moretzsohn sylvia imprensa criminologia

Upload: kikoserra

Post on 04-Apr-2018

222 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    1/38

    Imprensa e criminologia: O papel do jornalismo naspolticas de excluso social

    Sylvia MoretzsohnUniversidade Federal Fluminense

    ndice

    1 Introduo 1

    2 Definindo o campo da anlise 3

    3 Falando em nome de todos: a im-prensa como quarto poder 6

    4 Definindo o inimigo 8

    5 Disseminando o medo: a produo deondas de crime e outras estratgias 12

    6 Delimitando espaos: favela/periferiacomo locus do mal 15

    7 Apresentando o outro lado: o crimee a excluso como problema social 21

    8 Propondo solues: o social comocoisa simples 25

    9 Finalizando: melhorar ou mudar a im-prensa? 31

    10Bibliografia 36

    Tudo aquilo que rompe o ronron dessapolitologia flcida que serve [aos

    jornalistas] de instrumento de apreenso dasociedade tem todas as chances de ser

    percebido como uma agresso ou desimplesmente no ser percebido.

    Loc Wacquant

    1 Introduo

    A passagem do socilogo francs Loc Wac-quant pelo Brasil no incio de abril de 2001causou ao mesmo tempo esperana e frus-trao por parte dos que propem a crticaao sistema penal e ao neoliberalismo. Es-perana porque uma entrevista no site No(Notcia e Opinio) provocou o previsvel al-

    voroo nos vasos comunicantes de um sis-tema miditico que trabalha segundo essetipo de impulso, especialmente agora na erado tempo real (o que sai em um notici-rio imediatamente reproduzido em outros,ou no mnimo influencia a pauta dos de-mais). Frustrao porque as inmeras entre-vistas que se seguiram acabaram no sendopublicadas: naquela semana, apenas o Jor-nal do Brasil abriu espao para o questiona-mento do socilogo poltica de punio dospobres atravs do encarceramento crescente.Uma semana mais tarde, a Folha de S. Paulodedicava um quarto de pgina passagemde Wacquant pelo Rio, em matria editadaaps a sua partida, sem os devidos cuidadosde atualizao para o leitor desavisado, eracomo se o pesquisador ainda estivesse aqui.Mais de um ms depois, o Correio Brazili-ense publicava matria semelhante, no con-

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    2/38

    2 Sylvia Moretzsohn

    texto da discusso da privatizao das pri-ses.

    A pequena expresso, nos jornais, da vi-sita de algum que despertou inicialmentetanto interesse da imprensa poderia ser ex-plicada exatamente atravs de uma interpre-tao mais imediatista do trecho escolhidopara a epgrafe deste artigo: o discurso deWacquant vai contra aquele ronron que amdia sedimenta, portanto no serve, deveser descartado. Aparies fortuitas, como as

    que ocorreram, estariam a apenas como ex-cees a confirmar a regra.

    Se buscarmos um aprofundamento do sen-tido dessa mesma epgrafe, porm, podere-mos perceber algo mais importante e reve-lador, no apenas da orientao majoritriada grande imprensa em relao sua pautadiria (e ao enfoque da questo criminal, emparticular), mas principalmente das possibi-lidades (e dificuldades) de superao desse

    quadro, por parte dos setores sociais interes-sados em uma ao transformadora de cunhosocialista. Pois, se entendermos o ronroncomo o discurso cotidiano atravs do qual aimprensa procura sedimentar consensos, per-ceberemos a necessidade de formulao deum outro discurso com a mesma nfase nocotidiano, que assuma a tarefa de buscar umnovo senso comum, no sentido que origi-nalmente Gramsci e mais recentemente Boa-

    ventura de Sousa Santos formularam1

    .O cerne da questo foi exemplarmente ex-posto por Armand e Michle Mattelart emum de seus relatos sobre sua experincia du-

    1 Antonio Gramsci. Concepo dialtica da his-tria. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1977.Boaventura de Sousa Santos. Crtica da razo indo-lente contra o desperdcio da experincia. Para umnovo senso comum: a cincia, o direito e a poltica natransio paradigmtica. So Paulo, Cortez, 2000.

    rante o governo Allende, no Chile: lidar coma comunicao significa lidar com o cotidi-ano, e, para as pessoas, o cotidiano a vidanum regime capitalista2. Portanto no setrata simplesmente de utilizar as formas con-sagradas de sucesso popular e injetar-lhesum contedo crtico: seria preciso repen-sar o prprio processo de comunicao dia-leticamente, tanto a relao forma/contedoquanto a interao entre produtores e p-blico.

    Violentamente interrompida trs anos de-pois de iniciada, a breve experincia chilenano teve tempo de sedimentar-se e apresen-tar resultados passveis de crtica. Ao queparece, ocorreu l algo semelhante ao quePaulo Pontes apontava aqui, referindo-se satividades dos Centros Populares de Cultura:quando chegava a hora de avaliar o trabalhoe redefinir-lhe os rumos, veio o golpe mili-tar, que obrigou a um reordenamento das for-

    as e a uma ao de resistncia que precisavainventar formas de continuar existindo, numambiente cada vez mais opressivo.

    As atuais e j numerosas iniciativas de co-municao popular a partir de rdios e TVscomunitrias aparecem como uma retomadadesse esforo e esto a merecer um estudoque leve em conta a questo central da lin-guagem: como se d a capacitao dos mora-dores interessados em atuar nesse meio, qual

    a relao entre os comunicadores e o pblico(seus vizinhos), de que maneira absorveme transformam (ou reproduzem) as frmulasdos programas populares j consagrados.

    Trata-se de um trabalho fundamental, que,entretanto, escapa ao alcance deste artigo.

    2 Armand & Michle Mattelart. Frentes cultura-les y movilizacin de masas. Barcelona, Anagrama,1977.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    3/38

    Imprensa e criminologia 3

    Nosso propsito aqui desenvolver parale-lamente um esforo igualmente importantede anlise da lgica que orienta a coberturacriminal na grande imprensa, procurando de-monstrar que ela se estende cobertura dosfatos relacionados s classes populares, ecomo ela serve disseminao do medo e formulao e ampliao de polticas cadavez mais repressivas de segurana pblica.Procuraremos demonstrar tambm que, em-bora predominante, o discurso repressor no

    nico, mas se completa com outro que apa-rentemente seria o seu contrrio, evidenci-ando duas formas de se tratar a questo so-cial, num desdobramento do que foi estu-dado por Gislio Cerqueira Filho3: ora comocaso de polcia (expresso na poltica cri-minal com derramamento de sangue apon-tada por Nilo Batista4), ora como caso depoltica, fechando o crculo alimentado poraquela politologia flcida de que fala Wac-

    quant. O objetivo final sugerir maneiras dealterar esse processo, no sentido j declaradode buscar a formao de um novo senso co-mum.

    Antes de prosseguirmos, devemos ressal-tar que o tratamento das estratgias de disse-minao do medo pela imprensa estar aquicircunscrito aos limites j definidos, mas,de fato, no se restringe questo criminal,transbordando para os mais distintos temas

    da vida cotidiana: a carne contaminada, osremdios falsificados, a gua imprpria para

    3 Gislio Cerqueira Filho. A questo social noBrasil crtica do discurso poltico. Rio de Janeiro,Civilizao Brasileira, 1982.

    4 Nilo Batista. Poltica criminal com derrama-mento de sangue, in Discursos Sediciosos crime,direito e sociedade, ano 3, no 5-6. Rio de Janeiro,Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 1o

    e 2o semestres de 1998.

    consumo, os inmeros golpes com cartesde crdito, tudo exposto como se o mundofosse um lugar essencialmente hostil e peri-goso, produzindo uma permanente sensaode insegurana em todos os nveis. Mas claro que esta abordagem transcende os ob-jetivos desse artigo, exigindo estudo espec-fico, inserido na linha de pesquisa que apontaa contradio entre o projeto iluminista ori-ginal da imprensa e sua prtica cotidiana,que mais alarma do que esclarece os cida-

    dos.

    2 Definindo o campo da anlise

    Nosso campo de anlise principal , aqui, agrande imprensa voltada para o pblico declasse mdia, que se concentra em quatro jor-nais de expresso nacional O Globo, Jornaldo Brasil, Folha de S. Paulo e O Estado deS. Paulo e na revista Veja. Grandes jor-

    nais auto-proclamados populares (no sen-tido de que tm como alvo o pblico debaixa renda), como O Dia, Extra ou o recm-extinto Notcias Populares, que deixou decircular em janeiro de 2001, teriam de seranalisados parte, antes de mais nada de-vido ao seu papel distinto na relao com seuleitor (supostamente, falam com, para eem nome dele, enquanto os jornais para aclasse mdia falam do povo). Isso pres-supe uma forma particular de eleger e tra-

    tar as notcias, que, de sada, determina umainverso de nfase, na qual os temas privi-legiados pela imprensa sria (o noticiriopoltico e econmico, nacional e internacio-nal) so resumidos para dar espao ao quediga respeito vida popular, em especial questo criminal. Essa particularidade en-volve a questo decisiva da linguagem, tobem expressa em propaganda do Povo emcartazes afixados em bancas de jornal, em

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    4/38

    4 Sylvia Moretzsohn

    outubro de 2001: O melhor contedo porapenas 40 centavos. Ou seja, a parada todapor uma merreca revelando a deciso deexpor a realidade como ela , sem rodeiosnem meias-palavras, o que insinua a nfaseno apelo sensacionalista. E envolve, sobre-tudo, o papel que esse tipo de jornalismo de-sempenha, identificado por j vasta biblio-grafia5, na qual se destaca o precursor es-tudo de Antonio A. Serra sobre o jornal O

    Dia, ento emblemtico do jornalismo ditopopular: a funo de intermedirio entreo povo sofredor e sem voz e o governo,aparentemente inatingvel por esses carentestanto das condies bsicas de subsistnciaquanto da linguagem adequada para sensibi-lizar o poder.

    Esta linguagem, que s o jornal possui, aque permite retirar os problemas de sua bru-talidade vivida, e equacion-los como ques-tes tcnicas que possam ser absorvidaspelo Estado. Fragmentar as situaes em

    problemas concretos e tecnicamente soluci-onveis, eis uma das funes do intermedi-rio. Para tanto, fetichiza-se o problema

    5 As pesquisas envolvem tanto veculos impressoscomo programas de rdio e TV, todos, porm, coma mesma linha editorial. Assim, temos os trabalhosde Antonio A. Serra (O desvio nosso de cada dia arepresentao do cotidiano num jornal popular, Riode Janeiro, Achiam, 1980), Danilo Angrimani (Es-

    preme que sai sangue um estudo do sensaciona-lismo na imprensa, So Paulo, Summus, 1994), MariaImmacolata V. Lopes (O rdio dos pobres, So Paulo,Loyola, 1980), Maria Tereza P. da Costa (O pro-grama Gil Gomes a justia em ondas mdias, Cam-pinas, Unicamp, 1992), Maria Thereza Fraga Rocco(A linguagem autoritria televiso e persuaso, SoPaulo Brasiliense, 1988), Ana Rosa Ferreira Dias (Odiscurso da violncia as marcas da oralidade no

    jornalismo popular, So Paulo, Educ/Cortez, 1996),Kleber Mendona (Discurso e mdia: de tramas, ima-gens e sentidos. Um estudo do Linha Direta. Dis-sertao de mestrado em Comunicao, Niteri, UFF,2001).

    num correlato adequado gama de soluesestatais, com isso impedindo que considera-es de ordem mais geral, enfim, que a re-lao de explorao seja aventada. Em ou-tras palavras, o lugar do intermedirio pol-tico se legitima na medida em que o povotenha sempre problemas e que seja o Es-tado quem disponha das solues. A desi-gual distribuio de recursos, de meios, depalavra e poder, nada disto vem ao caso:ao contrrio, tudo cristalizado numa or-dem natural, fortalecedora do tipo de repre-sentatividade poltica que o jornal e os porele eleitos compem. Ao mesmo tempo, aatomizao dos problemas e sua traduoem tpicos de um programa administrativocorta qualquer possibilidade de articul-losem relaes polticas e sociais estruturais6.

    No caso especfico, tal intermediaorevestia-se de um carter funcional mais efi-caz, na medida em que o jornal era, poca,de propriedade do governador do estado. Umestudo atualizado sobre esses jornais certa-mente identificar mudanas na linha edito-rial, conforme alteraes ocorridas no con-trole das respectivas empresas que os publi-cam (O Dia, por exemplo, iniciou em 1987uma reforma que o levou a afastar-se da ima-gem do jornal espreme que sai sangue,abrindo caminho para o Povo e publicaessimilares) e poder verificar se essas mudan-as representam alguma alterao no trata-

    mento da notcia.Dizamos, porm, que nosso objetivo era

    tratar da grande imprensa voltada para aclasse mdia, e demonstrar que a lgica ori-entadora da cobertura criminal, fundamen-tada, embora no declaradamente, nos pos-tulados positivistas da criminologia tradicio-nal, se estende abordagem dos fatos rela-

    6 Antonio A. Serra. op. cit., p. 33.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    5/38

    Imprensa e criminologia 5

    cionados s classes populares, encarando-as,assim, da perspectiva do perigo que repre-sentam para o pblico dessas publicaes.

    Este no ser um estudo exaustivo e quan-titativo do material noticioso: a abordagem orientada pela fundamentao terica daanlise de discurso formulada por Foucaulte Pcheux, e que por sua vez tem origem notrabalho pioneiro de Bakhtin, que apontou opapel produtivo e a natureza social da enun-ciao7. Se a produo de sentido est vin-

    culada a uma posio social e historicamentedeterminada, de pouco vale verificar se, for-malmente, dedica-se o mesmo espao, porexemplo, a fontes de distintas e s vezes con-flitantes percepes da realidade; mais im-portante perceber como esse material foieditado, como se estabeleceu a relao entretexto e imagem (pois um jornal a reuniode elementos verbais e no-verbais que inte-ragem na produo de sentido) e qual a rela-

    o dessas publicaes com o seu pblico, oque implica verificar o trabalho sobre a lin-guagem. por isso, tambm, que vez por ou-tra recorreremos a exemplos de material no-ticioso veiculado em outros meios (televiso,internet), que integram os conglomerados decomunicao responsveis pelos jornais aquicitados e ajudam a compreender o processoglobal de que vamos tratar.

    Outro aspecto importante, que no abor-

    daremos aqui, a verificao do vnculoentre o noticirio e os interesses das em-presas de comunicao, em geral, e a con-juntura poltica em particular. No primeirocaso, Nilo Batista observa o papel que cabe imprensa na elaborao daquilo que, emoutro artigo, chamou de poltica criminal

    7 Mikhail Bakhtin. Marxismo e filosofia da lin-guagem. So Paulo, Hucitec, 1992.

    com derramamento de sangue: s algummuito ingnuo supor que so as convicespolticas de seu empresariado e no as pers-pectivas bilionrias da explorao da telefo-nia celular, por exemplo, que definiro a in-clinao dos editoriais e a nfase do notici-rio, o que implica, no campo criminal, arelegitimao cotidiana do sistema penal ea campanha por sua expanso8. A relaocom a conjuntura poltica, por sua vez, levafrequentemente a uma deturpao deliberada

    das informaes, chegando-se mesmo purae simples inveno de fatos. A propsito,certa vez Janio de Freitas escreveu artigorelacionando uma srie de informaes narea criminal (ataques a delegacias, seques-tros, assaltos em tneis) que, embora com-pletamente falsas, foram divulgadas pela im-prensa e contriburam para criar um climade pnico propcio acusao de incria dogoverno do Rio em relao segurana p-

    blica9

    . Mas, alm de implicar um esforo su-plementar de pesquisa, essas duas vertentesdo trabalho nos levariam a discutir detalhesdo comportamento tico dos meios de comu-nicao que fogem a nossos objetivos. Almdo mais, a anlise do material aqui expostopermite esclarecer o essencial: o modo peloqual os fatos so construdos, reiterando-seesteretipos e preconceitos, s vezes de ma-neira muito sutil.

    8 Nilo Batista. A violncia do Estado e os apa-relhos policiais, in Discursos Sediciosos crime, di-reito e sociedade, ano 2, no 4. Rio de Janeiro, FreitasBastos/Instituto Carioca de Criminologia, 2o semestrede 1997, p. 153.

    9 Janio de Freitas. As ondas do Rio. Folha de S.Paulo, 30 de outubro de 1994.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    6/38

    6 Sylvia Moretzsohn

    3 Falando em nome de todos:a imprensa como quartopoder

    preciso, em primeiro lugar, sublinhar que onosso principal foco de anlise constitui aimprensa por excelncia, modelo do pr-prio conceito de jornalismo10, aquela queexpressa, ou se prope a expressar, os postu-lados clssicos que norteiam a atividade, re-lacionada proposta iluminista de esclare-cer os cidados, e reconhecida pelo ttuloauto-atribudo de formadora de opinio como se os jornais populares no desem-penhassem tambm esse papel. Tal carac-terizao mal disfara, portanto, a desquali-ficao desta outra imprensa, o que umaforma de expressar o secular desprezo daelite por tudo aquilo que diga respeito aopovo. Com uma agravante, pois esse com-portamento adotado tambm pelos crticos

    do sistema vigente, de modo que a luta pelademocratizao dos meios de comunicao,pelo respeito tica e outras propostas deteor semelhante tenham como campo de lutaprincipal, seno nico, esta imprensa mo-delo, no por acaso corriqueiramente cha-mada de imprensa sria.

    Os documentos publicados por essas em-presas jornalsticas no deixam dvidasquanto ao propsito de falar em nome de

    toda a sociedade, assumindo o papel de umsuposto quarto poder sem outros interes-ses a defender que no os dos prprios cida-dos indiferenciadamente. Tal formulao,surgida na Inglaterra em 1828, encontroucampo frtil de desenvolvimento nos Esta-

    10 Adelmo Genro Filho. O segredo da pirmide para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Ale-gre, Tch!, 1987, p. 23.

    dos Unidos, onde floresceu a idia de quea imprensa era os olhos e ouvidos da so-ciedade, co de guarda das instituiesdemocrticas, fiscal do poder, sempre alertaquanto aos atos do Executivo. E tornou-serecorrente nos discursos a respeito do papelda imprensa, apesar das inmeras crticas aapontar o carter ideolgico dessas defini-es, encobridoras de interesses muito bemdefinidos11.

    Assim, a Folha de S. Paulo, alm de ser o

    primeiro jornal brasileiro a preocupar-se emsistematizar, atravs de seus famosos manu-ais, uma racionalidade para o trabalho da im-prensa, deixa claras suas intenes ao estam-par todos os dias, abaixo do logotipo, o lemaum jornal a servio do Brasil. A revistaVeja, em campanha publicitria de fins dosanos 90, dizia-se os olhos do Brasil (emcartaz ilustrado, a propsito, com um grandeolho azul. Seriam os olhos azuis do Bra-

    sil? Seria o Brasil de olhos azuis? Ou eracom olhos azuis que a revista via o Brasil?).O Globo, em documento divulgado no pr-prio veculo em 1994 e disponibilizado nainternet at meados de 1999 quando a p-gina da empresa foi modificada para atenderexclusivamente aos propsitos de marketingdo grupo , define-se como um jornal cari-oca, respeitado no pas inteiro, que se ex-pressa pela identidade com os costumes e

    as aspiraes da comunidade e pela intensa

    11 Cf., entre outros, Serge Halimi. Os novos cesde guarda. Petrpolis, Vozes, 1999; Pierre Bourdieu.Sobre a televiso. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997.Patrick Champagne. La vision mdiatique, in PierreBourdieu (org)., La misre du monde. Paris, Seuil,1993, p. 61-79; Chico Nelson el al. (org.). Jorna-listas pra qu? Os profissionais diante da tica. Riode Janeiro, Sindicato dos Jornalistas Profissionais doMunicpio do Rio de Janeiro, 1989.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    7/38

    Imprensa e criminologia 7

    prestao de servios populao do Rio deJaneiro. Lder de mercado, conta a quasedois milhes de leitores, todos os dias, o queacontece no Rio de Janeiro, no Brasil e nomundo. Esta a sua misso: levar o re-trato fiel da realidade ao maior nmero depessoas e procurar sempre servir comuni-dade (grifos nossos).

    Desnecessrio dizer que o jornal se auto-legitima ao dizer-se identificado com os cos-tumes e as aspiraes da comunidade, qual,

    humildemente, apenas serve: tudo o queest naquelas pginas, automaticamente, ex-pressa aqueles costumes e aspiraes. Semfalar na idia de que o noticirio ali exposto retrato fiel da realidade: o jornal no in-terfere, apenas relata fatos para que o lei-tor soberano tire suas prprias concluses,escondendo assim todo o processo de cons-truo da notcia, resultante de mediaesdiscursivas inerentes ao trabalho jornalstico,

    que obviamente influem nas tais conclusesa que o leitor vai chegar dependentes, almdisso, tambm de seu grau de formao, deseu repertrio de crenas, de suas refernciasculturais, de sua condio social, em suma.

    O mais interessante, porm, perceberque o jornal, embora obviamente se des-tine a um pblico determinado, proclame-seporta-voz de toda a comunidade. No casodo Globo, isso fica mais claro em outro tre-cho do documento, que aborda os objetivosda redao: entre outros, a defesa do pri-mado do Direito sobre a fora e da ordemsobre a anarquia, em qualquer de suas mani-festaes, e a vigilncia permanente contraa injustia, a corrupo, a violncia, a arbi-trariedade, a incompetncia no trato de as-suntos pblicos e tudo mais que prejudique aqualidade de vida em todos os nveis da so-ciedade (grifos nossos). Note-se, a prop-

    sito, a indiferenciao entre os termos soci-edade e comunidade, o que, parte o inte-resse no campo das cincias sociais, traz umproblema para a anlise especfica dos tex-tos das reportagens, na medida em que essestermos no se confundem no material notici-oso: comunidade, no caso, expressamentea forma pela qual so tratados os habitantesde favelas e conjuntos habitacionais da peri-feria das cidades, mas serve mais como eufe-mismo politicamente correto para substituir

    favelados e outros termos depreciativos, eindica tambm um sentido de solidariedadee de ao poltica coletiva raramente existen-tes.

    A auto-legitimao como um prestador deservio para todos faz parte da estrat-gia da imprensa (desta imprensa) para as-segurar seu lugar de autoridade. Mas, aomesmo tempo, implica o processo de natu-ralizao dos fatos sociais traduzidos comonotcia. O jornal, afinal, pode apresentar-secomo o espao da ordem, uma ordem con-sensual, inquestionvel, indispensvel para avida em sociedade. Essa observao par-ticularmente importante no caso do notici-rio criminal. Em consideraes aplicveis constituio do discurso jornalstico, Serraargumenta:

    A prpria qualificao de criminal (...) naverdade fruto de apropriao de certos fa-tos, acontecimentos, personagens e sua tra-

    duo e recomposio em um produto que o crime tal como apresentado na notcia.Da decorre uma naturalizao do crime,algo que est a e que o jornal testemunha.(...) Se acrescentarmos que a prtica da lei-tura do jornal cotidiana, um espao incor-porado culturalmente vida, ao qual recor-remos naturalmente para saber o que sepassa, concluiremos que a se instala, comocoisa dada, como referncia espontnea, um

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    8/38

    8 Sylvia Moretzsohn

    universo do qual somos solidrios e do qualnos tornamos igualmente personagens12.

    No difcil perceber que, de acordo comessa demarcao de espaos, esse jornalismotende a assumir, para a cobertura do fato cri-minal, a fundamentao da criminologia po-sitivista, cujo objeto era o estudo do ho-mem delinquente, e que dividiu os homensem normais (os que aceitavam a ordem)

    e anormais (os desviantes, que tanto po-diam ser criminosos comuns como anarquis-tas e outros resistentes ordem)13. Clas-sificao funcional, como j demonstrou acrtica marxista, pois, num contexto de in-tensa agitao poltica (segunda metade dosculo XIX), lanavam-se bases tericas in-questionveis (porque cientficas) perfei-tamente adequadas para justificar o exerccioda disciplina e do controle social. A seguir,veremos como essas idias de disciplina econtrole so reforadas atravs do noticiriocotidiano.

    4 Definindo o inimigo

    Ao estudar a conduta da imprensa inglesa emrelao criminalidade, Steve Chibnall per-cebeu que as diferenas entre os veculos de-

    sapareciam quando se tratava de cobrir as ati-vidades do IRA: contra o terrorismo no po-deria haver complacncia, portanto para seusrepresentantes ou defensores no valia a leidos dois lados; eles no precisam ser ou-

    12 Serra. op. cit., p. 18.13 Rosa del Olmo. A Amrica Latina e sua crimino-

    logia. Rio de Janeiro, Freitas Bastos/Instituto Cariocade Criminologia, p. 35 (no prelo).

    vidos, no podem ter voz, pois sua ao injustificvel, uma ameaa sociedade14.

    Entre ns ocorre algo semelhante, espe-cialmente se considerarmos o noticirio so-bre o combate droga: diferenas de linhaeditorial, frequentemente tpicas ou casus-ticas, se dissolvem quando se trata de de-finir o inimigo. A, todos se unem, assu-mindo acriticamente o discurso oficial. As-sim, banalizam-se expresses como guerrae cruzada, contra um inimigo mitificado e

    demonizado s vezes a prpria droga, fe-tichizada no melhor sentido marxista, comose tivesse vida prpria e pudesse, por exem-plo, invadir as universidades15; s vezes otraficante, cuja identidade varia conforme ascircunstncias; s vezes o trfico, tratadode maneira semelhante droga.

    Nilo Batista vai buscar na Inquisio asrazes desse processo, ao demonstrar que elaexpe, pela primeira vez na histria, como

    o sistema penal pode adquirir uma certa au-tonomia que o desvincule do projeto pol-tico que o criou, e como essa poderosa cria-tura, a servio de correntes especficas, podeusar conjunturalmente suas armas prestigia-das e ferozes16. Estabelecem-se a as basesda criminalizao do diferente, que sobre-viveram descriminalizao histrica da he-resia e permanecem hoje, facilmente vis-veis em conjunturas mais claramente politi-zadas (judeus perante a ordem nazista, soci-

    alistas perante os tribunais militares do Cone

    14 Steve Chibnall. Law-and-order news an analy-sis of crime reporting in the british press. Londres,Tavistock, 1977.

    15 Droga invade as universidades. JB, 13 de ou-tubro de 1999.

    16 Nilo Batista. Algumas matrizes ibricas do di-reito penal brasileiro vol I. Rio de Janeiro, Frei-tas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 2000, p.233.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    9/38

    Imprensa e criminologia 9

    Sul, etc.), porm sem muito esforo mesmoquando as variveis polticas estejam enco-bertas (a guerra santa contra as drogas e otraficante-herege que pretende apossar-se daalma de nossas crianas).

    Como disse Louis Sala-Molins na inspiradaintroduo sua traduo do Manual de Ey-merich, a Inquisio sobrevive, no indica-tivo presente, e quando o pblico reclamade novo os rigores do fogo o que, nas so-ciedades contemporneas, quase sempre

    o fruto induzido de campanhas da mdia basta modificar um pargrafo para (a In-quisio) estender legitimamente sua juris-dio sobre o novo tipo de combustvel.(...)A Inquisio nos legou o princpio da oposi-o entre a ordem jurdica virtuosa e o caosinfracional, ou seja, a idia de que a infraodesorganiza (desvirtua) a ordem. Ao con-trrio de uma concepo politizada da inter-veno penal, que incorpora o delito no s

    conceitualmente mas principalmente comoa possibilidade banal de sua prpria efic-cia, a sacralizao da ordem jurdica produzum injusto que a ameaa, que se coloca ex-ternamente a ela (um injusto fora-da-lei) eque deve ser no simplesmente compensadoou retribudo, mas exterminado. A matrizdo combate ao crime v-se assim revigorada(...). Quantos sculos devero transcorrerat que nos apercebamos das funes ocul-tas que, no plano das relaes internacionais

    contemporneas, desempenha a guerra con-tra as drogas recomendada nas decretais dospresidentes norte-americanos? No discursoda poltica criminal inquisitorialmente ori-entada, o combate ao crime invariavelmenteutilizava metforas de contedo extermina-dor: o operador judicirio o agricultor pre-vidente, cuja enxada deve extirpar a m se-mente ou matar a vbora; ou o cirurgiodiligente, que deve amputar o membro apo-

    drecido para obviar a infeco; pragas nocampo e epidemia nas cidades resultaro dequalquer transigncia com os inimigos daordem virtuosa17.

    Esta , de fato, a lgica que preside asinmeras campanhas contra a violncia, no-meada estrategicamente em sua generalidadeabstrata, para ganhar concretude na violnciaimediatamente visvel. Mais interessante: svezes so campanhas de iniciativa dos pr-

    prios veculos de comunicao. Assim, porexemplo, O Globo promoveu em 1985 a pes-quisa O Rio contra o crime, que recebeuaplausos de quem teria todos os instrumentospara critic-la. A antroploga Alba Zaluar,embora ressalvando a baixa adeso da popu-lao pobre ao questionrio, aplaudiu a ini-ciativa do jornal18, desconhecendo a crticapreliminar, fundamental e aparentemente b-via a ser feita a partir do prprio ttulo dapesquisa, que incorpora uma dualidade ma-niquesta opondo a cidade (e seus cidados)como lugar da paz e da concrdia e o crimecomo entidade demonaca que, de fora, vemafront-la e agredi-la. Esse raciocnio, ade-mais, se aplica perfeitamente ao mito do Bra-sil como um pas especial, abenoado porDeus, ilha de tranquilidade num mundo con-turbado, reino da harmonia, onde os confli-tos sociais no tm lugar19: nesses termos,o trfico e o traficante s podem ser fa-

    tores estranhos, exgenos, passveis de iso-lamento e combate como algo no-natural nossa ndole.

    17 Idem, p. 234-5.18 Alba Zaluar. O Rio contra o crime, in Zaluar,

    Condomnio do diabo. Rio de Janeiro, Revan/UFRJ,1994, p. 36-41.

    19 Ver o tratamento dado questo social emdiferentes pocas, da Repblica Velha ao populismopr-64, in Gislio Cerqueira Filho, op. cit.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    10/38

    10 Sylvia Moretzsohn

    Mesmo quando no lidera a campanha, aimprensa contribui para justific-la. Foi as-sim com o Reage, Rio, logo desdobradono Reage, So Paulo, a partir de sries dereportagens que desenhavam um quadro ca-tico do cotidiano urbano e levavam percep-o de que o sentimento de insegurana dapopulao havia chegado a um ponto into-lervel. Foi assim tambm com o famosoBasta, eu quero paz!, empalmado peloMovimento Viva Rio no embalo miditicodo sequestro do nibus 174, em 12 de junhode 2001, no Jardim Botnico. Numa rea no-bre da cidade ademais, o bairro onde se lo-caliza a sede da maior rede de televiso bra-sileira , o fato mereceu cobertura ao vivo daTV Record e do canal pago Globo News, du-rante quase quatro horas e meia, terminandocom a morte do sequestrador e de uma refm.O impacto daquelas imagens, associado co-bertura macia dos jornais nos dias seguin-tes, forneceram os argumentos para a cam-panha, assumida entusiasticamente pelos jor-nais. No dia do ato, 7 de julho de 2000, o

    Jornal do Brasil gritava em letras enormes,desproporcionais aos demais ttulos da capa:Basta! E o texto da chamada seguia o tomconvocatrio: Participe. Vista branco, po-nha bandeiras brancas na janela, v mani-festao ecumnica no Largo da Carioca....A nica voz dissonante nesse coro foi a dohistoriador Joel Rufino dos Santos, que con-siderava o ato uma forma de preparar o esp-rito da populao para indultar os produto-res da violncia e disse que no participariadele justamente porque os violentos dissimu-lados, porm mais importantes, estariam l.

    H os que sofrem a violncia e os que a pro-duzem. Estes tm interesse em esvaziar aviolncia do seu contedo concreto. Numgolpe inconsciente, mas de mestre, mobi-lizam as vtimas para ato cvico, altamenteemotivo, contra a violncia. Gritam e fazem

    a populao gritar Basta!. Com isso, do violncia, de que so os produtores, um ca-rter abstrato. Eximem-se de qualquer res-ponsabilidade. Os violentos so os outros.Na verdade, no so ningum. Podem, por-tanto, ser demonizados livrando a cara de-les, os reais produtores de violncia. Pem,no lugar sua cara, a cara do pobre-coitadodo nibus 17420.

    Esta era, porm, uma opinio, publicadano espao reservado especificamente a essetipo de manifestao algo que o jornalismosublinha na sacralizada, porm falaciosa, se-parao entre os lugares da objetividade (ainformao) e da subjetividade, e que sobre-vive apesar dos reiterados estudos que apon-tam o despropsito (mas tambm a funciona-lidade) dessa diviso21. O jornal, ele mesmo,no utilizou os argumentos de Rufino emqualquer de suas reportagens, de modo a ofe-recer um contraponto, mnimo que fosse,

    campanha em marcha. De todo modo, a opi-nio do historiador s teve possibilidade deinfluenciar a posteriori: o artigo saiu em 11de julho, quatro dias depois do ato.

    Tais exemplos demonstram, portanto, emprimeiro lugar, uma caracterizao redutorade violncia, associada estritamente ao seuaspecto criminal. Uma abordagem mais am-pla remeteria a uma discusso central nocampo da tica, qual a violncia se opeporque trata seres racionais e sensveis, do-

    20 Joel Rufino dos Santos. Leitura do ato contra aviolncia. Jornal do Brasil, 11 de julho de 2001.

    21 Cf. especialmente Manuel Carlos Chaparro, paraquem o jornalismo no se divide, mas se constricom opinies e informaes, demonstrando que a di-viso realmente existente entre dois tipos de texto,um de ordem expositiva, outro de ordem argumenta-tiva. Sotaques daqum e dalm mar percursos egneros do jornalismo portugus e brasileiro. Santa-rm, Jortejo, 1998, p. 97.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    11/38

    Imprensa e criminologia 11

    tados de linguagem e de liberdade como sefossem coisas22 e se pensarmos nos pro-cessos de fetichizao e reificao operadosno capitalismo, seramos levados a supor aincompatibilidade entre a tica e esse sis-tema. No podemos aqui, obviamente, avan-ar nessa discusso: baste-nos a referncia complexidade do tema, cujo desdobramento bem resumido por Alberto Silva Franco:

    [a] rea de significado do conceito de vio-lncia bem mais abrangente do que a cri-

    minalidade. Violncia a terrvel faixa deexcludos, na sociedade brasileira; a con-centrao de riquezas em poder de um n-mero to reduzido de pessoas; a fome; a misria; o salrio aqum das necessi-dades bsicas mnimas; a prostituio in-fantil; o elevado percentual de acidentesdo trabalho; o privilgio das corporaes;, enfim, a ausncia de adequadas polticaspblicas. Sobre a problemtica brasileira,como um todo, ou sobre cada um desses

    graves problemas de violncia, em particu-lar, os meios de comunicao no esclare-cem a populao, nem pressionam a opiniopblica e os rgos de representao popu-lar. Dramatizar a violncia bem maisfcil e, alm disso, sua retaguarda, h todoum processo de politizao (movimento delei e ordem) que atende aos interesses desegmentos sociais hegemnicos que visamaumentar, atravs de expedientes repressi-vos, o grau de controle da sociedade23.

    Significativamente, alis, uma semana de-pois do dia do Basta!, o Jornal Nacional,

    22 Marilena Chaui. tica e violncia, in Teoria &Debate no 39, out/dez 1998.

    23 Alberto Silva Franco. As perspectivas do di-reito penal por volta de 2010, in Discursos Sedicio-sos crime, direito e sociedade, ano 5, no 9-10. Frei-tas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 1o e 2o

    semestres de 2000, p. 63.

    da TV Globo, exibiu uma srie de reporta-gens sobre a situao do transporte urbanono Brasil: pessoas que acordam de madru-gada e caminham at o local de trabalhopor no terem o dinheiro da passagem, pes-soas enlatadas em trens suburbanos e ni-bus, exaustas aps um dia de trabalho, dor-mindo jogadas nos bancos ou mesmo em p,amparando-se umas nas outras. Sina de tra-balhador, disse o reprter. Ningum faloude violncia.

    Assim, delimitando-se redutoramente area de significado desse termo, a imprensapassa a explor-lo politicamente, contri-buindo para a formao de uma opinio fa-vorvel a polticas repressivas. Silva Francomostra que o destinatrio desse processo o direito penal, que deixa de ser o garantedos bens jurdicos mais relevantes da soci-edade para tornar-se um direito de eficciasimblica: um direito que responde aos me-

    dos sociais. E fornece vrios exemplos, en-tre os quais a Lei dos Crimes Hediondos,consequncia da mobilizao produzida pelonoticirio em torno do seqestro de figurasimportantes da elite econmica e social dopas (casos Martinez, Salles, Diniz, Medina,etc.), at ento a salvo da ao de delinqen-tes. Foi tal a presso exercida pelos meiosde comunicao social, tal foi o nvel demedo transmitido, que pessoas componen-

    tes de classes sociais desfavorecidas passa-ram a temer a possibilidade de serem vti-mas daquele delito24. O prprio episdiodo nibus 174 foi outro exemplo: dois diasdepois do ocorrido, os jornais noticiavam aresposta do governo, com uma reunio ex-traordinria da equipe responsvel pelo novoPlano Nacional de Segurana. Violncia

    24 Idem, ibidem.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    12/38

    12 Sylvia Moretzsohn

    faz governo agir, deu o JB de 14 de julho,num ttulo sob uma foto do ento ministroda Justia, Jos Gregori, em que a palavraVIOLNCIA, destacada de uma faixa, pa-rece desabar sobre sua cabea. No lead, ojornal faz a associao imediata: Depois doassalto com refns e da morte da professoraGeisa Gonalves no Rio, o presidente Fer-nando Henrique Cardoso convocou s pres-sas, para ontem noite, uma reunio com aequipe ministerial encarregada da elaborao

    do Plano Nacional de Segurana Pblica. Aseguir, diz que o presidente est decidido apr um ponto final ao que chamou de violn-cia inaceitvel.

    Duas semanas antes do caso do 174, no dia24 de maio, um confronto entre quadrilhasrivais de traficantes de acordo com o que aimprensa noticiou resultou em quatro mor-tos e levou pnico favela Nova Holanda,em Bonsucesso. Particularmente a um casal

    e seus trs filhos, entre os quais uma meninade 2 anos, feitos refns em sua casa. Da ja-nela, traficantes fortemente armados erguiama criana em sinal de ameaa. Aquela violn-cia, porm, no era inaceitvel: tratava-sede mais uma ocorrncia habitual em zonasj tradicionalmente conflagradas, que os for-madores de opinio no frequentam e, por-tanto, no suscitam a interrupo do fluxonormal do noticirio para a irrupo da co-bertura ao vivo nem, consequentemente, im-pem uma pronta resposta das autoridades.

    Da mesma forma, um crime que ganhou asmanchetes em fins de abril de 2001 o assas-sinato da fonoaudiloga Mrcia Maria Lo-pes Coelho Lira, assessora do deputado Car-los Minc, em Santa Teresa foi precedidode duas outras ocorrncias que, por issomesmo, nem mereceram registro: jovens ne-gros amarrados, com tiros e sinais de sev-

    cias, encontrados mortos em terrenos baldiosdo mesmo bairro.

    Os assassinos da fonoaudiloga foramimediatamente chamados de brbaros, nos pelos requintes de crueldade (em nada di-ferentes, porm, da violncia que ocorre naperiferia), mas porque um deles trabalhavana reforma da casa e era ajudado pela vtima.Vera Malaguti questiona:

    Se, na primeira e na segunda mortes doms, nada sentimos, nada noticiamos, nada

    nos surpreendeu, por que achar que eles seimportam conosco? Ns no nos importa-mos com eles25.

    5 Disseminando o medo: aproduo de ondas de crimee outras estratgias

    Ao serem confrontados com estudos sociol-gicos baseados na teoria da construo socialda realidade para a anlise da produo dasnotcias, jornalistas das mais diversas ten-dncias ideolgicas costumam reagir com ir-ritao, rejeitando a idia de que fabricamo noticirio, o que para eles soa como umainaceitvel e antitica falsificao. MichaelSchudson aponta a confuso numa frase que,no original em ingls, permite um jogo depalavras que d uma dimenso mais clara doequvoco: We didnt say journalists fake the

    news, we said journalists make the news26.Isto quer dizer que o processo de seleo

    e hierarquizao dos fatos a serem transfor-

    25 Vera Malaguti Batista. O medo na cidade, inTransgresses anais da I Jornada do Espao Brasi-leiro de Psicanlise (no prelo).

    26 Michael Schudson. The sociology of news revi-sited, in James Curran and Michael Gurevitch (org.).

    Mass media and society. Nova Iorque, Edward Ar-nold, 1992, p. 141.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    13/38

    Imprensa e criminologia 13

    mados em notcia implica uma intencionali-dade, frequentemente no explcita, dos res-ponsveis por esse trabalho. Mas pode signi-ficar algo mais importante, que ainda causapolmica entre estudiosos da mdia: a exis-tncia ou no de distines entre os fatos queocorrem espontaneamente e outros que soprovocados pela presena dos meios de co-municao. Daniel Boorstin inaugurou a de-nominao pseudo-eventos, ou eventos demdia (os famosos factides da recente po-ltica brasileira, organizados apenas para setornarem notcia), para desclassificar os fa-tos assim provocados: considerava que anobre tarefa da imprensa era noticiar aquiloque acontece de forma espontnea27. Her-bert Gans contesta essa idia, argumentandoque todas as atividades que se transformamem reportagem so eventos de mdia; se elasso espontneas ou produzidas menos im-portante do que se elas se tornam notcia ouno28. Nicolau Sevcenko vai alm: diz queno faz qualquer sentido a diferenciao en-tre fato de verdade e fato produzido porqueo mundo, tal como existe, especificamentea partir dos anos 20, o mundo e o complexodas comunicaes. Portanto, a utilizao derecursos de mdia para produzir situaes ar-tificiais parte das estratgias dos conflitosque envolvem os jogos de decises polticase econmicas.

    Fatos de verdade e fatos fabricados convi-vem como parte de uma realidade histrica

    na qual possvel fabricar fatos, da mesmaforma como fatos podem se desdobrar por simesmos, por uma cadeia gentica de even-tos histricos. o caso, bem evidente, da

    27 Daniel Boorstin. The image a guide to pseudo-events in America. Nova Iorque, Harper and Row,1964.

    28 Herbert Gans. Deciding whats news: a studyof CBS Evening News, NBC Nightly News, Newsweekand Time. Nova Iorque, Pantheon, 1979.

    guerra do Golfo, que foi montada como umgrande show da mdia para representar o su-cesso da nova ordem mundial. (...) Essesacontecimentos so to intrinsecamente em-baraados que seria desnaturado querer se-parar uma coisa da outra. Todas elas com-pem o campo da significao e no umasignifica e outra falsifica29.

    Essas consideraes so importantes paraa percepo do papel da imprensa num doscasos que mais nos interessam aqui: a for-mao das ondas de crime. Mark Fish-man, em seu estudo sobre uma onda decrime contra idosos em Nova Iorque, cons-tatou de sada os procedimentos de auto-alimentao entre veculos diversos: os te-lejornais da manh fornecem idias para su-tes de edies vespertinas e noturnas e influ-enciam a pauta dos jornais impressos, que,por sua vez, tm na ronda do noticirio ra-diofnico uma recorrente fonte de informa-

    o30.Rejeitando as perspectivas de pesquisado-

    res que tomavam o processo de produo donoticirio apenas como um processo de se-leo de notcias - que, portanto, ou refleti-riam ou distorceriam a realidade -, Fishmanindaga-se at que ponto o processo de produ-o de notcias no estaria ajudando a criaressas ondas que os prprios jornais reporta-vam. Mas a principal preocupao do autor com o poder de multiplicao das notcias,

    que geram mais notcias em cascata e efei-tos prticos convenientes para a explorao

    29 Nicolau Sevcenko. Fim da Histria. AtratorEstranho, no 19, So Paulo, NTC/ECA-USP, 1996.

    30 Mark Fishman. Manufacturing news. Austin,University of Texas Press, 1990. Citado em SylviaMoretzsohn. A velocidade como fetiche o discurso

    jornalstico na era do tempo real. Dissertao demestrado em Comunicao. Niteri, UFF, 2000, cap.2.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    14/38

    14 Sylvia Moretzsohn

    poltica: de acordo com a rotina das reda-es, as notcias so agrupadas em temas,conceitos organizadores, de modo que, nocaso estudado, as matrias sobre idosos tal-vez no tivessem merecido ateno se edita-das isoladamente, mas ganharam expressoquando noticiadas em conjunto. Logo se se-guiria um efeito importante: o prefeito con-voca uma coletiva para declarar guerra aoscrimes contra idosos. Outra consequncia:a criao de novos procedimentos de regis-tro pela polcia, o que tornou visvel, para aimprensa, um grande nmero de ocorrnciasbastante comuns.

    Como uma onda de publicidade, [a onda decrimes contra idosos em Nova Iorque] con-centrou a ateno do pblico num novo pro-blema e ao mesmo tempo formulou o pro-blema. A mdia foi ao mesmo tempo omeio pelo qual todo mundo em Nova Iorquesoube da onda de crimes e o meio peloqual ela foi montada. Os rgos noticiososcriaram a onda, no no sentido de que inven-taram os crimes, mas no sentido de que de-ram forma e contedo determinados a todosos incidentes que reportaram. Do trabalhojornalstico surgiu um fenmeno transcen-dendo os acontecimentos particulares queeram suas partes constitutivas. Uma onda decrimes uma coisa na conscincia pblicaque organiza a percepo do povo em rela-o a um aspecto de sua comunidade. Foiessa coisa que a mdia criou.

    E criou tambm a sensao de medo, oque justifica medidas como pr mais polici-ais nas ruas, criar novas leis, sonhar com amudana para cidades do interior, etc. Noentanto, diz ele, a orientao poltica demonitorar de perto e reportar os crimes con-tra idosos havia sido projetada para um pe-rodo de trs meses apenas. Quando o mo-

    nitoramento especial terminou, a coberturamorreu, e a onda de crimes acabou31.

    Os jornais dedicam eventualmente mat-rias especiais para explicar o fenmeno, nomelhor estilo da profecia auto-cumprida:participam do processo e, em seguida, o de-nunciam. Foi o que ocorreu com a Folha deS. Paulo, que, numa edio do caderno Mais! suplemento dominical destinado extraomais intelectualizada de seu pblico , mos-trou as alteraes do sentimento de medo do

    paulistano, em poca de campanha eleitoral:aps uma srie de notcias sobre o desca-labro da violncia na cidade, a questo dasegurana passou a ocupar o primeiro lugarna preocupao do pblico. Do ponto devista estritamente funcional, o jornal sai ga-nhando: noticia a violncia, noticia tambma implicao que esse noticirio tem na per-cepo do pblico. O crculo se fecha per-feitamente, em um daqueles famosos bene-

    fcios secundrios do crime: tudo not-cia. Mas no esclarecimento porque,desse ponto de vista, seria necessria antesde mais nada uma avaliao sobre os crit-rios editoriais para o noticirio do dia-a-dia.

    Menos sutil a estratgia de man-ter o tema permanentemente na memriado pblico, dando-lhe, a ttulo de bem-intencionado servio, informaes sobre aspossibilidades de se proteger das vrias for-

    mas de violncia espalhadas pela cidade. O

    31 Idem, ibidem. A propsito, Janio de Freitasaborda a questo num sentido diverso, mostrandocomo a imprensa amparou verses oficiais que ummnimo de checagem comprovaria serem insustent-veis, e que no entanto justificaram incurses policiaisem favelas e a disseminao do medo num momentopoltico delicado para o Rio de Janeiro, incentivandodiscursos a favor da interveno federal no estado. Cf.Janio de Freitas, As ondas do Rio, art. cit.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    15/38

    Imprensa e criminologia 15

    site do Estado, por exemplo, sustentou du-rante o ano de 2000 um quadro de impacto:a imagem de um marginal lombrosiano napose clssica do preso recm-capturado (ne-gro algemado tapando o rosto) frente dasilhueta de uma cidade sob nuvens pesada-mente cinzentas, e sobre as quais se desta-cam as letras vermelhas da chamada: VIO-LNCIA a cidade com medo. A pginaconduz a uma srie de informaes teispara a populao (isto , o leitor de classe

    mdia) se defender como agir no ponto denibus, no sinal de trnsito, no caixa eletr-nico, etc., como se devssemos ficar semprealertas e ligeiramente apavorados por-que estaramos sob o risco permanente de umataque em cada esquina.

    Da ser plenamente compreensvel a man-chete de pgina que o mesmo jornal publicouno dia 5 de dezembro de 2000, para infor-mar sobre a fuga de um jovem criminoso da

    Febem: Bator fugiu. So Paulo est maisperigosa.Da tambm o espanto do JB na capa de

    13 de dezembro de 2001, aparentemente es-tranha sua linha editorial, estampando fotocolorida de dois presuntos estirados no as-falto, beira do meio-fio, sob o sol: ps des-calos de um lado, chinelos do outro, diantedas botas de um policial em primeiro plano.Cadveres desovados no Aterro, o ttulo damatria, tem sentido dbio: sugere a escolhade um local nobre para a desova de pes-soas mortas em outro lugar, quando se tra-tava de dois rapazes que tentaram assaltar umnibus e foram mortos a tiros por um pas-sageiro, que logo fez o motorista parar paralivrar-se dos bandidos. A legenda completa oescndalo: Um corpo estendido luz do diano asfalto do Flamengo avisa que a violn-cia no respeita hora nem lugar. Pois, como

    bvio, violncia tem hora e principalmentelugar: os ambientes ermos e mal-iluminadosda periferia.

    6 Delimitando espaos:favela/periferia como locus domal

    Opera-se a uma clara delimitao de espa-os, onde, como nota Vera Malaguti Batista,

    aparecem os zoneamentos hierrquicos dacidade, as vises da favela como locus domal, como dissolutora de fronteiras a trans-bordar para a cidade legal32. A famosaOperao Rio, em fins de 1994, um dosexemplos mais bem acabados dessa diviso: parte a especificidade da conjuntura pol-tica (interveno federal no Rio devido su-posta perda de controle sobre a violncia porparte de um governo jamais aceito pelo po-

    der central), importam os canhes dos tan-ques apontados para os morros, culminandocom a imagem-smbolo mais evidente a re-tirada, pelo exrcito, do cruzeiro que ilumi-nava o topo de uma favela, erguido suposta-mente a mando de traficantes, e sua substi-tuio pela bandeira do Brasil, uma cena queevocava a tomada de Monte Castelo durantea Segunda Guerra Mundial.

    No varejo da cobertura cotidiana, poucosexemplos sero to claros quanto o da capado Globo de 21 de outubro de 2000: Fa-velas levam violncia ao Centro e Copaca-bana nibus so destrudos, carros apedre-jados e motorista escapa de linchamento,manchete e subttulo sobre duas fotos ates-tando o conflito informado por legendas des-critivas: Com um tijolo na mo, moradorado Morro da Providncia ameaa um oficial

    32 Vera Malaguti Batista. art. cit.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    16/38

    16 Sylvia Moretzsohn

    da PM que tentava controlar o tumulto noCentro e Na Avenida Atlntica, moradordo Morro do Cantagalo usa p para atacaro carro de um professor que atropelou ummenor. Na longa chamada, o relato de umclima de guerra:

    Duas regies do Rio ficaram sitiadas ontemaps a exploso de violncia de moradoresde dois morros. Em Copacabana, cerca decem moradores do Cantagalo provocaramum grande tumulto ao descerem para a Ave-

    nida Atlntica, na altura do Posto 5, e ten-tarem linchar o professor Bruno Rabin, de25 anos, que havia atropelado Andr LuizFaustino de Oliveira, de 12 anos, deficienteauditivo. Apesar de o sargento Lyrio, do 19o

    BPM, que testemunhou o acidente, ter ino-centado o professor ao afirmar que o meninoatravessou na frente do carro, os morado-res da favela depredaram o Escort de Bruno,usando inclusive uma p. Sob ameaa de es-pancamento, Bruno precisou ser retirado do

    local por PMs.No Centro, a violncia foi ainda maior. Mo-radores do Morro da Providncia levarampnico a quem passava pelo Viaduto So Se-bastio, uma das principais vias da cidade,ao incendiarem um nibus e apedrejaremoutros trs num protesto segundo a pol-cia, organizado por traficantes contra umaoperao policial que resultou na morte deIsaas dos Santos, de 22 anos, acusado deter assaltado um supermercado. Carros tam-

    bm foram apedrejados e vrios motoristas,assustados, fugiram na contramo ou aban-donaram os veculos. O viaduto e duas ruasprximas ficaram interditados por mais dequatro horas, o que provocou engarrafamen-tos por todo o Centro do Rio. Mais de cempoliciais invadiram o morro e trocaram tiroscom traficantes.

    O morro assim como um acidente da na-

    tureza: est ali na geografia da cidade e derepente, sem qualquer justificativa, explode,inesperadamente, e agride a tranquilidade dequem passa. Protestos contra a polcia ja-mais so legtimos, so sempre orquestradospor traficantes: o jornal encampa essa ver-so, embora tenha seu libi conveniente, poisdedica um pequeno texto em pgina internapara, atravs da fala de antroplogos (os es-pecialistas do saber competente), questio-nar essa explicao. Como sempre, cabe ao

    leitor concluir, mas a nfase escolhida e amaneira pela qual o material foi editado jindicam um sentido para essa concluso.

    Tampouco se justificaria tamanha reaocontra um cidado de bem (professor, jovem,branco, proprietrio de carro) que involun-tariamente atropelou um menino surdo (oumelhor, deficiente auditivo: o jornal lhe con-cede essa delicadeza) e imprudente a pontode no olhar para os lados ao atravessar a

    rua. Ocorre que o menino morreu na hora,mas esta informao no est na chamada decapa, e tambm passa longe de manchete,antettulo e subttulo da matria de pginainteira, no corpo do jornal: figura apenasno fim do sublead. E apenas no stimo pa-rgrafo sabemos que o rapaz foi lanadoa aproximadamente 25 metros de distncia,passou por cima da ciclovia e bateu com acabea no calado.

    Outro exemplo notvel foi o que o mesmojornal publicou em 11 de maro de 2001, naprimeira de uma srie de trs reportagens so-bre a providncia que a classe mdia apa-vorada da Zona Sul estava tomando para seprevenir contra assaltos e outras surpresas,contratando a segurana de jovens das fave-las prximas. A nfase evidente na produode sentido est na foto assustadora: sete ra-pazes musculosos e carecas em posio de

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    17/38

    Imprensa e criminologia 17

    combate, bermuda larga e chinelos, negros-escurecidos pela sombra da foto contra a luzque s revela os contornos, Po de Acarao fundo, e suas prprias sombras enormes,fantasmas refletidos no cho: A seguranaque vem da favela, manchete da pgina, spode ser uma ameaa.

    O texto procura ser objetivo: informa asprovidncias, apresenta depoimentos a fa-vor e contra, ouve especialistas (sobre cujafala, evidentemente, recai a concluso dese-

    jvel).

    Moradores de bairros nobres da zona sul dacidade recorrendo aos servios irregularesde favelados. A antroploga Alba Zaluarno deixa por menos: com essa proposta desegurana, o trfico garantiria os moradoresdo morro e do asfalto. A proposta tomaro Estado dentro do prprio Estado. Eles somais sutis que os mafiosos.

    A associao imediata: morador do morro,portanto traficante. O jornal garante que to-dos os seguranas tm ficha limpa. Adi-anta pedir desculpas?

    No dia seguinte, a repercusso: Seguranasob investigao. O coronel Lenine deFreitas, subsecretrio operacional de Segu-rana Pblica, est atento: vai abrir inqu-rito para investigar o servio feito por mora-dores de favelas e, assim que leu a repor-tagem, ordenou maior patrulhamento nas

    reas informadas - Copacabana, Gvea e Ti-juca.

    Mais um dia e o resultado na foto de capa:O segurana Rogrio Fidlis preso: eleestava patrulhando ilegalmente uma rua acerca de 200 metros do quartel do 23o

    BPM. Dupla vitria: eliminao dos fa-velados clandestinos, acusao de incom-petncia da polcia.

    Mas no a incompetncia da polcia que

    leva a recorrer aos favelados clandesti-nos?Rogrio Fidlis havia de conhecer garotosque circulavam pelas redondezas. Podia serum tio a dissuadi-los de qualquer m in-teno. Foi preso, como tantos outros na-quele dia. E a classe mdia continuou apa-vorada33.

    A onda do arrasto nas praias do Rio deJaneiro, em 1992, mereceu estudo detalhadoque reitera e amplia as fronteiras entre a ci-dade legal e a periferia. Amparado na teoriada anlise de discurso, Kleber Mendona de-monstrou como jornais e revistas produziramdiferentes sentidos (mas todos num mesmosentido de reiterao de esteretipos) aotratarem do tema, vinculando o arrasto ao

    funk, segregao racial e produo domedo social. Um trecho de matria da Vejade 18 de outubro de 1992 exemplar:

    Da zona sul, a classe mdia alta partiu de

    carro para os recantos mais distantes em di-reo ao norte, para Cabo Frio, e ao sul, paraa Barra da Tijuca. No contrafluxo, nibuscomearam a despejar nas praias (...) mora-dores de bairros distantes das zonas norte eoeste e dos subrbios do Rio34.(...)Enquanto a classe mdia alta partia, os su-burbanos eram despejados pelos nibus. Nodicionrio de Aurlio Buarque: despejo aquilo que se despeja, lixo, dejeo. O

    sentido aqui produzido no de qualquerlixo, mas de um lixo social: uma camada

    33 Sylvia Moretzsohn. A segurana da favela ea classe mdia apavorada, in www.anf.org.br, marode 2001.

    34 Kleber Mendona. A onda do arrasto, in Dis-cursos Sediciosos crime, direito e sociedade. Riode Janeiro, Freitas Bastos/Instituto Carioca de Crimi-nologia, ano 4, no 7-8, 1o e 2o semestres de 1999, p.271.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    18/38

    18 Sylvia Moretzsohn

    da sociedade considerada no aproveitvele, portanto, incmoda e desnecessria parao corpo social hegemnico35.

    O autor ressalta ainda uma estratgia dis-cursiva muito comum e sutil para atribuir aooutro a autoria exclusiva da fala: o uso dasaspas. Comumente visto como uma refern-cia para atestar a fidelidade do que dito,este recurso tambm uma forma de ocul-tamento. Assim, a mesma revista relata o es-panto de uma dona de casa que passeava com

    a filha e alguns amigos no calado de Copa-cabana quando deu de frente com o pessoaldo subrbio36: Era um bando mal-encaradode gente escura, pobre e mal-vestida.

    Ao valer-se do recurso de aspear o dis-curso direto, a revista no diz diretamenteo preconceito. Apropria-se da voz da en-trevistada, num processo aparente de ocul-tamento. Essa apropriao, ao mesmotempo que permite o ocultamento, d lugar a

    um distanciamento no espao da discursivi-dade: a revista no opina, reproduz a vozda dona de casa. Assim, produz um sentidose eximindo da responsabilidade de ter deresponder por essa declarao polmica37.

    Mendona comprova o preconceito dis-farado pelo aspeamento do discurso di-reto ao citar o trecho seguinte da reportagem,quando a dona de casa declara sua decisode passar a frequentar praias mais distantes,

    na Regio dos Lagos. A revista identificaa a rota migratria dos fins de semana queainda vai acabar levando garotas de Ipanemae princesinhas de Copacabana a banhar-seem Vitria, num extremo, e Guaruj, no ou-tro. O prognstico sombrio notvel na

    35 Idem, ibidem.36 Grifamos o texto correspondente ao original da

    reportagem.37 Mendona. op. cit, p. 272.

    associao de imagens: a evaso dos tradi-cionais frequentadores uma perda para asbelezas naturais do Rio, infestadas agora poraquele bando da periferia. Gente escura, po-bre e mal-vestida. Gente feia, deseducada emal-cheirosa. A violncia tambm esttica.

    Nem se diga que este um caso isolado,prprio de uma revista caracterizada peloestilo editorializado, de recurso frequente ametforas fceis e de gosto no mnimo du-vidoso. No apenas a anlise em questo

    abrange outras publicaes como o mesmorecurso pode ser visto, sem grande esforo,em matrias realizadas em outra poca, poroutros jornais, mas com o mesmo sentido.Em 3 de fevereiro de 2000, por exemplo,o JB deu em manchete de pgina: Praialimpa, s no inverno. O texto principal sobre o combate s lnguas negras nas praiasda zona sul, mas as fotos, que ocupam meiapgina, so todas de desabrigados que vivemna areia. Um sutil e quase imperceptvel re-

    curso grfico (um fio ao redor desse bloconoticioso) vincula essas imagens segundareportagem da mesma pgina (Condomniodos moradores de areia), mas a associao inevitvel: aquelas pessoas fazem parte dolixo ou, talvez, so o principal lixo que aprefeitura deve eliminar, junto com as ln-guas negras.

    Sem contar que o texto da matria referentea esses personagens um primor de lugares-comuns antitticos entre a beleza do Rio ea feira dos intrusos, que ali se estabelece-ram para o desespero de frequentadores ecomerciantes da orla. A matria ope ocenrio mundialmente famoso graas m-sica de Tom Jobim ao exrcito de catado-res de lata, a princesinha do mar ao qui-nho de moradores que dependem do alum-nio para sobreviver38.

    38 Sylvia Moretzsohn. Jornalismo em tempo

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    19/38

    Imprensa e criminologia 19

    Mas a ironia comea na capa: a foto colo-rida de um homem, aparentemente um men-digo, sentado sob um coqueiro, noite, di-ante do mar, leva um ttulo que faz graacom a nobreza improvvel: Vieira Souto,no 1. A legenda vai no mesmo tom, insinu-ando o abuso dos invasores indesejveis con-tra quem paga impostos: sem se preocuparcom IPTU, uma legio de sem-teto (...) morana praia. E a chamada de capa inverte aordem de importncia definida na pgina in-

    terna: Lado mpar da orla vira rea residen-cial. O texto exemplar: As praias da zonasul no so ocupadas s por palcos e lnguanegras de esgoto. So tambm casas para umgrande contingente de sem-teto que vive sobos coqueiros. O mesmo lixo que incomodaos banhistas a principal fonte de renda des-ses moradores da areia, que ganham a vidacomo catadores de latas. Depois de empur-rar um para o outro a responsabilidade pelas

    lnguas negras na orla da cidade, a prefeiturae o estado anunciaram que vo trabalhar emconjunto para resolver o problema.

    O mesmo problema (do lixo humano,no da poluio orgnica) aparece em ma-tria do Globo de 18 de abril de 2001: Maisbossa no degradado Beco das Garrafas a manchete da reportagem que fala sobre oprojeto de revitalizao do famoso redutobomio de Copacabana. Na foto, uma mu-

    lher caminha sob o sol, falando ao celular,passando por um mendigo dormindo. Le-genda: luz do dia, um mendigo dormenum banco do calado de Copacabana: apopulao de rua um dos principais pro-blemas do bairro.

    E assim vo se consolidando as metfo-

    real: o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro, Re-van, 2002, p. 90.

    ras biolgicas do discurso higienista, queexpressam a naturalizao dos conflitos so-ciais, simplificados a partir de esteretipos(bandidos versus cidados de bem) quereproduzem o senso comum a respeito e dei-xam ilesa a estrutura radicalmente segrega-dora e violenta da prpria sociedade que pro-duz o crime e a excluso. Mesmo o lazer dossubalternos criminalizado: os bailes funkso notcia sempre que registram algum inci-dente mais grave, ou envolvem alguma per-

    verso. Verdadeira ou no, e nem mesmo ve-rossmil, pouco importa: pois, em maro de2001, os jornais noticiaram o grande escn-dalo das jovens menores de idade que esta-riam engravidando naqueles bailes, em con-sequncia da dana do trenzinho. Tudo apartir de uma denncia do ento secretriomunicipal de Sade, Srgio Arouca, que sedeclarava preocupado no com a moral, mascom a questo sanitria: a possibilidade de

    contrarem doenas sexualmente transmiss-veis, inclusive a Aids, tendo em vista que atal dana propiciava conjunes carnais comvrios parceiros.

    A denncia teve por base relatos das pr-prias moas, e em momento algum ocorreu anenhum jornal imaginar que se poderia tratarde uma estratgia banal para encobrir da fa-mlia a paternidade de uma gravidez inespe-rada, ou o libi moralmente redentor do es-tupro. Ao contrrio, deu-se crdito autom-tico palavra da autoridade. As consequn-cias eram previsveis: declaraes indigna-das condenando a depravao daquelas fes-tas, mandados judiciais expedidos para que,na saborosa expresso de Nilo Batista, a po-lcia trate de intervir nos bailes e impor en-tre os alegres vages do trenzinho uma dis-tncia compatvel com os elevados padresmorais de nossa sociedade. Sem conseguir

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    20/38

    20 Sylvia Moretzsohn

    comprovar a denncia, as diligncias logra-ram apenas o bvio, flagrando adolescentesingerindo bebida alcolica.

    Pode perfeitamente ter ocorrido que al-guma(s) adolescente(s) tenha(m) se engra-vidado em bailes funk. Ser uma novidade?Quantas moas brancas de classe mdia nose engravidaram em boates e discotecas?Ocorre que o secretrio de sade s dispede poderes para intervir e pronunciar-se so-bre a gravidez das meninas pobres, que a re-

    lataro em postos de sade municipal, e noem clnicas de Botafogo. Admitamos queo secretrio tenha de boa f acreditado naverso que tornou pblica, certamente comautorizao de sua(s) cliente(s), cuja iden-tidade preservada se revelaria na originali-dade do caso, pelo menos nos limites da vi-zinhana. Sua iniciativa teve como resul-tado visvel alavancar represso penal so-bre todos os participantes de todos os bai-les funk. E a aprendemos que, na prtica, a

    sade e o lazer dos pobres continuam sendoem nossa cidade um caso de polcia.(...) No Rio de Janeiro, o lazer dos pobressempre foi criminalizado, desde os temposdo Vidigal, e a sade pblica constituiu his-toricamente um grande pretexto para remo-es e vigilncia, dando surgimento s me-tforas da insalubridade social. Pareceque nada mudou39.

    O painel fornecido at aqui coerente

    com a anlise que, uma vez mais, Nilo Ba-tista empreende, ao sublinhar que no mo-delo neoliberal o foco do controle socialpenal se desloca das chamadas classes pe-rigosas para os excludos, para essa le-gio de pessoas humanas que se defronta-ram com as grades intransponveis que a ra-

    39 Nilo Batista. Nada mudou, in www.anf.org.br,maro de 2001.

    cionalidade do mercado construiu ao redordo alegre condomnio no qual residem asnovas acumulaes de riqueza40. Trata-se,segundo o autor, de minar os campos poronde se movimentam os excludos, para quea cada passo mais afoito exploda-lhes um de-lito aos ps41.

    A campanha de Tolerncia Zero, quecomeou em Nova Iorque e rapidamente ga-nhou o mundo na segunda metade da dcadade 90, teve enorme repercusso na mdia e

    o exemplo recente mais bem acabado dessapoltica, resumida com clareza numa decla-rao do ento chefe de polcia daquela ci-dade: Em Nova Iorque sabemos onde esto inimigo.

    Estes inimigos seriam os squeegee men,os sem-teto que abordam os motoristas nossinais para lavar os pra-brisas por uns tro-cados ([o prefeito] Giuliani tinha feito deleso smbolo desprezvel do declnio social emoral da cidade durante sua campanha elei-toral vitoriosa em 1993 e a imprensa popularos assimila abertamente a vermes: sque-egee pests), os pequenos revendedores dedroga, as prostitutas, os mendigos, os vaga-bundos e os grafiteiros. Em resumo, o sub-proletariado que vive do mercado informal erepresenta uma ameaa. Este o alvo prio-ritrio da poltica de tolerncia zero, cujoobjetivo anunciado o restabelecimento daqualidade de vida dos nova-iorquinos, poisestes, sim, sabem se comportar em pblico:as classes mdias e altas, as que ainda vo-tam42.

    40 Nilo Batista. A violncia do Estado e os apare-lhos policiais, art. cit., p. 147.

    41 Idem, p.152-3.42 Loc Wacquant. A globalizao da Tolerncia

    Zero, in Discursos Sediciosos crime, direito e so-ciedade, ano 5, no 9-10. Rio de Janeiro, Freitas Bas-tos/Instituto Carioca de Criminologia, 1o e 2o semes-tres de 2000, p. 112.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    21/38

    Imprensa e criminologia 21

    Trata-se, portanto, como o nome indica,de aplicar a lei ao p da letra, com uma in-transigncia sem falhas, reprimindo todas asmenores infraes cometidas na via pblica,de maneira a restaurar o sentimento de or-dem e forar os membros das classes infe-riores a moralizar seu comportamento43.Ressuscitando a teoria da janela quebrada,segundo a qual os pequenos delitos so aporta de entrada para os maiores e por issodevem ser reprimidos com igual rigor , acampanha foi um sucesso de mdia, pois oque se destacava era a defesa da qualidadede vida, contra o qu ningum, em s cons-cincia, poderia se opor. Assim, escondiam-se as origens e o propsito da campanha, ini-ciada no princpio dos anos 80. Loc Wac-quant aponta a articulao entre o trabalhode uma rede de think tanks neoconservado-res na Costa Leste dos Estados Unidos e asatividades de pesquisadores, jornalistas e po-lticos para justificar e divulgar a campanha,visando solapar a legitimidade do Estado dobem-estar e substitu-lo, nas camadas inferi-ores da pirmide social, por um Estado domal-estar capaz de enquadrar os segmen-tos da classe operria hostis nova culturado salrio precrio e de neutralizar os que serevelam por demais rebeldes.

    De Nova Iorque a doutrina da tolernciazero vai se propagar pelo globo com umarapidez estonteante e com ela a retrica mi-litar da guerra ao crime e da reconquistado espao pblico. Esta doutrina o ins-trumento de legitimao da gesto policial ejudiciria da pobreza que incomoda - a quese v, a que causa incidentes e problemasno espao pblico, alimentando assim umsentimento difuso de insegurana ou mesmosimplesmente de tenaz incmodo e de in-convenincia. Facilitando o amlgama com

    43 Idem, ibidem.

    a imigrao, os delinqentes (reais ou ima-ginrios), os sem-teto, os mendigos e ou-tros marginais so assimilados como inva-sores estrangeiros, elementos algenos quedevem ser expurgados do corpo social, oque acaba trazendo resultados eleitorais po-sitivos nos pases varridos por fortes corren-tes xenfobas44.

    7 Apresentando o outro lado:

    o crime e a excluso comoproblema social

    O quadro exposto at aqui pode sugerir quea grande imprensa adota uma nica estrat-gia discursiva, voltada para o apelo adoode polticas repressivas na rea da seguranapblica e, por extenso, para um controlemais rigoroso dos marginalizados. No en-tanto, fcil perceber a existncia de um ou-tro discurso, que vai aparentemente em sen-

    tido contrrio ao da represso: um discursobenevolente, de cunho social, que procuraentender e justificar o crime como expres-so de mltiplas carncias e prope soluessupostamente simples e bvias, baseadas naboa f e na boa vontade. Pretendemos de-monstrar que esse outro discurso, longe decontestar o primeiro, lhe complementar,e faz parte da mesma matriz positivista se-gundo a qual a grande imprensa trabalha.

    Assim, os inmeros exemplos fornecidosat aqui do conta de um tratamento impie-doso em relao aos excludos: so bandidosbrbaros (portanto, no-humanos), so indi-gentes, escria, lixo a ser removido. Mas htambm um outro lado, to simplificadorquanto o primeiro. Tomemos o caso do ni-bus 174: Sandro do Nascimento, o rapaz ne-

    44 Idem, p. 113.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    22/38

    22 Sylvia Moretzsohn

    gro, feio, mal vestido e desdentado, foi fla-grado por um transeunte que o viu armadoe denunciou o fato polcia. Acuado, emvez de se entregar, o rapaz tomou uma passa-geira como refm e se tornou um sequestra-dor. Os jornais do dia seguinte falavam embandido sanguinrio e frio, visivelmentedrogado. No entanto, talvez pelo comporta-mento de uma jovem passageira que se tor-nou a herona da semana ao dialogar como sequestrador e tentar acalm-lo apelando

    para a imagem do homem produto do meio(Sabe quem a maior vtima dessa situa-o? Voc), talvez porque o rapaz tivesseuma histria trgica (era um dos sobrevi-ventes do famoso massacre da Candelria,em 1993), surgiu paralelamente o discursodo bandido como vtima da sociedade. Aponto de a revista poca estampar na capa afoto de um dos momentos dramticos do se-questro com o ttulo Passageiros do horror:

    numa redao escolar e num dirio pessoal,Sandro do Nascimento e Geisa Gonalves,os protagonistas do seqestro ao nibus dalinha 174, relatam o que esperavam da vida.O encontro dos dois na segunda-feira 12 foi obra de um acaso que terminouem tragdia45.

    Nas pginas internas, a Tragdia brasi-leira: Trechos do dirio de Geisa e umaredao escrita por Sandro aos 13 anos reve-lam o que esperavam da vida os dois mortosno sequestro do nibus da Linha 174. Am-bos so igualados na condio de vtimas. Otexto se derrama pelas pginas, lacrimog-neo, trabalhando o paralelismo que reforao nivelamento dos personagens, comeandopela descrio do dia em que o destino oslevaria a se encontrarem para revelar os de-

    45 poca, no 109, 19 de junho de 2000.

    sencontros de um pas marcado por contradi-es sociais:

    Sandro do Nascimento acordou s 9 horasna manh de 12 de junho. Atravessara amadrugada daquela segunda-feira dormindosob o viaduto do Catumbi, bairro do Riode Janeiro cercado por um anel de favelas.Geisa Gonalves despertou pouco antes das5 horas, fiel rotina seguida na Vila Verme-lha, localizada na parte alta da Rocinha, amaior favela da cidade. Ali, numa das tan-

    tas vielas midas e escuras, morava Geisa.Sandro tinha brigado com a namorada de 20anos, com quem vinha dividindo o cober-tor marrom. Ela se aborrecera na noite dedomingo ao ver Sandro descer, drogado, oMorro da Mineira. Ele pegou R$ 150 egastou tudo em p, conta a jovem. O na-morado irritou-se. "Eu me amarro na sua,mas minha mina a coca", retrucou. No jar-go do morro, "mina" mulher.(...)Poucas horas antes, estremunhada, Geisadespedira-se do marido, que saa rumo aoJockey Club, onde trabalha como cavala-rio. Era apaixonada por Alexandre, perso-nagem central do dirio que abrigava seussonhos e decepes. Perto dele sou cri-ana e mulher numa s, escreveu, num tre-cho em que faz uma descrio minuciosa doamor de sua vida.

    So muitas, alis, as referncias ao dirio

    de Geisa, que buscam o evidente contrasteemocional entre a esperana da moa e o seudestino trgico.

    Estou viajando para o Rio de Janeiro. Es-tou indo ao encontro da minha felicidade,escreveu em 21 de maio de 1999. Ao em-barcar em Fortaleza, no Cear, virou-se paraa irm e disse 11 palavras dramaticamentepremonitrias. Vou ficar famosa no Rio.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    23/38

    Imprensa e criminologia 23

    Vocs vo me ver na TV. Era s um sonho.Seria um pesadelo. O ltimo. Chegando aoRio, Geisa foi morar na Rocinha. Ao contr-rio dos brasileiros que vem as favelas ape-nas como cenrio do desfile de tragdias donoticirio policial, ela se encantou. Estoumorando na Rocinha, mas muito feliz, con-fidenciou ao dirio.

    Quanto aos sonhos de Sandro, porm, apromessa do ttulo no se cumpre: h apenasduas singelas frases retiradas de uma reda-

    o feita aos 13 anos (Eles no so animaisno. So crianas indefesas sem nenhuma ri-queza) e o comentrio de sua ento profes-sora, a pedagoga Lgia Costa Leite: Desdeos 7 anos ele lutava para no morrer. O ex-termnio virou poltica social no Brasil.

    Houve, certo, pelo menos dois exemplosque evitaram a simplificao. Ambos no JB:um rememorava a histria dos sobreviventesdo massacre (Uma chacina que dura sete

    anos, na edio de 19 de junho de 2000,manchete da pgina 18, com chamada decapa que apresenta duas fotos de Sandro, aos14 e aos 21 anos, sob o ttulo Marcados paramorrer); outro, no dia 21, um pequeno qua-dro com foto de um grupo de quatro rapazespobres, intitulado Sandro na PUC, expea precariedade das possibilidades de integra-o de jovens marginalizados, a fragilidadedos laos entre eles e quem deseja ajud-los: o breve perodo em que aqueles jovens

    tiveram a oportunidade de participar de umprograma comunitrio promovido pela PUC,atravs da prtica da capoeira.

    Os meninos participaram apenas um ano emeio, de meados de 93 at o final de 94.Sandro, porm, se desligou do grupo antese nunca mais foi visto. Nessa poca, elefoi preso traficando drogas e ficou internadodurante seis meses no Instituto Padre Seve-rino. Depois, seguiram-se assaltos e prises

    que resultaram em mais cinco anos de con-denao na Justia. Foragido, Sandro voltoua viver nas ruas e se afastou dos amigos.

    No contexto geral da cobertura, porm, oque ficou foi essa oscilao entre o retratode um brbaro e o desenho de uma vtima dosistema, ambos vivendo na mesma pessoa. Aoutra nfase recaiu sobre a condenao da in-competncia da polcia que mereceria an-lise parte, pois se baseia na mesma simpli-

    ficao , mas disso no vamos tratar aqui.Outro exemplo clssico nesse movimento

    pendular o do tratamento dado a crian-as e adolescentes marginalizados. Em meioa inmeras matrias que sublinham o pe-rigo representado por menores delinquentes(Bator fugiu. So Paulo est mais peri-gosa) e carreiam argumentos para o apeloa mais represso (a reduo da idade paraimputabilidade penal, por exemplo), surgemtextos que tratam esses menores piedosa-

    mente, como crianas inocentes. O ento di-retor de redao do JB, Fritz Utzeri, esco-lheu o Dia das Mes de 2000 para escreverum artigo melodramtico sobre um meninoque dormia ao relento num calado da orlada Zona Sul, na manh de um dia radioso,entre jovens atlticos que desfilavam roupasesportivas e faziam suas caminhadas sem lhedar ateno. A foto do menino encolhido nocobertor sujo ocupava a capa e a contracapada edio de 15 de maio. notvel ainda

    que, no dia seguinte publicao do texto, ojornal tenha desejado sair cata daquele me-nino, como se fosse possvel encontr-lo en-tre tantos outros e, principalmente, como se ahistria dele fosse diferente da de tantos ou-tros; enfim, como se aquela situao particu-lar fizesse alguma diferena a no ser parao prprio jornal sublinhar seu lado humanit-rio: quem sabe, a partir daquela histria co-movente, no surgiria alguma boa alma para

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    24/38

    24 Sylvia Moretzsohn

    adotar o menino que dormia o triste sonosem me?

    Na manh fria de Ipanema, o meninodorme um sono profundo. Estaria so-nhando? Enrolado numa manta, encolhidopara proteger-se do frio, falta algo quelemenino sem nome no dia de festa. O Diadas Mes. Quem ser a me do menino? Porque no esto juntos nesse dia como tantosfilhos e tantas mes, de todas as idades, quebrincam na praia e fazem grandes filas em

    churrascarias, exibindo presentes? Comoele, centenas de meninos, milhares de meni-nos, em todo o Brasil, no tiveram a alegriade ver as mes em seu dia.Dorme o menino, alheio a trabalhos de espe-cialistas que registram aumento do consumode cola de sapateiro entre os menores de ruanesses dias de festa. A droga-cola, que ali-via, ajuda a fugir do triste dia-a-dia e acabapor matar.O que esperar desse menino que dorme? O

    que cobrar dele mais tarde? Provavelmentea sociedade lhe reserva repulsa e repressoe, se tiver sorte, chegar a ser um adulto.Que tipo de adulto? Inocente e indefeso,dorme o menino. Est s, todos passamosindiferentes por ele quando o vemos em si-nais, vendendo doces, limpando vidros, pe-dindo esmola.Por que tem que ser assim? Que tipo de vidae de sociedade leva uma me a abandonarsua cria prpria sorte? Nem os animais fa-

    zem isso, mas as circunstncias, muitas ve-zes, obrigam o ser humano a ser mais insen-svel do que os bichos. O que vamos fazertodos, a comear pelo governo das estatsti-cas sem alma? Esse menino no seria con-seqncia de um modo de conduzir a soci-edade? No seria melhor que os polticose governantes prestassem mais ateno nelee na legio de sem-me que assolam nossasruas? E ns, o que vamos fazer a respeito?

    No seria a hora de, pelo menos no Dia dasMes, pensar um pouco a respeito disso?Dorme o menino, na frieza dura da pedra,e se pudesse sonhar, sonharia com o calormacio do regao materno, com uma canode ninar, cheia de carinho. Dorme o menino,dorme com frio...46

    O que ns (a imprensa, no caso) pode-ramos fazer a respeito seria, de sada, mudaro foco da cobertura. Pois esse mesmo me-nino andrajoso frequenta sistematicamentea capa dos mesmos jornais, flagrado emsequncias de fotos que testemunham peque-nos furtos nas praas movimentadas da ci-dade, nos sinais de trnsito, nos calades beira-mar, ou perambula em grupos demaltrapilhos cheirando cola, jogados ao lu.Essa configurao cotidiana no deixa d-vidas sobre quem ele : um perigo para asociedade. No entanto, o discurso oscila:num mar de represso, espasmos de huma-

    nitarismo tambm centrados na figura do in-frator, momentaneamente encarado como v-tima.

    Devemos ter pena ou medo deles? De-vemos ampar-los a ponto de adot-los emnossas casas ou ranger os dentes, cerrar ospunhos e bradar pelo seu extermnio?

    Essa dualidade simplificadora no ape-nas resultado de alguma falha na formaodo jornalista, ou de uma incapacidade de

    apreender as questes sociais em sua com-plexidade: faz parte da prpria maneira pelaqual a imprensa se organiza como empresa,envolvendo as rotinas de produo e a ne-cessidade de cumprir prazos cada vez maisexguos. Comea com o crculo vicioso for-mado pelo recurso s mesmas fontes, abor-dado por Gans com ironia numa demons-

    46 Fritz Utzeri. O triste sono sem me. Jornal doBrasil, 15 de maio de 2000.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    25/38

    Imprensa e criminologia 25

    trao dos motivos pelos quais tudo o querompe o ronron tem todas as chances de noser percebido:

    A relutncia em contactar outras pessoasque no as fontes oficiais e familiares nodeveria nos espantar. Os sempre apressa-dos reprteres no tm tempo para desen-volver um relacionamento com fontes nofamiliares e nem seguir a rotina que trans-forma desconhecidos em informantes. (...)As fontes no familiares podem fornecer in-formaes no passveis de avaliao, o quegera insegurana. E, sobretudo, as fontesno familiares podem fornecer informaesnovas ou contraditrias que atrapalhem acapacidade dos reprteres para generalizare resumir. Todos os jornalistas tm que seapoiar numa base de dados de nmero limi-tado para no serem inundados por um vo-lume de informao maior daquele que po-dem rapidamente processar e adaptar ao li-mitado tempo de transmisso ou ao limitadoespao de impresso [do jornal]47.

    E se completa com a argumentao deSchudson a respeito da dualidade sobre aqual a imprensa opera:

    Isto o que a imprensa realiza melhor: ma-trias adequadas, que tm antecipadamenteseus pontos finais, e cujos pontos finais re-sultam de possibilidades simples, binrias -a eleio ou o jogo ser ganho ou perdido,o ndice Dow-Jones vai subir ou descer, oacusado ser julgado culpado ou inocente, ocriminoso foi preso ou est solta, o paci-ente sobrevive ou morre, a criana est de-saparecida ou foi encontrada. Temas maiscomplexos do que estes - o oramento, porexemplo -, se devem ser cobertos com efici-ncia, so traduzidos em oposies binrias

    47 Gans. op. cit. Grifos nossos.

    do tipo: o presidente vai sair vitorioso ouser derrotado pelo Congresso48.

    Cabe ressalvar, porm, que no so os te-mas que so simples ou no; a rigor, todasas notcias poderiam ser exploradas em suacomplexidade. Fatos criminais, jornalsti-cos por excelncia - pois representam o des-vio mais ou menos violento norma - pode-riam ser abordados no seu potencial crtico aessa mesma norma, pois o desviante no

    aquele que l a norma diferentemente, mas o que l na norma aquilo que ela quer ocul-tar49. Mas para isso a imprensa precisariaestar assentada em outras bases.

    8 Propondo solues: o socialcomo coisa simples

    No j referido estudo sobre a questo so-cial grave questo resultante das contradi-

    es entre capital e trabalho , Gislio Cer-queira Filho demonstra como as oscilaesno tratamento do tema (caso de polcia/casode poltica), desde o no-reconhecimento,na Repblica Velha, at a legitimao, apsa Revoluo de 30, se deu sempre atravsda mesma fundamentao positivista oculta-dora dos conflitos, orientada sempre por umateoria da integrao social. A estratgia dis-cursiva , claro, converter o ideolgico emnatural. Assim, a prpria legitimao daquesto se dar nos termos da reiterao domito do Brasil como um pas especial, suigeneris, onde no cabem a violncia, o con-flito social, que so atribudos a outros po-vos50: assim, em toda parte a questo so-cial grave e inquietadora; aqui, ela pode

    48 Schudson, op. cit., p. 99. Grifo nosso.49 Antonio A. Serra. op. cit., p. 23.50 Gislio Cerqueira Filho, op. cit, p. 119.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    26/38

    26 Sylvia Moretzsohn

    ser reconhecida exatamente porque no re-presenta perigo ao contrrio, expressa aharmonia entre capital e trabalho51.

    Essa teoria da integrao social um dosmarcos fundamentais em torno dos quais seconstri o discurso poltico dominante sobrea questo social.

    Portanto, o discurso poltico dominante so-bre a questo social o discurso polticodo capital, adaptado s condies conjuntu-rais da formao histrica brasileira. Vale

    dizer, calcado no autoritarismo e na concili-ao, isto , no paternalismo52.

    A anlise tem como foco central a relaoentre Estado e sindicatos, a legislao tra-balhista como outorga e no como resul-tado das tenses entre as classes, etc., mas seaplica igualmente maneira pela qual o dis-curso dominante enquadra os subprodutos darelao capital/trabalho: a questo criminal ea periferia, os marginalizados em geral.

    Some-se a isso a crtica de Jock Young criminologia cosmtica e ao social comocoisa simples, e teremos instrumentos paraavaliar esse outro eixo da cobertura desti-nada aos fatos criminais e aos excludos.

    A falcia cosmtica concebe a criminali-dade como um problema superficial da so-ciedade, tpico, que pode ser tratado coma aplicao do ungento apropriado, e nocomo uma doena crnica da sociedade

    como um todo. Esta atitude engendra umacriminologia cosmtica, que v a crimina-lidade como uma mancha passvel de serremovida com o tratamento apropriado docorpo, que, sem ela, saudvel e tem poucanecessidade de reconstruo. Esta crimino-logia (...) prefere solues tcnicas, seg-mentrias. Por isto ela inverte a causalidade:51 Idem, p. 77.52 Idem, p. 119.

    a criminalidade causa problemas para a so-ciedade, em vez de a sociedade causa oproblema da criminalidade53.

    Tal a inverso que permite, segundo oautor, a demonizao de partes da socie-dade:

    Em vez de se reconhecer que temos pro-blemas na sociedade por causa do ncleobsico de contradies na ordem social,

    afirma-se que todos os problemas da soci-edade so devidos aos prprios problemas.Basta livrar-se dos problemas e a sociedadeestar, ipso facto, livre deles! Assim, emvez de sugerir, por exemplo, que grandeparte do uso deletrio de alto risco de dro-gas causado por problemas de desigual-dade e excluso, sugere-se que, se nos li-vrarmos deste uso de drogas (diga no,trancafiem os traficantes), no teremos maisnenhum problema. A soluo torna-se ento

    entronizar potentados como czares do com-bate antidrogas, na perspectiva de eliminaro problema da sociedade, como se fosse umproblema cosmtico e no da estrutura e dosvalores interiores da prpria sociedade54.

    A segunda falcia, segundo Young, giraem torno da idia amplamente aceita de queo mundo social uma estrutura relativa-mente simples, em que taxas de diferenteseventos sociais (e.g. casamentos, suicdios,

    greves, crimes) podem ser relacionados commudanas estreitamente delineadas em ou-tras partes da estrutura. O autor mostracomo essa simplificao adapta-se perfeita-mente rotina de trabalho da imprensa:

    53 Jock Young. A sociedade excludente exclusosocial, criminalidade e diferena na modernidade re-cente. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Crimino-logia/Revan, 2003, p. 191.

    54 Idem.

    www.bocc.ubi.pt

  • 7/31/2019 Moretzsohn Sylvia Imprensa Criminologia

    27/38

    Imprensa e criminologia 27

    A chave para o interesse e a qualidade deuma notcia (...) o atpico: aquilo que sur-preende, que est em contraste com a pre-sumida normalidade cotidiana. No deespantar que criminlogos e estudantes ve-nham se interessando pelo lado negativo doatpico: viles, assassinos em srie, dem-nios populares e outros monstros. Mas olado positivo, estrelas, heris, princesas en-cantadas mortas em circunstncias trgicas,tambm um lugar de concentrao da m-dia e de projeo de esperanas e ansiedadespblicas. E exatamente os mesmos proces-sos de seleo, nfase e construo de not-cias ocorrem aqui, como no lado escuro daexistncia humana. Assim, embora ondasde crimes sejam um prato de resistncia daimprensa, as curas milagrosas da crimina-lidade tambm o so (sejam elas suplemen-tos alimentares, circuitos fechados de tele-viso, Vigilantes de Bairro, teste de ADNou Tolerncia Zero em Nova Iorque). Pni-cos e panacias morais andam lado a lado, econstituem o estoque dirio das coberturasnoticiosas, assim como as histrias trgicasdos que esto aflitos pelo cncer e as des-cobertas revolucionrias regulares no seutratamento55.

    Criminosos e excludos esses, sempre aum passo da delinquncia seriam ovelhasdesgarradas cuja ressocializao dependeria,portanto, de solues simples. Curioso

    que a ressocializao em instituies comoa Febem, no caso de crianas e adolescentes se daria atravs do aprendizado de determi-nadas profisses que eventualmente os pr-prios infratores desempenhavam antes de se-rem ali recolhidos, e que no so considera-das como tais quando esses menores respon-dem aos questionrios que os enquadram.

    55 Idem, p. 189 .

    Fo