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lU DIREITO DE FAMÍLIA XLVII NOÇÕESnITRODUTÓruAS Sumário: 273. O objeto do estudo do direito de família romano. 274. Do direito ro- mano ao moderno: a evolução da família proprio iure. 273. O objeto do estudo do direito de família romano - Modemarnente, o termo família é empregado, em geral, em dois sentidos: a) em sentido amplo, ele abrange o conjunto de pessoas vinculadas por parentesco consangüineo, quer na linha reta, quer na colateral (vide n° 85); e b) em sentido estrito, ele abarca os cônjuges e seus filhos (portanto, as pessoas liga- das pelo casamento - os cônjuges, que não são parentes em virtude do matrimônio; e as vinculadas por parentesco consangüíneo, mas restritas a pais e filhos). É da familia em sentido estrito que se ocupa, principalmente, o direito de família moderno. Àfamília em sentido amplo ele alude vez por outra, abrangendo nesse termo, conforme a natureza das relações de que se ocupa, um círculo maior ou menor de paren- tes consangüíneos. I Em direito romano, 2 porém, a questão se complica, pois, juridicamente, têm de ser levados em consideração cinco grupos' de pessoas vinculadas pelo parentesco ou pelo casamento: A propósito, vide, enlre ouiros, Ruggiero-Maroi, Istituzioni di Diritto Privaio, I, 8"ed., § 48, p. 234 e segs., Milano-Messina, 1950. 2 Para melhor compreensão da exposição que se segue no texto, vide o n° 85, onde se salienta (nota 27 do capítulo XI) que o vocábulo familia; 'nas fontes, é empregado em outras acepções que não as que ora estudamos (a esse respeito, vide, também, Heumann-Seckel, Handlexikon zu den Quellen des Rã- mischen Rechts, 9" ed., verbete familÚl, Jena, 1907). 3 Com a palavra grupo designamos não necessariamente organismo com estrutura própria (a família comuni iure e o conjunto decognodos em sentido restrito não o eram), mas complexo de pessoas vin- culadas pelo parentesro.

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lU

DIREITO DE FAMÍLIA

XLVII

NOÇÕESnITRODUTÓruAS

Sumário: 273. O objeto do estudo do direito de família romano. 274. Do direito ro-mano ao moderno: a evolução da família proprio iure.

273. O objeto do estudo do direito de família romano - Modemarnente, o termofamília é empregado, em geral, em dois sentidos:

a) em sentido amplo, ele abrange o conjunto de pessoas vinculadas por parentescoconsangüineo, quer na linha reta, quer na colateral (vide n° 85); e

b) em sentido estrito, ele abarca os cônjuges e seus filhos (portanto, as pessoas liga-das pelo casamento - os cônjuges, que não são parentes em virtude do matrimônio; e asvinculadas por parentesco consangüíneo, mas restritas a pais e filhos).

É dafamilia em sentido estrito que se ocupa, principalmente, o direito de famíliamoderno. Àfamília em sentido amplo ele alude vez por outra, abrangendo nesse termo,conforme a natureza das relações de que se ocupa, um círculo maior ou menor de paren-tes consangüíneos. I

Em direito romano,2 porém, a questão se complica, pois, juridicamente, têm de serlevados em consideração cinco grupos' de pessoas vinculadas pelo parentesco ou pelocasamento:

A propósito, vide, enlre ouiros, Ruggiero-Maroi, Istituzioni di Diritto Privaio, I, 8"ed., § 48, p. 234 esegs., Milano-Messina, 1950.

2 Para melhor compreensão da exposição que se segue no texto, vide o n° 85, onde se salienta (nota 27do capítulo XI) que o vocábulo familia; 'nas fontes, é empregado em outras acepções que não as queora estudamos (a esse respeito, vide, também, Heumann-Seckel, Handlexikon zu den Quellen des Rã-mischen Rechts, 9" ed., verbete familÚl, Jena, 1907).

3 Com a palavra grupo designamos não necessariamente organismo com estrutura própria (a famíliacomuni iure e o conjunto decognodos em sentido restrito não o eram), mas complexo de pessoas vin-culadas pelo parentesro.

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602 JOSÉ CARLOS MOREIRA AL VES

a) a gens, cujos membros, que se denominavam gentiles, julgavam descender deum antepassado comum, lendário e imemorável, do qual recebiam o nome gentílico (eera esse nome, e não, necessariamente, o parentesco consangüíneo, que os unia);

b) afamilia comuni iure, conjunto de pessoas que, sendo agnadas (isto é, ligadaspor parentesco agnatício - vide n° 85), estariam sujeitas àpotestas de um pater familiascomum, se ele fosse vivo;

c) o conjunto de cognados em sentido estrita.' isto é, aqueles que, não sendo agna-dos uns dos outros, estavam ligados apenas pelo parentesco consangüíneo;

d) afamiliaproprio iure, o complexo de pessoas que se encontravam sob apotestasde um pater familiasi' e

e) efamilia natural (denominação devida a romanistas modernos)," agrupamentoconstituído apenas dos cônjuges e de seus filhos, independentemente de o marido e paiser, ou não,pater familias da mulher e dos descendentes imediatos.

O estudo do direito de família romano? tem como objeto, principalmente, «familiaproprio iure e afamília natural. Da gens, da familia comuni iure e do conjunto de cogna-dos em sentido estrito, ele se ocupa incidentemente.

Assim, enquanto no direito de família moderno a atenção se volta para a família emsentido estrito (que corresponde ao que os romanistas, em geral, denominam família na-turals, no direito de família romano estuda-se não apenas a família natural, mas também

4 Cognado em sentido estrito para indicar os cognados que não são também aguados. Com efeito. quemé agnado (com exceção do filho adotivo e da mulher casada sine manu) é igualmente cognado, mas arecíproca não é verdadeira, pois há cognados - e é a esses que nos referimos com a expressão cogna-dos em sentido estrito - que não são agnados (assim, por exemplo. o tio matemo e o sobrinho).Note-se - como observa Biondí (lstituzioni di Diritto Romano, 3' ed., § 144, p. 548 e nota 32) - que,em virtude da progressiva substituição da agnatio, se verifica uma certa oscilação na terminologiausada pelos juristas clássicos: cognados (assim, D. XXXVIll, 10,4,2, texto atribuído a Modestino) setorna expressão genérica, distinguindo-se a cognatio ciuilis (que corresponde à agnatio) da cognationaturalis (que corresponde à antiga cognatio); por outro lado, Gaio (lnstitutas, m, 10) se refere aosaguados como legitima eognatione iuneti(unidos porcognição legítima); Paulo (D. xxxvm, 10,2)salienta que são eognati os que a Lei das XII Tábuas denominava adgnati; e Ulpiano (D. XXXVIII, 8,I, 4) acentua que eognationem facit etiam adoptio (a adoção também cria a cognação).

5 Sobre a distinção entre afamilia eomuni iure e afamilia proprio iure, vide D. L. 16, 195,2 (texto atri-buído a Ulpiano).

6 Os romanistas, porém, nem sempre usam essa expressão para designar apenas os cônjuges e seus fi-lhos. Alguns (assim, entre outros, Salkowski, Lehrbueh der 1nstitutionem und der Geschichte des Rõ-misehen Privatreehts, 6' ed., §42, I, p. 136, Leipzig, 1892; e Czyhlarz, Lehrbuch der 1nstitutionemdes Rõmischen Rechtes, l l" e 123 ed., §30, p. 56, Wien-Leipzig, 1911) se utilizam dela para indicar afamília cognatícia (que abrange todos os parentes consangüíneos). No sentido empregado no texto,vide Carlo Longo, Corso di Diritto Romano (Diritto di Famiglia), p. 139, Milano, 1946.

7 Sobre o direito de família romano, vide, entre outros, Fadda, Diritto delle Persone e della Famiglia,Napoli, 1910; Bonfante, Corso di Diritto Romano, 1- Diritto di famiglia, ristampa, Milano, 1963(obra que continua fundamental para o estudo dessa matéria); Giannetto Longo, Dirttto Romano, 111-Diritto difamiglia, Roma, 1940; e Carlo Longo, Corso di Diritto Romano - Diritto di Famiglia, Mila-no, 1946.

DIREITO ROMANO 603

afamilia proprio iure: aquela constituída pelo casamento; esta fundada na potes tas (po-der) do pater famílias.

Em vista disso, analisaremos o direito de família romano em três capítulos:- no primeiro, examinaremos afamilia proprio iure, analisando apotestas do pater

famílias;- no segundo, estudaremos afamilia natural, examinando sua constituição pelo ca-

samento, bem como as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, e os pais e osfilhos, independentemente da potestas do pata familias; e

- no terceiro, como ocorre no direito moderno, analisaremos os institutos da tutela eda curatela.

274. Do direito romano ao moderno: a evolução da família proprio iure - Doconfronto dos cinco complexos familiares que se distinguem no direito romano com asduas acepções em que o termo família é empregado no. direito moderno, verifica-se que,entre efamilia natural romana e afamília moderna em sentido estrito, não há diferençassubstanciais: ambas se constituem pelo casamento, e em ambas há relações pessoais e pa-trimoniais entre os cônjuges, e pais e filhos. O mesmo, porém, não ocorre quanto, de umlado, sfamilia moderna em sentido amplo, e, de outro, àgens, àfamilia comuni iure, aoconjunto de cognados em sentido estrito e é famiiia proprio iure. Com efeito, hoje todoparente consangüíneo (quer pelo lado paterno, quer pelo matemo) pertence àfamília emsentido amplo; em Roma, não: em virtude dapotestas do pater familias e da distinção en-tre parentesco agnatício e cognatício, os gentiles - que tinham o mesmo nome gentilício eque julgavam descender de um antepassado lendário - constituíam a gens; osagnados,que estariam sujeitos a um pater familias comum, se vivo, formavam a família comuniiure; os cognados em sentido estrito integravam um complexo à parte, mas levado emconsideração pela ordem jurídica; e os agnados que se achavam submetidos àpotestas deum pater familias constituíam, com este, afamília proprio iure.

Ora, se desaparecida apotestas majestática do paterfamilias e se abolido o paren-tesco agnatício, as pessoas que, em Roma, se distribuíram por esses quatro agrupamentos(gens, familia comuni iure, conjunto de cognados em sentido estrito efamília .proprioiure) passariam a constituir, como atualmente, umafamília em sentido amplo (conjuntode parentes consangüíneos).

Mas, durante toda a evolução do direito romano, observa-se apenas - pelo gradativoenfraquecimento da potestas do pater familias e pela progressiva substituição do parentes-co agnatício pelo cognatício - a tendência para se chegar à família moderna em sentido am-plo. Mesmo no tempo de Justiniano não se atinge essa equiparação, pois, se nessa época éabolido o parentesco agnatício," também é certo que a potes/as dopater famílias, emboraacentuadamente enfraquecida, ainda é, ao contrário do que sucede nodireito moderno, o

8 Nov. CXVIII.

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604 JOSÉ CARLOS MORElRA AL VES

poder que submete ao pater familias, enquanto vivo, seus descendentes. O direito romanonão chegou a conhecer o instituto da maioridade, pelo qual, no direito moderno, o filho, aoatingir uma idade determinada, se desvincula do pátrio poder. Por isso, ainda no direito jus-tinianeu, depois de abolido o parentesco agnatício, vamos encontrar, em contraposição àfamília moderna em sentido amplo, dois complexos familiares:

a) o conjunto de cognados (parentes consangüíneos em geral) que não se encontramsujeitos à potestas do mesmo pater familias; e

b) afamilia proprio iure (embora com sua estrutura muito abalada em decorrênciado enfraquecimento da potestas do pater familias), constituída do pater familias e dosdescendentes submetidos à sua potestas.'

Para que se tenha uma visão geral dessa evolução, estudemos as etapas por que elapassou - direito pré-clássico, direito clássico e direito pós-clássico e justinianeu -, to-mando como elemento central da exposição a familia proprio iure (à qual- seguindo Pe-rozzi - nos referimos, por antonomásia, com o termo família simplesmente), que foi oorganismo básico da estrutura familiar romana, e que, por isso, embora em decomposi-ção, não desapareceu enquanto perdurou o sistema jurídico romano.

A)Direito pré-clâssico

A família, no direito pré-clássíco," se caracteriza por ser rigidamente patriarcal, epor constituir um agrupamento que goza de relativa autonomia em face do Estado. Sêne-ca 11 assim se referiu a ela: (maiores nostri) domum pusillam rempublicam esse iudicaue-runt (os nossos antepassados julgaram que o lar doméstico era uma pequena república).O Estado, em verdade, não interfere nas questões surgidas no seio da família, as quais sãosoberanamente decididas pelo pater famílias, com a assistência, em certos casos, de umconselho familiar.

Por outro lado, na família, distinguem-se duas categorias de pessoas:a) o chefe absolnto - opater familias (pessoa sui iuris, isto é, independente), que é

aquele que não tem, na linha masculina, ascendente vivo a que esteja sujeito; eb) as pessoas a ele subordinadas - os filii 'familias (pessoas alieni iuris), categoria que

abrange a esposa do pater familias, seus descendentes (inclusive adotivos) e mulheres.Os poderes do pater 'familias sobre as pessoas a ele submetidas se designam, a prin-

cípio, com uma única palavra: manus. Mais tarde, criam-se denominações específicaspara indicar sua potestas sobre determinadas espécies de pessoas que constituem a famí-

9 Agem já desaparecera no principado; efamilia comuni iure, com a extinção da agnatio.10 . Sobre a família romananesse período, vide, entre outros, Kaser, Das Rõmische Privatrecht, I, § 11, p.

44 e segs., MÜDChen,1955, ela Famiglia Romana Arcaica in Conferenze Romanistiche (Universitàdegli 'SiwJidi Triestre], I,p. 39 e segs., Milano, 1960; Cuq, Les Institutions Juridiques des Romains,L'Ancien Droit, p. 152 e segs., Paris, 1891; Cornil, Ancien Droit Romain, p. 31 e segs., Bruxel-les-Paris, 1930; e Voei, Qualche Osservazioni sulla Famiglia Romana Arcaica, in Studi di Diritto Ro-mano, I,pp. 199 a 209, Padova, 1985.

11 Epistolae ad Lucilium, V, 47, 14.

DIREITO ROMANO 605

lia: a manus maritalis (ou potestas maritalis) traduz o poder marital (dele sobre sua espo-sa ou dele sobre as esposas dos sujeitos à: sua patria potestas); a patria potestas, o pátriopoder (dele sobre seus descendentes ou adotados); a potestas (a expressão dominica po-:testas não é romana, mas moderna), o poder sobre os escravos; e o mancipium, o podersobre as pessoas in mancipio (yide n° 85, B).

São absolutos os poderes do pater famílias sobre as pessoas e coisas a ele submetidas. 12

É ele o chefe militar da família, seu sacerdote e juiz; tem poder de vida e de morte sobre todosos membros da família - pode, até, expor os filhos, ao nascerem; ou, depois, vendê-los, no es-trangeiro, como escravos. Todo o patrimônio da família lhe pertence; daí, tudo o que as pesosoas, que lhe são submetidas, adquirem passa a pertencer a ele. Somente ingressa na famíliaquem o pater familias quiser: até os filhos de sua esposa ele deverá reconhecê-los comoseus.'? E para que uma pessoa alieni iuris saia de sua familia é necessário que opater famí-lias o consinta, pela emancipação ou pela extinção da manus maritalis.

Não há, em Roma, o que modernamente se denomina maioridade. No período históri-co, morto o pater familias, a família se divide em tantas quantas forem os filii familias quepassam a patres familias, que ficaram sem ascendente masculino vivo a que estejam sujei-toS.14 Em tempos mais remotos - conjetura Bonfante," com base em outros direitos primiti-vos e na estrutura do direito hereditário romano - é possível que essa divisão não ocorresse,verificando-se apenas, quando falecia opaterfamílias, sua substituição por um dosfilii famí-lias previamente designado por ele, permanecendo indivisível o agrupamento familiar.

Os autores procuram explicar essas características por diferentes concepções sobrea família romana primitiva. Sumner Mainel6 defende a tese de que era ela um agrupa-mento patriarcal, baseado no vinculo de sangue. Fustel de Coulanges.V dando especialrelevo à religião, vê nela um agrupamento de pessoas ligadas por um culto: o dos mortos- crença segundo a qual os antepassados continuavam a viver no túmulo, transformadosem deuses tutelares dafamília, mas necessitando dos cuidados de seus descendentes, queos mantinham enterrados junto ao lar comum. Meyer'" entende que a família.romana sur-giu da cisão de grupos sociais mais amplos do que ela, guardando-lhes as características.

12 Gal10 (Osservasioni sulla signoria dei pater famílias in epoca arcaica, fi! Studi in onore di Pietro deFrancisci, vol. 11,p. 195 e segs., Milano, 1956) sustenla a tese de que os vários poderespatrimoniais epessoais concentrados nas mãos do pater familias no período clássico resultaram de uma única e in-distinJa senhoria existente nas origens.

13 Essa é a opinião comum entre os autores (vide, entre outros, Declareuil, Patemité et Filiation legiti-mes, in Mélanges P. F. Girard, I, p, 326 e segs., Paris, 1912). Sobre a opinião contrária dePerozzi,vide nossa nota 1 do capítulo XLVllI.

14 D. L. 16, 195,2.15 Corso diDiritto Romano, I, (Diritto di Famiglw), reimpressão; p. 11 e segs., Milano, 1963.16 As passagens de Sumner Maine, relativas a essa tese, se acham amplamente indicadas em Bonfante,

Teorie vecchie e nuove sul/e formazioni socialt primitive, in Scritti Giuridici Varií, ItFamiglia esucocessione), p. 21 e segs., nota 2, Torino, 1926.

17 La CiIéAntique,19" ed, p. 39 e segs., Paris, 1905.18 Sobre a tese de Meyer, vide Bonfante, Teorie vecchie e nuove sulle formazioni sociali primitive, in

Scritti Giuridici Varii, I (Famiglw e successione),p. 26 esegs., Torino,1926. .

I

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606 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES

Arangio-Ruiz" a concebe como órgãos com finalidade precipuamente econômica.Bonfante/" a caracteriza como verdadeiro organismo político. E Kaser,21por último, pro-cura explicar as particularidades da família, em Roma, pela vida rural nos tempos primi-tivos.

Apesar das críticas que tem sofrido" - algumas das quais não convenientementesuperadas -, a teoria que, a nosso ver, ainda melhor explica as peculiaridades da famíliano direito pré-clássico é a de Bonfante: a família romana primitiva é um organismo polí-tico. Essa tese está, aliás, em consonância com outra defendida pelo genial romanista ita-liano: a de que a gens era um agrupamento de famílias, com caráter político (dada suafinalidade de manutenção da ordem e de proteção contra inimigos externos), tendo prece-dido ao próprio Estado. Este, quando surge, entra em luta com a gens, e, para destruí-Ia,provavelmente fortalece as diferentes famílias que compõem as diversas gentes, respei-tando-lhes a organização política. Comisso, agens entra em decadência e,então, o Esta-do, vencido o inimigo maior, começa a enfraquecer a família, retirando-lhe a pouco epouco as características de um pequeno Estado dentro do Estado.

Em favor da tese de Bonfante, há uma série de semelhanças entre a organização, emRoma, do Estado e a da família, as quais, por certo, não são simplesmente obra do acaso.Opaterfamilias desempenha,na familia, as funções do rei no Estado; sobre as pessoas aele sujeitas tem poder de vida e de morte; sobre as coisas que constituem o patrimônio fa-miliar dispõe domancipium que mais se aproxima da soberania do que, propriamente, dodireito de propriedade. E,assim como o cidadão não pode estar vinculado a dois Estados,ninguém pode pertencer, ao mesmo tempo, a duas famílias.

B) Direito clássico

No direito clássico, a evolução da família decorre, principalmente, da atuação, nosfins da república, do pretor, e, no principado, dos imperadores e jurisconsultos.r'

Como observa Cuq,24essa evolução se caracteriza por três fatos:

19 Cf.Bonfante, ob. cit., na nota anterior,p. 44 e segs.20 A propósito, vide Corso di Diritto Romano, I (Diritto di Famiglia) p. 8 e segs.; La "gens" e Ia "fami-

lia" e Teone vecchie e nUOl'esulle formazioni sociali primitive, ambos em Scritti Giuridici Varii, I(Famiglia esuccessioneu p. 1e segs. e 18e segs., Torino, 1926, respectivamente; e La progressiva di-versificaziose del diritto pubblico e privato, in Scritti Giuridici Varii, IV (Studi Generali), p. 28 esegs., Roma, 1925.

21 Das Rômische Privatrecht, I, § lI,p. 44 e segs., München, 1955; eLa Famiglia Romana, Arcaica, inConferenzeRomanistiche (Università degli Studi di Trieste), I, p. 39 e segs., Milano, 1960.

22 Como, por exemplo, a de Voei, Esame delle tesi del Bonfante sul Iafamiglia romana arcaica, in Studiin Onore di Yicenzo Arangio-Ruiz nelXLVanno dei suo insegnamento, I, p. 101 e, segs., Napoli,s/data. ViJe, também, os autores citados por Gallo,Osservazioni sulla signoria de! pater familias inepoca arcaica; in Studi in onore di Pietro de Francisci, vol. Il, p. 196, nota 1, Milano, 1956.

23 Vide, a propósito,Monier,Manuel Élémentaire de Droit Romain, I, 6" 00., nos 189 e segs., p. 251 esegs.

24 Manuel des Institutions Juridiques des Romains, 'l!' 00., p. 131.

DIREITO ROMANO 607

a) a decadência da família proprio iure e, portanto, dos direitos decorrentes da ag-natio;

b) a importância progressiva da família natural (baseada no casamento e no vínculode sangue), graças ao relevo que, a pouco e pouco, se vai dando à cognatio; e

c) a regulamentação, pela lei, das relações de família.Nos fins da república, o pretor, no âmbito do ius honorarium, inicia a adaptação da

família às novas condições sociais de Roma. Assim, para permitir ao paterfamilias quese utilize melhor dos serviços das pessoas a ele sujeitas (alieni iuris e escravos), concedea terceiros ação contra opater familias com referência a negócios jurídicos que ele reali-ze por meio de alieni iuris ou de escravo. Sob a influência de concepções filosóficas, opretor estabelece, iure honorario, mediante a bonorum possessio unde cognati (viden° 324), direito de sucessão entre cognados, quando não há agnados.

No principado, desaparecem os últimos vestígios da gens,25e, com ela, as derradei-ras caracteristicas de organismo político que a família lhe herdara. A partir do século I a.C.,verifica-se, também, a decadência do casamento seguido da conuentio in manum (isto é,aquele em que o marido adquire a manus - poder marital- sobre a mulher, e esta,por issomesmo, se desvincula totalmente da família de origem, para ingressar na do marido,como se sua filha fosse), e a generalização do casamento em que não há a conuentio inmanum; desse fato decorrem as seguintes conseqüências:

a) a mulher continua vinculada ao seu pater famílias de origem; e, se sui iuris, seusbens lhe pertencem, não ingressando no patrimônio da família do marido;

b) admitem-se obrigações recíprocas entre marido e mulher;c) a mãe liga-se por laços mais estreitos com seus filhos;d) os senatusconsultos Tertuliano eOrficiano criam sucessão hereditária civil entre

mãe e filho, aperfeiçoando, com relação a essas pessoas, o direito de sucessão - criadopelo pretor - entre cognados; e

e) dá-se à mãe, quando o pai ou o tutor tem má conduta, a guarda de seus filhos.26

De outra parte, os imperadores, por meio de constituições imperiais, restringem apatria potestas (pátrio poder), chegando a permitir que o filho peça proteção, contra opai, ao Estado, mediante a utilização do processo extra ordinem (extraordinário). As pro-vidências dos imperadores podem assim sintetizar-se:

a) em virtude de constituições imperiais, no século II d.e., o pai só tem direito, comrelação aos filhos, àmodica castigatio (castigo moderado), e o que mata o filho, sem mo-tivos imperiosos e sem observância das formalidades tradicionais, se expõe a severas pu-nições;"

25 Gaio, Institutas, 1Il, 17.26 Cf. D. XLIIl, 30, 1, 3; D. xun, 30,3,5; e C. V, 49, 1.27 Assim.D, XLVIII, 9, 5.

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608 JOSÉ CARLOS MOREIRA AL VES

III

b) no começo do principado, a venda do filho pelo pai (a da mulher, que se encon-trava sob a manus do marido, sempre foi condenada pelos costumes) desaparece, e so-mente no período pós-clássico é que, por influência de usos orientais e em virtude damiséria decorrente de crises econômicas, se volta a admitir a venda de crianças re-cém-nascidas;

c) segundo parece, isso porque no principado surge a idéia de que aos direitos de-correntes do pátrio poder correspondem deveres, a Lei Júlia,28 no tempo de Augusto,obriga o pai a dotar a filha; e, a partir do século II d.C,; constituições imperiais o compe-lem a prover as necessidades dos membros de sua família."

Também a ação dos jurisconsultos, como salientamos atrás, se faz sentir nessa evo-lução. Graças a eles, admite-se que ofilius familias possa obrigar-se por delitos e contra-tos, tendo, porém, os credores de esperar que ofilius familias possua patrimônio, ou porse tomar pater familias por morte 'daquele a que está sujeito, ou por passar a sui iuris poremancipação, ou por constituir um pecúlio embora permanecendo na situação de pessoaalieni iuris. 30É certo que, em contrapartida, no tempo de Vespasiano, o senatusconsultoMacedoniano restringiu a capacidade jurídica do filius familias, ao proibir que terceiroslhe emprestassem dinheiro.

Ainda no principado, surge uma exceção à regra de que tudo o que fosse adquiridopor alieni iuris passava a pertencer aopater familias.Essa exceção foi opeculium castren-se, constituído de bens que não ingressavam no patrimônio familiar, mas que, ao contrário,eram dofilius familias que, na qualidade de soldado, os havia adquirido. De início, Augus-to (ou, segundo alguns autores, Júlio César) permite que osflliifamilias testem os bens ad-quiridos no serviços militar. Os imperadores Nerva e Trajano confmnam esse direito."Mais tarde, admite-se que osfllii 'familias possam transferir inter uiuos esses bens. Em facedisso, os jurisconsultos concluem que opeculium castrense pertence ao filho durante suavida, mas se este falecer sem deixá-Io, em testamento, a alguém, opater familias o adquiri-ráiure peculii (pordireito de pecúlio, e não por direito sucessório).

C) Direito pós-clássico ejustinianeu

Essa evolução prossegue no direito pós-clássico.Constamíno." em.319 d.C., pune comas penas do parricidium o pai que mata o fi-

lho qqenãosejarecém..,nascido.Em374d.C.,3 oinfanticídio é reprimido como se fossehomicídio.

;, .

28 "Não é, porém, pacífioo que daI..eiJÚl~decorresse para o pai a obrigação de dotar a filha; autores háque entendem que, até o Baixo Império, não havia mais do que um dever moral de constituir o dote. Apropósito, vide Mooier, Manuel Élémentaire de Droit Romain, I, 6" ed., n° 190, p. 254.

29 Entre outros textos, vide D. XXV, 3, 5, 5 a 9.30 D.XLVI,4,8,4.31 Inst., fi, 12,pr.32 C. Th. IX, 15, 1;ec,rx, 17, 1.33 C. IX, 16,7 (8).

DIREITO ROMANO 609

Além do pecúlio castrense, passam a integrar o patrimônio dosflliifamilias o pecu-lium quasi castrense (que surge com Constantino, abrangendo, no início - 326 d.e. -, osbens por eles adquiridos no exercício de cargo na Corte; depois - 422 d.C. -, abarcandoos decorrentes da advocacia; e, enfim -472 d.C. -, englobando os provenientes de qual-quer cargo público ou eclesiástico) e os bens adventícios (os que resultavam da sucessãomaterna, e que, a partir de Constantino, passaram a pertencer aos filii familias).

Ainda nesse período, admitiu-se que a filha - o que já se verificava com o filho-poderia obrigar-se por contrato; o que, aliás, era conseqüência do fato de, no direitopós-clássico, ter desaparecido 'a incapacidade relativa das mulheres púberes.

No direito justinianeu, ocorrem dois fatos de suma importância na evolução da fa-mília romana:

a) dá-se o triunfo do parentesco cognaticio sobre o agnatício (este, abolido por Jus-tiniano, na Novela 118), daí resultando que a família passa a fundar-se no parentescocognatício; e

b) firma-se o princípio de que aquilo que o filho ou a filha adquirem o fazem para si(embora ainda se mantenham os diferentes tipos de pecúlio e os bens adventícios, o que écerto é que, nessa época, se modificam, em favor do filho ou da filha, suas regras de com-posição, administração e disposição).

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XLVIII

A FAMÍLIA PROPRIO JURE

Sumário: 275. Os aspectos a estudar. 276. Ingresso na farnilia proprio iure pela suje-ição àpatria potes tas. 277. A patria potestas. 278. Ingresso na família proprio iure pela su-jeição à manus. 279. Os efeitos da conuentio in manum e a manus. 280. A extinção da patriapotestas. 281. A extinção da manus.

275. Os aspectos a estudar - Como já salientamos, a família proprio iure é o con-junto de pessoas submetidas àpotestas dopater famílias.

Para estudá-Ia, é mister que se examinem os seguintes aspectos:

a) o ingresso nela, pela submissão àpatria potes tas ou à manus;

b) as relações pessoais e patrimoniais entre o pater familias e as pessoas sujeitas àsua potestas (seja àpatria potestas, seja à manus); e

c) a saída, dessa família, dosfilii famílias mediante a extinção dapatria potestas ouda manus.

Analisemo-los nos números que se seguem.

276. Ingresso na família proprio iure pela sujeição à patria potestas - Oingresso na família proprio iure se dá pela sujeição àpatria potestas, quando ocorre:

a) procriação em justas núpcias (iustae nuptiae);

b) adoção em uma de suas formas: adoptio ou adrogatio; ou

c) legitimação.

Estudemo-Ios separadamente.

A) Procriação em justas núpcias

É este o modo normal de admissão na família. proprio iure. A criança nascidadojustas núpcias sej a seu pai pater familias oufilius familias ingressa na~

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612 JOSÉ CARLOS MORElRA ALVES

!II'.1

paterna pelo simples fato do nascimento, I caindo sob a patria potestas do paterfa-miltas:

Nasce de justas núpcias a criança que vem à luz depois de 182 dias' de contraído ocasamento legítimo por seus pais, ou a que nasce até 300 dias após a dissolução desseconsórcio." Com relação ao pai - ao contrário da mãe, cuja maternidade é certa +, presu-me-se que a criança nascida dentro desse espaço de tempo seja seu filho: pater uero is est.quem nuptiae demonstrant (o pai é aquele que as núpcias atestam),' diz Paulo (O. lI, 4,5).6 Mas admite-se que ele, mediante prova de - entre outros motivos - enfermidade, au-sência, impotência, 7 destrua essa presunção."

Por outro lado, como observa Bonfante," se a criança não nasce dentro desse limitede tempo, quem afirma a paternidade deverá prová-Ia contra quem - e este, em geral, seráo marido - a nega. 10

Segundo PeroZZÍ(Tollere Liberum, in Scritti Giuridici, Ill, p. 95 e segs., Milano, 1948), o uso (tol/ereliberum} - que perdurou até o império - de o pater familias, sendo o recém-nascido colocado a seus'pés, levantá-Io do chão ( demonstrando, com isso, querê-lo como filho), ou deixá-lo onde se encontra-va (hipótese em que a criança era exposta), não tinha qualquer relevância jurídica para a legitimidadedo recém-nascido, pois, se o pater familias o levantava do solo, ele não se tomava fi/ius famílias porisso, mas já o era pelo fato do nascimento, e, se opater famílias o deixava jazer no chão, estava o chefeda família usando a faculdade de expor ofilius familias (ius exponendi). No mesmo sentido, Lanfran-chi, Ricerche sulle Azioni di Stato nella Filiazione ill Diritto Romano, II (I" c. d. presunzione di pater-nità), pp. 3 a 35, Bologna, 1964.

2 Não é correta - como demonstra Kniep, Gai Institutionum Commentarius Primus, § 51, p. 246 e segs.,Jena, 1912 - a tese de Pernice (Labeo, I,p. 159, neudruck, Aalen, 1963 ), segundo a qual o pai da cri-ança, ainda que fosse filius fami/ias, adquiria sobre ela a patria potestas, embora esse poder fosseexercido pelo pater familias,

3 D. XXXVIII, 16,3, 12; e D. 1,5, 12.4 Excepcionalmente, o imperador Adriano - conforme nos informa Aulo Gélio, Noctes Atticae, III, 16,23

-declarou legitima uma criança nascida onze meses após a morte de seu pai. Outro caso, também excep-cional, é narrado por P1ínio, o Velho, Historia Naturalis, Vil, 5, 38 a 40. Justiniano, porém, na NovelaXXXIV, capo2, acentua que a viúva que der à luz uma criança onze meses depois de morto o marido in-cide nas penas daquela que se casa antes de decorrido o ano de luto (vide nota n° 74 do Capítulo XLIX).

5 'Sobre se esse princípio é, ou não, clássico, vide Solazzi, "Pater is est quem nuptiae demonstram", inIVRA, VII (1956), p. 131 e segs. Vide; também, Schulz, Classical Roman Law, p. 143, que, a propósi-to, se manifesta pela negativa. Pela afirmativa, Lanfranchi, Ricerche sul/ie Azioni di Stato nella Ftlia-zione in Diriuo Romano, II (10 c. d.presunzione di paternità), pp. 47 a 52, Bologna, 1964.

6 Note-se, porem, que a criança se submete àpatria potestas de quem a possui sobre seu pai no momen-to da concepção. Assim, se, ao ser concebida, seu pai está sob a patria potestas do que será seu avô,este terá pátrio poder sobre ela, ainda que, por ocasião do nascimento, o pai esteja emancipado ou te-nha sido adotado por outro pater familias (cf. Inst. I, 12, 9).

7 D.I,4,6,6.8 Mas - note-se-a presunção não cai ainda que a mãe, confessando o adultério, declare que o filho não

édeseumarido(c!.D.XXll,3,29,1).9 . Cano di DirittoRo11Ul1l(), I (Diritto di Famiglia), reimpressão, p. 368, Milano, 1963.10 Até o tempo de MarcO Aurélio, não havia a obrigação de o pai declarar à autoridade pública o nasci-

maIfodo filho.. Esse imperador foi quem estabeleceu tal obrigação, determinando que a declaração

DIREITO ROMANO 613

B)Adoção

A adoção é o ato jurídico pelo qual alguém ingressa, comofilius familias, em famí-lia proprio iure que não é a sua de origem. .'

A adoção, conforme o adotado seja alieni iuris ou sui iuris, se distingue em adoptio(adoção em sentido estrito) e adrogatio (ad-rogação).!'

***A adoptio (também denominada datio in adoptionem) é o ato jurídico pelo qual um

alieni iuris ingressa na família do adotante como seu filho ou neto."No direito cíássico" - conforme se vê em Gaio (Institutas, I, 132 a 135) -, o proces-

so para adotar-se era complexo, dividindo-se em duas fases:a) a em que o alieni iuris se desvinculava de sua família de origem; eb) a em que o alieni iuris era submetido àpatria potestas do adotante.Para que o alieni iuris se libertasse de sua família de origem, valeram-se os juris-

consultos romanos do preceito da Lei das XII Tábuas que rezava: si pater filium ter ue-num duit, a patre filius liber esto (se o pai vender o filho três vezes, seja o filho livre dopai)." Assim, para realizar-se a adoção, o pater famílias, depois de combinar com umamigo, lhe mancipava pro forma o filho que se tomava, com relação a este, pessoa inmancipio (vide n? 86, B); em seguida, o adquirente o manumitia, voltando o filho a sub-meter-se àpatria potestas de seupater familias de origem. De novo, efetuavam-se essasmesmas operações. Na terceira vez, logo após a mancipatio pro forma, o filho - porquese tinham verificado as três vendas - se libertava da potestas dopater famílias, e o adqui-rente, com referência a quem o filho era pessoa in mancipio, ou não omanumitia (pois, seo manumitisse, o filho não voltaria àpatria potestas do pater familias), ou o remancipavapro forma aopater famílias (e, desse modo, o filho se tornava, com relação ao que fora

(natalis professio) se fizesse, dentro de 30 dias a partir da lustratio (cerimônia religiosa que se realiza-va no nono ou no oitavo dia após o nascimento, conforme se tratasse de criança do sexo masculino oufeminino), diante, em Roma, do praefectusaerarii, e, nas províncias, dos tabularii publici, os quais aanotavam em registros públicos. Sobre essa matéria, vide Emilio Costa, Storia dei Diritto Privato, 2"ed., p. 75 e segs., Torino, 1925; Cuq,Les Lois d'Auguste sur les déclarations de naissance, in Mélan-ges Paul Fomier, p. 119 e segs., Paris, 1929; e Schulz, Roman Registers of births and birth certifica-tes, in Bulletino dell'Istituto di Diritto Romano, vols. XIV-XV N. S. (1951), p. 170 e segs.

II D.I, 7,1.12 E como neto, mesmo se o adotante não tivesse filhos. Por outro lado, a adoptio in fratrem (adoção

como irmão) era proibida (C. IV, 24, 7).13 Sobre os textos de Cícero (Brutus 68, 241; ePro Cluentio 26, 72) que aludem a umStaienus que se

adotou a si mesmo e se tomou Aelius Paetus, vide D'OrgevaI, "Qui se ipsum adoptat", in Studi inonore di Pietro de Francisci; 11,p. 29 e segs., Milano, 1956.

14 Gaio,lnstitutas, I, 132.

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614 ross CARLOS MOREIRA ALVES

seu pater famílias, pessoa in mancipio). Se o alieni iuris que iria ser adotado fosse, emvez de filho, uma filha ou um neto ou neta dopater famílias, bastava para libertá-los dopoder deste uma única mancipatio pro forma. 15

Para completar-se a adoção - e essa é a segunda fase -, recorria-se à in iure cessio(vide n° 154, U, b): na presença do magistrado - o pretor, em Roma; o governador, nasprovíncias -, o adotante propunha contra o que tinha o adotado in causa mancipii (seupróprio pater famílias, ou o amigo se não tivesse havido a remancipatioi a reivindicaçãodo alieni iuris como se seu filho fosse: o réu não a contestava, e diante dessa confissão si-mulada, o magistrado fazia a addictio (adjudicação) do adotando ao adotante, nascendo,em favor deste, legalmente, a patria potestas."

No direito justinianeu, o processo de adoção se simplificou: opater familias, o ado-tante e o adotado dirigiam-se à autoridade judicial competente, e, diante desta, os doisprimeiros faziam declaração concorde no sentido da adoção, a ela aderindo o adotandocom o simples silêncio.

Quanto aos requisitos para a adoção, é preciso distinguir o período clássico do justi-nianeu.

No direito clássico, exigia-se, para a adoção, o acordo de vontades dopater famíliase do adotante. O princípio de que a adoção imita a natureza não era levado em considera-ção pelos jurisconsultos clássicos, para quem era ela meio de ingresso na.família proprioiure mediante submissão àpatria potestas. Por isso, a mulher - que era incapaz de ser ti-tular dapatria potestas - não podia adotar,17o mesmo não ocorrendo, porém, com ho-mem que não pudesse gerar, ou que não fosse casado. Por outro lado, no tempo de Gaio, 18discutia-se se o adotante tinha, ou não, de ser mais velho que o adotado.

No direito justinianeu, vigora a regra adoptio naturam imitatur (a adoção imita anatureza), e, em virtude disso, se torna necessária a observância de requisitos para que elase assemelhe à ~aternidade natural: o adotante deve ser, no mínimo, 18 anos mais velhoque o adotando; 9 e não podem adotar os que são incapazes de gerar, como os castrados."Demais, além do consentimento dopater famílias e do adotante, é preciso ainda o do ado-tando.

Finalmente, com relação aos efeitos da adoção, eles também variaram no direitoclássico e no direito justinianeu.

No direito clássico, a adoção só produz efeitos com referência ao alieni iuris, quepassa, como adotado para a nova família; se ele, porém, tiver filhos ou netos (ainda que

15 A essa interpretação chegaram os jurisconsultos clássicos por entenderem que, tendo a Lei das XII Tá-buas se referido ap:m!S ao filius, as três vendas não seriam necessárias para os demais descendentesque não filhos. -

16 Essa forma de reaIm.--se a adoptio foi a utilizada durante todo o direito clássico, embora nas provínci-as orientais - comosevê de papiros descobertos no Egito - se efetuassem, nesse período, adoções me-diante contrato, S<'.a'Jt a intervençâo de autoridade pública.

17 Cf. Gaio, InstiiuiDs;.J,l 04 o

18 Institutas,r, 106..19 Inst., l, 11,4.20 Inst.,l, 11,9.

DIREITO ROMANO 615

apenas concebidos), estes continuarão na família de que saiu o adotado. Portanto, com aa~oção, o adotado rompe os laços que o prendiam à família de origem, perdendo seus di-reitos sucessórios nela. Em compensação, ele, ao ingressar na família do adotante, embo-ra el~ geral não traga patrimônio (o alieni iuris, por via de regra, não possui bens),adq~ure ?S mesmos direitos sucessórios que os descendentes agnatícios do novo pater fa-==.E certo, no entanto, que, se o adotante privá-I o desses direitos sucessórios (poremancipá-lo ou por deserdá-lo), o adotado ficará sem eles, quer quanto à família de ori-gem (da qual, com a adoção, se desligou), quer quanto à do adotante (por ter sido emanci-pado ?u d~serdado!-. Mas o pretor, no âmbito do direito honorário, corrigiu, em parte,essa situação, permitindo que o adotado - e isso porque a adoção não rompe o parentescocognatício - concorresse, caso tivesse sido emancipado pelo adotante antes de seu pai na-tural falecer, à sucessão deste, na qualidade de cognado.

No direito justinianeu, por motivo de ordem sucessória, encontramos duas espéciesde adoção:

a) a adoptio plena: aquela em que o adotante é ascendente, pelo lado paterno oupelo lado matemo, do adotado; e

b) a adoptio minus plena: aquela em que o adotante é um estranho."Os efeitos da adoptio plena são substancialmente os da adoção clássica; mas Justi-

nian022 estabeleceu que, se o adotado for emancipado, volta a ter direitos sucessórios nafamília do seu pai natural.

Quanto à adoptio minus plena, o adotado não se desvincula de sua família de ori-gem, nem, tampouco, ingressa na do adotante; entre adotante e adotado apenas se estabe-lece um vínculo pelo qual este, se o adotante morrer ab intestato (isto é, sem deixartestamento), tem direito de suceder nos bens como heres suus (vide n° 323). Mas o adota-~o não tem sequer direito à legítima (vide n° 330) com relação ao pai adotivo, que, porISSO, pode não contemplá-lo em seu testamento?

***

Pela adrogatio (ad-rogação) umpater familias ingressa, na posição defilius famili-as (ele sofre, portanto, uma capitis deminutio minima, passando de pessoa sui iuris a alie-ni iuriss, na família de outro pater familias/"

21 As expressões adoptio plena e adoptio minus plena são devidas aos comentadores do direito romano.22 C. VIII, 47 (48), 10 Ia, 1b e lc.23 Demais, como a adoptio minus plena não confere ao adotante apatria potestas sobre o adotado, admi-

te-se que a mulher, para consolo da perda de seus próprios filhos (ad solacium amissorum libero rum)(Inst., i, 11, 10; eCo VIII, 47 (48),5), adote.

24 Sobre a adrogatio, vide, entre outros, Bonfante (Corso di Diritto Romano, 1- Diritto di Famiglia - re-impressão, p. 20 e segs., Milano, 1963), Dessertaux (Études sur les Effets de l'Adrogation, Dijon;1892 - trata-se de um extrait de Ia Revue bourguignonne de l'Enseignement supérieur, année 1892),Lavaggi (Una riforma ignorata di Giustiniano: Adrogatio plena e minus plena; e L 'arrogazione deilibertini - ambos ernStudia et Documenta Historiae et Iuris; ano XII, 1946, p. 45 e segs., e 115 e segs.,respectivamente) e JaneauÇConstántin et Ia prohibition d'adroger les "naturales", in Conférencesfaites à I 'Instiua de Droit Romainen 1947, p. 131 e segs., Paris, 1950) ..

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616 JOSÉ CARLOS MORE1RA ALVES

No direito pré-clássico, tendo em vista que, com a ad-rogação, uma família era ab-sorvida por outra - o ad-rogado, ao ingressar na família do ad-rogante, levava para ela oseu patrimônio e todas as pessoas que se achavam submetidas a sua potestas -, o que,principalmente nos tempos primitivos, interessava ao Estado (havia alteração no númerode famílias que o constituíam) e à própria religião (extinguia-se o cultodoméstico da fa-mília absorvida), a adrogatio tem de ocorrer diante do comício por cúrias (vide n" 11 e19, A), presidido pelo Pontífice Máximo. Este interrogava o ad-rogante, para saber seele, realmente, queria ser pater familias do ad-rogado; o ad-rogado, para verificar se efe-tivamente pretendia tornar-se filius familias do ad-rogante; e o povo, reunido em comí-cio, para ver - segundo parece" - se ele concordava em que se realizasse a adrogatio.

Nos fins da república - e, portanto, no início do direito clássico -, entrando em de-cadência os comícios por cúrias (vide n° 19, A), a adrogatio passa a celebrar -se na pre-sença dos 30 lictores que representam aquela assembléia popular reduzindo-se asindagações do Pontífice Máximo a duas: ao ad-rogante e ao ad-rogado.

Mas, quer diante do povo reunido em comícios por cúrias, quer na presença, ape-nas, dos 30 lictores, a ad-rogação somente podia realizar-se em Roma (onde esses comí-cios se reuniam), o que, como é óbvio, era um inconveniente sério para os habitantes dasprovíncias. ,

A partir do séculom d.e., surge, ao lado da adrogatio realizada diante dos lictores,outra forma de ad-rogação que não apresenta o inconveniente daquela: a adrogatio porrescrito do imperador (em que continua necessário o consentimento expresso do ad-ro-gado), que é a única que persiste no tempo dos imperadores cristãos.i"

Os requisitos para a adrogatio variaram muito durante a evolução do direito romano.No direito pré-clássico e no início do clássico, quando as mulheres e os impúberes

não podiam ser ad-rogados," os pontífices - a quem incumbia verificar se nada haviacontra a ad-rogação pretendida - foram estabelecendo, a pouco e pouco, requisitos sem

25 Não é improvável, como decorre da exposição de AuIo Gélio, Noetes Atticae, V, 19, que o povo, aprincípio, votasse a favor da ad-rogação ou contra ela.

26 C. VIll, 47 (48),2; e VIII, 47 (48), 6.Por outro lado, textos literários aludem à ad-rogação testamentária, cujo exemplo mais célebre é o deOtávio (mais tarde, Augusto), adotado por Júlio César em seu testamento. Os jurisconsultos romanossilenciam totalmente sobre essa forma de ad-rogação, que, aliás, apresenta singularidades: não émeiode aquisição dapatria potestas pelo ad-rogante (que já morreu, quando ela produz seus efeitos); e éacessível às muIhm:s. Sobre as diferentes teses que procuram explicar esses textos, vide Bonfante,Corso di Diritto Romano, 1-Diritto di Famiglia, reimpressão, p. 26 e segs., Milano, 1963). A propó-sito dessa matéria, 1Iide ainda Prevost,Les Adoptions politiques àRome sous Ia République et le Prin-cipat,Paris, 1949; Henne, A propos du testament de César, ;niDroits de l'Antiquité et Sociologie;Juridique (MélangesHenriLévy-Bruhl);p. 141 e segs., Paris, 1959; J. Paoli,Le testament "calatis co-mitiis"etl'~ d'Octave, in Studi inonorediEmilio Betti.Ill.p. 546 e segs., Milano, 1962; eLemosse;L'adoptita d'Octave et ses TCI[1p0rtsavee les rêgles traditionneJ/es du Droit Civil, in Studiin memoria diEmilio Albertaro, I, p. 371 e segs., Milano, 1953.

27 Gaio,Insti.tutas,1, 101-102.

D1RErroROMANO 617

os quais eles se opunham à adrogatio. Assim - como acentua Cícero'" -, não se permitia,em seu tempo, a adrogatio por pessoas que ainda pudessem ter esperança de formar pro-le, ou que tivessem filhos nascidos de casamento legitimo. Demais, além da idade dóad-rogante - que não podia ser mulher, nemfilius familias -, levava-se em conta a impor-tância da gens e do culto familiar do ad-rogado. Esses requisitos, porém, não eram abso-lutos, podendo ceder diante de motivos justos,

Na época de Gaio, discutia-se se o ad-rogante podia ser incapaz de gerar, e se ele ti-nha de ser mais velho do que o ad-rogado."

Antonino, o Pio, em cartas aos pontífices - segundo informação de Gaio (Instuutas,I, 102) -, autorizou a ad-rogação de impúberes, havendo justa causa (iusta causa) e ob-servados certos requisitos."

No direito pós-clássico, admitiu-se que a mulher fosse ad-rogada, 31 e - a título ex-cepcional - permitiu-se que aquela que tivesse perdido seus filhos ad-rogasse uma pes-soa sui iuris.32 Os imperadores cristãos proibiram a ad-rogação, pelo pai,dos filhosnascidos de concubinato (naturales liberi).

No tempo de Justiniano, em virtude do princípio de que a ad-rogação devia imítar anatureza.P e do fato de que a adrogatio passou a ser encarada, não como meio de aumen-tar o poder de uma família, mas de dar filhos a quem não os tivesse, exigiam-se, para queela se realizasse, os seguintes requisitos (que, no entanto, podiam ser dispensados pormotivos justos):

a) o ad-rogante, que não pode ser castrado, nem ter filho legitimo," deve ser 18anos mais velho do que o ad-rogado, e ter, no mínimo, 60 anos de idade" (ou, então,achar-se gravemente enfermo);

b) em regra, o ad-rogado não deve ser mais rico que o ad-rogante;"c) não pode ser ad-rogado quem já o foi por outra pessoa; e

28 De demo sua, XN.29 Institutos, 1,106.30 Esses requisitos, em síntese, eram os seguintes: a) os magistrados competentes deviam apurar, preli-

minarmente, se o ad-rogante era idôneo e se a adrogatio seria vantajosa para o impúbere (D. I, 7, 17,2;Inst.,1, 11,3); b) os parentes do impúbere deviam ser consultados (C. VIll, 47 (48), 2); c)era misterque o tutor (ou tutores) do impúbere desse sua auctoritas (C. V., 59,5); ti) o ad-rogante, quando da re-alização da adrogatio, devia dar canção às pessoas que seriam herdeiras do ad-rogado, se não houves-se a ad-rogação, para garantir-lhes a entrega dos bens do ad-rogado, na hipótese de ele morrer antes deatingir a puberdade (Inst., I, 11, 3).

31 Gaio, Institutionum Epitome, I, 5,2.32 C.vm, 47 (48), 5.33 hrst,1, 11,4.34 D.1,7,17,3.35 D.1,7, 15,2.36 D. 1, 7, 17,4.

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618 JOSÉ CARLOS MORElRA ALVES

!

d) não podem ser ad-rogadas várias pessoas," nem liberto de outrem (salvo se seu. ) 38patronus consentir .

Além do efeito comum com a adoção - aquele segundo o qual o ad-rogado ingressacomo alieni iuris na família do ad-rogante, sofrendo, assim, capitis deminutio minima=,a ad-rogação, por se aplicar a pessoa sui iuris, apresenta dois efeitos que não resultam daadoção:

a) as pessoas que estão sujeitas à patria potestas ou à manus do ad-rogado passampara o poder do ad-rogante, tomando-se todos (ad-rogado e as pessoas anteriormentesubmetidas a ele) aguados e gentiles do ad-rogante e de seus agnados e gentiles - assim,a família do ad-rogante absorve a do ad-rogado; e

b) o ad-rogante se toma proprietário, por sucessão inter uiuos a título universal, dosbens do ad-rogado - com exceção dos direitos que se extinguem com a capitis deminutiominima, como o usufruto e o uso -, não respondendo, porém, pelos débitos deste, senãoos hereditários;" o pretor, no entanto, concedia aos credores do ad-rogado:

1-ou uma actio utilis contra o próprio ad-rogado, considerando como não ocorridaa adrogatio (rescissa capitis deminutione); 40 e, se o ad-rogado não se defendesse, podiamos credores vender os bens que ele teria se não tivesse havido aad-rogação;

2 - ou uma actio de peculio contra o ad-rogante."No direito justinianeu, o ad-rogante passou a ter sobre os bens doad-rogado os mes-

mos direitos que o pai possuía com relação aos do filho: o ad-rogante adquiria sobre elesapenas o usufruto; a nua propriedade era do ad-rogado.

Por outro lado, quanto à adrogatio de impúbere, produzia ela (e isso para evitar quea ad-rogação se convertesse, para o ad-rogante, em especulação) certos efeitos patrimo-

de '1' d . 42niais em favor do ad-rogado ou e sua ramr Ia e ongem.

37 D. 1,7, 15,3.38 D. 1,7, 15,3; e D. XXXVIII, 2, 49.39 E isso porque, de acordo com o ius ciuilie, o ad-rogante se tomava o herdeiro.40 Gaio, Institutas, I1I, 84.41 D. XV, 1, 42.42 Esses efeitos eram os seguintes: a) se o ad-rogado morresse impúbere, e sob apotestas do ad-rogante,

este estava obrigado a entregar os bens do adrogatus àqueles que seriam seus herdeiros se não tivesseocorrido a ad-rogação; b) chegando o ad-rogado à puberdade, sob a potestas do ad-rogante, tinhaaquele, se descontente com a ad-rogação, o direito (D. I, 7,32, pr. e 33) de provar que ela lhe era preju-dicial, e de obter, assim, a in integrum restitutio (demais, alcançada a puberdade pelo ad-rogado, acaução - vide nota n° 30 deste Capítulo - dada pelo ad-rogante era liberada, conforme se verifica do D.I, 7, 20); c) se o ad-rogante fosse emancipado, antes de alcançar a puberdade, era preciso distinguir sea emancipação decorrera de motivo justo ou não: na primeira hipótese, o ad-rogado podia recuperartodos os bens existentes no momento da adrogatio e os que ele, posteriormente, adquirira para oad-rogante; na segunda, além desses direitos, tinha ele ainda o de, por ocasião da morte do ad-rogante,eventualmente, recolher a quarta parte dos bens deste (Inst., I, 11, 3; D. X, 2, 2, 1; e D. XXXVII, 6, 1,21) (era a quarta diui Pii ou quarta Antonina, assim denominada porque foi criada por Antonino, oPio); é d) se o ad-rogado fosse deserdado antes de atingir a puberdade, teria ele direito à quarta diuiPii, independentemente de a deserdação ter sido justa ou não.

DIREITO ROMANO 619

C) Legitimação

Legitimação (legitima tio ),43em direito romano, é o ato pelo qual os filhos nascidosde concubinato (naturales liberi - viden° 294) adquirem a condição de filhos legítimos."

A legitima tio somente foi admitida no direito pós-clássico 45 quando, em virtude dainfluência do cristianismo, é combatido o concubinato, surgindo a concepção de que é in-digna a condição dos naturales liberi.

Há, no direito romano, três processos de legitimação:a) a legitima rio per subsequens matrimonium (legitimação por casamento subse-

qüente);b) a legitimatio per rescriptum principis (legitimação por rescrito do príncipe); ec) a legitimatio per oblationem curiae (legitimação por oblação àcúria).A legitimação por casamento subseqüente surgiu, em 335 d.C., graças a Constanti-

no,"mas em caráter excepcional, pois somente foi admitida com relação aos filhós natu-rais já havidos quando da promulgação dessa constituição imperial. Com Anastácio, em517 d.C.,47a legitimatio per subsequens matrimonium tomou-se instituto permanente. Osucessor de Anastácio, Justino, em 519 d.C.,48aboliu essa forma de legitimação, a qual,no entanto, foi restaurada definitivamente, em 529 d.C., por Justíniano/" queestabele-ceu, para que ela ocorresse, os seguintes requisitos:

a) que a mãe - em vez da exigência que havia até então de ela ser ingênua'? - fosselivre;"

b) que, por ocasião da concepção da criança, fosse possível a realização do casa-mento de seus pais52 - o que impedia a legitimação dos filhos adulterinos ou incestuo-SOS;53

c) que o filho consentisse na legítimação, ou que, pelo menos, a ela não se opusesse;" e

43 Sobre essa matéria, vide, entre outros, Bonfante, Corso di Diritto Romano, 1-Diritto di Fam/glia~,reimpressão, p. 371 e segs., Mílano, 1963; e Kaser, Das Rõmisches Privatrecht, Il, § 230, p. 157, Mün-chen,1959.

44 A legitimatio se aplica apenas aos liberi naturales, e não aos uulgo quaesiti (também denominadosuulgo concepti ou spurii) (vide n° 294).

45 Portanto, em época em que a família agnatícia já havia perdido muito de sua antiga importância.46 A Constituição imperial em causa se perdeu; a ela alude o imperador Zenão (C. V, 27,5), em 477 d.C.,

que a renovou.47 C. V, 27, 6.48 C. V, 27, 7.49 C. V, 27,10; C. V, 27,11; e Inst., I, 10, 13.50 C. V, 27, 5.51 Inst.,I, 10, 13;eC. V, 27, 10.52 Inst.,1,10, 13; e C. V, 27, 11.53 Derrogando.esse princípio, Justíniano (Nov, XVIII, capo 11; e Nov. LXXVIII, caps. 3 e4) admitiu que

os filhos de escrava podiam ser legitimados, se o dono dela (e pai deles) a libertasse e a esposasse.54 Por isso, os loucos, os infantes, os ausentes podiam ser legitimados por casamento subseqüente, Vide

D. I, 16, 11; e Nov. LXXXIX, capo 11.

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620 JOSÉ CARLOS MORElRA ALVES

d) que se redigisse instrumento. dotal (instrumentum dotale) para indicar que hou-vera a substituição. do concubinato pelo. matrimônio Iegítimo.f

A legitímação por rescrito do. príncípe'" somente foi criada por Justiniano, nas No-velas." Aplicava-se apenas aos casos em que a legitimação por casamento. subseqüentenão era possível em virtude de morte, de ausência, de indignidade ou de tomada de or-dens sacras ocorrida com a mãe. Provado que o pai não tinha filhos legítimos, que o filhoa ser legitimado havia consentido nisso, e que o. casamento de seus pais era possível quando.de sua concepção, podia requerer a legitima tio per rescriptum principis:

a) o.próprio. pai; oub) o. filho, após a morte do. pai, desde que este houvesse salientado, no. testamento,

ser seu desejo. legitimá-lo." '.Por outrolado, estabeleceu Justiriiano'" que, para verificar-se a Iegitimação po.r res-

critó do. príncipe, era preciso. que não'existisse filho legítimo.Finalmente, a legitimatio per oblationem curiae se prende a uma constituição im-

perial de Teodósio IIe Valentiniano III,60 do. ano 443 d.e., com fins administrativos e fis-cais. Com efeito, tendo. em vista que, nesse tempo, as cúrias municipais, em razão. de seuspesados encargos (como.por exemplo, a responsabilidade da arrecadação. de impostos eas despesas com jogos e espetáculos públicos), necessitavam de decuriões, os citados im-peradoresestabeleceram qll;e o.pai, não. tendo filho. legítimo, podia testar ou doar seu pa-trímônio.em parte ou 00 todo, aos liberi naturales, desde que - sendo. o. filho. homem - o.inscrevesse entre os decuriões, ou - se se tratasse de filha - a desse em casamento. a umdecurião. Com o.tempo, esse ato. foi tomando. o caráter de legitimação, e, em 470 d.e.,por urna constituição de Leão e Antêmio," esses filhos passaram a ter o.direito. de suce-der ab intestato (isto. é, na ausência de testamento) a seu pai. Apesar disso, porém, e aocontrário do. que ocorria com a legitimatio per subsequens matrimonium (e, mais tarde,com a legitimatio per rescriptum principisy; o. pai, na legitimação por oblação à cúria,não. adquiria pátrió poder sobre o. filho. legitimado, nem este passava a ter todos os direi-tos do. filho. legítimo. Justiniano introduziu modificações nos efeitos da legitimatio peroblationem curiae: concedeu ao pai a patria poiestas (pátrio poder) sobre o. filho. legiti-mado, e estabeleceu, entre ambos, direito. recíproco de sucessão.f Demais, admitiu a le-gitimação por oblação à cúria ainda que o.pai tivesse filhos legítimos; e permitiu que ela

55 Inst., I, 10, 13; C. V, 27, 10 e 11; Nov. LXXXIX, capo 8.56 Sobre sua origem, viJe Janeau, De I 'adrogation des liberi naturales à Ia legitimation par rescrit du

Prince, Paris, 1947.57 Nov. LXXIV, capo2, 1; e LXXXIX, caps. 9 elO.58 Note-se que, ainda DeSSahipótese, a legitimação éper rescriptum principis, e não - como pretendem

alguns autores - 0UIIll modalidade de legitimação, a legitimatio per testamentum.59 Nov. LXXIV. tapo 1; e Nov. LXXXIX, caps.9 e 10.60. C. V,27,3_·,61 C,V. 27,.4. " ..62 Nov. LXXXIX. cap. 11.

DIREITo. Ro.MANO 621

se fizesse por testamento." Mas, mesmo no. direito. justinianeu, a legitima tioper oblatio-nem curiae vinculava apenas pai e filho, e não este e a família de seu pai."

277. A patria potestas65 - A patria potestas (pátrio poder) é o conjunto. de poderesque o pater familias tem sobre seusfiliifamilias.

Segundo. Gaio 66- e isso. é exato, pois, nos tempos históricos, não. se encontra em ne-nhu~ outro povo instituto. juridico com caracteristicas semelhantes -, zpatria potestas éuma instituição exclusiva do. direito. romano,

A princípio, os poderes do.pater familias enfeixados na patria potestas são. absolu-tos: o pater familias pode ser comparado a um déspota. A pouco e pouco, porém - e essatendência s~ a~o.lurna decididamente a partir do. início do. período. pós-clássico -, os po-deres constltut~vos da p~tria potestas se vão. abrandando, até que, no. direito. justinianeu -mudado o ambiente social, alteradas fundamentalmente as funções e a estrutura da famí-lia ro.~ana, e. so.brepujado. o.parente~c~ agnatício pelo. cognatício -, apatria potes/as seaproxuna do. conceito modemo de patno poder (poder educativo e levemente corretivo),embora conserve - o. que a afasta deste - duas características antigas:

a) a vitaliciedade (mesmo. no periodo justinianeu não. se conhece, no direito. roma-no, o. instituto da maioridade: enquantovivo o.pater familias, estão. sujeitos àpatria po-testas seusfilii familias); e

b) a titularidade, não pelo pai natural, mas pelo. ascendente masculino mais remoto.A patria potestas atribui ao.paterfamilias poderes sobre:a) a pessoa do.sfilii familias; eb) os bens adquiridos pelos filii familias.Analisemo-Ios separadamente.

A) Poderes sobre a pessoa dos "filiifamilias "

Os poderes do.paterfamilias so.bre a pessoa do.sfiliifamilias são. os seguintes:a) o ius uitae et necis: o.pater familias podia punir os filii familias co.mo.bem enten-

desse, inclusive com a morte;.b) o ius noxae dandi:quando. ofiJjusfamili~.co.metia ato. ilicito.(delictum) contra

terceiro, o pater familias podia eximir-seda responsabilidade de indenizar a vítima en-tregando-~e, co.tn0 p'e~soa i~ mancipio (v/de n~,86,B), o.filius famílias culpado;, .c) o,~ uendendi: podia o.pater familias vender eeas filii familias, que, 110 direito.

cl~SICo., na~ s~ to.rnav~ escra:o.s do comprador, mas, sim, pessoas in mancipio; no di-reíto ~s-classlco, porem admite-se - tendo em vista a calamitosa situação. econômi-co-social dessa época - que ofilius familias vendido passe a ser escravo. doadquirente; e

63 C.V,27, 9.64 C. V, 27,9; eNov. LXXXIX; 4. .65 S~bre apatriapotestas, vide Voei, Storia della "potriapotestasdaAugusto aDiocleziano ••e "LaPa-

tria Potestasda Costantino a Giustinúmo", in StudidiDirittoRomano,ll,pp. 399'a463 e467 a543,Padova, 1985.

66 Institutos, I, 55.

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622 JOSÉ CARLOS MORElRA ALVES

d) O poder de expor ou de manter os filii famílias recém-nascidos.Esses poderes, que - como salientamos atrás - eram, a princípio, absolutos, foram

sofrendo, no decurso do tempo, atenuações.Assim, com relação ao ius uitae et necis - que, no periodo clássico, por imposição

dos costumes (mores maiorum), opater familias não exercia sem fazer-se assistir, previ-amente, por um consilium domesticum (conselho familiar) -, a reação a ele começa no sé-culo I d.e., quando Trajano determina que o paterfamilias que maltratasse seu filiusfamilias estava obrigado a emancipá-lo" e, no D. XLVIII, 8, 2, salienta-se que o filhonão podia ser morto pelopater familias sem antes ser ouvido - são providências que, em-bora não visem a extinguir o ius uitae et necis, mas a reprimir abusos, demonstram queele não é mais encarado como poder absoluto do pater famílias. O ius uitae et necis vaidesaparecer com os imperadores cristãos: Constantino'" pune, com a pena do parricidi-um, O pai que mata o filho, e Valéntiniano e Valente'" estabelecem que, quando ofiliusfamílias comete delito grave (enorme delictum), deve ser ele enviado à autoridade judi-ciária competente, queo punirá, pois o poder punitivo do pater familias não mais abrangepunições severas.

O ius noxae dandi, a partir do século IV d.C., cai, pouco a pouco, em desuso, e éabolido, finalmente, por Justiníano.?' ,

Quanto ao ius uendendi,71desde o tempo de Constantino, é admitido apenas com re-lação aos recém-nascidos (a venda do filius familias era proibida),72 admitindo-se, po-rém, que, com o reembolso do preço pago pelo comprador, ou com a entrega de umescravo para substituir ofilius [amilias, este recupere a liberdade. Justiniano 73 ainda ad-mite a venda tão-somente dos recém-nascidos, reduzindo, porém, seu campo de aplica-ção e atenuando seus efeitos: essa venda só é válida se motivada por miséria extrema dopater [amilias (se isso não ocorre, a venda é nula), e ofiliusfamilias pode recuperar a li-berdade se ele, o pato familias, ou terceiro restituir ao comprador o preço, ou der, emtroca, um escravo.

Valentíniano, Valente e Graciano.Í" em 374 d.C., proíbem que se mate re-cem-nascido, sob pena de suplício capital; e, com relação à exposição de recém-nascidos(que Constantino considerava lícita, estabelecendo que acarretava apenas a perda da pa-

I '1" 75Ambtria potestas sobre o exposto), a rep~tam, naque e mesmo ano, ilícita, as essas

Inst., N, 8,7.Vide, a propósito, Vmzetti, Vendita ed esposizione degli infanti da Constantino a Giustmiano, in Stu-dia et Documenllll1ii.floriae et Iuris, vol. 49 (1983), pp. 225 a 260.Fragmenta qrmeiliitantur Vaticana, 33;ce C.N, 43, 2.C.IX, 16,7.C. VIII, 51 (52).2.

6768697071

7273

I 7475

•"

D. xxxvn, 12.,s,C. Th.1X, 15,1; C.IX, 17, 1.C. Th.IX, 13, 1; c. IX, 15, 1.

DIREITO ROMANO 623

constituições foram acolhidas por Justiniano, que, possivelmente," puniu a exposição dorecém-nascido com a pena do homicídio.

B) Poderes sobre os bens adquiridos pelos "filii familias"

Originariamente, osfilii famílias eram incapazes de ter patrimônio - qui in potesta-te alterius est, nihil suum habere potest (aquele que está sob poder de outrem nada podeter de seu), acentua texto de Gaio

77Tudo aquilo que osjllii famílias adquirissem ingres-

saria no patrimônio da familia proprio iure, do qual era titular o pater [amilias.Desde cedo, porém, opater jàmílias entregava ao filius famílias pequena quantia ou

alguns bens (peculium - pecúlio), para que este os administrasse, no exercício de umaprofissão, ou no comércio. O domínio desse pequeno patrimônio continuava a ser dopa-ter familias, que, a qualquer momento e a seu arbítrio, podia tomá-lo do fi/ius familias.Morto o filho, o pai, automaticamente, recuperava os bens que constituíam esse pecúlio,a que os autores modernos dão a denominação depeculium profecticium, isto é, profec-tum a patre (saído do pater famílias).

No início do principado, a incapacidade patrimonial dosfiliifamilias sofre uma ex-ceção com a admissão do peculium castrense, a partir de Augusto, e que era constituídocom os bens que osfilii familias adquiriram, inicialmente na qualidade de soldados (sol-do, presa de guerra), e,mais tarde, por ocasião da prestação do serviço militar, ainda queos bens nada tivessem que ver com esse serviço (como, por exemplo, os que opater fami-lias doava ao filho que partia para servir no exército romano). 78Com relação aopeculiumcastrense - salienta um texto atribuído a Ulpiano (D. XlV, 6, 2) -, o filius famílias faz asvezes de pater famílias, podendo dispor, em vida, desses bens; ou manumitir escravosque se tomam libertos dele,filius familias, e não de seu pater familias; ou fazer donatio-nes mortis causa (doações mortis causa). Porém, se o filho morrer antes que opater fami-lias, sem fazer testamento com relação aopeculium castrense, opater familias o adquire,não iure hereditatis (por direito sucessório), mas iure peculii (isto é, por direito próprio,como se fosse titular desses bens).

No direito pós-clássico, surge outra espécie de Jj.ecúlio- opeculium quasi castren-se (pecúlio quase castrense), criado por Constantino, 9 que estendeu as regras do pecúliocastrense aos bens adquiridos pelo filius familias como funcionário da corte; posterior-mente, essa concepção abrangeu ainda bens adquiridos pelofilius famílias como ocupan-te de qualquer cargo público, ou como advogado, ou como eclesiástico, bem assim osobtidos por doações feitas pelo imperador ou pela imperatriz.'"

76 Vide, a propósito, Carlo Longo, Corso di Diritto Romano (Diritto diFamiglia), p. 99 e segs., Milano,1946. .. .

77 Institutas, lI, 87. V/de, também, Gaio, Institutas, n, 96.78 Sobre o peculium castrense, vide Fitting, Das Castrense Peculium in seiner geschichtlichen Entwic-

kelung und heutigen Gemeinrechtlichen Geltung, Halle, 1871; e Guarino, L 'oggetto del "castrensepeculium ", in Bulletino dell 'Istituto di Diritto Romano, vol. VII, N. S. (1941), p. 41 e segs.

79 C. Th. VI, 36, 1.80 A propósito, vide Arem, In tema di peculio quasi castrense, in Studi de Storia e Diritto in onore di

Enrico Besta por il XL anno dei suo insegnamento, I, p.119 e segs., Milano, 1939 .

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624 JOSÉ CARLOS MOREIRA AL VES

Graças, ainda, a Constantíno.!' o pater familias, quanto aos bens (bona materna)que o filho adquire da mãe por sucessão testamentária ou ab intestato, é apenas formal-mente proprietário deles, tanto que não pode dispor desses bens. Esse regime foi estendi-do, por imperadores posteriores a Constantino, a bens provenientes, a título gratuito(herança, legado ou doação), dos ascendentes matemos (bona materni generis) do filiusfamilias, bem como às doações esponsalícias - a todos esses bens dá-se a denominaçãobana aduenticia.

No direito justinianeu, a incapacidade patrimonial dofilius familias deixa, em reali-dade, de existir. Com efeito, com exceção dos bens provenientes do pater familias ou dosadquiridos com eles - e que são ambos de propriedade do pater familias -, os obtidospelo filius familias, por meio de seu trabalho ou de ato de liberalidade de terceiro, lhe per-tencem, dispondo opater familias, sobre estes bens, apenas de usufruto legal,82e, por ve-zes - assim, por exemplo, na hipótese de alguém fazer urna doação aofilius familias, coma cláusula de que o pater fami/ias não terá direito de gozar dos bens doados -, nem mes-mo disso.

Demais, na Nov. cxvm, Capo 1, Justiniano equiparou, para efeito de capacidadede ter herdeiro legítimo, ofilius familias aopater familias, porquanto determinou que osbens daquele (e, portanto, integrantes dos pecúlios castrense e quase-castrense, e dosbana aduenticia) fossem herdados primeiro por seus descendentes, e, Sóna falta destes,pelos ascendentes (classe a que pertencia opater familias). '

***

Por outro lado, tendo em vista o princípio de que tudo o que os filii famílias e os es-cravos adquiriam ingressava no patrimônio do pater famílias, este (note-se que, em ge-ral, não se admitia, em direito romano, a representação direta - vide n° 111, B) se valia deambos para adquirir direitos reais e pessoais.

Ora, quanto aos direitos pessoais, os créditos passavam a integrar o patrimônio dopater familias, mas, segundo o ius civile, este não respondia pelos débitos contraídos pe-los filii famílias ou pelos escravos. Com isso, tanto os credores quanto o pater famíliaseram prejudicados:

a) aqueles, porque osfilii familias, embora respondessem ciuiliter (civilmente) poresses débitos, não dispunham, muitas vezes, enquanto estivessem na condição de jiliusfamilias, de patrimônio para fazer face ao pagamento; e, com relação aos escravos, por-que estes, nessa hipótese, só se obrigavam naturaliter (isto é, somente surgia para o es-cravo uma obrigação natural Insuscetível.portanto, de ser cobrada judicialmente); e

81 C.Th.VIII. 18,1.82 C. VI, 61. 6. Note-se, porém, que esseusufiuto dava ao pater 'familias Poderes maisamplos do que os

decorrentes dô usufiuto convencional. ' I

DIREITO ROMANO 625

b) este, porque, diante desse estado de coisas, os terceiros se recusavam a celebrarnegócios jurídicos onerosos comjiliifamilias ou com escravo, não podendo ele, conse-qüentemente, utilizá-Ios para esse fim. .

O pretor, porém, pôs termo a essa situação, concedendo aos credores dosfiliifami-lias e dos escravos certas ações - denominadas pelos juristas medievais actiones adiecti-ciae qualitatis - contra o próprio pater famílias.

Essas ações - que podiam ser intentadas contra o pater famílias para a cobrança dedébitos contraídos por seus escravos,jilii familias, pessoas in manu ou pessoas in manci-pio - são as seguintes:

a) a actio de peculio et de in rem verso;b) a actio tributaria;c) a actio quod iussu;d) a actio exercitaria; ee) a actio institoria.De origem pretoriana, todas elas eram actiones com transposição de sujeito (vide

n° 13.1, A): na intentio constava o nome da pessoa sob apotestas dopater familias (e, sese tratasse de escravo, inseria-se na fórmula, ainda, uma ficção de liberdade); e, na con-demnatio, o dopater familias.

Assim, por exemplo, na actio exercitaria a fórmulat' podia ser a seguinte:Si paret Titium magistrum Aulo Agerio HS. X M dare oportere, iudex Numerium

Negidium exercitorem Aulo Agerio HS. X M. condemna, si non pare! absolue (Se ficarprovado que o capitão de navio, Tício, deve a Aulo Agério dez mil sestércios, juiz, con-dena o armador Numério Negídio a pagar a Aulo Agério dez mil sestércios; caso contrá-rio, absolve-o).

Quando a pessoa sob potestas, com base no pecúlio que recebera dopater familias,contraía obrigação com terceiro, este podia intentar contra opater famílias a actio de pe-culio aut de in rem verso,84respondendo Opater familias na proporção do que enriquece-ra com a operação." ou, se não houvera enriquecimento, ou este fora parcial, até o valordo ativo do pecúlio. 86 Em virtude disso, embora para a actio depeculio aut de in rem uer-so.h~uves~e apenas uma fórmula, esta encerrava duas condemnationes, em face das quaiso JUIZ devia condenar opate~ familias pelo enriquecimento decorrente do débito da pes-soa sob potestas, e, se não tivesse havido enriquecimento, ou se este houvesse sido par-

8384

Cf. Keller, Der Rõmische Zivilprocess und die actionen; 4" ed., § 32, p. 125, Leipzig, 1871.Palavras extraídas da frase de peculio deque eo quod in rem domini uersum est(sobre o pecúlio e sobreaquilo que tiver revertido em proveito do dominus). Cf Du Caurroy, Institutes de Justinien nouvelle-ment expliquées, 5" ed., n° 1.251, p. 425, Bruxelles, 1834.Os romanos só consideravam que havia enriquecimento quando o proveito não se agregava ao pecúlio dapessoa sobpotestas, mas ingressava no restmte do patrimôIiio do pater ftimilias, excluído o pecúlio.O'pecúlio era levado ein conta como se encontrava no dia do julgamento; ojuiz avaliava o seu ativo,deduzindo, para determíná-lo, as dívidas da pessoa sob potestas com relação eopater familias.

85

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626 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES

!

II

cial, pelo restante até o valor do ativo do pecúlio." Os romanistas discutem se era possí-vel ao pretor conceder essa fórmula com ambas as condemnationes ou apenas com umadelas," ou, ao contrário, se somente com as duas condemnationes. A maioria se inclinapela primeira tese." Demais, quando houvesse vários credores, não se estabelecia con-curso entre eles, mas vigorava o princípio occupantis est melior condicio, pelo qual o cre-dor que primeiramente obtém a condenação (ad sententiam iudicis uenit) se satisfazintegralmente, em detrimento dos outros credores.

Por outro lado, se a pessoa sob potestas, com o conhecimento dopaterfamilias massem ser seu preposto, comerciasse com parte do pecúlio e se tomasse insolvente, o pretor,a pedido de um dos credores, ordenava ao pater familias, mediante decretum, que distri-buísse os bens do pecúlio destinados a esse comércio (as coisas necessárias a ele, e os cré-ditos decorrentes das operações mercantis) entre os credores - inclusive o próprio paterfamilias se tivesse qualquer crédito contra a pessoa sob potes tas -, na proporção de seuscréditos, como ocorre na falência moderna. Se opater familias, nessa distribuição, preju-dicasse um dos credores, este dispunha contra ele da actio tributo ria, para obter o com-plemento da quota que lhe era devida.

Nas hipóteses em que se podia intentar contra opater familias as ações exercitoria,institoria e quod iussu, este, porque consentira em que a pessoa sob potestas se obrigassecom o terceiro, respondia por todo o.débito - sua responsabilidade, portanto, era in soli-dum.

A ação exercitoria era concedida quando, sendo opater familias armador de navio(exercito r) e a pessoa sob potes tas capitão do barco (magister nauis), a obrigação eracontraída por esta em virtude de comércio marítimo.

A ação institoria era usada quando opater famílias colocava a pessoa sob potes tasà frente do comércio terrestre, na qualidade de seu preposto (institor).90

A ação quod iussu - e essa denominação vem das duas primeiras palavras utilizadasno edito - era intentada contra opater famílias quando este tinha autorizado (iussum, aí,

87 . Esse é o sistema exposto por Gaio ilnstitutas, IV, 74) e por Justiniano (Inst., IV, 7, 4); para o entendi-mento divergente de Paulo e Ulpiano (D. XV, 3, 19), videOrtolan, Explication historique des Institutsde /'empereur Justinien, livres III etIV des Instituis, l2a ed., n" 2.212, p. 684, Paris, 1883.

88 Assim, por exemplo, o credor poderia agir apenas de peculio, quando não tivesse havido enriqueci-mento por parte do pater famílias.

89 Exposição das diferentes teses em Solazzi, Peculio e "in rem uerso" nel diritto romano, in Scritti diDiritto Romano,!, p. 247 e segs., Napoli, .1955. Os autores mais antigos entendiam que havia duasações distintas (a actio de peculioe a actio de in rem uerso), o que entra em choque com QS textos, cita-dos na nota n087 deste Capítulo, de Gaio e Justiniano (a propósito, vide Du Caurroy, ob. cit.in" 1251,p.425).

90 Sobre as ações exercitaria e institoria, vide Pugliese, in Tema di "actio exercitoria ", in Scritti Giuri-dici Seelti, 11 (Diritto Romano), pp. 505 a 542, Camerino, 1985; e Giannetto Longo, "Actio exercito-ria. Actio institoria. Actio quasi institoria ", in Studi in Onore di Gaetano Seherilo, lI, pp. 581 a 626,Miíano, s/data.

DIREITO ROMANO 621

significa autorização, consentimento, e não ordem) a pessoa sobpotestas a contrair obri-gação com terceiro. 91

As ações exercitaria, institoria e quod iussu eram perpétuas; o mesmo ocorre com atributo ria e de peculio et de in rem verso, quando se agia de in rem verso, pois, se se agis-se de peculio, ela prescrevia um ano útil depois do momento em que o pecúlio, sem frau-de do paterfamilias (assim, por exemplo, quando a pessoa sob potestas falecia) deixarade existir. '

No tempo de Justiniano." nas hipóteses - com exceção do caso em que se agisse depeculio - em que se concediam as actiones adiecticiae qualitatis, o credor podia agir di-retamente contra opater familias, com a condictio, como se a relação obrigacional tives-se nascido pessoalmente entre ambos.

Resta, enfim, explicar o motivo da denominação actiones adiecticiae qualitatis.Todas as pessoas sob potes tas obrigavam o pater familias, iure honorario (por força dodireito honorário), a responder pelos débitos anteriormente aludidos; mas, delas, os es-cravos e as pessoas in mancipio só se obrigavam a si mesmos, com relação ao terceiro,iure naturali (isto é, a obrigação do escravo ou pessoa inmancipio com terceiro era mera-mente natural- obligatio naturalis), ao passo que os filii famílias se obrigavam com osterceiros, iure ciuile (por força do ius ciuilei, embora, muitas vezes, enquanto na condi-ção de alieni iuris, não dispusessem de patrimônio para fazer face ao pagamento do débi-to. Ora, com referência às obrigações contraídas pelos filii farnilias, o credor podia es-colher um dentre dois devedores: ofilius familias, iure ciuili (em virtude do ius ciuile);ou o pater famílias, iure honorario (em decorrência do ius honorariums. Daí a denomi-nação actiones adiecticiae qualitatis que os intérpretes do direito romano deram a essasações contra o pater familias.

278. Ingresso na família proprio iure pela sujeição à manus - A mulher, pela co-nuentio in manumi" ingressava na família do marido, sujeitando-se àmanus (poder mari-tal) deste, ou - se ele fosse alieni iuris - de seu pater familias .94

A conuentio in manum ocorria" por um dos três seguintes modos:a) ~confarreatio: era uma cerimônia religiosa, com formalidades bastante comple-

xas, reahzada na presença do supremo sacerdote de Júpiter (o Flamen Dialisi, do Sumo

919293

Pouco importava a forma de que se revestisse essa autorização.Inst., IV, 1, 8.

Sobre a conuentio in manum, vide, entre outros, Kniep, Gai Institutionum Commentarius Primus, p.174 e segs., Jena, 1911; Chamoun, Manus, p. 15 e segs., Rio de Janeiro, 1950; Bonfante, Corso di Di-ritto Romano, I (Diritto di Famiglia), ristampa della I edizione, p. 51 e segs., Milano, 1963; e Volter-ra, Nuove Ricerche sulla "conventum in manum", in Atti della Accademia Nazionale dei Lincei,Classe di Scienzi Morali - Memorie, vol. XII, série 8a, pp. 251 a 355, Roma, 1966.Como Bonfante demonstrou cabalmente (ob. cit., p. 67 e segs.), o titular da manus é o marido, se suiiuris, mas, se alieni iuris, seu pater familias.Gaio,Institutas, I, II O.

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628 JOSÉ CARLOS MOREIRA AL VES

Pontífice e de 10 testemunhas, na qual- em síntese - os noivos, simbolizando sua vonta-de de viverem em comum, dividiam e comiam um bolo (opanis farreus - donde derivoua denominação confarreatio), havendo a prolação de certas palavras solenes, e a obser-vância de determinados ritos religiosos;

b) a coemptioi" era cerimônia em que, utilizando-se dos ritos da mancipatio, se ce-lebrava uma venda fictícia, provavelmente (os textos não são claros a respeito )97 da mu-lher, por si mesma, ao marido;" e

c) o usus: modo de aquisição da manus que se assemelhava ao usucapião (vide n" 154,lU), pois o marido, pelo usus, adquiria a manus sobre amulher se vivesse em comum comela durante um ano inteiro; a mulher, porém, podia evitar a conuentio in manum pelo ususse, durante o ano, se afastasse da casa do marido três noites consecutivas (era a usurpatiotrinoctii].

Desses modos de aquisição da manus - e os autores divergem, profundamente, so-bre a ordem em que eles surgiram'" -, o primeiro a cair em desuso foi o usus, que, no tem-po de Gaio (século 11d.C.),HJO já era simples reminiscência histórica; a confarreatiopersistiu mais tempo, possivelmente até a implantação do cristianismo como religião ofi-cial do Império Romano; e a coemptio desaparece inteiramente no século IV d.e.

279. Os efeitos da conuentio in manum e a manus - A "conuentio tn manum" -pela qual se adquiria a manus (poder marital) - produzia efeitos quant~ à pessoa da mu-lher e quanto aos seus bens.

Quanto à pessoa da mulher, eram esses efeitos os seguintes:a) a mulher ingressa na família do marido in loco jiliae (como se fosse filha dele, e

conseqüentemente, com relação aos seus próprios filhos, é considerada como irmã deles- in loco sororis)/Ol tomando-se, assim, para todos os efeitos, sua parenta agnada; em

96 Como salienta Galo (Institutas, I, 114), havia duas espécies de coemptio: a coemptio matrimonii causa(que era associada ao casamento) e a coemptio fiduciae causa (que, em virtude de pactumfiduciae, era uti-lizada para que se atingissem indiretamente fins não permitidos pelo rigor do jus civile, que não estavamais de acordo com a evolução social). Os fins, a que se visava com a coemptio fiduciae causa, eram:a) permitir a mulher que mudasse de tutor (a denominada coemptio tutelae euitandae causa) (viden" 301);b) permitirà ingênua que fizesse testamento (coemptio testamentifaciendi causa) (viden° 315, A); ec) permitir à mulher- herdeira ou legatária-livrar-se do encargo de continuar o culto doméstico (sa-cra priuata) do de cuius (coemptio sacrorum interimendorum causa).

97 Sobre a Coemptio, vide Düll, Studien zur Manusehe, 'ln Festschriftfiir Leopold Wenger, erster Band,p. 211 e segs., München, 1944; e Falchi, Osservasioni sulla natura della "coemptio matrimonii cau-sa" nel diritto preclassico, in Studia et Documenta Historiae et Iuris, voI. 50 (1984), p. 355 a 382.

98 Sobre as diferentes inteIpretações (e reconstitnições de textos) a respeito da. coemptio, vide Bonfante,ob. cit., p. 62 e segs,

99 Vide,a propósito, Lévy-Brubl, Nouvelles Études sur les TrêsAncien Droit Romain, p. 63 e segs.100 Cf. Gaio, .ln.mtutas, I, 111.101 Sobre a condição do filho nascido antes de ocorrer o usus (uma das formas de conventio in manum),

pelo decurso de um ano sem a usurpatio trinoctii, vide Lévy-Bruhl, La condition des enfantes nésavant Iafonntllion de /e manus, in IVRA, VII (1956), p. 120 e segs. '

DIREITOROMANO 629

virtude disso, ela se desvincula da família de origem, deixando de ser agnada, tambémpara todos os efeitos, dos membros desta, embora continue cognada deles (e isso porqueo parentesc~ consangüíneo não se extingue com a conuentio in manum);

b) assun sendo, a mulher sofre uma capitis deminutio mínima: se é sui iuris, tor-na-se alieni iuris; se alieni iuris, continua a sê-lo, porém na família do marido;

c) o marido (ou seu pater famílias) adquire a manus, passando a ter sobre a mulherpoderes semelhantes aos que possui com relação aos seus jilii famílias: 102

1 - ~ ~us uitae et necis (direito de vida e de morte): segundo parece, omarido (ou opater famllzas dele) para exercer o ius uitae et necis devia ouvir o tribunal domesticus deque participavam, também, os parentes cognados da mulher, até o sexto grau; ,. 2 -~ ius uendendi (direito de vender): como salienta Gaio,103a mulher in manu po-

dia ser objeto de mancipatio (mas, segundo parece, só nas hipóteses de venda fictícia enão de venda efetiva);I04 e '

3 - o ius noxae dandi: a mulher in manu - e a informação também é de GaiO/05 - podiasofrer ~ abandono ~oxa1,por parte do marido (ou, se fosse o caso, de seu pater familias).

Ja com relaçao aos bens da mulher, os efeitos eram estes:a) se a mulher é sui iuris, todos os seus bens - exceto os direitos que se extinguem

com a cap'itis deminutio. m!n~ma de seu titular, como, por exemplo, o usufruto e o uso _p~s~am a rntegrar o patnT?-0modo seu novopater familias, verificando-se, pois, uma dashlpo~ese~de .s~cessao umversal inter uiuos; por outro lado, como ocorria com a capitisdemz'!utzo ,,!zmma da mulher, seus débitos, para o ius ciuile, se extinguiam, mas o pretor,pa:a I:upedir que se~ credores fossem prejudicados, concedia-lhes uma actio utilis (emcuja formula se contrnha a ficção da não ocorrência da conuentio in manum) contra a mu-lher, e, se ela fosse condenada, seus bens seriam objeto de execução;

b) se a mulher é alieni iuris, não possui bens, e, conseqüentemente nada transmiteao novo pater 'familias; é certo, porém, que - como veremos no n° 293 a:'- ela pode trazerdote para o marido.

Po~outro lado, ~ ~emelhan~a.do que o~orria com ofilius famílias, tudo aquilo que an:ulher tn ~an~ adqumsse, a~quma para o titular damanus (o marido ou seupater fami-lzas~; de~als, tinh~ ~la capacidade para obrigar-se pelos delitos que cometesse, mas nãopodia obrigar-se CIVIlmente.

Éprovável, enfim, como se verifica de um texto de Plauto, I06 que a mulher in manupudesse ter pecúlio.

102 ~ssa é a opinião dominante. Gide (ÉIude sur Ia condition privée de Iafomme,2" ed., p. 118 e segs., Pa-us, 1885), no entanto, entende que a manus não atribuía direitos sobre a pessoa da mulher, mas apenassobre seus bens.Institutas, I, ll7 e 118.

Cf. :uchta, Cursus der Institutionem, Driuer Band, 4" ed., n° 285, p. 160 e segs., l.eipzig, 1857.Instiuaas, N, 80.Casina, Il, 2, 28 e 29 (ed. Lindsay, OxfOId, 1955). Vide, também, Padelletti-Cogliolo, Storia del Dirit-to Romano, T' ed, p. 175, nota c, Firenze, 1886.

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630 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES

280. A extinção da patria potestas - O pátrio poder ao contrário do que ocorria naGrécia e sucede nos tempos modernos, era, por via de regra, potes tas vitalícia do paterfamilias. Assim, qualquer que fosse a idade dosfili~familias, esta:am eles sujeitos ao pa-ter familias: o direito romano não conheceu o instituto da maioridade, .

Em certos casos - além, obviamente, da morte ou da capitis deminutio sofnda pelosfi/h famílias -, a patria potestas se extinguia. São causas de extinção da patria potestas'(cujo número foi aumentado no decurso do tempo) as seguintes:

a) a morte do pater famílias: morto opaterfamilias, seus filhose filhas 107se tornampessoas sui iuris, sendo que os filhos (as filhas não, poi~,. como salien~amo~no n° 85, elasnão podem ser patres familias) vão formar tantas famílias - das qU~IS serao s~us patresfamilias - quantos são eles; 108por outro lado, os netos e netas, .os bisnetos e bIsnet~s dopater familias morto só se tomarão pessoas sui iuris se seus paiS (ou, no caso dos. bisne-tos, pais e avôs) já tiverem anteriormente, morrido ou sido excluídos da família (poremancipação, por exemplo), e isso porque ~a pessoa só .se toma s.ui ~~~is quando nãotem, dentro da família, ascendentes masculinos a que esteja submetida,

b) a perda, pelo pater famílias, da liberdade ou da cidadania: apatria potestas nãopode ser exercida pelo escravo (que não tem sequer pe:so.nalid~de)uridic~), 1l0~em peloestrangeiro (é ela ius proprium ciuium romanorum - direito propno dos cidadãos roma-nos);'!'

c) em certos casos de indignidade cometida pelo pater familias, e taxativamente esta-belecidos no direito objetivo: nos direitos pós-clássico e justinianeu, perde a patria potestas(e segundo parece, o filho não sofre capitis deminutio minimai o pai que expõe sua prole,lll, 113" 114

ou que abandona sua filha à prostituição, ou que contrai casamento mcestuoso~d) o acesso dos filii familias a certas dignidades: no direito clássico, extmgue-se a

patria potes tas sobre os filii famílias que têm acesso à dignidade de Flamen Dialis (sa-

I107 Conjectura-se que, primitivamente, as filhas, morto o pater familias, continuavam na condição de

pessoas alieni iwis, sob o poder dos agnados, ou (na ausência destes) dos gentiZes. Com o tempo, po-rém, a mulher, nessa hipótese, passou a ser sui iuris, embora sujeita à tutela legítima de seus agnados,ou - na falta destes - dos gentiles.

108 Cf. D. L, 16,195,2.109 Vide,a propó.Gaio,Institutas, 1,127. .110 Se, porém, opaIlI!1r/amiliasse toma escravo por ter sido aprisionado pelo inimigo (capti~itas): apatna

potestas não seperde, mas se suspende: se o pai recupera a lí?erdade, e reto.m~, rea~quIT~-a IpSOl~re,em decorrênciampostiiminium. Na hipótese, porém, de o par morrer no cativeiro, discutia-se, na epo-ca de Gaio (Insfãttls, 1,129), se o filho se tomavasui iuris quando aquele caíra prisioneiro, ou quandomorrera. SeguudiJparece (vide, a propósito, Bonfante, Corso di Diritto Romano, 1- Diritto di Fami-glia, reimpressiilt, p. 179, Milano, 1963), a solução que prevaleceu foi a primeira. .

111 Não sofre capim deminutio minima o filius familias que se liberta da patria potestas em virtude demorte, perdadeJiberdade ou de cidadania do pater familias.

112 C. VIll, 51 (~2, 1.113 C. XI, 41 (40)"fí.114 Nov. XII, Cap.2.

DIREITO ROMANO 631

cerdote de Júpiter), ou à de vestal." no direito justinianeu, essa extinção ocorre com oacesso dos filii familias ao patriciado, 116à posição de bispo, de cônsul e de outras funçõespúblicas+'" e

e) a emancipação: é o ato pelo qual o paterfamilias liberta ofilius familias (ou afi-lia familiasi do seu pátrio poder, tomando-se o emancipado pessoa sui iuris. Anterior-mente à Lei das XII Tábuas, não se admitia a emancipação; ela só foi possível- como jásalientamos ao tratar da adoção (vide n° 276, B) - graças a expediente imaginado pelosjuristas romanos com base na interpretação do princípio, constante da Lei das XII Tábu-'as, llX de que, se o pai vendesse o filho três vezes, por ocasião da terceira venda o filho fi-caria livre do pátrio poder. Esse dispositivo, que se destinava a diminuir os poderesabsolutos do pater familias, foi utilizado pelos jurisconsultos romanos para possibilitarao pai a emancipação do filho, por três mancipationes (vendas solenes) fictícias, comodescrevemos no n° 277, B. Quanto às filhas, netos, netas, bisnetos, bisnetas -já que a Leidas XII Tábuas exigia as três vendas solenes apenas para °filius (filho) -, bastava, para aemancipação uma só mancipatio. Assim, realizadas as três vendas (ou, se fosse o caso,apenas uma), o filius famílias ficava livre do pátrio poder, mas se tomava pessoa in man-cipio (vide n° 86, B) do adquirente. Podia, então, ocorrer uma de duas situações: ou o ad-quirente, por meio da manumissio uindicta (vide n° 83, D, 1, a), libertava o filhoemancipado, tomando-se, em conseqüência, seu patrono (até com os direitos sucessóriosdaí decorrentes); ou o remancipava (o revendia solenemente) ao seu antigo pater famili-as, que, recebendo o filho emancipado como pessoa in mancipio, o manumitia vindicta,passando, assim, a ser patrono dele. Esse formalismo somente foi posto de lado pelo im-perador Anastácio, ao estabelecer, em 502 d.e., que, a pedido do pater familias e com oconsentimento do filius famílias (ou jilia famílias), podia emancipar-se este, emboranão-presente, por rescrito do príncipe, o qual se depositava nos arquivos públicos.l'" aessa emancipação denomina-se emancipação anastasiana. Ainda no direito pós-clássico,na parte oriental do Império Romano, se realizava, segundo parece,120 a emancipaçãomediante simples declaração escrita do pai diante do magistrado competente: é o que, emgrego, se chama apoceryxis (abdicatio, em latímj.!" No tempo de Justiniano, a antiga

115 Gaio,Institutas, I, 130, e m, 114; Aulo Gélio, Noctes Atticae, I, 12,9.116 Inst., 1, 12, 4.117 X C X, 32 (31), 67 (66); e Nov. LXXXI, Capom.118 Tábua IV, 2 b (ed. Riccobono).119 C. VIII, 48 (49), 5.120 Nesse sentido, Cuq. Manuel des Institutions Juridiques des Romains, 23 ed., p. 152, nota 9;Düll, Iudi-

cium domesticum, abdicatio und apoceryxis, in Zeitschrift der Savigny-Stiftungfiir Rechtsgeschichte,Rômanistische Abteilung, LXII, p. 106 e segs.; e Kaser, Das Rõmisches Privatrecht, fi, §228, p. 151,München, 1959.

121 A apoceryxis (abdicatio) era o ato pelo qual o pai expulsava da família o filho indigno de pertencer aela. Instituto do direito grego, sempre foi repudiado pelo direito romano. A propósito, vide, para por-menores, Perozzi, Istituzioni di Diritto Romano, I, 23 ed. - reintegrazione 1949 -, § 54, p.455, nota 2;Emilio Costa, Storia del Diritto Romano Privato, 2" ed., p. 99 e segs., TOMO, 1925; eDüll, Iudiciumdomesticum, abdicatio und apoceryxis in Zeitschrift der Savigny-Stifungfúr Rechtsgeschichte, Rõma-nistische Abteilung, LXII, p. 71 e segs. Consulte-se, também, o C. VIll,45 (46),6,

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632 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES

fonua de emancipar foi abolida, mas, além da emancipação anastasiana, que subsiste,permitiu-se que opater familias emancipasse ojilius familias (ou ajiliafamilias), com oconsentimento deste, mediante declaração ao magistrado competente, devidamente re-gistrada nos arquivos públicos. Note-se, ainda, que, nas duas formas de emancipar exis-tentes no direito justinianeu, o pater familias, embora não mais seja patrono doemancipado (pois não há mais mancipationes, nem manumissão), conserva o direito deser seu tutor, e de lhe herdar os bens; por outro lado - e, ao contrário do que ocorria ante-riormente, quando o emancipado saía de sua família de origem, perdendo todos os seusdireitos nela, inclusive o sucessório -, no direito justinianeu, a emancipação apenas liber-ta o jilius familias da patria potestas, não acarretando para o emancipado a perda dosseus direitos sucessórios com relação ao antigo pater familias ou aos outros membros dafamília de origem, razão por que, em certos casos, o pater famílias pode ser obrigado aemancipar o filho, no interesse deste.

281. A extinção da manus - A manus podia extinguir-se por modos:a} diretos - por meio da remancipatio ou da difarreatio; eb) indiretos - em virtude da morte, da capitis deminutio maxima ou da capitis demi-

nutio media do marido (se fosse sui iuris) ou da mulher.Como salientamos adiante (yide n" 286), a manus é independente .do casamento.

Portanto, embora nos textos romanos não haja referência direta a essa conseqüência, é desupor-se que o divórcio dissolvesse o matrimônio, mas não extinguisse a manus, o que sóocorria quando se verificasse um desses modos direitos ou indiretos:

Analisemo-Ios,

A)Modos diretos de extinção da "manus"

A remancipatio, segundo tudo indica, 122 apenas extinguia a manus que fora obtidapela coemptio ou pelo usus. Assim corno a emancipação, a remancipatio resultou do pre-ceito da Lei das XII Tábuas segundo o qual o pai que vendesse solenemente o filho trêsvezes perdia apatria potestas. Ora, como a mulher in manu estava in loco jiliae do mari-do, este (se fosse sui iuris; se alieni iuris, seupater familias) mancipavaproforma, umavez - o que, como já acentuamos anteriormente, era o bastante para libertar a filha do po-der paterno -, a mulher a um amigo, libertando-se ela, assim, da manus, passando a serpessoa inmancipio do adquirente, que, por sua vez, e isso em virtude de umpactum fidu-ciae prévio, ou amanumitia vindicta (caso em que se tomava patrono da mulher), ou a re-mancipava - o que geralmente devia suceder, como o demonstra a expressão reman-cipatio - ao marido (ou a seu pater familias, se ele fosse alieni iuris), com o que ela nãorecaía sob suamanus mas se tomava pessoa in mancipio; em seguida, o marido (ou, sefosse o caso, seu pater familias) a manumitia vindicta, passando a ser, assim, patrono damulher.

122 A respeito, vide Rem, Das Rõmisches Privatrechtund derZivilprozess, Ia ed., p. 210, Leipzig, 1836.

DIREITO ROMANO 633

A difarreatio era o modo direto de extinção da manus obtida pela confarreatior"Tendo em vista que, por meio da confarreatio, a manus se adquiria mediante cerimôniareligiosa pela qual a mulher ingressava no culto da família do marido, era preciso que,por cerimônia inversa (por isso, a denominação difarreatio), ela daí fosse excluída, ex-tinguindo-se dessa forma a manus.

B) Modos indiretos de extinção da "manus "

Por via indireta, a morte do marido (se sui iuris) ou da mulher, além de dissolver ocasamento, extingue a manus. Se, no entanto, o marido fosse alieni iuris, sua morte rom-pia o matrimônio, mas a mulher continuava in manu do pater familias dele.

Demais, e ainda por modo indireto, a manus se extinguia quando o marido (se suiiuris), ou a mulher, sofresse capitis deminutio maxima ou media. Entretanto, se o maridofosse alieni iuris, a mulher continuava sob amanus dopater familias dele. Além disso, sea capitis deminutio maxima ocorresse por captura do marido (se sui iuris) pelo inimigo, ocasamento se dissolvia, mas a manus ficava em suspenso, readquirindo-a o esposo, emvirtude dopostiliminium, se conseguisse escapar e retomar.

123 Sobre a controvérsia acerca do texto de Dionisio de Halicarnasso (Romanarum Antiquiiatum quae su-persunt, n, 25) que dá a entender que a confarreatia em indisso1úvel, vide Chamoun, Manus, p. 59 esegs., Rio de Janeiro, 1950.

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XLIX

A FAMÍLIA NATURAL

Sumário: 282. A família natural e o casamento. 283. A posição dos jurisconsultosromanos quanto ao matrimônio. 284. Conceito de casamento. 285. A natureza jurídica docasamento. 286. O casamento e a conuentio in manum. 287. Esponsais. 288. Requisitos docasamento. 289. Nulidade do casamento. 290. A formação do casamento. 291. Relaçõespessoais entre os cônjuges. 292. Relações patrimoniais entre os cônjuges - o dote. 293. A fi-liação e as relações entre pais e filhos. 294. Dissolução do casamento. 295. Segundas núp-cias. 296. Concubinato.

282. A família natural e o casamento - A família natural, como salientamos atrás(vide n° 273) é o agrupamento constituído apenas dos cônjuges e de seus filhos, independen-temente de o marido e pai ser, ou não, pater-familias da mulher e dos descendentes imediatos.

Portanto, quando se estuda a família natural, não se levam em consideração (sãoeles objeto da análise da família proprio íure) os efeitos jurídicos decorrentes da patriapotestas e da manus.

A família natural tem por base o casamento. Por isso, neste capítulo estudaremos,quase exclusivamente, o casamento e as relações juridicas - dele resultantes - entre oscônjuges, e pais e filhos. Mas, no item final, tendo em vista que, no período justinianeu, oconcubinato gera relações juridicas especialmente entre os concubinos e seus descenden-tes imediatos, será ele, também, objeto de exame.

283. A posição dos jurisconsultos romanos quanto ao matrimônio - Não existe,no direito romano, disciplina orgânica do casamento.

Da jurisprudência clássica, dois títulos, apenas, de obras que versavam o matrimô-nio chegaram até nós - De nuptiis, de Nerácio Prisco,' e Liber singularis de ritu nuptia-rum, de Modestíno," Mas como esses livros se perderam, quase nada sabemos sobre seuconteúdo.

Os textos que possuímos mostram que os jurisconsultos clássicos, por via de regra,trataram do casamento apenas incidentemente, quando estudavam institutos a ele rela-cionados. Assim, Gaio dele se ocupa, nas Institutas.' ao analisar o pátrio poder; e, nas

Cf. Aulo Gélio, Noctes Atticae, IV, 4, 4. _2 Cf. D. XXIII, 2, 42 e 50; eD. L, 17, 197 (onde se repete parte do fragméntocitado em primeiro lugar).3 I, 55 e segs.

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636 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES

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obras sobre o ius civile e ad edictum (vide n° 32), geralmente se alude ao matrimônio emconexão com o dote."

A jurisprudência clássica - como se vê no Digesto - se limitou à solução de ques-tões práticas sobre o casamento, sem se preocupar com o seu estudo dogmático.

Mesmo os títulos a ele consagrados no Código Teodosiano e no Corpus Iuris Ciulissão, no dizer de Gaudemet," tardios, incompletos e não muito coerentes ensaios de siste-matização. Basta atentar para o fato de que, nas Institutas, embora haja um título especí-fico sobre o casamento - o De Nuptiis" -, os compiladores o definem no título relativo aopátrio poder: De Patria Potestate.'

O primeiro esboço de código matrimonial, em Roma, surge apenas com a NovelaXXII, que, posteriormente, foi complementada pelas LXXIV e CXVIl. Mas - comoacentuamos - não passa de esboço.

284. Conceito de casamento - No Corpus Iuris Ciuilis, há duas definições de casa-mente.' Uma se encontra no Digesto' e é atribuída a Modestino; a outra, nas Institutas, 10

e é provavelmente de autoria de Ulpiano. 11

Segundo Modestino, nuptiae sunt coniunctio maris etfeminae et consortium omnisuitae, diuini et humani iuris communicatio (as núpcias são a união do homem e da mu-lher, o consórcio de toda a vida, a comunicação do direito divino e humano). Para asInstitutas, nuptiae autem siue matrimonium est uiri et mulieris coniunctio, indiuiduamconsuetudinem uitae continens (núpcias, ou matrimônio, são a união do homem e da mu-lher, a qual encerra comunhão indivisível de vida).

Na opinião de vários autores, ambas essas definições são interpoladas."Principalmente a primeira tem sido objeto de acaloradas críticas. Hruza,':' sem

entrar no problema de interpelação, chega a afirmar que ela encerra tantas inverdadesquantas as palavras. Bonfante," segundo parece, foi o primeiro a suspeitar fosse ela

4

H56

H 7i'\II 8

Ir 9'II' 10,11I,

I'i

II 1213

Ir~ 1 14

Cf. Orestano,La Struttura Giuridica dei Matrimonio Romano dei Diritto Classico ai Diritto Giustini-aneo, L, § 10, p. 34, Milano, 1951.Iustum Matrimonium, in Revue Intemationale des Droits de I 'Antiquité, tomo II (1949), p. 309.1,10.1,9 ..Isso apenas comreIação às fontes jurídicas. Nas literárias, principalmente nas obras dos retores (vide,a propósito, Lanfranchi, li Diritto nei retori romani,p. 216 e segs" Milano, 1938), há vários conceitossobre casamento.D. XXIII, 2,1.Inst., I, 9, 1.Cf. Lanfrancbi.f? Diritto nei retori romani, p. 214, nota I,Milano, 1938; e Bonfante, Corso di DirittoRomano, I (Diritto di Famig/ia), reimpressão, p. 263, Milano, 1963.Cf. Giannetto Longo, Diritto Romano, fi (Diritto di Famiglia), p. 86, Roma, 1940.Beitrãgezur Ge5chichte des Griechieschen und Rãmischen Familienrechtes, II (Polygamie und Pelli-kat rwphG~n R.echte),.p. 8, Erlanten-Leipzig, 1894.Corso di Diritto Romano, I (Diritto di Famiglia), reimpressão, p. 263, Milano, 1963.

DIREITO ROMANO 637

interpolada. Sollazi" nega taxativamente sua genuinidade. Outros há, no entanto - e essaé a corrente que, a pouco e fOuco, vai predominando -, que a consideram clássica.Assim, Albertarío," Volterra, 7 Lanfrenchi.i''

Num ponto, porém, a opinião da grande maioria dos autores é concorde: as duas de-finições focalizam apenas a essência do casamento sob o aspecto social, não lhe determi-nando, portanto, a natureza jurídica. 19

285. A natureza jurídica do casamento - Diante das circunstâncias aludidas nositens anteriores, não é de admirar a existência de multissecular controvérsia sobre a natu-reza jurídica do casamento romano."

Ela se inicia com os glosadores, que, abstendo-se de definir o casamento.r' o carac-terizaram, a princípio, como contrato sem fundo patrimonial (contractus personarum)em contraposição aos contractus rerum (contratos obrigatórios de fundo patrimonial). 2

No entanto, segundo parece,23 os últimos glosadores, sob a influência dos canonistas,passaram a considerá-lo um actus legitimus (ato jurídico), à semelhança da adoção e daad-rogação.

Os pós-glosadores retomaram à tese de que o casamento romano era um contractuspersonarum.

Mais tarde, os representantes franceses da Escola Culta - dentre outros, Cujácio,Duareno e Hotomano - o classificaram como s~ecies societatis (espécie de sociedade),doutrina ardorosamente defendida por Donelo. 4

Os jurisconsultos dos séculos XVII e XVIII, em sua quase totalidade, consideraramo casamento romano um contrato, fixando-se, geralmente, no de sociedade."

1516

"Consortium omnis vitae", in Scritti di Diritto Romano, Ill, p. 313 e segs., Napoli, 1960.La Definizione dei Matrimonio secondo Modestino, in Studi diDiritto Romano, I tpersone efamiglia),p. 181 e segs., Milano, 1933.Cf. Lanfranchi, li Diritto nei retori romani, p. 214.Ob. cit., p. 214 e segs.Vide, a propósito, entre outros, Di Marzo, Istituzioni di Diritto Romano, 5' ed., § XXXV, p. 154esegs.; e Solazzi, "Consortium omnis vitae", in Scritti diDiritto Romano, Ill, p. 313, Napoli, 1960. Car-10s Castello (La Definizione di Matrimonio secondo Modestino, in Atti dei Colloquio Romanistico-Canonistico - febbraio, 1978, pp. 267 a 298, Roma, 1979), porém, sustenta que "a definição de Mo-destino, acolhida em D. XXIII, 2, I, tem relevância jurídica tanto na antiga Roma pagã, desde os tem-pos iniciais, quanto na obra legislativa realizada por Justiniano".Para pormenores sobre o histórico dessa controvérsia, vide Orestano, La Struttura Giuridica dei Ma-trimonio Romano dai Diritto Classico ai Diritto Giustiniano, I, § 8° e segs., p. 22 e segs., Milano,1951. .

Cf. Rasi, Il diriuo matrimoniale nei glossatori, in Studi di Storia e Diritto in onore di Carlo Calisse, I,p. 143,1filano, 1940.Sobre as origens da teoria contratualista do casamento, vide Orestano, "Un errore che hafatto storia:il matrimonio fra icontratti", in "Diritto" Incontri e Scontri, pp. 315 a 337, Bologna, 1981.Cf. Rasi, ob. cit., p. 146.Commeniarius de jure ciuili lib. :xm, caps. 18 e 21.Fide, entre outros, Stnívio, 8yntagmalurisprudentüre secundum ordinemPandectarum concinnatum, Co-loniae Agrippinae, 1709, p. 536; e Voet, CommenJariusad Pandectas, tomo Il, Parisüs, 1829, p. 568.

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Entretanto, de longa data alguns autores - raros, é certo - criticavam a teoria contra-tualista. As objeções já existiam no tempo de Donelo, que procurava refutá-Ias."

No inicio do século XIX, o jurisconsulto alemão Glueck, analisando a definição decasamento atribuída a Modestino, atacou vigorosamente a tese de que o matrimônio ro-mano seria um contrato?7 Fora a palavra coniunctio que induzira os juristas a reputar ocasamento um contrato - mais precisamente contrato consensual, porquanto se apertei-çoa com o simples consentimento: consensusfacit nuptias. Entretanto, essa classificaçãonão era adotada pelos romanos, pois seus jurisconsultos jamais usaram a expressão conetractus para designar ato jurídico de natureza pessoal. Aliás, esse vocábulo latino se refe-re sempre a coisa que seja objeto de comércio, e evoca a idéia de uma obrigação quepressupõe um devedor e um credor, e que, uma vez cumprida, extingue necessariamentea relação jurídica surgida entre ambos. Nada disso ocorria no casamento.

Mas, por causa de Savigny,a crítica de Glueck não conseguiu destruir a teoria tradi-cional. No Sistema doDireito Romano AtuaZ,z8propôs Savigny nova definição de contra-to: "Contrato é o acordo de muitas pessoas sobre uma manifestação comum de vontadedestinada a reger suas relações jurídicas." Assim, ao passo que os autores da época repu-tavam o contrato obrigatório como gênero (e isso porque a definição de contrato só a elese aplicava), Savigny, com seu conceito, fez passar o contrato obrigatório de gênero a es-pécie, e, na noção genérica de contrato, enquadraram-se, também, os acordos de vontadeque estabeleciam relações jurídicas no seio da família, como o matrimônio. Pondera Sa-vigny que, adotada sua definição, o casamento será naturalmente um contrato sem neces-sidade de - como geralmente pretendiam os autores - ser ele posto ao lado da compra evenda e da sociedade, como contrato consensual que, por singular inadvertência, os juris-tas romanos teriam olvidado. Mas o próprio Savigny reconhecia que seu conceito de con-trato era desconhecido dos romanos, que aplicaram as expressões pactio, pactum econuentio apenas aos contratos obrigatórios.

Ainda no século XIX, Ortolan, retomando, talvez inconscientemente, idéia já ex-posta por Vacário- o célebre fundador da Universidade de Oxford -, defendeu a tese de

. 129que o casamento romano sena um contrato rea .Era esse o panorama doutrinário, quando, em 1889, Manenti publicou o livro Della

inopponibilità delle condizioni ai negozi giuridici e in ispecie delle condizioni opposte aZmatrimonio, onde - sem prever que se tomaria célebre por isso - salientou que, para aconstituição do casamento romano, havia a necessidade do estabelecimento de fato, entreos nubentes, da comunhão de vida, bem como da existência do consentimento deles, que

26 Commentarius de iare ciuili lib. XIII, cap, 18,2.27 CommentarioallePtmdette, XXII, trad. D'Ancora, p. 143 e segs.28 Sistema deZ lJirilIbRomano Attuale, III, trad. Scialoja, § 140, p. 406, Torino, 1891.29 Législation ~ Explication Historique des Instituts de I 'Empereur Justinien, lI, 12" ed., n° 99,

p.80, Paris, 1883.

DIREITO ROMANO 639

consistia, não no acordo inicial de vontade, mas no contínuo, a que as fontes, por causamesmo dessa continuidade, dão a denominação de affectio moritalis/"

Com base nessa idéia, Bonfante, ainda nos fins do século XIX,31 formulou uma tese .revolucionária sobre a natureza jurídica do casamento romano.

Para que se possa compreender a teoria construída por Bonfante, é preciso ter co-nhecimento das noções que se seguem.

Modernamente, a palavra casamento se emprega em duas acepções diversas:a) para indicar o ato inicial que dá nascimento à união legítima entre o homem e a

mulher; eb) para designar a relação jurídica que, depois do ato inicial, se estabelece entre o

marido e a mulher.Por isso, como acentua Vassali,32 no direito moderno, ao lado do ato juridico "ma-

trimônio" (ato que dá início ao estado de marido e demulher), há a relação jurídica "ma-trimônio"(o próprio estado de marido e mulher). Em conseqüência, o ato inicial, atojurídico "matrimônio", e a relação jurídica "matrimônio", ou - como também salientaVassali" - o status do cônjuge, são nitidamente distintos. Do ato inicial- em que o ho-mem e a mulher, observadas as solenidades legais, manifestam à autoridade competentea vontade de se casarem - surge o status de cônjuge, que os vincula (independentementede terem, ou não, vida em comum, e de quererem, ounão, continuar casados) até a mortede um deles, ou - nos países que o admitem - o divórcio.

Segundo a teoria estruturada por Bonfante, o mesmo não ocorre com o casamentoromano em nenhuma das suas etapas de evolução. O matrimônio, em Roma, era uma si-tuação de fato que se iniciava, sem quaisquer formalidades, com o simples acordo devontade do homem e da mulher, e que perdurava apenas enquanto persistia a intençãodos cônjuges em permanecerem casados, dissolvendo-se, de imediato, no momento em

30 Ob. cit., p. 42 e segs. Antes de Ferrini, porém, como procurei demonstrar em "J.E. Labbé e a naturezajurídica do casamento romano", artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito da USP, vol.LXXIV (1979), pp, 109 a 117, esse romancista francês, em1883 (em trabalho intitulado Dela naturedu mariage, e publicado em apêndice à 12" edição da obra de Ortolan, Explication Historique desInstituts de I 'Empereur Justiniem, vol. TI, pp. 684 a 687, Paris, 1883),já sustentava que, no direito ro-mano, "o casamento não se forma num dado momento como um contrato; não, ele supõe condiçõesmúltiplas que podem realizar-se uma após outras e chegar, em seguida, a concorrer em conjunto"; eacrescentava: "Ele começa a existir pela reunião dessas condições, ele se prolonga por sua permanên-cia, ele se dissolve pela cessação de uma delas". Por isso, ao tratar do divórcio e do repúdio, salientavaqne esses institutos como se apresentavam no direito romano eram o resultado da natureza, ali, do ma-trimônio: "Ela (a faculdade de divórcio ou de repúdio) decorreu antes, como UD1a conseqüência, danatureza do casamento, da necessidade da permanência das vontades que o constituem, da igualdadede posição dos cônjuges na ausência da manus" (ob. cit, p. 686). .

31 Istituzioni di Diritto Romano, cuja primeira edição é de 1896 - vide § 58, p.137 e segs,32 Lezioni di Diritto Matrimoniale, I, §21, p, 48, Padova, 1932.33 Ob. cit., § 17, p, 37.

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que um deles (OU ambos) deixasse de tê-Ia. Assim, ao contrário do que se verifica no di-reito moderno, em que basta o consentimento inicial para que surja o status de cônjugeque perdura - ainda que os esposos não mais o desejem - até a morte ou o divórcio, no di-reito romano o matrimônio se iniciava com o acordo de vontades do homem e da mulherno sentido de se casarem e só perdurava enquanto esse acordo persistisse: não era sufici-ente, para que o status de cônjuge se mantivesse, o consentimento inicial, mas, sim, ocontinuado. Por outro lado, e à semelhança do que sucedia com a posse, dois eram os ele-mentos constitutivos do casamento romano: o elemento subjetivo (a affectio maritalis,isto é, a intenção contínua de os cônjuges permanecerem casados) e o elemento objetivo(ou seja, a convivência, a vida em comum). Em face disso, assim defme Bonfante o casa-mento romano: "É a convivência do homem e da mulher com a intenção de serem maridoe mulher.,,34

Embora essa tese ainda hoje tenha muitos adeptos." vários romanistas." mais re-centemente, não a repudiando de todo, a têm, na verdade, alterado substancialmente.Assim, Volrerra" e Orestanc" se insurgem contra o elemento objetivo (a convivência, avida em comum), entendendo que não era ele requisito para a existência do casamento,pois há textos que demonstram que este perdura apesar de os cônjuges.viverem separadospor espaço de tempo mais ou menos prolongado; para ambos esses autores, apenas a affec-tio maritalis (elemento subjetivo) seria imprescindível para que houvesse matrimônio."

34 Istituzioni di Diritto Romano, I" ed., § 58, p. 137 (definição inalterada na última edição dessa obra,que é a ristampa dellaX edizione, Torino, 1946, § 58, p. 180).

35 E isso mesmo entre os autores de origem germânica; vide, a propósito, Kaser, Das Rõmisches Priva-trecht, I, § 17, p. 63 e segs., München, 1955, e n, § 215, n, p. 108, München, 1959; Wolff, Doctrinaltrends in Postclassical Roman Marriage Law, in Zeitschrift der Savigny-Stifungfiir Rechtsgeschichte,RõmanistischeAbteilung, LXVII (1950), p. 261 e segs.; Schwind, Rõmisches Recht, I, § 48, p. 176 esegs. Também Garcia Garrido (Minor Annis XII Nupta in Labeo Rassegna di Diritto Romano ano 3,1957, pp. 86 a 88), adota essa tese. Ainda recentemente, em 1980, Carlo Gioffredi (Per Ia Storia deiMatrimonio Romano, in Nuovi Studi diDiritto Greco e Romano, pp. 115 a 144, Roma, 1980) defendeamesma orientação, e salienta que "não se deve dar ao elemento vontade a veste quase de um dogma,porque se introduziria um dogma num instituto que, como o matrimônio romano, não é dogmático"(ob. cit., p. 144).

36 Martinez (Nuptiae et matrimonium, i71 Estudios Jurídicos en homenaje ai Profesor Ursicino AlvarezSuárez,pp. 57 a 67, Madrid, 1978) chega a dizer que a posição de Volterra e de Orestano é acolhidapela "quase totalidade dos romanistas atuais",

37 La concéption du mariage d'aprês les juristes romains, p. 49 e segs., Padova, 1940. Para uma visãosintética da tese de Volterra, videIstituzioni di Diritto Privato Romano, pp. 647 a 652 e 656 a 658.

38 La Struttura Giuridica deI Matrimonio Romano dal Diritto CIassico ai Diritto Giustinianeo, I, §29 esegs., p. 85 e segs., Milano, 1951.

39 Sobre aaffectio maritalis, vide G. Longo, Affecüomaritalis, in Bulletino dell'Istituto di Diritto Roma-no,voL V. N. S. (1939), p. 119 e segs.

DIREITO ROMANO 641

Por outro lado, Volterra" e D' ercole," salientando que a teoria dominante é certa (ressal-vada, quanto a Volterra, a objeção contra o elemento objetivo) no que diz respeito ao pe-ríodo clássico, defendem a tese de que, nos direitos pós-clássico e justinianeu, por .influência do cristianismo, a estrutura jurídica do casamento se modificou profundamen-te - o matrimônio, como ocorre no direito moderno, passa a fundar-se na vontade inicialdos nubentes, desta decorrendo o vínculo conjugal, que, ao contrário do que se verificavano direito clássico, independe da vontade contínua (affectio maritalis) dos cônjuges deserem marido e mulher; e vínculo esse que só se dissolve com a morte ou com o divórcio.

Enfim, há que se fazer referência à tese de Rasi, que, em 1946, no livro Consensusfacit nuptias, combateu vigorosamente a teoria dominante, por entender que, também nodireito romano, o casamento era um uincuIum iuris (vínculo jurídico) surgido de vontadeinicial manifestada em stipulatio (contrato verbal), sendo a construção doutrinária da af-fectio maritalis uma bela, mas absurda, utopia do mundo romanístico. Doze anos depois,em 1958, na obra La conclusione deI matrimonio nella dottrina prima del Concilio diTrento,42 Rasi, reconhecendo que errara ao afirmar que, no direito romano, ° casamentonascia de um contrato (astipuIatio), reafmna sua posição contrária à doutrina dominante,e acentua que o matrimônio romano, como a teoria mais moderna reconhece, não é, aomenos a partir do direito pós-clássico, uma relação de fato, mas, sim, um uinculum iuris(que só se dissolve com amorte, ou commanifestação de vontade contrária à inicial), ori-ginado, senão de verdadeiro contrato, do consentimento dos nubentes.

A nosso ver, a diferença que existe entre o casamento moderno e o romano é esta:- no direito moderno, em geral, o casamento surge de ato consensual rigidamente

solene, celebrado diante de autoridade competente; e só se dissolve, por via de regra, pelamorte, ou - nos países que o admitem - pelo divórcio (e, neste caso, desde que se verifi-que um dos motivos previstos em lei): em vista disso, a relação matrimonial, uma vezsurgida, não pode dissolver-se, sem mais, pela simples vontade de um dos cônjuges (daífalar-se, apropriadamente, em vínculo conjugal);

- no direito romano, não: para que surgisse o casamento, bastava a vontade inicial(consensus) dos nubentes, sem quaisquer formalidades (apenas a partir do direito pós-clássico é que, em algumas hipóteses - vide o n" 291-, se exige certo formalismo), e omatrimônio perdurava até que um dos cônjuges desejasse rompê-lo, pois, como veremos

40 La conception du mariage d'aprês les juristes romains, p. 58 e segs., Padova, 1940 X. Vide também,entre outros trabalhos de Volterra, La conception du mariage à Rome, in Revue Intemationale desDroits de l'Antiquité, 3" série, tomo Il (1955), pp. 365 a 379; Una misteriosa Legge attributa a Valen-tiniano I, in Studi in Onore di Vincenzo Arangio-Ruiz nel XLV anno dei suo insegnamento, voI. m, p.139 e segs., Milano, s/data; Lezioni di Diritto Romano - Il matrimonio Romano (Anno Academico1960-1961), pp. 121 a 156 e 285 a 340, Roma, s/data; e Matrimonio (dir. rom.), in Enciclopedia deiDiritto, XXV, p, 726 e segs., Milano,1975.

41 11consenso degli sposi e Iaperpetuitá del matrimonio nel diritto romano e nel Padri della Chiesa, inStudia et Documenta Historiae et Iuris, V (1939), p. 18 e segs,

42 P. 7 e segs.

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adiante (no n° 295), em Roma, sempre se admitiu o divórcio por vontade unilateral (mes-mo no direito justinianeu, se um dos cônjuges repudiasse o outro sem motivo, ele poderiasofrer sanções, mas o casamento se dissolvia), a qualquer tempo, sem formalismo, e in-dependentemente da existência de motivos fixados, previamente, em lei; daí a expressãoaffectio maritalis para significar não que fosse necessário que os cônjuges tivessem a in-tenção contínua (e, portanto, idêntica à vontade inicial) de serem marido e mulher, masque o casamento perdurava enquanto eles (ou um deles) não praticassem ato contrário aoque dera início ao casamento: o divórcio.43

43 Em favor dessa tese (já sustentada neste livro desde sua primeira edição, em 1966, e que procuramosdemonstrar, pormenorizadamente, no artigo A natureza jurídica do casamento romano no direitoclássico, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 90, n'" 3 a 47, São Pa-ulo, 1995) - que afasta os elementos objetivo (convivência, vida em comum) e subjetivo (affectio ma-ritalis - vontade contínua) e que só considera como requisito para a existência do casamento oconsentimento inicial dos nubentes que tenham entre si conubium -, podemos arrolar, entre outras(pois o caráter desta obra não permite maiores digressões a respeito), as seguintes circunstâncias: a)também com relação ao contrato de sociedade (que não se pode pretender fosse uma relação de fatodependente de vontade contínua dos sócios), os textos usam de expressões como affectio societatis, siin eadem voluntate perseuerat (se persevera na mesma vontade), manet autem societas eo usque do-nec in eodem consensu perseuerant (persiste a sociedade enquanto os sócios perseveram no mesmoconsentimento), tandiu societas durat, quamdiu consensus partium integer perseuerat (a sociedadepersiste por tanto tempo quanto persevera íntegro o consentimento das partes) - e isso porque, comoocorria com o casamento, o contrato de sociedade podia extinguir-se, a qualquer tempo, pela vontadeunilateral dos sócios (vide o n" 244, infine), e, conseqüentemente, só perdurava enquanto todos o de-sejassem: b) o louco, no direito romano, não podia casar-se por estar impossibilitado de manifestar oconsentimento inicial, mas - salientam os textos (assim, por exemplo, Paulo, Sententiarum ad filiumlibri, lI, 19,7; eD. I, 6, 8 pr.) -, se a loucura surgir depois de contraído o matrimõnio, este, apesar dela,perdura, o que demonstra inequivocamente que o pretenso consentimento continuo (affectio marita-lis) não era requisito para a existência do casamento, pois requisito (ou elemento essencial) é aquelesem o qual não há o ato, e, em conseqüência, não admite exceções; c) há textos (D. XXIV, 2,7; eXXIV, 3, 2) que declaram, taxativamente, que, embora um dos cônjuges tenha enviado o libellus diu-ortii ao outro, se houver arrependimento dentro de breve espaço de tempo, o casamento - apesar deausência da affectio maritalis, ao menos no momento em que um deles remeteu o libellus diuortii=persiste; princípio esse que é incompatível coma tese de affectio maritalis. Note-se, aliás, que Perozzí(Istituzioni di Diritto Romano, I, 2" ed. - reintegrazione, 1949 -, § 39, p. 324 e segs.), depois de afir-mar que o casamento romano é um status, salienta que não há requisitos para sua conservação, masapenas para seu nascimento e para sua dissolução; e mais: que o casamento persiste ainda que haja au-sência de vontade (como na hipótese do louco), só se dissolvendo (além, obviamente, da circunstânciada morte) se há urna vontade contrária a que ele perdure. Em 1970, Robleda (EI Matrimonio en Dere-cho Romano, p. 130 e segs., Roma, 1970) apresentou uma série de observações que o levaram a duvi-dar da tese de que, no direito romano clássico, o consentimento continuo fosse elemento essencial docasamento. Di Salvio iMatrimonio e Diritto Romano, in Index, vol, 2 - 1971 -, pp. 376 a 386) criticouessas observações, sustentando a tese do consentimento continuado. Rob1eda, no mesmo ano (Sobreel Matrimonio en Derecho Romano, in Studia.et Documenta Historiae et Iuris, XXXVII - 1971 -, p.337 e segs.),replicou, salientando que o próprio critico havia terminado por adrnitirque há dificulda-des para a aceitação da tese que "defendia. Volterra (Precisazioni in Tema di Matrimonio Clássico,

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286. O casamento e a conuentio in manum - Afirma-se, tradicionalmente, que, nodireito romano, havia duas espécies de casamento: o casamento cum manu e o casamentosine manu. O primeiro seria aquele em que o homem (ou, se alieni iuris, seu pater fami-lias) adquire a manus (poder marital) sobre a mulher, que, assim, se desvincula da famí-lia de origem e ingressa, com seus bens, na de seu marido, como se fosse filha dele (locofiliae): dessa forma, se a mulher, antes de casar, for alieni iuris (por estar subordinada àpotes tas de seu paterfamilias originário), continua a se-Io na família do marido, depoisdo casamento cum manu; se sui iuris, toma-se, ao casar, alieni iuris. Já na segunda espé-cie - o casamento sine manu -, o marido não adquire a manus sobre a mulher, que, emvirtude disso, conserva, além de seus bens, o status familiae anterior ao casamento.

Segundo tudo indica," porém, não havia no direito romano, propriamente, duas es-pécies de casamento. O conceito de casamento era um só. O que ocorria era a possibilida-de de ele ser acompanhadodê um ato soTene=-a~o~~ in manum (vide n° 279) -, pelo

in Bulletino dell'Istituto di Diritto Romano "Vittorio Scialoja", voI. LXXXVIII (J 975), p. 245 e segs.)também atacou as observações de Robleda. Em 1977, Josef Huber (Der Ehekonsens in RõmischenRechts, Roma, 1977) seguiu a orientação de Robleda. Volterra, em 1980 (Ancora Sulla Struttura deiMatrimonio Classico, in De Justitia et Iure Festgabeftir Urich von Lübtow, pp. 142 a 153, Berlin,s/data), voltou à carga, trazendo mais um texto (C. V. 17, 6) para sustentar sua posição, texto esse quetem sido interpretado diferentemente, por não o terem os intérpretes examinado sob a ótica da tese doconsentimento continuado. Mais recentemente, em 1986, Pugliese (Lstituzioni di Diritto Romano, II,n° 111, p. 429), embora seguindo a posição de Volterra, acentua que o tratamento dado aomatrimôniodo furiosus demonstra "o caráter não rigoroso da orientação j urisprudencial que exigia a vontade ma-trimonial continua". Nesse mesmo sentido, em 1989, se manifesta TaJamanca (Istituzioni di DirittoRomano, I,n° 40, p. 140).

44 A propósito, vide Volterra, Ancora sulla manus e sul matrimonio, in Studi in onore di Siro Solazzi,p. 675 e segs., Napoli, 1948; Nuove Osservazioni sulla "conuentio in manum", in Atti dei CongressoIntemazionale di Diritto Romano e di Storia, dei Diritto, Verona, 1948, Ill, p. 29 e segs., Milano,1951; La Conuentio inManum e il Matrimonio Romano, inRivista Italiana per le Scienze Giuridiche,série III - anno XXII (1968), vol, :xn (único), dell 'intera collez, vol, XCV, pp. 205 a 226; Garcia Gar-rido, "Conuentio in Manum" y matrimonio, inAnuario de Historia deZDerecho Espaiiol, tomo XXVI(1956), pp. 781 a 787; e Pugliese,Istituzioni di Diritto Romano, I, nG37,pp. 106 a 109. Bozza (cf. Voí-terra, La Conventio inManum e il Matrimonio Romano, in Rivista Italiana per le Scienze Giuridiche,série III - anno XXII (1968), p. 205), no entanto, só admite essa tese no último período da República ena época do direito clássico; Cantarella (Sui Rapporti fra Matrimonio e "Conueniio inManum", in Ri-vista Italiana per le Scienze Giuridiche, série IlI, anni XII-XVI (1959/1962), vol, X (único), pp. 181 a228), só exclui dela a confarreatio, que teria sido um casamento religioso, o único no direito arcaico; eTomulescu (Les Rapports entre le Mariage et Ia Manus, in Revue Internationale des Droits deI 'Antiquité, 3" série, tomo XVlII (1971), pp. 723 a 733, sustenta que, até o século II a.C, os modos deaquisição da manus foram ao mesmo tempo modos de formação do casamento, mas, a partir desse sé~"culo, surgiu o casamento sine manu, o que implica dizer que o casamento existe sem «manas, que

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qual o marido (ou seupater familias) adquiria a manus sobre a mulher.45 Quando isso severificava, dava-se o que, tradicionalmente, se denomina casamento cum manu; em casocontrário - isto é, quando o matrimônio não era seguido da conuentio tn manum -, ti-nha-se o que tradicionalmente se chama casamento sine manu.

Assim sendo, casamento e conuentio in manum são institutos independentes, e comfinalidades distintas: o casamento visa a criar a sociedade conjugal; a conuentio in ma-num - que talvez pudesse ocorrer ainda que não houvesse casamento 46 - tem por fim o in-gresso da mulher em família diversa da sua de origem.

A conuentio in manum - e as conseqüências que ela acarretava - já foi estudada noCapítulo XLVilI (vide os n" 278 e 279). Agora, ocupar-nos-emos apenas do casamento,independentemente da conuentio in manum.

287. Espensaís" - Os esponsais (sponsalia) são a convenção pela qual duas pes-soas de sexo diverso (ou seuspatres familias, por elas) se comprometem a contrair, no fu-turo, casamento."

Os esponsais, no decurso da evolução do direito romano, sofreram acentuada trans-formaçâo.no direito clássico, sua importância é quase exclusivamente social; nos perío-dos pós-clássico e justinianeu, aumentam seus efeitos jurídicos, sendo os sponsi(prometidos), sob certos aspectos, equiparados aos cônjuges.l"

passa a ser elemento externo que se ajuntava, ou não, a ele. Mais recentemente, Gian Luigi Falchi(Osservazioni sul/a natura della "Coempüo matrimonii causa" nel Dirttto Preclassico, in Studia etDocumenta Historiae et Iuris, vol. L, 1984, pp. 355 a 382) entende que, antes da Lei das XII Tábuas, aconuentio in manum era efeito necessário de todo casamento, e se produzia com o decurso de um anode vida conjugal, ou imediatamente se o casamento tivesse sido contraído pela confarreatio ou pelacoemptio; depois, até o 1° século antes de Cristo, as núpcias produziam a conuentio in manum, mas aspartes podiam excluir esse efeito com a usurpa tio trinoctii; posteriormente, a manus cai em desuso e ousus é ab-rogado, sendo que a confarreatio sobrevive como rito nupcial relevante para efeitos sacros,e a coemptio se torna negócio solene com uso diversificado.

45 Discute-se se no direito romano arcaico a conuentio in manum acompanhava, ou não, sempre o casa-mento. A maioria dos autores (assim entre outros, Bonfante, Corso di Diritto Romano, I - Diritto diFamiglia, ristampada Ia ed., p. 57 e segs., Mi1ano, 1963; e, mais recentemente, Pugliese,lstituzioni diDiritto Romano, I,nO37, pp. 106 a 109, e Talamanca, Istituzioni di Diritto Romano, I,pp. 132 e 133)se manifesta em sentido afirmativo.

46 Cf. Gaio,Institutas, li, 139, segundo a interpretação dada por Volterra, Nuove Osservassioni sullaconventio in 1IUDUI1fI, in ob. cit., voI. m, pp. 31/34.

47 Sobre esponsais, vüle Gandemet, L 'originalité des fiançailes romaines, in IVRA, VI (1955), p. 47 esegs.; e Corbett, TheRomanLawofMarriage, p. 1 e segs., Oxford, 1930.

48 No periodo histórico, os esponsais se celebravam, por via de regra, entre opater familias da mulher e ofuturo genro (ou, se este fosse alieni iuris, seu pater familias).

49 Sobre os efeitos dos esponsais· no direito clássico, vide Volterra, Ricerche interno a lisponsali in di-ritto romano; in B,ulJdino dell 'Istituto di Diritto Romano, voI. XL, p. 87 e se ~ ,

DIREITO ROMANO 645

Primitivamente," nas cidades do Lácio (Latium), os esponsais eram celebrados pormeio da sponsio (negócio jurídico verbal e solene, donde as denominações sponsalia -esponsais; sponsa - a mulher prometida; e sponsus - o homem prometido), e tinham efi-cácia jurídica plena, tanto assim que, se uma das partes não cumprisse o convencionado(em geral, o pater familias do sponsus ou da sponsa que rompia os esponsais), a outradispunha de ação judicial (a actio ex sponsu) contra aquela, para obter indenização. Essesistema perdurou no Lácio até o ano de 90 a.C; quando se estendeu a cidadania romanaàs últimas cidades dessa região que ainda não a tinham.51

Também em Roma, em épocas remotas, é muito provávelt' que os esponsais fos-sem regidos pelos mesmos princípios observados nas demais cidades do Lácio. No en-tanto, desde muito cedo ocorreu, nela, a decadência desse instituto, pois, no períodohistórico do direito romano, os esponsais não obrigam o sponsus ou a sponsa a casar; aocontrário, qualquer um deles pode livremente rompê-los, sem que haja, contra si ou con-tra seu pater famílias, sanção alguma. Vigora o princípio de que os casamentos devemser livres. 53 Assim, se se apusesse uma stipulatio poenae (cláusula penal) aos esponsais,para que a parte que os rompesse ficasse obrigada ao pagamento da pena, essa cláusula,na prática, não tinha eficácia, pois o direito de se cobrar judicialmente a pena podia serparalisado por uma exceptio doli.54

No direito pós-clássico, no entanto, observa-se urna tendência" que traduz comoque um retomo ao regime dos tempos primitivos em que o sponsus ou a sponsa (ou opa-terfamilias de um ou de outro, conforme ocaso) que rompesse os esponsais sofria sançãode ordem patrimonial. Com efeito, embora no direito pós-clássico a stipulatio poenaeaposta aos esponsais continue a ser ineficaz, acolhe-se, no direito romano, o costume ori-ental das arras esponsalícias (soma em dinheiro que, por ocasião da conclusão dos espon-sais, um dos sponsí entrega ao outro ),56 e, se o sponsus e a sponsa trocam arrasesponsalícias entre si, aquele que, sem justa causa, romper os esponsais perde as arrasque deu, e está obrigado, a princípio, a restituir as que recebeu em quádruplo, e, mais tar-de - provavelmente por modificação introduzida por Justiniano -, em dobro. A mesmatendência se observa, também, em duas constituições'" de Constantino, de, respectiva-

50 E o sabemos graças à informação do jurisconsulto clássico Sérvio Sulpício Rufo conservada por AuloGélio, Noctes Atticae, IV, 4.

51 Cf. Bonfante, Corso di Diritto Romano, I (Diritto de Pamiglia), reimpressão p. 308, Milano, 1963.52 Como se infere de Varrão, De lingua latina, VI, 70 e 71, e (nesse sentido, vide VoIterra, Istüuzioni di

Diritto Privato Romano, p. 663) da forma spondes'l spondeo a que alude o texto de Sérvio SulpícioRufo (citado na nota n° 50), a qual só podia ser utilizada por cidadão romano (vide n° 235).

53 Cf. C. vm, 38 (39), 2.54 D.XLV, 1, 134,pr,55 Possivelmente por influência do Cristianismo.56 Sobre as arras esponsalícias, vide Riccobono, Arra Sponsalicia secondo Ia consto 5 Cod. de sponsali-

bus V-I,separata.57 C. V, 3, 15; e C.V, 3, 16.

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646 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES DIREITO ROMANO 647

mente, 319 e 336 d.e., relativas à sponsalicia largitas (liberalidade esponsalícia), e pelasquais todas as doações entre sponsus e sponsa eram feitas sob a condição tácita de haverrestituição no caso de não ser celebrado o casamento. E aquele dos sponsi que se recuse acasar não pode pedir a restituição do que doou, embora esteja obrigado a devolver o querecebeu. Demais, se os esponsais tivessem sido celebrados interueniente osculo (ocor-rendo beijo ),58 um dos noivos, por morte do outro, só estava obrigado a restituir a metadedo que este lhe doara.

Por outro lado. para que se realizem os esponsais, basta o simples acordo de vonta-de das partes, sem a observância de formalidades. Se é opater familias quem os celebraem favor do filius familias, é preciso, para fazê-Io, que tenha o consentimento deste; seem favor defiliafamilias, não é necessário o assentimento expresso dela, mas apenas suaconcordância tácita.

Para os esponsais, levam-se em conta, geralmente, os mesmos requisitos e impedi-mentos do matrimônio, exceção feita a alguns impedimentos temporários (como, porexemplo, a hipótese de uma menina menor de 12 anos que, por isso, não pode casar, masque pode contrair esponsais desde que já tenha atingido idade que lhe permita compreen-der o ato, a qual, no mínimo, segundo textos provavelmente interpolados, é de sete anos),que não impossibilitam a celebração do esponsais.

Quanto aos efeitos, os esponsais, embora não obriguem as partes a contrair casa-mento, produzem, entre outros, os seguintes:

a) geram uma quasi adfinitas entre cada um dos sponsi e os parentes do outro (de-correndo, daí, impedimentos para casamento, bem como isenção do dever de prestar de-poimento, emjuízo, contra o sponsus ou os futuros sogro e sogra);

b) a conclusão de outros esponsais ou de casamento antes do rompimento dos es-ponsais anteriores acarreta, para o sponsus ou a sponsa que assim procedeu, a infâmia(bem como para opater familias dele, se este agiu a seu mando), sanção essa que, possi-velmente, só surgiu no direito pós-clássico; e

c) no direito pós-clássico, a infidelidade da sponsa é punida com as penas do adultério.Enfim, rompem-se os esponsais nas seguintes hipóteses:a) com a morte de um dos sponsi;b) com a superveniência de impedimento para o matrimônio;c) com a concordância do sponsus e da sponsa; ed) com a simples declaração de um dos sponsi (repudium), sendo importante, nesse

caso, no direito pós-clássico, em virtude dos princípios sobre as arras esponsalícias e asponsalicia largitas, a verificação da existência ou não de justa causa, a qual ocorreria,por exemplo, quando se tivesse conhecimento de impedimento lllatrimonial até então ig-norado, ou quando a sponsa tivesse má conduta, ou quando houvesse diferença de reli-gião entre o sponsus e a sponsa.

288. Requisitos do casamento - Para que o casamento, em Roma, fosse legítimo-matrimonium iustum ou legitimum/' -, era necessária a observância de certos requisitos aque alude Ulpiano:

Iustum matrimonium est, si inter eos qui nuptias contrahunt conubium sit, et tammasculus pubes quam femina potens sit. et utrique consentiant, si sui iuris sunt, aut etiamparentes eorum, si in potestate sunt (O casamento é legítimo se entre os que o contraemexiste conubium, e se o homem é púbere e a mulher é núbil, e se um e outro, se são sui iu-ris, consentem, ou, se alieni iuris, também seus paisj."

Eram, portanto, três esses requisitos: consentimento, puberdade e conubium. Os pri-meiros, absolutos, pois a sua ausência impedia o casamento com qualquer pessoa; o último,também, se tomado em sentido lato (conubium est uxoris iure ducendae facultas - o conu-bium é a faculdade de casar-se legitimamente com uma mulher)." Em sentido estrito, conu-bium é requisito relativo, porquanto abrange impedimentos que ocorrem ~enas entre certosindivíduos (conubium habere cum aliquo - ter connubium com alguém).

Estudemo-los separadamente.

A) ConsentimentoNo direito romano primitivo, segundo a opinião dominante.r'exigia-se apenas o con-

sentimento de pessoas sui iuris; por isso, se os nubentes fossem alieni iurts, 64 somente seus

59 Ambas as expressões - ao contrário do que pretendem alguns romanistas - são clássicas, como o de-monstra, com abundância de exemplos, Di Marzo, Istituzioni di Diritto Romano, 5a ed., p. 161, nota 2.Vide, também, Lanfranchi, Le definizioni e il concetto deZ matrimonio nei retori romani, in Studia etDocumenta Historiae et Juris, ano TI(1936), p. 156.

60 Ulpiano, Liber singularis regularum, V. 2.61 Ulpiano, Liber singularis regularum, V. 3. Volterra (La Nozione Giuridica dei Conubium, in Studi, in

Memoria di Emilio Albertario, Il, pp. 347 a 384, Milano, 1953; Lezioni di Diritto Romano - li Matri-monio Romano, pp. 157 a 182, e 341 e 342, Anno Accademico 1960·1961, Roma, s/data; e Matrimo-nio (Dir. Rom), inEnciclopedia dei diritto, XXV, pp. 733 a 735, Milano, 1975), fiel à sua tese sobre anatureza jurídica do casamento romano no direito clássico, sustenta que, nessa época, conubium é umrequisito positivo (o de o homem e a mulher, um em relação ao outro, terem capacidade, reconhecidapelo ordenamento jurídico romano, de constituir entre si uma relação conjugal legítima), não se co-nhecendo, então, os impedimentos matrimoniais como os que há no direito moderno. Só no direitopós-clássico e no direito justinianeu é que, com a mudança da concepção da natureza jurídica do casa-mento, se deixa de aludir ao conubium, porque se passa a admitir socialmente que há capacidade geralpara casar, que apenas é afastada se ocorrer um impedimento legal. Talamanca (Istttuzioni di DirittoRomano, I, n° 39, p. 138, Milano, 1989), aludindo aos requisitos de validade do casamento, observaque os romanos não sistematizaram o que denominamos como tais, mas os reuniram na categoria doconubium (capacidade de contrair matrimônio in concreto com outra pessoa), embora essa construçãonão tenha sido usada de modo generalizado, "e não pareça ter deixado traço sobre a concreta disciplinados vários impedimentos matrimoniais".

62 A distinção entre conubium em sentido lato e em sentido estrito é feita, entre outros, por Girard (Ma-nuel Élémentaire de Droit Romain, 8" ed., pp. 171 e 172) e Nardi (La Recíproca Posizione Successo-ria de Coniugi privi di Conubium, p. 10, Milano, 1938).

63 Assim, entre outros, Bonfante, Corso di Diritio Romano, I (Diritto de Famiglia), reimpressão, p. 269,Milano, 1963; Girard, Manuel Élémentaire de Droit Romain; 8" 00., p. 168; e C. Longo, Corso di Di-ritto Romano (Diritto de Famiglia), p. 161, Milano, 1946.

64 Ferrini, Manuale di Pandette, 4" ed., n° 713, p. 686, Milano, 1953, cita, a propósito, passagens de Plauto.58 Alusão a ritos em uso na Igreja do Ocidente e do Oriente. Vide, a propósito, Volterra, Istituzioni di Di-

ritto Privato Romano, p. 665 e segs.

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648 rosa CARLOS MOREIRA ALVES

patresfamilias consentiam no ma~môn.io, po~en.do, em ~onseqüência, constrangê-l~s a seconsorciarem. Já nos períodos clássico e PÓS-clasSICO,cabia sempre aos nubentes marufestaro consentímento.f só se fazendo mister o do pater familí~ ~e um deles - ou ar,n~o~ - fos~ealieni iuri.66 Mas o valor dessas d~lara~ões de von~~ e.diverso: o daquel~s .e mdI,spensa-vel; o deste pode, às vezes ser suprido," A mulher S~lluns, entretan~o, se SUJ~ItaV~a aucto-ritas tutoris (vide n° 300),68e, mesmo depois de abolida a tutela mulzerul1'!(vide ~ 300), eladevia, até completar 25 anos, pedir consentimento, para casar, a seu paI - se VIVO,e, porexemplo, a tivesse emancipado -, ou a sua mãe, ou a outros parentes.

B) Puberdade

A puberdade em ambos os sexos se verificava, no direito pré-clássic~: por meio deexame individual. Todavia, para a mulher fixou-se, desde cedo, ~ ~ubl~;dade aos 12anos." E, embora já proposta pelos procu1eianos, somente COJ~i Justiniano se estabele-ceu a idade de 14 anos para o início da puberdade no homem.

65 Entende Solazzi (La nozze della minorenne e Il divorzio della "filia familias ", in, respectivamente,Scritti di Diritto Romano, II, p. 154 e segs., Napoli, 1957, em, p. Ie segs., Napoli, 1960) que, mesmono direito clássico, para o casamento dafiliafamilias, somente era necessário o consentimento de seupater familias. . .Para o casamento do neto, se o avô fosse vivo, além do seu consentimento, era necessáno o do paI, emvirtude da regra nemini muito heres suus adgnascitur, segundo a qual ninguém deve ter herdeiro con-tra sua vontade (lnst., I, 11,7).D.XXIII,2, 19 (texto interpolado, segundo Moriaud, Du consentement du pêre defamille au mariageen droit classique, in Mélanges P. F. Girard, Il, p. 291 e segs., Paris, 1912).A propósito, vide Schulin, Lehrbuch der Geschichte des Rõmischen Rechtes, § 50, p. 203; Corbett,The Roman Law ofMarriage, p. 24 e segs., Oxford, 1930; e Ferrini, Manuale di Pandette, 4' ed.,n° 713,p. 686, Milano, 1953.Marcel Durry (Le Mariage des Filles Impubéres dans Ia Rome Antique, in Revue Intemationale desDroits de l'Antiquitê, 3° série, tome II (1955), pp. 263 a 273; e Sur le Mariage Romain - Autocritiqueet Mise au Point, in Revue Intemationale des droits de l'Antiquité, 3' série, tomo Ill (1956), pp. 227 a243) sustenta que, já reconhecendo a medicina antiga que amulher somente se tomava púbere entre 13e 14 anos, ela se considerava, no direito romano, nubilis (ou seja, apta ao casamento) antes de alcança-da a puberdade. Sobre essa tese, com exame sob o ângulo estritamente jurídico, vide Garcia Garrido,Minar Annis XII Nupta, in Labeo (Rassegna di Diritto Romano), anno Ill (1957), pp. 76 a 88.Para pormenores, vicie n" 94, A. .Consoante o D_ XXIII, 3, 39, 1, o castratus (castrado), ao contrário do spado (impotente), não podiacontrair casamento; segundo a maioria dos autores, porém, essa distinção somente surgiu no direitojustinianeu, pois, no periodo clássico, os spadones - e esse termo abrangia, então, todos os casos deimpotência coeundi ou generandi (impotência para copular ou para procriar) - não estavam impedi--dos de casar (a propósito, vide Bonfante, Corso di Diritto Romano, 1-Diritto di Famiglia, reimpres-são, p. 266 e segs; Milano, 1963). Contra a tese de ter sido esse texto interpelado; vide os autorescitados por DaniloDalla, L 'incapacità Sessuale in Diritto Romano, p. 266, nota 97, Milano, 1978.

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C) Conubium

Em acepção lata, conubium compreende alguns requisitos absolutos que se referem:a) à liberdade (os escravos não podem contrair matrimonium iustum; a união entre

escravos ou entre escravo e pessoa livre se denomina contubernium, e não produz efeitojurídico, sendo simplesmente uma união natural);

b) à cidadania (só é legítimo o casamento com estrangeíro se ele tiver o ius conubii);72c) ao serviço militar (segundo vários autores, até 197 d.e., não podiam os soldados

consorciar-se enquanto em serviço);" ed) à monogamia (é certo que Júlio César e, mais tarde, Valentiniano Iquiseram ad-

mitir a poligamia no direito romano, mas tais tentativas não vingaramj.Y"Em sentido estrito, conubium abrange circunstâncias impeditivas de casamento le-

gítimo/" entre certas pessoas, e que dizem respeito a:

72 É de notar-se - como acentua Mommsen, Rõmisches Strafrecht, p. 693, nota I, Leipzig, 1899 _ que ocasamento contraído segundo um direito estrangeiro (o ateniense, por exemplo), embora não seja ca-samento legítimo para o direito romano, o é para aquele sistema jurídico (no caso, o ateniense). Daínão se dever, para essas hipóteses, empregar, como o fazem vários romanistas, a expressão matrimo-nium iuris gentium (casamento segundo o ius gentium).Trata-se de matéria muito controvertida, havendo autores que negam a existência desse impedimentono direito romano - assim, Mispoulet, Études d'Institutions Romaines, p. 229 e segs., Paris, 1887;Emilio Costa, Storia dei Diritto Romano Priva/o, 2' ed., p. 47, Torino, 1925; e Stella Maranca, Il Ma-trimonio dei Soldatti Romani, Roma, 1903.A propósito, vide Volterra, Una misteriosa /egge aitribuita a Valentiniano I, in Studi in onore di Vin-cenzo Arangio-Ruiz, Ill,p. 139 e segs., Napoli, s/data. Gualandi (Intomo ad una /egge atribuita a Va-lentin!ano I, in Studi in onore di Pietro de Francisci, vol. m, p. 175 e segs., Milano, 1956),exa:nmando amplame~te os textos que aludem à lei de Valentiniano I, que autorizava a bigamia, con-clui que todos eles denvam de uma passagem da História Eclesiástica de Sócrates, o Escolástico, e quea lei por ela noticiada não existiu. Manfredini (Valentiniano I e Ia Bigamia, in Studi in Onore di Cesa-re Sanfilippo, vol. VII, pp. 363 a 386, Milano, 1987) porém, sustenta que essa lei misteriosa permitiriao repúdio por causa da esterilidade do cônjuge, o que teria possibilitado a Valentiniano contrair segun-das núpcias (bigamia sucessiva e não simultânea). Assim, não dizia ela respeito à possibilidade dedois casamentos coexistentes.Deixamos de incluir entre esses requisitos o tempus lugendi (período em que a viúva não podia contra-ir ~ovas núpcias - era, a princípio, o compreendido nos lO meses após a dissolução do casamento;~s tard~, ~o século IV d.C., passou a ser ~e 12 meses; essa proibição, de início, era fundada em prín-CIplOSreligiosos, mas, postenonnente, vero a ter por base razões biológicas: impedir a turbatio SQn-fUinis, isto é, que se ficasse sem saber quem teria sido o pai da criança que, porventura, amulher dessea luz nesse espaço de tempo), tendo em vista que, ainda quando a viúva desrespeitasse essa proibição ese casasse de novo antes de decorrido o tempus lugente, esse casamento seria válido. A propósito, videRobleda, Matrimonio inexistente o nulo emDerecho Romano, in Studi in Memoria di Guido Donatuti,m, p. 1.131, Milano, 1973.

No direito modemo - e tal nomenclatura vem do direito canônico - esses fatos impeditivos se denomi-nam impedimentos matrimoniais. Os juristas romanos, porém, ainda para indicar que entre duas pes-soas havia circunstâncias que impediam fosse contraído o casamento, salientavam que entre elas nãoexistia conubium (assim, por exemplo, Comrelação a parentesco, vide Gaio,Institutas, I, 59; e Ulpia-no, Liber singularis regularum, V, 6).

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I - parentesco;II- afinidade;III- condição social; eIV - motivos de ordem prática ou política.Analisemo-los, de per se.

Parentesco

o parentesco, tanto agnatício quanto cognatício, em linha reta ou colateral, impedeo casamento. Em linha reta, não podem consorciar-se os parentes até o infinito. Na cola-teral, segundo o direito pré-clássico, até o sexto grau. No entanto, mesmo antes dos finsda república, os primos coirmãos podiam casar. No império, só se impedia o matrimôniode parentes colaterais, se um deles estivesse afastado um grau apenas do antepassado co-mum. Essa regra sofreu duas derrogações: permitiu-se o casamento entre tio paterno esobrinha, visando-se ao imperador Cláudio e Agripina; e, por influência do cristianismo,proibiu-se o dos primos germanos. A primeira dessas exceções desapareceu em 342 d.C.;a segunda, com Justiniano.

11- Afinidade

A afrnidade não foi impedimento durante a república. No império, estavam proibi-dos de casar os afrns na linha reta. No período pós-clássico, impediu-se o casamento decunhados.

Hl - Condição social

Até a Lei Canuléia (445 a.Ci) - que acabou com tal impedimento -, proibia-se omatrimônio entre patrício e plebeu.

Por outro lado, como salientamos no n° 86, A, discute-se se os libertos, desde ostempos primitivos, não podiam casar com ingênua, tendo Augusto abolido esse impedi-mento, embora o mantivesse com relação ao matrimônio entre libertos e pessoas perten-centes à ordem senatorial (senadores e seus descendentes agnatícios até o terceiro grau);ou se aquela incapacidade não existia até o tempo de Augusto, que a criou com referênciaapenas ao casamento entre libertos e pessoas da classe senatorial.

Demais, a legislação de Augusto estabeleceu impedimento matrimonial entre ingê-nuos (e, por conseqüência, senadores e seus descendentes agnatícios, até terceiro grau) eprostitutas, adúlteras, alcoviteiras e libertas que tivessem sido manumitidas por pessoaque exercesse a alcovitice.

É certo que se discute se o casamento contraído apesar da existência desses impedi-mentos era nulo, ou se apenas ineficaz para impedir as penas estabelecidas para o celiba-to (vide n° 335).

Tais condições, atenuadas sensivelmente por Justíno e Justiniano, foram, afinal,abolidas por este.

IV - Motivos de ordem prática ou políticaDisposições legais, no império, criaram alguns impedimentos ao matrimônio

legítimo:

DIREITO ROMANO 651

a) segundo a Lei Julia de adulteriis, a mulher condenada por adultério não pode, nodireito clássico, contrair outro casamento; no direito justinianeu, não pode casar apenascom seu cúmplice;

b) conforme senatusconsulto do tempo de Marco Aurélio, o tutor, seus descenden-tes ou ascendentes, com a pupila antes da prestação de contas, e de ela atingir 25 anos; re-gra que, no direito pós-clássico, se aplicou ao curador; 77

c) de acordo com mandatos imperiais, o funcionário romano com mulher nascidaou domiciliada em sua província; 78

d) a partir de uma constituição de Constantino," não podiam consorciar-se raptor eraptada, tivesse ela consentido, ou não, no rapto;"

e) por motivos políticos, Valentiniano e Valente proibiram o matrimônio de provin-cianos com mulher bárbara, e de gentilis com provinciana, impedimento, porém, que nãofoi acolhido por Justiniano;

J) em virtude de constituições de imperadores cristãos, não era permitido o consór-cio entre cristão e judeu; e

g) a partir dos imperadores cristãos, eram impedimentos de casamento o voto decastidade e as ordens superiores, não sendo, também, permitido, no direito justinianeu, omatrimônio de padrinho com afilhado.

***

Era possível, em certas hipóteses, obter-se a dispensa do impedimento.Isso ocorria raramente durante a república, e sempre por meio de deliberação do

povo ou do Senado. O mais antigo exemplo que se conhece emana do senatusconsultoque autorizou a liberta Ispala Fecênia a consorciar-se com um ingênuo."

No império, as dispensas se tomam mais freqüentes, cabendo ao imperador fazertais concessões.f Uma constituição do imperador Zenão, inserida no Código (V, 8,2),proíbe a autorização de casamento entre irmãos, declarando nula, nesse caso, a dispensaconseguida sub-repticiamente.

77 Exceto, como observa Cuq (Manuel des Institutions Juridique des Romains, 2" 00., p. 163), se o paidesse sua filha como noiva ao tutor ou curador, ou a destinasse a.um deles, por testamento.A propósito, vide Aldo Dell'Oro (fl Divietodel Matrimonio fra funzionario romano e donna deltaProvincia, in Studi in Onore di Biondo Biondi, U, pp. 525 a 540, Milano, 1965; e Volterra (Sull' Unio-ne Coniugale dei Funzionario delta Provincia, in Festschrift for Erwin Seidl, pp. 169 a 178, Kõln,s/data).C. Th. IX, 24, l.Essa proibição foi confinnadapor Justiniano na Nov, CXLIll.Cf. Maynz, CoursdeDroit Romain,m,s- 00., § 305, p. 12, Bruxelles-París, 1891.Vide, por exemplo, D. XXIII, 2, 31;e.C.V, 6,7.

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652 JOSÉ CARLOS MORElRA ALVES

289. Nulidade do casamento - Se o casamento for contraído sem que se preen-cham os requisitos para a sua validade, é ele nulo.83

Em Roma, o casamento nulo não produz, em regra, nenhum efeito."Não conheceram os romanos a distinção - existente em nosso direito - entre casa-

mento nulo e anulável. Quando inválido o casamento, era radicalmente nulo, como, aliás,demonstram as próprias expressões latinas usadas nos textos: non est matrimo-nium,85nuptiae consistere non possunr" e contrahi non potest"

A nulidade podia ser invocada a todo o tempo e por qualquer interessado.i"

83 Cf. Gaio,Institutas, I, 64; Ulpiano, Liber Singularis Regularum, V, 7; e Inst., I, 10, 12. Sobre a questãoda nulidade do casamento no direito romano, há muita controvérsia. Gaudemet eWatson (cf. Volterra,Iniustum Matrimonium, in Studi in Onore di Gaetano Scherillo, TI, p. 441, Milano, s/data) consideramque a expressão, encontrada nos textos, iniustum matrimonium não significa matrimônio inválido emoposição à expressão iustum matrimonium (que seria o casamento válido), mas designa apenas o casa-mento irregnlar, que, por isso mesmo, sofre sanções, como a de o filho dele nascido não ficar sujeito àpotestas do pai. Já Volterra(ob. cit., pp; 441 a 470),"em consonância com sua tese sobre anaturezaju-rídica do casamento romano, sustenta que, no direito clássico (quando o matrimônio era mero fato ju-rídico, e este ou existe ou não existe, não admitindo que se lhe ponha a questão da validade, que éposterior à da existência e que só se pode colocar em face de ato jurídico), o iustum matrimonium era ocasamento existente, ao passo que o iniustum matrimonium era o casamento inexistente; a distinçãoentre o casamento válido e o casamento inválido só veio a surgir quando se alterou, no direito romano,a natureza jurídica do matrimônio, que passou a decorrer de um ato jurídico inicial. Robleda (Matri-monio Inexistente o nulo en Derecho Romano. in Studi in Memoria di Guido Donatuti, Ill,pp. 1.131 al.155, Milano, 1973) éde opinião de que, embora o casamento no direito romano sempre tenha resul-tado de um ato jurídico inicial, podia ser ele inexistente (nos casos de demência, simulação e coação,todos por ausência de vontade) ou nulo (nas hipóteses de falta de observância das formalidades parasua celebração, quando excepcionalmente exigidas; de ausência de conubium; e de celebração contramandata). A nosso ver, iustum matrimonum era o casamento válido, ao passo que o iniustum matrimo-nium era o casamento nulo por falta de observância dos requisitos exigidos para que fosse ele iustum(vide n"288).Não produzindo o casamento nulo; emregra, nenhum efeito, não há razão para constru-ir-se, com base nos textos romanos, a distinção teórica entre casamento inexistente e casamento nulo.

84 Sobre se os romanos conheceram o casamento putativo (aquele, que embora nulo, é contraído deboa-fé, e, por isso, produz efeitos jurídicos), há entre os romanistas três correntes de opinião: a) os ro-manos não conheceram omatrimonium putatiuum; b) o germe dessa teoria já se encontra no direito ro-mano, embora não tenha sido, em momento algum, formulada; e c) a existência do casamento putativono direito romano pode ser induzida dos textos que aludem a casos de reconhecimento de efeitos dematrimônios nulos, contraídos de boa-fé por umaou ambas as partes. A nosso ver, como procuramosdemonstrar em Os efeitos da boa-fé-no casamento nulo, segundo o Direito Romano, Rio de Janeiro,1959, têm razão os adeptos da segunda dascitadas correntes. "

85 D.XXIll; 2,66. .86 D.XXIll,2,53.87 Paulo, Sententiarum adfilium libri, lI, 19,6.88 Os vícios da vontade - o erro, o dolo e a coação - acarretariam, em Roma, a nulidade do matrimônio?

O con.<:entimentodevia ser sério, tanto assim que 'O casamentosimulado era nulo: simulatae nuptiaenullius lfIOIIfeIIti sunt (D; xxm, 2, 30). Asfoates, entretanto, são omissas quanto aos efeitos do erro edo dolo sobre a validade do consórcio. O que há arespeito.portaato, émera conjectura,variando, ge-

DIREITO ROMANO 653

Quando, apesar da existência do impedimento, se contraía o matrimônio, além deele ser nulo, cominavam-se, em alguns casos, penas aos nubentes.

As uniões de parentes ou afins em grau impeditivo de casamento se denominavamnuptiae incestae uel nefariae, constituindo incestos. Duas eram as espécies de incesto: oincestum iure gentium (incesto segundo o ius gentium), no caso de casamento entre pa-rentes ou afins na linha reta; e o incestum iure ciuili (incesto segundo o ius ciuile), se setratasse de matrimônio entre parentes ou afins na linha colateral. No primeiro, tanto o ho-mem quanto a mulher eram punidos; no segundo, apenas o homem era castigado." Aspenas eram pessoais (a princípio, a deportação; no tempo de Justiniano, a morte) e patri-moniais (assim, por exemplo, o dote e qualquer doação entre os nubentes, feita antes doconsórcio, eram confiscados).

Violada a interdição de casamento entre tutor e antiga pupila, e curador e curateladamenor de 25 anos, perdia o homem o direito de receber da mulher qualquer coisa em tes-tamento, não sendo, no entanto, verdadeira a recíproca." Demais, eram considerados in-fames - e talvez punidos corporalmente - o tutor, ou curador, ou filho de um deles, sefosse quem contraíra o casamento.

Se o funcionário romano casasse com mulher oriunda de sua província, ou ali domi-ciliada, seriam nulas as liberalidades testamentárias que lhe fossem feitas por ela, sendoválidas em caso inverso."

Justiniano - revogando a decisão de Valentiniano, Valente e Graciano de que, nofim de cinco anos, a união do raptor com a raptada era inatacável- puniu o rapto com apena de morte."

ralmente, conforme a concepção dos autores acerca da natureza jurídica do matrimônio. Quanto à co-ação, a matéria émuito controvertida. Vários romanistas - entre os quais se destaca Bonfante (Corsodi Diritto Romano, I-Diritto di Famiglia - reimpressão, p. 269 e segs., Milano, 1963) - entendemque o casamento contraído sob coação é nulo, sendo, todavia, irrelevante o temor reverencial, a quealudiria o D. XXIII, 2, 22. Outros juristas (assim, Sanfllippo, 11Metus nei Negozi Giuridici, pp. 65 a74, Padova, 1934) julgam que tal exceção existia no direito clássico, mas não no período justinianeu;há, ainda, os que pensam que, nesse particulàr, sucedia o inverso - o casamento cogente patre era nulono direito clássico, e válido na época pós-clássica (assim, Schulz e Lübtow, cf. Orestano, La StrutturaGiuridica dei Matrimonio Romano dOIdiritto c1assico ai diritto giustinianeo, I,p. 219, nota 576, Mi-Jano, 1951). Mas, contrários a essas teorias, existem autores de renome, como Carlo Longo (Corso diDiritto ROn,a,1O- Diritto di Famiglia, p. 162 esegs.,Milano, 1946) e Orestano (ob. cit., I, n° 73, p. 220segs.), para os quais o matrimônio, apesar da coação, era sempre válido, A nosso ver, têm razão CarloLongo e Orestano (cf. nosso trabalho Os efeitos da boa-fé no casamento nulo, segundo o Direito Ro-mano, p. 19, Rio de Janeiro, 1959). "

89 D. XLVIII, 3, 38, 2.90 D. XXIII, 2, 63.91 D. XXIII, 2, 63.92 Inst., IV, 18,8; e Nov. CXLm e CL.

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654 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES

Valentiniano lI, Teodósio I e Arcárdio infligiram as penas do adultério à união en-. - . d 93tre cnstao e JU eu.Eram atingidos pela infâmia o homem ou a mulher sui iuris que contraíssem segun-

das núpcias antes da dissolução das primeiras, ou opater famílias que consentisse no ma-trimônio de filho casado. No direito justinianeu, a bigamia acarreta a pena de morte."

Por outro lado, embora a nulidade seja. em regra, insanável, o casamento nulo pode,no direito romano, por vezes convalescer.

Assim, a uniào de uma pessoa impúbere se transforma em matrimônio legítimo nomomento em que, persistindo ainda a vida em comum, ela atinge a puberdade." Com amorte do pai, ou consentindo ele posteriormente no enlace, o mesmo sucede com o con-sórcio contraído sem o seu assentimento;" A ligação do magistrado com mulher de suaprovíncia, ou ali domiciliada, passa a matrimônio válido quando aquele deixa o cargo."O senador e a liberta, que vivem em comum, se consideram casados no instante em queele perde a dignidade senatorial; o que ocorre, também, com relação ao filho adotivo dotutor e à pupila, quando o primeiro é emancipado. Com a libertação do escravo e da es-crava, cessa o contubémio e surge o matrimônio.

É provável que o casamento nulo convalescesse, também, com a obtenção da dis-pensa do impedimento que lhe acarretara a nulidade.98

A validação não tem efeito retroativo. O matrimônio somente existe no momentoem que cessa o impedimento. Os filhos havidos até então são considerados ilegítimos."

É de ressaltar-se, enfim, que Valentiniano, Valente e GracianolOO estabeleceramque o casamento entre raptor e raptada seria inatacável depois de decorridos cinco anos.Justiniano 101revogou esse dispositivo.

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C. 1,9, 6.Paraphasis Institutionum, I, 10, 6 e 7 . Sobre a história da bigamia como crime, vide Volterra, PerlaStoria dei Reato di bigamia in Diritto Romano, in Studi in Memoria di Umberto Ratti, pp. 389 a 447,Milano, 1934. Sustentaele, ao contrário da doutrina que entende que foi Diocleciano que transformoua bigamia em crime autiínomo, que isso só ocorreu posteriormente, quando o casamento romano passaa fundar-se na vontade inicial dos cônjuges, pois, antes, o matrimônio posterior não podia coexistircom o anterior, mas o dissolvia.D.xxm,2e4.D. I, 5, 11; e D. XLvrn. 5, 13, 6.D. xxm, 2, 65, 1.Mackeldey, Manuel de Isroit Romain, trad. Beving, 3" ed., n° 547, p. 255, Bruxelles, 1846; e Maynz,Cours de Droit Romain.Bi; 5" ed., n° 323, p, 77, Bruxelles-Paris, 1891.Argumento extraído 00 D. XXIII, 2, 65, I, in fine.C. Th. IX, 24,3.Inst., IV, 18,8.

95969798

99100101

DIREITO ROMANO 655

290. A formação do casamento - Juridicamente, para que se forme o casamentoromano, basta o preenchimento dos requisitos aludidos no n" 288.

Por outro lado, ao contrário do que ocorre atualmente, no direito romano, até o pe- .riodo pós-clássico, não eram requeri das quaisquer formalidades para que o nubentes ma-nifestassem seu consentimento iniciaI.I02.103.104e 105

No direito pós-clássico, entretanto, uma constituição imperial de Teodósio II e Va-lentiniano I, de 4.28 d.c.,IO(, atesta que, nessa época, se exigiam formalidades para a cele-bração do matrimônio, pois somente nos consórcios entre pessoas da mesma categoriasocial é que bastava o simples consentimento dos nubentes, testemunhado por amigos docasal, para que se formasse o casamento. Posteriormente, em 458 d.e., o imperador Maioria-

107 d tr B dil 108 determi " 'C' -no - como o emons ou ran eone - etermmou que era necessana a rormaçaodo matrimônio a elaboração de um instrumento dotal, toda vez que o homem, a pedido damulher, lhe tivesse feito uma sponsalicia largitas (liberalidade esponsalícia). Demais,constituições de Zenão (de 477 d.C}, de Anastácio (de 517 d. C.) e de Justiniano (de 529 e530 d.e.)109 tomaram necessária a existência do instrumento dotal para a conversão deum concubinato em casamento. Justino fez igual exigência para o matrimônio com de-caída que se regenerou.l'" Já Justiniano, na Novela LXXN, capo 4, estabeleceu, para oconsórcio dos membros da classe dos ilustres ou dos de classe superior, que o consenti-mento dos nubentes deveria manifestar-se no instrumento dotal; se se tratasse de pessoasda classe dos honestiores, em tal documento ou num certificado subscrito por testemu-nhas e firmado pelo defensor ecclesiae. E na Novela CXVII, 4, ratificou os casamentosdos grandes dignitários do Estado, aí compreendidos os ilustres, contraídos sem a obser-vância daquela formalidade, se tais consórcios tivessem sido celebrados antes que os nu-bentes pertencessem à citada classe social.

102 As solenidades - como a dextrarum iunctio, a tomada de auspícios, s deductio uxoris indomum mariti-,que se realizavam quando da celebração do casamento, não eram necessárias à sua validade. Igual-mente, as prescrições da Lei Aelia Sentia a que alude Gaio (Institutas, 1,29), ou as da Lei Iunia a quese refere Ulpiano (Liber singularis regularum, lII, 3) - em ambos os casos exigem-se lestemunhaspara a obtenção da cidadania, e não para que o matrimônio seja válido.Salienta Perozzi,lnstituzioni di Diritto Romano, I, p. 324, nota, 28 ed., reintegrazione, 1949, que é fan-tástica a tese de Kniep de que tenha existido matrimônio realizado censu.Observa Orestano (Sul matrimonio presunto in Diritto Romano, in Atti deZ Congresso Intemazionaledi Diritto Romano e di Storia del Diritto - Verona 27 - 28 - 29 - IX - 1948, vol. II1, p. 50, Milano,1951) que, se fosse necessária uma forma ad substantiam para a criação da relação matrimonial, nãose explicaria a presunção de casamento que é atestada por Modestino, no D. 23, 2, 24.Sobre a irrelevância da consumação no casamento, vide Danilo Dalla, L 'incapacità Sessuale in Dirit-to Romano, p. 234 e segs., Milano, 1978.C. Th. m, 7, 3; e C. V, 4, 22.Nov. Maioriani, VI, 9.A propósito, vide Orestano, ob. cit., I, p. 468 e segs.C. V, 27, 5; C. V, 27, 6; C. V, 27, 10; e C. V, 27, 11.C. V, 4, 23, 1 a.

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Nessas hipóteses, as formalidades acima referidas eram essenciais à validade do ca-samento, e, se não observadas, o matrimônio era nulo.

291. Relações pessoais entre os cônjuges - No direito romano pré-clássico, as re-lações pessoais entre marido e mulher eram reguladas, apenas, pela moral.

A pouco e pouco, no entanto, a lei, os costumes e o pretor vão atribuindo ao casa-mento efeitos pessoais entre os cônjuges; e, graças à atividade dos jurisconsultos, defi-ne-se a posição da mulher. Surge, desde então - como observa Cuq 111 -, uma espécie depoder marital. ll2

Segundo a Lei Pompeia deparricidiis, o assassínio de um dos cônjuges pelo outro éconsiderado parricidium (parrícídío).'!' Não se admite, no direito clássico, que, na cons-tãncia do casamento, seja intentadiáctioforti (ação de furtO)1l4 entre eles. A ambos sedispensa de prestar testemunho contra o Outro.É lícito à esposa reivindicar a liberdade domarido, ainda que ele pretenda passar por escravo.

Com base na legislação de Augusto.fixam-se princípios que deixam entrever a ten-dência - contrária ao que até então ocorria - de se atribuírem aos cônjuges iguais direitose deveres recíprocos. Assimàmulher, ao casar com um senador, se eleva à posição domarido e adquire o título de clanssima.115 Qualquer que seja sua origo (domicílio de ori-gem), a esposa passa a ter o domicílio 'do esposo, 116a quem, aliás, incumbe protegê-Ia emantê-Ia. Dispõe o marido da acil'o.l'ttiurid'ruincontra os que lhe ofendam a mulher; 117e arepresenta, em juízo, como mandatário presumido. A esposa deve respeito ao esposo, eambos estão obrigados à fidelidade, embora esse dever seja sancionado diferentementeconforme a violação parta dela ou dele,118

Em.época posterior a Adriano, pode o marido (cujo casamento não foi seguido daconueniio in manum) retomar sua mulher com o uso dos interditos de uxore exhibenda ede uxore ducenda, de quem a detenha contra a vontade dela.

No direito justinianeu, se um dos cônjuges pratica um crime contra o outro, seu es-tado é circunstância agravante da pena,' 19Firma-se, nesse período, a regra geral de queeles, embora possam acusar-se criminalmente, não podem propor,120um contra o outro,ação penal (por delito privado )ou infamante. ti '

111 Manuel des Institutiones Juridiques des Romains, 2" 00., p. 167.112 E isso - tendo .em vista que estamos· tratando da família natural- independentemente da manus.113 D. XLVIll, 9, L114 D. XXV, 2,1; D. XLVll, 2, 36,1; e D. XLVII, 2, 52, pr. e4.115 D.I, 9,1, 1; e C. V, 4, 10. No direito pés-clâssíco.a regra segundo a qual a mulher se eleva, com o ca-

samento, à posição do marido se generaliza (C. XIl,1; 13).116 D. V, 1,65; e C. XII, 1, 13.117 D.XLVII, 10, 1,3.118 A propósito, vide Carlo Longo, Corso di Diritto Romano - Diritto di Famiglia, p. 178 e segs., Milano,

1946. .119D.XLVIII, 19,28, 8.120 cr C. 5,21, 2, inteIpoJado na parte final.

DIREITO ROMANO 657

292. Relações patrimoniais entre os cônjuges - o dote - Quanto às relações patri-moniais entre os cônjuges, há que estudar:

a) o regime de bens no casamento;b) as doações nupciais (donatio ante nuptias e, no direito justinianeu, donatio prop-

ter nuptias);c) as doações entre cônjuges; ed) a iniercessio pro marito,Analisemos esses itens separadamente.

A) O regime de bens no casamento. Em direito romano, quando ao casamento não se segue a conuentio in manum, os

patrimônios do marido e da mulher são distintos. Há integral independência econômicaentre os cônjuges: os romanos jamais conheceram o sistema da autorização marital paraque a mulher pudesse praticar atos de conteúdo econômico. 121

Mas esse regime de separação absoluta de bens foi, desde cedo, amenizado pela ins-tituição do dote, que, embora não tendo surgido para ser utilizado quando o casamentonão era seguido da conuentio in manum,122é, neste, como observa Girard, 123imitação vo-luntária e parcial das conseqüências normais do matrimônio em que, seguindo-se a conu-entio in manum, os bens da mulher sui iuris passam a integrar o patrimônio da família domarido.

Portanto, desde épocas remotas o regime de bens adotado,principaImente no casa-mento a que não se seguia a conuentio in manum, foi o dota/,124em que a mulher (se suiiuris), seupater familia~ (se ela for alieni iuris) ou um terceiro (seja elasui iuris, seja ali-eni iuris) transfere ao marido (ou, se alieni iuris, a seupater famílias) bens - o dote (dosou res uxoriae) -para ajudá-Io na sustentação dos ônus decorrentes do matrimônio (adsustinenda onera matrimonii). Os demais bens da mulher, que não integram o dote e quecontinuam a pertencer-lhe, são denominados, nos textos, bona extra dotem, bonapraeterdotem, ou bona paraphema (bens parafernais), 125e, em geral, são administrados pelo

121 Discute-se se, no direito romano, se concedeuaos cônjuges direito recíproco a alimentos. No direitoclássico - segundo tudo indica (vide Carlo Longo, ob. cit., p. 187) - impõe-se a negativa; quanto ao di-reito justinianeu, entende Bonfante (mas a matéria é controvertida) que a mulher tem direito aalimen-tos, mas o marido não.

122 O dote - apesar da tese contrária de Bechmann (Das rõmischen Dotalrecht, I, p. 39, Erlangen, 1863)-existia, sem dúvida, mesmo no casamento seguido da conuentio in manum, quer a mulher fosse sui iu-ris, quer fossealieni iuris.

123 Manuel Élémentaire de Droit Romain, 8" ed., p. 182.124 Sobre o dote, vide, entre outros, Bechmann, Das rõmische Dotalrecht, 2 voIs., Erlangen, 1863/1867;

Czyhlarz, Das rõmische Dotalrecht, Giessen, 1870; Gradenwitz, Zu Natur der "dos" in MélangesGerardin, p, 281 e segs., Paris, 1907; Gide, Du caractére de Ia dot en Droit Romain, in ÉIude sur Iacondiction privée de Iafemme, 2" 00., p. 499 e segs., Paris, 1885; Pellat, Textes sur la dot traduits etcommentés, Paris, 1953; Londres da Nóbrega,A restituição do dote no Direito Romano, Rio de Janei-ro, 1955 (com ampla bibliografia sobre o dote em gemi).

125 Vide, aprop6sito, Fragmenta quae diaouur Yaticana, 254; D. XXXIX, 5, 31; D. XXIII, 3, 9,3; eCoV,14,8.

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marido (ou, se alieni iuris, pelo seu pater famílias), que age, com relação a eles, comomandatário da mulher, devendo restituir-lhos quando da dissolução do casamento.

Segundo Ulpiano,'16distinguem-se três espécies de dote:a) dote profectício(dos profecticia): o que é constituído pelo pater familias da mu-

lher (dos a patre profecta - dote vindo do pai);b) dote adventício (dos aduenticia): o que provém da própria mulher, ou de outra

pessoa que não seupaterfamilias (assim por exemplo, de sua mãe, de um irmão, ou deestranho à sua família); e

c) dote recepticio (dos recepticia): que é um dote adventício com relação ao qualquem o constitui estabeleceque, quando o casamento se dissolver, o marido está obriga-do a devolver-lhe os bens dotais.

No direito justinianeu, tendo-se transformado em obrigação o antigo dever moralde certos parentes ptóximos da mulher127 de constituir-lhe dote, os textos aludem à dosnecessaria (dote necessário).

Por outro lado, pode ser objeto de dote qualquer elemento patrimonial. Assim, o di-reito de propriedade; linua propriedade; a posse de boa-fé; os direitos reais limitados(como o usufruto), quenão os de garantia; o direito de crédito contra a pessoa que consti-tui o dote, ou contra terceiro; a extinção de direito real limitado (assim, o usufruto, a ser-vidão predial) sobre imóvel do marido (ou, se alieni iuris, de seu pater famílias); e aremissão de dívida do esposo (ou, se for o caso, de seu pater famílias). Não podiam, noentanto, ser objeto dedote os direitos de garantia (a fiança, o penhor, a hipoteca), por nãoserem, em si mesmos, elementos patrimoniais, mas, sim, meios de defesa destes.

Em face dos diferentesdireitos que podem ser objeto de dote, sua constituição variaconforme a natureza do direito a ser transmitido ao marido (ou, se alieni iuris, ao paterfamilias). Dlpianol2&aventua que o dote pode constituir-se mediante:

a) a dotis datio;b) a dotis dictiu;.ec) a dotis promistio.Pela dotis datio,. a constituição real do dote, isto é, segundo a opinião dominan-

te,129a transmissão elWva ao marido (ou, se alieni iuris, a seu pater familias) dos ele-mentos patrimoniais que são seu objeto (direito de propriedade, nua propriedade, possede boa-fé, direitos reais limitados, créditos, remissão de dívida, extinção de direitos reaislimitados). Mas -11Ofi>5e- a constituição real do dote se realiza com os meios normaispelos quais se transmii«c:mos elementos patrimoniais que o integram; assim, por exem-plo, se se quiser tran:smitir,a título de dote, o direito de propriedade sobre uma res manci-pi, é preciso - se o afDecorrer no direito clássico - que se lance mão da mancipatio ou da

126 Liber singularis~rom, VI, 3 e 4.127 A esse respeito, lIi'IfeBoofante, Corso di Diritto Romano, I, ristampa, p. 405 e segs., Milano, 1963.128 Liber singularis rreglJimJm,VI, 1 e 2.129 Cf. Bonfante, ob.ãt.,p. 417.

DIREITO ROMANO 659

in iure cessio, que são os modos pelos quais, normalmente, se transfere o direito de pro-priedade sobre as res mancipi; já para a remissão de dívida, a título de dote, é mister quese proceda à acceptilatio (vide n° 221, Il, a).

Mediante a dotis dictio e a dotis promissio, há somente a constituição obrigatória dodote (ou seja, quem vai dotar se obriga a transferir, posteriormente, os elementos patri-moniais objeto do dote ao marido, ou, se foro caso, a seupater famílias). Ambas-a dotisdictio e a doiis promissio - são promessas verbais; pela dotis dictio (vide n° 236), apenasa mulher. seu pai ou avô paterno. ou, então, um devedor deles por sua ordem, se obriga,em termos sacramentais, a transferir os elementos patrimoniais objeto do dote; 130 peladotis promissio, qualquer pessoa assume tal obrigação, por meio de uma stipulatio. (viden° 235). A partir, porém, do tempo de Teodósio 1I,J31 a constituição obrigatória do dotepassou a realizar-se, não mais pela dotis dictio ou pela dotis promissio, mas por uma sim-ples convenção (apollicitatio dotiS),132desprovida de formalidades, entre quemvai dotare o futuro marido (ou, se alieni iuris, seu pater famílias). Além disso, no direitopós-clássico, surge a prática de se redigirem instrumentos dotais (isto é, documentos es-critos de constituição de dote), os quais - como já salientamos (n° 290) - são, em certashipóteses, requisitos para a validade do casamento.

Por outro lado, ao se constituir o dote, pode-se estabelecer para ele um valor venal,que, quando da dissolução do casamento, será restituído - nesse caso, diz-se que há dotisaestimatio uenditionis causa (avaliação do dote para venda), pois, para os romanos, aíocorre como uma venda dos bens dotais, constituindo-se em dote seu preço. 133Ou, então,pode dar-se a dotis aestimatio taxationis causa (a avaliação do dote para fixação do va-lor), hipótese em que se avaliam os bens dotais não para que se constitua em dote o preçodeles, mas para que se estabeleça, previamente, a indenização que o marido pagará,quando da restituição do dote, pelos bens dotais perecidos ou deteriorados.l"

Segundo a teoria amplamente dominante.I" sempre coube, no direito romano, aomarido (ou, se alieni iuris, a seu pater familias) a propriedade do dote.

No direito pré-clássico, o esposo, como proprietário dos bens dotais, podia, duranteo casamento, utilizar-se deles como bem lhe aprouvesse; e, ao dissolver-se omatrimônio(quer por divórcio, quer pela morte da mulher), continuava ele a ser proprietário do dote,

130 Apesar da opinião em contrário de Maynz (Cours de Droit Romain, Ill, 5' ed., p. 24, nota 13; Bruxel-les-Paris, 1891) - qne, no particular, segue Bechmann -, a maioria dos romanistas entende que a dotisdictio pode ocorrer mesmo depois de contraído o casamento.

131 C. Th. nr, 13,4; C. V, 11,6.132 Note-se que pollicitaüo, nessa expressão, não está empregada em sentido técnico, como promessa

nnilateral (vide n° 272).133 Podia pactuar-se, no entanto, a restituição, não do preço, mas de coisa da mesma espécie (D. XXIII, 3,

18; e D.XXIV, 3, 66, 3), ou, então, dar-se ao marido uma alternativa: devolver a coisa, ou seu preço(D. XXIII, 3, 10,6; e D. XXIII, 3, 11).

134 D. XXIII, 3, 69, 7;. e C. V, 12,21.135 Sobre a controvérsia a respeito dessa matéria, vide Bonfante, ob. cit., p. 443.

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já que não estava obrigado a restituí-lo, exceto se se tratasse de dos reeeptieia (dote re-ceptício). Mas, no fim desse período, em virtude do aumento do número de divórcios,surgiu o seguinte problema: ocorrido o divórcio, o dote não era devolvido à mulher, que,assim, além de, muitas vezes, ficar sem meios de subsistência, não podia valer-se daque-les bens dotais para constituir novo dote, na hipótese de tornar a casar-se. Para que se evi-tassem esses inconvenientes, passou-se, ao se constituir o dote, a exigir do marido que.mediante stipulatio (a cautio ou stipuZatio rei uxoriae), se obrigasse a restituir o dotequando o matrimônio se dissolvesse.l " Nessa stipulatio, fixavam-se as condições de de-volução: a hipótese em que ocorreria (se, somente, em caso de divórcio, ou se, também,de morte); o prazo em que se verificaria; a pessoa em favor de quem ela se daria. Assim,dissolvido o casamento, se o marido se negasse a devolver o dote, essa obrigação era san-cionada pela actio ex stipulatio (ação decorrente da stipulatio].

No direito clássico, para atender às hipóteses em que, por imprevisão, não se haviacelebrado a cautio ou stipulatio rei uxoriae,137surgiu - e sua origem é muito controverti-da138 ti" ,139 '" lh ( Z"·· fi .- a ae o ret uxonae, que permitia a mu er ou, se a teni zuns, a seu pater ami-lias, com o consentimento expresso ou tácito dela) exigir do marido, a título de pena, arestituição de parte - que era fixada pelo juiz popular-dos bens dotais, se a dissolução docasamento resultasse de divórcio. Já nos fins da república, a mulher (ou, se alieni iuris,seu pater famílias, com o consentimento expresso ou tácito dela), pela mesma ação, po-dia pedir a devolução de parte do dote, ainda que o casamento se tivesse dissolvido pormorte do marido. 140Apesar da existência da actio rei uxoriae - e discute-se se ela, no di-reito clássico, era ação de boa-fé (iudieium bonaefidei) ou ação in bonum et aequum con-eepta -, persistiu a actio ex stipulatu (se, obviamente, tivesse sido celebrada a cautio oustipulatio rei uxoriae), por apresentar, sobre aquela, as seguintes vantagens: a aetio exstipulatu é a ação de direito estrito (vide n" 131, C), e, conseqüentemente, a restituição do

136 Vide, a propósito, Aulo Gêlio, Noctes Aticac, IV, 3. )137 Com a evolução dos contratos inomínados (vide nos 246 e segs.), ainda no principado (C. V, 12,6)

quando, ao se constituir o dote, se estabelecesse, mediante simples pactum, a restituição dele no casode dissolução do casamento, a obrigação do marido de devolvê-lo era sancionada pela actio praes-criptis verbis; no direito justinianeu, essa hipótese é enquadrada entre os contratos inominados do tipodo ut des.

138 A propósito, vide Bonfimte, ob. cit., p. 464 e segs.139 Sobre essa actio, vide MaxKaser Die Rechtsgrundlage der "actio rei uxorial" in Ausgewãhlte Schrif-

ten, 1, pp. 345 a 387, Camerino, 1976.140 Cf. Girard, ManueJÉ1émentaire de Droit Romain, 8" ed., p. 1.012 e segs. Por outro lado, se o marido

. deixasse em seu tes1amento um legado em favor da mulher, tendo como objeto o dote (Iegatum dotís),ela devia, em virtude do edictum de alterutro, optar pelo recebimento do legado, ou pela restituição dodote. Demais. note-se que, se o casamento se dissolvesse por morte da mulher, se se tratasse de doteprofectício, e se o pai queo constituíra estivesse vivo, este poderia, pela actio rei uxoriae, obter a resti-tuição do dote. N"ao,porém, se .se tratasse de dote adventício, ou de dote profectício, cuja pessoa que oconstituúa já tivesse fàJ.ecido antes da mulher - nessas hipóteses, o marido continuava proprietáriodos bens dotais.

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dote deve fazer-se nos termos exatos da cautio ou stipulatio rei uxoriae, sem maiores de-longas, e sem a possibilidade- salvo se se estabelecera o contrário - de o marido reterparte dos bens dotais; já a actio rei uxoriae - fosse ação de boa-fé (como entende a dou- .trina dominante), fosse ação in bonum et aequum coneepta (vide n° 131, C) - não compe-lia o marido a devolver, sempre de imediato, os bens dotais (a restituição das coisasfungíveis podem realizar-se em três parcelas anuais; as infungíveis é que devem ser de-volvidas de pronto), 141 e, além disso, nela o juiz popular não ordenava a devolução de to-dos os b.ens dotais, mas apenas daqueles que julgasse ser eqüitativo restituir, prática quefez surgtr a figura das retentiones, que eram as retenções, relativas a bens dotais, a que ti-nha direito o marido: assim, a retentio propter res donatas (retenção de bens dotais cor-respondentes às coisas por ele doadas à mulher), a retentio propter res amotas (retençãopara fazer face às coisas subtraídas dele por sua mulher), a retentio propter impensas (re-tenção pelas despesas necessárias ou úteis - estas, se com o consentimento da mulher -realizadas em beneficio dos bens dotais), a retentio propter liberas (retenção em favord~s filh?s, na razão de 1/6 dos bens dotais por filho, não podendo exceder, qualquer queseja o numero de filhos, a metade do dote) e a retentio propter mores (retenção de 1/6 dosbe~s dotais, se a mulher cometera adultério; 1/8 na hipótese de faltas mais leves). 142De-mais, na actio rei uxoriae, o marido gozava do beneficium competentiae, não podendo,portanto, ser condenado além da medida de suas possibilidades de pagar (in quantum fa-eere potest).

Em virtude dessas duas ações, modificou-se a situação do marido com referência aosbens dotais..Apesar de continuar a ser considerado proprietário do dote, estava obrigado,quando da dissolução do casamento, a restituí-lo total ou parcialmente. Por isso, a partir deAugusto: e para se protegerem os bens dotais - que constituíam um patrimônio que poderiareverter a mulher ou a seupater famílias -, criaram-se restrições à livre administração delespelo marido. Assim, aLex Iulia de adulteriis (18 a.C.)143proibiu-lhe alienar os imóveis dotaislocalizados na Itália, a menos que houvesse o consentimento da mulher.

No direito justinianeu, além de ser possível regular-se, por meio de paeta de red-denda dote, a restituição do dote de modo diferente do estabelecido na lei 144aumentamconsideravelmente essas limitações à ação do marido sobre os bens dotais. Com efeitoJustiniano es~belece que o esposo não pode hipotecar os imóveis dotais ainda que obte-nha o consentimento da mulher: estende a proibição da alienação dos imóveis dotais aossituados nas províncias (salientando, porém, que elas seriam válidas se a mulher as auto-

141 ~to à controvérs~a s.obre a restituição dos frutos dos bens dotais, vide Londres da Nôbrega, A resti-tuição do dote no Direito Romano, pp. 195 e segs., Rio de Janeiro, 1955.Isso, se ~ marido não preferisse intentar o iudicium de moribus (a cujo respeito há muita controvérsia),que podia acarretar a perda total do dote para a mulher.Gaio,I1/Stitutas, !I, 63; Paulo; Sententiarum ad filium libri, Il, 21 b,2; e Inst., Il, 8, pI.Sobre os pactos dotais, vide Burdese, In tema di convenzioni dotali, inBu1letino dell'Istitutodi DirittoRomano, LXII (1959), p. 157 e segs.

142

143144

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rizasse); e constitui em favor da esposa, a título de garantia da restituição do dote, hipote-ca tácita privilegiada sobre todos os bens do marido. 145 Além disso, dispõe Justiniano queo marido é responsável pela deterioração dos bens dotais ocorrida em virtude de culpa le-uis in concreto.

Por outro lado, é abolida, no direito justinianeu, a actia rei uxoriae, e concedida, emqualquer hipótese de dissolução do casamento. à mulher ou a seus herdeiros uma açãoque os textos ora denominam actio ex stipulatu (pois, segundo Justiniano, ainda que nãotivesse havido a celebração da cautio rei uxoriae, esta se presumiria ou seria tácita). ouactio dotis, ora, finalmente, actio de dote. 146 Em tal ação - que era de boa-fé -, Justinianofundiu as normas que, no direito clássico, se aplicavam à actio ex stipulatu e à actio uxo-riae, dai resultando que:

a) a actio ex stipulatu (ou dotis ou de dote ) é concedida em qualquer hipótese dedissolução do casamento;

b) não tem ela o caráter personalíssimo da antiga aetio rei uxoriae, sendo, portanto,transmissível aos herdeiros da mulher;

c) o marido, quando a mulher (ou seus herdeiros) lhe move essaactio, não tem maisdireito às retentiones;

d) quanto ao momento da restituição, está o marido obrigado a devolver, imediata-mente, os imóveis, mas dispõe do prazo de um ano para restituir as coisas móveis; e

e) goza o marido sempre do beneficium competentiae (vide n° 204).

B) Doações nupciaisí'

Era usual, em Roma, desde os tempos mais remotos, que o noivo, por ocasião dosesponsais, doasse à noiva bens, em geral, de pequeno valor. Essa prática, que, durante sé-culos, não teve expressão econômica, era regida pelos princípios comuns às doações.

Nos séculos III e IV d.e., porém, por influência dos costumes das regiões orientaisdo império, elas passaram a ser vultosas. Em face disso, era comum que o noivo doassebens à noiva com a condição de que o casamento se realizasse; não se celebrando o matri-mônio, ele podia recuperá-los. Às vezes, no entanto, não se estabelecia essa condição, ouporque o noivo declarava que a doação se fazia por mera liberalidade, ou porque ele nadadizia - em ambas as hipóteses, os bens se transmitiam definitivamente ao patrimônio danoiva (ou, se alieni iuris, de seu pater famílias), ainda que não se contraíssem núpcias.

145 Em 530 d.C, (C. V, 13, 1, 1, b), estabeleceu Justiniano que a hipoteca legal da mulher sobre os bens domarido deveria ser considerada como existente desde o dia do casamento, donde resultou que a mulherpassou a ter preferência sobre os credores hipotecários do marido, cujas hipotecas se tivessem consti-tuído durante a constância do matrimônio. Em seguida, em 531 d.C. (C ..VIII, 17, 12), Justiniano au-mentou a proteção aos bens dotais, ao dispor que se constituía em favor da mulher hipoteca legalprivilegiada sobre os bens do marido; em face disso, ela passou a ter preferência até sobre os credoreshipotecários do esposo, cujas hipotecas eram anteriores ao casamento.

146 C. V, 13, L147 Vide, entre outros, Brandileone, Sulla Storia e Ia natura della donatio propter nuptias, Bologna, 1892.

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Demais, celebrando-se o casamento, a mulher, por via de regra, entregava ao marido, a tí-tulo de dote, os bens doados juntamente com outros, regulando-se ambos, quanto à resti-tuição em caso de dissolução do matrimônio, pelas normas do dote.

De qualquer forma, esses usos não bastavam. Era mister que se legislasse sobre odestino de tais doações - então denominadas sponsalitiae largitates ou donationes antenuptias -, quer na hipótese da não celebração do matrimônio, quer na de sua dissolução.

Constantino, 148 em 319 d.e., deu o primeiro passo nesse sentido, ao estabelecer queas doações nupciais se faziam sob condição tácita de que o casamento se realizaria; se acondição não se verificasse, era preciso distinguir:

a) se isso ocorrera porque o noivo não quisera contrair o matrimônio, não podia elerecuperar os bens doados; ou

b) se o casamento não se efetuara por causa da noiva ou de seu pater [amilias, ou,então, da morte de um dos noivos, o noivo (ou seus herdeiros - estes limitados ao pai, àmãe e aos filhos de matrimônio precedente) podia reavê-los.

Posteriormente, em 336 d.e., ainda Constantínov'" reduziu o direito dos herdeirosdo noivo àmetade, se, nos esponsais, tivesse havido o beijo esponsalício (asculo interue-niente); em contrapartida, estendeu o direito de recuperar os bens doados a todos os her-deiros do noivo, qualquer que fosse o grau de parentesco.

Em 368 d.C., constituição de Valentiniano, Valente e Graciano'i" determinou que,se a mulher morresse antes do marido, as doações nupciais reverteriam a ele.

Alguns anos depois, em 382 d.e., Teodósio 1151 estabeleceu - e nisso se percebe atendência em se considerar que a donatio ante nuptias se destinava aos filhos - que, se aviúva contraísse novas núpcias, passaria a ter sobre os bens doados apenas o direito deusufruto, ficando os filhos do primeiro leito - ou aquele deles que ela escolhesse - com anua propriedade. Em 458 d.e., Maiorianol52 aboliu o direito da viúva de escolher o filhoque ficaria com a nua propriedade dos bens doados. Alguns anos depois, em 463 d.e.,Leão e Líbio Severo153 reconheceram à viúva, mesmo que não contraísse segundas núp-cias, apenas direito de usufruto sobre a donatio ante nuptias, e confirmaram em favor dosfilhos do primeiro leito - mantendo o disposto na constituição de Maioriano, de 458 d.e.- a nua propriedade desses bens.

Assim, até a metade do século V d.C., a donatio ante nuptias, por morte do marido,revertia inteiramente em proveito da viúva, se ela não tivesse filhos, ou, se os possuísse,se não contraísse segundas núpcias. Em 452 d.e., porém, Valentiniano rn154 estabeleceuque, na ausência de filhos, a viúva ficava com a metade dos bens decorrentes da donatio

148 C. Th.llI, 5, 2; e C. V, 3, 15.149 C. Th. m, 5, 6.150 C. Th. m, 5, 9.151 C. Th llI, 8, 2; e C. V, 9, 3.152 Nou. Maioriani, VI, 8.153 Nou, Severi, L154 Nou. Valentiniani,XXXV, 8.

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ante nuptias, passando o restante aos pais do marido. Nessa época, surge a prática de sedeterminar, nos instrumentos nupciais, por meio de pactos ipacta de lucranda donatio-ne), a parte que ficaria com a mulher, na hipótese de o marido morrer antes dela, sem terrecebido de volta a doação nupcial a título de dote. Isso - como salienta Bonfante155- te-ria tornado letra morta a restrição imposta por Valentiniano III, não fora o aparecimento,ainda nesse tempo, da tendência de se estabelecer relação entre o dote e a donatio antenuptias, a qual se traduz nas seguintes disposições: o imperador Leão,I06em 468 d.e.. es-tabelece que, proporcionalmente, o proveito pactuado, em favor da mulher, sobre a dona-tio ante nuptias seja igual ao pactuado, em favor do homem, sobre o dote; ValentinianoIll, 157alguns anos antes, em 452 d.e., no Ocidente, já havia determinado que omontanteda donatio ante núptias fosse idêntico ao do dote; e Justino,158por volta de 527 d.C., nãoobstante a proibição de doação entre os cônjuges, admite que a doação nupcial seja au-mentada durante a constância do casamento.

Com Justiniano - que, conforme observa Bonfante.!" se esforçou por dar fisionomiadefinitiva às doações nupciais, acolhendo ou reformando disposições de seuspredecessores,e, muitas vezes, inovando -, acentua-se a relação entre a doação nupcial e o dote.

Assim, entre outras providências, acolheu Justiniano, no Código, 160as duas consti-tuições de Constantino, de 319 e de 336dC.; estabeleceu para opater familias do ho-mem a obrigação de constituir a doação' nupcial; exigiu que dote e doação nupcialtivessem montante rigorosamente igual; determinou que o marido administrasse os bensdoados, não podendo alienar os imóveis ou hipotecá-los, nem mesmo, por via de regra,com o consentimento da mulher; e - segundo parece, embora não haja nenhuma constitu-ição imperial que o expresse - concedeu à mulher, para garantia da doação nupcial, hipo-teca legal sobre os bens do marido. . .

Demais, tendo Justiniano admitido não só que se pudessem aumentar as doaçõesnupciais durante a constância do casamento, mas também que fossem feitas depois decontraído o matrimônio (e isso apesar da proibição de doações entre cônjuges), a deno-minação donatio ante nuptias foi substituída por outra; donatio propter nuptias (doaçãopor causa das núpcias).

C) Doações entre cônjuges161

155 Corso di Diritto Romano, I (Dirltto di Famiglia), reimpressão, p. 527, Milano, 1963.156 C. V,14, 9. . .157 Nou. Valentiniani, XXXV (XXXIV), 9.158 C. V, 3, 19.159 Ob. cít, n° 528.160 C. V, 3,15; e C. V, 3, 16.161 Apro~ilo, vide, entre outros. Dumont.Zes Donations entre époux en Droit Romain, Paris, 1928;

Aro, Le Donazioni fra coniugi in Diritto Romano, Padova, 1938; Ascoli, Trattato delle Donazioni,2" ed., §47 e segs.; p. 451 e segs., Milano, 1935; Archi, La Donazioni (Corso di Diritto Romano), p.195 e segs.; Scherillo, Sulle Origini dei Divieto delle Donazionifra Coniugi, in Studi di Storia eDirit-to in onorediArrigo Solmi, I, p. 171 e segs., Milano, s/data; Scuto, ndivieto delledonasioni tra coniu-gi e Te Jonozioni indirette, in Studi in onore di Vincenzo Arangio-Ruiz nel XLV anno deZ suoinsegnamento, lI1, p. 439 e segs., Napoli, s/data.

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As doações entre cônjuges somente podem ocorrer em casamento que não é segui-do da conuentio in manum, porque, quando o marido adquire a manus sobre a mulher, to-dos os bens dela passam a integrar o patrimônio da família dele.

Até os fms da república, as doações entre os cônjuges eram válidas, tanto assim quea Lei Cincia de donis et muneribus, de 204 a.C., incluía os esposos entre aspersonae ex-ceptae (vide n" 254). A partir dessa época. porém, e sem que se saiba exatamente a ori-gem dessa norma/6l foram tais doações proibidas, sob pena de nulidade. Os textos 163nãosão concordes na justificação desse princípio.

É certo que, em virtude da interpreta tio dos jurisconsultos romanos, nem todas asdoações entre cônjuges são nulas. Assim, não o são as que não implicam enriquecimentopara o donatário (por exemplo, as doações da mulher para que o marido pudesse organi-zar jogos públicos), nem as que se fazem durante o casamento para serem executadas de-pois de sua dissolução.

A proibição de doações entre cônjuges foi atenuada por uma oratio de Sétimo Seve-ro e Antonio Caracala.i'" a qual estabeleceu que elas se tomavam válidas se o cônjugedoador morresse, na constância do casamento, sem revogá-Ias. 165

D)A "intercessio pro marito "

Sobre a proibição de a mulher intercedere em favor, a princípio, do marido - o quesó podia verificar-se quando o casamento não era seguido da conuentio in manum, e comrelação aos bens parafernais -, e, depois, de qualquer pessoa, já a estudamos no n° 213,para onde remetemos o leitor.

293. A filiação e as relações entre pais e filhos - Três são as categorias de filhosque se encontram no direito romano:

a) os iusti (ou legitimi), isto é, os procriados em iustae nuptiae (vide n" 277, A)/66os adotivos e, no direito pós-clássico, os legitimados (vide n° 277, C);

162 Um texto atribuído a Ulpiano (D. XXIV, 1, 1) declara que é ela de origem costumeira, Os autores mo-dernos (como Bonfante, Corso di Diritto Romano, 1- Diritto di Famiglia, ristampa, p. 290, MiIano,1963), porém, parecem inclinar-se - considerando esse fragmento interpolado - pela tese. de que aproibição foi introduzida pela Lei lu/ia et Papia Poppaea, do tempo de Auguslo. A proibição não de-via ser conhecida na época em que Quinto Múcio estabeleceu a presunção que guardou seu nome(praesumptio muciana, D. 24, 1,51), pela qual se preswne que os bens adquiridos pela mulher duranteo casamento, e dos quais ela não pode declinar sua procedência, lhe tenham sido dados pelo marido.Sobre essa presunção, vide Max Kaser, "Praesumptio Muciana", in Ausgewãlte Schrifien, I, pp. 313 a327,~erino,1976.

163 . Apropõsíto, vide D, XXIV, 11; D.XXIV, 1,2; eD. XXIV, 1,3.164 Como salienta Volterra (lstituzioni di Diritto Privato Romano, p. 824), não se sabe, em verdade, se se

trata de uma oratio de Sétimo Severo e de Caracala, ou de duas orationes distintas desses imperado-res, ou de uma oratioe de constituições imperiais sucessivas.

165 D. XXIV, 1, 32, pr. e 2.166 Os quais, no direito clássico, se denominavam naturales liberi, e se contrapunham aos adotivos, que,

nesse periodo, eram chamados, simplesmente, iusti ou legitimi.

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b) os uulgo quaesiti (também denominados uulgo concepti ou spurii), que são os fi-lhos gerados de união ilegítima; e

c) os naturales liberi, que, no direito pós-clássico, são os filhos nascidos de concu-binato (vide n" 297).

Dessas categorias, as duas primeiras existem no direito clássico; a terceira surge,apenas, no direito pós-clássico.

Quanto aos filhos legitinii (ou iusti ;167 que seguem a condição do pai -, há relações.que independem da patria potestas, entre eles e seus pais. Pais e filhos - que são ligadospelo parentesco consangüíneo icognatioi - têm, entre si, direitos e deveres. Para o filhoque não observe o deVeI moral de respeito e reverência (obsequium, pietasi, há até san-ções que são impostas, em caso de insultos ou maus-tratos, pelos praefectus urbi.168 Osgenitores, sem a autorização do pretor, não podiam ser citados emjuízo ~or seus filhos.'69

A estes também não em lícito íntentar contra os pais ação ínfamante.' o Além disso eraproibido deporem uns contra outros em juízo. 171 Por outro lado, os pais, com relação aosfilhos, gozavam do beneficium competentiae (vide n" 204).172 Entre ambos, reciproca-mente, havia direito a alimentos (que surge, no principado, com caráter excepcional, e, apouco.e pouco, se vai tornando um instituto estável); 173 a pagamento de resgate; e a su-cessão hereditària.l"

167 O pai dá ao filho seunorne patronímico. Em Roma, o nome do cidadão era constituído de três elemen-tos: o prenome, o nome gentilício e o cognome. Entre o nome gentilício e o cognome acrescentava-sea filiação paterna e, em seguida, a designação da tribo em que a pessoa era eleitora. Assim, o nomecompleto de Cícemesa este: Marcus Tullius Marci filius Cornelia tribu Cicero; em que Marcus era oprenome; Tulliusoseeac gentilício; Marci filius, a filiação paterna; Cornelia tribu, a tribo em que Ci-cero votava; e C~, o cognome.

168 D.XXVII, 10, 4; eD. XXXVII, 15, I.169 D. II, 4, 4, 1 eL.170 D. XXXVII, 15,2.171 C. IV, 20, 6.172 D. XXXVII, 15,11, I.173 A propósito, vide.Mhertario, Sul Diritto agli alimenti in Studi di Diritto Romano, I, p. 251 e segs., Mi-

lano, 1933; e SacllCfs, Das Recht aufUnterhalt in der rõmischen Familie der klassischen Zeit, inFestschr!fiFriJzSdrulz, erster Band; p. 310 e segs., Weímar, 1951.

174 Se o pai se negll1'UiEconhecer como legítimo o filho já nascido quando se dera o divórcio, a mãe de-via intentar conmu:l'enrna ação que o pretor lhe concedia: a actio de liberis agnoscendis (que era urnaactio praeíudit:iiilis~ vide n° 421). Em virtude do senatusconsulto Planciano, do século I D .C., dispõea mulher (ou ser1ptJfHrfamilias), para forçar o pai a reconhecer a paternidade do filho ainda não nasci-do no momento esassse ocorreu o divórcio, de uma ação extra ordinem - a actio de partu agnoscendo.Para que elapudessentílizar-sc dessa actio, era preciso que notificasse o ex-marido, dentro de 30 diasdepois do div~ de que se achava grávida; e o homem podia protestar que o filho não era seu, ouenviar três pessesspara servirem de guardiães de sua ex -esposa icustodes uentri), ou, enfim, omitir-se(hipótese em Ep:tl'OOUS da prova se invertia, cabendo a ele demonstrar a ilegitimidade da criança);qualquer quefuss:;,![!Ofém, a atitude do ex-marido, ele podia, posteriormente, contestar fosse a criançaseu filho Iegitmm.Seamulhernão notificasse o ex-marido, ou se recusasse a ser cnstodiada pelas pes-soas enviadaspeãsea-esposo, perdia a actio de partu agnoscendo, mas o filho continuava a ter, a qual-quertempo,a~dade de obter o reconhecimento ~ de filho legítimo, por meio de

{(li)) t'

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. . .Com relação aos filhos uulgo quaesiti (ou uulgo concepti ou spurii), não têm eles,Juridicamente, pai. Não há no direito romano a possibilidade de o pai natural reconhe-

A 1 1'" I 175 C id 176 - .ce- os, ou egttimà- os. orno acentua GI e, duas sao as regras que se aplicam aosfilhos vulgo quaesiti:

a) com referência ao pai, são estranhos a ele, não havendo, portanto, entre ambosquaisquer direitos ou deveres; e

b) com relação à mãe - de quem eles seguem a condição -, têm os mesmos direitosque os filhos legítimos.

Em virtude desses dois princípios, os vulgo quaesiti nascem sui iuris (pois não estãosujeitos a ascendentes masculinos); entram na familia materna e gozam ali de todos os dire-itos decorrentes do parentesco consangüíneo (cognatio). Sua mãe tem o dever de edu-cá-los, Entre mãe e filhos há reciprocamente direito a alimentos e direitos sucessórios.

Finalmente, quanto aos naturales liberi - que, como salientamos, eram, no direitopós-clássico, os filhos nascidos de concubinato -, além de poderem, pela legitimatio (le-gitimação) (vide n° 277, C), tomar-se filhos legítimos, estavam sujeitos a regime especi-al; entre pai e naturales liberi há, reciprocamente, direitos a alimentos, e direito restritode sucessão ab intestato; demais, a capacidade, de ambos, de dar ou receber, um do outro,liberalidade inter vivos ou mortis causa sofre restrições.

294. Dissolução do casamento'"? - No direito romano, o casamento pode dissol-ver-se em decorrência de:

a) morte de um dos cônjuges;b) perda do conubium; ec) divórcio.Se, pelo matrimônio, há a união do homem e da mulher, a morte de um deles obvia-

mente o dissolve.

uma actio praeíudicialis. Outro senatusconsulto= do qual desconhecemos a denominação - estendeu,no tempo de Adriano, os preceitos do senatusconsulto Planciano à hipótese em que o filho tivesse nas-cido durante o casamento; e ajurisprudência os aplicou ao caso de o filho ter nascido depois de mortoo pai (aí, a ação era conhecida contra o pater famílias sob cuja potestas cairia a criança). Segundo pa-rece, Justiniano fundiu ou confundiu (a observação éde Bonfante, Corso di Diritto Romano, 1-Dtrit-to di Famiglia, ristampa , p. 369, Milano, 1963) as duas ações -aactio de liberis agnoscentis e aactiode partu agnoscendo.

175 A legitimação só se aplicava aos naturales liberi (filhos nascidos de concubinato). Os uulgos quaesiti- que não podiam pleitear, judicialmente, seu reconhecimento pelo pai - podiam, no entanto, ser ado-tados por este.

176 De Ia condition de l'enfant naturel et de Ia concubine dans Ia legislation romaine, inÊbfde sur Ia con-ditionprivéede la femme; 2" ed.,p. 567, Paris, 1885.

177 Sobre dissolução do casamento, vide Corbett, The Roman Law ofMarriage, p. 211 e segs., Oxford,1930.

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Quanto à perda do conubium, quer se tome este termo em sentido lato ou estrito(vide n" 289, C), pode ela, em certos casos, acarretar a dissolução do casamento. Perde oconubtum (em acepção lata) o cônjuge que sofre capitts deminutto maxima (perda do sta-tus libertatis) ou capitis deminutio media (perda do status ciuitatis), ou, então - segundovários autores, como, por exemplo, Perozzi178 -, que vai prestar serviço militar. Nessashipóteses, a capitis deminutio maxima+? a capitis deminutio medial80 e a prestação deserviço militar - esta, objeto de controvérsia 181 - acarretam a dissolução do casamento.De outra parte, perde-se o conubium (em acepção estrita) quando ocorre a superveniênciade impedimento matrimonial (isto é, depois de contraído o casamento, surge circunstân-cia que, se existente antes, impediria sua celebração), o que pode dar-se nas seguintes hi-póteses: ,

a) adoção de um cônjuge pelo tutor ou curador do outro;b) adoção do gemo ou da nora pelo sogro;c) a mulher de senador ou os pais dela passam a dedicar-se à ars /udicra (espetácu-

los públicos); e

178 Istituzioni di Diritto Romano, 1,2' ed., reintegrazione, 1949, § 41, p. 345, nota 2.179 No direito clássico, a captiuitas (cativeiro) dissolve o casamento, que não ressurge sequer com o pos-

tliminium, quando do retomo do cônjuge prisioneiro. No período justinianeu, o cônjuge livre somentepoderá contrair segundas núpcias depois de decorridos cinco anos do início do cativeiro, e desde quenão se tenham notícias do prisioneiro (D.XXIV, 2, 6 e XLIX, 15,8- interpolados; e Nov. XXlI, capo7).Se, porém, o cônjuge livre não observa esses requisitos, e contrai segundas núpcias, ocorre, em conse-qüência, diuortium sine causa, com as penas dele resultantes. Sobre a Nov. XXII, capo 7, vide Di Mar-zo, Dirimitur matrimonium captivitate, in Studi in onore di Siro Solazzi, p. I e segs., Napoli, 1948.

180 No direito clássico, a deportação dissolve o casamento; no justinianeu, não (Nov. x:xn, capo 13).181 Salienta Perozzi (passagem citada na nota 75 do Capitulo L) que, segundo os papiros B. G. U. 140 e

Cattaoui, recto, cessava; com o serviço militar, o casamento precedente, e os filhos nascidos duranteesse período eram ilegítimos" Scialoja (ll papiro giudiziario Cattaoui e il matrimoniodel soldati ro-mani; in Bulletino dell'Istituto di Diritto Romano, VIII (1895);p. 165); entretanto, julga mais prová-vel que esses docmnentos indiquem apenas que os soldados, enquanto na milicia, não.podiam coabitarcom suas esposas, sob pena de se considerarem ilegitimos os filhos dados à luz nessa época. Com efei-to, na república, uma passagem de Tito Lívio (Ab Vrbe. Condita, XXI, 41, 16) atesta que, nesse caso,perdurava o casamento. Durante o império, entendem alguns romanistas - a matéria é controvertida -que os soldados estavam, sob alguns imperadores, impedidos de contrair matrimônio, mas, como ob-serva Orestano (IA Struttura dei Matrimonio Romano dal Diritto Classico ai Diritto Giustinianeo, I,p. 101, Milano, 1951), nadafaz supor que o consórcio preexistente se dissolvesse Com a prestação doserviço militar. A interpretação de Scialoja se coaduna, a nosso ver, com a informação de Herodiano(apudModica, Papirologia Giuridica; p. 84, nota 193, Milano, 1914), segundo a qual Sétimo Severopermitiu' aos soldados que vivessem em comum com snas esposas (o que era proibido em Virtude dadisciplina militar, como atestam vários autores literários - assim, por exemplo, Sérvío, Ad Aen., VIII,668). Esse fato, consoante Mispoulet (ÉIudes d'Institutions Romaines, p. 240, Paris, 1887), é compro-vado pelas pesquisas de Williams nas ruínas de Lambaesis, na Argélia.

masrro ROMANO 669

d) nomeação a senador do marido de uma liberta, ou do pai da esposa de um liberto.Se qualquer desses casos ocorresse antes do casamento, haveria impedimento ma-

trimonial; verificando-se depois de ele contraído, qual a conseqüência? Segundo tudo in- .dica - os textos a respeito não são muito claros -, a única dessas hipóteses em que ocasamento sempre se dissolvia (e nesse sentido se manifestam Teófilo, ParaphrasisInstitutionum, I, 10, 2, e as Basílicas, XXVIII, 4, 24) era a da letra b: adoção do genroI82

ou da nora pelo sogro. Nos casos das letras a e c - embora haja autores que entendem ocontráriol83 - não se dava a dissolução do matrimônio: no da letra a, porque, nessa hipó-tese, a adoção é que era nula, como o declaram as Basílicas XXVIII, 4, 24; no da letra c,porque essa circunstância era apenas motivo para que o marido repudiasse a mulher.Quanto à hipótese da letra d, os juristas clássicos discutiam se nela se dissolvia, ou não, omatrimônio; Justiniano, porém, se declara pela negativa.i"

Também o dívórcíol" acarreta, no direito romano, a dissolução do casamento.Inicialmente, é preciso esclarecer o significado de dois termos que se encontram

nos textos: diuortium e repudium. Os autores divergem a respeito. Alguns ..:..como Bon-fante186 e Gianneto Longo187

- entendem que, até a época dos imperadores cristãos,diuortium (divórcio) indica a ruptura do casamento (quer seja pela vontade de ambos oscônjuges, quer seja pela vontade de um deles), ao passo que repudium (repúdio) significao ato pelo qual se manifesta a vontade de dissolver o casamento; a partir dos imperadorescristãos, porém, diuortium passa a designar o rompimento do matrimônio pela vontadecomum de ambos os esposos, e repudium, a ruptura unilateral do casamento. Outros ro-manistas - e essa é a opinião dominante!" -julgam que, comumente no direito clássico econstantemente no direito pós-clássico, os textos empregam diuortium para indicar o di-vórcio bilateral, e repudium para designar o divórcio unilateral.

Nos tempos primitivos, segundo parece, o divórcio foi raro, em virtude daseverida-de de costumes. O marido não repudiava a mulher a não ser nos poucos casos admitidospelos costumes. 189

182 Sobre a adoção do genro, vide Minieri, L 'Adozione nel Genero, in Labeo (Rassegna di Diritto Roma-no), voI. 28 (1982),pp. 278 a 284.

183 Sobre toda essa matéria, vide nossa tese Os efeitos da boa-fé no casamento nulo, segundo o DireitoRomano, n" 10, p. 20 e segs., Rio de Janeiro, 1959.

184 C. V, 4, 28.185 Sobre o divórcio, vide, entre outros, Corbett, The Roman Law ofMarriage, p. 218 e segs., Oxford,

1930; Levy, Der Hergang der rõmischen Ehescheidung, Weimar, 1925; Bonfante, Corso di DirÚtoRomano, I (Dirltto di Famiglia), ristampa, p. 338 e segs., Milano, 1963; e Forzieri, ~ Legislacioneimperiale del IV-V secolo in tema divorzio, in Studia et Documenta Historiae et Iuris; voI. 48 (1982),pp. 289 a 317.

186 Corso di Diritto Romano, I (Diritto di Famiglia), ristampa, p. 332 e segs., Milano, 1963.187 Diritto Romano, voI. III iDiriuo di Famiglia), p. 142, Roma, 1940.188 Cf. Volterra, lstituzioni di Diritto Privato Romano, p. 671.189 Épossível - segundo a opinião dominante (cf. Bonfante, ob. cit., p. 344) - que várias fontes romanas

salientem que o primeiro divórcio ocorrido em Roma foi o.de Spúrio CarvíIio Ruga, ocorrido mais dequinhentos anos após a fundação da cidade, em virtude do fato de que teria sido esse oprimeiro divór-cio cuja causa - esterilidade da mulber- não fora até então reconhecida pelos costumes ..

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670 JOSÉ CARLOS MORElRA ALVES

Com a relaxação dos costumes, nos fins da república, os divórcios se tomam fre-qüentes. No entanto, e apesar de o aumento de divórcios concorrer para a diminuição danatalidade legítima, Augusto, que procurou combatê-Ia, não legislou proibindo-o, ou es-tabelecendo as causas que o justificassem. Limitou-se a determinar, na Lex Iulia de adul-teris (de 18 a.C}, que o diuortium deveria ser feito na presença de sete testemunhas, ecomunicado (oralmente ou por escrito) ao outro cônjuge por meio de um liberto. Discu-te-se, modernamente, se essas formalidades eram, ou não, essenciais para que houvesse odiuortium. A opinião dominante 190 se manifesta pela negativa.

Foram os imperadores cristãos - e isso como reflexo da doutrina da Igreja sobre aindissolubilidade do matrimônio - que começaram a combater o divórcio, sem, no entan-to, chegarem a proibi-lo.l'"

Assim, Constantino-C. Th. 3,16, l-admitiu, em 331 d.e., que o marido ou a mu-lher pudessem repudiar o outro cônjuge quando ocorressem certas causas (por exemplo,se a mulher fosse declarada culpada por adultério ou por envenenamento: ou, com rela-ção ao marido, se réu de homicídio, envenenamento ou violação de sepulcro). Se se veri-ficasse o repúdio sem a existência de uma das causas admitidas, o cônjuge que repudiarao outro sofria sanções: se o marido, era ele obrigado a restituir o dote e a não contrair se-grmdas núpcias; se amulher, perdia ela, em favor do esposo, o dote e as doações nupciais,além de sofrer a pena de deportação.

A essa constituição imperial- cujo sistema, segundo parece,192foi temporariamen-te ab-rogado por Juliano, o Apóstata - seguiram-se outras (a de Honório e Constantino II-c. Th. II!, 16, 2-de421 ac.,e a de TeodósioIl-Nov. Theod. XIl-, de 439 d.e.), ob-servando a mesma orientação.

Mas isso apenas com relação ao repúdio; o divórcio pelo consentimento comumdos cônjuges continuou absolutamente livre até Justiniano.

No direito justinianeu, distinguem-se quatro espécies de divórcio:a) diuortium ex iusta causa: é o divórcio realizado por um dos cônjuges, em virtude

de o repudiado ter cometido atos que legitimamente justifiquem o repúdio; a relação des-sas causas (iustae causae), quer quanto ao marido (assim, por exemplo, conspirar contrao imperador; manter concubina no lar conjugal ou notoriamente na mesma cidade ondeestá domiciliado com sua esposa), quer quanto à mulher (por exemplo: adultério, fre-qüência a espetáculo público contra a vontade do esposo), se encontra na Novela CXVII;

b) diuortium bona gratia: é o divórcio decorrente da vontade de ambos os cônjuges,ou apenas de um, e justificado por causas legítimas (de que nenhum deles é culpado),como, por exemplo, esterilidade, impotência incurável, voto de castidade;

c) diuortium sine iusta causa: é o repúdio de um dos cônjuges pelo outro, sem qual-quer das causas legítimas (iustae causae) que o justifique; e

190 Cf. Rasi, Consensus [acit nuptias, p. 134, Milano, 1946.191 Vide, a propósito, De Martino, Chiesa e Stato difronte ai Divorzio nell'Etã Romana, in Nuovi Studi di

Economia e Diriüo Romano; pp. 9 a 28, Roma, 1988.192 A propósito, vide Volterra, ob. cit., p. 673.

DIREITO ROMANO 671

d) diuortium communi consensu: é O divórcio realizado de comum acordo por am-bos os cônjuges sem que ocorra uma das iustae causae.

Quando um dos cônjuges se divorcia do outro sem iusta causa, ou quando dá iustacausa para que o outro o repudie, é ele punido - segundo as Novelas CXVlI, CXXVII eCX.XXIV - com penas pecuniárias (assim, por exemplo, para a mulher, a perda do dote;para o marido, a perda das doações nupciais) e corporais (de acordo com a NovelaCXXXIV, quer para o homem, quer para a mulher, clausura perpétua em convento).

Por outro lado, estabeleceu Justiniano, na Nov. CXVII, capo 10, que - exceto se odiuortium communi consensu tivesse decorrido de voto de castidade feito pelos dois côn-juges - a eles se aplicariam as sanções do divórcio sem iusta causa. Esse regime, porém,foi abolido pelo sucessor de Justiniano, Justino II (Nov. CXL).

295. Segundas núpcias193 - Durante toda a época pagã, as segundas núpcias não sóforam admitidas - com a restrição, apenas, para a mulher, da observância do tempus lu-gendi (vide nota n° 75 deste capítulo) -, mas também favorecidas indiretamente, por-quanto as Leis Iulia et Papia Poppaea, do tempo de Augusto, estabeleciam, no terrenosucessório, restrições aos viúvos e divorciados que, dentro de certo lapso de tempo, nãotomassem a casar.

Essa situação se modificou com os imperadores cristãos, que, movidos pela doutri-na da Igreja que não via com bons olhos as segundas núpcias, legislaram no sentido nãode impedi-Ias diretamente, mas de fazê-lo por via oblíqua, com o estabelecimento de umasérie de restrições e de incapacidades para o cônjuge bínubo, visando, principalmente, asalvaguardar os interesses dos filhos do primeiro leito.194

Justiniano, na Novela XXII, onde estabeleceu vários preceitos que seguiram a trilhadessa orientação, chegou a admitir, como lícita (ao contrário do que dispunham as leismatrimoniais de Augusto ), a cláusula aposta a testamento, pela qual o testador deixa à vi-úva bens sob a condição de que ela não se tome a casar.

296. Concubinato - Há concubinatoquando, entre homem e mulher, se estabeleceuma união extraconjugal estável.195

Segundo a opinião dominante, o concubinato no período republicano era meraunião de fato, ignorada pelo direito, embora, provavelmente, quando se tratasse de mu-lher ingênua de elevada categoria social, seupater famílias, no âmbito familiar, a punissecom as penas do stuprum.196 Ora, se em Roma, como já salientamos tyide n° 290), até o

193 A propósito, vide Corbett, The Roman Law of 'Marriage, pp. 249 a 251, Oxford, 1930.194 Cf. Voei, Istituzioni di Diritto Romano, 3" ed., § 136, p. 474.195 Sobre o concubinatoháampla referência bibliográfica em Castello, in Tema di Matrimonio e Concu-

binato neI Mondo Romano, Milano, 1940; e em Tomulescu, Justinien et le Concubinat, in Studi inOnore di Gaetano Scherillo, 1,pp.299 e 300, Milano, si data. Vide,também. Plassard,Le concubinatoromain sous le Haut Empire, Toulouse, Paris, 1921.

196 Castello, ob. cit., p. 193. y

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672 JOSÉ CARLOS MOREIRA AL VES

direito pós-clássico, não se exigiam, para a formação do casamento, quaisquer fonnali-dades, como saber-se se homem emulher que viviam, de modo estável, em comum, erammarido e mulher, ou, apenas, concubinos? A diferença entre cônjuges e concubinos -como acentua Gide 197- era tão manifesta na sociedade romana quanto na moderna: ela sefazia pela posse de estado - em outras palavras, presumiam-se cônjuges o homem e a mu-lher que vivessem na posse do estado de casados, como, aliás, ocorre ainda hoje, pois oestado de cônjuge, na sociedade atual, se exterioriza, principalmente, pela posse do esta-do de casado, e não pela celebração de atos solenes diante de um juiz competente ou daapresentação, a cada passo, de certidão de casamento.

Foi em virtude das leis matrimoniais do tempo de Augusto (Lex Iulia et Papia Pop-paea de maritandis ordinibus e Lex.Iulia de adulteriis) que o concubinato passou a ser le-vado em consideração pelo direito, aindaque de maneira indireta. Com efeito, emboraessas leis - segundo parecel98 - Dão se tenham ocupado do concubinato, proibiram, porum lado, o casamento entre senadores (~;em determinados casos, quaisquer cidadãos in-gênuos - vide n° 288, C, Ill) e mulher d~ certas categorias sociais (como, por exemplo, as

. ) íderaram crime.nunid d 11' 199atnzes ,e, por outro, consi .eraram cnxpe, pum o como stuprum ou a u enum, as re-lações'extraconjugais de homem com mulheringenua el honesta (ingênua e que não per-tencesse a categoria social inferior); etIl face disso, _quando homem e mulher (esta,ingênua e de categoriasocial elevada) viviam em comum, presumia-se que fossem casa-dos, pois, em caso contrário, estariam cometendo crime; de outra parte, senador (ou, emdeterminados casos, qualquer cidadão ingênuo) e mulher de certas categorias sociais in-feriores não podiam casar-se legitimamente, mas, sim, viver em comum, sem praticarcrime - essas uniões extraconjugais lícitas eram as hipóteses em que se configurava oconcubinato.200

É certo, porém, que, no direito clássico, o concubinato não produzia efeitos jurídi-cos de qualquer natureza.

Esse panorama se modifica no direito pós-clássico, sob os imperadores cristãos,que transformamo concubinato em instituto jurídico, e que, para combatê-lo em favor dafamília legítima, inferiorizam a condição da coâcubina e de seus filhos (os liberi natura-les - vide n° 293), procurando, de outra parte, estimular os concubinos a contrair matri-mônios legítimos. Assim; Constantíno'?' proíbe que se façam doações à concubina e aos

197 De Ia condiction de I'enfant naturel et de Ia concubine dans Ia législation romaine, in Étude sur Iacondiction privée de la femme, p. 55 segs., Paris, 1885.

198 Sobre a controvérsia referente às relações do concubinato com a legislação matrimonial de Augusto,vide Bonfante, ob.cit., p. 316 e segs.

199 Como observaBoufante (ob. cit., p. 315), essas palavras, nas fontes, seempregam promiscuamente, enão-renl'o signi:fic;adomoderno de violência e de infidelidade conjugal, mas, sim de relação extracon-jugal ilícita.

200' Note-se que, Da Sociedade romana, o concubinato não era considerado - até o advento do cristianismo-imoxal, tantoas&imque pessoas ilustres (como, por exemplo, Vespasiano) viviam em concubinato.

201 C. Th.IV,6,2e3.

DIREITO ROMANO 673

filhos naturais, e admite, em caráter excepcional, a legitimação por casamento subse-qüente. Mais tarde, Teodósio IIe Valentiniano m/02 encerrando uma série de constitui-ções imperiais a respeito, permitem pequenas doações à concubina. Anastácio,203 em 517d.e., toma estável o instituto da legitimação por casamento subseqüente.

No direito justinianeu, deixam de ser crime as relações extraconjugais com mulheringênua e de categoria social elevada; mas - e não se sabe se esse regime surgiu com Jus-tiniano, ou se já existia no tempo dos imperadores cristãosi'" -, exigem-se certos requisi-tos para que haja concubinato:

a) que os concubinos tenham atingido idade conjugal;b) que, com relação a eles, não existam os impedimentos matrimoniais relativos ao

parentesco e à afinidade; ec) que o concubinato seja rigorosamente monogâmico (daí quem tem esposa não

pode ter concubina, nem o concubino pode ter mais do que uma só concubina).Além de se admitirem, no direito justinianeu, doações à concubina e aos liberi natu-

rales, estão estes - como salientamos no n° 293 - sujeitos a regime especial no que dizrespeito às relações entre pai e filhos; demais, pela legitimatio (seja a legitimatio per sub-sequens matrimonium, seja a legitimatio per rescriptum principis, seja a legitimatio peroblationem curiae), os liberi naturales podem adquirir a condição de filhos legítimos.

Apesar desse tratamento jurídico/OSo concubinato, no direito justinianeu, não che-ga - como acentua Brugi206- a transformar-se em matrimônio de grau inferior.

No Oriente, o instituto do concubinato foi abolido por Leão, o Filósofo (886-912d.e.);207no Ocidente, ele caiu em desuso no século XII d.C.

202 C. Th. IV, 6, 7 e 8.203 C. V, 27,6.204 Cf. Bonfante, ob. cit., p. 323.205 Observa Bonfante (Nota sulla riforma giustinianea dei concubinato, in Studi in onore di Silvio Peroz-

zi, p. 283 e segs., Palermo, 1923),que Justiniano assim procedeu, possivelmente, porque pretendeuacabar com o concubinato, não mediante perseguição da concubina ede seus filhos, mas pela elevaçãodele a uma forma de casamento morganático, até absorvê-lo no matrimônio legítimo.

206 Istituzioni di Diritto Privato Giustinianeo, 11,§ 110, p. 243, Verona-Padova, 1901.207 Nov. Leon., XCI.

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L

TUTELA E CURA TELA

Sumário: 297. A incapacidade de fato, a tutela e a curatela. 298. A evolução da tutela eda curatela. 299. A tutela dos impúberes. 300. A tutela das mulheres. 301. A curatela dos lou-cos. 302. A curatela dos pródigos. 303. A curatela dos púberes menores de vinte e cinco anos.

297. A incapacidade de fato, a tutela e a curatela - Ao estudarmos a capacidadede fato (nOS 93 e segs.), vimos que eram absolutamente incapazes os infantes (nos direitospré-clássico e clássico, os que não sabiam falar; no direito pós-clássico, as crianças atésete anos), os infantiae proximi (mas isso apenas no direito pré-clássico) e os doentesmentais (furiosi, dementes e mentecapti), exceto nos intervalos de lucidez (o que, segun-do a opinião dominante, somente podia ocorrer com osfuriosi). Já relativamente incapa-zes eram as crianças saídas da infância (e, portanto, os infantiae proximi - nos direitosclássico e pós-clássico - e ospubertati proximii, as mulheres (até °século IV d.e., quan-do se tornam capazes), os pródigos e, no período pós-clássico (no clássico, eram capa-zes), os púberes, de ambos os sexos, menores de 25 anos.

Os absolutamente incapazes, porque não têm vontade, I não podem praticar, por sisó, ato algum que produza efeito jurídico. Os relativamente incapazes não podem reali-zar, por si sós, atos que diminuam seu patrimônio (vide, a propósito, o n° 95).

Quando os absoluta ou relativamente incapazes são alieni iuris, sua incapacidadenão acarreta dificuldades quanto à administração de bens, pois essas pessoas não os pos-suem (o patrimônio da família é do pater familias, e os incapazes não dispõem de pecú-lio); além disso, estão subordinadas aopater familias, que provê as suas necessidades.

O mesmo não sucede quando são eles sui iuris. Nesse caso, quem irá cuidar de seusinteresses patrimoniais'f Essa questão foi resolvida, no direito romano, por meio de doisinstitutos juridicos: a tutela e a curatela. A tutela, exercida pelo tutor; a curatela, pelo eu-rador.

Gaio, Institutas, 1Il, 106 a 109.2 No direito romano (vide, a propósito, Bonfante, Corso di Diritto Romano, L Diriuo de Famiglia, re-

impressão, p. 551 e segs., Milano, 1963), a tutela e a curatela visam aos atos patrimoniais e não à vigi-lância sobre a pessoa do incapaz.

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676 JosÉCARLOS MOREIRAALVES

298. A evolução da tutela e da curatela' - No direito moderno, por via de regra, atutela e a curatela existem para a proteção dos incapazes de fato. Ser tutor ou curado r éum munus publicum (encargo público). Trata-se, pois, de encargo, e não de vantagem;tanto assim que não se pode, a não ser em casos expressos na lei, recusar o exercício datutela ou da curatela.

Bem diversa era a situação no direito romano pré-clássico, onde tanto a tutela quanto acuratela eram institutos - segundo parece' - de proteção, não ao incapaz, mas a seus futurosherdeiros, que, como tutores ou curadores, velavam pelo patrimônio que viria a ser deles. eexerciam, em vez de um dever, um verdadeiro poder (potestas). Por isso, no direitopré-clássico, eram tutores ou curadores os parentes agnados mais próximos do incapaz,' ou,na falta deles, os gentiles mais chegados" - em outras palavras: seus herdeiros. Com relação àtutela, foi a Lei das xn Tábuas7 que deu, pela primeira vez, ao pater famílias o direito de, emseu testamento, designar pessoa que não fosse heres (herdeira) do incapaz para ser tutor, oque destacou a tutela da hereditas (herança). Tutela e curatela, nesses tempos remotos, eraminstitutos de direito privado, não interferindo nelas o Estado.

No direito clássico, ainda persistem vestígios dessa concepção. Assim, nesse perio-do, há textos jurídicos onde se assevera que o tutor, com relação aos bens do tutelado, seconsiderava como se fosse seu proprietário (domini loco habetur).8 Embora no direitoclássico a tutela e a curatela tivessem deixado de ser institutos de proteção aos herdeirosdo incapaz, passando a proteger o próprio incapaz (donde, nessa época, a tutela e a cura-tela serem tidas como munus publicum - encargo público - e, por isso, não mais se poder,exceto nas hipóteses taxativamente enumeradas em lei, recusar a exercê-Ias), na defini-ção de tutela que se encontra no Digesto.' e que se atribui ao jurisconsulto clássico Sérvio

3 Além dos inúmeros trabalhos de Solazzi sobre tutela e curatela que se encontram reunidos em ScrittidiDiritto Romano, vols. I (Napoli, 1955), II (Napoli, 1957) em(Napoli, 1960),passim, vide, Bonfan-te, Corso di Diritto Romano, 1.Diritto di Famiglia, reimpressão, p. 551 e segs. (com ampla bibliogra-fia), Milano, 1963; Kaser, Das Rõmische Privatrechtfl; §20 e segs., p. 74 e segs., § 85 e segs., p. 299 esegs., München, 1955, e lI, §231 e segs., p. 141 e segs., München, 1959; Gianneto Longo, Diritto Ro-11UUlO, m (Diritto di Famiglia), p. 249 e segs., Roma, 1940; e Perozzi, Istituzioni di Diritto Romano, I,2" ed., reintegrazione, 1949, § 55, p. 459 e segs.

4 A tese segundo a qual a tutela e a herança estão, a principio, intimamente vinculadas foi sugerida porBonfante (Corso di Diritto Romano, I,Diritto de Famiglia, reimpressão, p. 554, Milano, 1963); entreos vários autores que a seguem, vide Betti,Istituzioni di Diritto Romano, I, ristampa da 28 ed.), §39, p.65 esegs.

5 Galo,Institutas, r. 155; e Ulpiano, Liber singularis reguIarum, XI, 3.6 .Aprop6sito, vide Costa, Storia dei Diritto Ramano Privato, 2" ed., p. 103, nota 2, Torino, 1925.7 Tab. V, 3 (ed. Riccobono).8 D. XlJ, 4, 7, 3; e D. XLVII, 2, 57,4.9 D.XXVI,I, l,pr.; eInst., 1, 13, 1 (onde, emvez dapalavra aís, que se encontra notex:to do Digesto, se lê

ius). Segundo K.ueb1er,Die Vormundschoftliche Gewalt inRõmischen Recht, in Studi di Storia eDiritto inoriorediEnricoBestaperilXL annodel SUQ insegnamento 1,n° 75 e segs., Milano, 1939, ius nessa defini-ção -éomo se vê em Teófilo, Paraphrasis lnstitutionum, 1, 13, 1 -foi alteração introduzida pelos compila-dores, e não erro de oopista; na definição original de Sérvio, o termo usado era uis.

DIREITO ROMANO 677

(contemporâneo de Cícero), encontramos as duas concepções: a antiga, representada pe-las palavras iniciais uis ac potestas, que traduzem poder; e a clássica, nos termos ad tuen-dum eum, que indicam que a tutela se destinava à proteção do incapaz. Eis a definição deSérvio:

Tutela est, ut Seruius definit, uis ac potestas in capite libero ad tuendum eum, qui prop-ter aetatem sua sponte se defendere nequit, iure ciuili data ac permissa (A tutela é, como de-tine Sérvio, a força e o poder sobre o homem livre, dados e permitidos pelo direito civil, paraproteger aquele que, por causa da idade, não se pode defender por si mesmo). 10

Por outro lado, nos direitos pré-clássico e clássico, a tutela e a curatela se distingui-am nitidamente:

a)a tutela se aplicava a incapazes por fato normal (idade: impúberes; e sexo: mu-lheres); a curatela, a incapazes por causa anormal (assim, doenças mentais:foriosi, de-mentes; prodigalidade: pródigos); e

b) na tutela, o tutor podia administrar os bens do tutelado de dois modos diversos:ou agindo como seu representante indireto (negotium gerere), ou integrando a vontadedo incapaz (auctoritatis interpositio); já na curatela, o único meio de o curador adminis-trar os bens do incapaz era o primeiro (negotium gerere).ll

No direito pós-clássico, surge a curatela dos púberes menores de 25 anos, na qualnão se respeitam essas distinções. Com efeito, nesse caso, o fator de incapacidade é nor-mal (idade), e o curador pode utilizar-se dos dois modos de administração: o negotiumgerere e a auctoritatis interpositio,

299. A tutela dos impúberes - Para estudar a tutela dos impúberes, devemos exa-miná-Ia sob os seguintes aspectos:

a) espécies de tutela e designação do tutor;b) capacidade para ser tutor, e escusas para não sê-lo;c) administração, pelo tutor, dos bens do impúbere;d) poderes e obrigações do tutor;e) ações e garantias contra o tutor;j) pluralidade de tutores; eg) cessação da tutela dos impúberes.Analisemo-los separadamente.

10 É possível- e essa é a teoria dominante - que, em sua definição, Sérvioaludisse também à tutela dasmulheres, e, nesse caso, o teor original dela seria o segninte: "". ad tuendum eum (eamue} quipropteraetatem (uel sexum} ", Como, no tempo de Justiniano,já não mais havia a tutela mulierum, os compi-ladores suprimiram a referência a ela. Há autores, porém, como Arangio-Ruiz (Istituzioni di DirittoRomano, 138 ed., p.495 e segs., nota 2), que entendem que essa definição dizia respeito, apenas, à tute-Ia legítima, sendo interpoladas as palavras ad tuendum eum, qui propter aetatem sua sponte se defen-dere nequit.

Ii Assim, a curatela visa à gestão do patrimônio do incapaz; a tutela tem em vista, também, a assistênciado tutor aos atos juridicos que o tutelado celebra. Em virtude disso, talvez, amáxima (D. XXXVI, 2,12a 14;eD. XL, 1, 13) tutordaturpersonae, curator rei (o tutor se dá à pessoa; o curador, à coisa) .:

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678 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES

A) Espécies de tutela e designação do tutorTrês são as espécies de tutela de impúberes, conforme seja tutor alguém designado

pelo pater famílias em testamento, ou um herdeiro legítimo do impúbere, ou pessoa no-meada pelo magistrado competente:

a) a tutela testamentária;b) a tutela legítima; ec) a tutela honorária (também denominada tutela dativa ou tutela atiliana).

***

Na tutela testamentária, é tutor quem for designado pelo pater familias, em testa-mento, para exercer a tutela sobre o impúbere que, com sua morte, se tomará sui iuris. 12

A princípio, só há tutor testamentário se o testamento em que foi feita sua designa-ção for válido. Desde o início do principado, porém, admite-se que o tutor testamentárioseja designado em codicilo (vide n° 343) confirmado por testamento; e os magistrados,por via de regra, quando o nome do tutor consta de testamento ineficaz, ou sua designa-ção se faz em testamento de quem não possui sobre o impúbere a patria potes tas (assim,por exemplo, sua mãe), o ratificam, e - o que é de notar-se - essa tutela não se reputa ho-norária, mas, sim, testamentária, razão, por que ela - ao contrário do que ocorre com atutela honorária - prevalece sobre a legítima. No direito justinianeupermite-se'" que amãe do impúbere, sem que seja necessária a ratificação do magistrado competente, de-signe, em testamento, tutor para o filho que ela instituiu herdeiro; e que o pai, desde que omagistrado confinue a designação, faça o mesmo com relação a filho natural, se lhe dei-xou legado ou lhe fez doação. 14

***Na falta de tutor testamentário, a tutela é deferida ao herdeiro legítimo presumido

do impúbere (isto é, àquele que seria seu herdeiro legítimo se este morresse quando a tu-tela é deferida) - é a tutela legítima.

Assim, segundo a escala sucessória constante na Lei das Xll Tábuas (vide n° 324),era tutor legítimo o adgnatus proximus, e, na falta dele, os gentiles.

Com relação aos filhos emancipados e aos libertos, os quais não tinham agnados, osjurisconsultos romanos, interpretando a Lei das Xll Tábuas, firmaram o princípio de quea tutela sobre eles se concederia ao seu herdeiro presumido: o patronus. Quanto ao filhoemancipado, era, ainda, de verificar-se se ele fora, ou não, remancipado a seu antigo pa-

12 Os que continuarão alieni iuris não necessitam de tutela, por ficarem sob apotestas do novo pater fa-mílias.

13 C. V, 28, 4.14 C.V,29,4.

DIREITO ROMANO 679

ter famílias (víde n° 281, E): em caso afirmativo, o pater familias manumissor seria o tu-tor legítimo; em caso negativo, o terceiro, manumissor, seria o tutor (e se denominavatutor fiduciárioy;

No principado, desaparecida a instituição da gens, o mesmo sucede por via de con-seqüência com a tutela dos gentiles. No dominato, o imperador Anastácio, em 498 d.C., 15

determina que, embora o impúbere tenha agnados de grau de parentesco mais afastado doque o de seus irmãos emancipados (que, em virtude da emancipação, são somente seuscognados), a tutela legítima seja concedida a estes, e não àqueles.

No direito justinianeu, abolido o parentesco agnatício, segue-se, para a designaçãodo tutor legítimo, a escala sucessória estabeleci da nas Novelas CXVIII e CXXVII (viden° 327).

***Somente na falta de tutor testamentário e de tutor legítimo é que se nomeava tutor

honorário (também denominado tutor atiliano ou dativo ).16A tutela honorária (ou atiliana ou dativa), segundo parece, só surgiu no século li

a.c., ao ser instituída por uma lei Atilia (provavelmente anterior ao ano 186 a.c.),17 e seaplicava apenas em Roma. Mais tarde, a tutela honorária foi estendida pela Lei Iulia etTitial8 às províncias.

De início, quem nomeia o tutor honorário, em Roma, é o pretor urbano, assistidopela maioria dos tribunos da plebe;19 nas províncias, é o seu governador, mediante pro-posta dos magistrados municipais." No principado, Cláudi021 atribuiu a nomeação do tu-tor honorário aos cônsules, sendo controvertido se o pretor urbano teria continuadocompetente para isso.22 Marco Aurélio e Lúcio Vero23 criaram um pretor especialmentepara nomear tutores honorários: o praetor tutelaris. Esses magistrados tinham também amesma competência em território da Itália; no tempo de Adriano, igualmente a tiveram,ali, os iuridici.24

.\

15 C. V, 30, 4.16 Segundo vários autores (assim, por exemplo, Volterra, Istituzioni di Diritto Privato Romano, p. 10I),

a denominação tutela datiua é justinianéia.17 Antes, na falta de tutor testamentário e de tutor legítimo, éprovável que, a pedido da mãe ou de paren-

tes do impúbere, o cônsul (e, mais tarde, o pretor) designasse, por força de seu imperium, alguém paraser tutor do impúbere.

18 Como salienta Bonfante (Corso di Diritto Romano, 1,Diriao de Famiglia, ristampa da I' ed., pp. 576e 577, nota 2, Milano, 1963), essa lei, se realmente é uma única (o que éduvidoso), seria de l31 a.C.

19 Gaio,Institutas, I, 185.20 Gaio, ibidem.21 Suetônio, De uita Caesarum, Diuus Claudius, xxm.22 Vide, a propósito, Bonfante, ob. cit., p. 577 e segs.23 Capitolino, Historiae Augustae Scriptores, M Antoninus Philosophus, X.24 Fragmenta quae dicuntur Vaticana, 232.

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680 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES

No direito justinianeu, a competência para nomear tutor honorário era, em Constan-tinopla, dopraefecue urbi e do pretor; nas províncias, dos defensores ciuitatis se os bensdos impúberes nãoul1rapassassem quinhentos sólidos de ouro, e, se superiores, do gover-nador em pessoa ou por meio do defensor ciuitatis a quem aquele dava ordem expressanesse sentido.25

Por outro lado, qualquer pessoa - inclusive o impúbere - podia solicitar ao magis-trado competente a nomeação de tutor honorário. No principado, Sétimo Severo:" esta-beleceu que a mãe do impúbere, para não perder seus direitos sucessórios com relaçãoaos bens do filho, tinha a obrigação de pedir a nomeação de tutor para ele; e a mesmaobrigação incumbia, sob pena de castigos corporais, aos libertos do pai do impúbere."

Enfim, é de salientar a existência de um tutor especial- o tutorpraetorius - que eranomeado pelo magistrado para que o impúbere pudesse realizar um ato que não podia fa-zer com o tutor permanente (assim, por exemplo, na hipótese de o impúbere litigar judici-almente com seu tutor permanente). O tutor praetorius foi substituído, no direitopós-clássico, por um curator (curador) especial. 28

B) Capacidade para ser tutor, e escusas para não sê-ia

A princípio, quando a tutela se exercia em favor do tutor, e não do tutelado, para quealguém fosse tutor=testamentário ou legítimo (a tutela honorária somente surgiu maistarde) - bastava que reunisse os três seguintes atribntos:

a) fosse livre;b) fosse cidadão romano; ec) fosse paterjamilias/"Estavam, assim, excluídos, como incapazes de exercer a tutela, os escravos, os es-

trangeiros, as mulheres e osfiliifamilias.Quando, porém, a tutela passa a ser um instituto de proteção ao incapaz, exigem-se

outros requisitos Para que alguém possa ser tutor. Isso começa a verificar-se com a tutelahonorária, que, desde sua criação, foi encarada como um munus publicum. Assim, o ma-gistrado, ao escolhel:a1guémpara tutor honorário, não se prende apenas às exigências an-tigas (ser livre, ser cidadão romano e serpater familias), mas cuida também em que sejapessoa púbere" é idônea, com qualidades indispensáveis para proteger o patrimônio doincapaz. Dai o prett admitir que mesmo o filius famílias que preencha tais requisitos

25 lruL,I,20,4e5;cC.I,4,30.26 D. XXVI, 6,2,2;cD. XXXVIII, 17,2,23 e 24.27 D. XXVI, 6, 2, L28 C. V, 62, 21.29 A propósito, ~Bonfante, ob. cit., p. 585 e segs.30 Gaio, Institullls,l.157. Perozzi (Istituzioni di Diritto Romano, I, 2' ed., reintegrazione, 1949, § 57,

p. 466 e segs; ••• (i)entende que, no direito clássico, o impúberepodia ser tutor, pois as passagens deGaio em ~Iio decorrentes de gIosema, ou de erro do copista do manuscrito veronense. Essatese, no entlmIIa..lIIÍD encontrou ressonância na doutrina.

DIREITO ROMANO 681

possa ser designado tutor; e, no direito pós-clássico, o mesmo se dá com a mãe e a avó doimpúbere, as quais, desde que se comprometam, sob juramento, a não tomar a casar, po-diam ser tutoras do filho ou do neto impúberes." Essas exigências se estendem da tutela'honorária para as tutelas testamentária e legítima, razão por que, no direito pós-clássico,existem várias incapacidades para ser tutor (testamentário, legítimo ou honorário, indis-tintamente), as quais, no tempo de Justiniano, são as seguintes:

a) ser escravo (salvo se designado para tutor em testamento, pois se entende que,implicitamente, o escravo foi manumitido nesse testamento, passando, assim, a ser ho-mem livre, depois de morte do testador);

b) ser louco;c) ser surdo-mudo;d) ser cego;e) ser menor de vinte e cinco anos;f) ser soldado;g) ser bispo;h) ser monge;i) ser mulher (exceto, quanto aos descendentes, a mãe e a avó que jurassem não con-

trair novo matrimônio);j) ser inimigo capital do pai do incapaz;l) ser excluído pelo pai ou pela mãe do incapaz, em testamento, para ser tutor;m) oferecer-se espontaneamente (ou até a pagar) para ser tutor do incapaz; en) ser credor ou devedor do incapaz. 32Por outro lado, a pessoa a quem cabe ser tutor (testamentário, legítimo ou honorá-

rio) pode, em certos casos, eximir-se de sê-lo,Assim, quem foi indicado em testamento para ser tutor testamentário pode exi-

mir-se da tutela por declaração solene, feita na presença de testemunhas, de que não querexercer a tutela - é o que se denomina abdicatio tutelae.

Aquele a quem cabe a tutela legítima pode transferi-Ia a terceiro - que se torna o tu-tor cessicius -, mediante in iure cessio, sendo certo que ele voltará a ser o tutor legítimose o tutor cessicius, antes que o Ímpúbere atinja a puberdade, falecer ou sofrer capitis de-minutio,

Já a pessoa designada pelo magistrado para exercer a tutela honorária somente po-derá eximir-se dela, por ser considerada munus publicum, se alegar motivos graves que aimpeçam de desempenhá-Ia (excusationes - escusas), ou se indicar outra pessoa maisapta para o exercício da tutela (é o que se denomina potioris nominatio).

31 C. Th. III, 17,4; ec,V, 35, 2.32 Se um desses motivos ocorre depois de iniciada a tutela, o tutor se exime dela.

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682 JOSÉ CARLOS MOREIRA AL VES

As excusationes, a princípio, só diziam respeito à tutela honorária. Mas, ainda no direi-to clássico, elas foram admitidas para o não-desempenho da tutela testamentária. E o mesmoocorreu, a partir do séculoIV d.C. (já no direito pós-clássico), com a tutela legítima.

As diferentes escusas admitidas variaram no tempo, pois foram surgindo, a pouco epouco, graças à atuação dos magistrados e a rescritos imperiais que visavam a casos.par-ticulares. As mais importantes dessas excusationes podem enquadrar-se nos segumtesgrupos:

a) quanto a razões di! ordem pessoal: idade superior a 70 anos, pobreza extrema,saúde precária, ignorância;

b) quanto a razõesdefamília: ter o tutor três, quatro ou cinco filhos, conforme, res-pectivamente, fosse oomiciliado em Roma, na Itália, ou numa província; já estar eleexercendo três tutelas, ou três curate1as;

c) quanto a razões decorrentes defonção pública ou de interesse público: ser ma-gistrado, ser membro do consilium principis; e

d) quanto a razõesde privilégio: ser veterano do exército, ou atleta coroado, ou gra-mático, ou retórico, ou sacerdote, ou médico.

Com referência àpotioris nominatio, foi ela admitida, apenas, na tutela honorária,tendo desaparecido no direito pós-clássico, pois não se encontram traços seus no CorpusIuris Ciuilis.

C) Administração pelo tutor dos bens do impúbereI 33-Nas origens, quando a tutela existe em favor do tutor, este - provave mente -nao

se limita, apenas, a administrar os bens do pupilo, mas cuida também de sua pessoa, fa-zendo as vezes de seupater famílias.

Desde muito cedo, porém, essa situação se modifica: a guarda e a educação do tute-'da - 34 .35 tut b Ié dlado passam a ser exerci s por sua mae ou por parentes, e ao or ca e, a em o pro-

vimento de meios pa'lrimoniais para o sustento e a educação do pupilo, a administraçãode seus bens.

A administração pelo tutor dos bens do tutelado se fazia mediante a utilização deum dos dois seguintes processos:

a) a negotiorum gestio (gestão de negócios); eb) a auctoritatis interpositio (interposição da auctoritas).Na negotiorum.gestio, o tutor age como negotiorum gestor (gestor de negócios) do

pupilo. Assim, por coota do tutelado, mas em seu próprio nome - portanto, como repre-sentante indireto (viden° 111, B) -, o tutor, gerindo o patrimônio do pupilo, adquire bens,toma-se credor oudeeedor; de outra parte, quando, em juízo, na defesa dos interesses pa-

33 A propósito, vük6iIard, Manuel Élémentaire de Droit Romain, 8' ed., p. 226; e Giffard, Précis deDroit Romain; I,,4"m, § 472, p. 226 e segs.

34 C.V, 49, 1.35 C.V,49,2.

DIREITO ROMANO 683

trimoniais do pupilo, vale-se, no processo formulário, da fórmula com transposição desujeito: na intentio, figura o tutelado como credor ou proprietário da coisa em litígio, e,na condemnatio, aparece o tutor como a pessoa em favor de quem deverá o réu, se conde- .nado, cumprir a sentença. Dessa forma, estando bens, créditos e débitos em nome do tu-tor, ao terminar a tutela por ter o pupilo atingido a puberdade, aquele está obrigado aprestar contas a este, transferindo-lhe, pelos meios comuns de transmissão de direitos.bens, créditos e débitos.

Na auctoritatis interpositio, o panorama é bem diverso. O pupilo realiza o ato, e otutor o assiste como auctor, isto é, adere ao ato, dando a sua aprovaçãor" A auctoritasnão se confunde com a autorização moderna, pois, enquanto esta pode ser concedida an-tes de praticado o ato, ou depois (aí, a título de ratificação), a auctoritas tem de ser inter-

I I· 37 'posta no momento mesmo em que e e se rea iza; nos contratos entre ausentes, esuficiente que o tutor esteja presente à proposta do pupilo, sendo que, no direito justinia-neu, se admite que a auctoritas seja concedida por escrito." Por outro lado, a princípio, aauctoritas se concedia, solenemente, mediante - é provável" - a pergunta auctar es? e aresposta auctar sum; no direito clássico, pode ser concedida com quaisquer palavras ouatos; e, no direito justinianeu, não há traço algum de exigência de formalidades para aconcessão da auctoritas.

Quando o impúbere estava ausente (absens), ou era infans (infante) - e, segundoparece, no direito pré-clássico, infantiae proximus -, o tutor não tinha alternativa, deven-do gerir os interesses do tutelado pela negotiorum gestio, Quando, porém, se tratava de (apartir, possivelmente, do direito clássico) irfantiae proximus, ou, então, de pubertatiproximus, podia °tutor escolher um dos dois processos: a negotiorum gestio ou a aucto-ritatis interpositio.

Por outro lado, a princípio, a auctoritatis interpositio apresentava manifestas vanta-gens sobre a negotiorum gestío, a saber:

a) pela negotiorum gestio, ao contrário do que ocorria quando se utilizava da aucto-ritatis interpositio, o tutor, por agir como representante indireto do 'pupilo, não podia pra-ticar certos atos que este devia realizar pessoalmente, como, por exemplo, a aceitação daherança ou a alienação por mancipatio;

b) a negotiorum gestio implicava o uso, quando do término da tutela, de uma sériede operações complexas para a transmissão, do ex-tutorpara o ex-pupilo, dos direitos eobrigações, que aquele, por conta deste, adquirira ou contraíra durante a tutela; .e

c) em vista disso, o processo da negotiorum gestio fazia o tutelado correr o risco de,terminada a tutela, ser prejudicado por se encontrar o tutor (contra quem somente dispu-

36 Note-se que, ao contrário do que ocorre na tutela mulierum (víde n" 300), o tutor do impúbere era, nodireito clássico, livre para negar a auctoritas.

37 Inst., I, 21, 2.38 D. XXVI, 8, 9,6, que, geralmente, se considera interpolado •.39 Vide D. XXVI, 8, 3..

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684 JOSÉ CARLOS MOREIRA AL VES

nha de ações pessoais) em estado de insolvência, nada tendo para transferir-lhe dos direi-tos adquiridos com a gestão de seu patrimônio.

Nos direitos clássico e pós-clássico, porém, esses inconvenientes da negotiorumgestio foram afastados graças a expedientes, à atuação do pretor e dos jurisconsultos e àsconstituições imperiais. Assim quando se tratava de ato que somente aumentasse o patri-mônio do pupilo, mas que tivesse de ser realizado pessoalmente por ele, o tutor lançavamão de um dos escravos do tutelado, pois tudo o que o escravo adquire o faz para seu se-nhor; o ius honorarium admitia que o tutor, como bonorum possessor, aceitasse a heran-ça deferida ao infans; Teodósio II e Valentiniano Ill, em constituição imperial de 426d.C. (C. IV, 30, 18,2), permitiram que o tutor, iure ciuili, aceitasse a herança que fora de-ferida ao pupilo; desde o direito clássico, admitia-se que o tutor, gerindo os negócios dopupilo, adquirisse diretamente para este a propriedade de uma coisa, por modo de aquisi-ção baseado na posse (assim, por exemplo, a traditio, que - vide n° 154, 11,c -, no direitojustinianeu, não mais existindo a mancipatio nem a in iure cessio, se tornou o únicomodo de transferência da propriedade); e, provavelmente ainda no periodo clássico,"por meio de actiones utiles (vide n" 131, A, infine) concedidas, no término da tutela, aoex-pupilo e contra ele, podia o mesmo demandar ou ser demandado, diretamente, com re-lação a créditos e a débitos surgidos da gestão do tutor.

Não mais apresentando aqueles inconvenientes, a negotiorum gestio (que não exi-gia a presença do pupilo para a realização dos negócios jurídicos) suplanta, no direitopôs-clássico, a auctoritatis interpositio.

D) Poderes e obrigações do tutor

Quanto aos poderes do tutor, observa-se, no direito romano, que eles, de absolutosque eram no início, vão, a pouco e pouco, sendo restringidos, e, paralelamente, vai sur-gindo, cada vez em maior número de casos, a necessidade de o tutor obter para a práticade certos atos a autorização do magistrado.

Nos tempos primitivos, quando a tutela existe em favor do tutor, este se comporta,com relação aos bens do impúbere, como se fosse seu proprietário: loco domini (D.XXVI, 7, 27). Pode, portanto, o tutor praticar todos os atos - inclusive alienações a titulogratuito-> que quiser.

Mas, já no direito. pré-clássico, surge uma restrição a esse poder: quando o tutormove uma legis actio (ação da lei) contra o pupilo, o pretor designa, para proteger os inte-resses do impúbere no pleito judicial, e somente para isso, um outro tutor; o tutor praeto-rius.

40 Solazzi, Le Azioni del pupillo e contro ilpupillo per i negozi conclusi daI More, in Seritti di DirittoRomano, I, p. 393 e segs.,Napoli, 1955(nomesmo sentido, Schulz, Classical Roman Law, n° 301, p.175), acbaqueos textos que·aludemaessasactiones utiles (D. XXI, 2, 4,1; eD. XXVI, 7, 9, pr.) sãomterpolados,

DIREITO ROMANO 685

No direito clássico, as limitações se avolumam. De início, e graças à atuação daju-risprudência clássica, não pode o tutor dispor, gratuitamente, dos bens do impúbere, amenos que obtenha autorização do magistrado. Nos fms do século II d.C., um senatus-:consulto do tempo de Severo e Caracala (a Oratio Seueri, de 195 d.C.)41 proibiu o tutorde alienar, a título oneroso, os praedia rustica uel suburbana (imóveis rurais) do irnpúbe-re, exceto em casos especiais (como, por exemplo, o de o imóvel estar em ruínas), medi-ante a autorização do magistrado, ou do príncipe.

No direito pós-clássico, uma constituição imperial de Constantinof estende, em335 d.C., essa proibição às alienações, a título oneroso, de imóveis urbanos, bem comode bens móveis preciosos, como, por exemplo, jóias.

Finalmente, no tempo de Justiniano, o tutor está sujeito à vigilância do magistradoinclusive para a prática de atos de gestão de menor importância, como a colocação de ca-pitais ou o recebimento do pagamento de créditos; por outro lado, é nula a alienação debens feita contra aquelas proibições; e mesmo quanto aos atos que o tutor pode praticarsem autorização do magistrado, se danosos ao impúbere, tem este a possibilidade de ob-ter da autoridade judiciária competente a restitutio in integrum.

Com referência às obrigações do tutor, elas podem ser agrupadas em:a) obrigações no início da tutela;b) obrigações durante a tutela; ec) obrigações no término da tutela.No início da tutela, o tutor está obrigado, já no direito clássico, a elaborar o inventá-

rio dos bens do impúbere sob pena de, não o fazendo, seu comportamento ser considera-do doloso, podendo-se provar o valor dos bens do pupilo por qualquer meio, inclusivepelo juramento deste." Demais, o tutor legitimo e o tutor honorário designado por magis-trados municipais (o mesmo não ocorria com o tutor testamentário, pois o escolhido pelopater Jamilias é presumivelmente pessoa honrada e solvável; nem com o tutor honoráriodesignado pelo pretor, em Roma, porque a escolha dele era feita depois de investigações)estão obrigados - obrigação que é disciplinada provavelmente no tempo do imperadorCláudio 44- a prometer, mediante stipulatio garantida por caução, que manterão intacto opatrimônio do impúbere (satisdatio rem pupilli saluam). Na época de Trajano, conce-deu-se ao pupilo uma actio utilis (denominada actio subsídiariaf" contra o magistradoque não exigiu a satisdatio rempupillisaluam, ou que nomeou tutor inidôneo.t" Desde396 d.C.,47 a elaboração desse inventário se torna obrigação legal, devendo processar-se

41 D. XXVII,9, l,pr. a2.42 C. Th. m,30, 3; C. V, 37, 33; e D. V, 72, 4.43 D. XXVI,7, 7, pr.44 Vide,a propósito,Girard, ob. cit., p. 238.45 D. XXVII,8, 1;e Inst., 1,24, 2. Brugi,Dell'azione sussidiaria in Teofilo, 1,24, 2, in Mélanges P. F.

Girara, 1,p. 143e segs., Paris, 1912,defende a tese de queessa denominação não é clássica.46 D. XXVII, 8, 1, 10e 11; e Inst., 1,24, 2.47 C. V, 37, 24.

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na presença do magistrado. No tempo de Justiniano," basta que o inventário se f~ça p~rato público, mas, se o tutor não elaborá-lo, será destituído da tutela e declarado infamis(infame).

D~rante o exercício da tutela, o tutor se obriga a bem gerir °patrimônio do pupilo.E ele deve fazê-lo, já no direito clássico, como um bonus pater familias cuidaria de seuspróprios bens; por isso, é ele responsável não só por dolo, mas tamb.émpor todos os atos4~omissões incompatíveis com um bonus pater famílias (culpa apreciada abstratamente).No direito justinianeu." sua responsabilidade se atenua, pois se passa a exigir que ele ad-ministre os bens do impúbere com o mesmo cuidado com que gere seus próprios bens:portanto, o tutor só responde por dolo ou por culpa leuis in concreto (assim, se o tutor fordisplicente com relação a seus bens, não será responsabilizado se o for também com refe-rência ao patrimônio do pupilo).

No término da tutela, o tutor (ou, se for o caso, seus herdeiros) tem a obrigação deprestar contas ao ex-pupilo, transferindo-lhe todos os direitos e obrigações que, pela ne-gotiorum gestio, adquiriu ou contraiu em seu nome, mas por conta do então tutelado.

E) Ações e garantias contra o tutor

No direito justinianeu - quando a tutela é instituto de proteção ao tutelado (viden° 298) -, as relações entre tutor e tutelado são sancionadas por três meios diferentes:

a) a accusatio suspecti tutoris;b) a actio rationibus distrahendis;c) a actio tutelae (directa, em favor do tutelado; contraria, em favor do tutor).Deles, os dois primeiros são mais antigos; o terceiro - que é um iudicium bonae fi-

dei - é mais recente.Para melhor compreensão dessa matéria, examinemos, a seguir, como é que surgi-

ram e evoluíram a accusatio suspectí tutoris, a actio rationibus distrahendis e a actio tu-telae.

Segundo tudo indica, originariamente,tendo em vista o caráter arcaico da tutela(pelo qual era ela um direito do tutor, e não instituto de proteção ao tutelado), não surgi-am entre tutor e tutelado obrigações, não sendo, portanto, aquele responsável por danoscausados aos bens deste.

Mas, já na Lei das XII Tábuas," encontram-se duas ações para proteger o pupilocontra atos fraudulentos do tutor:

a) a accusatio suspecti tutoris; e

48 A propósito, vide Cuq, Manuel des Institutions Juridiques des Romains, 2" ed., p. 214.49 Essa matéria é muito controvertida, pretendendo vários autores (assim, por exemplo, Bonfante, ob.

cit., p. 623 e segs.) que o tutor, no direito clássico, só respondia por dolo. Mas, como observa Monier(Manuel Élémentaire de Droit Romain, I, 6" ed., n° 234, p. 328), há contra essa tese textos (assim, Mo-saicarum et Romanarum legum colatio, X, 2, 3) díficeis de ser afastados.

50 Vide Monier, ob. cit., n° 235, p. 329.51 Tab. vm, 20 a e 20 b (ed. Riccobono).

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b) a actio rationibus distrahendis.A accusatio suspecti tutoris, que podia ser intentada durante a tutela, se destinava a

afastar o tutor suspectus (isto é, o tutor que cometera o crimen suspecti tutoris - gestão,dolosa, malversação ou fraude com relação ao patrimônio do pupilo). Essa accusatio-que, no direito pré-clássico e possivelmente também no direito clássico.r' se utilizavaapenas contra o tutor testamentário - era uma ação penal pública (daí a denominação ac-cusatio), e, portanto, possível de ser movida por qualquer pessoa." exceto pelo tutelado.No direito justinianeu," até o magistrado, ex officio, podia iniciá-Ia.

Por outro lado, a accusatio suspecti tutoris, já no direito clássico, se processava ex-tra ordinem, e o magistrado, em vez de proferir uma sentença, emitia um decretum.

No direito clássico, a accusatio suspecti tutoris - que acarretava a infamia (viden° 86, D) - era utilizada quando havia, por parte do tutor, gestão dolosa, malversação oufraude com referência ao patrimônio do tutelado. Se procedente a accusatio, o tutor testa-mentário (que, a princípio - como ocorria com o tutor legítimo -, era inamovível) não eradestituído das funções de tutor, mas apenas suspenso delas, que passavam a ser exercidaspor um tutor praetorius" Somente com um senatusconsulto posterior à época de Cláu-dio,56é que o tutor testamentário deixou de ser inamovível, pois passou a ser substituídodefinitivamente, quando afastado de suas funções, por um tutor dativo (isto é, nomeadopelo pretor).

Ainda no principado, segundo parece," surgiu, ao lado da accusatio suspecti tuto-ris, uma postulatio, que se destinava a afastar o tutor suspectus, sem que incorresse eminfamia, quando fosse ele negligente ou omisso na gestão dos bens do impúbere.

No direito justinianeu, fundem-se o accusatio suspecti tutoris e essa postulatio, esurge uma accusatio suspectí tutoris que pode ser intentada contra o tutor que age dolosaou culposamente, acarretando a infamia apenas na hipótese de dolo;58demais, por meiodela, qualquer espécie de tutor pode ser destituído, sendo substituído por um tutor dativo.

Já a actio rationibus distrahendis - que era uma ação penal privada -, a princípio,provavelmente.i" só podia ser intentada contra o tutor legítimo quando este subtraísse

52 Vide Solazzi, Sul! "amo rationibus distrahendis", in Scritti di Diritto Romano, Il, p. 304, Napoli,1957; e Kaser, Das Rõmische Privatrecht, I, § 88, p. 308, München, 1955.

S3 No direito clássico, mesmo as mulheres ligadas por parentesco, ou até por afeição, podiam intentá-Ia;provavelmente, apenas no direito justinianeu, éque se estendeu essa faculdade a qualquer mulher, ain-da que estranha ao tutelado.

54 CE Bonfante, ob. cit., p. 613.55 CE Bonfante, ob. cit., p. 615.S6 Gaio, Institutas, 1, 182.57 Nesse sentido, Bonfante, ob. cit., p. 615.S8 C. V, 43,9 (interpolado).59 Nesse sentido, entre outros, Jõrs-Kunkel, Rõmisches Recht, 2" ed., § 191, 1, p. 302.

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bens do pupilo. Essa actio especial se explica pelo caráter arcaico da tutela: o tutor, porsubtração de bens do tutelado, não podia ser punido porfurtum; daí surgir a aetio rationi-bus distrahendis, mediante a qual o tutor era condenado a pagar o dobro do valor da coisaretirada do patrimônio do pupilo. Posteriormente, quando se admite que o tutor possa co-meterfurtum contra o tutelado, este passa a dispor contra o tutor de duas ações: da actiorationibus distrahendis e da aetio furti'"

Os autores não são acordes em que, nos direitos pré-clássico e clássico, a actio ra-tionibus distrahendis fosse passível de ser intentada apenas durante a tutela."! ou somen-te no seu término,61ou durante a tutela e depois dela.63 Para os que defendem a tese deque, exclusivarnenteounão, aaetio rationibus distrahendis podia ser movida contra o tu-tor durante a tutela, o pretor designava um tutor praetorius para intentá-Ia em favor doímpúbere." . .

Por outro lado, e esse princípio persiste até no direito pós-clássico, é o tutor legíti-mo inamovível, razão por que, ainda que condenado na actio rationibus distrahendis,não era ele destituído das funçõesde tutor.mas suspenso do exercício da tutela pelo ma-gistrado que o proibia de gerir o patrimônio do pupilo.f

No direito justinianeu,aaetio rationibus distrahendis se transforma em ação mista(vide n° 131, D); demais, pode ela ser intentada contra qualquer espécie de tutor, mas ape-nas após o término da tutela,66

***

Com a evolução da tutela, o tutor - que, como vimos, a princípio não era obrigado aadministrar os bens do pupilo, tanto assim que só respondia por gestão dolosa, malversa-ção, fraude ou subtração de bens - passa, a pouco e pouco, a ter o dever de gerir o patri-mônio do impúbereno' interessedeste, que, assim, vai poder exigir do tutor, ao términoda tutela, prestação de' contas.

Daí ter surgido, nos fins da república, a adio tutelae, que permite ao pupilo defesamais ampla contra o tútor, r

A aetio tuteJae era um iudicium bonae fidei (vide n° 131, C) que, do direito clássicoao justinianeu, acarretava a infamia.

6061

Cf. Perozzi (lstiAtzimúdi Diritto-Romano, I; 2" 00., reintegrazione, 1949,§ 59, p. 497 e segs.Assim; SoIazzi, Tnz"ractiormionibus distrahendis" e "I'actio tutelae", in Scritti di Diritto Romano,lI, p. 287, NapoIi, 1957.Nesse sentido, Kascr, Das Rõmische Prtvatrecht, I, § 88, p. 309, München, 1955.Monier, ManueIÉlimentaire de Droit Romain, 1,6" ed., n° 234, p. 327 (inclusive nota 8).E isso com basean Gaio, Institutos, I, 184.A propósito, .••• SoIazzi, Sull'actio rationibus distrahendis, in Scritti di Diritto Romano, lI, p. 207,Napoli, 1957.Vide, a respciIo, Monier; ob. cít., I, n° 235, p. 329 .. '

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66

DIREITO ROMANO 689

De início, a actio tutelae podia ser intentada apenas contra o tutor dativo; posterior-mente, alcançou o tutor testamentário, mas é incerto se, já no direito clássico, podia sermovida contra o tutor Iegítímo." .

Por outro lado, a princípio, a actio tutelae apenas era utilizada contra o tutor queefetivamente administrasse os bens do pupilo; logo, porém, por atuação da jurisprudên-cia, se alargou o sentido de gerere (gerir, administrar), e pode ser réu, nessa actio, o tutorque tratasse de negócio, mínimo que fosse, do pupilo.f" Mas o tutor, que se omitisse noadministrar o patrimônio do impúbere (tutor cessans], estava fora do alcance da actio tu-telae; é certo que, com relação ao tutor dativo, isto foi obviado pelo pretor que, ao no-meá-lo, o obrigava a iniciar a administração dos bens do pupilo; quanto ao tutortestamentário, no tempo de Marco Aurélio (antes, isto só se verificava mediante decisõesespeciais dos cônsules), estabeleceu-se que esse tutor, desde que não se tivesse escusadoda tutela, era responsável pelos danos decorrentes da não-administração (perieulum ces-sationis - risco da inércia), e contra ele se concedia, não a actio tutelae direeta, mas umaaetio tutelae utilis (vide n° 13I, A, in fine).

A aetio tutela e somente podia ser intentada no término da tutela, e por meio dela oex-pupilo visava a obter do ex-tutor:

a) que lhe prestasse contas;b) que lhe transmitisse as coisas adquiridas com seus bens, durante a tutela; ec) que o indenizasse dos danoscausadospor seu comportamento contrário ao exigido.Por sua vez, o ex-tutor dispunha, contra oex-pupilo, da aetio tutelae contraria,69

para a obtenção:a) do ressarcimento das despesas feitas para o então pupilo;b) do pagamento dos honorários que, porventura, o testador (se se tratasse de tutor

testamentário) ou o magistrado (se se tratasse de tutor dativo) lhe tivesse concedido; ee) da liberação da responsabilidade pelos débitos assumidos com terceiros, para o

então pupilo."

67 Kaser, Das Rõmische Privatrecht, I, § 88, p. 310, München, 1955, acha possível essa extensão aindano direito clássico; Solazzi, Tra "l'.actio rationibus distrahendis" e "I'.actio tutelae", tn Scritti di Dirit-to Romano, lI, p. 293, Napoli, 1957, porém, entende que, no direito clássico, o tutor legítimo prestavacontas, não por meio da actio tutelae, mas em prqcessoextra ordinem,

68 Cf. D. XXVI, 7, 5, 1 a 3. Assim, por exemplo, considerava-se que fizera ato de gestão o co-tutor queentregasse a administração dos bens do impúbere a outro co-tutor,

69 Cf. Kaser, ob. cit, r, § 88, p. 411. Como salienta Volterra, Instituzioni di Diritto Privato Romano, p. 107,alguns autores, sem fundamento, pretendem que a actio tutelae contraria seja criação justinianéia.

70 Podia ocorrer que alguém, de boa ou de má-fé, sem ser tutor, se conduzisse como se o fosse ifalsus tu-tor), - a isso os jurisconsultos clássicos davam a denominação de protute/a. Seus atos não tinham efi-cácia jurídica, e os terceiros de boa-fé que com ele houvessem feito operações tinham a possibilidadede obter do pretor a restitutio in integrum (vide'n° 132, D). Por outro lado, os romanistas modernos, emgeral, .entendem que a actio protutelae e o contrarium iudicium tutelae, a que aludem textos do Diges-to e do Código, e concedidos; respectivamente, em favor do impúbere e do protutor para as relaçõesestabelecidas entre ambos, são criações justinianéias; no direito clássico, havia, para isso, a actio ne-gotiorum gestorum em favor do impúbere contra o protutor, e o contrarium iudidum negotiorum ges-torum em favor do protutor confIa o impúbere:· ' '

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Além dessas ações e dos meios de proteção a que aludimos na letra D, atrás (como asatisdatio rem pupilli saluam e a actio subsidiaria), o pupilo, com relação a seu créditocontra o tutor, era garantido pelo priuilegium inter personales actiones, graças ao qualele preferia a todos os credores quirografários do tutor; e, ao menos desde a época deConstantino," por hipoteca tácita sobre os bens do tutor, a partir da data em que se inicia-ra a tutela. Demais. Justiniano, segundo parece,72 admitiu que o pupilo reivindicasse,como se ele tivesse adquirido, os imóveis comprados, com seus bens, pelo seu tutor.

F) Pluralidade de tutores

Era possível que o impúbere tivesse, ao mesmo tempo, vários tutores. Isso ocorriaquando eram dois ou mais os parentes chamados à tutela legítima, ou os tutores designa-dos em testamento (tutores testamentários) ou os nomeados pelo magistrado (tutores da-tivOS).73

Verificada a pluralidade de tutores - e não havendo o testador (em caso de tutor tes-tamentário) ou o magistrado (na hipótese de tutor dativo) determinado a divisão, entre osco-tutores, do exercício da administração dos bens do pupilo -, todos eles, em princípio,deviam exercer conjuntamente a tutela, quer por meio da auctoritatis interpositio, quermediante a negotiorum gestio. É certo, porém - como observa Lecomte" -, que essa ad-ministração em comum, pelas dificuldades práticas que acarretava (assim, por exemplo,um dos co-tutores podia opor-se à realização de um negócio aprovado por todos os demais,impedindo-a), não era bem vista no direito clássico, razão por que o pretor propendeupara colocar a gestão dos bens do pupilo nas mãos de um só dos co-tutores, ou dividindoentre os co-tutores a gestão do patrimônio do impúbere, obrigando-os a escolher aqueleque administraria, ou ele mesmo dividindo entre os co-tutores a gestão do patrimônio doimpúbere, o que era conveniente quando havia bens em lugares diversos." Demais, ostextos demonstram que, no direito clássico (ou ao menos no direito pós-clássico a partirdo século V d.C.) - ainda quando o pretor não intervinha -, bastava, em se tratando de tu-tela testamentária, que um dos co-autores assistisse o menor, dando-lhe a auctoritas, paraque o ato praticado fosse válido; e, no tempo de Justiniano, o mesmo se observa com rela-ção às tutelas legítima e dativa.

Quanto à responsabilidade dos co-tutores," é preciso distinguir:a) tutores gerentes (isto é, os que efetivamente administram o patrimônio do pupilo);

71 C. Th. m, 30,1; C. V, 37, 20.72 D. XXVI, 9, 2, qae os romanistas modernos, em geral, consideram interpolado,73 Sobre essa matéria, que ainda não está devidamente estudada, vide Lecomte, La p/uralité des tuteurs

en Droit Romain; Paris, 1928; Lévy, Haftung mehrerer Tutoren, in Zeitschrift der Savigny-Stiftungfor Rechtsgeschidae, Rõmanistiche Abteilung, XXXVII (1916), p. 14 e segs.; e Bonfante, Corso diDiritto Romano, I (Diritto di Famiglia), ristampa da 13ed., p. 633 e segs., Milano, 1963.

74 Ob, cit., p. 74.75 Jõrs-Kunke1,Rõlllisches Recht, 23 ed., § 190,3, p. 302 e segs,76 Para pormenores, viIJe Bonfante (que, em linhas gerais, segue Lévy), ob. cit., p. 633 e segs,

DIREITO ROMANO 691

b) tutores cessantes (ou seja, aqueles que, sem determinação do testador ou do ma-gistrado, se omitem com referência à administração dos bens do pupilo); e

c) tutores não-gerentes (aqueles que legitimamente foram eximidos da gerência dopatrimônio do impúbere).

Quando todos os tutores são gerentes, ou cessantes, são eles responsáveis solidá-fios; se alguns dos co-tutores são gerentes, e outros cessantes, a princípio estes não sãoresponsáveis, e, mesmo mais tarde, quando passam a ter responsabilidade, somente res-pondem subsidiariamente depois dos co-tutores gerentes; demais, quando um (ou algunsdos co-tutores) não é gerente, porque legitimamente foi eximido da gerência (assim, porexemplo, quando o testador nomeava alguém tutor, apenas a título de deferência, pois oisentava dos encargos da função - era o tutor honoris causa datus; ou quando o magis-trado eximia alguns dos co-tutores da administração dos bens do pupilo), é ele, no direitoclássico, isento de responsabilidade, mas, no direito justinianeu, passa a responder subsi-diariamente.

Por outro lado, segundo parece," no direito clássico, a solidariedade entre osco-tutores é eletiva quando contra eles é intentada a actio tutelae (assim, movida a actiotutelae contra um dos co-tutores, não é possível intentá-Ia, posteriormente, contra outro),mas é cumulativa quando contra eles é intentada a actio rationibus distrahendis (por isso,essa actio podia ser movida, pelo todo, contra cada um dos co-tutores solidários); no di-reito justinianeu, quer se trate de actio tutelae, quer de actio rationibus distrahendis, asolidariedade é, em geral, eletiva,

Quando a solidariedade é eletiva, o co-tutor contra o qual se intentava a ação dispu-nha, já no período clássico, do beneficium cede~darum ac~i01:u"?8(que: p~ré~, ~ã.o eraconcedido aos co-tutores cessantes) e do beneficzum excussionts; no direito justmianeuacrescenta-se em favor de qualquer dos co-tutores o beneficium diuisionis (vide n° 197,s.un

G) Cessação da tutela dos impúberes

A tutela dos impúberes cessa para o pupilo quando ele falece, ou sofre capitis demi-nutio, antes de atingir a puberdade, ou quando - e essa é a hipótese mais comum - ele se

torna púbere. . .Já para o tutor, a tutela cessa não só nestes casos, mas em vários outros, cujos pnn-

cipais são os seguintes:a) quando o tutor morre, ou sofre capitis deminutio (maxima e media, e, em se tra-

tando de tutela legítima, também mínima);b) quando se verifica incapacidade superveniente para ser tutor, ou há, nas hipóte-

ses em que é admissivel, a excusatio a coepta tutela (escusa de tutela iniciada);c) quando se dá a destituição do tutor suspectus; e

I

77 Essamatéria não é pacífica entreos autores. Vide, apropósito, Lecomte, ob. cit., p. 158 e segs.78 Sobre ambos esses beneficia; vilJenol97, B, m.

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d) quando - em se tratando de designação de tutor testamentário sob condição ou atermo resolutivo - ocorre a condição ou o termo.

300. A tutela das mulheres-Até o século IV d.e., a mulher sui iuris, no direito ro-mano, enquanto impúbere, está sujeita à tutela dos impúberes; alcançada a puberdade, àtutela das mulheres púberes (tutela mulierumv, que é perpétua, e da qual, desde temposremotos, apenas estavam isentas - segundo Gai079

- as vestais, in honorem sacerdotii(em honra do sacerdócio). . . .

Se, no direito pré-clássico, a tutela mulierum se explica pela estrurura familiar pn-mitiva (vide n° 299), no período clássico ela não encontra justificativa que não seja espe-ciosa. Daí estas palavras de Gaio:

fi'eminas uero perfectae aetatis in tutela essefere nulla pretiosa ratio suasisse uide-tur; nam quae uulgo creditur, quia leuitate animi plerumque decipiuntur et aequum erateas tutorum auctoritate regi, magis speciosa uidetur quam uera (Parece que nenhuma ra-zão séria aconselha se sujeitem à tutela as mulheres púberes, porquanto aquela que co-mumente se aceita, segundo a qual são elas muitas vezes ludibriadas por causa dafranqueza de espírito, e por iSS9mesmo é eqüitativo submetê-Ias à auctoritas do tutor,

, ., ". '80antes parece especiosa do que verdadeira) .

. Em virtude disso - e a história da tutela mulierum, já o afirmou Bonfante." não é ada sua transformação.mas, sim, da sua dissolução, por não se adaptar.esse instituto às fi-nalidades de uma sociedade mais evoluída -, existe, no período clássico, uma série deprincípios que se aplicam a essa tutela e não à dos impúberes, e que mostram o seu pro-cesso de degenerescência.

Assim, na tutela mulierum, há várias espécies de tutores, alguns dos quais escolhi-dos pela mulher. Além do tutor testamentário (que remota à Lei das XII Tábuas, e que eradesignado, em testamento, pelo pater familias da mulher), d~ tutor legítimo (segundo aLei das XII Tábuas, os agnados, e, na falta destes, os gentiles) e do tutor dativo (que sur-giu depois dos dois primeiros, e que era nomeado pelo magistrado, com base nas Leis Aii-lia e luZia et Titia), há ainda:

79 Institutas,1, 145, onde Gaio atribui a exceção à Lei das XII Tábuas. Apesar desse texto, Volterra (Isti-tuzioni di Diritta Privato Romano, p. 108, nota 1) entende que a vestal não podia ser considerada suiiuli)",.porque submetida àpotestas do Pontifex Maximus,

80 Institutos,1, 190.81 Corso di Diritto Romano; I, Diritto di Famiglia, ristampa da Ia ed., p. 560 e segs., Milano, 1963.82 O tutor legítimo podia ser um impúbere, um louco ou um mudo. Nesses casos, a mulher; para a prática

de certos atos (assim, por exemplo, a constituição de dote), podia solicitar ao pretor urbano lhe no-meassemn tutor, o que, porém, não fazia cessar a tutela legítima (a propósito, vide Gaio, Institutas, I,178 a 181; e Ulpiano, Liber singularis regularam; Xl, 20 e 21). Demais, por meio de interpretação daLei das XII Tábuas, a tutela legítima da liberta era concedida ao seu manumissor e aos filhos dele, e ada emancipada a quem a emancipara (em geral, o pater familias).

DIREITO ROMANO 693

a) o tutor cessicius: aquele a quem o tutor legítimo cede, pela in iure cessio, a tutela;com a morte ou a capitis deminutio do tutor cessicius, a tutela retoma ao tutor legítimo; e,se é este quem falece ou sofre capitis deminutio, o tutor cessicius perde a tutela, que pas-sa ao agnado que se encontra em grau mais próximo da mulher depois daquele que dei-xou de ser o tutor legítimo;83

b) o tutor optiuus: aquele que a mulher - em virtude de concessão que o marido, quetem sobre ela a manus, lhe faz em testamento - escolhe, ao se tomar sui iuris com a mortedo esposo; conforme o marido tivesse, no testamento, outorgado a ela a faculdade de to-mar por tutor quem quisesse, podendo mudá-lo quantas vezes o entendesse, ou, então,apenas uma ou duas, dizia-se que a opção era plena (optio plena), ou limitada (optio an-gusta);

c) o tutor praetorius: o designado pelo pretor, a pedido da mulher, para assisti-Ia naprática de ato em que não poderia fazê-lo seu tutor permanente (assim, por exemplo, emjuízo, quando ela litigasse com o seu tutor permanente); e

d) o tutor fiduciarius: aquele que a mulher obtém por meio de expediente, criadopelos jurisconsultos, com base nafiducia: a mulher, com o assentimento de seu tutor, esem se casar, se submetia, mediante a coemptio (dita coemptio tutelae euitandae causa), 84à manus de um homem que, em virtude de um pactum fiduciae, a mancipava (isto é, avendia solenemente) a quem ela quisesse; este, recebendo-a como in mancipio, a manu-mitia uindicta (vide n" 83, D, 1, a), tomando-se, então, seu tutor fiduciarius+:

Por outro lado, o tutor da mulher, ao contrário do que ocorre na tutela dos impúbe-res, não administra os bens dela (por isso, entre a mulher e seu tutor não há as ações, de-correntes da tutela, que existem entre o tutor e o impúbere), mas se limita a dar aauctoritas'" a certos atos, a saber:

a) apropositura de uma legis actio (ação da lei), ou, no processo formulário, de umiudicium legitimum;87

b) os atos jurídicos que se realizam pela utilização de urna legis actio (assim, a tniure cessio e a manumissio uindicta);

c) contrair obrigação;d) realizar qualquer negócio de direito civil (iuris ciuilis), como, por exemplo, a ac-

ceptilatio e a constituição de dote; .e) alienar res mancipi; ej) dar-se in manum (conuentio in manum).

83 Cf.Ulpiano, Liber singularis regularum, XI, 6 e 7.84 Cf. Gaio, Institutos, I, 114 a 115.85 Gaio, Institutos,1, 115.86 O tutor da mulher somente atua mediante a auctoritatis interpositio, e não a negotiorum gestio.87 A mulher podia, sem a auctoritas do tntor, agir em juizo quando se tratasse de iudicium imperio conti-

nens tyide nota 442), ou de processo extra ordinem (extraordinário).

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Do exame dessa relação.f verifica-se que a mulher necessita da auctoritas do tutorpara a prática dos antigos atos iuris ciuilis (assim, a legis actio, o iudicium legitimum, aobligatio, o negotium ciuile, a alienação de res mancipi, a conuentio in manum), mas nãopara a dos atos que, a pouco e pouco, no direito clássico, foram sendo introduzidos peloius honorarium e pelo ius gentium, e que são, sem dúvida, os mais numerosos e impor-tantes. O que - aliado à circunstância de que, se o tutor (com exceção do legítimo) se re-cusar a dar a auctoritas para os atos em que a mulher dela precisa, o magistrado podecompeli-lo a dá-Ia - 6 sinal evidente de que a tutela mulierum, no direito clássico, está emfranca decadência. Aliás, a isso favorecem, também, as restrições que, no principado,surgem à tutela das mulheres púberes: Augusto, nas leis caducárias, concede o ius libero-rum (peloqual amulher se livra dessa tutela) às ingênuas que dessem à luz três filhos, e àslibertas que tivessem quatro; e, no tempo de Cláudio,89 desaparece a figura do tutor legíti-mo, na tutela mulierum.

Nos fins do século IV d.C.já não se encontram vestígios" da tutela mulierum." daqual não há qualquer referência no Corpus luris Ciuilis.

301. A curatela dos loucos - Ao estudarmos a alienação mental como fator de in-capacidade de fato (vide n° 94, C), salientamos que os romanistas divergem quanto aosentido a atribuir aos três termos que mais comumente designam, nas fontes, os alienadosmentais: furiosi, dementes e mentecapti. Ainda hoje, não se sabe, com certeza, a diferen-ça de sentido entre eles.92 A opinião mais comum é a de que osfuriosi eram os loucoscom intervalos de lucidez; os dementes (ou mentecapti) os que sofriam de loucura contí-nua semtais intervalos.

Os autores, que seguem essa explicação." entendem que, no direito pré-clássico,tendo em vista os termos da Lei das XII Tábuas,94 somente havia a curatela dosfuriosi;

88 Essa relação nos é apresentada, em suas linhas gerais, por Ulpiano, Liber singularis regularum,XI,27.

89 Gaio,lnstitutas, I, 171.90 Sobre os últimos vestígios da tutela mulierum, vide Puchta, Cursus der Instuutionen, vol. II (System

und Geschiehte des Rõmischen Privatreehts), 8" ed., cuidada por Krueger, § 302, p. 427, nota q, Leip-zig, 1875.

91 Textos dessa época e de período posterior a esse aludem, corri referência às províncias, à sobrevivên-cia, pelo costume, de uma espécie de tutela - a quasi tutela -, da qual não há qualquer referência noCorpus Iuris Ciuilis, mas que era mencionada nas Institutas de Gaio (1, 193): Apud peregrinos non si-militer ut apud nos in tutela sunt feminae; sed tamen plerumque quasi in tutela sunt; ut eece lex Bith-ynorum, si quid mulier contrahat, maritum auctorem esse iubet aut filium eius puberem (Entre osperegrinos as mulheres não estão sob tutela como entre nós; mas, em geral, estão sob uma espécie detutela - quasi in tutela -; assim, a lei dos bitínios determina que, para a mulher contrair obrigação, omarido, ou um filho dela, púbere, deve dar a auetoritas).

92 Sobre as diferentes teses a respeito, vide Bonfante, Corso di Diritto, I (Diritto di Famiglia), ristampada ]"ed., p. 643 e segs., Milano, 1963.

93 rufe, por exemplo, Girard, Manuel Élémentaire de Droit Romain, 8" ed., p. 242.94 Tab. V, 7 a 7a (ed. Riccobono).

DIREITO ROMANO 695

no direito clássico é que, graças ao pretor, teria ocorrido a extensão da curatela aos de-mentes (ou mentecaptii.

Modernamente, no entanto, vários romanistas'" se inclinam para outra tese: no di-reito pré-clássíco, a palavrafuriosus designava qualquer alienado mental; portanto, a eu-ratela [uriosi abrangia todas as espécies de alienação mental, não tendo havido qualquerextensão dela, no direito clássico, aos dementes, que nela já incidiam desde os temposmais remotos; no direito pós-clássico, surgiu o conceito de intervalo de lucidez, decor-rendo daí a distinção entre os iuriosi e os dementes (ou mentecapti).

Ainda segundo esses autores, no direito clássico, surgida a curatela, sem interdiçãojudicial do louco (ao contrário do que ocorre no direito moderno), mas em conseqüênciada simples manifestação da loucura, o alienado mental ficava sob curatela até que se cu-rasse ou morresse, não se levando em consideração os intervalos de lucidez. No direitojustinianeu, Justiniano, decidindo controvérsia existente entre os jurisconsultos do perío-do pós-clássico," determinou que, nos intervalos de lucidez, os atos praticados pelo lou-co eram válidos, ficando em suspenso, durante esses espaços de tempo, a curatela; mas,cessando o intervalo de lucidez, o louco recaía, ipso iure, na curatela.

Por outro lado, no direito pré-clássico, a curatela se exerce em favor não do louco,mas do curador, que, sendo em geral o parente agnado mais próximo deste, será seu her-deiro depois de sua morte, e, portanto, tem interesse em bem conservar-lhe o patrimônio.No direito clássico, a curatela se transforma em instituto de proteção ao próprio louco, ra-zão por que - como sucedeu com a tutela - ela passa a ser um encargo público (munus pu-blicum), aplicando-se ao curador as regras da tutela quanto às escusas, aos motivos dedestituição e à caução (esta não se aplica, porém, ao curador indicado no testamento dopater familias, por se presumir que este somente proporia, para exercer a curatela, pessoaidônea).

No direito pré-clássico, em face da Lei das XII Tábuas, apenas havia a curatela legí-tima: o curador do louco seria seu parente agnado mais próximo, e, na falta de agnados,os gentiles. No direito clássico, no entanto, até porque nem sempre os parentes preenchi-am os requisitos para ser curador, a curatela legítima é substituída pela curatela dativa: opretor, por via de regra, nomeia o indicado, para isso, no testamento dopater famílias dolouco; não havendo testamento, ou nele não existindo cláusula a esse respeito, era nome-ado o parente aguado (na falta de aguados, os gentiles) mais próximo, se o pretor o jul-gasse apto a bem exercer a curatela; se isso não ocorresse, ele designava quem lheparecesse ter tal aptidão. E, embora o curador - parente, ou não, do louco - seja sempre

95 A propósito, vide Solazzi, I lucidi intervalli del furioso, e Furor vel dementia, in Scritti di Diritto Ro-mano, Il, pp. 545 e 623 e segs., Napoli, 1957, respectivamente; Bonfante, ob. cit., p. 648 e segs.; e Ra-beI, Grudzüge des Rõmischen Privatrechts, Enzyklopãdie der Rechtswissensehaft de Holtzendorf; 1,7" ed., §23, 2,p. 426, München-Leipsig-Berlin, 1915.

96 Nesse sentido, Solazzi (l/ucidi intervalli del furioso, in Scritti di Diritto Romano, Il, p, 543 e segs.,Napoli, 1957), para quem os antiqui (antigos), a que alnde Justiniano no C. V, 70, 6, pr., e no C. VI, 22,9, são os jnristas pós-clássicos, e não os clássicos, como pensam outros autores.

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nomeado pelo pretor, se é parente continua a dizer-se que a curatela é le~ítima; s~ nã~,que a curatela é dativa. Essa distinção entre curatela legítima e curatela dativa, que.e ~alsnominal do que verdadeira, somente vai desaparecer, segundo parece, com Justiniano,época em que todos os curadores são dativos.

O curador administra os bens do louco'" pela negotiorum gestio, porquanto, nãotendo este vontade, não pode aquele valer-se da auctoritatis interpositio. A princípio, ocuradortem os mais amplos poderes sobre os bens do curatelado, podendo até aliená-los;mas, já no século m d.C., esses poderes, à semelhança do que se deu na tutela dos impú-beres, estão restringidos.

As obrigações recíprocas entre curador e curatelado decorrentes da negotiorumgestio são sancionadas pelas actiones negotiorum gestorum (ações de gestões de negóci-os), discutindo os autores se eram elas diretas ou úteis.98

302. A curatela dos prõdígos'" - Como já salientamos anteriormente (vide n° 94,D), primitivamente só era pródigo o que gastava desordenadamente os bens que, na qua-lidade de herdeiro legítimo, recebera como herança de seu pai; protegiam-se, assim, pormeio da prodigalidade, apenas os bens familiares. No direito clássico, o conceito se am-plia: pródigo passa a ser aquele que gasta desordenada e loucamente seus haveres, qual-quer que seja a procedência deles. Dessa modificação do conceito de prodigalidadedecorreu a seguinte conseqüência: se, a princípio, somente os ingênuos podiam ser inter-ditados como pródigos, pois apenas eles recebiam, por herança, a título de herdeiros legí-timos, bens familiares, no direito clássico, como a noção de prodigalidade abrange bensde qualquer origem, podem ser declaradas pródigas as demais pessoas, como, por exem-plo, os libertos e os filhos emancipados (que não recebem, a título de herdeiro legítimo,bens familiares).

Ao contrário do que ocorre com o louco (que o é em virtude de doença), para que al-guém se considere, juridicamente, pródiga é necessário que seja interditado 100 - e essa in-terdição remonta à Lei das XII Tábuas'?' - por decretum (decreto) do magistrado com-petente (em Roma, o pretor), resultando, daí, ,as duas conseqüências que se seguem:

a) a pródigo perde a administração de seus bens (a qual passa a seu curador), e o iuscommercii;l02 e

97 Alguns autores (assim, Girard, ob. cit, p. 243) julgam que, a princípio, o curador cuidava da pessoa edos bens do louco; mais tarde, apenas dos bens. Outros (como Bonfante, ob. cit., p. 650), porém, en-tendem que sempre a missão do curador foi prevalentemente patrimonial, sendo o louco deixado aoscuidados dos parentes próximos ou do cônjuge (e, em casos extremos, seria segregado da sociedade).

98 Vide, a propósito. Cuq, Manuel des Institutions Juridiques des Romains, 2" ed., p. 224, nota 2.99 Indicação bibJiogláfica em Jõrs-Kunkel, Rõmisches Recht, 2" ed., § 193, p. 205, nota 2.100 A.fórmula c1ássicado decretum de interdição se encontra em Paulo, Sententiarum adfilium libri, Ill, 4

a 7.101 D.XXVII, 10.13; e Inst., I, 23,3.102 É por isso que opódigo - que pode casar - não pode fazer testamento.

I-j

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b) tomando-se relativamente incapaz, o pródigo não pode praticar, por si só, atosque lhe diminuam o patrimônio, mas apenas os que o aumentem (vide n° 95).

Era designado curador do pródigo o agnado mais próximo, e, na falta de agnados,os gentiles. Na ausência de ambas essas categorias (e, portanto, de curator legitimus), ca-bia ao magistrado - que podia levar em consideração nome indicado, em testamento,

• 103 idô ( l. . )104pelo pater familias do Incapaz - nomear pessoa I onea curator tonorartus paraexercer a curatela do pródigo.

O curador do pródigo - que tinha poderes semelhantes aos do curator furiosi - ad-ministrava-lhe os bens pela negotiorum gestio, e não mediante a auctoritatis interposi-tio.IOS

Extinguia-se a curatela do pródigo quando este falecesse, ou quando deixasse de serincapaz por prodigalidade. Na última hipótese, embora um texto atribuído a Ulpiano106

. ) ioria d to 107 tdeclare que a curatela cessa ipso iure (automaticamente , a marona os au res en en-de que era necessário que o magistrado revogasse o decretum pelo qual se interditara opródigo.l'"

As obrigações recíprocas (entre curador e curatelado) que resultavam dessa curate-Ia eram sancionadas pelas ações negotiorum gestorum (ações de gestões de negócios).

303. A curatela dos púberes menores de vinte e cinco anos - Somente no direitopós-clássico é que se encontra, no direito romano, a curatela geral e permanente dos pú-beres menores de 25 anos. 109

Longa foi a evolução - iniciada nos fins do período pré-clássico - por que passouesse instituto.

Até o início do século II a.C., alcançada a puberdade, o homem se tomava plena-mente capaz, e a mulher passava da tutela ao impúbere para a tutela mulierum. Ora, se

103 Cf. D. xxvrr, 10, 16, pr.; e D. XXVI, 3, 1,3. Assim sendo, não existia, propriamente, a figura docurador testamentário. Voei (Istituzioni di Diritto Romano, 3" ed., § 25, p. 120), porém, admite a exis-tência, no direito justinianeu, de curatela testamentária. Contra a admissão de curatela testamentária nodíreítojustinianeu se manifesta Tomulescu, Justinien et les Prodiques (quelques Probiémes), in Accade-mia Romanistica Constantiniana, Atti 10 Convegno Internazionale, pp. 385 e 386. Perugia, 1975.

104 D. xxvn, 10, 13.105 Não encontra base nas fontes - como acentuam Jõrs-Kunkel, Rõmisches Recht, 2' ed., § 193, p. 305,

nota 4 - a opinião de que os atos realizados pelo pródigo são válidos se acompanhados do consenti-mento de seu curador.

106 D.xxvn, 10, I, pr.107 Tomulescu - Justinien et le Prodiques (quelques Problêmesi, in Accademia Romanistica Constanti-

niana, Atti 10Convegno Internazionale, pp. 379 a 389, Perugia, 1975 - sustenta que, no direito justini-aneu, não só não havia necessidade de decreto de interdição, sendo suficiente a nomeação do curador,mas também não era necessário decreto parafazer cessar a interdição, o que, aliás, já ocorria DO direitoclássico.

108 Nesse sentido, entre outros, Bonfante, ob. cit., p. 660.'109 Bibliografia em Bóufante, ob. ca, p. 667, nota I.

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numa sociedade pouco evoluída a inexperiência dos jovens está protegida pelo númerodiminuto de negócios jurídicos admissíveis e pela publicidade de que eles se revestem, omesmo não ocorre - e isso se dá, em Roma, a partir do século II a.c. - quando o meio so-cial sofre profundas transformações socioeconômicas. Por isso, pouco antes de 191 a.c.,surge a Lei Laetoria, no pela qual, considerando-se que o desenvolvimento intelectual sóse completava aos 25 anos, se punia a circunscriptio adulescentium, isto é, as manobrasdolosas destinadas a prejudicar os homens púberes que ainda não tivessem alcançadoaquela idade. Embora se discuta sobre as sanções criadas por essa lei, a maioria dos auto-res 111 entende que ela concedia um iudicium publicum ou persecutio publica (ação públi-ca) contra o que praticara a circunscriptio adulescentium; e ao menor de 25 anos davauma actio priuata (ação privada) para rescindir o ato que o prejudicara. Por outro lado,sabe-se, com certeza, que, no processo formulário, o pretor concedia ao púbere menor de25 anos, quando a outra parte exigia judicialmente o cumprimento do negócio jurídicocelebrado entre ambos, uma exceptio (a exceptio legis Laetoriae), pela qual o excipienteconseguia sua absolvição.

A Lei Laetoria, embora não tivesse tornado incapaz de fato o homem púbere menor de25 anos, criou, para este, ao protegê-lo, um problema: em geral procurava-se não celebrar ne-gócio jurídico com esses menores, pois se receava incorrer nas sanções daquela lei.

Esse receio aumentou quando o pretor, nos fms da república, se dispõe a concederaos púberes menores de 25 anos a restitutio in integrum propter aetatem, pela qual, porvia de regra, 112 se rescindia o negócio jurídico sempre que o menor, ainda que não se con-figurasse a circunscriptio adulescentium, alegava lesão por inexperiência, dentro de umano útil, no direito clássico, ou, no direito justinianeu, de 4 anos - ambos os prazos a con-tar do momento em que ele completasse 25 anos.

Em vista disso, e para que permitisse que, na prática, esses menores celebrassemcom terceiros negócios jurídicos, resguardando-se estes, pelo menos em parte, das san-ções da Lei Laetoria e da rescisão decorrente da restitutio in integrum propter aetatem,admitiu-se que o magistrado, quando o menor o solicitasse, designasse alguém para serseu curador num determinado negócio (curator ad certam causam). Com isso, e emboraa presença do curador trouxesse para o terceira apenas uma garantia de fato, tomava-semais dificil a aplicação das sanções da Lei Laetoria ou a rescisão pela restitutio in inte-grum propter aetatem.

Ainda no direito clássico, Marco Aurélio 113 - e sobre a extensão da reforma por eleintroduzida há muita controvérsia - foi, segundo tudo indica, 114 mais adiante, e permitiu

110 Sobre a denominação Lex Laeioria (e não Lex Plaetoria, como vários autores a designam), videSchulz, Classical Roman Law, n" 323, p. 191.

111 A propósito, vide Monier, Manuel Élémentaire de Droit Romain, I, 6" ed., n" 239, p. 333.112 Observa Bonfantefeb. cit., p. 669) que, às vezes, o pretor se restringia a obter uma composição eqüita-

tiva (ad bonum et aequum), sem rescindir o negócio jurídico.113 Capitolino, Histonue Augustae Scriptores, M. Antonius Philosophus, X.114 A propósito, vide Bonfante, ob. cit., 670; e Albertario, 1 testi letterari in materia di capacitá di agire

del "minar XXV lmIIis ", in Studi et Documenta Historiae et Iuris, TI (1936), p. 170 e segs.

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aos púberes menores de 25 anos que solicitassem da autoridade competente a nomeaçãode um curador permanente. Tratava-se, porém, de curador facultativo (o menor não esta-va obrigado a pedi-lo), que não dispunha da administração legal (negotiorum gestio) dosbe~s ~o menor (este continuava a ser capaz de fato), e que se limitava, por via de regra, aassistir o menor quando da celebração de negócios jurídicos até que este completasse 25anos de idade.lls

É possível que, nos fins do período clássico, 116 em virtude da decadência da tutela mu-lierum, fossem também as mulheres púberes, até atingirem 25 anos, colocadas sob curatela,tendo, porém, nessa hipótese, o curador poderes para administrar o patrimônio delas.117

Apenas no direito justinianeu é que, segundo a opinião dominante, surge a curatelaobrig~tória para os púberes menores de 25 anos, embora, em certos casos, se admita queeles nao tenham curador, o que parece indicar que Justiniano, pelo menos teoricamentecontinuou a considerá-los capazes de fato. 118Esta curatela é regida pelos princípios (no-te-se que sobre eles os autores também não são concordes)1l9 seguintes:

a) o púbere de menos de 25 anos - homem ou mulher-pode escolher quem será seucurador, embora tenha de ser este nomeado pelo magistrado (que também pode confir-mar o nome proposto para curador pelo pai do menor, em testamento);

b) o púbere menor de 25 anos, para contrair débito ou alienar bens necessita de queo curador dê o consensus, que tem a mesma função que a auctoritas do tutor;

c) o curador (e se admite a pluralidade deles), que, para declinar da curatela - que ém.unuspublicum -, precisa apresentar um dos motivos de escusa admissíveis, pode admi-~IS~::rros bens do púbere me~or de 25 anos, ou se limitar a dar o consensus nos negóciosJun~lc.os em que e ele requendo; tem a mesma responsabilidade que o tutor; e - quandoadministra os bens do menor - pode aliená-los, exceto as coisas imóveis, ou móveis devalor.

Por outro lado - e esse instituto surgiu no tempo do imperador Aureliano.V'' embo-ra só tenha sido definitivamente disciplinado por Constantino'<' -, o púbere menor de 25anos, que demonstrasse ter boa conduta e ser maior de 18 ou 20 anos (conforme se tratas-se de mulher ou, de homem, respectivamente), poderia obter do imperador a uenia aeta-tis pela qual se lhe permitia celebrar - sem a assistência do curador, e sem a possibilidadede valer-se, posteriormente, da restitutio in integrum propter aetatem - negócio jurídicoque não fosse doação ou alienação de coisa imóvel, ou móvel de valor. 122

115 Essa é a opinião dominante (vide, entre outros Bonfante, ob. cit., p. 670; e Solazzi, La minore età nelDiritto Romano, p. 110 e segs., Roma, 1912).Fragmenta quae dicuntur Vaticana, UO.Fragmenta quae dicuntur Vaticana, 201 e 202.Monier, ob. cit., I, n? 240, p. 335.A propósito, vide Bonfante, ob. cit., p. 679 e segs.C. lI, 44 (45),1.C. lI, 44 (45), 2; e C. n, 17, 1.No direito romano, designava-se curatornão apenas nas hipóteses consignadas no texto, mas tambémem outras situações, como, por exemplo, paracuidar de certas massas de bens (assim, aherança jacen-te, o patrimônio do devedor sob execução): era o curator bonorum; ou para assegurar o direito suces-sório do ser concebido mas ainda não nascido: era o curator uentris.

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