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INTRODUO O presente trabalho monogrfico pretende analisar a aplicabilidade da capitulao do dolo eventual aos crimes de trnsito previstos no Cdigo de Trnsito Brasileiro (Lei 9503/97). No Brasil, desde o Estado Novo, a administrao pblica vem adotando polticas de transporte que privilegiam o transporte rodovirio em detrimento das demais alternativas, tais como o transporte fluvial ou sobre trilhos. Essa postura se acentuou durante o perodo em que se viveu sob a gide do regime militar (1964 a 1988), quando a malha rodoviria se expandiu exponencialmente face necessidade de gerar, perante a opinio pblica, a impresso de desenvolvimento econmico. Paralelamente ao problema da adoo de uma poltica de transportes inadequada s dimenses continentais de nosso pas, no se pode perder de vista que vigora no Brasil um modelo de sociedade capitalista aonde, por regra, os indivduos so rotulados pela riqueza que ostentam e no por seus valores culturais. Nesse contexto a posse de um veculo caro e possante transforma-se em objeto de desejo e admirao na sociedade, o que alavanca a venda de carros e motocicletas cada vez mais velozes. A soma destes dois fatores acarreta na evoluo contnua da frota nacional de veculos, bem como na manuteno de elevadssimos ndices de vtimas de acidentes de trnsito. Estudos tcnicos revelam que os custos com acidentes automobilsticos no Brasil consomem cifras bilionrias, tratando-se verdadeiramente de caso de sade pblica. Em virtude dos alarmantes ndices de bitos em acidentes e do clamor da populao por punies mais severas, o poder legislativo concebeu em 1997 a Lei 9.503 (Cdigo de Trnsito Brasileiro), revogando o Cdigo Nacional de Trnsito (Lei 5108/66 - CNT), vigente at ento.

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Houve inegvel avano legislativo com a nova lei, que passou a criminalizar uma srie de condutas antes tratadas apenas como contravenes, alm de majorar a punio para diversas condutas. Tambm foram implementados vrios outros dispositivos que objetivavam a penalizao do condutor infrator pela via administrativa (multa pecuniria, apreenso do veculo e at a suspenso do direito de dirigir). Todos esses novos dispositivos legais, todavia, por vezes so incapazes de oferecer uma punio correspondente expectativa da populao. A farta divulgao pela mdia de acidentes em que motoristas imprudentes causam a morte ou invalidez de diversas pessoas inocentes (no raro da mesma famlia) causa comoo pelos resultados nefastos e, muitas vezes, revolta e indigna pela branda punio aplicada pelo Estado. O clima de impunidade resultante desta equao (crimes brbaros x punies brandas) gera reflexos nos rgos do poder judicirio que, para no carem em descrdito perante a populao, buscam atender aos anseios populares atravs do aumento quantitativo das condenaes dos envolvidos em delitos de circulao. Um dos conceitos doutrinrios utilizados para justificar a majorao das punies dos envolvidos em crimes de trnsito o da incidncia do dolo eventual, mormente nos crimes de homicdio. Desta forma, a questo possui indiscutvel relevncia no aspecto jurdico, eis que por vezes o enquadramento legal utilizado pelo magistrado para fundamentar uma condenao no encontra amparo na boa doutrina, mas to somente em seu desejo pessoal de que seja feita justia (entenda-se como justia, neste caso, a condenao do ru a uma pena severa, porm maior do que a prevista na legislao para a conduta praticada pelo autor). Neste sentido, a correta capitulao do autor conduta por ele praticada, pode representar a diferena entre uma condenao de at quatro anos (aplicvel ao homicdio

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culposo na direo de veculo automotor), ou por uma de at trinta anos (pena prevista para o crime de homicdio doloso qualificado). Dada a freqncia com que o assunto submetido ao judicirio, o domnio do tema torna-se exigncia imprescindvel aos profissionais do direito que atuem ou pretendam militar na rea penal (que tambm sofrem pela dificuldade na obteno de material de qualidade sobre o assunto, eis que a produo literria escassa).

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CAPTULO 1 DOLO E CULPA1.1

CRIMES DOLOSOS

1.1.1 Teorias do Dolo O dicionrio Houaiss1 apresenta uma definio de fcil inteleco de dolo: em direito penal, a deliberao de violar a lei, por ao ou omisso, com pleno conhecimento da criminalidade do que se est fazendo. Este conceito positivado no ordenamento jurdico atravs do art. 18, caput do Cdigo Penal, o qual define que o crime ser doloso (...) quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. Com o intuito de analisar a existncia de dolo nas aes humanas a doutrina criou quatro teorias distintas que buscam, atravs da anlise do fato, e de elementos distintos, explicar sua incidncia na prtica. 1.1.1.1 Teoria da Vontade (Teoria Clssica) Segundo Mirabete2, esta teoria adota a idia de que o dolo ocorrer sempre que o agente tiver vontade de praticar a ao, e que o resultado desta seja por ele desejado. No exigida a conscincia da ilicitude da conduta, pois esta conscincia ir afetar apenas o juzo de culpabilidade (reprovabilidade da conduta tpica e antijurdica) do agente, que influenciar to somente ao clculo de sua pena, no tendo o condo de descaracterizar a ocorrncia do crime propriamente dito. Cezar Roberto Bitencourt3 explica em sua obra que1

HOUAISS, Antnio. Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa. CD-ROM. Verso 1.0. Dez. 2001. Produzido por Editora Objetiva. 2 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. Parte geral. 1 vol. 17 ed. So Paulo: Atlas, 2001, p. 139. 3 BITENCOURT,Cezar Roberto.Tratado de direito penal. parte geral.1vol. 8ed.So Paulo: Saraiva,2003, p.211.

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a essncia do dolo deve estar na vontade, no de violar a lei, mas de realizar a ao e obter o resultado. Essa teoria no nega a existncia da representao (conscincia) do fato, que indispensvel, mas destaca, sobretudo, a importncia da vontade de causar o resultado.

1.1.1.2 Teoria do Assentimento (Teoria da Assuno) Jesus4 observa que, na teoria do assentimento, o dolo ocorrer quando o agente, prevendo um possvel resultado danoso proveniente de sua conduta, mantm-se indiferente e executa-a, aceitando assim o risco de produzi-lo. Ele no busca o resultado danoso, mas aceita com indiferena o risco de vir a produzi-lo. Esta indiferena com que o agente aceita as possveis conseqncias oriundas de sua conduta o elemento essencial para que fique caracterizado o dolo atravs desta teoria. Se ficar comprovado que o agente agiu de determinada forma no por indiferena ao resultado produzido, mas por acreditar sinceramente que teria condies de evitar sua produo (por acreditar excessivamente em sua percia ou na sorte, por exemplo), ento no h que se falar em dolo. O professor Julio Fabbrini Mirabete5 explica, de forma sintetizada, que (...) existe dolo simplesmente quando o agente consente em causar o resultado ao praticar a conduta. 1.1.1.3 Teoria da Representao Mirabete6 relata que a teoria da representao guarda certa semelhana com a do assentimento pois, assim como naquela, entende que subsistir o dolo quando o agente tiver mera previso da possibilidade de ocorrncia do fato danoso e, ainda assim, opte pela continuidade de seu procedimento. Diverge da teoria anterior porque, para os adeptos desta teoria, no se leva em considerao se o agente agiu de forma indiferente possibilidade da ocorrncia do efeito danoso ou se simplesmente acreditava que este no iria ocorrer.

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JESUS, Damsio E.de. Direito penal: parte geral. 24 ed. So Paulo: Saraiva, 2001, p. 288. MIRABETE, opus citatum, p. 139. 6 Ibidem, p. 139.

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Este juzo subjetivo realizado pelo agente (animus dolandi) irrelevante para a teoria da representao, pois, com base em seus fundamentos, para que o dolo subsista, bastar que o resultado danoso seja previsvel poca da execuo da ao. 1.1.1.4 Teoria da Probabilidade O jurista Cezar Roberto Bitencourt7 descreve que, na teoria da probabilidade, a anlise da possibilidade de ocorrncia do evento danoso realizada com base na probabilidade baseada em levantamentos estatsticos. Assim, se estatisticamente for comprovado que a prtica de determinada conduta tende a ocasionar um resultado danoso, sempre que algum incorrer naquela mesma conduta e obtiver aquele mesmo resultado ter agido com dolo, indiferente ao chamado elemento volitivo (juzo de aceitao ou no do resultado provvel feito pelo agente no momento em que executa a ao). Neste sentido, poder-se-ia afirmar que todo indivduo que conduz veculo automotor sob efeito de lcool e se envolve em acidente agir com dolo, eis que comprovado estatisticamente que a grande parte dos acidentes de trnsito so ocasionados por pessoas em estado de embriaguez. Esta teoria no obteve muita aceitao no meio jurdico e acadmico, pois, assim como na teoria da representao, descarta a anlise do elemento volitivo, baseando-se apenas nos elementos intelectivos. 1.1.1.5 Teorias adotadas pelo Cdigo Penal brasileiro Mirabete8 nos ensina que o Cdigo Penal brasileiro adotou a Teoria Finalista da Ao, que tem como principal fundamento o preceito de que todo comportamento humano tem uma finalidade, ou seja, (...) no se concebe vontade de nada ou para nada, e sim dirigida a um fim. A conduta realiza-se mediante a manifestao da vontade dirigida a um fim. Desta forma, o dolo subsistir apenas quando o agente tiver a inteno de realizar a conduta efetivamente.7 8

BITENCOURT, opus citatum, p. 211. MIRABETE, opus citatum, p. 103.

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O professor Seixa Santos9 aborda a matria da vontade dirigida prtica do ato criminoso de forma bastante elucidativa:A votuntae scelerata (vontade criminosa), a voluntas necendi (vontade de prejudicar), enfim, a vontade sempre uma faculdade de querer, quer contra a lei penal, quer criminosamente. Denuncia um querer criminoso. Revela uma faculdade de tender conscientemente a um fato ilcito. Age, portanto, com vontade. (...) A vontade revela a existncia de critrio de escolha ou axiolgico. O bem um valor positivo, para o qual o homem deve tender, o crime um fato negativo que cumpre evitar. No querer o crime , tambm como o querer, um ato da vontade, ou volio. (...) A volio, como ato da vontade, faz parte do processo deliberativo...

A vontade do agente elevada condio de elemento sine qua non para caracterizao da conduta tpica penal. Mesmo nos crimes culposos, aonde o agente no tem sua conduta direcionada produo do resultado, haver responsabilizao criminal quando este no empregar o mnimo de diligncia necessria. Para que seja caracterizado o dolo, dever ser analisado tanto o elemento cognitivo (intelectual) quanto o volitivo (vontade) que envolviam o agente no momento do cometimento da ao. O elemento cognitivo diz respeito conscincia do ato que praticado e de suas conseqncias. Bitencourt10 explica com maestria o conceito em sua obra:A previso, isto , a representao, deve abranger correta e completamente todos os elementos essenciais do tipo, sejam eles descritivos, normativos ou subjetivos. Enfim, a conscincia (previso ou representao) abrange a realizao dos elementos descritivos e normativos, do nexo causal e do evento (delitos materiais), da leso ao bem jurdico, dos elementos da autoria e da participao, dos elementos objetivos das circunstncias agravantes e atenuantes que supem uma maior ou menor gravidade do injusto (tipo qualificado ou privilegiado) e dos elementos acidentais do tipo objetivo. Alm do conhecimento dos elementos positivos exigidos pelo tipo objetivo, o dolo deve abranger tambm o conhecimento dos caracteres negativos, isto , de elementos, tais como sem consentimento de quem de direito (art. 164 do CP), sem licena da autoridade competente (art. 166 do CP), da inexistncia de nascimento (art. 241 do CP) etc. Por isso, quando o processo intelectual-volitivo no atinge um dos componentes da ao descrita na lei, o dolo no se aperfeioa, isto , no se completa.

O elemento volitivo refere-se vontade do agente em realizar (ou no) o tipo penal, indiferena (ou no) quanto produo do resultado danoso quando opta pela execuo de um comportamento que importe em risco a outrem.9

SANTOS, Seixa apud FERRACINI, Luiz Alberto. Dolo, vontade e crime: estudos jurdicos. Campinas: Julex, 1997, p. 22. 10 BITENCOURT, opus citatum, p. 212.

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O Cdigo Penal brasileiro em seu artigo 18, I, adotou as teorias da vontade (primeira parte do art. 18, I) e do assentimento (segunda parte do art. 18, I) por serem as que levam em considerao tanto a representao como a vontade do agente. Desta forma, possvel afirmar que enquanto o dolo direto delineado pela teoria da vontade, o dolo eventual tem seus contornos definidos pela teoria do assentimento. As teorias da previso e da probabilidade no foram recepcionadas em nosso ordenamento jurdico porque excluem a apreciao do elemento volitivo, ou seja, no h anlise da vontade do agente ao percorrer a conduta. 1.1.2 Espcies de Dolo Bitencourt11 afirma que a doutrina subdivide o conceito de dolo em duas espcies: dolo direto (ou imediato) e dolo indireto (novamente subdividido em dolo alternativo e dolo eventual). Esta classificao doutrinria se d (...) pela necessidade de a vontade abranger o objetivo pretendido pelo agente, o meio utilizado, a relao de causalidade, bem como o resultado. Note-se que esta diferenciao do dolo em diversos tipos apenas doutrinria e no acarreta em nenhum efeito prtico direto, eis que o Cdigo Penal brasileiro no positivou as diversas hipteses de dolo, equiparando todas em seu artigo 18, I. Desta forma, pouca diferena faz se o crime foi cometido com dolo direto ou indireto (seja ele eventual ou alternativo), pois, qualquer que seja a hiptese, ser reprimida com a mesma intensidade, eis que o dispositivo incriminador ser o mesmo.

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Ibidem, p. 214.

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1.1.2.1 Dolo Direto ou Imediato Encontra previso legal no art. 18, I, primeira parte do Cdigo Penal: diz-se o crime doloso, quando o agente quis o resultado (...). Neste caso, o agente efetivamente deseja o resultado danoso e utiliza dos meios necessrios para atingi-lo. o caso do indivduo que, durante a conduo de seu veculo avista seu desafeto transitando a p sobre o passeio e arremessa propositalmente o veculo de encontro a este, causando-lhe a morte. No h que se falar em crime culposo ou dolo eventual, o objetivo do agente era efetivamente causar a morte de seu inimigo, utilizando-se para isso do veculo que conduzia, tratando-se portanto, inequivocamente de dolo direto. Bitencourt12 em seu Tratado de Direito Penal refere-se a uma subdiviso do dolo direto, entre de primeiro e de segundo grau. Segundo o autor, dolo direto de primeiro grau seria referente ao dano que se pretende gerar (dano desejado e provocado pelo autor), j o dolo direto de segundo grau seria relativo aos outros danos provocados em funo do meio de execuo escolhido pelo agente que, embora no sejam desejados pelo agente, fazem-se necessrios para a consecuo de seu objetivo final. Podemos exemplificar com situao similar quela descrita no pargrafo anterior, supondo que um indivduo conduzindo um nibus avista seu desafeto transitando no passeio acompanhado por sua famlia. O condutor imediatamente projeta o veculo contra o seu inimigo, causando a morte no s deste como tambm de toda a sua famlia. Neste caso, haver dolo direto de primeiro grau com relao ao desafeto (objetivo da ao delituosa) e dolo direto de segundo grau com relao aos demais vitimados, pois detinha o intuito inicial de matar apenas seu desafeto, porm assumiu a produo da morte dos demais em funo do meio escolhido para cometer o crime.

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Ibidem, p. 215.

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Na realidade, esta diferenciao quanto ao dolo de primeiro e segundo graus no comumente utilizada pela doutrina, tendo sua aplicao limitada dosimetria da pena, eis que, em ambos os casos, tratar-se- de dolo direto. 1.1.2.2 Dolo Indireto Damsio E. de Jesus13 descreve que o dolo indireto ocorre quando a vontade do sujeito no direcionada produo de um resultado determinado, sendo este subdividido em dolo alternativo e dolo eventual. 1.1.2.2.1 Dolo Alternativo No dolo alternativo o agente possui a vontade de causar dano a outrem, porm este dano pode ser orientado alternativamente em relao ao resultado ou em relao pessoa. No primeiro caso o agente indiferente ao dano produzido na vtima, satisfazendo-se tanto com o resultado mais grave quanto com o menos grave, e no segundo caso, o agente indiferente a quem ser vitimado pela sua conduta (sendo esta dirigida a um grupo, estar satisfeito com a produo do resultado danoso em qualquer um daquele grupo). Exemplo tpico de dolo indireto alternativo com relao ao resultado o do indivduo que atira contra seu desafeto, satisfazendo-se tanto com a morte quanto com a mera leso corporal da vtima, j o dolo indireto alternativo com relao pessoa ocorrer na hiptese em que o agente efetua disparo de arma de fogo contra aglomerao de pessoas, dando-se por satisfeito com a morte de qualquer um dos envolvidos. 1.1.2.2.2 Dolo Eventual No dolo eventual, o agente sabe que o resultado lesivo pode vir a ocorrer, mas age com indiferena, aceitando-o e assumindo o risco de sua produo. Note-se que para que subsista o dolo eventual essencial que o agente anteveja a possibilidade do evento danoso13

JESUS, opus citatum, p. 290.

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(previsibilidade do resultado) e que, ainda assim, demonstre-se indiferente sua possvel produo, como j foi explicado na teoria do assentimento (teorias do dolo). Algumas decises judiciais identificam o dolo eventual em situaes em que no existe o aspecto volitivo de aceitao do dano. Estas decises tentam amparar-se nas teorias da representao ou da probabilidade, que no foram recepcionadas no nosso Cdigo Penal. O professor Bitencourt14 narra de forma extremamente didtica as diferenas entre as teorias da probabilidade e da vontade:Para a primeira, diante da dificuldade de demonstrar o elemento volitivo, o querer o resultado, admite a existncia do dolo eventual quando o agente representa o resultado como de muito provvel execuo e, apesar disso, atua, admitindo ou no a sua produo. No entanto, se a produo do resultado for menos provvel, isto , pouco provvel, haver culpa consciente. Para a segunda insuficiente que o agente represente o resultado como de provvel ocorrncia, sendo necessrio que a probabilidade da produo do resultado seja incapaz de remover a vontade de agir. Haveria culpa consciente se, ao contrrio, desistisse da ao, estando convencido, calcula mal e age, produzindo o resultado. Como se constata, a teoria da probabilidade desconhece o elemento volitivo, que fundamental na distino entre dolo eventual e culpa consciente, e que, por isso mesmo, melhor delimitado pela teoria do consentimento.

Jesus15 assevera que o dolo eventual caracteriza-se pela presena de duas caractersticas elementares, a saber: a previsibilidade objetiva, que a possibilidade do agente antever que a conduta a ser percorrida poder produzir um resultado danoso (devendo esta previsibilidade se nortear pelo discernimento que um cidado comum teria na mesma situao); e a anuncia do autor para com este possvel resultado (indiferena). O ilustre promotor Sznick16 defende entendimento um pouco diferente. Segundo ele, no dolo eventual, o agente efetivamente quer a produo do resultado, pois, ao antever a possibilidade de sua ocorrncia e, ainda assim insistir na conduta demonstra desejo pela produo do resultado. Em suas prprias palavras,No dolo eventual, o agente quer o evento, mesmo que este no seja o objetivo principal de sua conduta, mas o secundariamente querido, porque consentido. (...) No dolo eventual o resultado previsto pelo agente no como fim, mas como objetivo secundrio, que pode resultar da ao criminal e, inobstante isso, no14 15

BITENCOURT, opus citatum, p.235. JESUS, opus citatum, p. 291. 16 SZNICK, Valdir. Dolo eventual e culpa consciente: anlise e contrastes. Justitia. So Paulo, n. 112, p. 54, jan./mar., 1981.

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deixa de realizar a ao. (...) O dolo no eventual; eventual o resultado, na sua ocorrncia; isto porque o agente ao prever e admitir o resultado, implicitamente o quis.

Note-se que os entendimentos descritos apresentam uma pequena, mas importante diferena. Enquanto a doutrina majoritria defende que existir dolo eventual quando o agente mostrar-se indiferente produo do resultado, a interpretao defendida por Sznick sustenta que, mais que mera indiferena, o resultado produzido tambm ser desejado pelo agente, praticamente equiparando-o ao dolo direto. 1.2 CRIMES CULPOSOS O crime culposo tem previso legal no art. 18, II do Cdigo Penal e, conforme dispe Bitencourt17, ocorre por inobservncia do dever objetivo de cuidado manifestado numa conduta que no era destinada produo de um fim ilcito. Sobre a questo do dever de diligncia, Jesus18 explica queA todos, no convvio social, determinada a obrigao de realizar condutas de forma a no produzir danos a terceiros. o denominado cuidado objetivo. A conduta torna-se tpica a partir do instante em que no se tenha manifestado o cuidado necessrio nas relaes com outrem, ou seja, a partir do instante em que no corresponda ao comportamento que teria adotado uma pessoa dotada de discernimento e prudncia, colocada nas mesmas circunstncias que o agente.

Alm da inobservncia do dever de cuidado, para que a figura do crime culposo se consolide ser tambm necessrio que o resultado seja previsvel. Ao contrrio do crime doloso, aonde a conduta dirigida produo de um resultado e, portanto, este antevisto pelo agente, na modalidade culposa dever subsistir ao menos a possibilidade de previso do resultado para que o fato seja punvel. Mirabete19 ensina queA previsibilidade como anota Damsio a possibilidade de ser antevisto o resultado, nas condies em que o sujeito se encontrava. Exige-se que o agente, nas circunstncias em que se encontrava, pudesse prever o resultado de seu ato. A condio mnima de culpa em sentido estrito a previsibilidade; ela no existe se o resultado vai alm da previso.

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BITENCOURT, opus citatum, p. 227. JESUS, opus citatum, p. 297. 19 MIRABETE, opus citatum, p. 147.

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A regra para as infraes penais de que todo crime seja doloso. A represso estatal s condutas culposas s ocorrer quando esta for prevista de forma expressa na legislao, conforme preceitua o pargrafo nico do art. 18 do CP: salvo os casos expressos em lei, ningum pode ser punido por fato previsto como crime, seno quando o pratica dolosamente. Jesus20 arremata afirmando que para saber se um crime admite a modalidade culposa bastar (...) analisar a norma penal incriminadora. Quando o Cdigo admite a modalidade culposa, h referncia expressa culpa. Quando o Cdigo, descrevendo um crime, silencia a respeito da culpa, porque no concebe a modalidade culposa, s admitindo a dolosa. 1.2.1 Modalidades da Culpa As modalidades da culpa ou formas de manifestao da falta do cuidado objetivo so descritas no art. 18, II do Cdigo Penal, a saber: imprudncia, negligncia e impercia. A imprudncia traduz-se pela precipitao, falta de cautela na prtica de determinada ao, como por exemplo, conduzir um automvel atravs de um cruzamento desrespeitando as normas de preferncia ou desrespeitando a sinalizao de Parada Obrigatria. A negligncia diz respeito prtica de uma ao com a falta das precaues normais por displicncia, indiligncia, como por exemplo, abster-se deixar o veculo estacionado devidamente freiado. A impercia refere-se prtica de determinada conduta com a falta de conhecimentos tcnicos para sua segura e correta execuo, como por exemplo, no saber conduzir um veculo automotor. 1.2.1.1 Culpa Inconsciente Mirabete22 explica que a culpa inconsciente, juntamente com a culpa consciente so espcies de culpa. Nesta, embora o resultado seja previsvel (condio sine qua non para o juzo21

20

JESUS, opus citatum, p. 306. MIRABETE, opus citatum, p. 149. 22 Ibidem, p. 150.21

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de culpabilidade do crime, como j descrito), o agente no antev a possibilidade do resultado por mera displicncia. Sobre a culpa inconsciente, Oliveira23 define-a atravs da afirmativa de que, (...) o agente no prev o resultado negativo para a sua ao ou omisso, porque incompetente para tanto, muito embora tal resultado seja absolutamente previsvel. A ttulo de ilustrao possvel citar o caso de indivduo que abandona arma de fogo displicentemente em local com fcil acesso a crianas. Embora este indivduo no deseje patrocinar um homicdio, sua conduta torna este resultado possvel por puro desleixo. Note-se que o resultado continua no sendo desejado pelo agente, ocorre por mera desateno. 1.2.1.2 Culpa Consciente ou Culpa com Previso De acordo com Bitencourt24, na culpa consciente o agente prev a possibilidade da produo do resultado ilcito, todavia, acredita sinceramente que este no venha a ocorrer. Notese que no bastar apenas a previsibilidade do resultado para que se configure a culpa consciente, ser tambm foroso que o agente no o deseje e se esforce para que este no ocorra. A previso cobrada do agente a chamada de objetiva25, ou seja, a que se seria de esperar de um cidado de raciocnio mediano que se encontrasse nas mesmas condies que ele. Em sua obra explica queA previsibilidade objetiva se determina mediante um juzo levado a cabo, colocando-se o observador (por exemplo, o juiz) na posio do autor no momento do comeo da ao, e levando em considerao as circunstncias do caso concreto cognocveis por uma pessoa inteligente, mais as conhecidas pelo autor e a experincia comum da poca sobre os cursos causais.

Damsio E. de Jesus26 exemplifica com a hiptese do caador que avista sua caa prxima a um confrade e percebe que, atirando no animal poder acertar em seu companheiro.

23 24

OLIVEIRA,Frederico de Abraho.Dolo e culpa nos delitos de trnsito.Porto Alegre:Sagra Luzzatto,1997,p.33. BITENCOURT, opus citatum, p. 232. 25 Ibidem, p. 229. 26 JESUS, opus citatum, p. 303.

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Confiando em sua pontaria e acreditando que no o atingir, dispara sua arma, matando-o. Perceba-se que o agente no assumiu a possibilidade da produo do resultado porque acreditava que sua habilidade seria suficiente para afast-lo. Sintetizando, Jesus27 relata que, para que se configure a culpa consciente devem estar presentes:1) vontade dirigida a um comportamento que nada tem com a produo do resultado ocorrido (...); 2) crena sincera de que o evento no ocorra em face de sua habilidade ou interferncia de circunstncia impeditiva, ou excesso de confiana (...); 3) erro de execuo.

Ressalva ainda que a culpa consciente equiparada inconsciente, sendo a pena in abstract igual para as duas espcies, pois, tanto vale no ter conscincia da anormalidade da prpria conduta, quanto estar consciente dela, mas confiando, sinceramente, em que o resultado lesivo no sobrevir. 1.3 CRIMES DE TRNSITO Os crimes de trnsito em espcie esto previstos essencialmente no Cdigo de Trnsito Brasileiro (Lei 9.503/97), do artigo 302 ao 312, aonde so previstas diversas condutas tpicas, tais como o homicdio culposo e a leso corporal culposa direo de veculo automotor, a conduo de veculo sobre a influncia de lcool, a participao em competio no autorizada em via pblica, dentre outras. Embora o Cdigo de Trnsito Brasileiro tenha inserido onze tipos penais em nosso ordenamento jurdico, limitaremos o objeto deste estudo incidncia do dolo eventual apenas aos tipos previstos nos artigos 302 (homicdio culposo) e 303 (leso corporal culposa), haja vista que, por se tratarem de crimes contra a vida, geram um sentimento maior de repulsa e desaprovao pela sociedade.

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Ibidem, p. 304.

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tambm pertinente o fato de que existem diversos estudos e publicaes sobre os referidos dispositivos legais, ao contrrio dos demais tipos penais contidos no Cdigo de Trnsito, dos quais at a busca por jurisprudncia dificultosa. Cabe ainda invocar que os citados dispositivos merecem ateno especial por fazerem previso de modalidade culposa, podendo dar ensejo sobre discusso sobre a incidncia da culpa consciente ou do dolo eventual (que teria o condo de mudar a capitulao do tipo previsto no Cdigo de Trnsito para o do Cdigo Penal).

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CAPTULO 2 DOLO EVENTUAL x CULPA CONSCIENTE 2.1 IMPORTNCIA DA CORRETA CAPITULAO DO TIPO PENAL O entendimento da correta adequao do tipo penal conduta percorrida pelo agente de suma importncia prtica forense uma vez que, usualmente o instituto da culpa consciente confundido com o dolo eventual (erro comum at a experientes operadores do direito). Esta pequena confuso pode trazer graves conseqncias para o autor de um delito de trnsito, eis que dependendo da capitulao dada pelo magistrado ao fato, a represso estatal se manifestar de forma mais ou menos severa a uma mesma conduta praticada pelo autor (que pode se dar atravs de penas privativas de liberdade ou outras formas de penalizao previstas em lei). O agente que responder a processo em funo de crime praticado com culpa consciente, responder pela modalidade culposa do mesmo (ou nem mesmo ser acusado de crime algum, caso exista previso expressa da modalidade culposa do crime). Se, contudo, for processado por crime praticado com dolo eventual, responder pela modalidade dolosa, o que resultar em substancial aumento da pena in abstract, alm do seguimento do processo pelo rito especial do Tribunal do Jri (nos casos de crimes contra a vida). No caso especfico do homicdio praticado com o uso de veculo automotor sendo este capitulado na forma culposa a pena a ser imposta variar entre dois a quatro anos de deteno (artigo 302 da Lei 9503/97), enquanto que, sendo feito o enquadramento com base no dolo eventual (artigo 121, caput do Cdigo Penal), a pena ir variar de seis a vinte anos de recluso (alm de seguir a tramitao especfica do Tribunal do Jri). 2.2 ASPECTOS DOUTRINRIOS

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Tanto a culpa consciente quanto o dolo eventual possuem como elemento comum a previsibilidade do resultado, pois, como j descrito anteriormente, a imprevisibilidade objetiva do resultado (a possibilidade que um cidado mediano teria de antever o resultado lesivo) torna a conduta impassvel de sano estatal. Neste mesmo sentido posicionou-se Bitencourt28 ao afirmar que sendo (...) imprevisvel o resultado no haver delito algum, pois se tratar do mero acaso, do caso fortuito, que constituem exatamente a negao da culpa. A diferenciao entre os dois institutos se dar essencialmente atravs da anlise do elemento volitivo, que se consubstancia na aceitao ou no do resultado previsto pelo agente. Enquanto na culpa consciente o agente no aceita sua produo e s age porque acredita que ter capacidade para evit-lo, no dolo eventual a produo do resultado aceita com indiferena pelo agente, tanto faz que ocorra. Esse tanto faz, dane-se, o elemento volitivo que se faz necessrio para que fique caracterizada na conduta do agente o dolo eventual. Bitencourt29 descreve de forma bastante didtica a mesma teoria em sua obra:Na hiptese de dolo eventual, a importncia negativa da previso do resultado , para o agente, menos importante do que o valor positivo que atribui prtica da ao. Por isso, entre desistir da ao ou pratic-la, mesmo correndo o risco da produo do resultado, opta pela segunda alternativa. J, na culpa consciente, o valor negativo do resultado possvel , para o agente, mais forte do que o valor positivo que atribui prtica da ao. Por isso, se estivesse convencido de que o resultado poderia ocorrer, sem dvida, desistiria da ao. No estando convencido dessa possibilidade, calcula mal e age. (...) O fundamental que o dolo eventual apresente estes dois componentes: representao da possibilidade do resultado e anuncia sua ocorrncia, assumindo o risco de produzi-lo.

Damsio E. de Jesus30 objetivo ao afirmar que o dolo eventual diferencia-se da culpa consciente, pois naqueleo agente tolera a produo do resultado, o evento lhe indiferente, tanto faz que ocorra ou no. Ele assume o risco de produzi-lo. Na culpa consciente, ao contrrio, o agente no quer o resultado, no assume o risco nem ele lhe tolervel ou indiferente. O evento lhe representado (previsto), mas confia em sua noproduo.

Fernando Capez31 delineia a diferena entre ambos os institutos de forma semelhante:28 29

BITENCOURT, opus citatum, p.229. Ibidem , p. 234. 30 JESUS, opus citatum, p. 303. 31 CAPEZ, Fernandes. Curso de direito penal. parte geral. 1 vol. So Paulo: Saraiva, 2001, p. 187.

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A culpa consciente difere do dolo eventual, porque neste o agente prev o resultado, mas no se importa que ele ocorra (se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar algum, mas no importa; se acontecer, tudo bem, eu vou prosseguir). Na culpa consciente, embora prevendo o que possa vir a acontecer, o agente repudia essa possibilidade (se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar algum, mas estou certo de que isso, embora possvel no ocorrer). O trao distintivo entre ambos, portanto, que no dolo eventual o agente diz: no importa, enquanto na culpa consciente supe: possvel, mas no vai acontecer de forma alguma.

Desta mesma forma, Mirabete32 afirma queA culpa consciente avizinha-se do dolo eventual, mas com ela no se confunde. Naquela (na culpa consciente), o agente, embora prevendo o resultado, no o aceita como possvel. Nesse (no dolo eventual), o agente prev o resultado, no se importando que venha ele a ocorrer.

Por ltimo citamos Rogrio Greco33 que, assim como os demais doutrinadores, reafirma a necessidade da indiferena do agente para que se caracterize o dolo eventual:Na culpa consciente, o agente, embora prevendo o resultado, acredita sinceramente na sua no-ocorrncia: o resultado previsto no querido ou mesmo assumido pelo agente. J no dolo eventual, embora o agente no queira diretamente o resultado, assume o risco de vir a produzi-lo. Na culpa consciente, o agente sinceramente acredita que pode evitar o resultado; no dolo eventual, o agente no quer diretamente produzir o resultado, mas, se este vier a acontecer, pouco importa.

Toda a doutrina consultada posiciona-se de forma unnime sobre o assunto, no sendo encontrada nenhuma obra que defendesse a aplicabilidade da teoria da representao, que se fundamenta essencialmente na previsibilidade do evento, no ingressando na anlise do animus dolandi do agente. Conclui-se ento que deve ser dispensada particular ateno anlise do fato, pois como visto, o dolo eventual diferencia-se da culpa consciente apenas em funo de um elemento subjetivo, que se traduz na indiferena ou no do agente produo do resultado lesivo. 2.2.1 Mtodo Para Identificao do Dolo Eventual Estando pacificado que essencial para uma correta adequao do tipo penal conduta percorrida pelo agente o conhecimento do elemento volitivo no momento da consumao do crime, pergunta-se: como identifica-lo? Como saber se o agente era realmente indiferente produo do resultado?32 33

MIRABETE, opus citatum, p. 139. GRECO, Rogrio. Curso de direito penal. parte geral. 4 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 223.

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O autor do delito dificilmente ir exprimir a sua verdadeira inteno no momento da execuo do crime, pois importaria na sua prpria confisso. Faz-se ento necessrio concluir por uma ou outra hiptese a partir da fria anlise das informaes que forem carreadas ao processo. O professor Damsio de Jesus34 segue a mesma linha de raciocnio ao afirmar que o julgamento deve pautar-se sobre a conduta percorrida pelo agente, e no pelos aspectos psicolgicos que determinaram aquela conduta:No se exige frmula psquica ostensiva, como se o sujeito pensasse consinto, conformo-me com a produo do resultado. Nenhuma justia conseguiria condenar algum por dolo eventual se exigisse confisso cabal de que o sujeito psquica e claramente consentiu na produo do evento; que, em determinado momento anterior ao, deteve-se para meditar cuidadosamente sobre suas opes de comportamento, aderindo ao resultado. Jamais foi visto no banco dos rus algum que confessasse ao juiz: no momento da conduta eu pensei que a vtima poderia morrer, mas, mesmo assim, continuei a agir. () O juiz, na investigao do dolo eventual, deve apreciar as circunstncias do fato concreto e no busc-lo na mente do autor, uma vez que, como ficou consignado, nenhum ru vai confessar a previso do resultado, a conscincia da possibilidade ou probabilidade de sua causao e a conscincia do consentimento.

Posiciona-se tambm desta forma o consagrado doutrinador Anbal Bruno35:A representao do resultado como possvel e a anuncia a que ele ocorra so dados ntimos da psicologia do sujeito, que no podem ser apreendidos diretamente, mas s deduzidos das circunstncias do fato. Da observao destas que pode resultar a convico da existncia daqueles elementos necessria ao julgamento da situao psquica do agente em relao ao fato como dolo eventual. Se elas no conduzem seguramente a esta concluso, e a dvida se mantm, devese admitir a soluo menos severa, que a da culpa consciente.

34 35

JESUS, opus citatum, p. 292. BRUNO, Anbal apud MOTA JUNIOR, Eliseu Florentino da. Dolo eventual ou culpa consciente? Em busca da distino. Justitia. So Paulo, v. 55, n. 162, p. 16, abr./jun., 1993.

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importante frisar que o julgamento sobre a existncia ou no do dolo dever se amparar apenas nas circunstncias em torno do fato. No dever ser feito juzo de valor sobre o carter do agente, pois este no ser alvo de apreciao, o fato tpico que dever ser reprimido na medida da culpabilidade do agente. De forma antagnica posiciona-se Oliveira36 em sua obra, ao afirmar que:() para ocorrncia do dolo indireto eventual () necessrio certo grau de vontade e esta se manifesta na esfera do subjetivo, no foro ntimo do agente, logo, no algo que possa ser percebido diretamente, porm, possvel extrair do carter e de todo o conjunto circunstancial que cercou o agir do indivduo.

Dada a impossibilidade material em se desvendar a verdadeira inteno do agente no decorrer do iter criminis, Damsio de E. Jesus37 em um parecer confeccionado por ocasio da morte do ndio patax Galdino, sugere um roteiro, baseado em quatro critrios objetivos a serem seguidos, para que se deslinde a verdade contida sob os fatos:1 - risco de perigo para o bem jurdico implcito na conduta; 2 - poder de evitao de eventual resultado pela absteno da ao; 3 - meios de execuo empregados; e 4 - desconsiderao, falta de respeito ou indiferena para com o bem jurdico.

Apesar do prestgio reconhecido ao consagrado doutrinador, a reduo da questo da capitulao do dolo eventual ao seguimento de uma srie de normas pr-ordenadas ou esquemas contestada por grande parte dos magistrados e da doutrina. O professor Rosa38 sugere a anlise de trs critrios subjetivos para que seja identificada a incidncia do dolo eventual ou culpa consciente, que devido sua pertinncia, devem ser aqui serem explorados. Primeiramente, sugerido que seja analisada a valorizao do resultado. Rosa descreve este critrio como sendo o valor que atribudo pelo agente ao resultado que se pretende obter. Explica que, na hiptese de dolo eventual, o valor dado ao resultado almejado 36 37

OLIVEIRA,Frederico de Abraho.Dolo e culpa nos delitos de trnsito.Porto Alegre:Sagra Luzzatto,1997,p.15. JESUS, Damsio E. de. O caso da morte do indgena patax H-H-He Galdino Jesus dos Santos: Ensaio sobre o dolo eventual, o preterdolo e a culpa consciente. Disponvel em: . Acesso em 20 mar. 2006. 19:00hs. 38 ROSA, Fbio Bittencourt da. Dolo eventual e culpa consciente. Revista dos tribunais, So Paulo, v. 64, n. 473, p. 276, mar., 1975.

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to elevado, que a possibilidade de incorrer em crime para atingi-lo torna-se aceitvel. Se outro lado, o valor atribudo ao resultado seja pequeno, fica mais propenso a se caracterizar a culpa consciente, eis que no seria razovel admitir que pessoa em s conscincia admitisse incorrer em crime para atingir pfio resultado. Nas prprias palavras do autor39,A diferena, ento, entre as duas modalidades de culpa lato sensu est em que no dolo eventual, o sujeito valoriza mais o resultado ilcito do que o lcito; logicamente, o contrrio ocorre na culpa consciente. Por isso se diz que no dolo indireto o indivduo assume o risco, anui (teoria do assentimento), isto , sua vontade se dirige diretamente a um propsito normal, permitido; acontece que para atingir esse fim poder ferir um bem penalmente protegido. Todavia, maior valor dado atitude lcita pretendida. Se soubesse com certeza que o dano adviria, mesmo assim no deixaria de agir (frmula de Franck).

Em seguida deve ser analisada a credibilidade do evento criminoso. Trata-se da necessidade de que a representao do ilcito exista na esfera da probabilidade, e no da possibilidade, ou seja, que seja possvel ao agente perceber que agindo de determinada forma, incorrer em um risco real, prximo, de que um crime seja cometido como conseqncia desta conduta. Quanto maior a previsibilidade da ocorrncia do crime, mais se aproximar o agente do dolo eventual e, consequentemente, mais se afastar da culpa consciente. De acordo com Rosa40,Quanto mais tenho certeza de que o dano ocorrer, mais obrigao terei de me privar da conduta que a isso pode produzir. Isso posto, o dolo eventual existir desde que o desate criminoso da ao ilcita seja encarado como algo provvel; se for meramente possvel, teremos a culpa consciente. (...) que a representao est ligada vontade. Se acredito de forma mais intensa acarretar o dano e no renuncio atitude, demonstro maior resistncia norma jurdica, o que leva a crer que assumo o risco do resultado.

Por fim, deve ser analisada a seriedade do dano, que vem a ser valorao da possvel conseqncia criminosa pelo agente. Quanto mais censurvel for esta, mais se aproxima o agente do dolo eventual, pois, quanto mais srio for o dano possvel, maior ser o dever de absteno deste e maior tambm ser a represso estatal atravs de penas mais severas.

39 40

Ibidem, p. 276. Ibidem, p. 276.

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Todavia, indiferentemente a quais critrios sero utilizados para que se decida por esta ou aquela qualificao, faz-se importante frisar que a anlise dever ser feita caso a caso, examinando-se minuciosamente as peculiaridades e provas de cada processo particularmente, conforme indicou o ilustre desembargador Torres Marques41 no Tribunal de Justia de SC:Nada obstante as tentativas reiteradas da doutrina em reduzir a soluo do problema a uma srie de esquemas racionais que pretendem ter aplicabilidade geral, a verdade que todos se demonstram insuficientes para o fim a que se destinam, seja porque impossvel se verificar intimamente o que se passa pela cabea do autor do fato no momento da ao tpica (o que no caso de um delito culposo ou com dolo eventual ainda mais difcil, visto que a conduta, em regra, permanece impune quando o resultado no ocorre), seja porque simplesmente impossvel reduzir algo to rico, complexo e variado, como as formas de comportamento humano a uma limitada srie de esquemas racionais tericos. (...) A soluo que vem sendo dada pela jurisprudncia dos Tribunais, a nosso ver de maneira adequada, tratar particularmente cada caso, levando em considerao o que h de comprovado nos autos e cotejar tais elementos de acordo com as regras de experincia e com a observao do que ordinariamente acontece, retirando de tais dados objetivos da lide a natureza do elemento subjetivo do agente. (...) Dessas digresses, duas concluses so obrigatrias em se tratando do elemento subjetivo nos delitos de trnsito: 1) no h uma resposta prvia ou frmula geral aplicvel ao caso: alguns acidentes com resultado antijurdico (morte ou leses) no sero punidos (...); a maior parte deles ser punida a ttulo de culpa inconsciente; alguns podem ser punidos a ttulo de culpa consciente; outros ainda a ttulo de dolo eventual (...); e, por fim, alguns delitos cometidos na direo de veculo automotor podem ser punidos a ttulo de dolo direto; 2) a resposta para a questo de qual elemento subjetivo animou a conduta do agente no ser retirada do seu ntimo, mas deve obrigatoriamente ser extrada dos dados objetivos coletados nos autos.

2.2.2 In dubio pro reo ou in dubio pro societate? Outra questo importante e um pouco controversa a ser depurada a aplicabilidade do princpio do in dubio pro reo ou do in dubio pro societate, quando existir dvida sobre a capitulao do fato modalidade culposa (culpa consciente) ou dolosa (dolo eventual). 2.2.2.1 In dubio pro reo O princpio do in dubio pro reo um dos preceitos fundamentais do direito penal, e consubstancia-se na presuno de que, pairando qualquer espcie de dvida no decorrer do processo, esta deve ser decidida de forma mais favorvel ao ru. Neste sentido posicionou-se o consagrado doutrinador Nelson Hungria42:41 42

TJ/SC Recurso Crimal 2005.014789-1, de Blumenau julg. em 28/06/2005. HUNGRIA, Nelson apud GRECO, opus citatum, p. 47.

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No caso de irredutvel dvida entre o esprito e as palavras da lei, fora acolher, em direito penal, irrestritamente, o princpio do in dubio pro reo (isto , o mesmo critrio de soluo nos casos de prova dbia no processo penal). Desde que no seja possvel descobrir-se a voluntas legis, deve guiar-se o intrprete pela conhecida mxima: favorablia sunt amplianda, odiosa restringenda. O que vale dizer: a lei penal deve ser interpretada restritivamente quando prejudicial ao ru, e extensivamente no caso contrrio.

2.2.2.2 In dubio pro societate O princpio do in dubio pro societate teria sua aplicao na esfera penal limitada ao momento da deciso de pronncia, a ser aplicado exclusivamente nos crimes que sigam o rito especial do Tribunal do Jri (nada mais do que um mero juzo de admissibilidade da acusao, nos termos em que foi proposta a denncia). O Cdigo de Processo Penal em seu artigo 408 especifica que, nos crimes contra a vida, para que o juiz decida pela pronncia do ru, bastar mero indcio de autoria e materialidade do fato, sendo enviado em seguida ao plenrio do Tribunal do Jri, aonde os jurados de forma soberana decidiro o mrito da ao penal. Trata-se de princpio antagnico ao anterior, pois neste, em caso de dvida, o magistrado dever optar pela medida mais grave para o ru, buscando com isto a proteo do corpo social. Mirabete43 explica queComo juzo de admissibilidade, no necessrio pronncia que exista a certeza sobre a autoria que se exige para a condenao. Da que no vige o princpio do in dubio pro reo, mas se resolvem em favor da sociedade as eventuais incertezas propiciadas pela prova (in dubio pro societate). O juiz, porm, est obrigado a dar os motivos de seu convencimento, apreciando a prova existente nos autos, embora no deva valor-los subjetivamente. Cumpre-lhe limitar-se nica e to-somente, em termos sbrios e comedidos, a apontar a prova do crime e os indcios da autoria, para no exercer influncia no nimo dos jurados, que sero os competentes para o exame aprofundado da matria. Isso no o dispensa, porm, de enfrentar e apreciar as teses apresentadas pela defesa, sob pena de nulidade.

43

MIRABETE, Julio Fabbrini. Cdigo de Processo Penal. 4 ed. So Paulo: Atlas, 1996, p. 481 In: Recurso Criminal, n 99.000247-0, TJ/SC, Des. Rel. Paulo Gallotti.

30

O ilustre promotor Paulo Rangel44 explica a corrente majoritria quando afirma que (...) na dvida, diante do material probatrio que lhe apresentado, deve o juiz decidir sempre a favor da sociedade, pronunciando o ru e o mandando a jri, para que o conselho de sentena manifeste-se sobre a imputao feita no libelo, todavia, logo em seguida assume posio contrria, defendendo a interpretao a favor do ru no caso de dvida, pois,(...) se h dvida, porque o Ministrio Pblico no logrou xito na acusao que formulou em sua denncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, no sendo admissvel que sua falncia funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a jri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, o da ntima convico.

2.2.3 Deciso de Pronncia ou Desclassificao? Sendo a denncia oferecida com base no homicdio doloso (interessa-nos particularmente aquela amparada no dolo eventual), a primeira oportunidade que o magistrado ter para se manifestar sobre a denncia ser justamente no momento da deciso de pronncia, quando ento ter a oportunidade de aceit-la nos moldes em que foi formulada ou desclassific-la para a modalidade culposa, remetendo o processo para o juzo monocrtico. A desclassificao tem por base o disposto no artigo 410 do Cdigo de Processo Penal e consiste basicamente na retirada da infrao de uma classificao inicial para outra (homicdio culposo, leso corporal seguida de morte). Neste aspecto, a incidncia de um ou outro princpio trar conseqncias distintas. Numa situao hipottica de dvida sobre o animus dolandi do agente, havendo o entendimento pela aplicao do princpio do in dubio pro societate, a acusao ser mantida nos moldes em que foi proposta (na modalidade de crime contra a vida), o que ocasionar a remessa do processo ao plenrio do Tribunal do Jri, o que fatalmente implicar na absoro de custos maiores pelo ru (uma vez que uma boa defesa no Tribunal do Jri requer advogados mais capacitados), alm claro, da expectativa de condenao a uma pena muito superior a aquela devida aos crimes culposos.44

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 6 ed. Rio de Janeiro: Lmen Jris: 2002, p. 441.

31

J na hiptese da aplicao do princpio do in dubio pro reo, o magistrado dever decidir pela desclassificao do crime para a modalidade culposa, com sua conseqente remessa para o juzo monocrtico, passando ento a seguir o rito ordinrio. Da mesma forma, se a denncia for feita com base no homicdio culposo e, ao analisar o fato, o magistrado entender que na realidade trata-se de crime doloso, poder reconhecer sua incompetncia de ofcio e remet-lo ao Tribunal do Jri para que l tenha prosseguimento. Extensa jurisprudncia corrobora a aplicao do princpio do in dubio pro societate na deciso de pronncia:Demonstrados a materialidade do delito e os indcios de autoria, a regra a pronncia. Nessa fase processual, h de ser observado o brocardo in dubio pro societate, razo pela qual s se opera a desclassificao do crime, de doloso para culposo, se a acusao por crime doloso for manifestamente inadmissvel. Admitida a acusao, ela, com todos os eventuais questionamentos, deve ser submetida ao Tribunal do Jri, que, em nosso sistema, o Juiz natural de tais causas. (...) Em delito de trnsito, impossvel a generalizao de se excluir, sempre, o dolo. Havendo indcios da ocorrncia do dolo eventual, no se permite, na pronncia, a desclassificao para o delito culposo" (TJ/MG, 2 Cmara Criminal, relator Desembargador Luiz Carlos Biasutti, RSE n. 308.821-8/00/Belo Horizonte, julgado em 5.12.2002). MATERIALIDADE COMPROVADA - INDCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA - DOLO EVENTUAL EM TESE CONFIGURADO - PRETENDIDA DESCLASSIFICAO PARA HOMCIDIO CULPOSO - DVIDA QUE SE RESOLVE EM FAVOR DA SOCIEDADE - NECESSIDADE DE APRECIAO DAS TESES DEFENSIVAS PELO TRIBUNAL DO JRI RECURSO DESPROVIDO Na sentena de pronncia exige-se apenas prova da existncia do crime e indcios da autoria, invertendo assim a regra do in dubio pro reo para o in dubio pro societate (TJ/SC, Recurso Criminal no 2006.000048-6, julg. em 21/02/06, rel. des. Solon dEa Neves). Segundo precedentes, "o juzo de pronncia , no fundo, um juzo de fundada suspeita e no um juzo de certeza. Admissvel a acusao, ela, com todos os eventuais questionamentos, deve ser submetida ao juiz natural da causa, em nosso sistema, o Tribunal do Jri". (STJ, REsp 225.438/CE, Rel. Min. Jos Arnaldo da Fonseca)

Bitencourt45 defende em sua obra que em caso de dvida, deve prevalecer a exegese mais benfica para o ru, pois a distino entre dolo eventual e culpa consciente resume-se aceitao ou rejeio da possibilidade de produo do resultado. Persistindo a dvida entre um e outra, dever-se- concluir pela soluo menos grave: pela culpa consciente.

45

BITENCOURT, opus citatum, p. 234.

32

A leitura desatenta do texto narrado acima pode levar a uma interpretao enganada. Embora o ilustre doutrinador defenda abertamente a aplicao do princpio do in dubio pro reo em caso de dvida entre a capitulao do dolo eventual ou culpa consciente, na realidade ele refere-se ao momento do julgamento do mrito da ao penal, e no ao momento da formulao do juzo de admissibilidade desta pelo magistrado, quando dever haver incidncia do princpio do in dubio pro societate. Paulo Rangel, como visto anteriormente, defende a aplicao do princpio do in dubio pro reo at mesmo no momento da deciso de pronncia, sendo seguido por Shecaira 46 que tambm defende a desclassificao do crime doloso para culposo quando houver dvida sobre a incidncia do dolo eventual ou culpa consciente, justificando que a anlise destes dispositivos seria por demais tcnica para ser apreciada por juzes leigos, devendo ser adotada a medida menos grave ao ru. Esta posio tambm foi defendida pelo ex-ministro do STJ, Francisco de Assis Toledo47:(...) transferir para o Jri a deciso sobre se a hiptese dos autos de dolo eventual ou culpa consciente, em relao ao evento da morte, ser (isto sim no mnimo) uma temeridade, ante as dificuldades bvias de compreenso desses conceitos por parte de pessoas leigas. A matria comporta-se, perfeitamente, no mbito da sentena de impronncia ou de desclassificao, nos expressos termos do art. 410 do CPP, seja por inexistir dvida razovel a respeito, seja por estar diretamente relacionada com a competncia do juzo que dever julgar o mrito da causa (...)

Todavia, a despeito da fundamentao aqui exposta, a corrente de maior aceitao no meio doutrinrio ainda a que adota o princpio do in dubio pro reo apenas no momento da resoluo do mrito da ao, posicionando-se pela aplicao do in dubio pro societate no momento da deciso de pronncia (optando assim por dar continuidade ao rito prprio ao Tribunal do Jri), conforme explica Moreira48:46

SHECAIRA, Srgio Salomo. Dolo eventual e culpa consciente. Revista brasileira de cincias criminais. So Paulo, v. 10, n. 38, p. 149, abr./jun., 2002. 47 Ibidem, p. 149. 48 MOREIRA, Adriana Imbassahy Guimares. Breves comentrios sobre o princpio da ntima convico e a incomunicabilidade entre os jurados. Disponvel em: .

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O procedimento dos crimes dolosos contra a vida escalonado. Numa primeira fase, vige o princpio do in dubio pro societate, findando-se com a sentena de pronncia. Havendo qualquer dvida sobre a materialidade e autoria delitivas deve o ru ser pronunciado e levado a julgamento perante o Tribunal Popular. Na Segunda fase, um dos princpios basilares do nosso sistema penal in dubio pro reo retornaria, em tese. Assim, havendo dvida sobre materialidade e autoria do ru, impe-se a absolvio.

Neste mesmo sentido tambm se manifestou majoritariamente a jurisprudncia pesquisada, encontrando-se o respaldo de decises at do Superior Tribunal de Justia.

Acesso em 30 abr. 2006. 21:00hs.

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CAPTULO 3 ANLISE DA JURISPRUDNCIA 3.1 CONCEITOS ELEMENTARES APLICADOS JURISPRUDNCIA As decises judiciais, em regra, reafirmam os mesmos conceitos e princpios j abordados. Todavia, mesmo dominando a base terica e conceitual que envolve o tema, sua aplicao na prtica demonstra-se complexa e exige muita cautela por parte do magistrado quando da anlise de sua aplicabilidade. Apenas a ttulo de ilustrao, apresento aqui o acrdo proferido no Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul em 1987, o qual se destaca por ter sua construo em plena consonncia com a doutrina j analisada, servindo de referncia para a compreenso da capitulao do dolo eventual aos crimes de trnsito49:RELATRIO: 1. PHS foi denunciado, (...) como incurso no disposto pelo art. 121, caput, do Cdigo Penal e art. 62 da Lei das Contravenes Penais, em face dos fatos (...): (...) o denunciado PHS, dirigindo o caminho Merdes-Benz(...), embriagado, atropelou conscientemente e matou Arneu Rieger, ocasionando-lhe mltiplas fraturas na cabea e no tronco com desorganizao total da massa enceflica. (...) o denunciado dirigia o veculo Mercedes-Benz em direo a Trs Passos, vagarosamente. Repentinamente, o denunciado trocou de pista, ficando na contramo, mas sempre em direo cidade de Trs Passos e, nessa posio, atropelou a vtima, que caminhava junto sarjeta. JLE, que tudo presenciara, correu ao local, pois o caminho parara, mas permanecia funcionando. Ao ver a vtima cada, junto ao rodado esquerdo do caminho, JLE bateu na cabine do caminho e disse ao denunciado: Pare que tem gente debaixo do caminho. Dito isto, o denunciado tentou arrancar o veculo e no conseguiu, deixando o caminho recuar meio metro, aproximadamente. Ento, arrancou acelerando fortemente o veculo e passou sobre o corpo da vtima. JLE continuou gritando e correu atrs do caminho, pedindo que o denunciado parasse, mas no foi atendido. Nessa ocasio, JLE viu a placa do caminho, que era XB-0534. Ao retornar sua mo de direo (lado direito da estrada), o denunciado quase atropelou a menina CMS que transitava naquele local. 2. Ao final, foi pronunciado nos termos da pretenso ministerial(...). VOTO DO RELATOR: A prova indica que o ru foi advertido pela testemunha JLE, sobre a presena de uma pessoa sob o caminho e que, apesar dessa advertncia, no tomou nenhuma providncia no sentido de evitar o acidente. Ao contrrio, deu partida ao veculo.49

TJ/RS Rec. Crim. 687014589 1 C. Rel. Des. Jorge Alberto de Moraes Lacerda J. 10/08/87.

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Ora, Sr. Presidente, esse desinteresse pela sorte daquela que viria a ser a vtima que extrema, que caracteriza a diferena entre dolo eventual e culpa consciente. O ru demonstrou nenhuma importncia pelo que poderia ocorrer. No se trata de ter confiado no ocorresse o resultado, porquanto o que existe nos autos at o momento est a indicar ter havido, realmente, um desinteresse real pela sorte da vtima. E isso o quantum satis para deixar caracterizado o dolo eventual. Trata-se, a pronncia, de uma pea de cognio incompleta, cabendo assim, ao Jri, posteriormente, examinar a correo, ou no, da tese acusatria. Meu voto no sentido da confirmao da deciso de pronncia. Presidente (Des. Marco Aurlio C. M. Oliveira): Ouvindo o voto de V. Exa., lembrei-me daquela velha lio de Nelson Hungria: Toda vez que o ru age na dvida, a sua conduta gravita na rbita do dolo eventual. (...) De maneira que quanto a esse fundamento, em relao a esse ponto de vista, acompanho a manifestao do eminente Relator. O Des. Cristovam Daiello Moreira De acordo. Acredito at que ele no agiu na dvida, agiu indiferente dvida.

Atravs de uma anlise minimamente atenciosa possvel perceber que trata-se de hiptese de ocorrncia de dolo eventual pois, ao contrrio da maior parte dos casos submetidos ao judicirio, neste facilmente identificvel a indiferena com que a agente agiu com relao produo do resultado morte da vtima. Mesmo aps ter sido alertado por um transeunte da existncia de uma pessoa cada prxima s rodas do veculo, o condutor acelerou o veculo, passando por sobre o corpo da vtima, eliminando qualquer possibilidade de sobrevivncia, evidenciando assim sua anuncia do agente para com o resultado. A previsibilidade do evento tambm fica comprovada pelo fato do condutor estar embriagado, o que demonstra que, assumiu os riscos de um possvel evento, uma vez que os efeitos do lcool sob a coordenao do motorista so notrios. Nota-se que esta interpretao foi assimilada tanto pelo juiz que prolatou a deciso de pronncia em primeira instncia, como pelo relator, o qual afirmou que (...) esse desinteresse pela sorte daquela que viria a ser a vtima que extrema, que caracteriza a diferena entre dolo eventual e culpa consciente. Embora o desembargador Marco Aurlio C. M. Oliveira tambm se posicione pela ocorrncia do dolo eventual, declara haver dvida sobre o animus dolandi do agente, invocando o princpio in dubio pro societate para justificar a deciso de pronncia. Esta afirmativa

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contestada pelo desembargador Cristovam D. Moreira que, de forma acertada, defende que o agente agiu de forma indiferente dvida. Na realidade, a conduta do autor do fato neste caso foi to desumana e reprovvel que chega a ensejar o entendimento de dolo direto. 3.1.1 Desclassificao de Modalidade Passaremos agora a analisar uma deciso judicial em que, ao contrrio da anterior, no h acolhimento do dolo eventual, ocasionando a desclassificao do crime da modalidade dolosa para a culposa. Norteando-se pelos fundamentos j explorados no item 2.2.3, o Tribunal de Justia de Mato Grosso do Sul decidiu pela desclassificao da imputao do crime do dolo eventual para a culpa consciente em ocorrncia de atropelamento50 do qual resultaram duas vtimas fatais:RELATRIO: Marcelo N. R. foi denunciado por infrao ao artigo 121, caput, por duas vezes, pelo artigo 129, 1, I e II, e pelo artigo 69, todos do Cdigo Penal, porque (...), dirigindo uma camionete tipo D-10, em velocidade acima da permitida para o local e sob efeito de bebida alcolica, perdeu o controle do veculo, vindo a subir na calada e a colher duas senhoras, que faleceram em conseqncia de terem sido atingidas pelo veculo, alm de ferir uma terceira pessoa. Foi o ora recorrente preso e autuado em flagrante e mantido preso at que o Juiz de Direito da Vara do 1 Tribunal do Jri desta Comarca, entendendo que o ru no agiu com dolo, quer direto, quer eventual, desclassificou a infrao para a competncia do Juiz Singular, dando-o como incurso nas penas do artigo 121, 3, e 129, 6, ambos do Cdigo Penal.(...) Dessa deciso, o Ministrio Pblico () interps recurso em sentido estrito, pretendendo, nas extensas razes, que o ru seja pronunciado nos termos da denncia e julgado pelo Tribunal Popular. (...) VOTO DO RELATOR: As provas existentes nos autos, (...) j havia gerado uma certa divergncia no sentido da competncia, visto que a propenso era de serem os autos encaminhados Justia Criminal Comum e no a uma das varas da competncia do Jri. (...) Todavia, em que pese ter sido a denncia recebida como sendo da competncia do Jri, ao longo da construo criminal restou evidenciado, de forma cabal, tratar-se de um delito de acidente de trnsito, delito este culposo por excelncia. (...) No h provas nos autos de que o ru tivesse a menor das intenes de provocar as mortes e as leses imputadas como sendo dolosas. (...) Pouco importa o fato de estar o ru sob efeito de substncia alcolica ou de efeito anlogo, em quantidade superior quela prevista na lei de trnsito, pouco importa tambm se o recorrido imprimia velocidade um pouco superior quela que seria o limite razovel. O que importa saber se, dirigindo o veculo sob efeito de substncia alcolica, imprimindo velocidade um pouco superior permitida, a manobra por ele praticada, que implicou a perda do controle do veculo e50

TJ/MS Recurso em sentido estrito n 2001.005981-1/0000-00 Rel. Des. Jos Benedito de Figueiredo.

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conseqente atropelamento das vtimas, foi acidental ou teria ele manobrado de maneira a aceitar um possvel resultado danoso. O dolo eventual pressupe que o agente pratica a ao aceitando um resultado que, embora no queira, uma vez alcanado, era perfeitamente previsvel, ou seja, embora no queira o resultado admitia que poderia ocorrer, enquanto, na culpa, o agente d causa ao resultado por imprudncia, negligncia ou impercia, ou seja, a ocorrncia de um resultado no procurado nem admitido, embora haja a previsibilidade da ocorrncia, que diferente da aceitao de um resultado como alternativa. (...) Desse modo, o recorrido deu causa ao resultado, perdeu o controle do veculo e o veculo, totalmente desgovernado, que subiu calada e acabou por atingir as vtimas, e ainda causou dano material em um imvel. (...) Se o ru nem sequer tinha o controle do veculo, no h querer lhe imputar a prtica de um ato voluntrio, tendente obteno de um resultado. (...) Rejeito o recurso na sua pretenso de ver na conduta do ru Marcelo N. R. um dolo, quando, na realidade, a sua conduta ajusta-se quela definida como culpa stricto sensu ou culpa propriamente dita, que no pode nem deve ser confundida com culpabilidade.

Note-se que, nesta deciso o relator afirma de forma taxativa que os crimes de trnsito so culposos por excelncia, com esta redao o magistrado admite j possuir um juzo previamente formado sobre a inadmissibilidade da incidncia do dolo eventual aos crimes de trnsito, indiferente s circunstncias que envolvam o fato. Sendo esta a postura adotada pelo magistrado, no lhe resta outra opo a no ser pela desclassificao do crime da modalidade dolosa para a culposa. Embora toda a doutrina pesquisada posicione-se de forma unssona sobre a necessidade da identificao do animus dolandi para que se configure o dolo eventual, o juiz no deve esperar frmula psquica ostensiva, devendo extrair o elemento subjetivo do crime dos fatos concretos. No cabe ao magistrado desvendar o que se passava pela mente do agente no iter criminis, pois caso assim proceda, estar incapacitado a identificar a conduta dolosa. Como j demonstrado anteriormente, o Superior Tribunal de Justia j se posicionou afirmando que ao embriagar-se voluntariamente, o agente assume os riscos advindos de sua conduta posterior. Ademais, a jurisprudncia firme no sentido de pronunciar o ru em caso de dvida, aplicando-se o princpio in dubio pro societate. No caso em tela, no restando dvidas quanto voluntariedade da embriaguez, no nos parece ter sido a posio defendida pelo ilustre desembargador a mais acertada. Deveria ter

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decidido pela pronuncia do ru eis que, naquele estgio processual vigorava o princpio do in dubio pro societate. 3.2 ADMISSIBILIDADE DO DOLO EVENTUAL AOS CRIMES DE TRNSITO Como j foi abordado anteriormente, para que ocorra o dolo eventual, faz-se necessria a previsibilidade do resultado e o consentimento do agente para com o resultado. Com base neste ltimo pressuposto, parte da doutrina entende pela inadmissibilidade do dolo eventual em crimes de trnsito que resultem em dano potencial ao prprio agente, como colises frontais e transversais. Esta corrente doutrinria parte da hiptese de que no razovel admitir que em determinadas condutas como por exemplo forar ultrapassagem pela contramo em via de mo dupla o agente aceite a possibilidade de colidir frontalmente contra outro veculo, colocando sua prpria integridade em risco. Para esta corrente, acreditar que este condutor consentiu com a possibilidade de uma coliso frontal, expondo sua prpria vida ao risco de morte, implica acreditar que o agente agiu imbudo de um desejo suicida. Desta mesma forma posicionou-se o ilustre professor Nelson Hungria51 ao relatar caso real que acompanhou no Estado do Rio Grande do Sul:Dentre alguns casos, a cujo respeito fomos chamados a opinar, pode ser citado o seguinte: trs rapazes apostaram e empreenderam uma corrida de automveis pela estrada que liga as cidades gachas de Rio Grande e Pelotas. A certa altura, um dos competidores no pde evitar que o seu carro abalroasse violentamente com outro que vinha em sentido contrrio, resultando a morte do casal que nele viajava, enquanto o automobilista era levado em estado gravssimo, para um hospital, onde s vrias semanas depois conseguiu recuperar-se. Denunciados os trs rapazes, vieram a ser pronunciados como co-autores de homicdio doloso, pois teriam assumido ex ante o risco das mortes ocorridas. Evidente o excesso de rigor: se estes houvessem previamente anudo a tal evento, teriam, necessariamente, consentido de antemo na eventual eliminao de suas prprias vidas, o que inadmissvel. Admita-se que tivessem previsto a possibilidade do acidente, mas, evidentemente, confiariam em sua boa fortuna, afastando de todo a hiptese de que ocorresse efetivamente. De outro modo, estariam competindo, in mente, estupidamente, para o prprio suicdio.51

HUNGRIA, Nelson apud WUNDERLICH,Alexandre.O dolo eventual nos homicdios de trnsito:uma tentativa frustrada. JUS Navigandi, Teresina, a.4, n.43, jul. 2000. Disponvel em . Acesso em 05 nov. 2005. 02:00h.

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Neste mesmo sentido manifestou-se Wunderlich52 ferrenho defensor da inaplicabilidade do dolo eventual aos crimes de trnsito ao declarar que o dolo eventual (...) no um dolo de borracha. A elasticidade do conceito tamanha que chegamos ao ponto de tentar caracterizar o dolo eventual em acidentes de trnsito, onde, num raciocnio lgico, seria impossvel admitir-se a presena do elemento volitivo. Em outra deciso polmica53 proferida pelo desembargador Reynaldo Ximenes Carneiro, ao analisar caso de atropelamento que resultou na morte de uma vtima e na perda do membro inferior de outra, causado por condutor em estado de embriaguez e excesso de velocidade, o magistrado decidiu pela ocorrncia da culpa consciente por entender pela impossibilidade da incidncia de dolo eventual nos crimes de trnsito. No referido acrdo, o relator alega que em tema de delitos de trnsito, no se coaduna com o entendimento de que possa estar o agente imbudo do elemento subjetivo relativo ao dolo eventual.... Com a devida vnia, esta no parece ser a interpretao mais adequada. So inmeras as decises, em todos os Estados brasileiros, que acolhem a possibilidade da incidncia do dolo eventual aos crimes de circulao, sendo esta tambm a posio mantida pelos tribunais superiores. Quando da anlise do mesmo processo pelo STJ em sede de recurso extraordinrio, o ministro Gilson Dipp54 (STJ) reformou a referida deciso, fundamentando com a alegao de queO Tribunal a quo desclassificou a conduta do ru para a modalidade culposa, sob o fundamento de que em delitos de trnsito no se admite a hiptese de dolo eventual, uma vez que o agente no assume o risco de produzir o resultado. (...) descabida a tese de que os delitos decorrentes de acidentes de trnsito so sempre culposos, por se tratar de uma generalizao, no admitida por esta Corte. (...) Reconhecida, na sentena de pronncia, a ocorrncia de dolo na conduta do52

WUNDERLICH,Alexandre.O dolo eventual nos homicdios de trnsito:uma tentativa frustrada.JUS Navigandi, Teresina, a.4 ,n.43, jul. 2000. Disponvel em . Acesso em 05 nov. 2005. 02:00h. 53 TJ/MG Recurso em sentido estrito n 1.0382.02.025279-9/001(1). 54 STJ Recurso Especial n 719.477/MG.

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agente, no cabe a sua excluso sob o frgil fundamento de que os delitos de trnsito s so punveis ttulo de culpa.

Ainda nesta mesma esteira posicionou-se o ministro Jos Arnaldo da Fonseca ao afirmar que este Egrgio Superior Tribunal de Justia j se manifestou sobre no ser possvel generalizao no sentido de se excluir, sempre, o dolo em delitos praticados no trnsito55. 3.3 AFRONTA AO PRINCPIO DA LEGALIDADE PELO PODER JUDICIRIO 3.3.1 Mudanas Advindas da Lei 9.503/97 e o Dolo Eventual Em tese o advento da Lei 9.503/97 no teria o condo de alterar o entendimento dos Tribunais sobre a questo da incidncia do dolo eventual, haja vista que no houve absolutamente nenhuma mudana na teoria do dolo e da culpa adotadas pelo legislador, eis que estas encontram-se no Cdigo Penal. Seria leviano afirmar categoricamente que houve incremento substancial no nmero de julgados acatando a ocorrncia de dolo eventual nos crimes de trnsito, haja vista que, para apurar este fenmeno de forma isenta seria necessrio efetuar levantamento estatstico de todos os julgados de uma determinada rea, realizando-se ento a comparao antes e aps a vigncia da Lei 9.503/97. Todavia, a hiptese acima mencionada (acrscimo no nmero de julgados amparados no dolo eventual aps o ano de 1997) foi citada em mais de um artigo pesquisado, o que nos faz acreditar que o referido fenmeno esteja realmente ocorrendo, a ponto de se fazer sentir na prtica pelos operadores do direito. Esta alterao se fez to perceptvel que o Juiz de Direito, Dr. Leandro Passig Mendes56 abordou o fenmeno em sentena criminal:Particularmente nos chamados crimes de trnsito, que at bem pouco tempo no possuam diploma legislativo especfico, que ocorreu com a vigncia da Lei n 9.503/97, que tipificou os delitos cometidos na direo de veculos automotores e aumentou sensivelmente as punies penais e administrativas, a questo mereceu55 56

STJ Recurso Especial n 225.438/CE. Sentena criminal prolatada na vara criminal do Balnerio de Cambori/SC em 01/10/98.

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tratamento bastante diversificado, no sendo raros os casos de pronncia em infraes dessa natureza, que contaram com o apoio da mdia e de parcela significativa da populao, abalada com os elevados ndices de mortes no trnsito. (...) Antes da vigncia da Lei n 9.503/97, evidentemente, a matria relativa aos crimes de trnsito no tinha disciplina especfica e as mortes ocorridas eram tipificadas no art. 121, 3, do Cdigo Penal, com pena de deteno entre um e trs anos, que no raramente acarretavam penas menores que geralmente eram substitudas por restritivas de direitos, conforme a previso do art. 44 do Cdigo Penal. (...) Todavia, a falta de legislao especfica sobre a matria e punies diferenciadas daquelas previstas pela lei penal comum para os crimes de trnsito no podem ser utilizadas como argumentos vlidos para que haja ampliao indevida do conceito de dolo eventual, com flagrante violao dos princpios do direito penal moderno, que repele a responsabilidade objetiva ou decorrente de presuno. (...) Por isso, se antes da Lei n 9.503/97, no havia punio mais eficaz e severa em relao aos crimes de trnsito, no se pode racionalmente transferir a questo para o campo do dolo eventual e, com base nisso, acolher a denncia por crime doloso contra a vida onde efetivamente no existem elementos para tanto.

A justificativa encontrada que esta mudana se daria principalmente em funo do clamor popular por maiores punies, haja vista que, como j fora dito, no ocorreu nenhuma mudana substancial na legislao que justifique este incremento. 3.3.2 O Clamor Popular e a Imparcialidade do Julgador O juiz na posio de condutor do processo se v por vezes pressionado pela opinio pblica a reprimir de forma mais enrgica os crimes de grande repercusso. Este anseio em corresponder expectativa popular pode produzir distores na interpretao dos fatos e culminar na indevida condenao por crime na modalidade dolosa do agente que agiu apenas com culpa. Sobre este assunto, Bitencourt57 narra que na dcada de 90 iniciou-se no TJ/RS um movimento chamado de poltica criminal do terror, sendo seguido por forte corrente jurisprudencial que passou a reconhecer a existncia de dolo eventual em acidentes de trnsito de grande repercusso, de forma indiscriminada. Como ilustrao, possvel citar o acrdo58 prolatado no Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, no qual o desembargador relator descreve de forma objetiva no s que sua

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BITENCOURT, Csar Roberto apud ANDREAZZA, Gabriela Lucena. Racha: dolo eventual ou culpa consciente? Revista mbito jurdico, a. 8, n. 30, 30 jun. 2006. Disponvel em: . Acesso em 31 out.2006. 21:30h. 58 Apelao Criminal n 694035692, 4 Cmara Criminal do TJ/RS, Carazinho, 23.06.94.

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motivao para decidir daquela forma se ampara nos reclamos sociais, como tambm que existe verdadeira construo jurisprudencial com base nesta presso popular:Dolo eventual. Acidente de trnsito. Para atender reclamos sociais contra aquilo que denominam de impunidade pelas penas brandas em acidente de veculo, a jurisprudncia tem aceitado a tese do dolo eventual em que o agente, depois de beber grande quantidade de cerveja, em casa noturna, sai em velocidade elevada e abalroa outro veculo estacionado, ferindo vrias pessoas. Apelo improvido. Condenao mantida.

Nesta mesma esteira, o desembargador Luiz Carlos Biasutti59 afirmou em deciso judicial quefaz pouco tempo que os delitos de trnsito eram sempre culposos. Hoje, com o crescente nmero de acidentes provocados por motoristas irresponsveis, que fazem de seu veculo uma arma, retirando a vida de pedestres e de outros motoristas responsveis, j se admite o indiciamento, em casos tais, por delito doloso.

Manifestando seu repdio a este movimento pr-dolo, Andreazza60 pontua quepor deciso de poltica criminal, o Poder Judicirio resolveu dar sociedade a resposta por ela esperada, punindo tais delitos de grande repercusso social com seriedade, o que s pode ser feito no mbito do dolo. Isto tem sido demonstrado como clara tendncia extrada das decises mais recentes dos principais tribunais do pas, no sentido de afirmar a impossibilidade de afastamento genrico do dolo eventual, ainda que em detrimento da tcnica e do primor interpretativo da lei.

Os magistrados tm o dever de atuar sempre com imparcialidade e limitados ao princpio da legalidade (previsto no artigo 5, XXXIX da CF/88, () no h crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prvia cominao legal). No obstante, ao julgar um fato, o juiz dever emitir uma deciso imparcial, baseada apenas nas provas carreadas aos autos do processo e, ao delimitar a pena, esta haver de ser adstrita aos limites previstos pelo legislador. A Constituio Federal estatuiu, em seu artigo 95, uma srie de prerrogativas inerentes ao exerccio da magistratura, de forma que os juzes gozassem de total liberdade para apreciar os pleitos a eles submetidos, sem risco de retaliaes por ferirem interesses polticos. inconcebvel que, em tempos contemporneos, membros do poder judicirio atuem de forma parcial e dirigida para satisfazer a pretenses populistas, quando existem dispositivos59 60

Recurso em Sentido Estrito n 1.0000.00.308821-8/000(1), Belo Horizonte, TJ/MG, pub. em 04/02/2003. ANDREAZZA, Gabriela Lucena. Racha: dolo eventual ou culpa consciente? Revista mbito jurdico, a. 8, n. 30, 30 jun. 2006. Disponvel em: . Acesso em 31 out.2006. 21:30h.

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constitucionais especificamente criados para resguardar sua iseno. No este o papel que se espera do judicirio. Se as leis no mais espelham as aspiraes da sociedade, ento compete ao poder legislativo readequ-las, e no ao judicirio inovar de forma arbitrria. O advogado criminalista Wunderlich61, sustenta queo dolo eventual nos crimes de trnsito uma fico jurdica utilizada fantasiosamente para compensar uma legislao inadequada e, assim, atender aos reclamos da mdia. Diga-se, ainda, que serve para acabar com aquilo que a mdia (odiosa imprensa leiga) e os profetas dos movimentos, mais das vezes emulados pela mesquinez de ideologias baratas, classificam de impunidade.

Ainda defendendo o descabimento do dolo eventual aos delitos de circulao, Shecaira62 afirmou queNo se deve, sob a influncia da presso da mdia, reconhecer qualquer alterao na estrutura do delito, para mandar algum a jri. Por mais grave que tenha sido a conduta culposa, no pode ela ser transformada em dolosa, sob pena de criarmos um direito penal do terror que venha a satisfazer interesses punitivos extra-autos.

Tambm de forma isenta e respeitosa aos limites impostos pela lei, posicionou-se o desembargador Alves de Andrade no Tribunal de Justia de Minas Gerais63 em deciso proferida naquele rgo:Age sob modalidade de culpa consciente e no dolo eventual o condutor do veculo que, mesmo inabilitado, em velocidade excessiva e apresentando sintomas de embriaguez, atropela pedestre, no se podendo dizer que o mesmo quis ou admitiu positivamente que o resultado se produzisse. A atividade jurisdicional no pode sofrer injunes ditadas pelo clamor social que emerge de certos delitos de trnsito, sob pena de instalar-se a insegurana jurdica, extrapolando o Julgador suas funes para transformar-se tambm em legislador, em afronta diviso tripartite de Poderes. () O clamor social que o trgico evento deflagrou, traduzido em manifestaes populares, no sentido da punio do responsvel perfeitamente compreensvel. Merece o acusado receber as conseqncias de sua reprovvel conduta, de acordo com o direito positivo aplicvel. Todavia, o Juiz no pode transmudar seu papel, de interprete da lei para legislador () Inadmissvel que o judicirio, embalado pela comoo e revolta popular, arroste a legislao pertinente ou faa sua aplicao conforme a repercusso que o fato suscitar no meio coletivo. Seria a instalao do caos e da insegurana jurdica, a mesma que reinava antes do racionalismo implantado pela revoluo francesa.

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WUNDERLICH,Alexandre.O dolo eventual nos homicdios de trnsito:uma tentativa frustrada.JUS Navigandi, Teresina, a.4 ,n.43, jul. 2000. Disponvel em . Acesso em 05 nov. 2005. 02:00h. 62 SHECAIRA, opus citatum, p. 149. 63 TJ/MG, Recurso em Sentido Estrito n 75.631/2,2 Cmara Criminal, pub. 20.02.1997.

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Cabe ainda citar a opulenta deciso proferida pelo Des. Paulo Gallotti do Tribunal de Justia de Santa Catarina64 que, dada a sua pertinncia ao assunto aqui tratado, merece ser transcrita em sua integralidade:Particularmente nos chamados crimes de trnsito, que at bem pouco tempo no possuam diploma legislativo especfico, que ocorreu com a vigncia da Lei n. 9.503/97, que tipificou os delitos cometidos na direo de veculos automotores e aumentou sensivelmente as punies penais e administrativas, a questo mereceu tratamento bastante diversificado, no sendo raros os casos de pronncia em infraes dessa natureza, que contaram com o apoio da mdia e de parcela significativa da populao, abalada com os elevados ndices de mortes no trnsito. Antes da vigncia da Lei n. 9.503/97, evidentemente, a matria relativa aos crimes de trnsito no tinha disciplina especfica e as mortes ocorridas eram tipificadas no art. 121, 3, do Cdigo Penal, com pena de deteno entre um e trs anos, que no raramente acarretavam penas menores que geralmente eram substitudas por restritivas de direitos, conforme a previso do art. 44 do Cdigo Penal. Todavia, a falta de legislao especfica sobre a matria e punies diferenciadas daquelas previstas pela lei penal comum para os crimes de trnsito no podem ser utilizadas como argumentos vlidos para que haja ampliao indevida do conceito de dolo eventual, com flagrante violao dos princpios do direito penal moderno, que repele a responsabilidade objetiva ou decorrente de presuno. A respeito da caracterizao do dolo eventual em acidentes de trnsito, que particularmente entendo possvel em algumas situaes, no se pode deixar de transcrever recente artigo publicado pelo advogado gacho Alexandre Wunderlich: Teorias so defendidas e sofrem crticas e aplausos ao mesmo tempo. Isto est na essncia da prpria dogmtica jurdica. In casu, a legislao brasileira adotou a teoria do consentimento para caracterizar o dolo eventual. Ocorre que, quer se queira ou no, o esprito de vindita ainda impera no corao da humanidade. Os familiares das vtimas do trnsito clamam por penas mais severas e o fim da denominada 'impunidade'. Em face disso (...), existe uma tendncia que, partindo de uma equivocada ilao jurdico-penal, cria o mais gravoso enquadramento jurdico nos casos de morte no trnsito. A tendncia em se enquadrar os crimes de trnsito na figura do dolo eventual foi evidenciada pelo Juiz do TACrimSP Carlos Biasotti, que sabiamente se manifestou: Em verdade, ainda que em nmeros discretos, conhecem-se casos de motoristas que respondem a processo perante o Jri, por haver causado a morte de pedestres. T-la-iam causado por inobservncia desmarcada de regras de trnsito, como: dirigir em estado de embriaguez, trafegar em velocidade incompatvel com a segurana, desobedecer ao sinal fechado ou parada obrigatria, disputar corrida por esprito de emulao etc. A essncia da qualificao legal do crime, a acusao pblica deduzira-a desta frmula: o motorista que, naquelas condies dirigia seu veculo, se no quis a morte da vtima (dolo direto), ao menos assumiu o risco de produzi-la (dolo indireto eventual). Pelo que, havendo cometido o crime dolosamente, dever ser julgado pelo seu juiz natural: o Jri. Tal concluso, que parece acautelada por slido fundamento, desapresenta, no entanto, quando submetida ao crisol do raciocnio lgico, documento de seriedade: afeta encerrar silogismo inabalvel, todavia, menos que uma operao fantstica do esprito, porque um imprudente sofisma (vnia!). Primeiro que o mais, a afirmao de que o autor de morte no trnsito, naquelas circunstncias, deve ser julgado pelo Jri, porque praticou o delito dolosamente, contm falsa premissa. Deveras, no foi dolo o que a pudera ter existido, nem sequer dolo eventual, seno culpa (ainda consciente). No dolo eventual, de feito, a doutrina imprimiu sempre esta nota conspcua: no basta a caracteriz-lo tenha o agente assumido o risco de produzir o resultado lesivo; necessita que nela haja consentido. Vindo ao nosso ponto:64

TJ/RS, Recurso Criminal, n 99.000247-0, julg. em 25/05/1999.

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motorista, de quem se afirmasse que obrara com dolo eventual, cumpria a que, alm de ter assumido o risco de causar a morte da vtima, com isso mesmo houvera concordado, o que repugna ao bom senso e afronta a lio da experincia vulgar. Parece que diante da grande discusso sobre o tema, Lenio Streck segue o caminho da razo e dos novos paradigmas do Direito Penal moderno, registrando que a figura do dolo eventual no deve ser utilizada como pedagogia ou remdio contra a violncia no trnsito. Nesse sentido, como disse Streck, o Direito no deve ser aplicado 'hobbesianamente' ou, como bem acentuou Bitencourt, o Direito Penal no serve como panacia de todos os males. Na realidade, num planeta extremamente motorizado, a expresso empregada na legislao brasileira tornou-se inadequada. 'Assumir o risco' pouco. Em sentido lato, para 'assumir o risco' basta sentar direo de um veculo. preciso mais do que isso, sob pena de darmos demasiada elasticidade ao conceito e, assim, punirmos no s o agente que age dolosamente, mas at o motorista que age culposamente, como se em todos os crimes de trnsito com resultado morte estivesse presente a figura do dolo eventual. Portanto, totalmente equivocada e divorciada dos novos paradigmas do Direito Penal moderno a tentativa de se levar os crimes de trnsito ao plenrio do Jri e, com isso, aplicar a reprimenda mais gravosa. No podemos permitir que seja dada demasiada elasticidade fico jurdica dolus eventualis, nem que tripudiem sobre a teoria geral do delito, para suprir uma legislao inadequada ou para atender os ditos reclamos sociais' (O Dolo Eventual nos Homicdios de Trnsito: Uma Tentativa Frustrada, Revista dos Tribunais, vol. 754, p. 470/475). Por isso, se antes da Lei n. 9.503/97 no havia punio mais eficaz e severa em relao aos crimes de trnsito, no se pode racionalmente transferir a questo para o campo do dolo eventual e, com base nisso, acolher a denncia por crime doloso contra a vida onde efetivamente no existem elementos para tanto.

Desta forma o clebre magistrado sintetizou em sua deciso todas as questes trazidas anlise neste item, passando pela contextualizao histrica da legislao, abordando a questo da submisso dos juzes presso poltica advinda do clamor popular, culminando com a concluso de que, tratando-se da hiptese de dolo eventual, no ser admissvel a constituio de frmulas pr-concebidas ou generalizaes, eis que no existe relao de causa e efeito entre os fatos e a capitulao criminal. Sempre ser necessrio um grande esforo dos profissionais do direito envolvidos no processo para desvendar a existncia do animus dolandi e, por conseguinte, do dolo eventual na conduta do agente.

CAPTULO 4 O DOLO EVENTUAL E AS INFRAES DE TRNSITO

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4.1 CONSIDERAES SOBRE AS INFRAES DE TRNSITO cedio que, para que o acidente de trnsito obtenha contornos de crime de trnsito, ser necessrio que pelo menos um dos envolvidos no incidente tenha agido ao menos com culpa, qui dolo, pois, no h que se falar em crime de trnsito se todos os envolvidos no evento agiram com a cautela e destreza que lhes eram exigidas, ou se o resultado no lhes era previsvel. As condutas praticadas na conduo de veculos, que podem ocasionar a ocorrncia de crimes de trnsito culposos (por imprudncia, impercia ou negligncia) so reprimidas em sua quase totalidade por infraes administrativas tipificadas pela Lei 9.503/97, nos artigos 162 a 255 (conduzir veculo sob efeito de bebidas alcolicas ou substncia de efeitos anlogos, em mau estado de conservao, pela contramo de direo, efetuar ultrapassagem em local proibido, etc). Neste sentido, foroso concluir que a ocorrncia dos crimes de trnsito invariavelmente estar vinculada ao cometimento de infraes de trnsito pelos envolvidos. Neste contexto, faz-se necessria uma anlise mais aprofundada das decises judiciais sobre o assunto, para que seja obtida a compreenso sobre como o tema tratado na prtica pelos Tribunais. 4.2 METODOLOGIA EMPREGADA DURANTE A FASE DE PESQUISA Para atingir o objetivo proposto neste captulo, foram efetuadas pesquisas jurisprudenciais nos sites dos Tribunais de Justia de todo o pas durante o perodo de julho a outubro de 2006, excluindo-se apenas os Estados do Piau, Alagoas, So Paulo, Rio Grande do Norte e Amazonas, que apresentaram problemas durante este perodo (nos dois primeiros, os sites dos TJ no disponibilizavam pesquisa jurisprudencial, no de SP as respostas no tinham

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vnculo com as palavras utilizadas para pesquisa e, nos dois ltimos o mecanismo de busca, embora disponvel, apresentou-se inoperante durante todo o perodo de durao das consultas). As consultas foram realizadas utilizando-se sempre o mesmo critrio de busca nos diversos stios da internet, de forma a possibilitar a anlise tanto qualitativa quanto quantitativa dos resultados obtidos. No item 4.3.1, foram utilizados como critrio de busca as palavras ultrapassagem e dolo; no item 4.3.2 foram utilizadas as palavras excesso e velocidade; no item 4.3.3 foram utilizadas as palavras lcool ou embriaguez; e, finalmente, racha ou pega no item 4.3.4. Com a metodologia empregada, alm de ser obtido extenso contedo jurisprudencial, tambm foi possvel a anlise quantitativa dos dados, de forma a compreender melhor o posicionamento dos Tribunais sobre as matrias em anlise. Embora no tenha sido empregada uma rgida metodologia no que concerne apurao quantitativa das respostas obtidas durante a pesquisa (o que nos permitiria o