise, colocamos sonda,e, mesmo assim, você morre. E se, invés disso, eu virassepara essa filha e dissesse “olha, a sua mãe está muitodoente, essa doença não tem cura e nem controle e ela estámuito tranquila. Você topa que a gente cuide dela na suacasa? Você acha que ela vai gostar de ficar em casa?". Amorte vai ocorrer nas duas situações. A diferença é o quepreencherá o seu tempo até lá.

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