monografia - reconstruções de 1964

65
UNIVERSIDADE SALGADO DE OLIVEIRA CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA “RECONSTRUÇÕES DE 1964.” Nome: Eduardo Madureira Leal Orientador: Prof.º Murilo Sebe Bon Meihy NITERÓI 2006

Upload: eduardo-madureira

Post on 01-Dec-2015

23 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE SALGADO DE OLIVEIRACURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

“RECONSTRUÇÕES DE 1964.”

Nome: Eduardo Madureira LealOrientador: Prof.º Murilo Sebe Bon Meihy

NITERÓI2006

EDUARDO MADUREIRA LEAL

“RECONSTRUÇÕES DE 1964.”

Monografia apresentada à diretoria do curso de graduação da Universidade Salgado de Oliveira, como requisito para a obtenção da Licenciatura em História, sob a orientação do Prof.º Murilo Sebe Bon Meihy.

NITERÓI2006

II

“RECONSTRUÇÕES DE 1964.”

EDUARDO MADUREIRA LEAL

Aprovada em ____/____/_____.

BANCA EXAMINADORA

Murilo Sebe Bon Meihy

Titulação: __________________________________

Universidade Salgado de Oliveira

Mauricio Parada

Titulação: __________________________________

Universidade Salgado de Oliveira

Poméia Genaio

Titulação: __________________________________

Universidade Salgado de Oliveira

CONCEITO FINAL: _____________________

III

Dedico este trabalho à minha tão querida filha Amanda de Barros Madureira que, com gestos simples e linguagem inocente, tem o dom de penetrar-me o coração, iluminar minha alma e, lembrando-me que o segredo da felicidade está nas coisas simples da vida, figura nas páginas principais da minha história. Agradeço-te, filha amada, por ser minha maior fonte de alegria e peço perdão por não poder ter tido mais e mais momentos dedicados a você principalmente em prol desta minha meta, desta minha realização. Que ela possa lhe servir de estímulo para a vida, para superação constante e para que você nunca desista de realizar seus sonhos.

IV

AGRADECIMENTOS

Não poderia deixar de agradecer à minha família, em especial à minha mãe,

JÚLIA DE SOUZA MADUREIRA. Nada do que pudesse escrever aqui seria suficiente para

externar a gratidão, afeto e o amor que lhe reservo. Afinal, abdicou de seus sonhos para que

eu pudesse sonhar; passou noites em claro para que eu dormisse tranqüilo; enxugou minhas

lágrimas para que fosse feliz; acreditou em mim mesmo nas minhas fraquezas; graças à sua

extremada dedicação, carinho e obstinação, hoje me reconheço como pessoa; é graças a ela,

graças as suas mãos a guiar às minhas no aprendizado das primeiras letras, das primeiras

palavras, que hoje posso dedicar-lhe esta singela homenagem.

Quantos aos amigos, ah os amigos, o que seria de nós sem eles? Tenho receio de,

por ato falho, esquecer de citar o nome de algum e, assim, prefiro me abster do risco.

Entretanto, tenham todos a certeza de que seu apoio foi fundamental nesta empreitada e que

minha gratidão é tão grande quanto os laços de amizade que nos unem.

Apesar de serem muitos os amigos que corroboraram para a realização deste

objetivo, há aqueles que por justiça não posso deixar de citar; aqueles que fizeram às vezes de

correligionários concedendo-me apoio irrestrito e incondicional. Ademais, se a formatura é o

coroamento de uma história de sucesso, personagens como ELENIZETE PEREIRA NUNES

e CARLOS JOSÉ SOUZA DAS CHAGAS atuaram como protagonistas neste episódio.

Solícitos às minhas necessidades, estiveram sempre prontos a me auxiliar no que fosse

necessário e, por isso, muito me apraz dedicar-lhes estas linhas singelas de agradecimento.

Ao meu Orientador, Professor MURILO SEBE BON MEIHY que, com

profissionalismo, ética, empenho e entusiasmo me conduziu neste processo de compilação

monográfica. À Professora POMÉIA GENAIO que, dentre tantos outros profissionais do

ensino que compartilharam conosco seu suor, seus conhecimentos, me concedeu orientação

paralela específica sobre o assunto que escolhi como tema, uma vez que é profundamente

especializada na área. Assim, apesar de ser grato a todos, imortalizo-os na minha história com

esta singela nota de agradecimento.

Existe ainda Àquele, que tornou tudo isso possível; Àquele a quem não caberiam

agradecimentos no maior de todos os livros já editados mas que, em ao mesmo tempo, se

contenta com nossa sincera gratidão no recolhimento de nossas orações; compete aqui tornar

público o agradecimento a DEUS pelo dom da vida, da sabedoria, pela oportunidade e pelo

privilégio de poder estar concluindo mais esta etapa na caminhada da minha vida, vitória esta

conquistada em Seu nome, louvor e glória.

V

RESUMOEsta monografia relativiza a história oficial reproduzida sobre os acontecimentos

de 1964 à luz de novas metodologias e fontes. Para tanto, utiliza-se tanto de fontes

“tradicionais” como as diversas bibliografias, quanto de depoimentos, insumo básico da

“história oral.” Apesar de considerar as análises marxistas, busca trabalhar os fatos e dados à

luz dos Annales.

Remonta à conjuntura da década de cinqüenta para explicar a construção da crise

de 1964 através dos aspectos econômicos, sociais e, sobretudo, políticos que a precederam,

assim como vislumbra sucintamente os desdobramentos e distorções imputados a este fato

histórico a posteriori, reflexos de ideologias hegemônicas. Esta conjuntura se inicia pelos

aspectos globais e afunila-se para o Brasil do após-Guerra. A nível nacional são considerados

os aspectos do segundo governo do Presidente da República Getúlio Vargas e de seu sucessor,

Juscelino Kubitscheck. A análise da confluência de ambos deságua nas dificuldades

encontradas por Jânio Quadros e, consequentemente, por João Goulart na condução do

governo e das políticas públicas.

Considera-se também a ação norte americana que, direta e indiretamente,

influenciou a América Latina e mais especificamente o Brasil. Contudo, muitos autores e

entrevistados atribuem como fator principal da crise a inapetência administrativa de Jânio

Quadros, fato que é discutível se vislumbradas as dificuldades que se impuseram à

implantação de seus projetos de governo.

Por fim, prestigia-se à história oral colhida através dos depoimentos de

protagonistas militares do regime. Em geral, todos atestam ter sido um movimento

desarticulado que, apesar de suas motivações burguesas por vezes camufladas sob os preceitos

da “segurança nacional”, tiveram incentivo de vários segmentos da sociedade para a sua

consolidação. Hoje, a maioria dos entrevistados reconhece ser uma impropriedade lingüística

atribuir o termo “revolução” a 1964 uma vez que não houve ruptura com os modelos pré-

estabelecidos, assim como é muito relativo o uso stricto sensu da terminologia “golpe” ou

mesmo “ditadura”, sobretudo quando comparadas com fatos de outros períodos históricos.

Enfim, ao passo que os militares se ressentem do desprestígio que lhes foi dispensado pós

“Diretas Já”, fica o alerta para a necessidade de identificar à que hegemonias interessam este

achaque e quais as ideologias que elas têm praticado e reproduzido.

Palavras-chave: história – política – governo – 1964 – militar – regime – crise

VI

ABSTRACTThis monograph relativizes reproduced official history on the events of 1964 to as

of new methodologies and sources. For in such a way, it is used in such a way of “traditional”

sources as the diverse bibliographies, how much of depositions, basic element of “verbal

history.” Although to consider the marxist analyses, it searchs to work the facts and data to as

of the Annales.

It retraces to the conjuncture of the decade of fifty to explain the construction of

the crisis of 1964 through economic, social aspects e, over all, politicians who had preceded

it, as well as succinctly glimpses the unfoldings and distortions imputed to this historical fact

as, consequences of hegemonic ideologies future. This conjuncture if initiates for the global

aspects and is funnelled for Brazil of the post-war one. The national level is considered the

aspects of as the government of the President of the Republic Getúlio Vargas and its

successor, Juscelino Kubitscheck. The analysis of the confluence of both drains in the

difficulties found for Jânio Quadros and, consequently, João Goulart in the conduction of the

government and the public politics.

The American north action is also considered that, directly and indirectly,

influenced Latin America more specifically and Brazil. However, many interviewed and

authors attribute as main factor of the crisis the administrative inability of Jânio Quadros, fact

that arguable if is glimpsed the difficulties that if had imposed to the implantation of its

projects of government.

Finally, it is sanctioned harvested verbal history through the depositions of

military protagonists of the regimen. In general, all certify to have been a disarticulated

movement that, although its bourgeois motivations for times camouflaged under the rules of

the “national security”, had had incentive of some segments of the society for its

consolidation. Today, the majority of the interviewed ones recognizes to be a linguistic

impropriety to attribute to the term “revolution” the 1964 a time that did not have rupture with

the daily pay-established models, as well as is very relative the use in one-way of the

terminology “blow” or same “dictatorship”, over all when compared with facts of other

historical periods. At last, to the step that the military if resent at the disreputation that was

excused to them after “Diretas Já”, are the alert one for the necessity to identify that

hegemonies interest this extortion and to which the ideologies that they have practised and

reproduced.

Key-Word: history – politics – government – 1964 – to militate – regimen – crisis

VII

SUMÁRIO

CAPA .......................................................................................................................... IFOLHA DE ROSTO ................................................................................................... IIFOLHA DE APROVAÇÃO ....................................................................................... IIIDEDICATÓRIA ......................................................................................................... IVAGRADECIMENTOS ............................................................................................... VRESUMO .................................................................................................................... VIABSTRACT ................................................................................................................ VIISUMÁRIO .................................................................................................................. VIII

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 09CAPÍTULO I – Arcabouço da crise 14

1.1) Relações mundiais do pós-guerra ......................................................... 141.2) A sedução ideológica na América Latina ............................................. 171.3) O Brasil do pós-Guerra ......................................................................... 21

CAPÍTULO II – O Brasil em crise 252.1) Processo de consolidação do modelo econômico brasileiro ................ 252.2) Do espectro econômico ao ativismo sócio-político .............................. 302.3) Influência norte-americana para a crise de 1964 .................................. 47

CAPÍTULO III – Memórias das conspirações 493.1) O uso da memória na consolidação da história nacional ...................... 493.2) Irrupções das “memórias proibidas” na história do Brasil ................... 54

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 61FONTES & REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ........................................................ LXIV

VIII

INTRODUÇÃO

A história pode e deve ser reexaminada sempre que surgirem novos dados, fontes,

interpretações, teorias ou fatores que corroborem para incitar o interesse por um tema em

função das demandas sociais, institucionais ou conjunturais. A História deve, portanto,

flexibilizar-se através do constante exercício da relativização que promove não só uma

efervescente atividade intelectual, como também é expressão maior do exercício da

cidadania. Faz-se mister relativizar os fatos históricos de forma que nenhum dado seja

negligenciado, que todas as vertentes sejam contempladas, trazendo à tona às transcrições

percepções do passado com a maior verossimilhança possível.

Em 1985, com o movimento das “Diretas Já,” o poder foi devolvido aos civis no

Brasil após uma longa transição sob regime militar. Houve então uma explosão de estudos

acadêmicos que privilegiaram as análises de teor essencialmente marxista. Assim, estudos

sobre os militares reduziram-se drasticamente visto que o grande foco dos analistas passou a

ser a consolidação democrática. Não obstante, os próprios militares recolheram-se à caserna

pautando sua conduta em um silêncio político rarissimamente suplantado. Esse relativo

desinteresse é expressão viva das idéias e teses contingenciadas no período mais duro do

regime, quando foram coibidas pela censura.

As análises e explicações sobre os acontecimentos que levaram ao desfecho de

1964 poderiam ser muito abrangentes mas, mormente, o são feitas através de critérios

econômicos. Tal recorte é inteligível e até louvável visto que a corrente historiográfica

predominante no período assim doutrinava. Para o marxismo, a luta entre classes e as questões

econômicas estão no cerne de todos os acontecimentos históricos e esta assertiva é muito

coerente, sobretudo para explicar a crise em questão. Contudo, tal determinismo

historiográfico aplicado por qualquer corrente que supervalorize um aspecto em detrimento de

outros, empobrece o resultado da pesquisa ao limitar drasticamente as vertentes de um dado

problema, ainda que este seja pano de fundo presente e consistente no recorte histórico.

Mesmo cientes de que é utópico pretender reconstituir integralmente um fato

passado porque “os diversos aspectos sociais, políticos, econômicos, éticos, jurídicos,

estéticos, religiosos de uma densa problemática constituem apenas isto – aspectos de uma

realidade complexa que os engloba”1, é preciso buscar não limitar a complexidade da ação

humana na análise dos fatos históricos visto que “O erro consiste quase sempre em atribuir a

um único fator a plena e cabal explicação de fenômenos complexos que pervadem diversas

1 Tarcílio Meirelles PADILHA, Brasil em Questão.Rio de Janeiro, J.Olímpio, 1975. p. 25.

9

áreas do conhecimento humano.”2 Portanto, a economia brasileira e as motivações capitalistas

concatenadas com outros fatores, se alinharam e culminaram com a crise de 1964.

Naturalmente, uma vez oficializada a abertura, os pesquisadores atiraram-se sobre suas teses

contidas que, em geral, não tinham como objeto as relações militares salvo quando para

denegri-los.

Não se pretende aqui fazer apologia ou ataques3 a uma ou outra corrente, mas

reserva-se uma crítica construtiva acerca dos pensadores de Marx ou à interpretação que ela

induz: o vislumbre específico do aspecto econômico. Ora, quando o cientista ou pesquisador

analisa diferenciadas questões sob um único prisma – neste caso, o econômico –, está fadado

a ter uma reconstrução fragmentada, cética e, quiçá, inverossímil. A frieza dos números de

que se alimenta a economia por vezes gera um esforço sobrecomum para análise dos fatos.

Este esforço só é bem recompensado quando pensamos no todo, no macro. Porém, à medida

que vamos afunilando a análise rumo ao micro, às especificidades, percebe-se que este

método tende a se tornar surreal. Mas,

“Para quem só conhece o saber enquanto estruturado em termos

quantitativos, seguramente não temos como recusar a assertiva de que

este [pensar] é totalmente carente de sentido cientifico. Mas não

julgamos possa o dogmatismo da quantidade impor seu domínio a

todo o saber. Os valores pelos quais lutamos, as crenças que sulcam o

solo das culturas e as inspiram, as instituições que fundamentam todo

o modo humano de viver e de conviver exprimem, na linguagem da

Axiologia, os parâmetros de sua vigência. Assim, os aspectos

econômico, social, político, moral, religioso, ético, geofísico e outros

hão de estar presentes na configuração da realidade do homem que

[se pretende analisar]...”4

Assim, sobre os recortes como os de Pierre Salama, José Serra, Conceição Tavares

e outros autores de mesma linha, 2 Tarcílio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 24.3 Ainda existem seguidores céticos da ideologia de Karl Marx e Friderich Engels assim como, do outro lado do extremo, existem àqueles pesquisadores que atestam em seus estudos as atividades satânicas de ambos. Segundo estes (como Huascar Terra do Valle, por exemplo), os pensadores em questão foram introduzidos ao satanismo por Moritz Hess. Ainda segundo o pesquisador, “Satanismo e comunismo comungam com a mesma idéia, pois ambos rejeitam os valores morais da civilização ocidental. A palavra de ordem, de Lênin é conhecida: “quanto pior, melhor,” uma confissão descarada de satanismo. Torna-se evidente que Marx e Engels, ambos graduados em satanismo, após longas lucubrações diabólicas, chegaram a uma versão light do culto ao demônio, sob o fraudulento nome de “COMUNISMO”, capaz de confundir e atrair milhões de pessoas, inclusive intelectuais (...) No Brasil, comunistas entre a burritzia brasileira, incluindo as universidades, são legiões.”4 Tarcílio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 50.

X

“podemos concluir que algumas pecam por serem parciais (por mais

que esteja formulada corretamente, uma parte da verdade nunca

chega a ser suficiente para explicar a verdade em seu todo) e, outras,

por um pecado de origem ao tomar como eixo central, para a

explicação da crise de 64, o problema da realização.”5

Ignoram o populismo levado à efeito desde a nova Era Vargas passando por

Juscelino Kubitschek e declinando com Jânio Quadros. Desta forma, não dá conta dos anseios

e da crescente politização da sociedade brasileira. Desprezam ainda a taxa de crescimento

demográfico e os seus impactos naturais sobre a sociedade. No Brasil, na década de 1950

retomamos para 3,6% o incremento populacional que havia decaído nas duas décadas

anteriores e na década seguinte, a população brasileira ascendeu para 93.000 pessoas

registradas, um ritmo de 2,9%. Se penetrarmos ainda mais rumo às individualidades,

perceberemos que outros inúmeros fatores deixam de ser contemplados qualitativamente por

esta metodologia como a distribuição da população, a qualidade de vida das pessoas, o êxodo

rural,6 o grau de escolaridade, etc.

Mesmo sabendo que o país já possuía direcionamento capitalista consolidado,

sobretudo por políticos populistas, e que a esmagadora maioria da população era contrária à

idéia de um golpe inspirado em Stalin, Mao Tse-tung ou Fidel Castro – seja por influenciação

ideológica ou não –, a maior parte das pesquisas insiste tendenciosamente em valorizar as

possibilidades de um futuro comunista que teria sido negado por um golpe militar. A forte

oposição ao Presidente da República João Goulart levada a efeito pelo partido da União

Democrática Nacional (UDN) e pelo Partido Social Democrático (PSD) normalmente é

ofuscada por conjecturas acerca da intervenção. Contudo, dá-se um tom genérico a estes

estudos e raramente temos noticia sobre autores que pesquisam os fatos do período sob outro

viés.

À luz deste raciocínio, perceber-se-á que esta obra está dividida em três capítulos:

o primeiro apresenta um sucinto esboço da conjuntura do pós-guerra, do embate ideológico

entre as super-potências, suas conseqüências para a América Latina e, mais especificamente,

para o Brasil; o segundo trata das questões econômicas, da influência do capital multinacional

na política, da conversão dos interesses econômicos em ativismo sócio-politico e da influência

5 Maria MORAES, Considerações sobre a crise de 1964,______________ p. 42. (O grifo é meu)6 Em 1960, por exemplo, 55% da população era rural e 45% urbana. Esta diferença já era bem menor do que na década anterior e logo seria ultrapassada na posterior.

XI

norte-americana para as “conspirações” brasileiras. Já o terceiro capítulo trabalha a questão

dos depoimentos, das memórias – fontes primárias menos convencionais.

Em principio, por censo comum, a memória seria um fenômeno individual, íntimo,

próprio de cada individuo. Porém, segundo Maurice Halbwachs, a memória deve ser

entendida também como um fenômeno coletivo e social, construído coletivamente e passível

de transformações constantes. A memória passa por processos de adequação ou

“enquadramento” no qual reinterpreta e recombina infinitas referências associadas que podem

estar sendo estruturadas tanto para modificar as fronteiras sociais como para mantê-las face as

conjunturas do presente e as perspectivas do futuro. Contudo, esta reinterpretação constante

do passado carece de credibilidade e coerência nos discursos sucessivos o que pode pôr em

xeque a identidade individual de um grupo. “Esse trabalho de enquadramento da memória tem

seus atores profissionalizados, profissionais da história das diferentes organizações de que são

membros, clubes e células de reflexão.” Observou-se nos trabalhos de Maurice Halbwachs e

Michael Pollak a existência de numerosas memórias coletivas. Elas fazem parte de uma

memória maior e melhor organizada de nível nacional.

Por certo, foi grande o esforço de compreensão, análise, pesquisa e reflexão

dispensada pelos cientistas para tratar das dificuldades nacionais por ocasião da

redemocratização face aos novos desafios político-econômicos do devir. Porém, o

distanciamento cronológico é mister para uma análise menos emotiva e mais cientifica, capaz

de vislumbrar os fatos pelo viés dos “vencidos” mas também sob o prisma dos tidos como

“vencedores” – até porque, os papéis se inverteram no desenrolar histórico tupiniquim. Assim,

42 anos após a intervenção militar e passados exatos 21 anos sob “regime democrático pleno”,

faz-se necessário repensar as questões que levaram a intervenção bem como todo o período

governado sob regime militar à luz de novas perspectivas, de novos enfoques, de metodologias

mais recentes e de novas fontes de informação. Este afastamento do objeto não significa a

retomada do viés “neutro” e “independente” defendido pela doutrina positivista, contudo uma

visão mais centrada se faz cientificamente necessária para a análise em questão.

Além de pesquisar os fatos calcados também nos militares, ainda bastante

desconhecidos, é necessário compreender melhor as razões que levaram à intervenção e à

longa duração do regime, tarefa incompleta que precisamos melhor compreender para termos

melhores perspectivas do futuro e para que possamos ter um retrato austero da sociedade

brasileira identificando em seu seio quais são e que interesses têm as hegemonias dominantes.

Esta monografia não visa enfim condenar, celebrar e tampouco julgar este ou

aquele grupo. A intenção desta obra é fazer uma nova e sucinta análise relativizando a

XII

história oficial à luz de novas metodologias e fontes. Para tanto, trabalha-se tanto com fontes

“tradicionais” como as diversas bibliografias, quanto com depoimentos, insumo básico da

“história oral.” Os depoentes aqui citados não tiveram uma liderança destacada nos atos

conspiratórios face a sua pouca antiguidade hierárquica à época. Contudo, constituíram

elementos importantes na implementação e manutenção do regime até porque, dentro de

muito pouco tempo, estes militares ascenderam e tornaram-se responsáveis pela

administração de importantes esferas na caserna e no governo. Eles passaram a ocupar os

principais cargos nos órgãos de informação, importantes funções de assessoria, comandos e

até ministérios nos anos subseqüentes à intervenção. Naturalmente, eles também vivenciaram

o movimento de abertura e de depreciação militar que se seguira às “Diretas Já.” Em geral, os

pesquisadores ainda não exploraram este conjunto de militares a contento visto que os

Oficiais-Generais de 1964 roubaram todas as atenções. Eles, sem dúvida, “foram agentes

ativos do processo e suas carreiras foram, em grande parte, afetadas por ele.” Porque negar-

lhes então a voz? Afinal, como dizia Marc Bloch7, “causas não [devem ser] postuladas,

[devem ser] buscadas” e, em tom ainda mais grave, dizia também que “os historiadores são

obrigados a refletir sobre hesitações e arrependimentos.”8

7 Medievalista francês, nascido em 1886 torturado e morto pela GESTAPO em 16 de julho de 1944 na cidade de Didier de Formans. Marc Leopold Benjamin Bloch instituiu uma nova corrente historiográfica junto a Lucien Febrve conhecida como Escola dos Analles ou Nova História – corrente que busca problematizar e relativizar os recortes históricos recorrendo, inclusive, à métodos e conceitos interdisciplinares.8 Marc Leopold Benjamin BLOCH. Apologia da História: ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 2001, p.11.

XIII

CAPÍTULO I

ARCABOUÇO DA CRISE

1.1) Relações mundiais do pós-guerra

Hoje as ciências biológicas comprovam que mesmo pequenas mudanças causam

stress. Em sua forma mais particular, este stress – superficialmente entendido como sendo o

“conjunto de reações do organismo a agressões de ordem física, psíquica, infecciosa e social,

capazes de perturbar-lhe a homeóstase” – é externado de diferentes modos, conforme a

individualidade dos organismos, culturas e circunstâncias em que se lhe é permitido

exteriorizar sem contudo imputar grandes alterações no meio. Também é sabido que, caso

contido, a irrupção dos seus sintomas e eventuais conseqüências tendem a aflorar com muito

mais violência e, muitas vezes, no mais inoportuno dos momentos.

Numa esfera macro poderíamos tratar também como conseqüência de stress –

desta vez entendido como fricção, desgaste – os grandes cataclismos da humanidade à medida

em que alteram a relação harmoniosa dos seres e da sociedade em geral. Seja ele de natureza

ambiental, social ou político-econômico, ao atingir os limites intrínsecos de sua estricção,

irrompem provocando grandes desastres, derrocadas e convulsões sociais.

Assim foi ao fim da Segunda Grande Guerra. As estruturas sócio-politicas

mundiais foram drasticamente modificadas. Economias foram arrasadas, grandes potências

ruíram ou esmoreceram em sua esfera de influência enquanto outras despontaram na nova

ordem. Pode ser considerada um divisor de águas crucial que marcou a consolidação

econômica e a supremacia política do capital monopolista nos centros industriais e

financeiros. As novas formas de capitalismo realizavam-se agora em níveis globais através de

uma articulação complexa e contraditória com as várias formações sociais nacionais,

traduzidas basicamente em corporações multinacionais.

Rússia, Estados Unidos, Grã Bretanha, China e França permaneceram ostentando o

status quo de potência mundial criando, inclusive, em 26 de junho de 1945, a Organização das

Nações Unidas (ONU) na qual ocupam o cargo de membros permanentes até hoje. Entretanto,

Grã Bretanha, China e França, na prática, só permaneceram sob este status a título honorifico,

pois suas reais condições sócio-econômicas estavam, a esta altura, longe de corresponder ao

título.

Ainda estupefata pelo terror, a humanidade esperava ver desabrochar e expandir-

se, de fato, o ideário Liberté, Igualité e Fraternité, proclamado pela Revolução Francesa ou

XIV

ainda, de forma mais palpável, a materialização das Quatro Liberdades previstas na Carta do

Atlântico.9 Ao contrário, pairavam o medo e a fome sobre grande parte do globo; prevalecera

a expectativa por uma guerra de conseqüências apocalípticas, face o implemento bélico

nuclear e ao recrudescimento de políticas autoritárias em busca de expandir e reafirmar seus

respectivos territórios. Apesar disto, os nacionalismos de então tinham uma outra tessitura,

com cunho mais voltado a ideais libertadores e democráticos do que de culto ao poder

nacional10 até porque, com a expansão do sentimento internacionalista, um novo arranjo

universal havia de tomar forma para suprir o vácuo deixado pela antiga Liga das Nações.

Talvez a conseqüência menos manifesta e, em contrapartida, mais importante da

Segunda Guerra foi justamente a aceleração da revolução universal pela qual o mundo

passava desde os idos de 1789 e que marcou a transição da Idade Média para a Moderna. 11

Fica evidente que todos os grandes conflitos ocorridos no século XX – inclusive as

Grandes Guerras – tiveram uma motivação econômica comum apesar de, por vezes, 9 A carta do Atlântico foi escrita no dia 9 de Agosto de 1941, o Primeiro Ministro Winston Churchill, em representação do Governo de Sua Magestade do Reino Unido, embarcado no cruzador "Príncipe de Gales" e o Presidente dos Estados Unidos da América, Franklin Roosevelt, embarcado no cruzador "Augusta", encontraram-se na Argentina Bay, Terra Nova. No dia 14 foi tornada pública a "Carta do Atlântico que rezava: “El Presidente de los Estados Unidos de América y el Primer Ministro representante del Gobierno de S. M. en el Reino Unido, habiéndose reunido en el Océano, juzgan oportuno hacer conocer algunos principios sobre los cuales ellos fundan sus esperanzas en un futuro mejor para el mundo y que son comunes a la política nacional de sus respectivos países:

1. Sus países no buscan ningún engrandecimiento territorial o de otro tipo.2. No desean ver ningún cambio territorial que no esté de acuerdo con los vo tos libremente expresados de

los pueblos interesados.3. Respetan el derecho que tienen todos los pueblos de escoger la forma de gobierno bajo la cual quieren

vivir, y desean que sean restablecidos los derechos soberanos y el libre ejercicio del gobierno a aquellos a quienes les han sido arrebatados por la fuerza.

4. Se esforzarán, respetando totalmente sus obligaciones existentes, en extender a todos los Estados, pequeños o grandes, victoriosos o vencidos, la posibilidad de acceso a condiciones de igualdad al comercio y a las materias primas mundiales que son necesarias para su prosperidad económica.

5. Desean realizar entre todas las naciones la colaboración más completa, en el dominio de la economía, con el fin de asegurar a todos las mejoras de las condiciones de trabajo, el progreso económica y la protección social.

6. Tras la destrucción total de la tiranía nazi, esperan ver establecer una paz que permita a todas las naciones vivir con seguridad en el interior de sus propias fronteras y que garantice a todos los hombres de todos los países una existencia libre sin miedo ni pobreza.

7. Una paz así permitirá a todos los hombres navegar sin trabas sobre los mares y los océanos.8. Tienen la convicción de que todas las naciones del mundo, tanto por razones de orden práctico como de

carácter espiritual, deben renunciar totalmente al uso de la fuerza. Puesto que ninguna paz futura puede ser mantenida si las armas terrestres, navales o aéreas continúan siendo empleadas por las naciones que la amenazan, o son susceptibles de amenazarla con agresiones fuera de sus fronteras, consideran que, en espera de poder establecer un sistema de seguridad general, amplio y permanente, el desarme de tales naciones es esencial. Igualmente ayudarán y fomentarán todo tipo de medidas prácticas que alivien el pesado fardo de los armamentos que abruma a los pueblos pacíficos.

Franklin D. Roosevelt - Winston Churchill14 de agosto de 1941”

In: http://www.historiasiglo20.org/TEXT/cartaatlantico.htm10 Como o foram os regimes de Hitler e Mussolini, por exemplo.11 Revolução Industrial, de cunho econômico e prático que ocorrera quase concomitantemente com a Revolução Francesa, se cunho social e ideológico. Em face desta proximidade entre os eventos, alguns autores chegam a tratá-los como “Múltiplas Revoluções.”

XV

camufladas sob fatos que serviram de estopim. Esta motivação fora a expansão da Revolução

Industrial, o implemento de novo modo-de-produção e seus conseqüentes desdobramentos.

Eles estão intimamente ligados às raízes do fascismo e do próprio comunismo.

Contudo, o capitalismo, entendido como sistema econômico de livre concorrência,

empreendimento e com produção voltada à realização de lucro teve sua funcionabilidade

comprometida mais uma vez. De fato, salvo as exceções, este sistema mostrou-se ineficiente

para aumentar os padrões de vida, reduzir a fome, as privações e otimizar a exploração

sustentada e eficaz dos recursos naturais do planeta, sobretudo em regiões como a Índia e o

Oriente Médio.

Este sistema econômico era marcado por ciclos de expansão e depressão. Após a

crise de 1929 muitos se tornaram descrentes na sua capacidade de auto-superação.

Entrementes que, em 1939, a grande escalada de desperdício e destruição em proporções

homéricas proporcionadas pela Segunda Guerra, originou uma nova onda de “prosperidade”

pela fabricação e venda em massa de material bélico em geral. Ainda assim, restava a dúvida

se ao término de mais esta epopéia degenerante da existência humana haveria possibilidade de

recuperação. Logo percebeu-se que sim. Uma tônica recuperação sucedeu-se no após-guerra

com uma procura maciça por bens duráveis como geladeiras, automóveis, televisores, etc. Isto

ocorreu paralelamente ao começo das hostilidades para com a Coréia e fez os anos de 1945 a

1950 figurarem entre os mais prósperos da História.

Neste processo, mais uma vez despontaram os Estados Unidos da América (EUA)

em detrimento dos vencidos e neutros. Porém, diferentemente do que ocorrera outrora, os

EUA sinalizavam que não iriam adotar a política do isolacionismo. Antes ao contrário,

potência inconteste como passou a ser, logo cedo denunciou seu intuito de estabelecer-se

como líder imperialista do bloco ocidental, expoente do “capitalismo progressista.” Para

tanto, o Congresso norte americano perdoou dividas astronômicas dos vencidos através do

regime conhecido como Lend-Lease – algo na ordem de nove décimos – e liberou, em 1946,

quatro bilhões de dólares dos quais beneficiou-se, sobretudo, a Inglaterra. Com estas medidas

o governo norte-americano angariava simpatizantes e difundia sua dominação econômico-

ideológica.

Não há dúvidas de que o descrédito e desilusão no sistema econômico fomentaram

o surgimento do coletivismo. Dentro desta doutrina, sob filosofias pessimistas em função dos

ciclos de ascensão e crise do capitalismo, ganhava força a inspiração marxista e a expansão do

modo-de-produção socialista, liderados pela União Soviética (URSS). Vale lembrar que Karl

XVI

Marx (1818-1873)12 fundamentou seus trabalhos justamente nas contradições do sistema

capitalista. Em seu Manifesto Comunista, por exemplo, tece duras criticas e sombrias análises

premonitórias sobre a falência modo-de-produção capitalista e sua substituição natural pelo

comunismo no desenrolar histórico.

Estes fatos dividiram opiniões. Uns defendiam a instauração e manutenção de

governos fortes e nacionalistas como os fascismos; outros investiam no liberalismo político-

econômico; outros no coletivismo liberal; e outros, partícipes do ideário de Marx, apostavam

no coletivismo socialista e comunista.

1.2) A sedução ideológica na América Latina

Consolidaram-se assim dois blocos: o capitalista e o socialista. Do embate entre

ambos surgiu um novo tipo de conflito: a Guerra Fria. As duas frentes desejavam ascender

como paradigma do mundo. Ambos temiam ataques de seus opositores e, sob este pretexto,

armavam-se cada vez mais.

Enquanto os Estados Unidos desejavam reconstruir o mundo de acordo com o

padrão anterior a 1939 – coisa que poucos acreditavam ser possível –, a União Soviética tinha

concepções diversas. Desejavam acesso livre aos mares – Mediterrâneo, Báltico – aos

Oceanos Índico e Pacífico, maior participação na administração e exploração das indústrias do

Ruhr, o controle de Bósforo e dos Dardanelos, bem como revisões territoriais e expensas da

Turquia e da China. Seu projeto maior, entretanto, era disseminar o comunismo pelo mundo

inteiro.

O Presidente norte-americano Harry S. Truman, em 1947, enunciou sua política

estrangeira que ficaria sendo conhecida como Doutrina Truman.13 Ela declarava que os EUA

acorreriam em auxílio de qualquer país cuja “liberdade e independência” estivesse ameaçada

12 Karl Marx e Friderich Engels na verdade não foram os primeiros a pensar o comunismo. Estudos mostram que o judeu apóstata Moritz Hess (1812-1875) foi o primeiro dentre os "jovens hegelianos" a admitir ser um comunista. Ele representava em Paris, de 1842 a 1843, o jornal radical Rheinische Zeitung (Gazeta do Reno), quando conheceu Karl Marx e, depois, Friedrich Engels. Depois de doutrinados por Hess, Marx e Engels se conheceram em Paris e, após muitos entendimentos, lançaram o Manifesto Comunista.13 A expressão Doutrina Truman designa um conjunto de práticas do governo dos Estados Unidos da América, em escala mundial, à época da chamada Guerra Fria, que buscava conter a expansão do socialismo junto aos chamados "elos frágeis" do sistema capitalista. Harry S. Truman, sob pressão inglesa de Winston Churchill, pronunciou em 12 de Março de 1947, diante do Congresso Nacional daquela nação, um violento discurso assumindo o compromisso de defender o mundo capitalista contra a ameaça comunista. Estava lançada a Doutrina Truman e iniciada a Guerra Fria que propagou para todo o mundo o forte antagonismo entre os blocos capitalista e comunista. Em seguida, o secretário de estado George Catlett Marshall anunciou a disposição dos Estados Unidos de efetiva colaboração financeira para a recuperação da economia dos países europeus. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Doutrina_Truman

XVII

de agressão interna ou externa, numa correlação direta com a expansão do comunismo na

Europa Oriental.

Pouco depois, Truman enunciou o Plano Marshall14 – Programa de Recuperação

Européia –, elaborado por George C. Marshall, seu secretário de estado. Declarava que não se

dirigia “contra qualquer país ou doutrina, mas contra a fome, a pobreza, o desespero e o

caos.” Ao mesmo tempo, advertia que qualquer governo que tentasse se opor à recuperação

econômica ou perpetuar em proveito próprio a miséria humana, não receberia nenhum auxílio.

Alguns historiadores crêem que o Plano Marshall em essência visava realmente

ajudar na recuperação da Europa como uma contribuição para a paz. Entretanto, é consenso

que tanto ele como a Doutrina Truman tinham entre si muitos pontos coincidentes que, se não

o eram ao menos aparentavam, uma conspiração contra a Rússia Soviética. Estes por sua vez,

possuíam um poderoso solvente dos laços imperialistas que consistia na filosofia do levante

das massas exploradas contra os dominadores estrangeiros. Como resultado, Índia, Palestina e

Birmânia haviam se libertado do domínio inglês enquanto a Indonésia plocamara sua

independência da possessão holandesa.

A ONU em seus primeiros oito anos de atividade não conseguiu reduzir o número

de armas e nem reduzir as fricções entre russos e americanos. Ao contrário, entre outras

facetas que incitaram os atritos, determinou a retirada de tropas russas do Irã e nomeou uma

comissão para investigar os comunistas estrangeiros na Grécia.

Mediante infindáveis embates, representantes do Politburgo de Moscou reuniram-

se secretamente em 1947 com comunistas dos potentados da Rumânia, Iugoslávia, Bulgária,

Hungria, Polônia, Tchecoslováquia, Itália e França a fim de fundar a Agência Comunista de

Informações – o “COMINFORM” – no intento de combater o imperialismo e, sobretudo, se

opor ao Plano Marshall. Também em oposição ao Plano Marshall, os comunistas criaram o

14 O Plano resultou em doações para países europeus, entre 1948 e 1952, que somariam uns US$ 150 bilhões em dinheiro de hoje. O sucesso foi absoluto em reconstruir e reativar a economia européia, de cuja prosperidade dependia, em boa medida, a própria economia americana. Não deve haver dúvida estava em jogo também, e principalmente, o objetivo de proteger a democracia do avanço do comunismo. É comum a percepção de que o Plano Marshall só fez sentido no contexto da Guerra Fria, mas muitos economistas enxergam algo bem maior na iniciativa. O Plano Marshall instituído pelos americanos resultou em incrível crescimento econômico para os países europeus envolvidos. A produção industrial cresceu 35%, e a produção agrícola havia superado níveis dos anos pré-guerra. Recentemente os historiadores vêm questionando tanto os verdadeiros motivos e os efeitos gerais do Plano Marshall. Alguns historiadores acreditam que os benefícios do plano foram na verdade o resultado de políticas de laissez faire que permitiram a estabilização de mercados através do crescimento econômico. Além disso, alguns criticam o plano por estabelecer uma tendência dos EUA ajudarem economias estrangeiras com dificuldades com o dinheiro dos impostos dos cidadãos norte-americanos. O comunismo passou a ser considerado pelos dirigentes da Europa Ocidental como uma ameaça menor, e a popularidade dos partidos o organizações comunistas na região caiu bastante. [Este é um ponto interessante que demonstra as intenções intrinsecas do Plano Marshall]. In: http://www.econ.puc-rio.br/gfranco/veja52.htm e http://pt.wikipedia.org/wiki/Plano_Marshall

XVIII

Conselho para Assistência Econômica Mútua (COMECON) em 1949. Este conselho era

orientado pelos princípios da planificação econômica e foi criado pela URSS para ajudar na

reconstrução do Bloco Socialista.

Aos olhos dos cidadãos ocidentais, degustadores da ideologia capitalista, Stalin

não era melhor que Hitler e tal pensamento tornava o comunismo uma doutrina tão nociva

quanto ou mesmo pior que o nazismo. Os próprios ditames dos precursores socialistas

alimentavam esta visão quando Lênin dizia, por exemplo, ser “inconcebível que a própria

república soviética continue por muito tempo a co-existir com os estados imperialistas” ou

quando Stalin declarava que:

“o poder soviético, e só o poder soviético, é capaz de arrancar o

exército ao comando burguês e transformá-lo, de instrumento de

opressão do povo, num instrumento para libertar o povo do jugo da

burguesia, tanto interior como exterior.”

Convencidos de que os russos soviéticos eram uma ameaça ao mundo por querer

conquistá-lo, os americanos engajaram-se na criação da Organização do Tratado do Atlântico

Norte (OTAN) que se deu em abril de 1949. A maioria dos países atlânticos foi catequizada

por esta idéia e a função precípua desta Organização seria “proteger a liberdade, a herança

comum e a civilização” dos povos do Atlântico e prover a estabilidade e o bem-estar dessa

região do globo. Esperava-se que, neste clima tenso de incertezas, a OTAN estivesse pronta a

enfrentar eventuais emergências que resultassem da política expansionista da Rússia

Soviética. A URSS por sua vez, criou em 1955 o Tratado de Assistência Mútua da Europa

Oriental, conhecido como “Pacto de Varsóvia” – aliança militar do Bloco Socialista e

formada por países da Europa Oriental e a URSS.

Muitos tratados surgiram no período. A maioria dispunha sobre a desmilitarização

e o pagamento de reparações.15 O tratado com o Japão assinado em setembro de 1951 com a

participação de cinqüenta e uma nações, por exemplo, privava-o de todo o seu território

ultramarino em troca do direito à sua soberania e do direito de rearmar-se. Quando entrou em

vigor em 1952, a Rússia manifestou-se profundamente insatisfeita visto que, se o Japão fosse

posto por terra como desejava, seria uma presa fácil para o comunismo.

Neste contexto, a cobiça de ambas as potências pairavam sobre a América Latina e

os países do Continente Africano pois, pelo seu subdesenvolvimento e dependência, seriam

campos férteis à implantação de um novo modo-de-produção. Caberia assim aos EUA

15 Que iam desde 70 milhões o caso da Bulgária, até 360 milhões no caso da Itália.

XIX

reafirmar o modelo capitalista enquanto aos soviéticos competia cativar adeptos à doutrina

socialista.

Não por acaso, e intervenções militares se fizeram presentes em na América Latina

como um todo entre 1945 e 1989 16 – período que compreende a Guerra em questão. Ocorre

que os EUA, preocupados com o avanço socialista, incentivaram e pressionaram para que

regimes de extrema direita – representadas, numa esfera global, pelas Forças Armadas (FA) –

dessem um Golpe de Estado em seus respectivos governos como maneiro de torná-los campos

inférteis ao ideário socialista. Afinal, se o modo-de-produção alternativo prospera-se, seria o

caos norte-americano bem como no Velho Mundo Ocidental. No Brasil não fora diferente.

Tal receio não era descabido. Antes da Guerra o único país dito comunista17 era a

Rússia e, nos três anos subseqüentes ao fim do conflito, Tchecoslováquia18, Polônia,

Alemanha Oriental e todos os estados balcânicos excetuando-se a Grécia já haviam se

curvado ao novo modo-de-produção socialista. Pouco mais tarde, seria vez de China e Cuba

tornarem-se comunistas, àquela em 1º de outubro de 1949, sob a vitória do líder

revolucionário Mao Tse-tung, e este, em janeiro de 1959, com Fidel Castro e Ernesto Che

Guevara.

Fica bem claro que o atrativo soviético bem como sua esfera de influência se faz

sentir pelas mazelas sofridas por àqueles países que, em sua órbita, foram adjudicados pela

Grã Bretanha e pelos EUA. Já noutros como França, Alemanha, Itália e tantos mais, o

fenômeno da sua popularidade crescente só pode ser explicado pela descrença no capitalismo.

Os vácuos de poder criados pelo após-guerra não podem ser desconsiderados uma vez que

tenderam a ser preenchidos pelo ideário comunista.

Os resultados de todas as injunções aqui vislumbradas davam vigor ao comunismo

pelo mundo. Estima-se que havia cerca de onze milhões de comunistas declarados dispersos

pela Europa além Rússia. Constituíam um quarto do eleitorado italiano e dois milhões de

partidários alemães e franceses.

16 Incluindo-se o Brasil e desconsiderando àqueles países onde se verificou o recrudescimento militar, foram 08 no total (Na Venezuela, em 1948; no Peru, em 1968; na Bolívia, em 1971; no Equador, em 1972; no Uruguai, em 1973; na Argentina, em 1976; e, na Colômbia, surgem as Forças Armadas Revolucionárias (FARC), em 1964).17 Segundo Marx, o comunismo abarca uma série de características tais que, para serem atingidas, passariam forçosamente por um processo prévio de socialização. Observando seus critérios e características, não houve país comunista em essência mas sim nações socialistas.18 Na Tchecolosváquia, mesmo antes que os comunistas assumissem o controle governamental em fevereiro de 1948, 65% das indústrias já haviam sido nacionalizadas.

XX

1.3) O Brasil do pós-Guerra

No campo político, o país vinha atravessando uma série de transformações no pós-

guerra. Saindo do regime ditatorial de Getúlio Vargas (Estado Novo, 1930-1945), os

brasileiros se aperceberam que defendiam a democracia em território estrangeiro enquanto

que o solo nacional era gerido sob uma pesada ditadura. É interessante notar que a deposição

de Vargas assim como sua impostura se deu por ação de militares e, paradoxalmente, foram

eles que conduziram o processo de redemocratização sob o governo do General Dutra.

Contudo, em 31 de janeiro de 1951, Getúlio Vargas recebia novamente – agora pela força do

voto – a faixa presidencial. Era o inicio de uma nova gestão de expressão marcadamente

populista.

Entretanto, o Brasil de 1950 era bem diferente do estado novismo. A taxa de

crescimento demográfico subira para 3,6% ao ano o que levaria à marca de 71.000.000 de

habitantes em fins da década, cerca de 20% a mais que os últimos anos do Estado Novo.19 Em

qualquer sociedade o crescimento demográfico tende a ser proporcional ao número de

problemas, principalmente se não for feito de forma planejada. Aqui o número de analfabetos,

por exemplo, crescia em número apesar de decrescer percentualmente;20 as classes operárias

urbanas cresciam em função do êxodo rural enquanto que a classe média urbana e os

industriais encontravam-se muito fortalecidos pelos processos de urbanização e

industrialização levados a efeito por Dutra enquanto que as mazelas e o abismo social criado

pela concentração e má distribuição do capital aumentavam. Alinhado e consolidado como

nação capitalista, o país seguia a tendência mundial de aquecimento do mercado

principalmente no tocante aos bens duráveis.21

O capitalismo brasileiro, porém, deu-se de forma tardia e dependente.

Transformou-se em transnacional e oligopolista, subordinado-se aos centros de expansão

capitalista – principalmente aos EUA. O capital dito "nacional" no período de Getúlio Vargas,

dava lugar ao capital estrangeiro coexistindo com este principalmente nas empresas estatais

onde o capital transnacional teria um papel proeminente através de empreendimentos

19 Tarcílio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 61.20 Enquanto o número de analfabetos maiores de 15 anos cresceu de 13,3 milhões na década de 1940 para 15,8 na década de 1960, o percentual considerando-se a progressão populacional caiu de 56% para cerca de 39% nos respectivos períodos. Este dado é um dos fundamentais para a compreensão do processo de politização social, uma vez que o sufrágio não era universal e analfabetos eram impedidos de votar. In: Tarcílio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 61.21 Como o Brasil à época possuía industrialização insipiente, houve necessidade de investimentos em massa nesta área. Assim, entram em cena as principais vertentes de análise de cunho marxista: a inversão do modelo de exportações, crise de realização ou busca por um novo pacote de investimentos. In: Maria MORAES, Considerações sobre a Crise de 1964, _____________________, p. 19.

XXI

conjuntos (joint ventures) entre multinacionais e o Estado, exercendo controle sobre parte das

ações de empresas brasileiras.

A influência do após-Guerra, sobretudo a comunista, também se fazia presente em

território tupiniquim. Aliás, se na década de 1930 o Brasil sediava o maior grupo nazista fora

da Alemanha,22 poder-se-ia também quantificar os ânimos acerca do comunismo em fins da

década de 1950 e durante o transcorrer da década seguinte, sob movimentos como a Liga

Camponesa, liderada por Francisco Julião, ‘da União Nacional dos Estudantes (UNE), da

Ação Popular (AP), Ação Libertadora Nacional (ALN), Vanguarda Popular Revolucionária

(VPR), entre outros.

O comunismo fora amplamente debatido no Brasil, principalmente na academia.

Isto é algo bastante natural se observarmos que o mundo passava por uma reformulação no

pensar científico – sobretudo as áreas de ciências humanas. Tratava-se a substituição do

modelo positivista pelos moldes marxistas. Não obstante, sabedores do risco de uma nova

guerra potencialmente apocalíptica e do alarde que isto gerava nos meios de comunicação,

seria utópico pensar diferente. Direta ou indiretamente, a inspiração marxista estava

entrelaçada com o desenrolar histórico.

O governo populista do presidente Juscelino Kubtschiek, seguindo o embalo norte-

americano desenvolvimentista, aplicou no Brasil um audacioso Plano de Metas cujo jargão

exemplificava bem sua audácia e dinamismo: “50 anos em 5.” Entretanto, sua política

acelerou em grande escala a crise econômica que estaria por vir e, com ela, a crise política.

Jânio Quadros, presidente da república sucessor de JK teve um governo

semiditatorial de apenas sete meses (de janeiro a agosto de 1961). Sua gestão, apesar do seu

inconteste carisma e popularidade, não resistiu por muito tempo aos extremos a que foram

submetidos o pacto populista face aos interesses e diferenças entre os grupos dominantes.

“Um legado de problemas [o] aguardava, incluindo a inflação que se tornara incontrolável, a

estagnação agrária, dificuldades na balança de pagamentos, bem como a exaustão do mercado

de consumo de bens duráveis que beneficiava a classe média alta.” A ausência de um plano de

governo substancial corroborou para que sua permanência se tornasse insustentável e, em

agosto de 1961, renunciou à presidência na esperança de ser conclamado e retornar ao cargo

22 O “Integralismo” ou Partido Integralista era atuante, sobretudo nos estados do sul do Brasil. Antes dele, porém existia um grupo chamado genericamente de Landesgruppe Brasilien (ou "o grupo do país Brasil"), que pode ser identificado como um partido nazista no Brasil. Segundo Ana Maria Dietrich, desde o início a organização não era urna célula isolada e integrava uma rede mundial com outras filiais do partido presentes em 83 países, com 29 mil integrantes. Quando foi oficializado, em 1928, seu líder, Hans Henning von Cassel, estava apenas a dois degraus hierárquicos do próprio Hitler. "O partido chegou a ter 2 900 integrantes e era, de longe, o maior entre os partidos nazistas que operavam fora da Alemanhà', diz Ana Maria. O segundo maior era o da Holanda, com 1 600 membros.

XXII

nos braços do povo e da classe média, o que lhe daria poderes Bonapartistas-civis. Contudo

isto não aconteceu e, ao que parece à Maria Celina D'Araújo, só não houve um golpe de

imediato porque o General Machado Lopes, do Terceiro Exército (RS), foi convencido a ficar

do lado dos legalistas, ameaçando pegar em armas caso fosse necessário o que fez com que o

grupo militar mais radical recuasse.

Coube então ao secretário de imprensa Raul Riff comunicar na madrugada do dia

25 de agosto de 1961 ao vice-presidente João Belchior Marques Goulart,23 de 42 anos, na

suíte do Hotel Raffies em Cingapura no que seria sua última parada da viagem diplomática

pela União Soviética e China, que ele era constitucionalmente o novo presidente do Brasil.

Goulart enfim ocuparia a cadeira que havia sido de seu padrinho político, Getúlio Vargas.

Entrementes, no Brasil, uma crise política se instaurou. Vários setores se opunham

à sua posse, sobretudo os ministros militares.24 Por isso sua viagem de regresso ao país foi

longa, com várias paradas alternativas, pois era grande o receio do então presidente sobre as

conseqüências do seu regresso naquele momento. Mas, sob grande pressão legalista

sobretudo por parte do Governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, seu cunhado e

correligionário, e de oficiais militares proeminentes como o Marechal Henrique Teixeira

Lott, ex-Ministro da Guerra e companheiro de chapa de João Goulart, implantou-se o regime

parlamentarista a fim de amenizar a crise e afastar a possibilidade de um mal maior pois,

segundo o historiador Daniel Aarão Reis, da UFF, “a nação esteve à beira da guerra civil".25

23 “Advogado, nascido na cidade de São Borja, estado do Rio Grande do Sul, em 1° de março de 1918. Iniciou sua atividade política no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), tendo sido fundador desta agremiação em São Borja (1946) e presidente do diretório do Rio Grande do Sul (1950-1954). Elegeu-se deputado estadual (1946-1950) e deputado federal (1951), licenciando-se do mandato para assumir a Secretaria do Interior e Justiça do Rio Grande do Sul (1951-1952). Foi deputado federal pelo PTB-RS (1952-1953), ministro do Trabalho, Indústria e Comércio do governo de Getúlio Vargas (1953-1954) e presidente nacional do PTB (1952-1964). Candidatou-se ao Senado em 1954, mas foi derrotado. Foi vice-presidente da República no governo Juscelino Kubitschek e, por força de dispositivo constitucional, presidente do Senado (1956-1961). Em 1960 reelegeu-se vice-presidente, na chapa de oposição ao candidato udenista Jânio Quadros. Com a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, João Goulart, ou Jango, como era conhecido, foi empossado na presidência da República, em 7 de setembro, após a aprovação pelo Congresso da emenda constitucional que instaurou o regime parlamentarista de governo.” In: http://www.portalbrasil.net/politica_presidentes_jango.htm24 Conforme nota de René Dreiffus, “O [Ministro do Exército] Marechal Denys deu um ultimatum ao Congresso no sentido de que se descobrissem recursos constitucionais para impedir a ascensão de João Goulart ao poder. Se não fosse tomada nenhuma providencia, o Marechal Denis e o General Cordeiro de Farias formariam uma junta militar.” (O grifo é meu) In: Telegrama de Delgado/ Arias nº 271 127 Z ao Departamento de Estado em 27 de agosto de 1961. Este documento se encontra nos arquivos JFK, Boston, Massachussets. Segundo a historiadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, e da Universidade Federal Fluminense (UFF), Maria Celina D'Araújo, "Foi um 'golpe branco', que só não deu certo porque a população, incluindo grande parte dos contingentes das próprias Forças Armadas, levantou a bandeira da legalidade e da democracia.” (o grifo é meu) In: Roberto CIVITA. Ditadura no Brasil.Rio de Janeiro, Ed. Abril, 04/2005. Separata da revista “Aventuras na História”, série Dossiê Brasil, p. 15.25 “o presidente do Senado Federal, Senador Auro de Moura Andrade, incontinenti [comunicou a renúncia de Jânio Quadros] à Câmara Alta, que declarou a vacância da Presidência da República, determinando a posse imediata do sucessor legal, no caso, o então presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Ranieri Mazzilli.” In: Tarcílio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 120.

XXIII

Jango assumiu a Presidência em 7 de setembro de 1961, sob um regime criado às pressas.

“Um parlamentarismo à brasileira [onde]: o presidente, não o primeiro-ministro, era quem

tinha poder para nomear ministros, vetar projetos de lei e nomear para cargos federais. Mas

quem propunha projetos e até o orçamento era o primeiro-ministro - Tancredo Neves, do

PSD.”26

26 A pesquisadora Argelina Figueiredo afirma ter sido “um sistema híbrido que custou o bom funcionamento do governo (...) O novo regime excluía a possibilidade de reformas políticas e sociais profundas.” A historiadora Maria Celina D’Araújo concorda quando diz que “O arranjo castrava o poder do presidente e dava mais força ao Congresso, que era conservador.” In: Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 15.

XXIV

CAPÍTULO II

O BRASIL EM CRISE

2.1) Processo de consolidação do modelo econômico brasileiro

“Desde o fim da Segunda Guerra, o Brasil crescia de forma acelerada (...) o

aumento do produto nacional bruto (PIB) fora espetacular - 9,7% em 1960 e 10,3% em 1961.

Mas a economia entra em crise e, em 1963, o PIB cresce apenas 0,6%, a menor taxa desde

1947.”27 1964 começaria com preços subindo alucinadamente pouco dinheiro no bolso dos

cidadãos o que “Foi mais um susto para a classe média, já suficientemente apavorada com o

fantasma do comunismo”, comenta o historiador Jorge Ferreira.

Segundo Tarcísio Meirelles Padilha, logo após à crise política que marcou a sua

posse, o presidente João Goulart acabou “revelando desde logo uma manifesta insuficiência

de condições para o exercício do cargo e ainda nítida inapetência para os assuntos da

administração pública, [vendo-se] manietado por facções políticas de orientação ideológica

marxista e paramarxista.”28 Contrariando esta análise, alguns historiadores como Maria Celina

D’Araújo defendem que a gestão do presidente da república João Goulart foi fortemente

comprometida pelo sistema parlamentarista que se implantou. Assim, segundo ela, além das

dificuldades herdadas por seus antecessores, Jango teria que lutar para recuperar seus poderes

presidenciais desvencilhando-se do Congresso – fato que só iria acontecer em janeiro de 1963

mediante o adiantamento de um plebiscito popular previsto para 1965 – e pondo então seus

projetos em prática.29 Para tanto, teria o apoio dos governadores da Guanabara (O ex-

comunista Carlos Frederico Werneck de Lacerda), de Minas Gerais (Magalhães Pinto) e da

Bahia Quaraci Magalhães), além do popular ex-presidente Juscelino Kubitschek – todos de

olho nas eleições presidenciais marcadas para 1965.

Uma das primeiras medidas de Jango após recuperar os poderes presidenciais foi

lançar um plano de combate à inflação e de incentivo ao desenvolvimento conhecido como

“Plano Trienal”30, o que desagradou a setores empresariais e irritou os trabalhadores. O 27 Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 15.28 Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 120.29 “Em 6 de janeiro de 1963, em plebiscito antecipado, 11.500.000 dos 18 milhões de eleitores compareceram à votação, confirmando a opção pelo presidencialismo por larga margem de votos.” Seus projetos basicamente seriam as chamadas reformas de base - agrária, bancária, tributária, eleitoral e urbana. In: http://www.portalbrasil.net/politica_presidentes_jango.htm30 “Em dezembro de 1962, foi divulgado o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social. Elaborado por Celso Furtado, futuro ministro Extraordinário para Assuntos de Desenvolvimento Econômico, o plano seria adotado e conduzido pelo ministro da Fazenda San Tiago Dantas. Seu principal objetivo era a contenção da inflação aliada ao crescimento real da economia, prevendo também as chamadas reformas de base, já anunciadas

XXV

projeto visava dar forma às reformas de base. Entretanto, sem apoio de setor algum, o

programa vigorou por apenas três meses. Neste ínterim, a combalida economia nacional

piorou.

Com razão, a economia é com freqüência apontada como uma das razões de

fundo para o golpe militar – senão a maior. O capital sem dúvida teve papel sumário neste

processo. Foi durante a década de cinqüenta, que o capital transnacional passou a integrar a

economia do país na forma de prestação de serviços, extração e comercialização de produtos

agrícolas e em menor grau, em empresas industriais. Os interesses do capital estrangeiro

foram redirecionados com o advento do Plano de Metas para outros setores, expandindo a

economia local no ramo manufatureiro.31

Este processo está diretamente relacionado com o padrão dos investimentos

americanos pós 2ª Guerra quando o percentual de capital investido na manufatura alcançou o

mesmo patamar daquele investido nas companhias de utilidade pública (39%), sendo o resto

distribuído entre a mineração, o comércio, extração e refino petrolífero. “Em 1950 a

manufatura já representava 44%, subindo a 54% em 1960 e atingindo 68,0% em 1966.”32

A influência das organizações multinacionais e a integração da indústria são

incontestes no contexto em que se desvela a crise da transição das décadas de 1950 para 1960.

Mudanças na divisão internacional do trabalho e a penetração na economia brasileira de

multinacionais representadas principalmente por norte-americanos33 deram lugar a novas

relações econômicas e políticas que proporcionaram crescente concentração econômica e

centralização de capital nos cofres de grandes unidades industriais e financeiras além de

promover um processo de controle oligopolista do mercado.34

O governo brasileiro, sobretudo o do Presidente Juscelino Kubstichiek, foi

no regime parlamentarista e que incidiam sobre as estruturas agrária, bancária, fiscal, entre outras. Durante esses anos de governo, as reformas e os reajustes salariais e a estabilização da economia, com o controle da inflação, foram os dois pólos de conflito da política econômica e da tentativa de implementação do Plano Trienal. Às pressões externas, do governo americano e do Fundo Monetário Internacional (FMI), condicionando os empréstimos externos à adoção de medidas restritivas ao crescimento, correspondiam as reivindicações populares e dos setores da esquerda brasileira.” In: http://www.portalbrasil.net/politica_presidentes_jango.htm31 Fato denominado de "segundo estágio de substituição de importação" por autores como Maria da Conceição TAVARES, José SERRA, Pierre SALAMA e Maria MORAES In: Considerações sobre a crise de 1964.______, abril de 1974.32 René Armand DREIFFUS. 1964: A conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 53.33 Os americanos representavam 13 grupos (48 %) do total de 29 grupos multinacionais bilionários.34 De um total de 144 grupos "nacionais", somente 78 não tinham ligações bem definidas com interesses multinacionais (...) Os americanos representavam também 48 % do total de interesses multinacionais e 15,6% do total de grupos bilionários nacionais e multinacionais (...) Dos 55 grupos multibilionários encontrados no Brasil, 31 deles (56,4%) eram multinacionais e 24 deles (43,6%) eram locais ou "nacionais" dos quais, por sua vez, 62,5% tinham ligações variadas com grupos transnacionais. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 50.

XXVI

fomento para o "sistema e regime político penetrado"35 com seu método desenvolvimentista

exarcebado e inconseqüente permitindo que “mais de 65% dos grupos multinacionais

[operassem] em áreas de atividade onde tinham controle total, ou quase total, do mercado

[chegando ao controle de 92,4% do mercado brasileiro].”36

A maior parte dos investimentos feitos por corporações norte-americanas no

Brasil o era através de organizações locais em consonância com a lei brasileira para que

pudessem usufruir de vantagens administrativas e tributárias. Muitas vezes as corporações

eram organizadas sob um nome para disfarçar seu vinculo com a matriz, estratégia adotada

para ganhar identidade local. Os investimentos eram voltados basicamente para indústrias cuja

produção ajustava-se a um mercado consumidor de classe média e não tanto para a

exportação. Daí a necessidade de aquecer e consolidar esta classe como pré-requisito para o

crescimento e a saciedade dos interesses econômicos internacionais em detrimento das classes

trabalhadoras urbanas e rurais.

Não obstante, JK iniciou uma crescente industrialização de base com recursos

captados do exterior em detrimento da própria capacidade do PIB37 brasileiro de quitar tal

divida externa. Este movimento pró “50 anos em 5” e “pró nacionalista” permitiu o controle

oligopolista transnacional do setor secundário do mercado38, o mais rentável e dinâmico deles,

aumentando paradoxalmente a subserviência nacional a médio prazo, além dos abismos e

mazelas sociais no longo prazo. Portanto, “o capital monopolista transnacional ganhou uma

posição estratégica na economia brasileira, determinando o ritmo e a direção da

industrialização e estipulando a forma de expansão capitalista nacional”, exatamente pela

aplicação dos cinco setores chave de Juscelino – energia, transporte, alimentação, indústrias

básicas e educação, subdivididos em trinta objetivos ou “metas” onde a construção de Brasília

era o símbolo de um novo tempo. Senão vejamos: os investimentos nos setores energéticos, de

transporte, alimentação e indústrias básicas em geral eram de custo elevado, privilegiavam

fornecedores estrangeiros além de ter retorno lento e irrisório; na área da educação, os

recursos foram aplicados sobretudo na área técnica, de formação profissional, pois era

necessário prover mão-de-obra para as indústrias e multinacionais; e, por fim, a construção de

Brasília que trouxe certos benefícios à nação como maior integração e interiorização, ao

35 Diz-se que um sistema político é penetrado quando indivíduos não-membros da sociedade nativa participam diretamente e com autoridade, por ações realizadas em conjunto com elementos da referida sociedade, da designação de seus valores ou da mobilização de apoio na defesa de seus objetivos.36 Uma evidência clara da tendência dos grupos multinacionais para o estabelecimento de um controle oligopolístico do mercado pode ser obtida observando o grau de monopolização no setor metalúrgico sediado em São Paulo. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 56.37 Produto Interno Bruto; mensuração da soma de todas as riquezas produzidas por um país.38 Setor relativo à prestação de serviços, comércio, transporte, etc.

XXVII

mesmo tempo em que proporcionou um aumento grosseiro da divida externa. Assim, fica

evidente que apesar do véu popular-nacionalista, atendia-se na verdade aos interesses das

classes dominantes.

Aquelas que eram consideradas grandes empresas nacionais passaram a ser

controladas predominantemente por multinacionais. A dependência daquelas em relação a

esta possuía fulcro ainda mais profundo do que a simples dependência financeira pois a

dependência tecnológica as fazia integrar-se ainda mais, dando às multinacionais a primazia e

a facilitação para concentrar-se em setores especializados de atividades. Isto culminou em

uma concentração de capital e conseqüente poder que dentro em breve seria expresso em

termos de pressão política. “A concentração de mercado outorga poder adicional às

corporações multinacionais livres das restrições do mercado competitivo.” Dessa forma, as

corporações nacionais passaram a ser empresas associadas (ou transnacionais) e o processo de

internacionalização seria estendido ainda mais depois de 1964 face às suas características

hegemônicas.

Concomitante com o processo de concentração industrial, houve extrema

concentração de posse de terra com conseqüente êxodo rural e um processo vigoroso de

monopolização bancário.39 Houve também um processo de monopolização empresarial

facilitado pela concentração econômica em nível financeiro de maneira que um único grupo

integrava diversas empresas pelo processo de holding.40Os grupos empresariais nacionais

eram caracteristicamente empreendimentos multi ou uni familiares como os grupos

oligopolistas de Ermírio de Moraes, Bueno Vidigal, Quartim Barbosa, Villares, Mourão

Guimarães e Matarazzo, entre outros.41

“De tal maneira se verifica esta preponderância familiar na vida do

País, que a história política não pode ser compreendida fora da

perspectiva das grandes famílias que dominaram e ainda dominam

várias áreas territoriais ou sociais (...)42 Aqui, a família enfeixou nas

mãos uma enorme soma de poderes. Além de concentrar poder 39 10,4% dos estabelecimentos agrícolas controlavam 79,9% da terra. O comércio agrícola estava ligado a uma grande parte da estrutura bancária. No setor bancário, o processo de concentração determinou, entre 1958 e 1963, o aumento do número de agências bancárias de 3.937 para 5.943, enquanto o número de matrizes diminuiu de 391 para 324. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 60.40 Processo pelo qual organizações financeiras trans ou multinacionais mantém e gerenciam o controle acionário e as operações de um certo grupo de empresas nativas.41 “O comportamento do brasileiro até hoje reflete a supremacia da família. Tudo se admite quando está em jogo o interesse familiar. O cidadão incapaz de pedir favores, de reivindicar privilégios para si não consegue manter coerência de comportamento quando se defronta com o interesse superior da família. Daí o nepotismo, o filhotismo e todo este imenso cortejo de atuações decorrentes da presença familiar no cenário institucional.” In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 75.42 Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p.75.

XXVIII

econômico, exerceu e ainda exerce parcela expressiva do poder

político.”43

Uma das formações mais representativas do processo de integração capitalista

senão a maior que ocorria no período em estudo foi a gigantesca Atlantic Community

Development Group for Latin América, formada em 1962 e mais conhecida pela sigla

ADELA. Foi proposta por parlamentares da OTAN e senadores dos Estados Unidos.

Registrada no Grão-Ducado de Luxemburgo em setembro de 1964, operou na América Latina

através de um escritório em Lima, capital peruana.

Ela foi capaz de exercer forte pressão sobre os governos dos países latino-

americanos uma vez que era financiada por alguns dos maiores complexos industriais e

financeiros internacionais tendo amplo acesso a informações privilegiadas. Desta forma,

atingia com relativa facilidade seus propósitos que eram:

a) criar um clima favorável para investimentos usando sócios locais;

b) o desenvolvimento da estratégia de penetração através de investimentos diretos,

assistência técnica e perícia administrativa, análise de mercado e comunicações com focos

locais de poder; e

c) a realização de contratos com instituições financeiras internacionais, estendendo suas

atividades a praticamente todos os setores econômicos.

O interesse e ingerência econômico americano sobre os países latinos era tão

evidente que estudos eram encomendados pelo Senado norte-americano e seus relatórios –

frutos desses estudos – apontavam que “corporações multinacionais conduziam-se como "um

determinante crítico do desempenho econômica brasileira.”

Percebe-se assim que o peso econômico de interesses multinacionais na economia

brasileira tornou-se um fator político central no final da década de cinqüenta. O capital

transnacional desenvolveu-se organizacionalmente, acrescendo capacidade política própria

suficiente para influenciar as diretrizes políticas nacionais além, é claro, de fazer valer seu

poder econômico. Essas “qualidades” foram incorporadas ao manejo das classes política,

técnica, empresária e militar, proporcionando a crise do populismo.

2.2) Do espectro econômico ao ativismo sócio-político

43 Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p.79.

XXIX

Parte dos militares dizia que a “ameaça comunista” era a causa da anarquia e do

embaraço na administração federal. Nesse contexto iriam se desenvolver três episódios

principais para a deflagração do golpe segundo relatos a posteriori dos próprios

conspiradores: a rebelião dos marinheiros – desencadeada pela prisão do Cabo José Anselmo,

o comício na Central do Brasil com a participação de João Goulart – quando então assinou o

decreto da reforma agrária diante de 350 mil pessoas, no Rio, e a reunião dos sargentos no

Automóvel Clube. Na opinião de Gláucio Soares, estes foram fatos que levaram os militares

que estavam comprometidos com o golpe à ação e estimularam os indecisos ou neutros a

apoiar os golpistas, mesmo sem participar. Houve reação imediata expressa pela Marcha da

Família com Deus pela Liberdade que levou 200 mil pessoas às ruas de São Paulo em 19 de

março44 e pela propaganda levada a efeito por diversos atores em detrimento do governo,

como conta Argelina Figueiredo no livro Democracia ou Reformas?

A intelectualidade foi fator preponderante na estruturação do bloco econômico

que se consolidava no Brasil representados pelos intelectuais orgânicos45 ombreando-se com

empresários46 e tecno-empresários. Aliás, seguindo o raciocínio de Sílvio Romero,

“A mestiçagem [– entendida enquanto miscigenação cultural,

ideológica e não meramente étnica –] é [a principal] responsável pela

flexibilidade do homem brasileiro, nada inclinado à adoção rígida de

ideários e de regras permanentes. Nela podemos detectar uma das

fontes mais genuínas da mentalidade aberta do povo, menos no que

44 A denominação deste movimento na verdade congrega todas as movimentações que expressavam contrariedade ao comício da Central do Brasil em 13 de março de 1964. Foi Articulado pelo Deputado Cunha Bueno juntamente com o padre capelão norte americano Patrick Peyto além de contar com o apoio do governador Ademar de Barros, que se fez representar no trabalho de convocação por sua mulher, Leonor de Barros, organizada pela União Cívica Feminina e pela Campanha da Mulher pela Democracia, patrocinadas pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o IPES. Os métodos utilizado pelo IPES para fazer que houvessem manifestações eram simples: primeiro foram convocadas as esposas de empresários, doutrinadas sobre como o comunismo poderia ser prejudicial a elas e, principalmente seus filhos; Em seguida foram convocadas as esposas dos empregados das empresas participantes, sendo as mulheres doutrinadas pelas esposas dos patrões em reuniões de senhoras com fins filantrópicos e religiosos. Simultaneamente eram distribuídos panfletos entre a população. A sociedade cristã foi mobilizada para a primeira Marcha da Família com Deus Pela Liberdade. Dela participaram quinhentas mil pessoas no dia 19 de Março de 1964. A massa humana saiu da praça da República chegando à praça da Sé sendo rezada uma missa pela "salvação da Democracia", pelo padre Patrick Peyton, capelão do Exército Norte-americano, enviado pelo governo dos Estados Unidos. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Marcha_da_Fam%C3%ADlia_com_Deus_pela_Liberdade45 Segundo teoria de Antônio Gramsci, “todo grupo social que passa a existir no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica traz consigo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que proporcionam homogeneidade ao grupo, bem como a conscientização de sua própria função, não somente no campo econômico mas também nos campos social e político. O empresário capitalista cria consigo o técnico industrial, o especialista em economia política, os organizadores de uma nova cultura, de um novo sistema legal.”46 Utiliza-se o termo “empresário” de forma abrangente nesta obra visto que, no período, o termo é aplicado de forma genérica a comerciantes, banqueiros, e aos próprios industriais.

XXX

concerne à adoção de um modelo determinado de organização do

poder, do que na disponibilidade intelectual que nos domina.”47

No transcorrer do processo de formação do neo-imperialista, muito mais que concentração de

produção e centralização do capital, houve também um forte acréscimo de poder político-

corporativo.

Estruturalmente, a ampliação das redes multinacionais favoreciam a formação de

elites nacionais vinculadas sócio-culturalmente aos seus patrocinadores de várias formas, seja

por aspirações profissionais, seja por almejar os padrões de vida das matrizes desenvolvidas.

A resultante desta vinculação é a liderança de empresários estrangeiros, detentores do poder

decisório ao mesmo tempo que libertos dos problemas sociais vizinhos às transacionais.

Obviamente, ainda que sob outros discursos, esta burguesia detentora das corporações

multinacionais48 preocupava-se muito mais com seu próprio enriquecimento do que com

questões éticas e morais como independência ou soberania nacional".

Os balancetes e estratégias monopolistas dependiam diretamente das ações

políticas, o espectro de dominação transcendia os aspectos econômico e financeiro-industriais.

Por isso diretores e profissionais brasileiros que acumulavam funções estatais influentes eram

manipulados a fim de proporcionar apoio político através dessas posições. Como esses

profissionais e empresários acumulavam também cargos de diretoria em diferentes

companhias multi e transnacionais, eles exerciam considerável pressão econômica nas

administrações de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros.

Surgiu então a figura do “técnico-empresário” cuja função precípua nada mais era

do que organizar e estruturar suas próprias corporações sistematizando e viabilizando

interesses particulares sob a aparência de interesse nacional. Por natureza, este grupo burguês

opunha-se vivamente ao regime político populista e tornar-se-iam importantes coadjuvantes

(mentores intelectuais) da luta contra a politização popular que desencadearia no episódio da

queda de Jango. Os tecno-burocratas eram expressão máxima da abordagem empresarial dada

aos problemas de desenvolvimento e a colocação propriamente dita de tais problemas em

termos capitalistas, “o que era exemplificado pela conhecida política de desenvolvimento de

Juscelino Kubitschek”.

A Escola Superior de Guerra (ESG) trouxe para o solo brasileiro as idéias e as

atitudes maniqueístas predominantes no cenário internacional criado pela Guerra Fria apesar 47 Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 46.48 De acordo com Herbert de Souza, “A corporação multinacional é um microcosmo onde a organização global para a produção existe em seu mais alto grau; os sistemas de organização da força de trabalho, os sistemas de comunicações e informações, os sistemas financeiro, administrativo e de controle, existem todos em função da atividade global do capital mundial.”

XXXI

de, segundo Padilha, ser “totalmente infensa à implantação de uma ditadura.”49 Encorajou

dentro das Forças Armadas normas de desenvolvimento associado e valores empresariais em

que o Estado seria estável à medida que o autoritarismo político fosse incorporado na doutrina

de segurança nacional.50 O cerne ideológico desta Escola girava em torno do preceito de que

“O desenvolvimento é [um] processo e não [um] fim (...) Segurança é fator condicionante do

desenvolvimento. Jamais sua causa.” Ambos então – desenvolvimento e segurança nacional –,

seriam diretamente proporcionais.

Ela recebia intelectuais orgânicos empresariais para a realização de seminários e

conferências que também eram realizados em associações comerciais e industriais, clubes

sociais de prestígio, centros culturais e através de organizações acionárias que se tornariam os

focos de suas atividades ideológicas. O tipo de planejamento que dera certo em meados da

década de cinqüenta já não era suficiente para os problemas da virada da década e técnicos,

empresários, economistas influentes e militares passaram a exigir um planejamento indicativo

que consideravam essencial a um empreendimento de nível nacional. Argumentou-se então

pela sua institucionalização em debates acalorados em associações de classe empresariais, na

ESG e nos think-tanks51 governamentais.

O planejamento era necessário ao capitalismo monopolista porque servia para

selecionar temas, tópicos e diretrizes ao passo que determinava o acesso de frações ou setores

nos centros burocráticos de tomada de decisão.52 Este tópico passou a ter grande projeção

como recurso estatal e, ao ser articulado por tecnocratas53, corroborou para atenuar ou mesmo

dissolver críticas e pressões por parte dos governantes populistas bem como das classes

49 Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit, p. 124.50 A ESG impulsionou e difundiu um sistema fechado de idéias baseado na aceitação de premissas sociais, econômicas e políticas que raramente se faziam explícitas além da visão estática de uma sociedade eternamente dividida entre elite e massas. Tal abordagem excluía também a presença de representantes das classes traba-lhadoras, ou mesmo das camadas intermediárias, no quadro de professores regulares ou convidados da ESG. O argumento em prol do desenvolvimento era apresentado somente por empresários, tecno-empresários e, em menor escala por políticos, assim como por convidados estrangeiros, tanto civis quanto militares. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 80.51 Grupo de especialistas organizado por uma empresa ou agência governamental comissionado para realizar estudos intensivos e pesquisa de problemas específicos. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit.. p. 61.52 “Racionalização, intencionalidade, decisões ou escolhas, escala hierárquica, tudo dentro de um complexo de ações intimamente relacionadas: é essa a essência de todo e qualquer planejamento.” Palavras do General Golbery do Couto e Silva em relação ao vínculo entre o SNI (Serviço Nacional de Informações) e o Ministério do Planejamento. In: Golbery do Couto e SILVA. Planejamento da segurança nacional. ESG. Documento n. C-83-54.53 O termo “tecnocrata” (junção semântica entre os substantivos “técnico” e “burocrata”) é empregado como estratégia de marketing para induzir uma idéia apolítica, de imparcialidade em prol da administração da coisa pública, passou a ser utilizado em fins da administração JK e ganhou força após 1964. Porém, cabe a ressalva de que técnicos (arquitetos, engenheiros, etc) tem formação empresarial e, portanto, tem vocação moldada à “eficiência e o lucro privado,” e não às ideologias necessárias a um político. In: René Armand DREIFFUS, Op.Cit., p. 72.

XXXII

inferiores. Sob a bandeira da neutralidade e do nacionalismo, o planejamento se auto-

justificava ocultando do público a trama de interesses existente por detrás dos bastidores

político-econômicos onde era construída a racionalização dos interesses das classes

dominantes e a transcrição destes interesses como se fossem objetivos nacionais.

As diretrizes políticas do governo tinham de se basear em uma racionalidade

empresarial e afastar considerações socioeconômicas populistas, desprezando em grande parte

as aspirações populares. Neste esforço, um controle rígido do aparelho estatal e rigoroso

planejamento indicativo e alocativo era exigido para que o crescimento econômico não fosse

questionado. Isto englobava mudança constitucional, orientação de ação e mobilização de

recursos o que não haveria de ser problema pois, como disse João Camilo de Oliveira Torres,

“ Somos o povo mais plástico do mundo. Damos um jeito em tudo.” Ratificando a afirmativa

do autor mineiro e cumprindo recomendações da Comissão Mista, estabeleceram-se uma série

de agências e órgãos públicos e dentre eles o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDE)54

que foi criado para dar apoio financeiro a investidores privados. A esta altura já não causa

mais surpresa que os principais beneficiários de tais apoios tivessem sido as grandes

multinacionais. A população brasileira que vinha sofrendo com constantes aumentos

tributários desde a década de 1950 – que subsidiavam o pagamento dos juros da divida feita

principalmente por JK para custear seu Plano de Metas, assistia agora as parcelas tributadas

de sua remuneração financiar a acumulação de capital de verdadeiros impérios.

As Forças Armadas, instituições permanentes e regulares destinadas a manter a

paz, a ordem e a soberania nacional e, portanto, absortas no ideal progressista e de defesa

nacional, agregaram-se sutilmente ao esforço pelo crescimento industrial. Assim, o

proletariado militar fornecia mão-de-obra barata para a consolidação dos “objetivos

nacionais” enquanto que sua “elite intelectual”55 se ocupava em legitimá-los, orientando os

critérios de eficiência sob a ideologia da “segurança nacional” numa via de desenvolvimento

54 O Banco Nacional do Desenvolvimento foi criado pela Lei nº 1.628, de 20 de junho de 1952 em decorrência da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e colocado sob a jurisdição do Ministério da Fazenda. Sua função era a de executor e agente financeiro da União nas operações do Plano de Reaparelhamento. O principal apoio financeiro do BNDE seria o Fundo de Reaparelhamento Econômico, constituído dos adicionais sobre o imposto de renda e de depósitos obrigatórios de parte das reservas técnicas das companhias de seguro e capitalização. Caberia ao banco promover a negociação de empréstimos externos para o financiamento do Plano de Reaparelhamento e executar as operações financeiras conexas. Em julho do mesmo ano constituiu-se a sua diretoria, assumindo como diretor econômico o Sr. Roberto Campos. Em maio de 1953 foi criado o Grupo Misto de Estudos BNDE-CEPAL, sob a direção do economista Celso Furtado. Dois anos depois, o grupo divulgaria o relatório final de seus trabalhos - "Esboço de um programa de desenvolvimento para a economia brasileira - período de 1955-1962" -, que constituiria a base do Programa de Metas do governo Juscelino Kubitschek. In: http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/Verbetes_HTM/1023_2.asp

55 Aqueles de patente hierarquicamente superior.

XXXIII

inspirada em interesses transnacionais orquestradas pelo Estado. Outras instituições como o

Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) e a Fundação Getúlio Vargas (FGV) também

objetivavam preparar quadros para a administração pública e privada já tangenciando as

diretrizes políticas conforme a análise da situação politico-econômica que ofereciam aos seus

discentes.56

Dentre a “elite intelectual” militar haviam grupos conservadores, legalistas e

verdadeiramente nacionalistas ao passo que existia também o grupo “modernizante-

conservador” alinhado com os interesses burgueses. Em geral, após a campanha na Itália e a

experiência que foi reforçada pela participação em cursos de instrução e treinamentos nos

Estados Unidos, começou-se a questionar a realidade brasileira frente a dos países

desenvolvidos. Essa experiência comum fez com que um número grande de oficiais se

afiliassem a partidos políticos57 como a UDN (União Democrática Nacional), o PSD (Partido

Social Democrático) e em menor escala ao PDC (Partido Democrático Cristão). Também se

intensificou a organização em redutos político e ideológicos como na ESG e nas reuniões de

Suboficiais e Sargentos.58

O Brasil celebrara acordos com os EUA que indicavam a intencionalidade destas

relações.59 Acordou-se, por exemplo, o Programa de Assistência Militar (PAM)60 e nos idos de

1952 um acordo com os EUA que era a expressão personificada da proximidade oligárquica-

militar: a “Lei de Segurança Mutúa” que, em sua seção 516 demonstrava seu caráter.61 56 “Em 1962, a maioria dos tecno-empresários mencionados anteriormente, assim como os técnicos do IBRE e FGV, constituíram parte da estrutura política dos aparelhos ideológicos dos interesses multinacionais e associados em sua campanha contra a convergência de classe populista e seu Executivo, ou então tomavam parte, de várias maneiras, na ação política organizada da burguesia para derrubar o regime em 1964.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 77.57 Dentre eles destacam-se: o Marechal Henrique Teixeira Lott ,Brigadeiro Eduardo Gomes, General Juracy Magalhães, General Menezes Cortes e o Coronel Nei Braga.58 Como a que ocorreu em 30 de março de 1964, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro, e contou com a participação do próprio João Goulart e mais sete ministros. In: Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 17.59 Transcrição de telegrama enviado a Thomas Mann pelo embaixador americano no Brasil enviado a 04 de março de 1964: “O nosso PAM é um fator altamente influente na adoção pelos meios militares de uma atitude pró- Estados Unidos e pró-Ocidente; a importância do PAM neste setor é cada vez maior. Em decorrência de treinamento e suprimento de material, o Programa de Assistência Militar torna-se veículo essencial no estabelecimento de um estréio relacionamento com os oficiais das Forças Armadas.” In: Jornal do Brasil, 20 de dezembro de 1976.60 O General Robinson Mather, comandante da delegação americana na Comissão Mista Militar Brasil-Estados Unidos e chefe do Programa de Assistência Mútua, explicou em sua palestra na ESG, em princípios de 1964, que a principal ameaça a que o Brasil estava exposto era mais a da "subversão comunista e agressão indireta, do que a agressão direta vinda de fora do Hemisfério." Assim, de acordo com o General Mather, o PAM tinha o objetivo primordial de "assegurar a existência de forças nativas militares e paramilitares suficientes para combater a subversão comunista, a espionagem, a insubordinação e outras ameaças à segurança interna, sem que se tornasse necessária uma intervenção militar direta dos Estados Unidos e de outras forças do mundo livre." Visto o cenário de intensa mobilização política que ocorria no Brasil durante os primeiros meses de 1964, a conferência do General Mather insinuava-se carregada de intenções. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 81.61 A seção 516 da sua "lei de Segurança Mútua" expunha a necessidade de se encorajar "a eliminação de barreiras e de se proporcionar incentivos para um aumento constante na participação da empresa privada no

XXXIV

Entrementes, é bom lembrar que “a participação militar na empresa privada era

uma realidade, embora esse fenômeno não fosse tão difundido quanto sua participação em

agências tecno-burocráticas estatais ou sua presença nos conselhos de diretoria das

corporações multinacionais e associadas após 1964. Alguns oficiais militares eram diretores

importantes ou acionistas de corporações privadas.”62 Porém, há de se ter cuidado para não

generalizar visto que o proletariado militar passava pelas mesmas agruras que a sociedade

civil – ou seja, inflação galopante em detrimento dos salários, alta carga tributária, etc – ainda

com o ônus de ter que resignar-se aos seus ditames castrenses63 em defesa da máquina do

Estado.

O Estado brasileiro, que deveria ser uma instituição gestora da coisa pública

orientada em beneficio do bem comum visto que é a representação da sociedade politicamente

organizada, deixou-se distorcer por interesses, ideologias e pelo grande capital que se

opulentou em detrimento da própria sociedade.64 A ideologia político-econômica que

caracterizou a construção contemporânea do Estado brasileiro foi, sem dúvida, a liberal cuja

evolução foi gradual e teve como representante maior fora o Partido Social Democrático

(PSD). Seu desenrolar em território nacional foi por vezes controvertido e, quando se viu

ameaçado por outra ideologia – a marxista –, tendeu a usar o poder do capital expresso em

políticas de exceção. 65

desenvolvimento dos recursos dos países estrangeiros... (e) ... desencorajar, na medida do possível e sem interferir na realização dos objetivos dessa lei, a prática de monopólio e de cartel que prevalece em certos países.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 78.62 René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 79.63 Impossibilidade de greves ou manifestações de quaisquer caráter; inobservância na percepção de direitos trabalhistas (como hora extra, por exemplo) e de participação em programas assistenciais do governo (como apoio ao acesso à casa própria); a imposição de condições de trabalho precárias e em progressivo sucateamento; etc...64 Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850) faz uma reflexão interessante que ajuda a tornar esta dissimulação do caráter do Estado brasileiro liricamente mais inteligível quando diz que “o Brasil se formara às avessas, começara pelo fim. Tivera Coroa antes de ter povo. Tivera parlamentarismo antes de ter eleições. Tivera escolas superiores antes de ter alfabetismo. Tivera bancos antes de ter economias. Tivera salões antes de ter educação popular. Tivera artistas antes de ter artes. Tivera conceito exterior antes de ter consciência interna. Fizera empréstimos antes de ter riqueza consolidada. Aspirava a potencia mundial antes de ter a paz ea força superior. Começara quase tudo pelo fim. Fora uma obra de inversão, produto (...) de um longo oficialismo.” In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit.,p. 96.65 Estas políticas se traduzem por um sentimento compatível com o desabafo de Bernardo Pereira de Vasconcelos quando, frente as revoltas imperiais e regenciais no Brasil das décadas de 20 e 30 do século XIX, proclamou: “Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade; os princípios democráticos tudo ganharam, e muito comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje servi-la, quero salva-la; e por isso sou regressista. (...) Quem sabe se, como hoje defendo o país contra a desorganização, depois de o haver defendido contra o despotismo e as comissões militares, não terei algum dia de dar outra vez a minha voz ao apoio e a defesa da liberdade? (...) Os perigos da sociedade variam; o vento das tempestades nem sempre é o mesmo: como há de o político, cego e imutável, servir no seu país? (VASCONCELOS, 1978, p. 25)” In: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/art5_10.html

XXXV

Dos contatos entre as Forças Armadas norte-americanas e brasileiras através de

seus serviços de segurança – Central Intelligency Agency (CIA) e Serviço Nacional de

Informações (SNI) –, construções ideológicas que reservavam ao Exército a função societária

de moderadores nos conflitos políticos e entre facções das classes dominantes foram

enaltecidas e legitimadas por muitos estudiosos da política brasileira.66 De fato este não é um

pensamento surreal haja vista a grande e ativa participação política dos militares desde que

proclamada a República mas, todavia, esse papel moderador conflitava com a identificação

partidária de alguns oficiais. O posicionamento ideológico burguês-mercantil, ainda que

minoritário, fragmentou as instituições militares a ponto de proporcionar confrontações

aguerridas no seio da corporação. Associado a isto, havia ainda a influência sindical,

camponesa e popular que visava atrair indivíduos dos baixos e médios escalões militares na

tentativa de ampliar o número de interlocutores de uma ideologia reformista-revolucionária.

Como exemplo, pode-se citar o caso do Cabo José Anselmo da Marinha que incitou o

movimento entre seus pares através da organização de uma associação da classe.67 Ao ser

preso, estourou a rebelião dos marinheiros em 26 de março de 1964 e, como o governo

federal, admoestou os envolvidos, a crise se agravou pela quebra da disciplina e hierarquia,

pilares daquelas instituições. Assim, este episódio acabou acirrando os ânimos militares

contra o Executivo e dando ainda mais cores de legitimidade à ação das classes dominantes

tidas no episódio como defensoras da ordem constitucional, e da própria insurreição de 1964,

visto que a atitude de Jango fora interpretada – conveniente ou assertivamente – expressão

clara de seu caráter comunista, o que deu ao movimento burguês-militar de abril daquele ano

o tom de ação salvadora.

Apesar da identificação primordial ser com o povo, a postura de alguns lideres

fardados alinhadas com os valores da classe média e ideais burgueses, pôs o ideário e a

possibilidade de uma verdadeira Revolução por terra.68 Ainda assim, mesmo em detrimento

do que parece ser uma evidência histórica, “o mito do papel moderador proporcionou a

racionalização para o controle militar autoritário do sistema político depois de 1964.”

Do esforço de cunho ideológico, político e militar levado a efeito pela burguesia a

fim de derrubar o Executivo de João Goulart, seriam baluartes vários empresários importantes

66 “sabemos que a queda de Vargas se deu por ação das Forças armadas que, entre nós, desempenham a missão moderadora reservada no Império ao Imperador” In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 119.67 Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 17.68 A exemplo da ex-União Soviética, caso houvesse coordenação e um movimento uníssono entre o povo e as Forças Armadas, estariam unidos os elementos necessários a uma verdadeira revolução (entendida como sendo uma transformação radical e, por via de regra, violenta, de uma estrutura política, econômica e social): o povo, com sua ideologia calcada em suas reais necessidades e no bem comum; e os militares, com sua estrutura, preparo e poder para fazer valer, pela força, o desejo dos primeiros.

XXXVI

ligados à corporações que, direta ou não, seriam patrocinadores da campanha que levaria à

queda do regime populista. Companhias ligadas à International Finance Corporation – IFC e

integrantes da ADELA, estiveram à frente desta campanha.

Formaram-se grupos desejosos por compartilhar do governo político e moldar a

opinião pública, o que fizeram através da criação de grupos de ação política e ideológica. O

primeiro desses grupos com expressão nacional foi o Instituto Brasileiro de Ação Democrática

(IBAD), criado sob a demagógica bandeira da defesa democrática. Sua composição básica

contava com membros da American Chambers of Commerce e de outras associações de classe

importantes, do Conselho Superior das Classes Produtoras (CONCLAP) e figuras

proeminentes das tradicionais associações de classe do Rio e São Paulo. Influenciou

diretamente no legislativo e nos governos estaduais, interveio em assuntos eleitorais

apontando alguns sindicatos em particular. Promoveu ainda alguns líderes camponeses e

sindicais, movimentos estudantis e organizações de pressão dentro das classes médias tudo no

intuito de desestabilizar o governo populista de Jango. Para tanto, além do exposto,

sincronizou atividades de organizações paramilitares como o Movimento Anticomunista

(MAC), o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a Organização Paranaense Anti-

comunista (OPAC), à organização católica Centro Dom Vital69 e a Cruzada Libertadora

Militar Democrática (CLMD). Com esta última, compartilhava ainda pessoal, técnicas e

recursos.

O IBAD originou a Ação Democrática Popular (ADEP) e a Incrementadora de

Vendas promotion S.A a fim de disseminar suas idéias políticas. Conseguiu projeção maior

ainda durante a campanha de 1962, pois serviu de conduto de fundos maciços para com o

intuito único de influenciar o processo eleitoral e coordenar a ação política de indivíduos,

associações e organizações ideologicamente compatíveis. A ADEP possuia escritórios bem

equipados espalhados pelo país, geralmente dirigidos por oficiais de alto escalão reformados

do Exército, que contaram também com a cobertura do movimento Ação Democrática

Popular (ADP) no Congresso.

69 É interessante notar o envolvimento de grupos de orientação católica interagindo no movimento como a organização católica Centro Dom Vital, a Ação Popular (AP) e a Juventude católica (JC). Tal fato é explicável analisando a “encíclica Gaudium et Spes, [que mostra] um grande cuidado em fixar principios e conciliá-los com o crescente interesse que a Igreja vem revelando pela questão social (...) De um lado, o documento não deixa dúvida sobre a missão precípua da Igreja, que não é de ordem política, econômica ou social. Sua missão é religiosa. Mas acrescenta que cabe à Igreja proferir um juízo moral sobre a realidade política (...) Cumpre, sim, à Igreja emitir um juízo ético sobre a realidade social, política e econômica, simplesmente porque lhe incumbe cuidar do homem e preservar-lhe a humanidade, a fim de que ele (...) possa caminhar para sua destinação sobrenatural (...)É nesta perspectiva que se situa a ação fecundante da Igreja,” influenciando e propagando a sociedade com sua ideologia. Aliás, tal propagação fora fenomenal uma vez que o número de católicos no Brasil girava em torno de 92,5% em fins da década de 1950. In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit, p. 84, 88 e 89.

XXXVII

O Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) é congênere e contemporâneo do

IBAD. Houve grande integração de pessoal, material e de fontes financeiras tudo em

detrimento do governo vigente. Numa analogia com o Departamento de Ordem Política e

Social (DOPS).

O exercício do domínio político no ápice do regime populista – de 1945 a 1960 –

foi possível graças a uma combinação entre força e autoridade, limitação e pluralismo,

coerção e consentimento, que se deu de forma “harmoniosa”, sem que a força substituísse o

consenso.70 Contudo, as classes dominantes proscreveram o Partido Comunista, intervieram e

expurgaram os sindicatos e deixaram mais de 50% do eleitorado privado do direito ao voto

em decorrência do analfabetismo, fotos que evidenciam a falta de um consentimento

hegemônico ou pluralismo democrático no início da década de sessenta. Partidos de “centro-

direita”71 expressaram, por certo tempo, as demandas populares enquanto o PTB representava

algumas das reivindicações populares.

A sociedade brasileira parecia mesmo, até certo momento, negar a presidência

aos militares uma vez que, desde a experiência com o Marechal Eurico Gaspar Dutra não

elegeu, pela terceira vez consecutiva, um candidato militar para a presidência da republica em

1960, quando candidatou-se pelo PSD e com apoio do Partido Comunista o Marechal

legalista Henrique Teixeira Lott, companheiro de chapa de João Goulart. O resultado das

urnas mostrava que, estatística e aparentemente, a população brasileira quando consultada,

apoiava uma combinação de reformas populares sociais, de desenvolvimento nacionalista e

de austeridade e eficiência administrativas. Essa combinação de demandas é um tanto quanto

curiosa sabendo-se que, no período histórico em questão, o voto não era universal, grande

parte do eleitorado consistia justamente de representantes dos interesses empresariais

multinacionais e associados, que a noção de progresso foi internalizada pela classe média

alta, seja por interessar diretamente a esta classe, seja por depender do logro auferido pelas

grandes empresas para sua manutenção e, quiçá, a melhoria das suas condições salariais e de

trabalho.72

70 Entenda-se por “consenso” e “força” as formas políticas “de cabresto”, como o peleguismo, o coronelismo, o paternalismo, clientelismo, protecionismo, o apadrinhamento, etc., ferramentas muito utilizadas nas relações políticas de domínio no rápido processo de industrialização de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros. As ações restritivas e retaliativas estavam na base do que era de fato um regime político autoritário, apesar de ser levado a efeito cautelosa e disfarçadamente por civis.71 Nossos políticos, salvo alguns ícones, são marcados pela “síndrome da conciliação.” Sempre, mesmo em momentos de crise, procura-se evitar posições extremistas ou radicais. Assim, surgem interessantes – quando não incongruentes – coligações no teatro político nacional como “centro-direita” ou “centro-esquerda” que tendem a eximir a postura de seus respectivos coligados de eventuais interpretações radicais. É o viés político do “jeitinho brasileiro.”72 Ao contrário do que pode parecer, João Belchior Marques Goulart não era um consenso nacional. Antes ao contrário, nem no Rio Grande do Sulo parecia ser bem quisto visto que “foi decididamente derrotado em sua

XXXVIII

Jânio Quadros herdou de seu antecessor uma economia enfraquecida face ao

crescimento desenfreado e aos entraves burocrático-administrativos populistas que se

revelavam insatisfatórios para os interesses multinacionais ou mesmo dos capitais locais de

maior proeminência. O governo já não tinha mais como cumprir seus contratos e quitar suas

dividas.73

A inflação era galopante, havia déficit interno, o setor agrário estava estagnado, o

mercado de consumo de bens duráveis estava enfraquecido e com ele enfraquecia-se a classe

média alta. Não obstante, fruto do patrocínio ideológico de João Goulart enquanto vice-

presidente de JK, era crescente o número de congressos trabalhistas nacionais que

reorganizavam-se em torno de uma classe industrial efervescente a conflitante com a

estrutura sindical vertical, o que reduzia as condições que haviam permitido a manipulação

das massas.

A inflação golpeou também a renda das classes médias pois reduziu capacidade

de consumir bens duráveis, afetando principal e diretamente os interesses multi e

transnacionais do setor além de prejudicar também o potencial de poupança de classes

médias, o que restringiu recursos que se esperava fossem captados por intermédio de bancos

privados e agências estatais para o financiar a indústria privada.

Jânio Quadros já não contava mais com o apoio empresarial por conta da agitação

descontrolada dos sindicatos e tampouco dos setores oligárquicos do PSD ou de outros

partidos menores que outrora o apoiaram, tudo porque não foi capaz de satisfazer aos

interesses da classe média. Eram necessárias reformas que envolveriam sacrifícios das classes

trabalhadoras acompanhados de fortes limitações econômicas e políticas aos setores

oligárquicos tradicionais, bem como aos interesses industriais locais. Assim, após fracassadas

as suas tentativas de contornar a estrutura populista pelos “bilhetinhos” e pela sua manobra

político-militar74, renunciou ao mandato em agosto de 1961, sete meses após a posse.

tentativa de tornar-se senador pelo PTB por seu estado natal.” In: Thomas SKIDMORE, Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 183.73 “Um relatório da Embaixada Americana que trazia uma análise de Herbert K. May, adido do Departamento de Finanças, concluía que o Banco do Brasil praticamente não possuía divisas estrangeiras, e que o governo de Juscelino Kubitschek havia "esgotado todos os recursos 'éticos' e 'não-éticos' de que dispunha para cobrir o déficit da balança de pagamentos, permitindo que esse deixasse o cargo no dia 31 de janeiro com as finanças em aparente liquidez”. Tal telegrama foi enviado a 23 janeiro de 1961 e pode ser analisado em Phyllis PARKER. 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de Estado de 31 de março. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977, p.31. In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 12874 Jânio Quadros que indicou o Marechal Odílio Denys Ministro do Exército, o Almirante Sílvio Heck Ministro da Marinha e o Brigadeiro Gabriel Moss, do IBAD, Ministro da Aeronáutica, trazendo para si o apoio militar com líderes de direita e tentando com isso conduzir o esboço de uma guinada militar. João Goulart não gozou em nenhum momento do apreço deste setor visto que o repudiava por sua “tendência” comunista e por não corresponder aos interesses burgueses. Tanto o é, que percebeu clara e ativa impedância no seu retorno e posse como presidente legitimo – que só foi enfim consentida graças à ferramenta improvisada do sistema

XXXIX

Enquanto isso acontecia, seu vice-presidente se achava convenientemente em missão de “boa

vontade” comercial na China. Os empresários e seu próprio bloco partidário não estavam

prontos para apoiá-lo.

A assunção do vice-presidente só se fez possível em grande parte pela ação

legalista de um grupo de militares – sobretudo pelo General Lott, ministro da Guerra – em

detrimento dos interesses multinacionais, burgueses, da ala militar “revolucionária” e dos

próprios intentos internacionais75 que, ao invés de um golpe direto, buscaram uma solução

alternativa constitucional.

Em principio, João Goulart só obteve apoio da pequena e média burguesia

industrial e do setor agrário pois ambos sentiam a pressão do caráter concentracionista do

processo de expansão capitalista no país e percebiam suas conseqüências – a deterioração dos

salários reais das classes trabalhadoras urbanas que provocava reflexos em todos os setores.

Assim, na empreitada nacional-reformista pretendida, o novo bloco de poder agro-industrial,

apoiado pelas classes trabalhadoras urbanas e pelo campesionato mobilizado seriam as bases

da reconstrução do sistema político brasileiro. Com essa base, o Executivo tomou medidas

que fizeram tremer os interesses multi e transnacionais.76

Jango fez com que limitações de remessas de royalties forçassem as companhias

multinacionais a investir capital no país pelo fato de terem de reinvestir seus próprios lucros.

Buscou monopolizar a importação de petróleo e desapropriar as cinco refinarias privadas do

Brasil, revendo também concessões de mineração dadas à multinacionais. Numa luta inglória

– visto a disparada da inflação –, tentou reajustar os salários mínimos mantendo o poder de

compra do proletariado quando então estabeleceu uma política de controle de preços.

Decretou o primeiro estágio da Reforma Agrária, que visava desapropriar, com compensação

prévia e efetiva, áreas improdutivas localizadas próximas a ferrovias e rodovias. Outro dos

objetivos de Jango foi controlar e limitar o redesconto bancário para combater a especulação

financeira, enquanto negociava o reescalonamento da divida externa com os países credores

- que fez com que os americanos tivesse que aceitar as mesmas condições acordadas com os

parlamentarista. 75 Segundo David Rockefeller, durante uma palestra frente a uma platéia militar e acadêmica em West Point no final de 1964, “fora decidido desde o inicio que Goulart não era bem vindo à comunidade financeira americana e que teria de sair.” In: Knippers BLACK, United States penetration of Brazil.Manchester, Manchester Univ. Press, 1977. p. 78.76 “a lei restringindo a remessa de lucros pelas companhias multinacionais às suas matrizes, o que, de qualquer forma, impedia a saída maciça do capital. Essa medida implicou também em controle mais rigoroso das atividades do capital transnacional no Brasil, retirou-lhes os extraordinários privilégios concedidos em grande parte durante a administração de Juscelino Kubitschek e de Jânio Quadros. A partir dessa cláusula, o capital estrangeiro e o capital nacional seriam tratados em igualdade de condições.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit.,p. 131.

XL

europeus. Além disso, o governo de João Goulart propôs uma reestruturação do sistema

tributário baseado na taxação da renda, uma reforma eleitoral dando a analfabetos e soldados

o direito a voto e concedendo novamente a sargentos a elegibilidade ao legislativo, bem como

uma reforma do sistema educacional popular.

Os golpes desferidos pelo governo contra o capital estrangeiro contribuíam para

uma redução do investimento multinacional e, consequentemente, para uma atitude

apreensiva por parte do grande capita1 preocupado com os beneplácitos com que o Executivo

acenava para as classes populares, indústrias de porte médio e setor agrário.77 Os

investimentos que chegavam a média de 110 milhões de dólares até 1962, caíram para cerca

de 9 milhões apesar das empresas americanas terem mantido aparentemente um retorno

lucrativo bastante alto mesmo no período auge da crise.78

As estatais responsáveis pelos setores infra-estruturais, como eletricidade,

petróleo, aço, portos, transporte e construção, começaram a ruir. Convenientemente

transpareceu a “ineficiência” do Estado para o ramo empreiteiro, o que serviu de argumento

dos seus críticos. O funcionalismo público também cooperou com a crise estatal uma vez que

desencadearam várias greves de onde surgiram algumas demandas políticas melhor

articuladas. Ficou bastante claro que, ao diminuir a velocidade com que se dava o

desenvolvimento, tanto as classes trabalhadoras quanto o governo viravam alvo fácil ao

ataque da mídia e da opinião pública.79 “O homem descobriu meios de solapar as instituições

recorrendo, de preferência, aos meios de comunicação social, para assim minar

gradativamente os valores da sociedade (...) [e] se utilizam dos instrumentos da [própria]

democracia para melhor feri-la.” Desta forma, conforme a conveniência da época, as

77 “Tentou-se uma distribuição de renda através de aumentos salariais e, indiretamente, através da alocação de uma parte maior dos recursos públicos para a educação gratuita, para os serviços de assistência médica gratuita, para a habitação e transporte público. O governo implementou também uma política de controle de preços sobre bens de consumo, ao mesmo tempo em que tentava controlar os lucros desmedidos das companhias multinacionais em áreas vitais como a de produtos farmacêuticos. Agindo contrariamente às diretrizes anteriores de industrialização, que beneficiava a expansão de corporações multinacionais fornecedoras de um reduzido mercado de alto poder aquisitivo, o governo nacional-reformista objetivou redirecionar o tipo de produção, principalmente produtos alimentícios, vestuário e aparelhos eletrodomésticos básicos. Conseqüentemente, as indústrias de porte médio e os setores agrários, que produziam bens básicos de consumo para um grande mercado de baixa renda, foram estimulados.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit. p. 133.78 8% entre 1960 e 1962; 5,7% nos anos de 1963-1964; e 9,8% entre 1965 e 1967, segundo Celso Furtado.79 “A doutrinação geral visava a apresentar as abordagens da elite orgânica aos responsáveis por tomadas de decisão políticas e ao público em geral, assim como causar um impacto ideológico em públicos selecionados e no aparelho do Estado. A doutrinação geral através da mídia era realizada pela ação encoberta e ostensiva, de forma defensiva e defensiva-ofensiva. Constituía-se basicamente numa medida neutralizadora. Visava infundir ou fortalecer atitudes e pontos de vista tradicionais de direita e estimular percepções negativas do bloco popular nacional-reformista.” “Os canais de persuasão e as técnicas mais comumente empregadas compreendiam a divulgação de publicações, palestras, simpósios, conferencias de personalidades famosas por meio da imprensa, debates públicos, filmes, peças teatrais, desenhos animados, entrevistas e propagandas no rádio e na televisão.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit. p. 231-232.

XLI

diretrizes políticas reformistas – sobretudo as políticas redistribuitivas que visavam reduzir as

diferenças sociais – foram atacadas e classificadas como “românticas”; a nacionalização, as

medidas estatizantes e o redirecionamento da produção foram taxadas de ineficientes. Mais

tarde, esta mesma mídia que apregoava a necessidade de uma intervenção militar se voltaria

contra a própria instituição das Forças Armadas.

Em tempo oportuno e com fulcro legitimador, todos os esforços do Executivo de

João Goulart foram considerados – com fundamentos aparentemente convincentes – como

sendo de inspiração comunista. Obviamente, todo o conjunto de medidas “reformista-

comunista” desagradava a emergente classe média, os interesses oligárquicos e os detentores

do grande capital multinacional que desejava exatamente o oposto destas ações em beneficio

próprio. A crise era palpável e estava consistentemente instalada.80

Apesar de sua aparente boa-fé com seus projetos reformistas, o fracasso de suas

medidas, a inflexão econômica traduzida na inflação exorbitante e no despencar do PIB81

promoveram o “caos econômico e social” “criando [um] círculo vicioso [de] pobreza.” Este

posicionamento de Tarcisio Meirelles Padilha em severo detrimento da gestão de Jango,

apesar de refutados por outros autores, é bastante pertinente e seus argumentos, salvo alguns

equívocos primários como a heroicidade atribuída aos parlamentares da ADP, não chegam a

ser vazios de sentido. Segundo ele, havia dificuldade em formar bases políticas estáveis face

a multiplicidade de partidos o que prejudicava a aprovação de reformas – muitas delas

demagógicas –, distanciava a participação popular em torno de um programa ideológico-

partidário; os partidos, a esta altura tornara-se muito mais personalísticos do que

nacionalistas, dissolvendo as bases do governo e conturbando todo o cenário político; as

instituições de ensino superior e afins haviam se tornado “centros de agitação político-

pedagógica” onde uma minoria radical de universitários persuadia todo o núcleo acadêmico a

participar de suas ações mesmo com prejuízos aos discentes e às pesquisas; o presidente, que

80 As vertentes mais conhecidas de argumentação enfatizam a crise econômica do período e a exaustão do estágio de substituição de importações da industrialização. Entretanto, observa-se que, conforme denuncia do Ministro do Planejamento e Coordenação Econômica Roberto Campos em seu documento nº 1 – A crise brasileira e as diretrizes de recuperação econômica., as classes dominantes perceberam a atuação de outros fenômenos sociais. Em uma análise preparada para a reunião ministerial de 4 de junho de 1964, Roberto Campos explicou que, “em particular, a paralisação do desenvolvimento em 1963 foi conseqüência de fatores climáticos e sócio-políticos.” Entre os fatores político-institucionais, foram apontados os seguintes:a) “a tensão política constante criada pela desarmonia entre o Executivo Federal de um lado e o Congresso Nacional e governos estaduais de outro, que levantaram suspeitas quanto às intenções continuístas do presidente João Goulart";b) a tendência estatizante que ameaçava investidores privados;c) a infiltração comunista que ameaçava subverter a ordem social e econômica; ed) a paralisação sucessiva da produção pelos líderes grevistas, freqüentemente com objetivos políticos claros.” 81 A inflação beirava os 100% em 1963 ao passo que o crescimento do Produto Interno Bruto decaíra para 1,5% no mesmo ano. In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit, p. 120.

XLII

cria ter bases sindicais profundas, apoiava greves e manifestações ao invés de procurar

reverter o quadro geral da crise;82 “Dera-se a vacância moral da presidência da República.”

Tudo isso era alimentado ainda pela propensão de João Goulart aos princípios comunistas aos

quais não só os militares e a burguesia temiam, como também grande parte da sociedade

brasileira. O temor por um golpe de esquerda oriundo do próprio Executivo não era

infundado. Jango já se havia mostrado simpático à ícones comunistas como Fidel Castro,

Francisco Julião e, por ocasião da renúncia de Jânio Quadros encontrava-se em franca visita à

China. Ainda segundo Padilha, “O próprio chefe do partido [comunista] no Brasil declarara

que já detinha o poder. Faltava-lhe apenas chegar ao governo.” Portanto, por mais que haja

esforço em comprovar que tais visitas pretendiam uma expansão econômica “neutra” no

contexto da Guerra Fria como pretendia Afonso Arinos de Mello Franco,83 Ministro das

Relações Exteriores de Jânio, as circunstâncias em que os fatos se deram os acontecimentos a

posteriori apontam para tal conclusão apesar de Maria Celina D’Araújo afirmar que "É

especulação dizer se o presidente ia ou não derrubar a democracia, porque tudo aconteceu

muito rápido, [mesmo sabendo que] havia um discurso da esquerda contrário à ordem

democrática.”84

Com o propósito firme – apesar de cambaleante pela conjuntura – de impor uma

autonomia relativa, o Estado acabou por desvendar a até então encoberta sujeição ao capital

em detrimento dos trabalhadores. A composição característica do Estado brasileiro, em

contraposição às diretrizes nacional-reformistas do governo, não podia mais ser disfarçadas

ou ocultas aos olhos da sociedade. Assim, instituições militares, políticas e burocráticas do

Estado tiveram que, obrigatória e abertamente, se alinhar com uma das vertentes sociais

82 O autor exemplifica citando o caso do porto de Santos que, “durante o período de um ano (...) permaneceu em greve por mais da metade dos dias úteis” promovendo enormes perdas tanto pelo apodrecimento de cargas perecíveis, quanto pela impossibilidade de receber maquinário e matérias-primas destinados à indústria. In: Tarcísio Meirelles PADILHA, Op. Cit., p. 122.83 “Afonso Arinos de Melo Franco nasceu em Belo Horizonte em 1905, filho de uma tradicional família de políticos, intelectuais e diplomatas (...) [Liberal], Com a volta de Vargas ao poder, em janeiro de 1951, passou mover intensa oposição ao governo. Tornou-se então líder da UDN na Câmara (...) Na crise deflagrada em 1954, que culminaria no suicídio de Vargas, propôs a renúncia do presidente e a intervenção das Forças Armadas (...) Em janeiro de 1961, com a posse de Jânio Quadros na presidência da República, foi nomeado ministro das Relações Exteriores. Desenvolveu à frente do Itamarati uma política externa independente, marcada pelo não alinhamento automático aos Estados Unidos, a aproximação com os países do bloco socialista, o reconhecimento do governo de Fidel Castro em Cuba e a condenação explícita do colonialismo na África e na Ásia. Com a renúncia de Jânio em agosto do mesmo ano, deixou o ministério, voltou ao Senado e aí cumpriu importante papel no encaminhamento da emenda parlamentarista, solução proposta para contornar as resistências de setores militares à posse do vice-presidente João Goulart. Iniciado o governo Goulart em setembro sob a vigência do sistema parlamentarista, voltou a chefiar o Itamarati no gabinete Brochado da Rocha (julho-setembro de 1962) (...) Partidário do golpe militar que depôs Goulart em 1964, foi um dos fundadores, em 1966, da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido político de sustentação ao regime militar.” (O grifo é meu) In: http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/biografias/ev_bio_afonsoarinos.htm84 Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 17.

XLIII

conflitantes. As relações de classe tornavam-se cada vez mais politizadas e, como as

instituições estabelecidas sob o jugo do grande capital internacional certamente partiriam em

sua defesa, esta politização proporcionou um bloqueio à ideologia socialista de Karl Marx em

prol de um nacionalismo desenvolmentista empresarial.

O período foi marcado por uma desagregação partidária e ideológica. Vários

grupos partidários surgiram sem, contudo, apresentar novas propostas ou ideologias de

caráter nacional mas sim personalística. Após a eleição, o candidato vitorioso considerava-se

livre de suas próprias promessas, de suas obrigações para com o partido quanto e para com o

eleitorado que o havia eleito. Alianças não se formavam em decorrência de afinidades

ideológicas mas sim em função de interesses de ordem pessoal e oportunistas.85

Restou então ao eleitorado, unir-se à recém-formada Frente Parlamentar

Nacionalista (FPN), à Ação Democrática Parlamentar (ADP) ou ao ainda ilegal Partido

Comunista (PCB). As organizações políticas com tendências nacional-reformistas também

eram muito bem quistas pelo eleitorado. Foi criada também a Frente de Mobilização Popular

(FMP), “bloco extra parlamentar organizado a nível nacional, dirigida contra o abuso

econômico transnacional, as restritivas estruturas oligárquicas rurais e a organização

administrativa, cultural e social populista,”que incluía a Frente Parlamentar Nacionalista, as

Ligas Camponesas e os sindicatos rurais, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o Pacto

de União e a Ação Sindical (PUA), União Nacional dos Estudantes (UNE), a Ação Popular

(AP), de orientação católica, tendo ainda o apoio de oficiais militares nacional-reformistas e

do ilegal Partido Comunista (PCB), se tornando um “desafeto” para as forças dominantes.

As massas trabalhadoras urbanas passaram a denunciar o pacto populista visto

que não tinham participação nos lucros das empresas – decorrentes do aumento de

produtividade – e viam deteriorar seu nível de participação na renda nacional como um todo.

As reivindicações unificaram as classes trabalhadoras públicas e privadas, além de aproximar

as demandas de trabalhadores rurais com as dos trabalhadores industriais. Como recompensa

pelo seu ativismo político, a taxa de exploração foi interrompida em sua escalada de altas.

85 “O estudo de Assis Ribeiro chamou a atenção para a tendência existente entre o eleitorado de afastar-se do espectro político. O declínio e a insuficiência dos partidos tradicionais como mecanismos de controle social e mobilização dirigida tornavam-se evidentes. Essa tendência foi confirmada por uma análise da percentagem de votos obtidos pelos partidos majoritários em três eleições para o Congresso. Assim, os três maiores partidos, que haviam obtido em 1945 78,7% dos votos, receberam, dezessete anos mais tarde, somente 38,9% deles, enquanto alianças partidárias obtinham 41 %. Por outro lado, o número de votos em branco subiu de 468.000 (4,8%) em 1954 para 2.149.111 (15%) em 1962. Assim, os três maiores partidos, que haviam obtido em 1945 78,7% dos votos, receberam, dezessete anos mais tarde, somente 38,9% deles, enquanto alianças partidárias obtinham 41 %. Por outro lado, o número de votos em branco subiu de 468.000 (4,8%) em 1954 para 2.149.111 (15%) em 1962.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit, p. 138.

XLIV

Os quadros médios e superiores das Forças Armadas associados à burguesia

tecnocrata estavam insatisfeitos por conta da queda de seu poder aquisitivo em função da

inflação e da relativa depreciação dos seus salários. Oficiais militares passaram a crer,

fundamentados nos fatos e nas ações paternalistas de Jango, que o governo encorajava as

greves e que os aumentos salariais dados ao funcionalismo civil contribuíam para a inflação,

violência e o desgaste em suas posições de comando. Essa análise foi significante pois a

reação política deste grupo voltou-se contra o movimento de massas e a incipiente agitação

nos baixos escalões de suas respectivas hierarquias que, provocados principalmente por

agentes de direita no intuito de promover um confronte entre o governo e as forças populares,

ameaçavam também o seu status-quo. A burguesia financeiro-industrial temia que as classes

trabalhadoras pusessem à prova seus entrincheirados privilégios. Os oligárquicos ruralistas

temiam uma revolta camponesa enquanto que a burguesia agrária registrava impactos das

pressões sobre o comércio, temendo o uso do seu capital como subsídio para a

industrialização local que necessitava de investimentos. Os políticos não rejeitavam as regras

do pacto populista visto que era ele que dava o espaço que eles necessitavam, mas

condenavam o governo por ter permitido a mobilização das classes trabalhadoras através dos

sindicatos, seu meio tradicional de controle.

Profundas mudanças ocorreram no universo ideológico das Forças Armadas em

direção a uma atitude intervencionista, mediante o agravamento da crise. Buscou-se respaldo

nas disposições constitucionais – ou na inobservância destas pelo presidente em exercício – e

argumentos ou acontecimentos que concedessem caráter “legal” ao movimento.86 A deserção

em termos de lealdade ao Executivo e à figura do presidente foi articulada por parte dos

oficiais militares – àqueles vinculados à burguesia e ao grande capital – e encontrou forte

oposição dentro das próprias instituições armadas por parte daqueles oficiais legalistas que,

por várias outras vezes, já haviam coibido tais intentos intervencionistas. Assim, fora grande

a pressão exercida pelos altos e médios escalões que dependiam ainda de vários outros

fatores.87 86 Vários fatores serviram como subsídio para legitimar uma intervenção militar naquele momento. Havia implicações que a tornavam legitimas mediante às classes burguesas – as principais interessadas, como já foi visto; às classes mais baixas da sociedade civil – que vinha sofrendo com o aumento desenfreado da inflação, com os constantes conflitos que já estavam tomando ares de guerra civil além do descontentamento estimulado sobretudo pelos sindicatos; à camada rural – que requeria principalmente a reforma agrária e um melhor amparo ao setor; e aos próprios militares, determinados em refutar à ideologia comunista em prol da doutrina de manutenção da segurança nacional promovida pela ESG, conforme orientação capitalista já estabelecida, reaver a “ordem” e preservar os próprios princípios de disciplina e hierarquia no seio das instituições armadas.87 É evidente que o manejo das questões políticas envolvia apenas às classes hierarquicamente superiores (Oficiais Superiores e Oficiais Generais) e que estes calcavam-se nos pilares da disciplina e hierarquia para fazer valer sua ideologia, convertendo-a em ação no ano de 1964 através dos subordinados. As Praças em sua grande parte – nesta obra tratada como “proletariado militar” – mostravam-se simpáticas às medidas nacionais-

XLV

As Forças Armadas, ao menos a partir de 1930, foram muito influentes dentro da

política nacional na disputa político-ideológica entre as facções nacional-reformista e

desenvolvimentista-associada, mas agora ocorria que uma parcela considerável dos oficiais

de mais alta patente – não tanto numericamente, mas sim proporcionalmente, considerando

nível hierárquico e o poder de manobra – eram ativistas ou não se opunham à formação de

um Estado Maior antipopulista. Solidária à classe burguesa antipopulista e antipopular, os

militares ativistas, financiados e sob influência das forças transnacionais, passaram a

capitanear suas ações a partir dos vários escritórios de consultoria, anéis burocrático-

empresariais e associações de classe dominantes dos quais se serviam o complexo

IPES/IBAD. Associado a este, que a esta altura funcionava abertamente como líder e núcleo

estratégico para a ação política, representantes da ESG estabeleceram a “crítica das armas.”

Aos olhos dos incautos, e para estes com justa razão, a intervenção militar era

uma resposta enérgica e necessária ao caos, corrupção, à estagnação e a subversão. O próprio

clima de guerra civil que se alastrava pelo país corroborava com este sentimento e com as

criticas feitas aos sistema populista. Desta forma, houve grande e genérico apoio popular à

intervenção paradoxalmente ao objetivo precípuo desta ação que, por ser um movimento com

fundo classista, buscava justamente conter o avanço das forças proletárias.

João Goulart não obteve amparo substancial dos militares88 talvez por não ter tido

a mesma habilidade política como fez seu antecessor – Jânio Quadros – que indicou aos

respectivos ministérios oficiais influentes e congruentes com a sua linha de ação.89

2.3) Influência norte-americana para a crise de 1964

Há diversos indícios de ingerência americana nos episódios pré (e pró) 1964. Além

dos variados acordos como o PAM e a Lei de Segurança Mutua, há de se destacar os

reformistas e, portanto, “A intervenção militar dependia do grau de manipulação e controle que os oficiais exerciam sobre os escalões inferiores e sua capacidade de manter uma unidade político-operacional quando em ação.” In: René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 142.88 O apoio do Comandante do 2º Exército de São Paulo General Amaury Kruel, legalista e amigo particular do presidente, teria sido decisivo nos rumos da história do Brasil. Sua adesão ao movimento era decisiva para seu sucesso visto que segundo Thomaz Skidmore, o controle do Vale do Paraíba era essencial no caso de uma guerra civil. “No dia 31 de março, pressionado pelos outros golpistas, Kruel ligou para Goulart e lhe pediu que recuasse, decretando o fechamento do CGT [Central Geral dos Trabalhadores]. Goulart disse não e [ambos escolheram seus lados].” Kruel pôs suas tropas rumo a Minas e Goulart fugiu para o Rio Grande do Sul e posteriormente para o Uruguai, onde morreu em 1976 e infarto. In: Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 14.89 Jânio Quadros indicou o Marechal Odílio Denys ao Ministério do Exército; o Almirante Sílvio Heck para o Ministério da Marinha; e o Brigadeiro Gabriel Moss, do IBAD, para o Ministério da Aeronáutica. Assim, trouxe para si o apoio militar com líderes de direita. Já o seu vice – João Goulart – não gozou em nenhum momento de tal apreço, mesmo antes de sua posse, que se deu em meio a forte oposição e só foi enfim consentida graças à ferramenta improvisada do sistema parlamentarista.

XLVI

incentivos táticos, bélicos, doutrinários e, sobretudo, financeiros.90 O próprio IBAD chegou a

ser denunciado como fantoche político da CIA no Rio de Janeiro, pois a ADEP, movimento a

ele vinculado, era uma ação política patrocinada pela estação carioca da CIA que manejava

campanhas eleitorais e lobbying.91

Entretanto, analisando as fontes, o papel dos EUA não aparenta ter sido decisivo

no desfecho da crise em 1964. Os próprios militares citam o apoio como irrelevante para que

se consumasse a intervenção, apesar de admitirem que era muito interessante aos norte-

americanos que presidentes mais “esquerdistas” não perdurassem no poder.

O fato do Brasil ter passado a contar com maior “boa vontade” norte-americana,

principalmente no setor econômico, é um dos principais argumentos para legitimar a idéia de

“patrocínio” dos EUA. De fato o intervencionismo militar foi providencial àquele país

enquanto líder do bloco capitalista, mas o que não se pode esquecer é que já existia um forte

vínculo entre os dois países desde o período ditatorial de Getúlio Vargas, na década de 1940,

consolidado no inicio dos anos cinqüenta com a criação da Comissão Mista Brasil-Estados

Unidos por exemplo. Se o apoio e crédito norte-americano cessou, fora em virtude do não

pagamento das dividas, do déficit orçamentário, da crise política e da improbidade

administrativa que se aqui se instaurou. Assim, os EUA só o apoio econômico ao Brasil após

a estabilização do governo, do direcionamento político pós-1964 e, sobretudo, da

estabilização da economia.

O jornalista Elio Gaspari cita um apoio bélico formal e efetivo denominado de

“Operação Brother Sam” em que, segundo o jornalista, o presidente norte-americano Lyndon

Johnson – sucessor de John Kennedy, assassinado em fins de 1963 –, teria enviado uma

esquadra composta por um porta-aviões, um porta-helicópteros, seis contra-torpedeiros e

quatro petroleiros carregados com 533 mil barris de combustível em direção ao Brasil no

intuito de apoiar os conspiradores caso estourasse uma guerra civil. Em 31 de março, esta

esquadra estaria fundeada no mar do Caribe mas, como não houve reação, retornou ao seu

país. Gaspari afirma ainda que estas tripulações estavam a postos desde 20 de março de 1964

e que o embaixador americano no Brasil, Lincon Gordon, já estruturava o plano desde julho

de 1962.92 Outros autores mais exaltados e ao que parece menos embasados fazem

elucubrações mirabolantes sem apresentar sequer uma bibliografia, como é o caso de Jaime

Sautchuk, ao afirmar que “em solo nacional estariam quarenta mil soldados americanos.”93

90 Segundo citação de Skidmore, G.R. Mather afirma que entre 1963 e 1964 o Brasil recebeu cerca de 75 milhões de dólares por intermédio do programa de segurança pública. 91 René Armand DREIFFUS, Op. Cit., p. 103.92 Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 16.93 Jaime SAUTCHUK, Luta Armada. São Paulo: Anita, 1995, p. 37.

XLVII

Entrementes, se seguirmos a mesma linha de raciocínio, teriam sido os próprios norte-

americanos os responsáveis pela queda do regime militar uma vez que a gestão de Jimmy

Carter apregoava uma política externa pró direitos humanos, o que ia de encontro aos moldes

brasileiros pouco ortodoxos de lidar com os opositores no período conhecido como “anos de

chumbo.” Entretanto, o movimento que culminou com as “Diretas Já” é visto muito mais

como um processo de redemocratização encetado pelo povo, pelo enfraquecimento da

máquina estatal militar e pela ação de intelectuais do que por intervenção internacional.

Assim, é mais sensata a assertiva da historiadora Maria Celina D’Araújo quando diz que

“Apesar de criticar o regime e incomodar os militares, a administração Carter não interferiu

de fato no Brasil.”94

94 Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 17.

XLVIII

CAPÍTULO III

MEMÓRIAS DAS CONSPIRAÇÕES

3.3) O uso da memória na consolidação da história nacional

Neste capítulo utilizar-se-á da história oral a fim de abrir o leque das

possibilidades. Esta metodologia traz consigo o beneficio de aproximar o contemporâneo da

realidade de outrora, uma vez que se apropria das memórias dos próprios agentes de um dado

processo – neste caso, movimento de 1964.

A memória pode ser dita uma “operação coletiva dos acontecimentos e das

interpretações do passado que se quer salvaguardar.” A referência ao passado é a base para a

manutenção da coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para

definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também suas individualidades e

posições irredutíveis. Assim, as duas funções essenciais da memória comum seriam a

manutenção da coesão interna e a defesa das fronteiras daquilo que um grupo tem em comum.

“O trabalho político é sem dúvida a expressão mais visível desse trabalho de enquadramento

da memória.”95

Émile Durkheim,96 sociólogo que forneceu as primeiras ferramentas teóricas para a

efetivação do método, dá ênfase na força quase institucional da memória que seria dita

“coletiva”, reforçando suas observações à nível de duração, continuidade e estabilidade.

Maurice Halbwachs97, ao criar o conceito de memória coletiva, não via nessa uma imposição,

95 Pierre BOURDIEU, La représentation politique, Actes de la recherche en sciences sociales, 36/37,1981, p.3.96 Émile Durkheim (1858 -1917) foi o fundador da escola francesa de sociologia, posterior a Marx, que combinava a pesquisa empírica com a teoria sociológica. É reconhecido amplamente como um dos melhores teóricos do conceito da coerção social. Partindo da afirmação de que “os fatos sociais devem ser tratados como coisas”, forneceu uma definição do normal e do patológico aplicada a cada sociedade, em que o normal seria aquilo que é ao mesmo tempo obrigatório para o indivíduo e superior a ele, o que significa que a sociedade e a consciência coletiva são entidades morais, antes mesmo de terem uma existência tangível. Essa preponderância da sociedade sobre o indivíduo deve permitir a realização desse, desde que consiga integrar-se a essa estrutura. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Emile_Durkheim97 Maurice Halbwachs (1877-1945) foi um sociólogo francês da escola durkheimiana. Escreveu uma tese sobre o nível de vida dos operários, e sua obra mais célebre é o estudo do conceito de memória coletiva, que ele criou. Na École Normale Supérieure, em Paris, estudou filosofia com Henri Bergson, o qual o influenciou enormemente. Lecionou em vários liceus antes de viajar à Alemanha em 1904, onde estudou na Universidade de Gottingen. Retornou à França em 1905, onde encontrou Émile Durkheim e se interessou por sociologia. Reuniu-se ao conselho editorial do Année Sociologique, onde trabalhou com François Simiand editando a seção de economia e estatística. Em 1909 voltou à Alemanha para estudar marxismo e economia em Berlim. Durante a Primeira Guerra Mundial Halbwachs trabalhou no Ministério da Guerra. Logo após o fim da guerra ele tornou-se professor de sociologia e pedagogia na Universidade de Strasbourg. Manteve a posição por uma década. Foi professor visitante por um ano na Universidade de Chicago. Em 1935 foi chamado para a Sorbonne, onde ensinou sociologia, trabalhou com Marcel Mauss e foi editor dos Annales de Sociologie, o jornal que sucedeu o Année Sociologique. Em 1944 ele recebeu uma das maiores honrarias da França, uma cátedra de psicologia

XLIX

uma forma específica de dominação ou violência simbólica mas sim as funções positivas

desempenhadas pela memória comum, o reforço da coesão social pela adesão afetiva ao grupo

que viria a formar o que ele chamou de “comunidade afetiva.” Portanto, para Halbwachs a

coesão não se faria especificamente pela coerção social – conceito desenvolvido por

Durkheim – e, segundo ele, “a nação é a forma mais acabada de um grupo, [sendo] a memória

nacional, a forma mais completa de uma memória coletiva.”

Para Halbwachs não se trata mais de lidar com os fatos sociais como “coisas”

simplesmente – como pretendia seu mestre –, mas sim de analisar como se dá este processo de

“coisificação” dos fatos sociais, bem como descobrir o meio e por quem eles são solidificados

e dotados de duração e estabilidade. Uma vez associada à memória coletiva, essa abordagem

aterá seu interesse nos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de

formalização das memórias. Por este método a escolha dos objetos de pesquisa prioriza as

áreas onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes.

Um exemplo claro e até clássico para a ilustração é o papel desempenhado pela

reescrita da história no processo de “destalinização” européia. Este processo deu-se em duas

fases distintas98 que produziram uma reviravolta da visão histórica ligada à linha política.

Promoveu a destruição progressiva dos signos e símbolos que lembravam Stalin na União

Soviética e nos países satélites, desfez a imagem de Stalin como “pai dos pobres” e culminou

com a retirada de seus despojos do mausoléu da Praça Vermelha. Uma das conseqüências

deste movimento foi o alardear de diversas manifestações – dentre elas a revolta húngara –

onde a população se encarregou da destruição das estátuas de Stalin e interagiram em uma

estratégia para obter a independência e autonomia. Uma outra conseqüência que evidencia

bem a aplicação dos conceitos de Halbwachs foi o despertar da liberdade, do senso crítico que

trouxe à tona traumatismos profundamente intrincados que ganharam forma e corpo através

de um projeto para construção de um monumento em homenagem às vítimas do estalinismo.99

Esse fenômeno consiste na irrupção de ressentimentos acumulados no tempo e de

uma memória que jamais pôde se exprimir publicamente. A clivagem entre memória oficial

social no Collège de France. Desde muito tempo socialista, Halbwachs foi detido pela Gestapo após a ocupação nazista de Paris e deportado para Buchenwald, onde foi executado em 1945. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Maurice_Halbwachs98 A primeira delas após o XX Congresso do PC da União Soviética, quando Nikita Kruschev denunciou pela primeira vez os crimes estalinistas. Depois, reemergiu cerca de trinta anos mais tarde no quadro da glasnost e da perestroika.99 Uma vez rompida a censura (ainda que subjetiva), as memórias subterrâneas invadem o espaço público e são expressas em reivindicações múltiplas, dificilmente previsíveis, que se acoplam a essa disputa da memória. Por isso é necessário aos dirigentes elaborar uma associação que relacione uma profunda mudança política a uma revisão (auto)crítica do passado. In: Michael Pollak. Memória, esquecimento, silêncio. publicado em Estudos Históricos (1989) e rememorado em conferência no CPDOC proferida em 1987.

L

dominante e memórias subterrâneas está, na maior parte das vezes, ligada a fenômenos de

dominação mas, além da oposição entre Estado dominador e sociedade civil, pode remeter

também às relações entre grupos minoritários e sociedade como um todo.100 Essa memória

“proibida” e, logo, “clandestina”, ocupa os mais variados segmentos e setores: do cultural

(como cinema e pintura) ao editorial e aos próprios meios de comunicação, o que comprova o

fosso que separa a sociedade da ideologia oficial de grupos ou do próprio Estado que pretende

a dominação hegemônica. Esta doutrinação ideológica, entretanto, não consegue irromper as

lembranças individuais e suas mesclas com às coletivas, que tendem a perdurar confinadas ao

silêncio, transmitidas eventual e oralmente através de gerações. Assim, o silêncio sobre o

passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade impotente

opõe ao excesso de discursos oficiais. Sabedores disso, as hegemonias formadoras de opinião

se esmeram em construir uma história que lhes seja interessante no sentido de que as

reafirmem no poder, seja este político, ideológico ou mesmo econômico.

Em oposição à memória nacional, as lembranças individuais ou minoritárias vão

sendo transmitidas no quadro familiar, em associações, em redes de sociabilidade afetiva e/ou

política. Essas lembranças proibidas (falando-se de Brasil, é caso das memórias em mercê ao

regime militar), indizíveis (caso dos torturados em geral – fosse pelos militares, fosse pelos

movimentos armados) ou vergonhosas (caso dos torturadores) são inconscientemente

guardadas em estruturas de comunicação informais e passam despercebidas pela sociedade

englobante. Com o movimento ideológico maciço, estas estruturas tendem a ficar cada vez

mais tímidas uma vez que as fronteiras dos silêncios e “não-ditos” com o esquecimento

definitivo e o reprimido inconsciente não são estanques e estão em perpétuo deslocamento.

O limiar entre o dizível e o indizível separa uma memória coletiva subterrânea da

sociedade dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que

resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o próprio Estado deseja passar e impor.

“Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de

saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado.”101

100 O silêncio sobre o passado – no que concerne à minorias – está ligado em primeiro lugar à necessidade de encontrar um modus vivendi com aqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de consentimento tácito, assistiram à sua deportação. Não provocar o sentimento de culpa da maioria torna-se então um reflexo de proteção da minoria. Contudo, essa atitude é ainda reforçada pelo sentimento de culpa que as próprias vítimas podem ter, oculto no fundo de si mesmas.101 “O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do "não-dito" à contestação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização. Para que venha à tona nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a simples ‘montagem’ ideológica, por definição precária e frágil.” In: Michael Pollak. Memória, esquecimento,

LI

Os elementos que constituem as memórias individuais ou coletivas são aqueles

acontecimentos vividos pessoalmente. Também existem os acontecimentos que Michael

Pollak102 chamou de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela

coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. Estes últimos são aqueles que por suas

dimensões e pela sua ligação com a pessoa – ainda que imaginária –, mesmo que ela dele não

tenha participado, tomam tamanho e relevo tal que torna-se praticamente impossível para a

pessoa distinguir se ela teve ou não participação. Acontecimentos, personagens e lugares são

os três critérios conhecidos como marcos resgatáveis pela memória podendo ser reais, ou a

meras projeções de outros eventos.103 A organização em função das preocupações presentes,

cotidianas, mostra que a memória é um fenômeno construído. Os modos de elaboração desta

construção podem ser conscientes ou inconscientes, fazendo com que a memória individual

grave, recalque, exclua ou relembre, num verdadeiro trabalho de organização. “Podemos

portando dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto

individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante

do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua

reconstrução de si.”

A memória especificamente política é motivo de disputa entre várias organizações,

trabalho este parcialmente realizado por nós historiadores. Segundo Pollak, existem

historiadores que Gramsci chamaria de “orgânicos” – por exemplo, àqueles partidários do

movimento gaullista, do Partido Comunista, os historiadores socialistas, os sindicalistas etc. –,

cuja tarefa é precisamente enquadrar a memória. Relacionando o trabalho destes historiadores

à herança do século XIX – sobretudo à brasileira –, há de se ter em mente que estes se

silêncio. publicado em Estudos Históricos (1989) e rememorado em conferência no CPDOC proferida em 1987.102 Michael Pollak nasceu em Viena, Áustria, em 1948, e morreu em Paris em1992. Radicado na França, formou-se em sociologia e trabalhou como pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique -CNRS. Seu interesse acadêmico, voltado de início para as relações entre política e ciências sociais, tema de sua tese de doutorado orientada por Pierre Bourdieu e defendida na École Pratique des Hautes Études em 1975,estendeu-se a diversos outros campos de pesquisa, que confluíam para uma reflexão teórica sobre o problema da identidade social em situações limites.Entre seus últimas trabalhos incluem-se um estudo sobre mulheres sobreviventes dos campos de concentração publicado sob o título L'expérience concentrationnaire: essai sur le maintien de 1'identité sociale (Paris, Éditions Metailié, 1990), e uma pesquisa sobre a Aids (Lês homosexuels face au SIA). Pollak esteve no Brasil entre outubro e dezembro de 1987 como professor visitante do CPDOC e do PPGAS do Museu Nacional. Na ocasião concedeu uma entrevista sobre a Aids a Alzira Alves de Abreu e Aspásia Camargo publicada em Ciência Hoje, vol. 7, n.º 41 (abr. 1988). 103 Numa série de entrevistas que a equipe de Pollak fez sobre a guerra na Normandia – cidade que foi invadida em 1940 pelas tropas alemãs e foi a primeira a ser libertada –, encontrou-se pessoas que, na época do fato, deviam ter por volta de 15,16,17 anos e se lembravam dos soldados alemães com capacetes pontudos (casques à pointe). Ora, os capacetes pontudos são tipicamente prussianos, do tempo da Primeira Guerra Mundial, e foram usados até 1916, 1917. Tratava-se portanto de uma transferência característica, a partir da memória dos pais, da ocupação alemã da Alsácia e Lorena na Primeira Guerra, quando os soldados alemães eram apelidados de ‘capacetes pontudos’, para a Segunda Guerra. “Uma transferência por herança, por assim dizer.” In: Relatos de Michael Pollak, proferidos em conferência no CPDOC em 1987.

LII

debatiam contra o nacionalismo exarcebado e suas conseqüências desastrosas. Desta forma

pode-se imaginar o quão importante não fora a função destes historiadores – imersos à época

na corrente historiográfica marxista –, nesse trabalho de enquadramento visando à formação

de uma história nacional. Por assim dizer, o trabalho de enquadramento da memória pode ser

considerado em termos de “investimento” pois, a cada reconstrução da memória coletiva, há

de se ter um trabalho de manutenção, coerência, unidade e continuidade da sua organização.

Portanto, neste sentido, investimentos do passado podem “render juros” às hegemonias que se

estabelecem em função desta construção.

“A organização das lembranças se articula igualmente com a vontade

de denunciar aqueles aos quais se atribui a maior responsabilidade

pelas afrontas sofridas...” e “Ainda que quase sempre acreditem que ‘o

tempo trabalha a seu favor’ e que ‘o esquecimento e o perdão se

instalam com o tempo’, os dominantes freqüentemente são levados a

reconhecer, demasiado tarde e com pesar, que o intervalo pode

contribuir para reforçar a amargura, o ressentimento e o ódio dos

dominados, que se exprimem então com os gritos da contra

violência.”104

Nas articulações da construção da história nacional brasileira, percebe-se

nitidamente a aplicação das proposições de Pollak. O trato e o teor destinado aos recortes

históricos indicam uma manipulação ideológica que precisa constantemente reconstruir os

fatos com ênfase absoluta, sensacional e por vezes inverídica, naqueles que fortalecem e

legitimam as hegemonias dominantes em seu modus faciendi.

3.2) Irrupções das “memórias proibidas” na história do Brasil

104 Michael Pollak. Memória, esquecimento, silêncio. publicado em Estudos Históricos (1989) e rememorado em conferência no CPDOC proferida em 1987.

LIII

Segundo a definição do jornalista Elio Gaspari, “a ‘Ditadura’ começou

envergonhada.” Toda a casta civil que fomentou e apoiou a intervenção criam que o governo

militar – então concedido por eleição indireta – seria apenas um “mandato tampão” e que

sairia de cena com a mesma facilidade com que chegou ao poder até porque, grande vertente

dentre os militares era legalista – como já foi visto nesta obra – e defensora dos princípios

democráticos sendo, portanto, favoráveis a uma transição rápida para o regime

intervencionista. Já os mais radicais, auto conclamavam-se revolucionários e não tinham

previsto plano de governo e tão pouco uma data limite para a transição.

O presidente então empossado, o general Humberto de Alencar Castelo Branco, o

principal e talvez mais fervoroso dentre os legalistas, manteve o Congresso em funcionamento

mesmo em detrimento da opinião de segmentos militares.105 Foi necessário redigir uma nova

Constituição que justificasse a nova ordem. O Ato Institucional número 1 (AI -1), assinado

em nove de abril pela Junta Militar106 que governou provisoriamente o país, permitiu a

violação de direitos políticos, a cassação de personalidades civis, funcionários públicos e

membros das próprias Forças Armadas.107 Foram suspensos, em até dez anos, os direitos de

ocupar cargos públicos, de votar ou ser eleito. Esta “limpeza”, conforme Elio Gaspari, atingiu

também aos tribunais que não escaparam dos expurgos, contribuindo para deixar a Justiça sob

a tutela preponderante de partidários do regime.108

Alusões e análises como as do Sr Gaspari são clássicas. Contudo, depoimentos de

militares corroboram para que seja estabelecido um viés diferente do tradicional que

105 Esta titulação legalista lhe é atribuída em várias fontes, das oficiais às orais e o fato de ter desagradado em certa medida à frações militares ao não fechar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal de imediato fica nitido em depoimentos como o do Cyro Guedes Etchegoyen: “O que nos preocupava era a situação do país, os problemas que queríamos ver resolvidos. Mas, o escolhido fora o Castelo que, muito legalista, não quis fechar o Congresso e o Supremo Tribunal. Aí talvez resida o problema.”In: ETCHEGOYEN, Cyro Guedes. Cyro Guedes Etchegoyen (depoimento, 1992/1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 52 p.106 A Junta Militar era formada pelo vice-almirante Augusto Grünewald, da Marinha, o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia Melo e o general Arthur da Costa e Silva. O AI-I também determinou a ‘eleição’ do novo presidente de forma indireta. O escolhido para o cargo foi o general Humberto de Alencar Castello Branco, empossado em 15 de abril de 1964.107 “Já em abril de 1964, foram cassados 41 deputados federais, 29 líderes sindicais, 122 oficiais das Forças Armadas simpáticos a João Goulart e várias personalidades públicas, como o antropólogo Darcy Ribeiro - então reitor da Universidade de Brasília -, o economista Celso Furtado e o ex-presidente Jânio Quadros (...) o ex presidente Juscelino Kubitschek (...) [e] Os funcionários públicos que foram considerados ameaça à ‘segurança do país’ foram demitidos [e/ou exilados]. Os expurgos atingiram em cheio as Forças Armadas, que teve quase 3 mil integrantes punidos em 1964.” In: Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 19.108 Também houve as prisões e as torturas. Documentos do Departamento de Estado dos Estados Unidos mencionam 5 mil detenções feitas em poucas semanas após a derrubada de Jango. No balanço de 1964, nada menos que 203 denúncias de maus-tratos foram registradas. No ano seguinte, o presidente Castello Branco baixou o Ato Institucional número 2, instituindo que os processos políticos seriam julgados, daí em diante, pela Justiça Militar. ‘Deu-se assim o primeiro grande passo no processo de militarização da ordem política nacional’, sustenta Elio Gaspari, no livro A Ditadura Envergonhada.” In: Roberto CIVITA, Op. Cit., p. 19.

LIV

normalmente prestigia a economia ou enfoques outros, tratando a categoria protagonista como

massa amorfa. Este grupo institucionalizado cria representar uma fração da sociedade capaz e

disposta a implementar medidas de “catarse do sistema político” brasileiro, extirpando a

corrupção, contendas e ideologias que estavam conduzindo o país à bancarrota. Ao que tudo

indica, esta pretensão fundamentava-se “na idéia de que os militares eram, naquele momento,

superiores aos civis em questões como patriotismo, conhecimento da realidade brasileira e

retidão moral.”109

Entretanto, este raciocínio não deve ser generalizado para toda a corporação pois,

como vimos no capítulo anterior, o proletariado militar em sua grande maioria não

comungava do mesmo ideário dos oficiais generais. Ao contrário, a disseminação deste

pensamento sectário foi levada a efeito por poucos, por àqueles que encontravam-se no ápice

do poder e compartilhavam das prerrogativas e interesses burgueses. Acredita-se que este seja

o motivo dos ressentimentos e dos traumas que podem ser percebidos nos depoimentos de

muitos deles, tornando-os obtusos quanto à admissão das críticas visto que grande parte da

culpa não lhes cabe mas que afetou, e continua afetando toda a corporação através das

gerações.110

Dos depoimentos podemos extrair sumariamente dois parâmetros norteadores da

intervenção militar – ao menos sob o prisma daquela classe:

a) A decepção em relação à renúncia do presidente Jânio Quadros, pois grande

parte dos militares esperavam que ele recolocasse o país nos trilhos do desenvolvimento. Até

porque, a aversão a João Goulart era maciça entre a oficialidade – mas não entre as praças –,

“Não [necessariamente por ele ser visto] como alguém intrinsecamente perverso nem como

comunista. Seria, antes de tudo, um fraco, que se deixou levar pela esquerda, ou pela

‘maléfica’ influência de Leonel Brizola, este, talvez, para os militares, o maior vilão da

história.”111

109 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG). Visões do Golpe: A memória militar de 1964. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 9.110 Maurice Halbwachs nos diz que a memória é seletiva e que passa por um processo de “negociação” a fim de conciliar memória coletiva e memórias individuais: ‘Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum.’” Neste embate, nesta negociação entre memória individual e coletiva, muitas vezes a primeira não condiz com a segunda, visto que esta é uma construção elaborada nacionalmente à luz de vários interesses e conjecturas. Certamente por isso existe um conflito entre as memórias dos militares e cidadãos comuns contemporâneos ao regime e a memória coletiva que tem sido construída sobre àquele período histórico no Brasil. Sobre memória coletiva vide: M. Halbwachs, La mémoir e collective, Paris, PUF, 1968.

111 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit.,, p. 11.

LV

b) O anticomunismo entre os militares é fator preponderante na explicação dos

motivos que levaram ao golpe,112 possuindo fulcro histórico na revolta comunista de 1935

(Intentona Comunista). Este episódio marcou pela sua demonstração do potencial que a

doutrina comunista pode ter quando internalizada nos quartéis, dissolvendo a hierarquia, a

disciplina e as próprias diretrizes da corporação. Portanto, “anticomunismo” sob o viés militar

representa muito menos do que a possibilidade de instauração de um governo socializante,

mas sim à ameaça que o comunismo representava à própria existência das instituições e da

corporação militar.

O anticomunismo é mal visto pela classe armada no espectro internacional,

sobretudo no pós-guerra, já que a estratégia comunista de conquista do bloco capitalista

baseia-se em subversões e revoluções, desenvolvida através do acirramento da luta entre

classes no seio dos próprios países.113 Segundo os depoentes “não há espaço para dúvidas de

que havia uma guerra revolucionária, comunista, em marcha no Brasil. Nesse sentido, 1964 é

visto como um contragolpe ao golpe de esquerda que viria, provavelmente assumindo a feição

de uma ‘república sindicalista’ ou ‘popular’.”114 Assim, levantes isolados contra o governo

como os de Jacareacanga e Aragarças tornaram-se corriqueiros nos quartéis, sobretudo porque

não havia um serviço de informações ou inteligência voltado para este fim. Quando houve a

revolta dos sargentos em 1963, dos marinheiros e fuzileiros navais em março de 1964, além

do jantar oferecido pelos sargentos da Polícia Militar do Rio de Janeiro, dezessete dias após o

comício da Central do Brasil, no Automóvel Club – reunião ao qual o próprio presidente da

república acompanhado por mais sete ministros compareceu –, teve-se a nítida impressão de

112 Em várias entrevistas este ponto é tido como fundamental motivação. O General Carlos Alberto Fontoura, por exemplo, quando perguntado sobre a principal causa que levara à intervenção ele respondera que: “Foi a virada que o país estava dando para a esquerda. Ameaça comunista. Comunista, populista, sindicalista. Mista, esquerdista. E a prova está aí, que nós estávamos com a razão, que o comunismo acabou, implodiu. Nem foi derrubado, nem foi derrotado, não foi nada. Implodiu. Caiu como castelo de areia.” In: FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p. dat.113 Em uma palestra realizada pelo Brigadeiro Deoclécio Lima de Siqueira para os alunos da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica – ECEMAR – no início de 1964, disse ele: “Os assuntos dessa conferência (isso foi no começo dos cursos de 1964, ainda não tinha havido a revolução) constituem uma síntese das idéias que nortearam a Escola de Comando do Estado-Maior no trato, em 1963, do problema da guerra revolucionária. Elas têm servido de subsídio para a elaboração pelo estado-maior da Aeronáutica da doutrina de emprego da FAB na segurança interna.” Mais adiante, referindo-se à Guerra Fria, dizia: “Esse tipo de guerra foi estudado e analisado pelos fundadores do comunismo, que praticamente a incorporaram como idéia básica de sua doutrina. Isto se deve a Friedrich Engels, nascido em Barmen, na Alemanha, em 1820, filho de um industrial alemão, amigo incondicional de Karl Marx, com quem colaborou por mais de 40 anos. Dedicou-se à análise da arte militar e tanto nela se aprofundou que os amigos o chamavam afetuosamente de ‘general.’ Com a ajuda de Marx, estudou a guerra dentro da filosofia comunista e foi buscar em Klausewitz, que considerava o melhor no assunto, o aspecto ideológico das mesmas, e sua classificação em guerras de conquista e de libertação.” (O grifo é meu) In: SIQUEIRA, Deoclécio Lima de. Deoclécio Lima de Siqueira (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 39 p. dat.114 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit., p. 12.

LVI

que estes eram sinais latentes da desagregação iminente na caserna conforme os intentos

comunistas.115 Para os militares, razões tais como inflação, greves e corrupção, são elementos

secundários à consolidação do movimento.116 “Alguns depoentes chegam a afirmar que, caso

Jango tivesse dado sinais claros de que não compactuaria com a quebra da hierarquia e da

disciplina, suas chances de continuar no governo seriam boas, e a correlação de forças não se

definiria em favor dos golpistas.”117 Portanto, quando o presidente da República prestigiou os

baixos escalões, ultrapassou a tênue linha divisória do pseudo-poder, da subordinação que

“delimita a fronteira entre a ordem e o caos.”

Apesar de parecer um contra-senso, foi esta mesma quebra de hierarquia tão

temida pelos militares que proporcionou o intervencionismo militar e o conseqüente sucesso

da conspiração – ou, baseado nos relatos, “das conspirações.”118 Gesto maior desta

indisciplina ativista fora a deflagração do movimento em Minas Gerais por Olímpio Mourão

Filho, visto que este comandante de divisão não consultou seus superiores e tão pouco

aguardou o sinal que seria dado pelo governador de Minas Gerais Magalhães Pinto, como

combinado previamente.

Julgando-se os indícios dos depoimentos, a gravidade afeta à ruptura dos preceitos

da disciplina e hierarquia iminente, foi o diferencial para que o movimento de 1964 tenha se

generalizado a partir das “várias conspirações”, ao contrário do que acontecera com

quarteladas anteriores. A necessidade de extirpar os germes comunistas explica porque foram

expurgados tantos membros das próprias forças armadas como vimos nos dados revelados

pelo jornalista Elio Gaspari.

115 Estes teria sido um dos principais estopins para a intervenção, fato observável unanimemente em todos os depoimentos como no de Cyro Guedes Etchegoyen, quando perguntado sobre a principal causa: “Foram aqueles comícios do Automóvel Clube, aquele comício da Central do Brasil, aquela greve dos marinheiros...” In: ETCHEGOYEN, Cyro Guedes. Cyro Guedes Etchegoyen (depoimento, 1992/1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 52 p.116 Em vários depoimentos estes fatores são citados mas sempre em esfera secundária. No do General Carlos Alberto da Fontoura, por exemplo, fica evidente que a corrupção era prática corriqueira: “Havia muita corrupção. Assisti coisas com um ministro, assisti por força de circunstância: me mandaram ao aeroporto receber o ministro da Educação. Não lembro quem era o ministro. Era um ministro do Jango. Chegou lá, eu fui recebê-lo. Ele me convidou: ‘Coronel, o senhor me acompanha até a prefeitura, vamos tomar um cafezinho.’ Ele tirou o talão de cheque do bolso e dava dinheiro para todo mundo.” In: FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p. dat.117 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit., p. 12.118 Todos os depoentes afirmam não ter havido uma movimento centrado ou ordenado. Ao contrário, relatam que o que havia eram “Ilhas. Ilhas. Pode escrever isso. Nós nunca centralizamos. Só houve um início de centralização na véspera da revolução. Houve uma circular do general Castelo Branco, chefe do estado-maior do Exército (...)Ilhas, pelo Brasil afora. Então, essa circular do Castelo, de certa forma, nos deu unidade, uma relativa unidade, resquícios de unidade.” In: FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p. dat.

LVII

Como os depoimentos deixam claro, a intervenção foi desejada e solidamente

apoiada em seu principio por vários segmentos sociais que receavam a supressão das suas

liberdades, a abrupta mudança econômica, política e, porque não dizer, cultural que

proporcionar-se ia com um golpe de esquerda nos moldes de Josef Stalin.119 “Nas palavras de

Leonidas Pires Gonçalves, ‘a Revolução saiu sob pressão da sociedade civil. Não podemos

esquecer isso. Tenho o hábito de repetir, e se não ouviram de alguém, vão ouvir pela primeira

vez: acho que as Forças Armadas até hoje são ressentidas com a sociedade brasileira. Porque

a sociedade brasileira nos levou, foi uma das responsáveis pela Revolução de 64, e hoje em

dia a mídia não se cansa de nos jogar na cara que nós somos torturadores, que somos

matadores, que somos isso, somos aquilo, esquecendo que todos esses movimentos são feitos

por criaturas humanas e que os descaminhos ocorrem. Acho que há muita injustiça’.”120 Para

ele, na sua indignação, isto seria uma “safadeza histórica.”

Muito mais que demonstração de “mágoas ou ressentimentos”, muito maior que a

intenção de legitimar o movimento de outrora, as palavras do Sr. Leônidas devem servir de

alerta para a não propagação maciça e indiscriminada de fatos históricos adulterados –

conscientemente ou não. Afinal, independentemente das motivações intrínsecas e da ideologia

de fundo, a sociedade participou sim do levante para a intervenção121 e dela dependeu o

sucesso da empreitada como dependeria em quaisquer outras circunstâncias.122 Afinal, se

houvesse uma movimentação popular contrária à deposição de Jango, teria se interposto

minimamente uma resistência, fato que não houve. Ademais, se a mídia, as editoras de livros

119 “Havia [muito contato com civis], porque os [eles] nos chamavam de covardes. Eu fui chamado de covarde várias vezes – fardado – , por gente desconhecida na rua da Praia, que é a rua do Ouvidor de Porto Alegre. Diziam: ‘Vocês são uns covardes. O que é que estão esperando?’ Eu cansei de ouvir da família. Não a mulher e os filhos, mas outras pessoas da família: ‘Estão esperando o quê? Que o Stalin venha sentar aqui em Brasília?’ Era nesse tom. Quer dizer, nós fomos atrás do povo. Na verdade, o Exército não saiu na frente, as forças armadas não saíram na frente do povo. Eu lhe digo isso com toda a sinceridade. Se o povo não quisesse... Sem o apoio do povo, não se faz nada. Eu conversava com os meus oficiais mais chegados, quando estava o Brizola pregando aquela reforma agrária: ‘Tomem a terra, tirem a terra. Entrem nas fazendas e matem o gado’. Isso ele dizia todas as semanas pelo rádio. Todo gaúcho daqueles ranchinhos tinha um rádio de pilha ouvindo o Brizola das sete às oito horas da noite, todas as sextas-feiras. Um dia, mandei meus filhos lá. Os dois. ‘Vão lá ver.’ E tinha uma multidão batendo palma para ele. E eles foram. Eram estudantes, novinhos, de 18, 19 anos, voltaram dizendo: ‘Papai, tu sabes o que são aqueles aplausos? Há um disco. Não tem ninguém lá, é só o Brizola. É um disco. Cada vez que ele diz uma frase, eles botam o disco dos aplausos’. Parecia uma multidão aplaudindo o Brizola. Meus filhos viram isso.” In: Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit., p. 210.120 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit., p. 14.121 E isto pode ser facilmente observado mesmo através de imagens visto que exames iconográficos revelam a população celebrando a deposição de João Goulart pelas ruas do país, em meio aos tanques do Exército.122 Outra fonte oral afirma que houve a intervenção: “Porque São Paulo quis que acontecesse. É chato dizer isso, não é? São Paulo quis acabar com o governo Jango, que era podre. Que era podre, que tinha todos os defeitos que nós reconhecíamos. Mas quem botou todo mundo contra Jango foi São Paulo. Como fizeram com o Collor agora [1993/1994].” In: FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p. dat. Não obstante, a assertiva é bastante pertinente visto que várias outras fontes escritas e/ou oficiais confirmam a movimentação popular, empresarial e religiosa ocorrida naquele estado.

LVIII

didáticos e os formadores de opinião se empenham tanto em propagar esta história

translúcida, em tantos pontos inverossímil, cabe alvitrar a população para que o senso comum

não se reproduza em beneficio dos atuais interesses das hegemonias dominantes.

Dentre os depoimentos analisados, pode-se perceber também uma convergência de

opiniões acerca dos oficiais legalistas ou pró-Jango, fossem eles de esquerda ou não.123

Àqueles que mantinham esta posição em prejuízo dos radicais, eram rotulados pelos colegas

como “melancias”124 – apelido depreciativo que os taxava de incompetentes, vaidosos,

personalísticos, maus exemplos para a tropa e, sobretudo, profundamente equivocados sobre a

extensão da conspiração em curso. Aliás, paradoxalmente, teria sido por culpa destas

personagens que Jango fora surpreendido pela fragilidade do “dispositivo militar” que

imaginava leal ao Executivo. Por isso, nas palavras de Deoclécio Siqueira, o governo

"desmoronou como um castelo de areia".

Em suma, contrariando a interpretação predominante entre os historiadores – que

crêem ter sido a intervenção (ou golpe) o substrato de um plano conspiratório bem arquitetado

entre o empresariado nacional, os militares e as forças econômicas multinacionais –, o

consenso militar (e aqui pode-se incluir também os subalternos, sabendo-se que sua visão é

muito mais fragmentada) a define como sendo resultado de ações multilaterais, dispersas,

isoladas mas “embaladas, no entanto, pelo clima de inquietação e incertezas que invadiu a

corporação.”

Também é consenso, segundo os depoimentos, que “todos teriam passado grande

parte da conspiração à procura de líderes.” Os mais cotados eram general Costa e Silva, então

chefe do Departamento de Produção e Obras, e o general Castelo Branco, então chefe do

Estado-Maior do Exército, de índole legalista. “Há unanimidade quanto à resistência de

Castelo Branco em aderir aos planos conspiratórios”, até porque ele era tido como veemente

legalista – por isso relutou até às vésperas do golpe em apoiar os conspiradores. Ambos foram

necessários para dar credibilidade ao movimento mas, contudo, foram “líderes forjados no

123 “Fui a favor da posse. Não do João Goulart, fui a favor da posse do vice-presidente da República que era ele. Podia ser outro, podia ser a senhora, podia ser qualquer um. Reuni os oficiais, disse: ‘A minha decisão é essa. Alguém está contra?’ Havia vários udenistas. Vários. Mas ninguém disse nada. Ninguém disse não. Eu disse: ‘Vou agora ao quartel-general dizer ao general que o regimento está reunido e unido a favor da decisão do III Exército de dar posse ao presidente João Goulart.’ Mas eu era contra ele, contra João Goulart (...) Porque eu achava que ele não tinha condições de ser presidente da República. Não tinha condições. Era um populista, era um demagogo. Tinha um coração enorme, era capaz de tirar o casaco para dar ao senhor. Agora, para presidente da República não dava. Sem dúvida era bondoso.” In: FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p124 A correlação com a fruta está no fato desta ser “verde por fora e vermelho por dentro.” Analogamente, os oficiais pró-Jango também seriam assim: apesar de ostentar o verde-oliva de suas fardas, símbolo de obediência e devoção aos valores nacionais, eram vermelhos (comunistas) no seu intimo, em sua ideologia.

LIX

meio da conspiração, e não conspiradores históricos.” Castelo Branco e Costa e Silva, haviam

sido colegas de turma no Colégio e na Escola Militar, porém tinham personalidades muito

diferentes. Assim, Costa e Silva se tornaria líder da ala militar mais radical, conhecido mais

tarde como “linha dura”125 enquanto que os moderados, legalistas e conservadores acercavam-

se do general Castelo Branco, representante dos oficiais ligados ao grupo da “Sorbornne”, que

pregavam por uma intervenção rápida com restabelecimento breve do poder aos políticos

civis.

Os relatos confirmam que não havia um projeto prévio de governo, nem contra e

nem a favor de nada o que prova o caráter não revolucionário do movimento – visto que não

houve ruptura com uma conjuntura pré-estabelecida. A única certeza dos conspiradores é que

Jango tinha que sair e as instituições tinham que ser “limpas” em sua ideologia, política e

moral, ficando os projetos com prioridade secundária naquele momento, a cargo de uma

equipe de técnicos e economistas com a tarefa de formular o Plano de Ação Econômica do

Governo – o PAEG. Contudo, “É bom lembrar que a "limpeza" não se baseou apenas em

critérios estabelecidos pelos militares: foi também uma oportunidade para ajustes de contas

entre a classe política despedaçada pelos conflitos recentes e para vinganças de cunho

pessoal.”126

Esta ausência de projetos teve influência direta na duração do regime. Isto ocorreu

porque não havia consenso sobre o tempo certo de fazer nova transição para o meio civil. O

ponto comum na análise de todos é que não havia alternativa melhor do que a permanência

dos militares naquela época apesar de concordarem que deveriam ter saído “por cima”, até

mesmo para evitar desgastes e proteger a imagem das instituições militares.

As disparidades entre costistas e castelistas crescem tanto que, “eleito” Costa e

Silva, chegou ao poder como adversário do seu colega Castelo Branco. “Eles não eram mais

água da mesma fonte.”

125 O general Arthur da Costa e Silva se auto intitulava “comandante supremo da Revolução.”126 Maria Celina D’ARAÚJO (ORG), Op. Cit., p. 18.

LX

CONCLUSÃO

No Brasil sabe-se que a participação militar na vida política foi uma constante

desde a proclamação da República e, via de regra, esta influência sempre oscilou entre grupos

conspiradores ou ativistas e legalistas, os quais corroboram inúmeras vezes para a manutenção

da democracia (entendida enquanto “vontade do povo”). Houve ditaduras (nem sempre

militares), golpes e “contra-golpes”, dentre os quais figura a intervenção militar de 1964.

Ao pesquisar e discorrer sobre os fatos que culminaram com a transição de poder

ocorrida em princípios de 1960, pode-se notar claramente que a classe militar fora utilizada

pela alta burguesia como “bode expiatório.” Muito ardilosas, estas hegemonias se valeram da

conjuntura periclitante estabelecida para fazer valer sua ideologia e seus próprios interesses

sobre os diversos segmentos e mesmo sobre a massa do proletariado.

É claro que havia elementos dos altos escalões militares que, por pertencer ou

estarem intrinsecamente ligados à burguesia ou mesmo ao grande capital, eram co-genitores

destes ideais. Apregoando argumentos em pró soberania, segurança e defesa dos interesses

nacionais – valendo-se também do clima da Guerra Fria –, estes grupos hegemônicos

cativaram grandes frações de tropas;127 corroborando para a deterioração e atacando a política

econômica, conquistaram as classes mais baixas que pagavam o alto preço da estagflação; sob

a fachada de institutos e instituições “autônomos”128 fazendo largo uso da propaganda e

marketing, o capital multinacional e a grande burguesia obtiveram o apoio da maior parte dos

brasileiros em beneficio próprio. A partir de dado momento, quando os interesses burgueses

já haviam sido atingidos e, sobretudo, eles passaram a sentir dificuldade para manietar e/ou

subtrair os militares instaurados no poder, estas mesmas hegemonias passaram a usar das

mesmas ferramentas para fazê-los sucumbir. Da mesma maneira, a conjuntura político-

ideológica em dias de aspirações socialistas servia como pano de fundo para os vários grupos

armados que surgiam opondo-se em essência ao capitalismo mas, como este sistema

econômico estava consolidado no país e neste momento protegido e reforçado pelo regime

que endurecia a cada ação, atacava abertamente o governo.

O grande cerne deste estudo não é, de fato, o aprofundamento dos fatos pós 1964.

Contudo, muito mais que pesquisar sobre suas motivações, a intenção aqui contida é de

127 Lembrando-se é claro que esta aproximação ideológica se fazia sempre através dos médios e altos escalões. Visto que estes detinham o poder de, através da doutrina organizacional da disciplina e da hierarquia, articular grande número de homens, acaba-se generalizando dados movimentos e ações creditando-os na conta das instituições. 128 Como o IPES e o IBAD, por exemplo.

LXI

apontar as correlações ideológicas que se fazem presentes ainda nos dias de hoje. Como disse

Marc Ferro129 em seu livro ‘A manipulação da História no Ensino e nos meios de

comunicação,’

“A preocupação de tornar o passado asséptico e de deixar a História

sem problemas evidencia-se através do livros didáticos, em primeiro

lugar, sobre os quais têm poderes de pressão não só os governos mas os

vários segmentos da sociedade sobre os quais os governos se apóiam,

além dos interesses comerciais das editoras.

Mas a limpeza do passado também se processa de outras formas: as

histórias em quadrinhos, a televisão, o cinema (...) A manipulação do

passado esta bem longe de se limitar aos livros didáticos.”

Pode parecer paradoxal citá-lo neste contexto pois este autor afirma que “a História

"institucional" tem a função de glorificar a pátria e legitimar o Estado [legitimando assim] a

dominação”, contudo não o é à medida em que trata-se aqui de uma legitimação às avessas. O

Estado “democrático” brasileiro ainda infecto por muitos representantes hegemônicos

burgueses de outrora, hoje esforça-se em “proibir” a história institucional negligenciando

dados, falceteando acontecimentos e supervelorizando episódios degenerativos, lançando mão

dos meios de comunicação e formação de opinião. Há de se perguntar o porquê de tal

interesse. Por que creditar exclusivamente ao regime militar a constituição da divida externa,

quando sabemos que ela é herança de JK? Qual interesse em difundir o autoritarismo

reacionário instituido durante o regime quando sabemos que houveram ditaduras muito mais

algozes como a de Getúlio Vargas? Estas e outras impropriedades históricas são reproduzidas

em larga escala e de diversas formas, inclusive através de noticiários, implicita ou

explicitamente, inclusive em noticiários quando se escreve, por exemplo, que “Ex-Cabo do

Exército é preso acusado de tráfico de drogas.” Qual a intenção em correlacionar o traficante

com a instituição uma vez que não há mais vínculo algum deste para com aquela? Fica claro o

interesse em degenerar a imagem das instituições militares junto à sociedade na construção da

memória nacional.

É certo que há ideologias e interesses por detrás destas atitudes. Afinal,

“controlar o passado ajuda a dominar o presente, a legitimar tanto as

dominações como as rebeldias. Ora, são os poderosos dominantes

129 Diretor de estudos da École dês Hautes Études em Sciences Sociales de Paris, examina a elaboração do discurso histórico através de vários países, várias épocas, vários regimes, insistindo principalmente na História "institucional" que tem a função de glorificar a pátria e legitimar o Estado. Legitimar a dominação.

LXII

Estados, Igrejas, partidos políticos ou interesses privados - que

possuem e financiam veículos de comunicação e aparelhos de

reprodução, livros escolares e histórias em quadrinhos, filmes e

programas de televisão. Cada vez mais entregam a cada um e a todos

um passado uniforme. E surge a revolta entre aqueles cuja história é

‘proibida’.”

De certo as hegemonias se aperceberam do poder revolucionário inconteste que militares e

proletariado teriam se unidos, tal qual episódio da Revolução Russa. Assim, da mesma

maneira que os EUA empenharam-se em criar uma imagem negativa do sistema socialista por

diversas formas,130 também aqui no Brasil tem-se tornado evidente e muito bem sucedida a

corrente ideológica que visa minar qualquer possibilidade de aproximação entre as duas

categorias, frequentemente abordadas sob o reducionismo de civis x militares.

Os formadores de opinião se valem do silêncio dos “vencedores” para transformá-

los em “vencidos”, subtraindo até mesmo o espaço para a critica. Entretanto, sabe-se que

“Elaborar a História a partir de uma só fonte cheira a tirania ou impostura [e que] É próprio da

liberdade deixar que várias tradições históricas coexistam e até se combatam.”

130 Vide filmes e desenhos da Wall Disney, como o desenho animado “Anastásia,” de fundo altamente ideológico.

LXIII

REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS:

1) FONTES PRIMÁRIAS

1.1) ORAIS:

1.1.1) Entrevista com o Sr. Cyro Guedes Etchegoyen.

ETCHEGOYEN, Cyro Guedes. Cyro Guedes Etchegoyen (depoimento, 1992/1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 52 p. dat.

1.1.2) Entrevista com o Sr. Carlos Alberto da Fontoura.

FONTOURA, Carlos Alberto da. Carlos Alberto da Fontoura (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 124 p. dat.

1.1.3) Entrevista com o Sr. Deoclécio Lima de Siqueira.

SIQUEIRA, Deoclécio Lima de. Deoclécio Lima de Siqueira(depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC/PROGRAMA DE APOIO DE NÚCLEOS DE EXCELÊNCIA (PRONEX), 2005. 39 p. dat.

1.2) IMPRESSAS

1.2.1) DOCUMENTOS OFICIAIS

Lei 6880, de 90de dezembro de 1980 (Estatuto dos Militares).

1.3) BIBLIOGRAFIA

____________. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva.,1983.

____________. Entrevista com Villas-Bôas Corrêa. Nossa História, Rio de Janeiro: Biblioteca nacional, v.1, nº 10, p. 38-41, agosto de 2004.

ALMEIDA, Cícero Antônio F. de. A carta de muitos autores. Nossa História, Rio de Janeiro: Biblioteca nacional, v.1, nº 10, p. 22-25, agosto de 2004.

BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História ou O Ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

BRANCO, Carlos Castelo. Introdução à Revolução de 1964. Agonia do poder civil. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1975.

CIVITA, Roberto. Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Abril, 04/2005. Separata da revista “Aventuras na História”, série Dossiê Brasil.

LXIV

D’ARAÚJO, Maria Celina (ORG). Visões do Golpe. A memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

DANTAS, Fernando. Milagre e crise. http://www.estadão.com.btr/1964/pg4.htm Acessado em: 10 e maio de 2005.

DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981, 2ª ed.

FORTES, Alexandre. Sul em chamas. Nossa História, Rio de Janeiro: Biblioteca nacional, v.1, nº 10, p. 30-32, agosto de 2004.

GOMES, Ângela de Castro. A Última Cartada.Nossa História, Rio de Janeiro: Biblioteca nacional, v.1, nº 10, p. 14-20, agosto de 2004.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Editora Revista Brasileira dos Tribunais, Edições Vértice (1ª edição 1950), 1990.

HOBSBAWM, E. J. Rebeldes primitivos: estudos sobre formas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1970

LANG, Alice B. da Silva G. O ídolo mal amado.Nossa História, Rio de Janeiro: Biblioteca nacional, v.1, nº 10, p. 26-28, agosto de 2004.

MARCHI, Carlos. Durante: das justificativas para a intervenção armada ao poder opaco de Figueiredo, no final do regime. In: http://www.estadão.com.btr/1964/pg4.htm

MORAES, Maria. Considerações sobre a crise de 1964. ___________: ___________, 1974.

MUNDIM, Pedro. Governo Militar? In: http://www.duplipensar.net.

PADILHA, Tarcísio Meirelles. Brasil em questão. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1975.

POLLAK, Michael. “Memória e Identidade social”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Vol.5, n.10, 1992, pp.200/212.

SAUTCHUK, Jaime. Luta armada: no Brasil dos anos 60 e 70. São Paulo: ed. Anita, 1995.

SENTO SÉ, João Trajano. Na esteira do varguismo. Nossa História, Rio de Janeiro: Biblioteca nacional, v.1, nº 10, p. 24-37, agosto de 2004.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho cientifico. São Paulo: Cortez, 2002, 22ª ed.

SKIDMORE, Thomaz. Brasil: De Getúlio a Castelo.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

LXV