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MORFOLOGIA E UNIDADE URBANA NO CENTRO DE SÃO PAULO Rafael Giácomo Pupim Tiago Seneme Franco São Paulo é uma metrópole que, dadas suas dimensões, não é - tampouco se espera - unitária e coesa em sua morfologia. E este não é um cenário próprio paulistano, mas sim comum às metrópoles contemporâneas nas quais uma imagem-síntese muito dificilmente revela-se contentora das qualidades que formam a cidade, e em que a experiência do lugar – aquela do espaço vivenciado e apropriado – se expressa sempre de maneira fragmentada e descontínua. Assim, pensar em unidade formal em termos metropolitanos é um contrassenso, e de modo algum se aproxima do escopo do presente ensaio. Tem-se claro que, se o paradigma da continuidade embasou toda a retórica urbana moderna, é a figura do fragmento que permeia o discurso contemporâneo, e solicita horizontes mais complexos de interpretações. Com base nestas apreensões, cabe ressaltar dois reforçadores. O primeiro é a força de descontinuidade adquirida no quadro paulistano pelo fato de seu território se desenvolver por variáveis topográficas díspares e sua composição socioeconômica não fugir dos profundos contrastes que compõem as demais cidades brasileiras e suas correspondentes nos demais países em desenvolvimento. O segundo é o fato de que em São Paulo uma imagem mais ampla jamais alcançou uma unidade compositiva de maneira ostensiva, como no caso das cidades emblemáticas do marketing urbano em que uma overview ou um skyline dão conta desta missão. Trazer à luz o tema da morfologia urbana em São Paulo, portanto, não é pleitear a coesão e a continuidade de uma forma totalizante, mas sim avançar no entendimento de algumas das suas componentes formais de modo a colaborar para a imperativa necessidade de desenhar a arquitetura atrelada à cidade, tarefa esta que traz à tona a validade dos princípios da unidade urbana e do exercício compositivo advindos de uma profunda reflexão sobre o conjunto edificado com base no entendimento específico do lugar. Unidade urbana A esperada multiplicidade de linguagens das metrópoles, que poderia induzir a uma ideia de riqueza espacial, é pouco profícua em São Paulo, revela-se incipiente e raramente chega a alinhavar um discurso de lugar por meio da diversidade. Além disso, poucos são os

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MORFOLOGIA E UNIDADE URBANA NO CENTRO DE SÃO PAULO

Rafael Giácomo Pupim

Tiago Seneme Franco

São Paulo é uma metrópole que, dadas suas dimensões, não é - tampouco se espera -

unitária e coesa em sua morfologia. E este não é um cenário próprio paulistano, mas sim

comum às metrópoles contemporâneas nas quais uma imagem-síntese muito dificilmente

revela-se contentora das qualidades que formam a cidade, e em que a experiência do lugar –

aquela do espaço vivenciado e apropriado – se expressa sempre de maneira fragmentada e

descontínua. Assim, pensar em unidade formal em termos metropolitanos é um contrassenso,

e de modo algum se aproxima do escopo do presente ensaio. Tem-se claro que, se o

paradigma da continuidade embasou toda a retórica urbana moderna, é a figura do fragmento

que permeia o discurso contemporâneo, e solicita horizontes mais complexos de

interpretações.

Com base nestas apreensões, cabe ressaltar dois reforçadores. O primeiro é a força de

descontinuidade adquirida no quadro paulistano pelo fato de seu território se desenvolver por

variáveis topográficas díspares e sua composição socioeconômica não fugir dos profundos

contrastes que compõem as demais cidades brasileiras e suas correspondentes nos demais

países em desenvolvimento. O segundo é o fato de que em São Paulo uma imagem mais ampla

jamais alcançou uma unidade compositiva de maneira ostensiva, como no caso das cidades

emblemáticas do marketing urbano em que uma overview ou um skyline dão conta desta

missão. Trazer à luz o tema da morfologia urbana em São Paulo, portanto, não é pleitear a

coesão e a continuidade de uma forma totalizante, mas sim avançar no entendimento de

algumas das suas componentes formais de modo a colaborar para a imperativa necessidade de

desenhar a arquitetura atrelada à cidade, tarefa esta que traz à tona a validade dos princípios

da unidade urbana e do exercício compositivo advindos de uma profunda reflexão sobre o

conjunto edificado com base no entendimento específico do lugar.

Unidade urbana

A esperada multiplicidade de linguagens das metrópoles, que poderia induzir a uma

ideia de riqueza espacial, é pouco profícua em São Paulo, revela-se incipiente e raramente

chega a alinhavar um discurso de lugar por meio da diversidade. Além disso, poucos são os

bairros ou localidades que em escala reduzida conseguem promover alguma noção de

conjunto ou que tragam em seu desenho algum traço intencional, seja ele qual for. As

recorrentes reedições da cidade focadas nas áreas mais centrais e valorizadas, seguindo a

lógica da completa substituição do passado em prol da readequação formal a fim de

reproduzir o ideário de um dado período, nunca conseguiram alcançar uma abrangência

unificadora, e sua intenção fatiga em cenários mutilados. Ao passo que as regiões mais pobres

foram aleijadas por completo de intenção, cresceram sem qualquer diretriz ou planejamento.

O que resulta deste efeito é uma cidade que tem como principal característica um repertório

formal pouco variado mas que, ao contrário da estética clássica, não foi guiado pelo ideal da

unidade compositiva, para além disso, fez reforçar o traço latente de carência de desenho

urbano em grande parte da cidade.

Entretanto, ao validar a importância da unidade urbana, do exercício compositivo e do

discurso do lugar proveniente do diálogo entre arquitetura e cidade, toma força o olhar sobre

os focos de unidade expressos na cidade de São Paulo. Das poucas áreas da cidade que detêm

algum desenho propositivo ou alguma característica que permita uma leitura unitária, não

somente no que diz respeito às suas funções específicas ou caracteres sociais, mas, sobretudo

a condições morfológicas, tem-se os bairros jardim, implementados pela Companhia City na

primeira metade do século XX, alguns antigos distritos industriais localizados nas várzeas dos

rios Tamanduateí, Tietê e Pinheiros, e principalmente a região central da cidade.

Os bairros jardim paulistanos possibilitam um entendimento de unidade urbana

porque mantém as características propostas em seu plano até os dias atuais. Mas não é este

caráter de conservação o principal ponto na ideia de conjunto e sim as relações intencionais

entre os padrões edificados e os espaços não construídos no desenho do bairro: a ordem dos

distanciamentos entre as edificações, os gabaritos, a intencionalidade expressa no desenho

das vias e as suas conexões com os espaços livres envoltórios, a larga escala – diferencial na

cidade – da utilização do verde, fazem entender estes bairros como peculiares, típicos e,

portanto, dotados de identidade urbana. No cenário de contínua transformação do estoque

construído por que ainda passa São Paulo, os bairros jardim permanecem com seu aspecto

mais perene e são os que sofrem menos com a possibilidade de alteração de suas

características. Situação rara nesta cidade de urbanização ainda não consolidada que olha com

maus olhos um potencial construtivo não aproveitado. O fato é que alguns bairros jardim são

objetos de tombamento, e os demais conseguiram ao longo dos anos a manutenção de seus

rigorosos coeficientes urbanísticos, o que explica a manutenção dos seus valores espaciais

originais.

Os distritos industriais, por sua vez, seguiram direção oposta, seu rico patrimônio

edificado ficou à margem dos órgãos de preservação e em função de sua privilegiada

localização e vasto estoque de grandes lotes, promovido pelo acelerado processo de

esvaziamento funcional da atividade industrial na cidade de São Paulo nas últimas décadas,

sofrem com processo de descaracterização. Descaracterização porque é um percurso que não

contempla a relação dos tempos distintos que formaram o lugar e por isso apaga a história,

compromete a memória coletiva. A necessidade de renovação desses antigos bairros

industriais desculpou a banalidade arquitetônica e o descompromisso com o desenho urbano

que marca o laissez-faire do mercado imobiliário paulistano.

A dinâmica de ocupação do centro

A região central da cidade de São Paulo, tal como conhecemos hoje, é resultado do

acelerado crescimento experimentado pela cidade a partir do final do século XIX. A valorização

do solo urbano nesta região, somada à viabilidade técnica de se construir grandes edifícios e à

favorável condição econômica ora advinda do café, ora da indústria, promoveu uma ampla e

acelerada verticalização. Ainda que o ideário de cidade pretendido neste período estivesse

associado a uma nítida influência norte-americana, que almejava a alteração do status da

acanhada e provinciana capital do café, para uma metrópole moderna e industrial, tendo o

arranha céu como signo máximo e o automóvel como matriz de transporte primordial, o

traçado e as regulações edilícias desenharam um trecho de cidade moldada ao padrões

tradicionais europeus, sem recuos laterais, com edifícios junto ao alinhamento da calçada e

controle de gabaritos. Isto constituiu uma dinâmica especial de ocupação do solo que fez do

centro de São Paulo um depositário de arranjos arquitetônicos singulares para lidar ao mesmo

tempo com a inexorável definição do quarteirão, quando da locação do corpo edificado, e com

o contato imediato da edificação vizinha no mesmo plano de frente, quando da forçosa

continuidade das testeiras. Tal procedimento criou focos de coesão que a sedimentação

histórica e o destino majoritário dos investimentos fez reforçar.

Figura 01. Avenida São Luís.

Entretanto, apesar dessa coesão, a especulação imobiliária moveu investimentos para

outras áreas da cidade antes da ocupação completa do centro, o que deixou um grande

estoque de terrenos vagos. Invariavelmente, tais terrenos dialogam com os seus vizinhos que

foram edificados segundo normativas e práticas regulamentais não mais vigentes, o que gera

um hiato complexo em preencher. Assim, os vazios ocupacionais do centro constituem um

dilema que tem como principal causa o problema de se adotar uma implantação que respeita

o código de obras vigente, baseado em recuos e taxas abstratas e genéricas, quando a

dinâmica de ocupação característica induz uma espera de conexão edificada contígua.

A condição especial do centro de São Paulo de ainda hoje possuir uma reserva de área

e potencial construtivo que permite a possibilidade da convivência de um bom número de

novas edificações inseridas em um conjunto arquitetônico que moldou o surgimento da São

Paulo vertical e modernizada deflagra o cuidado e a complexidade em como proceder nas

intervenções que visam um enfoque contemporâneo, impossível de se desvincular do desenho

existente. O comprometimento de um dos poucos trechos da cidade que tem uma proposição

de desenho e composição de conjunto coloca-se no entendimento de tais vazios como

potenciais de alteração de forma: terrenos vagos, precariamente ocupados e demais

espaçamentos não construídos são clamados como espaços de conexão e, portanto, de

projeto.

Figura 02. Avenida São João

Figura 03. Avenida Rangel

Pestana

Vazios urbanos

A clássica correlação de dependência entre o espaço cheio e o vazio sempre

determinou o raciocínio morfológico dos lugares e, embora a compreensão do espaço vazio

tenha se alterado muito na contemporaneidade, principalmente pelo seu clamado papel

conector necessário na era da informação e comunicação, dos fluxos e da topologia das redes

e dos lugares, a validade deste mote analítico ainda se apresenta consistente. Se a cidade

virtual não fez abandonar a cidade concreta, o espaço construído e o não construído – o cheio

e o vazio – continuam a dar forma à cidade vivenciada por todos, e continuam a ser um

caminho profícuo para interpretá-la.

A principal carga semântica reconhecida nos vazios é a sua propriedade de oferecer

prontamente uma imagem, uma forma urbana geral e legível, baseada na contraposição

figura-fundo. Entretanto, para ir além, torna-se necessário compreender que alguns vazios são

despropositais à composição da forma urbana, não previstos, relegados e, por isso, ilegítimos.

Para o quadro urbano de interesse, são estes vazios ilegítimos decisivos.

Em sua maioria, os vazios são fruto da modernidade, que pontuou a necessidade útil e

salubre de projetar uma cidade aerada, de mobilidade eficaz e associada ao verde. Aos vazios

tradicionais da rua e da praça somaram-se os vazios de componente paisagístico e ambiental

(parques, jardins, alamedas arborizadas, mais rios e outros acidentes geográficos) e também o

vazio de componente infraestrutural, exposto principalmente nas redes de circulação

(estradas, pontes, linhas de trem, viadutos). Outros vazios, porém, são ilegítimos pela lógica

moderna: o juízo capitalista da valorização do solo urbano, que a modernidade não deu conta

de sucumbir, faz valer o vazio ocioso dos espaços de espera (o terreno vago) cujo descanso se

dá em razão de uma promessa de oportunidade potencial. E, por fim, uma outra modalidade

de vazio – neste caso o termo mais correto é espaçamento: o espaço de interdição, decorrente

de normas e regulamentos que impõem distâncias entre edificações, construções e

infraestruturas, resultado da vitória do zoning – instrumento geral e abstrato de controle do

uso, da ocupação do solo e dos caracteres edificados – sobre a complexa tarefa de manuseio

da cidade através do desenho urbano.

O potencial construtivo e a possibilidade de alteração de forma da cidade reside

fortemente no projeto desses dois últimos tipos de vazios. O terreno vago, ao mesmo tempo

deflagrado como junk space – espaço sem predicado ou pretexto aparente – mas também

como espaço estratégico de regeneração urbana, atesta o ocaso do discurso moderno de

repensar por completo a lógica do tecido urbano tradicional e sua estrutura de lotes visando à

dissolução do quarteirão e o domínio do bloco livre na paisagem. O espaçamento de interdição

configura-se enquanto um vácuo obrigatório, não por vocação, mas por imposição,

relacionada à ideia útil de deixar vazios higiênicos, de saneamento e de segurança. São figuras

residuais, na medida em que não contemplam o ideal moderno do espaço livre absoluto.

Inegavelmente moldam a forma da cidade, na maioria das vezes através de padrões cegos e

repetitivos, ou numa genericidade que não contempla o desenho local e os tempos diversos

envolvidos na constituição da arquitetura da cidade.

Olhar os vazios e terrenos precariamente aproveitados em São Paulo, principalmente

na região central, como potencial de alteração de forma significa contemplar no projeto a

dinâmica que organiza a tessitura urbana, a relação das formas e dos tempos envolvidos em tal

sedimentação o que significa, principalmente, não trair a condição primordial dos edifícios da

região central em sua implantação: para tal, é crucial lidar com a opacidade das regulações

abstratas.

Figura 04. Viaduto Martinho

Padro, início de novo

empreendimento.

A lição dos arquitetos modernos

O grupo arquitetos racionalistas que operava na capital paulista na primeira metade do

século XX, composto por nomes como Oswaldo Bratke e Rino Levi, aliados a um grande

número de imigrados da Europa como Giancarlo Palanti, Daniele Calabi, Lucjan Korngold, Franz

Heep, dentre outros, além de célebres arquitetos cariocas como Oscar Niemeyer, Álvaro Vital

Brasil e Abelardo de Souza, têm talvez, como maior contribuição para o quadro da arquitetura

moderna paulista, o fato de operarem o repertório moderno frente a implantações

tradicionais.

Figura 05. Edifício Esther, Av.

Ipiranga.

O Edifico Esther fig.05 (1936), ilustra com perfeição a tensão do ideário modernista

frente à cidade tradicional, seu desenho e suas normativas. A sutileza de sua implantação

reside no fato de que, para viabilizar um edifício com todas as faces liberadas, Álvaro Vital

Brasil lançou mão de uma nova via que divide o lote original em duas porções. Na primeira

porção, maior e que tem a Avenida Ipiranga como face principal, se localiza o Edifício Esther,

ocupando todo o lote resultante, e destacando-se da massa envoltória. No trecho

remanescente, foi implantado um outro edifício, o Arthur Nogueira, menor e de concepção

distinta, com o papel de definir a frontalidade para cidade que seguiria a partir dali. Tem-se,

portanto, um projeto que procura dar conta das demandas muito próprias do racionalismo,

mas que ao mesmo tempo tece conexões com uma cidade ainda ligada a valores clássicos.

Traços e preocupações similares são comumente encontrados em um sem número de

projetos do mesmo período, mesmo em obras icônicas e destacadas como o Edifício Itália fig.06

(1960-65), de Franz Heep, vemos a torre principal ladeada por alas mais baixas, separadas de

seu corpo, responsáveis pela mediação do entorno e o arranha-céu. Desta maneira o corpo

principal de volumetria bastante distinta do entorno ganha um resguardo que mitiga o

impacto das empenas cegas dos edifícios vizinhos, mais que isso, o contato entre estes

volumes menores responsáveis por tal mediação se da de maneira tão sutil que é difícil

identificar prontamente a

linha de divisa entre os

edifícios fig.07.

Figura 06. Edifício Itália, Av.

Ipiranga.

Figura 07. Edifício Itália, contato com a edificação vizinha.

Pelas mãos do mesmo arquiteto, no Edifício OESPfig.08 (1946-53) o exercício

compositivo vai além da organização dos volumes e demonstra o refinamento de desenho do

autor ao se utilizar da analogia tipológica quando mimetiza racionalmente – tal como o fará

Aldo Rossi – a forma curva que avança na fachada do edifício eclético vizinho, e o alinhamento

das alturas do edifício novo e do antigo faz surgir uma ideia de cornija que arremata o desenho

do quarteirão, num elemento de composição urbana, um gesto que conjuga escalas.

Figura 08. Edifício OESP, Rua

Martins Fontes.

A lição desses arquitetos modernos que concebiam o ideário racionalista segundo as

condicionantes do tecido tradicional travava-se através de um processo compositivo, típico da

geração que projeta a vanguarda, mas foi formada ainda no academicismo, o que confere um

tom valoroso para a manutenção do exercício do método da composição associada à sintaxe

independente do moderno. Traduzem, neste contexto, a adaptação da tarefa maior de uma

geração que projeta conjuntamente a célula e a cidade. Revigorada em seu procedimento, a

prática de operar a parte e o todo de maneira dialógica, conjunta, permanece como filão de

projeto urbano na contemporaneidade, embasado pelas teorias da complexidade, dos

sistemas e das redes, no escopo de trabalhar a continuidade heterogênea, superando a

continuidade homogênea moderna.

O quadro atual

Após anos de estagnação e abandono, tem-se atualmente um quadro muito positivo

de retomada de novos lançamentos imobiliários na região central da cidade. Cabe, contudo,

refletir sobre de que forma esta nova ocupação se dará, que desenho é pretendido e,

principalmente, como tecer o diálogo entre o edificado – impregnado por uma carga histórica,

simbólica e imagética muito forte – e o novo – capaz de trazer novas apropriações, leituras e

ressignificações, devolvendo sentido para trechos desconectados.

O que vemos por ora são empreendimentos descontextualizados, de desenho genérico

e empobrecido, que não refletem em sua forma a complexidade de seu peculiar entorno.

Parte deste fenômeno se deve a estreita visão dos incorporadores, que na proposição de

empreendimentos de pouco valor agregado não valorizam em absoluto o projeto

arquitetônico, entendido como um ato de consciência crítica e abrangente. A atual face do

mercado imobiliário paulistano se moldou durante um grande período de expansão periférica

e abertura de novas frentes, em localidades pouco consolidadas que, na contramão da lógica

do interesse coletivo, tiveram o investimento e planejamento público a reboque de sua

vontade. Com o esgotamento de novas frentes de expansão e o visível colapso de mobilidade

que atravessa a metrópole, o centro da cidade tornou-se uma alternativa atraente. Tem-se,

portanto, operando a delicada tarefa de se construir nos vazios deixados pela própria

especulação imobiliária, empreendedores pouco afeitos a trabalhar em áreas de complexidade

– morfológica e simbólica – como a apresentada no centro da cidade. Neste sentido é que

transpõem sem o menor pudor, réplicas de soluções propostas para realidades muito distintas

da experimentada no trecho em questão.

Ao mesmo tempo temos uma legislação pouco compreensiva, que não entende a

peculiaridade morfológica da região central, submetendo este setor da cidade e taxas e

regulações similares às adotadas no restante da urbe. Estas regulamentações abstratas fazem

agravar, pela manutenção, as características abrutalhadas da morfologia e da paisagem

paulistana: uma trama desconectada e a presença constante das empenas cegas como marca

indelével deste anacronismo.

A singularidade de São Paulo frente a outras metrópoles reside na potencialidade de

alteração de forma de seu centro através da implantação de projetos concebidos a luz das

discussões contemporâneas a relacionar-se com o patrimônio edificado. Entretanto, tal

potencialidade indica a necessidade de um cuidado especial, na medida em que a quantidade

e a dispersão desses espaçamentos ocasiona uma “rede” de vazios, de impacto perceptivo

menor quando da atual circunstancia de espera, mas que, uma vez preenchidos sem a

coerência do entendimento do seu caráter primordial, pode minar por completo o maior traço

formador da especial morfologia em questão.

i

Figura 09. Rua Major Sertório,

contrataste de implantações.

Figura 10. Rua Major Sertório

esquina Rua Bento Freitas.

i Todas as imagens contidas neste documento são de autoria de Tiago Seneme Franco.