morfologia social ou geografia humana_lucien febvre

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  • 8/7/2019 Morfologia Social ou Geografia Humana_Lucien Febvre

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    MORFOLOGIA SOCIAL OU GEOGRAFIA HUMANA?

    LUCIEN FEBVREA primeira acusao dos socilogos contra a geografia humana clara. Pode

    traduzir-se por uma palavra. Acusam-na de ambio. Nada de mais estreito dizem e,ao mesmo tempo, nada de mais ambicioso do que as suas concepes. Logo que estoem face de um grupo de homens, de uma sociedade humana, pensam no solo sobre oqual assenta materialmente esse grupo, essa sociedade. Para eles, esse suporte material,esse substrato das sociedades no de modo algum uma matria inerte e sem ao. Atuasobre os homens que suporta. Influencia-os tsica e moralmente. Explica-os noconjunto e em pormenor. Explica-os, e at os explica por si s. S ele atua sobre eles. Sele os influencia. Exclusivismo e preconceito normal: a deformao profissional doespecialista explica-o perfeitamente.

    O gegrafo parte do solo, e no da sociedade. Sem dvida que no chega ao pontode pretender que esse solo a causa da sociedade. RATZEL contenta-se com dizer que o

    solo o nico lao de coeso essencial de cada povo (1). Mas , antes de tudo, para osolo que se dirige a sua ateno. A ao e a eficcia do fator geogrfico o que RATZELpretende esclarecer, precisar, mostrar bem claramente. Em lugar de estudar o substratomaterial das sociedades em todos os seus elementos e em todos os seus aspectos,censura-lhe Mauss, sobretudo sobre o solo que a sua ateno se concentra. E o soloque est no primeiro plano da sua investigao. A morfologia social seria muitodiferente. Certamente que trataria tambm do substrato das sociedades, mas enquantoum s dos elementos que ajudam a compreender a vida e os destinos dessas sociedades.No comearia por divinizar, por assim dizer, esse elemento privilegiado, por lhe atribuiruma espcie de poder criador, por fazer dele o produtor e animador das formas sociais.Tendo por objeto a massa dos indivduos que compem os diversos grupos, a maneiracomo so dispostos sobre o solo, a natureza e a configurao dos fatores de toda aespcie que afetam as relaes coletivas (3), esta disciplina tomaria lugar entre ascincias especiais de que a sociologia, na opinio de DURKHEIM e FAUG0NNE-r(),

    constitui, por assim dizer, o Corpus. Ora aquilo que o socilogo, ao contrrio dogegrafo, pe no primeiro plano das suas preocupaes no a terra a sociedade.Noutros termos, o problema no o mesmo, conforme sejamos, nos consideremos, nosproclamemos gegrafos ou morflogos. E, em conseqncia disso, Mauss levado a

    dizer (1): Se preferimos o termo m orfolo gia so cialao de antropogeografiapara designara disciplina qual se refere esse estudo, no por um vo gosto de neologismo; queesta diferena de etiqueta traduz uma diferena de orientao. Com efeito, assim opensamos. Diramos mesmo de bom grado: uma diferena tal que, na realidade,

    morfologia social e geografia humana no podem, sem perigo, substituir-se uma outra.Mas o estudo em ao>> das duas disciplinas rivais no-lo mostrar melhor que qualquerdiscusso terica.

    1 - AS OBJEES DA MORFOLOGIA SOCIAL: OS AGRUPAMENTOS HUMANOS SEM RAIZES GEOGRAFNo h grupo humano, no h sociedade humana sem suporte territorial. Tal o

    ponto de partida normal dos gegrafos nas suas especulaes. Frmula equivoca atcerto ponto. Na verdade, h muitos grupos e muitas sOc1edades e precisamenteentre aqueles que os socilogos estudam, por vezes, com tanta predileo sobre osquais, ao fim e ao cabo, a influncia do substrato geogrfico, to caro a Ratzel, se fazsentir pouqussimo. Apesar de uma insuficincia de preocupaes geogrficas bastanteacentuada, os mltiplos inquritos dos antroplogos e etnlogos alemes, ingleses eamericanos sobre as sociedades selvagens do Novo Mundo, ou do mundo do Pacfico,

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    provaram-nos claramente que os primitivos s conhecem modos de agrupamentoespecificamente territoriais. O totemismo, em particular, est na raiz de umamultiplicidade de formaes sociais sem razes geogrficas aparentes.

    Vejamos, para exemplificar, os Aruntas, esse povo do Centro da Austrlia quetrabalhos precisos e rigorosos nos deram a conhecer em todos os pormenores de umaorganizao muito complexa to complexa que entre os observadores se encontrampor vezes, neste como noutros casos, divergncias bastante graves. Reportemo-nos aos

    trabalhos mais bem documentados, e em particular aos de B. SPENCER e L.J. GILLEN,esses clssicos da sociologia. Em 1899 fazem a copiosa descrio das sociedades

    indgenas do Centro australiano: The native tribes o f Cen tral Aust rlia,e em 9O4 das do

    Norte deste mesmo continente The northe rn tribe s o f Cent ral Austrlia.So observadoresrigorosos e bem fornecidos de fatos, se bem que incorram como J. Sion j o notou no grave de (eito de fazerem a descrio dos fenmenos religiosos e sociais de

    populaes cuja vida material no estudam. Ora os seus trabalhos revelam nos Aruntastrs espcies de grupos elementares distintos, que se entrecruzam, se misturamliteralmente da forma mais complexa. Primeiro encontram-se agrupamentospropriamente territoriais, distintos uns dos outros pelos nomes das localidades epossuindo cada um deles um pedao de solo, de limites conhecidos e definidos. Mas logoao lado deste vamos encontrar um certo nmero dessas classes matrimoniais que E.Durkheim nos descreveu e, depois destas, temos os grupos totmicos, que englobam osindgenas sem qualquer preocupao, desta vez, de localizao ou distribuiogeogrfica. No so, alis, os grupos no territoriais que representam o papel maisapagado na organizao coletiva dos Aruntas muito pelo contrrio; e, por sua parte,Durkheim insistiu muitas vezes (em especial na sua interessante referncia ao livro deHowr sobre as tribos indgenas do Sudeste australiano) (3) na extrema indeterminao daorganizao propriamente territorial dessas sociedades australianas pelo menos, taiscomo as vem e descrevem os nossos observadores, brancos e nossos contemporneos.

    A mesma observao se poder fazer no que se refere a todo o resto do imensocontinente australiano, em que as tribos so geralmente dotadas de duas organizaes:uma, baseada nas divises geogrficas, e a outra, solidria da regulamentaomatrimonial, O mesmo quanto s ilhas de Salomo, estudadas por alemes e em que osagrupamentos totmicos, distintos das aldeias, e os agrupamentos territoriais,abrangendo por vezes portadores de totens diferentes, se misturam e cruzam de formasemelhante aos exemplos anteriores. A mesma circunstncia em inmeros povosprimitivos do Brasil (4), que vivem na floresta e nunca ultrapassaram o estdio debarbrie. De resto, curioso ver, pouco a pouco, esbater-se neles o princpio totmico emface do princpio territorial, representado pela comunidade de aldeia. Mas para qumultiplicar exemplos (5) de fatos hoje bem conhecidos?

    V-se sem dificuldade o partido que daqui se pode tirar contra as "pretensesgeogrficas". Faamos, contudo, algumas observaes.

    Primeiro que tudo, com freqncia que se compreende claramente a passagemdos agrupamentos no territoriais a agrupamentos territoriais. Os primeiros tendem,pouco a pouco, a localizar-se geogrficamente. Fala-se de organizaes totmicas sembases geogrficas. Ora h povos por exemplo, os ndios Pueblos do Arizona e do NovoMxico - que moldaram sobre uma organizao totmica conservada, excepcionalmente,numa vida quase urbana a estrutura e a construo das suas casas e aldeias. E mesmo naAustrlia, nessa Austrlia em que vive um grande nmero de populaes muito parecidascom os Aruntas, as tribos situadas mais perto do golfo de Carpentria no apresentam asj referidas anomalias. A confundem-se os agrupamentos territoriais com, osagrupamentos totmicos. Cada localidade possui o seu prprio totem; no se encontrama portadores de totens diferentes; e o chefe administrativo da localidade igualmente oseu chefe religioso. Nada de surpreendente, alis, nesta confuso. Durkheim explica-a

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    quando observa que ela se verifica sempre que o totem se transmite pela linha paterna.Nestas condies, o casamento no introduz em cada gerao totens de origem eimportao estrangeiras.

    Por outro lado, no se podem conceber os membros dessesagrupamentos no territoriais tais como essas personagens chinesas de que nos falaMICHELET num texto clebre. DURKHEIM observa algures, e precisamente a propsito deestudos sobre as tribos indgenas do Sudeste australiano, que impossvel a um grupo

    social no estar, de qualquer forma, ligado efetivamente ao territrio que ocupa e no terde qualquer forma a sua marca. Uma anlise atenta no teria dificuldade em descobrirnas associaes menos (territoriais) um fator geogrfico - mesmo que seja necessriochegar a ele por intermdio do clima. No h, por exemplo, na costa do Pacfico daAmrica do Norte, sociedades humanas como a dos Kwakiutls, estudados peloinvestigador americano F. Boas que possuem uma organizao social dupla: uma, paraa vida profana e laica, caracterizada por uma diviso dos homens em - famlias, cls etribos; a outra, para a vida religiosa, base de grupos protegidos, cada um deles, poruma divindade ou um esprito diferente dos outros? Ora a organizao laica atua duranteo Vero e a organizao religiosa durante o Inverno; e com isso retomaria a geografia osseus direitos, se no fosse j evidente, por outro lado, que com a estao fria nodesaparecem todas as conseqncias (geogrficas) do regime de Vero. Mas,independentemente destes fatos particulares, teria havido toda a vantagem emdesenvolver e precisar a observao de DURKHEIM.

    RATZEL, dominado, ao mesmo tempo, pelo seu preconceito de antropogegrafo epor preocupaes de ordem mais poltica que cientfica, que, por momentos, nos fazem

    comparar a mais recente e menos fecunda das suas grandes obras, a Politische

    Geographie, a uma espcie de manual do imperialismo alemo, escreve: Se os maissimples tipos de Estado so irrepresentveis sem um solo que lhes pertena, o mesmodeve ocorrer com os mais simples tipos de sociedade: esta concluso impe-se). Econtinua: Famlia, tribo, comuna s so possveis sobre um solo e o seudesenvolvimento s pode ser compreendido em relao a esse solo. Em primeiro lugar,tais agrupamentos no so os nicos que representam os tipos mais simples desociedade. Acabamos de chamar a ateno para outros tipos em cuja gnese,desenvolvimento e expresso o solo representa um papel muito restrito. Mas, sobretudo,de que se trata exatamente? (Os tipos mais simples de Estado so irrepresentveis sem

    um solo qu e lhes p ertena).Estes trs ltimos termos no foram certamente escritos poracaso. Famlia, tribo, comuna s so possveis sobre um solo e o seu desenvolvimentos pode ser compreendido em relao a esse solo). H, sem dvida, mais que umapequena diferena entre a primeira e a segunda frmula. Poder-se-ia exprimir essadiferena dizendo que a primeira frmula depende da morfologia social e a segunda dageografia humana. Ora curioso, e at um tanto picante, verificar que DURKHEIM, aoafirmar que impossvel a um grupo social no se encontrar de qualquer forma ligadoao territrio que ocupa e no revelar a sua influncia), admite (se bem que o seu termo

    ocupar seja bastante equvoco) a segunda frmula essa mesma que noutros lugares

    critica, enquanto RATZEL,em contrapartida, parece ligar-se de preferncia primeira. Eos textos no so perfeitamente claros nem de um lado nem de outro. Ora precisamente essa ambigidade que mostra at que ponto continua insuficiente otrabalho de anlise.

    Evidentemente, haveria que distinguir. Por um lado, as povoaes sociais de baseterritorial: aquelas que tomam posse, de forma mais ou menos estrita, de um pedao deterra, o reservam para si, considerando-o como seu domnio particular; esse pedao deterra , de qualquer forma, a sua projeo sobre o solo; a sua prpria forma, no sentidoestrito do termo: aquele solo que BOUGL visa quando, ao analisar, por sua vez, o

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    conceito de morfologia social, escreve no Anne sociologiquede 1900, resumindo as

    idias expressas por DURKHEIM: O termo fo rm a tomado ento num sentido preciso.Trata-se de formas materiais susceptveis de representaes grficas. E o socilogoacrescenta que essas formas (constituem o domnio prprio da morfologia social). Eis oque claro. Restam outros grupos sociais, que, por sua vez, no tm domnio reservado,territrio prprio, circunscrio definida. Os seres humanos que compem esses grupos

    vivem sobre um territrio, numa regio, sob um cu comuns a todos, os mesmos paratodos. Na medida em que assentam sobre um solo, participam dele: tm a sua marca,afirma Durkheim; mas o seu grupo, enquanto grupo, no tem forma grficamenterepresentvel. No h pedao de solo que seja propriamente o territrio do grupo.

    Mas, dito isto, foi muito grande o progresso? A distino apresenta valor real?Permite apoiar as objees dos socilogos contra os gegrafos? Pensamo-lo tanto menosquanto certo que h os fatos intermedirios a que anteriormente nos referimos e que preciso reter. Nas sociedades australianas sobre cujo conhecimento todo este debateassenta Durkheim que a organizao comeou, sem dvida, por ser totmica e s emseguida se tornou territorial. Ou, mais precisamente, no tempo em que ainda s existiaorganizao totmica, o que havia de territorial na organizao social era muitosecundrio, muito apagado se acaso se aceita a anlise do socilogo; no lidamosaqui, mais uma vez o dizemos, com dados simples e fceis de interpretar. O que marcavaos limites da sociedade no era uma determinada barreira material; o que lhedeterminava a forma no era a configurao do solo. A tribo era essencialmente umagregado, no de distritos, mas de cls, e o que fazia a unidade do cl era o totem e asidias de que era objeto. Em ltima anlise, de toda esta discusso o que permanece oseguinte: um dos mais importantes objetos de estudo do socilogo ou seja, todosesses grupos que no so essencialmente territoriais oferece, no fim de contas, poucamatria para os gegrafos. Ainda se poder dizer que lhes oferece campo mais vasto,apesar de tudo, do que aos morflogos? Estes ltimos, num caso semelhante, s tm quelevantar um auto de carncia sua cincia: onde no h (formas) a estudar no podehaver morfologia. Com a geografia, pelo contrrio, possvel que o grupo, enquantogrupo, lhe escape. Mas resta-lhe o solo sobre o qual vivem os homense o clima, asprodues e todas as condies de existncia prprias dos lugares que freqentam e quetambm ocupam, enquanto membros de grupos de outra natureza: os grupos territoriais.Deste modo j ganhamos conscincia, sem dvida com um pouco mais de clareza,daquilo que realmente torna opostas as duas concepes rivais: morfologia ou geografia.

    II - AS OBJEES DA MORFOLOGIA SOCIAL: A AMBIO GEOGRFICAOutras objees dos socilogos tm, evidentemente, mais cabimento e definem

    com mais nitidez o alcance da acusao de ambio. Um exemplo vai nos mostrar, etanto mais tpico quanto verdade que o vamos buscar num esprito mais seguro dosseus caminhos.

    Que a cultura do arroz, quer pela abundncia de alimento que fornece num pequenoespao, quer pelos assduos cuidados que exige, exerce uma profunda influncia sobreas sociedades do Extremo Oriente, eis um ponto de vista caro a VIDAL DE LA BLACHE. Emrigor, uma fam lia de cultivadores de arroz do Camboja pode viver com um hectare,notava ele; mas, por outro lado, para a prpria cultura da planta alimentcia necessriauma mo-de-obra numerosa e constante. A conseqncia disto? VIDAL DE LA BLACHE,arrastado, sem dvida, pelo meio, pelo auditrio e pelo prprio ttulo da sua conferncia(as condies geogrficas dos fatos sociais), extraiu-a um dia, na Escola dos AltosEstudos Sociais, da seguinte forma: (Terei o cuidado de no generalizar demasiado; masse exato que a forte constituio da famlia e da aldeia a pedra angular nas

    sociedades do Extremo Oriente que gravitam volta da China.., v-se assim a relao de

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    causa a efeitoentre o modo de cultura, inspirado pelas condies geogrficas, e a nica

    forma verdadeiramente popular de organizao social que a se encontra) . Por maior queseja o engenho da observao e a finura feita de cambiantes da anlise, h aqui,manifestamente, abuso e (ambio). Na verdade, existem muitas outras civilizaes,caracterizadas por outros gneros de vida e sob outros cus, em que a famlia fortementeconstituda se apresenta, verdadeiramente, como a pedra angular) da sociedade. E, de

    resto, em semelhante matria, convm ter cuidado com o velho preconceito de que aorganizao social se elaborou de baixo para cima, por aglomerao progressiva degrupos, primeiro muito simples, conjugais ou familiares, no sentido estrito do termo, eem seguida mais vastos, se no mais complexos: cls, aldeias, tribos e naes. Aorganizao familiar no inicial. Em todos os climas, em todas as civilizaes, recebeuela do exterior as suas regras imperativas. Recebeu-as, no das condies geogrficas,mas do poder dominante, superior, do Estado da sociedade poltica no seuconjunto(5). Uma vez dada a organizao familiar, nada mais provvel que a cultura doarroz nos pases do Extremo Oriente, onde predominante, tenha contribudo paramanter e aumentar o seu poder e a sua influncia; mas no devemos ir mais longe erepitamos com DURKHEIM desta vez sem reservas nem limitaes: no h dvida deque as influncias geogrficas esto longe de ser desprovidas de importncia; mas noparece que tenham o tipo de preponderncia que se lhes atribui... Entre todos os traosconstitutivos dos tipos sociais no h nenhum, que ns saibamos, que elas possamexplicar). E acrescenta: alis, como seria isso possvel. uma vez que as condiesgeogrficas variam de lugar para lugar, enquanto se encontram tipos sociais idnticos(abstrao feita das alteraes individuais) nos mais diversos pontos do globo?

    Ainda um exemplo. Em tal matria no se deve recear multiplicar os exemplos. Ahabitao humana, a casa, , evidentemente, um dos traos mais notveis destaspaisagens humanizadas que se nos apresentam e que precisamente o gegrafo deveestudar: to familiar a nossa vista nas regies ocidentais que a sua ausncia prolongadanos faz verdadeiramente sofrer: numa solido selvagem e desolada, nos cabos extremosdessa Armrica que um mar feroz assalta infatigavelmente, um moinho estendendo assuas duas asas em cruz na linha do horizonte rgido e nu faz sentir no se sabe quesentimento de confiana e de paz: um pouco daquela emoo que, nos altos planaltos doTibet, sentiu um Perceval Landon, em marcha sobre Lhassa, ao contemplar, por acaso, afrgil silhueta de um salgueiro de verdes folhas. Ora diremos ns (e j foi dito) que estacasa, esta habitao do homem, por muito adaptada que esteja, quer pelo seu aspecto,quer pelas suas disposies e materiais, ao solo em que assenta e ao clima em que seencontra, um fato geogrfico? Claro que no! Um fato humano, se assim se quiseroque no a mesma coisa.

    H geografia num campo de trigo. Um campo de trigo no um fato geogrfico.Pelo menos, s o para um gegrafo. Este no tem de estudar a "casa",mas somente oque nela h de geogrfico e nem tudo geogrfico numa casal e competir porventura geografia determinar qual a idia essencial dessa mesma casa. Seria certamentedemasiado fcil alinhar aqui uma srie de citaes que revelariam em alguns gegrafosuma preocupao medocre com tudo o que lhes no diz respeito, uma espcie de

    desprezo jovem, cndido e um tanto irritante de vizinho nada menos que umapropenso um tanto incmoda para usar palavras e frmulas simultaneamente cortantese sumrias. Munidos de duas ou trs grandes chaves para todo o servio, quantos novo estouvadamente pelo mundo, experimentando-as sucessivamente em todas as portasque encontram Ficam felicssimos quando se lhes depara uma que o instrumento abre omelhor que pode. A primeira necessidade do homem a gua. Quando a guasuperficial rara, como em Beauce, na penuriosa Champanha, e nas regies calcrias, emgeral, as aldeias agrupam-se em grandes aglomerados volta de alguns pontos de guaexistentes, ou ento escalonam-se muitas vezes por vrios quilmetros ao longo doscursos de gua. Quando a gua abundante e surge por toda a parte, como na Ille-de-

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    France, Limousin, Bretanha, Pas de Gales, etc., as habitaes disseminam-se ..." . Depoisvm dois extratos de um mapa em grande escala para comprovar o texto; e eis formuladauma lei geral, uma lei geogrfica constante, de que nada vem limitar a aplicao ouprecisar o alcance. Ora evidente que, se a gua surge menor perfurao, as casaspodero distribuir-se pelo campo e que semelhante isolamento ser menos fcil no caso

    contrrio . Podero ... de fato, s se trata de possibilidades. E se indiscutvel a

    influncia do meio fsico local, quer isso dizer que se exclua qualquer outra Porventurano se poder dar o caso. por exemplo, de pormenores de construo e de disposio, es vezes a prpria estrutura da aldeia, terem sido concebidos num outro solo, num outroclima, por uma populao de emigrantes; No pode porventura suceder que os recmvindos tenham edificado e disposto as suas habitaes segundo a forma consagrada nasua regio de origem? No se poder verificar o fato de esse tipo se ter modificado, dadoque a experincia no permitiu que se conservasse intacto, embora sem se obliterar porcompleto ? De fato, vejamos a regio de Caux: populao disseminada a oeste econcentrada a leste: as condies fsicas num lado e noutro so, contudo. quase idnticase nada impediria que a leste se estabelecessem albufeiras e que a oeste se perfurassempoos de gua. A herdade cauchesa. de tipo to constante, est sem dvida adaptada snecessidades da explorao local. Mas outras herdades, construdas segundo um planodiferente, tambm se adaptariam perfeitamente. Observaes de gegrafo, dir-se-. Elasprovam evidncia que o seu autor no est, por seu turno, disposto a contentar-se comas grandes chaves de que falvamos atrs. Provam simplesmente que, ainda em muitos.casos, investigadores seduzidos a seguirem s a sua pista nem sempre ignoram a artedos corretivos nem a necessidade de, por vezes, olhar para o lado do vizinho. Nestaquesto da casa h uma tendncia espontnea para desprezar, se no para negar, asinfluncias tnicas que um MEITZEN tinha apresentado sem anlise critica, mas que nodeixam por isso de existir, ou as influncias histricas, que no so todas forosamente(tnicas e cuja ao necessrio definir quando a anlise geogrfica incapaz desatisfazer; desconhecimento inconsciente ou propositado do jogo das tradies. da aopersistente das causas sociais no tero os socilogos razo em censurar aos gegrafosestes defeitos to conhecidos? Defeitos de uma cincia jovem, exuberante e que nosabe, ao limitar o seu prprio domnio, respeitar por via indireta o domnio do vizinho.

    Recapitulemos. Agora compreende-se melhor aquilo que os partidrios damorfologia social querem dizer quando denunciam essa disciplina de grandes ambies

    que a si prpria se designa por ge ografia hu m ana.Na sua pena, a censura de ambioimplica duas acusaes diferentes. Os gegrafos querem explicar pela geografia, ou, pelomenos, reivindicam como seu campo de investigao as sociedades humanas, dasmenores s mais vastas, das mais rudimentares s mais complexas; ao ouvi-los dir-se-iaque todos os grupos sociais so justificveis por meio da sua cincia, quando, de fato,no isso que sucede: na realidade, em boa lgica escapam sua influncia todos osagrupamentos no territoriais. Por outro lado, no que se refere aos prprios grupossociais que esto incontestvelmente relacionados com os seus mtodos, pretendemexplicar um nmero demasiado grande das suas manifestaes por meio da geografia es pela geografia. Abusos manifestos, que, por seu turno, sero ignorados por umacincia sociolgica de perspectivas modestas e marcha prudente porque essa temobjetivos limitados e antecipadamente definidos...

    Quanto ao primeiro ponto, j nos explicamos. Nada h de decisivo nas acusaesque se fazem ou podem fazer geografia. H grupos humanos em cuja gnese o solo,enquanto solo bruto, solo puro, se assim se pode dizer, representa um papelinsignificante, uma vez que esses grupos no tm solo seu, ou, mais exatamente, umavez que no talharam o seu bocado particular no tecido universal. Mas h outros fatoresgeogrficos alm do solo influir na vida das sociedades. E influncia destes ltimosfatores no escapam, de modo algum, os homens componentes de grupos noterritoriais de que se est falando e que, alis, se intercalam igualmente noutros

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    grupos, esses ento de base territorial. E acaso escaparo realmente esses primeirosgrupos no territoriais prpria influncia do solo? Se no escapam, no a morfologiasocial que nos poder informar sobre as modalidades da influncia exercida nem sobreas suas conseqncias, uma vez que se probe a si prpria de se ocupar de outra coisaque no sejam formas. Haver necessidade de escolher? No se concebe por que razo seter de escolher. Na verdade verifica-se, afinal, que no h equivalncia entre os dois

    termos cuja escolha nos proposta.Quanto ao segundo ponto: Quando se passa em revista, escreve Durkheim a

    propsito de Ratzel. tal multiplicidade de fatos com o nico objetivo de investigar que

    papel representa, na sua gnese, o fator geogrfico, se ne cess riam ent e levado aexagerar-lhe a importncia, precisamente porque se perdem de vista os outros fatoresque tambm intervm na produo desses fenmenos. Objeo muito sensata. Mas o

    neces sariam en te, sem dvida, um pouco forte. Que se aplique a Ratzel, muitopossvel. Em todo o caso, conviria no generalizar nem pretender atribu-lofuncionalmente a todos os gegrafos. (Na feio atual dos nossos velhos paseshistricos cruzam-se e interferem causas de toda a ordem. O seu estudo delicado.Determinam-se ai grupos de causas e efeitos, nas nada que se assemelhe a umaimpresso total de necessidade. E patente que, em dado momento, as coisas teriampodido tomar outro curso e que o curso tomado dependeu de um acidente histrico. Noh motivos para considerarmos a existncia de um determinismo geogrfico: o que nosignifica que a geografia seja por isso urna chave que possa ser dispensada. E maisadiante: na explicao de fatos bastante complexos submetidos a circunstncias diversasde tempo e de lugar, a anlise geogrfica, tanto como a das influncias tnicas ehistricas, deve desempenhar o seu papel: o emprego exclusivo de um modo deinterpretao no poderia satisfazer uma inteligncia ansiosa de realidade, e no desistema). Onde encontrar, nestas linhas comedidas ou no livro a que elogiosamente sereferem e que recomendam ao leitor, vestgios desse preconceito de deque Durkheim falava, desse exclusivismo de que fala algures MAuss? Ora essas linhas so

    da autoria de um gegrafo bem qualificado como tal: Vidal de La Blache .

    III - O ERRO DE RATZEL. EM COMO ELE NO TODA A GEOGRAFIA HUMANADepara-se-nos aqui um vicio freqente nos metodologistas no especializados nas

    cincias sobre as quais dissertam. Nem mesmo os mais avisados e escrupulosos lheescapam. Precisam documentar-se depressa, em pouco tempo e to abreviadamentequanto possvel: portanto, apiam-se num homem, numa obra. Mas, para avaliar todo umesforo cientfico, para apreciar e criticar uma cincia em via de criao e que tateia aindao seu caminho, o pegar num livro, num s livro, assinalar-lhe as tendncias e os defeitose depois generalizar no tarefa que no implique os seus riscos. E, no obstante, bemisso o que, em grande parte, fazem os socilogos.

    Por certo que nos parece bem escolhido o livro de que partiram. A Antropogeografia a obra-prima de Ratzel, e quando Mauss, depois de Durkheim , chama ao seu autor o(fundador da antropogeografia), exageramas que (um dos fundadores, verdade. Noobstante, no se deve considerar a geografia humana sinnima de Ratzel e seusdiscpulos. Evidentemente a escola francesa no ignora quem foi o padrinho da

    antropogeografia. Quando, em 1891, foram criados os Anais de Geographie,um dosprimeiros fascculos da nova revista continha um longo, preciso e copioso resumo dasidias mestras, dos temas favoritos do gegrafo alemo: resumo, alis, nitidamentecrtico, notemo-lo, da autoria de L. Ravenau e com o ttulo de "O elemento humano na

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    geografia". Mais tarde, quando apareceu a Politische Geographie,Vidal de La Blache assinalou pessoalmente o seu valor e aproveitou a ocasio para, por sua vez, definir a

    Geografia Poltica.Finalmente, depois disso, M. G. HUCKEL resumiu, sempre nos Anais,e

    dirigindo-se aos leitores franceses, as linhas fundamentais da Geografia da Circulao

    segundo Ratzel .Contudo, apesar destes repetidos testemunhos, seria bastante inexato

    fazer depender de RATZEL todo o esforo, to vivo, to curioso, to interessante, dosgegrafos franceses. Muitos estranhariam semelhante influncia e talvez confessassemconhec-lo muito vagamente. De fato, o que antes de mais nada lhes interessa amonografia regional. As obras tericas, os livros de conjunto sobre o objeto, intenes emtodo da geografia humana so muito raros em Frana. Somente podemos citar osartigos to sugestivos, vivos e originais, de VIDAL DE LA BLACHE; o grande livro, de valordesigual e dbil contextura, mas abundante em referncias, de J. Brunhes e, finalmente,revelando de forma muito sensvel a influncia de Ratzel, mas no sem que lhe faa assuas reservas, quer dizer, no sem crtica ou atualizao, os dois livros de Camile

    Vallaux : La Mer e Le Sol et ltat,dois volumes recentes (1908 e 1911) da pequena

    Encyclopedie scientifique Doin. tudo e pouco. Mas no conceito dos gegrafos

    franceses bastante. Na sua opinio, a geografia humana demasiado jovem, tem muitoque trabalhar, muito que adquirir, muito que tentear, para poder, desde j, pensar emdefinies ou em delimitaes eficazes. Pretendendo-se precipitadamente delimitar o seucampo, no se correria o risco de deixar fora dele o melhor, o mais puro da geografiahumana? Em qualquer caso, um ponto de vista, e preciso ainda acrescentar que emInglaterra, nos Estados Unidos, na Itlia, ou ainda noutros pontos, h "gegrafoshumanos" cuja obra ou tendncias nada tm de ratzeliano. Em Frana o raizelianismo foitalvez um estado de prestgiomas no uma realidade.

    Outra coisa ainda: mesmo no tempo em que DURKHEIM denunciava a

    Antropogeografia,do mestre alemo, como um esforo, sem dvida quimrico, paraestudar todas as influncias que o solo pode exercer sobre a vida social em geral, j

    VIDAL DE LA BLACHE escrevia, nos Anais de Geographie:(Restabelecer na geografia oelemento humano, cujos ttulos parecem esquecidos, reconstituir a unidade da cinciageogrfica na base da natureza e da vida: tal , sumariamente, o plano da obra de umRATZEL. Os dois juzos diferem muito sensivelmente. Ser falso um deles?

    De fato, no prprio momento em que RATZEL parecia preocupado, antes de mais,em definir a influncia dessas condies geogrficas sobre os destinos, e particularmentesobre a histria dos homens, esforava-se afinal, rico e seguro dos seus conhecimentosinfinitamente variados, por mostrar no homem um dos mais poderosos fatores dageografia: quer dizer, procurava fundar, criar realmente a geografia humana. A obra doprofessor de Leipsig no das que se deixam encerrar numa frmula nica. DURKHEIM

    assim o viu e referiu. Na Antropogeografiade RATZEL h trs espcies de questesdiferentes escreve Durkheim nessa referncia crtica a que frequentemente temosaludido(). Em primeiro lugar, RATZEL preocupa-se em estabelecer, com o auxilio demapas - e, neste aspecto, fiel s diretrizes de Humboldt, que em 1836 orientava a

    publicao do Atlas fsicode BERGHAUS , qual a forma como os homens se encontramdistribudos e agrupados sobre a Terra. Em seguida procura explicar essa distribuio,essa repartio, enquanto resultante dos incessantes movimentos de toda a natureza eorigem que se sucederam no decurso da histria. Finalmente e s finalmente ,entende dever estudar os diversos efeitos que o meio fsico pode produzir nos indivduos

    e, por seu intermdio, no conjunto da sociedade. Ora esta ltima ordem de problemas muito diferente das duas outras; alis, no seu livro, ocupa somente uma parte restrita;

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    quase s os dois ltimos captulos lhe so particularmente consagrados; segundo aconfisso do prprio autor, estas questes esto somente no limiar da antropogeografia)

    (2 . Por nossa conta, acrescentaremos que esta terceira parte da Antropogeografia,dominada por preconceitos de ordem pessoal, polticos ou outros. no certamente amais fecunda. E no menos verdade que s sobre essa parte, ou quase s sobre ela,

    que incide a critica de DURKHEIM e que, apontada antecipadamente ateno do leitor

    pelo subttulo do primeiro volume: Princpios da aplicao da geografia histria) , elaparecia atrair e provocar essa censura geral de ambio que, atravs de RATZEL,DURKHEIM havia de dirigir a toda a jovem geografia.

    Estaria um pouco fora do nosso tema presente averiguar como que Ratzel se pdeexpor, plena e conscientemente, a tais criticas. Investigador com uma formao decincias naturais, tinha mais que qualquer outro essa idia mestra da unidade terrestre,cuja concepo, em 160, por BERNARD VARENIUS bastou para que este seja hojesaudado como o verdadeiro fundador da geografia cientfica. Gegrafo, no decurso dasua vida e em todo o desenvolvimento da sua obra procurou manter a geografia humanaem contato estreito, em permanente solidariedade com a geografia fsica. Qual a razopor que RATZEL parece desviar-se assim da sua habitual prudncia, perder de vista os

    prprios princpios da sua investigao e dar apoio a esses ambiciosos, que de bomgrado sonhariam com uma filosofia da geografia, tal como outros, em tempos passados,j tinham concebido uma filosofia da histria, ou ento a esses outros espritosresignados que colocam a geografia no nvel de uma humilde serva, ou, como se disse(5),

    como gata borralheira da histria . Se verdade e que no primeiro volume da

    Antropogeografiaa idia central sofre grandes eclipses ; se verdade que a dialtica deRatzel no tem receio das mais flagrantes contradies: ter interesse explicar tudo pormeio destes enfraquecimentos de doutrina? No pensamos que assim seja. Na nossaopinio, o erro de RATZEL foi ter aceitado com demasiada facilidade certos problemas naprpria forma como eram postos pela tradio. O seu vcio foi o de no pensar em revercom seriedade os seus termos e o seu enunciado. Ele e os seus discpulos, assim como os

    gegrafos de outras escolas, na medida em que merecem e justificam as crticas acimareproduzidas, so talvez, e antes de mais, somente vtimas: vtimas de circunstncias deordem cronolgica independentes da sua vontade; mais claramente, vitimas da histria.

    IV - A GEOGRAFIA HUMANA, HERDEIRA DA HISTRIACertamente que, se hoje est em vias de constituio uma geografia humana, seria

    erro grosseiro reivindicar para os historiadores a sua paternidade. Na verdade, na suagnese, desempenharam papel de primeiro plano, por um lado, os homens de cincia naturalistas e viajantes e, por outro, os polticos. No menos verdade que, numapoca decisiva, e em virtude da prpria carncia de uma cincia geogrfica organizada,foram os historiadores, como- acima o indicamos, que tiveram de tomar, e tomaram,dessas iniciativas voltadas para o futuro.

    No tempo de Michelet, e at no tempo de DUBUY, gegrafos s alguns sbiossedentrios, grandes amadores de viagens em torno da sua biblioteca e que praticavam

    conscienciosamente aquilo que BERS0T, no dizer de Vidal de La Blache , designava como

    "geografia difcil, a dos textos". Quanto geografia "fcil" reduzia-se, no fim de contas, snomenclaturas. Era um conhecimento de utilidade prtica, desprovido de qualquersubstncia e de qualquer interesse. Nada havia nos trabalhos dos seus adeptos nem,de resto, nas memrias dos continuadores de D'Anville que pudesse fornecer aoshistoriadores a noo precisa da finalidade, do mtodo, do alcance exato de uma cinciageogrfica que no se confundisse com uma descrio.

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    Mas, por outro lado, quando MICHELET proclamava, no seu prefcio de 1869, a

    necessidade de fazer assentar a histria, antes de mais, sobre a terra , que era ainda ahistria? Que era efetivamente a histria, apesar dos esforos do prprio M1CHELET paralhe alargar, enriquecer, modificar a concepo tradicional? Esboar o passado da Franaconsistia sempre em expor, num duplo quadro, a longa luta dos reis, no interior, paraestabelecer um regime de centralizao monrquica e de absolutismo e, no exterior, oseu longo esforo para agrupar pouco a pouco as provncias volta do (domnio real eacabar por preencher com territrio francs o quadro predeterminado: esse privilegiadocompartimento da Europa delimitado por fronteiras naturais. Longa luta poltica; longo

    esforo poltico;a histria continuava a ser, acima de tudo, uma disciplina poltica. E seMichelet, que tudo pressentiu e adivinhou, no de forma alguma suspeito de lhe terlimitado arbitrria- mente a concepo; se pretendia, como gostava de afirmar, aressurreio da vida integral do passado, do solo e dos homens, do povo e dos chefes,dos acontecimentos, das instituies, das crenas; se sentiu como uma necessidade quea histria poltica seja esclarecida pela histria interior, a da filosofia e da religio, dodireito e da literatura aqui tambm s pde pressentir, adivinhar, desejar, pois, naverdade, a histria econmica e a histria social no se improvisam.

    Histria poltica, geografia poltica: a segunda, tal como o registram quase todos osdicionrios dos meados do sculo, no era mais do que (um ramo da primeira; por vezesacrescentava-se: e da estatstica. A forma dos Estados, a sua extenso espacial, asvariaes desta forma e desta extensopor desmembramento ou acrscimo, eis o queo historiador pedia ao gegrafo que lhe apresentasse e o ajudasse a compreender.Naturalmente que, nas suas investigaes, partia sempre do mapa poltico do globo, tal

    como sculos de histria e 3 5 sucessivas geraes dos homens o tinham elaborado. Parao gegrafo tratava-se, no de o explicar, mas de o justificar. Efetivamente, presidia ssuas investigaes um ingnuo finalismo, assim como a idia, mais ou menos consciente,de que uma espcie de necessidade prvia impunha aos Estados a forma que tinham...

    Assim, no quadro tradicional das cinco panes do mundo inscreviam-se comnormalidade remos e repblicas. Compartimentos estanques, rgidos e providencialmente

    pr-formados, feitos para os receber e bem dotados de fronteiras naturais, recebiam-nos na realidade. De resto, notemos que as primeiras tentativas daqueles que, no inicio

    do sculo, se esforaram por instaurar, com o nome de ge ografia com parada,umadisciplina mais verdadeiramente cientifica no eram de molde a desviar os historiadoresdas suas concepes.

    Quando KARL RITTER procurava pr as formas geogrficas em contraste umas comas outras, fazia-o com os continentes, as velhas partes do mundo, essas criaes da

    mais antiga histria que ele enfrentava . Via complacentemente nos continentes outrostantos (indivduos terrestres. E frica macia, de civilizaes rudimentares, opunha elea Europa recortada, precoce e requintada, velho tema tantas vezes retomado desdeento; tomava-se o todo, como se a Europa. a sia, a frica, a Amrica, unidadesdesconhecidas dos modernos gelogos. botnicos ou zologos, tivessem sido, naverdade, outra coisa mais do que colees de fragmentos heterogneos agregadosdspares de peas e bocados.

    De pura forma parecer esta questo das divises. Mas, na realidade, primordial.Ela entra em relao, como j foi excelentemente demonstrado, com a prpria concepoque se faz da geografia e preciso reler, a este respeito, o notvel artigo de Vidal deLa Blache As divises fundamentais do solo francs, publicado em 1888 numa revistapedaggica e mais tarde reproduzido, a guisa de introduo, no incio de um manual de

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    ensino secundrio . Mas no tempo de Ratzel , e mesmo mais tarde, ningum se apercebiado problema.

    Foi em vo que, a partir do final do sculo XVIII, um Gettard, um MONNET, umGiraud-Soulavir entreviram a preciosa noo de regio natural: Gallois, no seu livrodecisivo, estabelece-a de uma forma incontestvel. Foi em vo que, mais tarde, umCOQUEBERT de MONTBRET, um Omalius d'Hallot procuraram dividir as regies"combinando a natureza e o esprito do terreno com as posies geogrficas"; foi em vomesmo que Caumont, Antoine Passy, Dufrenoy e Elie de Beaumont (estes ltimos em

    1841, na sua clebre Explication de la carte gologique)proclamaram, com singularaudcia e previso, a ligao da geografia tsica com a geografia propriamente dita, porum lado, e da geografia com a geologia, por outro, e justificaram a absoluta necessidadepara o gegrafo de tomar como objeto de estudo as verdadeiras regies naturais:conceitos de gelogos, que os gegrafos do tempo de forma alguma pareciam entender.

    A todos parecia mais simples instalarem-se maneira de bernardos-eremitas nas velhas conchas da histria poltica e administrativa. Depois de terem descrito aFrana nas suas provncias, dissecaram-na nos seus departamentos. E mesmo quando seesforavam por ir buscar natureza algum princpio de diviso mais racional, a idiapuramente poltica de uma fronteira linear, de uma linha rgida de demarcao, absorvia

    as suas preocupaes. J no princpio deste sculo o redator geogrfico de Statistique

    genrale et particulire de la France,escrevia o seguinte: Consideramos a Frana dividida

    em dez partes principais, a que se deu o nome de regies. Este mtodo pareceu-nostanto mais vantajoso quanto independente de todas as divises que a poltica ou a

    administrao poderiam considerar teis . Muito bem; mas acrescenta logo a seguir:Cada uma destas dez regies composta de um nmero de departamentos pouco maisou menos igual>>.

    De resto, para que remontar to atrs? No vimos ns ainda os discpulos atrasadosde Buache repartirem tambm, melhor ou pior, os departamentos pelo leito de Procustadas bacias fluviais, rigorosamente rodeadas pelas "linhas de diviso das guas", essascadeias montanhosas que, nos mapas, atravessavam os (pntanos do Pripet ou corriamalegremente de uma ponta outra da Europa, desde o cabo Vaigatz at ao caboTarifa>>?

    Historiadores ou gegrafos: tanto nuns como noutros, a mesma preocupaoexclusiva das formas, no seu sentido mais superficial, no sentido grfico do termo naquele sentido que, na mesma poca, lhe era dado por um INGRE5, nas suascontrovrsias estticas com um DeLACR0IX , mas nem a histria nem a geografiatinham ento os seus DeLACROIX.

    Falava-se das relaes entre o solo e a histria. O solo era, por assim dizer, o solovazio, o solo puro, o solo independente da sua cobertura viva de animais, plantas,rvores, seres humanos. Era o solo-cho, o solo-suporte, o solo, grande tecido rgido no

    qual os Estados tinham talhado os seus domnios. E segundo que contornos? Eis aquiloque se estudava, o nico fato que preocupava os investigadores.

    V - AS SOBREVIVNCIAS DO PASSADO: VELHOS PROBLEMAS, VELHOS PRECONCEITO

    Como parece, estaremos ns muito longe, quer de RATZEL , quer do debate entre amorfologia social e a geografia humana e, afinal, do prprio objeto deste livro? No opensamos.

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    Por certo, as nossas concepes de histria e de geografia esto hoje muitomodificadas.

    J no nos esforamos pacientemente por reconstituir somente a armadura poltica,jurdica e constitucional dos povos antigos ou as suas vicissitudes militares oudiplomticas. E toda a sua vida, toda a sua civilizao material e moral, toda a evoluodas suas cincias, das suas artes, das suas religies, das suas tcnicas, das suas trocas,das suas classes e dos seus agrupamentos sociais. Bastar encarar a histria da

    agricultura e das classes rurais, nos seus esforos de adaptao ao solo, no seu longotrabalho descontnuo de desbravamento, de abatimento de florestas, de drenagens, depovoamento: quantos problemas no levanta cuja soluo depende, em parte, de estudosgeogrficos? Alargamento da histria, desenvolvimento da geografia: combinem-se osefeitos desta dupla revoluo, tal como aqui indicamos; e compreender-se- que o velhoproblema das relaes do solo e da histria j se no pode pr para ns como se punhapara os homens de 1830 ou de 1860.

    Assim se compreender mas nem todos o compreenderam to depressa nem tocompletamente quanto seria necessrio. A tal ponto o homem um ser de tradies!

    Quando, pouco a pouco a geografia humana se criava e organizava como cincia, oshistoriadores puderam pensar em solicitar colaborao aos representantes da novacincia, que, interpelados diretamente sobre questes, ao que parecia, de ordemgeogrfica por homens de quem muitas vezes sofriam o prestgio, no se deramimediatamente conta de que corriam o risco, ao desertar do seu domnio prprio, de sedeixarem conduzir como refns ou como prisioneiros para um terreno que no tinhamescolhido e que no era o seu. O erro tem explicao, mas era pesado.

    Com efeito, onde no h plena iniciativa para o sbio no h cincia. No se fazuma cincia respondendo simplesmente a um questionrio formulado do exterior, emnome e no interesse estrito de uma outra cincia. Colaborar assiduamente no

    iriterm d iaire d es cherche urs e I de s cu rieux ,responder a, em conscincia, s perguntasde outrem, no constituir uma cincia. Os historiadores podem vontade perguntar,em seu nome pessoal e sob a sua responsabilidade qual foi o papel das condiesgeogrficas no desenvolvimento deste ou daquele povo, supondo antecipadamente essas

    condies como dadas de uma vez para sempre e formando uma espcie de bloco deefeitos, permanentes e sempre semelhantes: os gegrafos no deviam, no deveriam terlimitado as suas ambies a satisfazer ingenuamente semelhantes curiosidades. E comose pode pretender que no o fizeram?

    Fizemos atrs referncia confuso, inicialmente to vulgar e, alis, to natural,entre as divises polticas e as divises propriamente geogrficas. Mas acaso noconsiderava um gegrafo, ainda h pouco, como quadro de um estudo de geografiafsica e de civilizaes indgenas (era o subttulo da obra), os limites polticos, ou, antes,administrativos, de um fragmento de uma seo de colnia francesa, sem qualquerpreocupao em procurar. para sua delimitao e caracterizao, o que poderia haver deregies naturais>> no vasto territrio que assim se submetia observao?

    J fizemos tambm referncia ao preconceito grfico, se assim se pode dizer, deum Ritter quando compara contornos sem se preocupar nada com a sua gnese, damesma forma que, em etnografia, se falaria dum negro ou, em botnica, de umapalmeira. Mas nos nossos dias, e regularmente ainda h pouco tempo um gegrafochamava a ateno para o processo e o denunciava, no vimos ns comparar entre siregies to diferentes como, por exemplo, a Itlia e a Coria ? Encantado da vida, oamador de formas segue nos mapas de pequena escala, nos Atlas escolares, oscontornos dessas duas pennsulas; v-as, descreve-as como igualmente alongadas,orientadas de modo semelhante, cortadas da mesma forma por uma cadeia demontanhas, e, para completar o paralelo, compara, pela sua posio, Seul e Roma, osdois centros polticos.

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    Havamos feito, para terminar, referncia ao preconceito de predestinao. Masquantos livros no h ainda em Frana, Inglaterra, Itlia, Espanha onde se descrevemestes pases como outros tantos seres geogrficos. onde se faz salientar a suahomogeneidade verdadeiramente providencial, enquanto a Lorena, Borgonha, Franco-Condado, Provena representam, por sua vez, regies naturais, quadros fabricados portoda a eternidade para alojar as provncias? Como se ns no devssemos examinar coma mais minuciosa ateno crtica a lista dos prprios pases, essas unidades de base,velhssimas unidades terrestres, designadas, por vezes, por remotssimos nomes!

    Assim se perpetuam velhos preconceitos. Assim se continuam a formular, na formatradicional, problemas que o tempo renova sempre. E precisamente o erro de Ratzel na

    medida em que h erro reside a. O autor da Antropogeografiano se libertouinteiramente de uma tradio bastarda; ou, mais exatamente, depois de lhe ter dado, naparte mais fecunda e propriamente geogrfica da sua obra, o golpe mais importante, noa soube repelir por completo.

    H na Antropogeografiadizia Durkheim trs ordens distintas de questes aterceira das quais muito diferente das duas primeiras. Isto exato, e a prpriaobservao, a verificao desta diferena, talvez pudesse ter levado o seu autor a umalonga reflexo. Da mesma forma, Vidal de La Blache, ao estudar o lugar do homem nageografia, diz que (estudar no homem um dos poderosos agentes que trabalham namodificao das superfcies uma questo propriamente, puramente geogrfica,questo essa, acrescentaremos ns, que, como precursor, BUFFON viu com clareza e poscom grande vigor. Outra questo completamente diferente saber que influnciaexerceram as condies geogrficas sobre os destinos humanos, e particularmente sobrea sua histria. No dizer de RATZEL, era procurar os princpios da aplicao da geografia histria. Num e noutro lado a distino a mesma. O erro do professor de Leipsig foibem o de no ter escolhido entre as duas questes de as ter recolhido, examinado eapresentado ao mesmo tempo no seu livro.

    E receamos bem que no suceda assim s na Antropogeografia,mas talvez mesmo

    na Politische Geographie.No este, evidentemente, o lugar prprio para renovar umacrtica muitas vezes feita e bem feita s idias ramalhudas e por vezescontraditrias de Ratzel sobre o papel predominante que na vida dos organismospolticos representaria o espao puro, o espao tomado em si mesmo eindependentemente dos caracteres geogrficos que ns julgvamos serem inseparveisdesses mesmos organismos. Mas se RATZEL elaborou esta teoria, a tal ponto criticvelque ele mesmo, no seu prprio livro, por outra via, a destruiu, fe-lo levado por uma idiapoltica; que se lhe impunha uma concepo tradicional; que, abrangendo numa visoglobal todos os Estados dispersos superfcie do globo, reduzia-lhes a sua vida mltipla,rica e variada a uma nica manifestao; ao desejo, esperana, permanente avidez deextensotermo cientfico para designar simplesmente a ambio conquistadora, essesinal essencial, segundo RATZEL, esse critrio infalvel da vitalidade e grandeza dosEstados. Mas quem no reconhece aqui, apesar de uma transposio sbia e muito

    filosfica, a velha atitude que h pouco caracterizamos, a preocupao predominante esimplista das formas exteriores, dos limites graficamente definidos, dos a docilidade, numa palavra, s sugestes da histria poltica e territorial?

    Ao fazer referncia a um livro de ARNOLO GUY0T, J.J.Ampere escrevia que GUYOTtentou explicar a histria pela geografia. Vigorosamente, VIDAL DE LA BLACHE, que cita afrase, declara que essa pretenso, se fosse desenvolvida, no seria mais razovel do quea de dispensar a geografia na explicao da histria. Nada mais exato. Fatos histricos efatos geogrficos so hoje, para ns, duas ordens distintas de fatos. impossvel, absurdo querer intercalar uns na srie dos outros, como outros tantos elos de anis

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    intermutveis. H dois encadeamentos; que permaneam separados; porque, decontrrio, que necessidade h de os distinguir?

    Apreender e revelar, em cada momento da sucesso, as complexas relaes que oshomens, autores e criadores da histria, mantm com a natureza orgnica e inorgnica,com os mltiplos fatores do meio fsico e biolgico. o papel caracterstico do gegrafoquando se aplica aos problemas e s investigaes humanas; vamos tentar mostr-lo deurna forma mais ampla. E mesmo essa a tarefa do gegrafo. S ter outras por usurpao

    e capitulao. No incio, em plenos meados do sculo, os historiadores no viam comnitidez que assim era. E onde o poderiam ter apercebido? A geografia que s existiacomo cincia descritiva, como nomenclatura punham somente questes no exclusivointeresse dos seus trabalhos. E eles mesmos respondiam, a maior parte das vezes, comohistoriadores: alis, os gegrafos do seu tempo no teriam respondido de outra forma.Mas quando hoje h gegrafos que, esquecidos dos progressos realizados pelo seuprprio esforo, se demoram ainda em semelhantes problemas, sempre postos demaneira tradicional e quando h socilogos (com reserva de algumas restries edelimitaes "razoveis") que se tornam, no fundo, pura e simplesmente candidatos suasucesso , , sem dvida, fcil de apreender simultnea- mente a origem e o vcio desemelhante situao. Assim como claramente se v que o debate sobre o mtodo e aprpria historizao dos fatos tem mais valor do que uma simples curiosidade.

    VIUMA GEOGRAFIA HUMANA MODESTADe fato, da mesma forma que a nossa histria contempornea j no caminha na

    pegada de AUGU5TIN THIERRY, a geografia do nosso tempo tambm j no a daRestaurao de 1815. Qual a sua tarefa e como que a concebe? E como a concebemaqueles nossos gegrafos que j no calam vontade pela forma ratzeliana e que, tendochegado, a pouco e pouco (anteriormente no sem tateamentos: j tivemos ocasio de oreferir, alis), a uma concepo slida de geografia, do seu fim e dos seus mtodos noso susceptveis de embriaguez metafsica? Indicar rpidamente a sua concepo degeografia ser atacando o problema nos seus prprios fundamentos o melhor meiode por a claro a acusao de ambio que tentamos discutir.

    Em 1913 quer dizer, no fim da sua vida e numa poca em que estava em plenaposse do seu mtodo o chefe da escola geogrfica francesa, Vidal de La Blache , escreviaque a geografia, inspirando-se, tal como as outras cincias vizinhas (ou seja, notmo-lobem, tal como tas outras cincias naturais)), na idia da unidade terrestre, tem pormisso especial investigar como que as leis fsicas e biolgicas que regem o mundo secombinam e se modificam ao aplicarem-se s diversas partes da superfcie do globo. Elatem por tarefa especial estudar as expresses mutveis que a fisionomia da Terra toma,conforme os lugares).

    A definio teria seduzido ALEXANDRE DE HUMBOLOT, fundador da geografia

    botnica , sempre to preocupado, nas suas viagens e nos seus escritos, com a anlise

    das paisagens. E bem sabido como Vidal de La Blache era pessoalmente excelente nessaanlise e tambm como tinha meditado longamente a obra de Humboldt, tal como a deRITTER. Notvel coincidncia: lia-se, na mesma data, numa tese geogrfica interessante eoriginal, a afirmao seguinte: De bom grado diramos que na anlise da paisagem esttoda a geografia>>; e mais adiante: > . Frmulas interessantes, embora se lhes possam pralgumas reservas; mas acaso no excluiro, no poro fora do domnio geogrfico todo oconjunto de problemas que o ligam ao homem e s sociedades humanas? De modonenhum, e o prprio gegrafo de quem acabamos de citar duas frases reveladoras dainfluncia de um geobotanista Ch. FLAHAULT faz uma confisso implcita:

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    outros meios de conhecimento: exame de estatsticas, anlise histrica da evoluo dosagrupamentos humanos, segundo os documentos de arquivos, servem somente paraprecisar, para completar, para retificar as idias que extramos do estudo direto danatureza. Evoluo dos agrupamentos humanos segundo os documentos de arquivos?Mas que vm fazer os arquivos na paisagem? E que o homem, pelo mesmo ttulo que arvore e ainda melhor, e ainda mais, e de outra forma, um dos fatores essenciais dapaisagem.

    O homem um agente geogrfico, e no o menos importante. Contribui pararevestir, conforme os lugares, a fisionomia da Terra com essas expresses mutveisque a geografia (tem por tarefa especial estudar. Desde h sculos e sculos, pelo seulabor acumulado, pela audcia e deciso das suas iniciativas, -o homem apresenta-se-noscomo um dos mais poderosos artfices da modificao das superfcies terrestres. No hfora que no utilize, que no submeta sua vontade; no h regio, como se tem dito,que no apresente os estigmas da sua interveno. Atua sobre o solo isoladamente; atuamais ainda coletivamente por intermdio de todos os seus agrupamentos, dos maisrestritos aos mais vastos, desde os agrupamentos familiares aos polticos. E tal ao dohomem sobre o meio precisamente o que de humano entra no mbito da geografia.

    A geografia , repete incisivamente Vidal de La Blache no artigo que citamos

    anteriormente, (a cincia dos lugares, e no a cincia dos homens . Anlises histricas daevoluo dos agrupamentos humanos segundo os documentos de arquivos... Sim, ogegrafo deve recorrer a tais anlises, a tais documentos; mas aquilo que lhes deve pedirno que o informem sobre o papel do solo nessa evoluo, nem sobre a influncia queas condies geogrficas puderam ter exercido no decurso dos tempos sobre os destinose sobre a prpria histria dos povos; deve procurar ser por eles ajudado a determinarqual a ao que os povos, os agrupamentos, as sociedades dos homens puderam exercere exerceram de fato sobre o meio. (Para explicar os fenmenos geogrficos de que ohomem foi testemunha ou artfice necessrio estudar a sua evoluo no passado, com a

    ajuda da documentao dos arquivos. A declarao de A. Demangeon . V-se que,tambm ele, para tomar a sua perspectiva no abandona o terreno geogrfico.

    "A geografia", continua Vidal de La Blache , interessa-se pelos acontecimentos dahistria na medida em que estes pem em ao e revelam, nas regies em que seproduzem, propriedades, virtualidades que, sem eles, teriam ficado latentes. Definiontida, estrita e egoistamente - geogrfica, como se v. E desta vez o ponto de vista perfeitamente claro. A geografia a cincia dos lugares, no a dos homens>>. Eis aqui,na verdade, a tbua de salvao.

    Retomemos agora a crticas que acima expusemos. Depois destes comentrios teroainda algum alcance? Evidentemente que no.

    Certamente que j o verificamos: quem estuda a ao das condies geogrficassobre a estrutura dos grupos sociais corre o risco de se perder ao atribuir valorprimordial, e no s decisivo, mas nico, a essas condies geogrficas. Corre o risco dever a a causa de certa estrutura social cuja ubiqidade parece ignorar. Mas quem alteraos termos da questo e pe o problema de saber, no j qual a ao dos grupos sociaissobre o meio geogrfico, mas antes, com mais escrpulo e preciso a geografia acincia dos lugares , quais os traos de uma dada paisagem, de um dado conjuntogeogrfico diretamente determinado ou historicamente reconstitudo, que se explicam oupodem explicar-se pela ao continua, positiva ou negativa, de um certo grupo ou deuma certa forma de organizao social; quem, por exemplo; ao verificar antigamente aextenso antinatural de certas culturas em regies que parecem exclu-las, relaciona estefato com o regime de isolamento, em que todos os grupos humanos procuram, acima detudo, bastar-se a si prprios, sem nada comprar a outros: se acaso for prudente, nocorre o risco de erro, confuso ou generalizao abusiva. Digo eu: se for prudente; mais

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    valeria dizer: se no for exclusivista. Na verdade, na regio de Morvan, a vinha que erato corrente na Idade Mdia que uma comuna do canto de Toulon-sur Arrouz, Sanvignes

    (Sint linea,como diz um manuscrito do sculo xiv), ia buscar o nome sua total, radical,absoluta e quase nica incapacidade em alimentar esta planta quente resulta bem de

    um regime de isolamento, tal como sucede na Normandia ou na Flandres ; mas necessrio ainda destacar, quando se fala em tal, a influncia exercida sobre esta cultura

    paradoxal pelo hbito de misturar mel, canela e coentros com o vinho, o que otransformava numa mzinha e enfraquecia a rudeza nativa dos mais ingratos sumos deuva.

    \\// 0 0

    ------------------o00o ( ) o00o -----------------

    Na realidade, quando se pretende encarar a geografia do ponto de vista do homem e entenda-se que se trata apenas de um entre muitos outros pontos de vista , aquilo

    que ela estuda, aquilo que nos d a conhecer o meio- em que se desenrola a vidahumana. Em primeiro lugar descreve o; em seguida analisa-o; posteriormente tenta

    explic-lo com a permanente preocupao das repercusses e interferncias. O prpriohomem, mediante as suas obras, alcanado pela geografia: obras de destruio e decriao, obras pessoais, obras indiretas. E alcana-o precisamente na medida em que ohomem atua sobre o meio, em que lhe imprime a sua marca em que o modificaadaptando-se-lhe.

    A geografia no diz, no deve dizer: (A casa do homem explica-se pelo solo).Verifica, deve simplesmente verificar: (Esta casa, construo ora humilde, ora orgulhosa ecomplicada, de uma feio simultaneamente inovadora e tradicionalista, que escapa,como tal, ao do gegrafo, pertence, no obstante, paisagem, depende do meio -geogrfico e adapta-se-lhe atravs de tais ou tais elementos, disposies, caracteressecundrios ou fundamentais: e por isso, mas somente por isso, a casa est no campodas minhas atribuies.

    Da mesma forma, a geografia no diz, no deve dizer:

  • 8/7/2019 Morfologia Social ou Geografia Humana_Lucien Febvre

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    efetua etologia coletiva, e no geografia. Sem dvida que maneja noes geogrficas,mas maneja-as como etlogo e para fins no geogrficos.

    E, do mesmo modo, o socilogo que apenas concebe as sociedades como grupos dehomens organizados em determinados pontos do globo, e no comete o erro de osconsiderar como se fossem independentes da sua base territorial, tem inteira liberdadepara investigar em que medida a configurao do solo, a sua riqueza mineral, a fauna e aflora afetam a sua organizao. Tambm o socilogo poder manejar noes geogrficas,

    que ir colher, inteiramente elaboradas, aos livros dos gegrafos; mas utiliz-las- comomorfologista e para fins que no sero geogrficos.Por outras palavras, a morfologia social no pode pretender suprimir, em seu

    benefcio, a geografia humana, porque as duas disciplinas no tm nem o mesmomtodo, nem a mesma tendncia, nem o mesmo objeto.

    Captulo 1 d o livro "A Terra e a Evoluo Hum ana", Ed. Co sm os , Lisbo a, 19 55