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“Monumento às Bandeiras homenageia aqueles que nos massacaram”, diz liderança indígena 5 de outubro de 2013 Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/2013/10/05/monumento-as-bandeiras- homenageia-genocidas-que-dizimaram-nosso-povo-diz-lideranca-indigena/ Em carta, Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá, responde às críticas sobre a intervenção em escultura ao lado do Parque Ibirapuera, em São Paulo Da Redação Nesta semana, a obra do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret recebeu tintas vermelhas, em um protesto realizado por índios do estado contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que retira do governo federal a autonomia da demarcação de terras, transferindo para o Congresso Nacional. O monumento, inaugurado em 1953, presta uma homenagem aos bandeirantes, responsáveis pelo assassinato de índios, nos séculos 17 e 18. Leia abaixo a carta de Marcos Tupã: Monumento à resistência do povo guarani Para nós, povos indígenas, a pintura não é uma agressão ao corpo, mas uma forma de transformá-lo. Nós, da Comissão Guarani Yvyrupa, organização política autônoma que articula o povo guarani no sul e sudeste do país, realizamos no último dia 02 de outubro, na Av. Paulista, a maior manifestação indígena que já ocorreu em São Paulo desde a Confederação dos Tamoios. Mais de quatro mil pessoas ocuparam a Av. Paulista, sendo cerca de quinhentas delas dos nossos parentes, outros duzentos de comunidades quilombolas e mais de três mil apoiadores não-indígenas, que viram a força e a beleza do nosso movimento. Muitos meios de

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“Monumento às Bandeiras homenageia aqueles que nos massacaram”, diz liderança indígena

5 de outubro de 2013 Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/2013/10/05/monumento-as-bandeiras-homenageia-genocidas-que-dizimaram-nosso-povo-diz-lideranca-indigena/

Em carta, Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá, responde às críticas sobre a intervenção em escultura ao lado do Parque Ibirapuera, em São Paulo

Da Redação

Nesta semana, a obra do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret recebeu tintas vermelhas, em um protesto realizado por índios do estado contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que retira do governo federal a autonomia da demarcação de terras, transferindo para o Congresso Nacional. O monumento, inaugurado em 1953, presta uma homenagem aos bandeirantes, responsáveis pelo assassinato de índios, nos séculos 17 e 18. Leia abaixo a carta de Marcos Tupã:

Monumento à resistência do povo guarani

Para nós, povos indígenas, a pintura não é uma agressão ao corpo, mas uma forma de transformá-lo. Nós, da Comissão Guarani Yvyrupa, organização política autônoma que articula o povo guarani no sul e sudeste do país, realizamos no último dia 02 de outubro, na Av. Paulista, a maior manifestação indígena que já ocorreu em São Paulo desde a Confederação dos Tamoios. Mais de quatro mil pessoas ocuparam a Av. Paulista, sendo cerca de quinhentas delas dos nossos parentes, outros duzentos de comunidades quilombolas e mais de três mil apoiadores não-indígenas, que viram a força e a beleza do nosso movimento. Muitos meios de

comunicação, porém, preferiram noticiar nossa manifestação como se tivesse sido uma depredação de algo que os brancos consideram ser uma obra de arte e um patrimônio público.

Saindo da Av. Paulista, marchamos em direção a essa estátua de pedra, chamada de Monumento às Bandeiras, que homenageia aqueles que nos massacraram no passado. Lá subimos com nossas faixas, e hasteamos um pano vermelho que representa o sangue dos nossos antepassados, que foi derramado pelos bandeirantes, dos quais os brancos parecem ter tanto orgulho. Alguns apoiadores não-indígenas entenderam a força do nosso ato simbólico, e pintaram com tinta vermelha o monumento. Apesar da crítica de alguns, as imagens publicadas nos jornais falam por si só: com esse gesto, eles nos ajudaram a transformar o corpo dessa obra ao menos por um dia. Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa resistência. Ocupado por nossos guerreiros xondaro, por nossas mulheres e crianças, esse novo monumento tornou viva a bonita e sofrida história de nosso povo, dando um grito a todos que queiram ouvir: que cesse de uma vez por todas o derramamento de sangue indígena no país! Foi apenas nesse momento que esta estátua tornou-se um verdadeiro patrimônio público, pois deixou de servir apenas ao simbolismo colonizador das elites para dar voz a nós indígenas, que somos a parcela originária da sociedade brasileira. Foi com a mesma intensão simbólica que travamos na semana passada a Rodovia dos Bandeirantes, que além de ter impactado nossa Terra Indígena no Jaraguá, ainda leva o nome dos assassinos.

A tinta vermelha que para alguns de vocês é depredação já foi limpa e o monumento já voltou a pintar como heróis, os genocidas do nosso povo. Infelizmente, porém, sabemos que os massacres que ocorreram no passado contra nosso povo e que continuam a ocorrer no presente não terminaram com esse ato simbólico e não irão cessar tão logo. Nossos parentes continuam esquecidos na beira das estradas no Rio Grande do Sul. No Mato Grosso do Sul e no Oeste do Paraná continuam sendo cotidianamente ameaçados e assassinados a mando de políticos ruralistas que, com a conivência silenciosa do Estado, roubam as terras e a dignidade dos que sobreviveram aos ataques dos bandeirantes. Também em São Paulo esse massacre continua, e perto de vocês, vivemos confinados em terras minúsculas, sem condições mínimas de sobrevivência. Isso sim é vandalismo.

Ficamos muito tristes com a reação de alguns que acham que a homenagem a esses genocidas é uma obra de arte, e que vale mais que as nossas vidas. Como pode essa estátua ser considerada patrimônio de todos, se homenageia o genocídio daqueles que fazem parte da sociedade brasileira e de sua vida pública? Que tipo de sociedade realiza tributos a genocidas diante de seus sobreviventes? Apenas aquelas que continuam a praticá-lo no presente. Esse monumento para nós representa a morte. E para nós, arte é a outra coisa. Ela não serve para contemplar pedras, mas para transformar corpos e espíritos. Para nós, arte é o corpo transformado em vida e liberdade e foi isso que se realizou nessa intervenção.

Aguyjevete pra todos que lutam!

Marcos dos Santos Tupã, 43, é liderança indígena e Coordenador Tenondé da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).

Manifestantes jogam tinta e picham o Monumento às Bandeiras

Por Marcelo Mora, do G1 São Paulo

2 outubro de 2013.

Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/10/manifestantes-jogam-

tinta-vermelha-no-monumento-bandeiras.html>

Grupo participava de protesto dos índios que começou na Avenida Paulista.

Escultura já havia sido pichada durante manifestação nesta terça-feira (1º).

Manifestantes jogaram tinta vermelha e picharam a frase "bandeirantes assassinos"

com tinta branca no Monumento às Bandeiras, em frente ao Parque Ibirapuera, na

Zona Sul de São Paulo, na noite desta quarta-feira (2). Os autores do vandalismo

contra o monumento participavam do protesto dos índios, que começou por volta

das 17h30 na Avenida Paulista. Às 21h, os manifestantes deram um abraço

simbólico no monumento.

A obra do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret já havia sido pichada em um

protesto na noite desta terça-feira (1º) contra a Proposta de Emenda à Constituição

(PEC) 215, mesmo motivo da manifestação desta quarta-feira. Na base da escultura

já havia sido escrita a mesma frase: "bandeirantes assassinos", além de uma citação

ao nome do projeto.

Centenas de índios protestaram nesta quarta contra projeto, que pode mudar a

demarcação de terras índígenas no país. Após bloquear a Avenida Paulista por

cerca de uma hora e trinta minutos, o grupo desceu a Avenida Brigadeiro Luís

Antônio rumo ao Ibirapuera. A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) pede

que os motoristas evitem a região.

A PEC 215 tira do governo federal a autonomia na demarcações de terras. Outro ato

foi realizado em Brasília, em frente ao Congresso Nacional. Em São Paulo, os

manifestantes se reuniram inicialmente no vão livre do Masp às 17h.

Depois, bloquearam a pista que segue para a Consolação e, em seguida, o sentido

Paraíso. Segundo a Polícia Militar, cerca de 800 pessoas participam da

manifestação em São Paulo nesta quarta-feira.

Tumulto e detido

Por volta das 18h10, houve um princípio de tumulto na esquina da Avenida Paulista

com a Rua Augusta. Policiais prenderam um manifestante que resistiu à prisão após

uma abordagem. Na mochila dele, foram encontrados quatro latas de spray,

segundo a PM. Ele foi encaminhado ao 78º distrito de polícia, nos Jardins. Houve

correria. Um grupo cercou o carro da PM para evitar a prisão.

Os índios seguiram o protesto, sem se envolver com a confusão. O detido foi

colocado no carro da PM sob os gritos de "solta, solta" e levado para a delegacia.

De acordo com os manifestantes, o objetivo é protestar contra o que vêem como

ataque aos direitos territoriais dessas populações. O ato é contra a Proposta de

Emenda à Constituição (PEC) 215, que tramita na Câmara dos Deputados. O texto é

alvo de críticas dos índios e organizações não-governamentais porque retira do

governo federal a autonomia para demarcar terras indígenas, de quilombolas e

zonas de conservação ambiental.

Pelo texto, caberá ao Congresso Nacional aprovar proposta de demarcação enviada

pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Atualmente, o Ministério da Justiça edita

decretos de demarcação a partir de estudos feitos pela Funai.

Na semana passada, índios bloquearam por cerca de uma hora a Rodovia dos

Bandeirantes, em São Paulo, contra a PEC. Em uma das faixas carregadas pelo

grupo estava escrito "Guarani resiste - Demarcação já!". Os indígenas ameaçaram

com arcos e flechas os motociclistas que tentaram furar o bloqueio. Apesar da

tensão, não houve confrontos.

Monumento

O monumento pichado em São Paulo é feito de granito, um material poroso. A

escultura foi inaugurada em 1953 e é popularmente conhecida popularmente como

"Empurra-empurra" ou "Deixa que eu empurro". A obra é uma homenagem às

expedições, conhecidas como bandeiras, que partiram de São Paulo rumo ao

interior do Brasil.

Os bandeirantes, responsáveis por iniciar o povoamento de parte do território

brasileiro sobretudo nos séculos 17 e 18, chegaram a usar o aprisionamento dos

índios nas próprias bandeiras e também como mão de obra nos assentamentos. Por

isso, a obra ter sido alvo de vandalismo.

A obra de Brecheret representa um grupo empurrando uma canoa. Além do

bandeirante português, estão representados no conjunto o índio, o mameluco e o

negro.

Tinta vermelha é jogada no Monumento às Bandeiras durante ato em SP (Foto: Marcelo Mora/G1)

Pichação feita em escultura durante ato desta quarta-feira (Foto: Marcelo Mora/G1)

Faixa com a mensagem "Guarani resiste" à frente de manifestantes na Paulista (Foto: Marcelo Mora/ G1)

Índio protesta no vão livre do Masp (Foto: Marcelo Mora/ G1)

Indios protestam na pista sentido Consolação da Paulista (Foto: Marcelo Mora/ G1)

Empurra-empurra! Sobre a morte das estátuas

7 de outubro de 2013 Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/2013/10/07/empurra-empurra-sobre-a-morte-das-estatuas/

A ação guarani de atacar, ainda que simbolicamente, o Monumento às Bandeiras de São Paulo cumpre o papel de resgatá-lo para o curso da história. E, assim, podemos enxergar as chagas da maldade que representa

Por Guilherme Leite Cunha

As estátuas e os monumentos públicos são, em sua maioria, a realização material de uma ação conservadora: a abstração e fetichização da história. São a negação do processo histórico, de suas lutas e contradições, por parte dos vencedores. Que fincam ali o seu poder em pedra, cimento e granito, com uma dupla função didática: convencer-nos sobre uma suposta irreversibilidade da história e nos educar sobre quem são os vencedores. O “monumento” se configura como um poder final que atua no reconhecimento público do dominador e na naturalização de sua dominação, querendo se configurar como um patrimônio público, total, da nação, dos vencedores, mas também, e fundamentalmente, dos vencidos.

Para essa naturalização é necessária uma identificação afetiva a esses monumentos. Nesse sentido, eles devem ser referência em termos estéticos e de manufatura. E quanto mais referencial a obra for, nesses termos, mais perversa ela é para a cultura dominada. É inegável a existência dessas características ao Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret, que, por seu suposto valor estético intrínseco, foi facilmente interiorizado como patrimônio cultural de todos os paulistas.

Contudo, também é inegável que os bandeirantes, nossos vencedores, são assassinos. Nossos heróis são estupradores. Nossos ídolos são os mais cruéis torturadores, que durante séculos produziram um dos maiores genocídios de nossa história: o massacre de populações inteiras, o extermínio de suas histórias, de suas culturas, de suas vidas, de seus nomes e línguas.

Uma “obra de arte” não pode valer mais que uma gota de sangue. E nesse entendimento reside a chave para compreender o alto grau de inventividade e valor estético-político da intervenção dos Guaranis (Mídia Ninja)

Conquanto, a história não morreu nem “está longe demais”. E talvez os vencidos tenham sobrevivido. Os vencidos vêm sobrevivendo marginalizados nas bordas das cidades, em restos de terra, em pedaços de chão, lutando por um mínimo de vida digna, por demarcação e reconhecimento. E esse reconhecimento passa também pela constatação de quem fez isso com eles, de quem os matou, de quem os proibiu de contar suas histórias, suas ideias e suas realizações.

A ação guarani de atacar, ainda que simbolicamente, o Monumento às Bandeiras da cidade de São Paulo, cumpre o papel de resgatar o monumento novamente para o curso da história. E ao reapresentá-lo ao processo histórico, podemos novamente enxergar nele as chagas da maldade que ele representa.

“Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro.”, atesta Walter Benjamin. E ao realizarem a intervenção na estátua, os indígenas tentam interromper esse processo de transmissão. E interrompendo esse processo, podemos relembrar que uma obra de arte não se encerra somente em seus valores formais, mas fundamentalmente em seus valores culturais, de significação e representação. E, nesses termos, a obra paulista significa e representa a morte e o massacre: sintomas da barbárie moderna que se entende como civilizatória. Desvelados pela tinta guarani, ela nada mais é que um documento de exaltação a essa barbárie, exposta claramente, no vértice de grandes avenidas, da subjugação de negros, índios e mestiços, que, como escravos, trabalham exaustivamente para a glória de seus proprietários.

Inúmeros monumentos nazistas foram derrubados e removidos, assim como célebres estátuas estalinistas. Até mesmo Saddam Husseim teve sua escultura demolida. Todas elas nos lembram de que o curso da história continua, e que nada é intocável e imortal. Assim, da mesma forma, o Monumento às Bandeiras, além de outras obras, como Borba Gato, e todas as outras homenagens aos assassinos bandeirantes devem e precisam ser extintas. Pelo motivo

mais simples e civilizatório possível: uma “obra de arte” não pode valer mais que uma gota de sangue. E nesse entendimento reside a chave para compreender o alto grau de inventividade e valor estético-político da intervenção dos Guaranis.

Como sabemos, contudo, nossa tradição é de conciliação e não de rompimentos históricos. A transmissão de um vencedor a outro, em nossas terras, é pautada pelo cinismo de quem sabe que o poder continua nas mesmas mãos há 500 anos. Cabe, pois, a nosso processo civilizatório passarmos de obras de exaltação à barbárie para a construção de memoriais de resistência e de lembrança aos genocídios cometidos. Mais do que isso, passa pela realização de justiça, seja prendendo torturadores ainda vivos, seja derrubando suas estátuas. Passa, por fim, pela realização de justiça, punição e castigo às elites assassinas.

* Guilherme Leite Cunha é mestre em estética e história da arte pela USP