monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL CENTRO DE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO ANDERSON BALBINOT DETERMINAÇÕES DA FELICIDADE À VONTADE NA FILOSOFIA PRÁTICA KANTIANA CAXIAS DO SUL 2014

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Monografia sobre o conceito de felicidade em Kant

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Page 1: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

CENTRO DE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO

ANDERSON BALBINOT

DETERMINAÇÕES DA FELICIDADE

À VONTADE NA FILOSOFIA PRÁTICA KANTIANA

CAXIAS DO SUL

2014

Page 2: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

ANDERSON BALBINOT

DETERMINAÇÕES DA FELICIDADE À VONTADE NA FILOSOFIA PRÁTICA

KANTIANA

Monografia apresentada como requisito parcial

para a obtenção de grau de especialista em Ética

e Filosofia Política da Universidade de Caxias

do Sul,

Orientador: Prof. Dr. Evaldo Antônio Kuiava

CAXIAS DO SUL

2014

Page 3: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

ANDERSON BALBINOT

DETERMINAÇÕES DA FELICIDADE À VONTADE NA FILOSOFIA PRÁTICA

KANTIANA

Monografia apresentada como requisito parcial

para a obtenção de grau de especialista em Ética

e Filosofia Política da Universidade de Caxias

do Sul,

APROVADO EM: ___/___/2014

_______________________________

Prof. Dr. Evaldo Antônio Kuiava

Page 4: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

Uma criança pode perguntar: “Qual é o sentido do mundo? ” E um adulto pode especular:

“Para onde o mundo vai? E já que estamos falando nisso, qual é o sentido do mundo?”

Creio que há um sentido no mundo, apenas um, que nos tem assustado e inspirado, de tal

forma que vivemos num seriado de Pearl White de contínuo pensamento e espanto. Os seres

humanos estão presos... em suas vidas, pensamentos, ânsias e ambições, cobiças e crueldade,

mas também em sua bondade e generosidade...numa rede do bem e do mal. Creio que é a

única coisa que temos e que ocorre em todos os níveis de sentimento e inteligência. A virtude

e o vício foram a consequência de nossa primeira percepção e serão o contexto de nosso

último pensamento, apesar de todas as mudanças que possamos impor aos campos, rios e

montanhas, à economia e aos costumes. Não há qualquer outra coisa. Depois de desfazer da

poeira e dos fragmentos de sua vida, um homem só terá uma indagação, clara e objetiva. Foi

boa ou foi má? Pratiquei o bem... ou o mal?

[...]

Em nossos tempos, quando um homem morre ... se teve riquezas, influência e poder, se teve

todos os atavios que despertam a inveja... depois que os vivos avaliam seus bens, eminência,

obras e monumentos, a indagação ainda persiste: Sua vida foi boa ou foi má? O que é outra

maneira de formular a indagação de Creso (quem é a pessoa mais afortunada do mundo?). A

inveja se desvanece e a medida de avaliação se torna diferente: Ele era amado ou odiado?

Sua morte é sentida como uma perda ou acarreta alguma alegria? ”

[...]

Na incerteza, estou convencido de que, por baixo de suas camadas superiores de fragilidade,

os homens querem ser bons e querem ser amados. Na verdade, a maioria dos vícios é uma

tentativa de atalho para o amor. Quando um homem morre, não importa qual tenha sido o

seu talento, influência e gênio, sua vida foi um fracasso se morreu sem amor, sua morte um

frio horror. Parece-me que, quando se pode optar entre dois cursos de pensamento ou ação,

devemos lembrar da morte e tentar viver de maneira a que nossa morte não proporcione

prazer ao mundo.

Temos apenas uma história e um sentido. Todos os romances e toda poesia se baseiam na

competição incessante entre o bem e o mal em nós mesmos. E me ocorre que o mal deve ser

constantemente ressuscitado, enquanto que o bem, a virtude, é imortal. O vício sempre foi um

rosto novo e jovem, enquanto a virtude é venerável como nenhuma outra coisa do mundo.

Vidas Amargas – John Steinbeck

Page 5: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 4

2 O DUALISMO NA DETERMINAÇÃO DA VONTADE E A RAZÃO

PRÁTICA ........................................................................................................................... 7

2.1 RAZÃO PRÁTICA, LIBERDADE E LEI MORAL NO JULGAMENTO

MORAL ............................................................................................................................... 7

2.2 A VONTADE RACIONAL NA DETERMINAÇÃO DA LEI MORAL .................. 13

2.2.1 Livre Arbítrio e Vontade ......................................................................................... 13

2.2.2 Boa Vontade, Dever e Lei Moral ............................................................................ 17

2.3 A MORALIDADE DEVE SER UM MANDAMENTO DA RAZÃO PURA .......... 21

3 DA VONTADE VIRTUOSA E DO MÉRITO À FELICIDADE ........................ 31

3.1 DA FINALIDADE DO SER HUMANO E DA DIGNIDADE DE SER FELIZ ...... 31

3.2 DA POSSIBILIDADE DA FELICIDADE COMO DETERMINAÇÃO DA VONTADE

SENSÍVEL SER PRINCÍPIO PRÁTICO ........................................................................... 41

CONCLUSÃO .......................................................................................................... 47

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 49

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1 INTRODUÇÃO

Constitui-se problema fundamental para os seres humanos a convivência. Este é um

problema cotidiano na medida em que temos uma necessidade prática de tomarmos decisões

sobre nossos atos e enquanto estes são acontecimentos que reverberam na esfera dos assuntos

humanos. Deparamo-nos com frequência refletindo sobre atos em que nós próprios produzimos

ou que outros produzem. Atentamos para o fato de que julgamos os atos segundo o que

consideramos certo ou errado, mas muitas vezes não julgamos o critério a partir do qual

escolhemos determinados critérios de julgamento. O que julgamos como as atitudes mais

adequadas são julgadas na sua particularidade segundo um critério universal. Podemos elencar

rapidamente alguns como o critério da virtude e da felicidade, da utilidade, da revelação

teológica, do legalismo, do relativismo, enquanto critérios tradicionais e até mesmo cotidianos

que podemos assumir.

O critério kantiano figura dentre os principais tanto pelo fato de que é uma teoria que

representa significativamente o paradigma moderno na busca por critérios universais e

necessários, semelhantes aos critérios de formulação das leis científicas. Kant precisa

fundamentar a moral em um princípio racional. A necessidade desse princípio é de suma

importância pelo fato de que se pudéssemos buscar qualquer fundamento além dele, ficaríamos

sujeitos a toda forma de perversão. O princípio, porém, não se refere somente às ações vistas

do ponto de vista objetivo, mas deve ser levada em conta no mérito moral somente as ações

guiadas por uma boa vontade, uma boa intenção ou motivação adequada: Uma intenção guiada

por dever.

Lendo as obras kantianas atentamente, é curioso constatar que as principais teorias que

o autor dialoga são fundadas no conceito de felicidade, como a doutrina cristã, o estoicismo,

epicurismo e o aristotelismo. Além disso, o autor parece identificar tudo o que é de origem

empírica ou não-formal como sendo atrelado ao conceito de felicidade. Portanto, uma parte

considerável das questões kantianas tem relação com este conceito, o que o torna digno de uma

investigação.

O problema de pesquisa da presente monografia é de saber se de alguma forma Kant

aceitaria móbeis empíricos, identificados no conceito de felicidade, como colaboradores da

vontade racional no cumprimento do dever. Para tratar tal problema, usamos o método de

análise argumentativa das principais obras do autor, bem como de comentadores e especialistas

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no tema. A tese inicial é a clássica afirmação, no contexto kantiano, de que a felicidade não

pode ser um critério absoluto ou mesmo complementar ao imperativo categórico que deve

determinar a vontade motivadora de uma ação, para que ela tenha mérito moral. Em suma,

afirma-se que nenhum móbil empírico ou motivação no sentido de desejo podem garantir

qualquer nível adicional de mérito moral a uma ação. Como já o dissemos antes, a hipótese

concorda com autores tradicionais e, portanto, não oferece nenhum risco abusivo de equívocos,

derivado de posições polêmicas ou demasiado desafiadoras. Além disso, nosso trabalho será de

grande valia como exercício de investigação filosófica e nossa introdução em alguns temas da

ética de Kant.

Também será útil expor brevemente a estrutura básica deste trabalho. Nossa

investigação se divide em duas tarefas básicas. De largada, a primeira tarefa é investigar as

condições materiais e de possibilidade para a moralidade no capítulo intitulado “O dualismo

kantiano na determinação da vontade”. A dupla realidade no qual está imerso o ser humano

implica uma moralidade específica, diferenciada de outras aplicáveis a outros tipos de seres

como Deus ou seres com uma outra estrutura cognoscitiva ou existencial. Explicitar tais

pressupostos perfaz a tarefa assentar em terreno seguro nossa exposição para posteriores

afirmações. O capítulo está dividido em três partes intituladas “Razão prática, liberdade e lei

moral no julgamento moral”, “A vontade racional na determinação da lei moral” e “A

moralidade deve ser um mandamento da razão”.

O primeiro subcapítulo desenvolve um paralelo entre as duas Críticas de Kant,

distingue os usos da razão, pura e prática; discute a impossibilidade da metafísica como ciências

e sua possibilidade de fundamentação de uma ética. O ser humano vive as dimensões numênica

e fenomenológica; que o obriga a vivenciar a necessidade e a liberdade, compreender o

condicionado e desejar o incondicionado.

O segundo subcapítulo trata da elucidação dos conceitos de vontade para o autor em

debate. Em muitos momentos Kant trata indiferentemente o conceito de vontade, entendendo-

o tanto como faculdade de agir de acordo com as próprias representações, quanto como vontade

sensível ou inclinação. Cabe-nos, neste momento, elucidar os sentidos e precisar os termos. É

outro conceito importante a boa vontade como vontade impelida pelo dever a cumprir a lei

moral, o qual será brevemente discutido inserindo pontos referentes ao tema da monografia. Ao

final deste capítulo se tratará introdutoriamente do conceito de dever como a obrigação de

cumprir a lei moral, tema próprio do próximo capítulo.

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No terceiro, portanto, se apresentará os argumentos kantianos para sustentar que a

moralidade é um mandamento da razão pura e apenas dela, sem qualquer influência ou

compatibilidade. De forma inicial, se investigará a possibilidade de a felicidade e o exemplo

edificante serem incentivos adicionais ou motivações legítimas para o cumprimento das leis

morais.

A segunda parte do presente trabalho se intitula “Da vontade virtuosa e do mérito à

felicidade”. Trata do conceito de felicidade ao que é entendido como determinações da vontade

por móbeis sensíveis ou múltiplas motivações com a finalidade da boa vida. Esta segunda parte,

por sua vez, possui dois subcapítulos. O primeiro analisa o tema “Da finalidade do ser humano

e da dignidade de ser feliz”. Algumas questões guiarão nosso itinerário: Poderia a moralidade

e sua consciência causar a felicidade e se esta não poderia ser objetivo da vida humana? Teria

menos mérito uma ação motivada por ela? Porém, a questão centra é de saber se poderia

considerar a felicidade de alguma forma útil à moralidade. O epicurismo, estoicismo e a

doutrina cristã prometem uma relação necessária entre a moralidade e a felicidade.

Analisaremos até que ponto Kant concorda com elas ou as critica.

No segundo subcapítulo se tenta responder diretamente o que antes se perguntava de

forma retórica ou se relacionava a outros elementos da ética kantiana. Aqui se faz uma análise

do critério da felicidade como possibilidade de complemento à moralidade, a felicidade

individual, a felicidade do outro e a felicidade da maioria como critérios universais, e as

implicações jurídicas no que diz respeito à punição dos indivíduos, mostrando que se não

tomarmos como princípio a lei moral, mas a felicidade, fatalmente cairíamos em posturas

absurdas tanto nas deduções morais, que implicam o mérito moral, quanto no âmbito da

moralidade externa.

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2 O DUALISMO NA DETERMINAÇÃO DA VONTADE E A RAZÃO PRÁTICA

Antes de expormos os motivos pelos quais Kant recusa a felicidade como critério

moral, devemos explicitar alguns conceitos fundamentais da teoria moral kantiana que

conduzirão nossa argumentação ao final para a justificação e da compreensão da tese do autor.

Partiremos das obras Fundamentação da metafísica dos costumes, Metafísica dos Costumes e

da segunda crítica kantiana na análise dos conceitos de razão prática como vontade livre,

capacidade decorrente da faculdade da razão, possibilidade da liberdade. Seguiremos com a

exposição dos binômios kantianos de necessidade e liberdade, razão pura e razão prática,

condicionado e incondicionado, fenômeno e noumeno, vontade livre e móbil empírico,

autonomia e heteronomia, princípios apodíticos e assertóricos, bom e agradável, imperativo

categórico e hipotético. O raciocínio kantiano se mostra de modo frequente na dualidade.

Desconfiamos, por isso, que de modo análogo podemos aplicá-lo para entender como o autor

opera ao pensar o conceito de felicidade. Portanto, parece razoável investigar tais dualidades.

Nosso objetivo neste capítulo se constitui em fornecer as bases conceituais e estruturantes da

ética kantiana e qualificar teoricamente o trabalho para a central discussão do conceito de

felicidade.

Dividimos este capítulo em três partes. Na primeira, discutiremos as dualidades que

têm relação com as faculdades e a experiência humanas enquanto existência condicionada, mas

com o direcionamento do incondicionado. Em um segundo momento, abordaremos as questões

que dizem respeito as determinações humanas e as fontes para a vontade. Na terceira parte deste

capítulo, discorreremos sobre o dever e a lei moral como obrigações ao sujeito deduções da

razão autônoma, condições para que efetivamente uma ação tenha mérito moral.

2.1 RAZÃO PRÁTICA, LIBERDADE E LEI MORAL NO JULGAMENTO MORAL

No início da segunda crítica Kant explica por que esta não se chamará Crítica da Razão

Pura Prática, mas “simplesmente crítica da razão prática em geral.” (KANT, 1994 p. 11). Sua

justificativa para a questão é de que a razão não pode se ultrapassar enquanto razão prática.

Enquanto que na Crítica da razão pura o autor busca delimitar o campo dos princípios do

conhecimento puro, na Crítica da Razão Prática busca fundamentar princípios para ação moral.

Para tal, enquanto que na primeira crítica busca-se restringir o conhecimento somente ao que

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possui correspondente empírico, na segunda crítica Kant busca apenas mostrar as condições de

possibilidade da lei moral em um sistema coerente e o mais completo possível. Nas primeiras

páginas do prefácio da crítica em questão está pressuposta a ideia de que a razão pode querer

conhecer tanto o condicionado quanto o incondicionado. O pensamento não tem limites às

possibilidades da realidade, desde que estas não subvertam o princípio da não-contradição.

O condicionado é objeto para o entendimento, faculdade racional que é condição de

possibilidade para qualquer ciência. Segundo Kant, o conhecimento é o resultado de um

processo onde os fenômenos são dados pelo mundo empírico, e são elaborados como

conhecimentos científicos pelo entendimento através de suas categorias e, assim, validados

como universais e necessários. A faculdade do entendimento é a faculdade de aplicar os

conceitos às intuições. A tarefa crítica de Kant consistiu em delimitar as condições de

possibilidade do entendimento de fornecer leis a priori sobre o mundo. Nesse sentido, a

matemática e a física estão justificadas enquanto ciências capazes de fornecer conhecimentos a

priori universais e necessários.

No entanto, isso não é o caso da metafísica. Esta disciplina não pode ser considerada

uma ciência, pois o seu objeto de investigação, a saber, Deus, a imortalidade da Alma e a

liberdade, não tem um correspondente fenomênico. Na metafísica a razão se direciona para

além do que pode ser subsumido em categorias do entendimento, pois nos falta o elemento

empírico. A metafísica se direciona, fundamentalmente, para o incondicionado.

Podemos distinguir dois modos de ser da razão: Um modo racional enquanto

entendimento (verstand) que categoriza os fenômenos em vista dos conhecimentos universais

e necessários; e outro modo racional enquanto razão (vernunft). O entendimento é a razão pura

pura, enquanto é uma especificidade da razão; e a razão pura (vernunft) enquanto racionalidade

que transcende os limites do mundo causal.

O mundo fenomênico é fatalmente regido pela causalidade natural. Podemos pensar

uma causa para cada um dos fenômenos visíveis indefinidamente. Ora, se há causa para todos

os eventos, logo não há espontaneidade nem novidade nestas séries. Não há possibilidade de

pensarmos a liberdade num mundo regido pelas leis naturais causais. Mas a razão enquanto

faculdade transcendental busca no pensamento “uma completude incondicional na série, que

pode ser encontrada apenas em algum estado de uma substância que começa em si mesma e

não requer causa adicional. Isso, de acordo com Kant, fornece-nos a ideia de causa livre.”

(WOOD, 2008a, p. 102)

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Os objetos da metafísica são, na primeira crítica, ideias da razão, pois surgem

espontaneamente na sua busca pelo incondicionado, causa primeira ou última das séries causais.

Na segunda crítica, as ideias da razão são postulados da razão prática em vista da

fundamentação racional da moral. A possibilidade da liberdade, fundamentos de toda

possibilidade da comportamento moral e da escolha do critério moral para a ação, que por sua

vez é fundamento de qualquer responsabilidade e do direito, mesmo que não pode ser provada

aos moldes do entendimento, subsumindo-a a categorias, pode ao menos ser pensada, desde que

“[…] do ponto de vista prático, ela não encerre nenhuma impossibilidade (contradição)

interna.” (KANT, 1994, p. 12). Assim, a ideia de liberdade se torna um postulado racional:

devemos poder pensar o ser humano enquanto movido por uma causalidade diferente da

causalidade natural. A possibilidade da autonomia da razão teorética de distanciamento do

mundo pelo sujeito objetivador, capaz de, pelo entendimento submeter o mundo às suas leis a

priori, universais e necessárias; doravante torna-se uma razão prática capaz de autonomia na

razão prática, o fundamento para a lei moral.

Uma vez que esta [crítica] recomendava admitir os objetos da experiência

como tais e, entre eles, mesmo o nosso próprio sujeito, unicamente como

fenômenos, pondo-lhes, no entanto, como fundamento coisas em si, portanto,

não considerar todo o suprassensível como uma ficção e seu conceito como

vazio de conteúdo, agora, a razão prática, por si mesma e sem se ter associado

com a [razão] especulativa, confere realidade a um objeto (Gegenstand)

suprassensível da categoria da causalidade, a saber, à liberdade (embora seja

enquanto conceito prático e a pensa para uso prático), por conseguinte, aquilo

que além podia simplesmente ser pensado é confirmado por um facto

(Factum). (KANT, 1994, p. 14).

A razão pode tanto fornecer leis para a constituição das ciências, quanto especular

sobre as possibilidades quiméricas de uma escatologia. Mais concretamente, mas não sem

menos relevância, ao que é o contrário, fa razão pode especular sobre o fundamento sob o qual

julgamos uma ação como boa ou má. A razão espontaneamente faz esse movimento de andar

sobre o terreno da ciência e também para além deste, inclusive sobre a possibilidade de sermos

livres.

No entanto, “a liberdade é também a única entre todas as ideias da razão especulativa,

da qual sabemos (Wissen) a possibilidade a priori sem, no entanto, a discernir (Einzusehen),

porque ela é a condição da lei moral, que conhecemos” (KANT, 1994, p. 12). Isso significa que

encontramos em nós, seres humanos racionais, através da simples introspecção, a possibilidade

de uma vontade livre, determinada pela razão prática. Ela simplesmente se encontra aí, ou seja,

constitui um fato (faktum). Continua Kant o argumento de que as ideias de Deus e da

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imortalidade da \alma não são condições para a lei moral, mas apenas garantias de que a lei

moral deve continuar a existir. A existência de um Deus que fundamenta o status de realidade

transcendente para a lei moral, ou seja, que até Deus pode reconhecer que a lei moral é legítima

de acordo com o critério estipulado, e a esperança de que pela imortalidade da alma o praticante

das leis morais universais receba sua recompensa são, nas palavras de Kant, “as condições da

aplicação da vontade, moralmente determinada, a seu objeto, que lhe é facultado a priori (o

supremo bem).” (KANT, 2004, pg. 9).

É importante notar que a razão teorética e a razão prática constituem uma única e

mesma razão, porém com dois usos distintos.

“O que certamente não conviria ao andamento sistemático de uma ciência a

constituir […], era no entanto aqui permitido, e mesmo necessário; porque a

razão é considerada com esses conceitos em transição para um uso

inteiramente diferente do que ela lá deles fazia.”. (KANT, 1994, p. 15).

Kant se refere à segunda crítica quando diz que é permitido e até necessário pressupor a

liberdade para a fundamentação de um agir livre. Deparamo-nos com a necessidade prática de

buscarmos fundamentos para as ações morais. Devemos pensar a liberdade de um modo

transcendental: devemos reconhecer a “sua indispensabilidade enquanto conceito problemático

no uso completo da razão especulativa, como também a sua total ininteligibilidade; […].” (1994

p. 15). Não podemos buscar fundamentos empíricos tanto a) porque não teríamos um

correspondente fenomênico (KANT, 1994, p. 15), quanto b) que o princípio fundamental da

moral não pode ser buscado na experiência, pois os elementos empíricos não podem ser

parâmetros para o que deve ser (KANT, 2007, p. 24-25). O caráter a priori, essencial para as

ciências é mantido por Kant também para as leis morais. As leis da natureza de acordo com a

causalidade natural e as leis morais de acordo com a causalidade livre.

Das duas espécies de imperativos, os hipotéticos e categóricos, somente os últimos

podem conferir o caráter de lei moral, pois sendo os imperativos hipotéticos preceitos

empíricos, não conferem ao que lhe manda a necessidade e universalidade. (KANT, 1994, p.

30). Por isso Kant chama a atenção para a necessidade da segunda crítica. Enquanto que a razão

especulativa tem sua legitimidade fundamentada e delimitada na primeira crítica, a segunda

crítica precisa fundamentar a possibilidade da liberdade visto que a ética está relegada ao âmbito

metafísico, onde Kant vê confusão e conhecimentos incertos. O desafio de Kant está em

justificar a razão prática como fonte legítima de leis morais universais e necessárias para todos

os seres racionais. Isso está registrado no texto kantiano como uma das duas maiores

dificuldades à crítica proposta por ele, a saber, a dificuldade de aplicar as categorias

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transcendentais aos noumenos e de afirmar a realidade objetiva do conhecimento prático.

(KANT, 2004, p. 24-25).

A necessidade do postulado está clara em uma nota do prefácio da segunda crítica

(1994, p. 20), onde Kant busca diferenciar o conceito de postulado na sua teoria de um postulado

matemático. A raiz do mal entendido, diz Kant, está no fato do uso popular dos termos. Kant

justifica que o uso que fará do conceito não é mera procura de termos que tornem o texto mais

complicado ou que tenha uma aparência de erudição, mas que este é o termo encontrado que

melhor expressa o conceito. O postulado matemático é a possibilidade de derivação a partir de

um axioma onde seus teoremas são inferidos de forma evidente. Já o postulado no uso que Kant

faz em sua filosofia prática significa que os objetos da metafísica – Deus, imortalidade da alma

e a liberdade – devem ser colocados como condições de possibilidade, ou são condições

transcendentais para teorizarmos a moral, ou seja, é uma hipótese necessária. Enquanto que nos

postulados matemáticos a necessidade de um axioma está relacionada a um objeto, no postulado

da razão prática há uma necessidade de certezas reconhecidas em relação ao sujeito.

O postulado da liberdade é necessário, portanto, para reafirmar que a moral não pode

ter como alicerce qualquer elemento empírico, tanto como motivação, por meio da afetação de

nossos sentidos, quanto por uma finalidade sensível. Dentre as motivações ou finalidades

possíveis está a felicidade.

Enquanto que na dimensão epistemológica, o ser humano deve ser tomado como um

ser ao mesmo tempo imanente e transcendente, se quiser que uma ciência moderna seja

possível, sob o aspecto do mérito moral das ações de um sujeito moral, o ser humano precisa

ser tomado apenas como sujeito transcendente, ou melhor, deslocado de sua dimensão concreta,

da necessidade natural, do mundo fenomênico. A ciência da moral ou metafísica dos costumes

deve depurar a moral de toda a matéria para ver os fundamentos da vontade livre. (KANT,

2007, p. 15). “Porque, com que direito podemos nós tributar respeito ilimitado, como prescrição

universal para toda a natureza racional, àquilo que só é válido talvez nas condições contingentes

da humanidade?” (KANT, 2007, p. 42). A pureza das leis morais não podem advir nem mesmo

da essência humana e menos ainda de circunstâncias existenciais ou culturais, (KANT, 2007,

p. 16) “mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da razão pura.”

Nesta última [entendimento humano vulgar], quando a razão vulgar se atreve

a afastar-se das leis da experiência e dos dados dos sentidos, vai cair em puras

incompreensibilidades e contradições consigo mesma ou, pelo menos, num

caos de incerteza, escuridão e inconstância. No campo prático, porém, a

capacidade de julgar só então começa a mostrar todas as suas vantagens

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quando o entendimento vulgar exclui das leis práticas todos os móbiles

sensíveis. (KANT, 2007, p. 36)

A razão pura tem a função de, ao mesmo tempo produzir as máximas para a vontade e

julgar essas mesmas máximas segundo o critério do imperativo categórico. A escolha dever-se-

á pautar unicamente por uma vontade pura de instrumentalização tanto dos valores quanto de

pessoas.

As leis que regem tudo que há na natureza podem ser determinações racionais

ou naturais. O ser humano sofre influências das duas determinações, mas pela

faculdade racional tem a capacidade de agir também segundo a representação

das leis, ou segundo princípios. (KANT, 2007, p. 47).

A felicidade não faz parte das finalidades absolutas do ser humano no sumo bem. É

um bem apenas acidental no sistema kantiano. Podemos afirma-lo ainda, com referências à

Fundamentação da Metafísica dos costumes, quando Kant trata dos princípios apodíticos e

assertóricos e sua possível relação na fundamentação categórica ou hipotética de um

imperativo.

Imperativo é a fórmula de um mandamento que obriga a vontade na forma de um

dever, uma obrigação, segundo o que é bom. (KANT, 2007, p. 48). O que é bom é diferente do

que é agradável. “Praticamente bom é porém aquilo que determina a vontade por meio de

representações da razão” (KANT, 2007, p. 48), diferentemente do que é agradável, “pois este

só influi na vontade por meio das sensações em virtude de causas subjetivas que valem apenas

para a sensibilidade deste ou daquele, e não como princípio da razão que é válido para todos”.

(KANT, 2007, p. 49). Os imperativos ordenam categórica ou hipoteticamente. Os imperativos

hipotéticos apresentam uma relação condicional de ação em vista de um resultado que se prevê

e do qual se pode chegar. Nesse tipo de imperativo, Kant assinala que o dever se direciona para

a condição necessária, para o consequente, para as consequências da ação, e não para seu

sentido, o dever em si. Por outro lado, os imperativos categóricos representam uma ação

objetivamente necessária por si mesma sem relação às suas consequências ou finalidades fora

dela mesma.

No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo

é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa

vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico.

A felicidade e todos móbeis sensíveis são hipotéticos ou assertóricos.

O conselho contém, na verdade, uma necessidade, mas que só pode valer sob

a condição subjetiva e contingente de este ou aquele homem considerar isto

ou aquilo como contando para sua felicidade; enquanto que o imperativo

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categórico, pelo contrário, não é limitado por nenhuma condição e se pode

chamar propriamente um mandamento, absolutamente, posto que

praticamente necessário. (KANT, 2007, p.53)

Kant associa estes aos princípios de prudência, se referindo indiretamente às éticas da virtude,

como por exemplo a teoria prática de Aristóteles. Os conselhos de prudência são aqueles que

guiam um indivíduo a escolher determinados meios para atingir fins determinados. São

pragmáticos e racionais, mesmo que não contenham necessidade universal como os

mandamentos morais. A prudência aconselha, a lei manda, ordena. (KANT, 2004, p. 77). Estes

são os motivos e justificativas de Kant para sustentar que o princípio do conselho, a felicidade

ou qualquer outro móbil seja usado como princípio moral.

2.2 A VONTADE RACIONAL NA DETERMINAÇÃO DA LEI MORAL

2.2.1 Livre Arbítrio e Vontade

Nas ciências naturais é preciso contar com princípios a priori, mas a origem dos

conhecimentos começa com a experiência e, assim, há elementos significativos que provêm da

evidência da experiência. A universalidade e necessidade das leis da natureza fundam uma

metafísica da natureza que trata dos princípios fundadores das leis naturais. Em algumas

ciências, tal como a química, os cientistas confiam nas experiências particulares para formular

as leis da sua ciência. Trata-se do método indutivo. Os regularidade e generalidade dos eventos

particulares acessíveis ao sujeito através dos fenômenos permite a formulação de uma lei geral

universal e necessária.

Porém, no campo moral, as leis continuam tendo o caráter de necessidade e

universalidade, mas não podem se fundamentarem nas experiências particulares. Kant separa o

campo das ciências do campo moral: As ciências diagnosticam o real enquanto que a moral

formula padrões e normas para o comportamento livre sob o critério do "dever ser", e como o

campo do que pode ser é infinitamente maior do que as fronteiras que delimitam o que acontece,

mais restrito ainda é o campo do que deve ser, como ideal, padrão e modelo racional, o que

pode e o que acontece não pode ser padrão para o que deve ser evento provocado pelo

comportamento humano.

Na busca pelo critério universal para a fundamentação moral, diz o autor que a

felicidade é apercebida de forma diferente para cada sujeito moral. Como poderia o impulso

para a alimentação, o sexo, repouso, movimento ou honra de cada um serem critérios para o

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agir moral? Resultaria, como o autor sugere, que haveria de cada indivíduo abrir exceções e

concessões para seu agir e ajustar suas escolhas aos modos de vida particulares, o que tornaria

infortunosa a vida própria e alheia. (KANT, 2008, p. 58). Ela se vê como um gozo duradouro

para o próprio indivíduo e somente a experiência, além de algumas proposições tautológicas,

pode nos fornecer essas respostas. Sendo a razão prática uma faculdade humana, um sistema de

cognição (KANT, 2008, p. 59), só pode gerar leis universais e necessárias, de forma a priori.

Este sistema de cognição tem por objeto a liberdade de escolha. (KANT, 2008, p. 59).

No que se trata “da relação entre as faculdades da mente humana e as leis morais”,

parte assim intitulada na obra Metafísica dos Costumes, Kant diferencia vontade e livre-arbítrio.

O primeiro conceito, adicionando à faculdade de conhecer e o sentimento de prazer e desprazer,

constituem o quadro completo das faculdades do ânimo. (ORTS1, 2008, p. 32). Entendemos

que a diferenciação dos conceitos de vontade e livre-arbítrio deve abrir nossa discussão por

ilustrarem os modos como a liberdade se nos apresenta enquanto fundamentos importantes para

a teoria moral kantiana. Iniciamos nossa caracterização nos movimentando por dentro da

constituição da vontade.

São, em linhas gerais, duas forças que atuam na escolha dos critérios para a ação livre:

o desejo, de forma não-consciente, e o livre-arbítrio, de forma consciente. Kant conceitua desejo

como “a faculdade de mediante as próprias representações serem a causa dos objetos dessa

representação. Chama-se vida a faculdade de um ser em agir em conformidade com suas

representações”. (KANT, 2008, p. 60). Na Fundamentação, Kant se expressa nos seguintes

termos: “A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo e agir em

conformidade com a representação de certas leis. É uma faculdade que só se pode encontrar em

seres racionais”. (KANT, 2007, p. 67). Isso significa que o fundamento que determina tal ação

está no interior do agente, na estrutura racional, cognoscente. Assim como a faculdade de

conhecer aplica seus princípios a priori na natureza, para os conhecer, a faculdade da vontade,

enquanto ligada ao desejo, aplica seus princípios a priori à liberdade. É pela faculdade de

desejar que o ser humano possui um interior pulsante digno de ser chamado livre das

determinações ou autônomo. Mesmo que sofra influências do meio, estas não lhe poderão

determinar definitivamente sua escolha. “[…] é denominada faculdade de fazer ou deixar de

fazer conforme aprouver a cada um.” (KANT, 2008, p. 62). A escolha é a capacidade de cada

1 Adela Cortina Ortis faz um comentário introdutório à obra “La Metafísica de las Costumbres” (2008) do qual

parafraseamos aqui.

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15

um, na medida em que está ligada à consciência, realizar seu objeto mediante ação própria.

(KANT, 2008, p. 62).

No texto kantiano o conceito de desejo está claramente conectado não só a faculdade

da vontade, mas também ao sentimento do prazer e desprazer. Na vontade, estão envolvidos

também sentimentos e afetações particulares. A diferenciação está no fato de que enquanto a

faculdade da vontade, identificando-se com a razão prática, é a fonte das leis universais do

âmbito moral, e os sentimentos de prazer e desprazer diante de uma afetação não

necessariamente é universal, podendo ser ligada às vivências particulares do sujeito, e envolver

o que é meramente subjetivo. Sendo o prazer uma faculdade ainda particular, não pode ser

suficiente para explicarmos o conceito de vontade na sua completa expressão, porém, vemos

que nela está o conceito onde podemos começar a vislumbrar algo da vontade.

O livre-arbítrio se refere mais ao objeto do que ao seu fundamento. Enquanto que a

vontade é referida ao fundamento da ação, aos seus critérios de ação e justificação, o livre-

arbítrio se lança em direção a cada ação particular. “Dá-se o nome de livre-arbítrio à escolha

que pode ser determinada pela razão pura; a que pode ser determinada somente por inclinação

(impulso sensível, estímulo) seria o arbítrio animal (arbitrium brutum).” (KANT, 2008, p. 63).

Quando se encontra determinado pela razão, é arbítrio livre, enquanto que quando é

determinado pela inclinação, é arbítrio bruto: o arbítrio pode estar sendo influenciado por

inclinações ou impulsos, mas não pode ser determinado porque é livre. Porém esse conceito

não transcende o conceito de liberdade negativa, ou de libertas indifferentiae, ou seja, que “a

liberdade de escolha é essa independência do ser determinado por impulsos sensíveis.” (KANT,

2008, p. 63).

Segundo Kuiava (2003, p. 79), a obra Fundamentação conceitua vontade como “a

capacidade do ser racional de agir, não somente segundo as leis, como é o caso da natureza,

mas segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios”. Novamente se firma a ideia

de que a vontade livre é fundamentalmente racional e refinada de elementos empíricos.

A segunda Crítica ainda usa o conceito tanto para caracterizar a vontade ou vontade

pura. Neste ponto concordam os comentadores Kuiava (2003, p. 79) e Beck (1963, p. 38).

Kuiava explica que Kant enfatiza o conceito de vontade pura para diferenciar a vontade que é

o ponto de mediação entre o entendimento puro e a vontade de desejar com todas as relações

implicadas em tal relação, inclusive os possíveis elementos empíricos imbricados nela. A

vontade pura, por outro lado, é a capacidade do ser racional de representar, por meio de

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princípios, uma lei moral. Em outras palavras, a vontade pura é a vontade guiada pela razão. O

comentador afirma ainda que o conceito de autodeterminação está ligado à distinção entre

vontade e vontade pura. Beck interpreta igualmente que a vontade (Wille) “não é mais que razão

prática: é esta faculdade que faz uma regra razão a causa eficiente da razão de uma ação por

meio do qual um objeto pode ser realizado, ou por meio do qual se parte de uma mera ideia do

estado de coisas previsto nele.”2 (1963, p. 39). Neste artigo, o comentador diferencia os dois

conceitos que Kant se instrumentaliza, o conceito de “Willkür” que denota a vontade com

origem nas determinações empíricas ou externas ao sujeito. Sabemos que os sujeitos podem

escolher satisfazer seus impulsos naturais, ou seja, direcionar regras ou máximas que atinjam o

objetivo dos desejos, e vemos na vida cotidiana que é o que a maioria das pessoas escolhem.

Por outro lado, “Wille” denota o conceito de vontade guiada pela razão prática, capaz de gerar

leis morais universais e necessárias. Este último conceito se aproxima bastante do que Kuiava

conceitua como “vontade livre”.

Na segunda seção da Fundamentação da Metafísica dos costumes, o autor intenta

derivar o conceito de dever a partir juízo moral vulgar, “não a apalpadelas ou com exemplos”,

mas fazendo uma fazendo uma descrição clara da faculdade prática da razão. Inicia afirmando

a fatalidade da natureza em contraste à liberdade humana pela vontade livre.

Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de

agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele

tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a

vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina

infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser que são conhecidas como

objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a

vontade e a vontade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da

inclinação, reconhece como praticamente necessária, quer dizer, como bom."

(KANT, 2007, p. 47)

A vontade que figura a razão prática tange a dimensão da liberdade humana no seu

sentido mais excelente. Se a vontade do ser humano somente fosse determinada pela razão

prática, sem qualquer possibilidade de determinação por algum móbil empírico, as ações seriam

objetivamente e subjetivamente necessárias. Mas tal não acontece. No ser humano não só a

razão prática determina a vontade, mas sensações, percepções, finalidades, desejos e exemplos

podem determinar decisões e ações. Sendo assim, ações que seriam objetivamente necessárias,

podem não o ser subjetivamente.

2 “is nothing but pratical reason; it is this faculty that makes a rule of reason the efficient cause of an action by

means of which an object can be realized, or the means by which one goes from mere idea to the state of affairs

envisaged in it.” (tradução nossa).

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Ora, se uma ação realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da

inclinação e com ela todo o objeto da vontade, nada mais resta à vontade que

a possa determinar do que a lei objetivamente, e, subjetivamente, o puro

respeito por esta lei prática, e por conseguinte a máxima que manda obedecer

a essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações. (KANT, 2007,

p. 31).

Por isso, Kant vê a necessidade de falar da obrigação da lei moral. As ações podem ser

contingentes subjetivamente, mas devem ser reconhecidas objetivamente pelo agente moral.

Através do reconhecimento subjetivo da lei moral, seu comprometimento pela vontade

determinada pelo princípio racional, está garantido ao sujeito moral que a ação tenha mérito.

Só pode ser considerado como bom aquilo que determina a vontade pela razão. (KANT, 2007,

p. 51). A ação que for apenas subjetivamente necessária, determinada por móbeis sensíveis, é

uma ação agradável; enquanto que se ela for objetivamente necessária, ou seja, determinada

pela faculdade da razão, então será uma ação boa.

2.2.2 Boa Vontade, Dever e Lei Moral

No início da primeira sessão da Fundamentação Kant declara que “Neste mundo, e até

também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação

a não ser uma só coisa: uma boa vontade.” (KANT, 2007, p. 21) A boa vontade é a disposição

para fazer sempre o que é correto. É desejar fazer uma ação moralmente boa. A vontade de

fazer o bem e se esquivar das ações nefastas deve acompanhar todas as ações. Portanto, o caráter

pessoal, aqui empregado como disposição para fazer o bem, é sinônimo de boa vontade na

concepção kantiana. Na página 22 (KANT, 2007) o autor define como “valor íntimo absoluto

da pessoa”. Kant afirma que só a boa vontade pode ser considerada boa pois as virtudes

tradicionais são boas relativamente enquanto que aquela é boa em absoluto. Argumenta que os

talentos do Espírito e as qualidades do temperamento são desejáveis, mas de nada valem se não

estiverem acompanhadas de boas intenções. As qualidades e talentos podem ser de grande valia

tanto para quem os possui, quanto para a felicidade geral. Tanto os talentos do espírito como a

capacidade de bem argumentar ou bem julgar, o temperamento; quanto os talentos da fortuna

como a saúde, a fortuna e o poder, podem ser usados para grandes equívocos e males morais.

Argumenta o autor que esses talentos podem gerar soberba nos indivíduos e desencaminhar

boas iniciativas por propósitos meramente egoístas. A boa vontade, portanto, corrige toda

espécie de iniciativa mascarada pelos nossos impulsos naturais de glórias e honrarias diante de

Page 20: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

18

ações consideradas virtuosas, corrige toda espécie de iniciativa mascarada pelos nossos

impulsos naturais. Esses impulsos, o que Kant chama de limitações e obstáculos subjetivos

(para Allen Wood “subjective limitations and hindrances”, 2008b pg 31), são antes de tudo,

empecilhos à disposição de agir por dever.

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para

alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é em

si mesma e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais

alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de

qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações.

(KANT, 2007, p. 23).

A boa vontade não deve levar em conta as consequências das ações, mas deve ser boa

por si mesma, pelo próprio fato de querer o bem. Nisso constitui seu mérito. “A utilidade ou a

inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este valor.” (KANT, 2007, p. 23). Kant usa uma

metáfora para mostrar isto: Se uma vontade boa convergir com o critério da utilidade, será

meramente acidental, assim como uma joia com um engaste, que pode ser manejada mais

facilmente ou para atrair sobre ela a atenção daqueles que não a conhecem, mas o engaste nada

acrescenta ou minimiza o seu valor. (KANT, 2007, p. 23). A boa vontade tem um valor absoluto

e não deve querer satisfazer outros elementos que não a si mesma em sua avaliação.

Num artigo esclarecedor sobre este conceito, o autor explica que Kant não considera

somente a boa vontade como bem. Kant lista e classifica outros bens, mesmo que estes,

associados a más consequências, poderiam restringir a moralidade de uma ação. A interpretação

que o comentador oferece a esse ponto é de que também a boa vontade pode gerar más

consequências, porém, seu valor enquanto vontade boa não seria diminuído. (WOOD, 2009, p.

2-3).

Só é bom aquilo que é combinado com a boa vontade (como seu instrumento

ou seu resultado tencionado). As outras coisas, no entanto, transformam-se de

boas em más se forem combinadas de modo análogo com a vontade má. [...].

Outras coisas são tidas como boas na medida em que são combinadas com a

boa vontade. Mas a boa vontade, quando combinada como coisas más, não

perde nada sua bondade; pelo contrário, “ela brilharia por si mesma como algo

que tem seu próprio valor em si mesmo” (Ak 4:394). (WOOD, 2009, p. 33)

Na metade da segunda seção da Fundamentação, Kant parece querer ilustrar por que

começa o livro falando da boa vontade, já com muitos conceitos elucidados, dizendo que “É

absolutamente boa a vontade que não é má”

Ao contrário do que afirma muitos interpretes de Kant, o conceito de boa vontade

contém o conceito de dever, e este é um caso especial daquele, ou seja, o conceito de dever é

uma subespécie do conceito de boa vontade. O comentador justifica com uma longa

Page 21: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

19

argumentação que o conceito de boa vontade não é de fato central, quanto muitos outros

comentadores o consideram; por isso, o conceito de boa vontade ficaria sem explicação

completa. Todo caso, Wood interpreta que o conceito de boa vontade é “exercício bem sucedido

dessa capacidade [de adotar princípios subjetivos (máximas), que é capaz de fazer isso à luz de

princípios objetivos ou leis] nos agentes morais.” (WOOD, 2009, p. 39).

Wood, Alisson (1990) e Kuiava concordam na centralidade do conceito de dever na

fundamentação da lei moral. Wood afirma que a boa vontade é apenas retoricamente o ponto

inicial da fundamentação de princípio para a moralidade na obra Fundamentação da Metafísica

dos Costumes, mas a derivação fundamental começa com o conceito de dever. (WOOD, 2009,

p. 9).

Kant distingue ações praticadas por dever, conforme ao dever e contrárias ao dever.

Estas últimas são aquelas que se posicionam diametralmente opostas a um juízo moral deduzido

do imperativo categórico. Esta ação será contrária ao dever tanto do ponto de vista legal ou

externo, quanto do ponto de vista das motivações. As ações conforme ao dever são aquelas cuja

motivação tem uma finalidade estranha ao cumprimento do dever em si mesmo, portanto, é

uma ação que tem uma causalidade meramente externa ou legal. A ação por dever se caracteriza

por agir segundo o dever em si mesmo, tanto externa quanto internamente.

“Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei.” (KANT, 2007, p. 31). O dever

é a necessidade de a lei moral ser cumprida em respeito a ela mesma. Já que a lei moral é uma

necessidade, resta ao agente segui-la pelo único motivo de que ela merece respeito e

cumprimento por ser universalmente reconhecida como lei. A lei moral implica uma obrigação

ao agente moral.

Assim com o conceito de obrigação não se aplica a Deus, pois sua vontade não pode

ser determinada por móbeis sensíveis e, portanto, não é uma vontade apenas subjetivamente

condicionada; também o conceito de dever não se aplica a qualquer ser numênico ou de perfeita

vontade. Nele o dever coincide com o querer. Kant diz que todo imperativo se exprime em um

dever. (KANT, 2007, p. 48). Por conseguinte, “os imperativos são formulas para exprimir a

relação entre as leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser

racional, da vontade humana por exemplo. (KANT, 2007, p. 49). Dessa maneira, o dever faz

parte da moralidade da dos seres racionais possuidores de uma vontade imperfeita, dentre eles,

os seres humanos.

Page 22: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

20

Assegurar a cada um sua própria felicidade poderia, pelo menos indiretamente, ser um

dever moral (KANT, 2007, p. 48), já que a insatisfação pode tornar o agente moral indisposto

para o cumprimento dos deveres ou mesmo tentado a transgredir os deveres. Todos temos a

natural inclinação para a satisfação das inclinações, o que Kant chama de felicidade. Mas o que

a felicidade prescreve não é coerente consigo mesma, como no exemplo do “gotoso” (KANT,

2007, p. 30): deveria renunciar o doente a comer tudo que lhe apetecer? Não lhe causaria

felicidade? Percebe-se neste caso que a satisfação, que pode gerar felicidade ao sujeito, está em

contradição com a felicidade que possa haver na saúde. Kant diz que a felicidade pode ser

considerada em relação a uma ação com mérito moral se, e somente se o dever lhe acompanhar.

Todo caso, Kant afirma na terceira proposição da primeira seção da Fundamentação

que o dever deve ter a lei moral como princípio e nunca como efeito: o que serve à inclinação

(KANT, 2007, p. 31). Kant diretamente combate a ideia de dever por satisfação e a considera

contraditória em si mesma. (KANT, 2004, p. 168). Além disso a ideia não é universalizável:

Não é possível esperar que todos tenham o desejo de perfeição para realizarem com satisfação

o dever. O dever frequentemente constrange o íntimo e os gostos pessoais das pessoas. O ser

humano é uma criatura, ser dependente, portanto não está livre de desejos e inclinações.

(KANT, 2004, p. 168-169). A dignidade humana se realiza com o cumprimento do dever, e a

dignidade do dever é a personalidade:

a liberdade e independência do mecanismo de toda a natureza, considerada

essa liberdade, apesar de tudo, ao mesmo tempo como uma faculdade de um

ser que está submetido a leis puras práticas correlatas, isto é, facultadas pela

sua própria razão. (KANT, 2004, p. 175).

A dignidade humana é afirmada na subjetividade de cada ser humano e sua liberdade

de agir, do que decorre que ele é fim em si mesmo, não pode ser tratado como meio. (KANT,

2004, p. 176). O ser humano não é meramente animal, que tem somente a fenomenalidade. Ele

tem consciência do que faz, busca mérito e sente culpa. Mas a “dignidade de homem justo”,

uma consciência de ter feito por dever, não poderia ser a felicidade, a recompensa merecida.

Mesmo que se não houvesse tal prazer, os seres humanos podem, e devem viver por dever.

(KANT, 2004, p. 178). “A majestade do dever nada tem que ver com o gozo da vida.” (KANT,

2004, p. 179).

Se não é possível esperar o amor à lei, por motivos práticos ou de contradição

sistemática, Kant afirma que o dever não deve ser tributado menos que com o respeito. Não é

que a lei deva esperar tributos amorosos, por não ser efeito no sujeito moral. O respeito ao dever

emerge por princípios. (KANT, 2007, p. 31). “O respeito é um tributo que não podemos negar

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21

ao mérito, queiramos ou não; embora, em todo caso, possamos deixar de manifestá-lo

exteriormente, não podemos todavia, impedir de senti-lo interiormente.” (KANT, 2004, p. 157).

O sentimento moral é sempre um efeito de uma disposição. A causa do cumprimento de uma

obrigação pode ter como causa um princípio, como o dever, mas nunca um sentimento moral.

(KANT, 2004, 157-157).

2.3 A MORALIDADE DEVE SER UM MANDAMENTO DA RAZÃO PURA

Duas forças constituintes dos seres humanos podem determinar sua vontade de acordo

com Kant. As forças são classificadas como de caráter empírico ou racional. Essas forças

determinam nossas escolhas, sejam elas morais ou amorais. Ao agir ou ao confrontarmos com

uma situação que nos pede uma decisão, frequentemente podemos sentir um conflito interno

entre o que queremos fazer e o que devemos fazer. Ora cedemos aos prazeres sensuais da

sensibilidade, ora cedemos à ponderação da razão. Esse conflito interno é uma clara evidência

de que há duas determinações da vontade. Esse conflito interno e individual, comum a qualquer

ser humano particular, é constituinte do próprio ser humano que tem necessidade de decidir.

Por isso, as determinações da vontade podem ser conflitantes e problemáticas, ou mesmo

contraditórias.

Como podem os caráteres empíricos e inteligíveis serem atribuídos à um único

agente? Como pode a mesma ação ser concebida por ambas as causalidades

determinadas pelo estado antecedente do agente e fatores extrínsecos e como

um “novo começo”, o produto da espontaneidade do agente? (ALLISON,

1990, p. 29). 3

A distinção e o conflito frequente entre razão e sensibilidade não foi criada por Kant.

Ele apenas a retomou da tradição. O autor reconhece que é necessário que uma dessas forças

deve prevalecer às expensas da outra para que a ação seja moral. A razão deve determinar a

vontade segundo o critério do imperativo categórico sem qualquer diálogo ou mistura com a

sensibilidade. A felicidade não deve interferir nem sequer um pouco quando se avalia uma ação

moral. Poderia ser esse um critério moral exagerado? Não poderíamos satisfazer as duas forças

ao mesmo tempo, equilibrando-as? Será que a felicidade, a busca e o desejo mais básico da vida

humana, não importa para Kant?

3 How can both an empirical and an intelligible character be ascribed to a single agent? How can one and the same

action be conceived both as causally determined by the antecedent state of the agent and extrinsic factors and as a

“new beginning”, the product of the spontaneity of the agent?. (Tradução nossa).

Page 24: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

22

Em termos de rigor, devemos dizer que a questão de se a felicidade poderia ser um

critério moral mais apropriado para uma abordagem ética, mesmo dentro do sistema kantiano,

poderia ser formulada da seguinte forma: Não poderíamos fundamentar uma ação moral na

universalização da máxima moral da busca pela felicidade? A determinação sensível é, como

já foi dito, uma motivação dos atos humanos, e a felicidade, classificada pelo autor em questão

como um critério moral sensível, é pretexto para as ações morais para um número expressivo

de pessoas, o que a torna um critério relevante para a pesquisa. Parece necessário aprofundar o

estudo sobre a diferença entre essas duas determinações da vontade a fim de entender as causas

e justificativas de Kant para suas respostas sobre o tema. Kant poderia conceber uma

colaboração mútua de ambas fontes, sensível e racional?

Na introdução da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant pergunta se é

realmente necessária uma filosofia moral a ser tratada de forma metódica e racional. Ele

diferencia e localiza a moral dentre os diversos ramos do conhecimento depurada de elementos

empíricos. A questão pressupõe a existência de duas faculdades que podem determinar as

disposições humanas: a razão e a sensibilidade. A questão pode também se desmembrar da

seguinte forma, como propõe Kant: “A natureza da ciência não exige que se distinga sempre

cuidadosamente a parte empírica da parte racional”? (KANT, 2007, p. 14). Ou ainda, podemos

colocar a questão nos moldes de Allison: “Não é a razão a capacidade pragmaticamente

noumenal? E como pode algo de natureza noumenal ter caráter empírico (fenomenal)?” (1990,

p. 31).4 Identificamos quatro ideias ou pressupostos que justificam a opção de Kant pela

segregação entre as duas faculdades de determinação da vontade.

Um primeiro pressuposto pode ser identificado na obra em questão na divisão

sistemática das ciências e do conhecimento. Kant desmembra os diversos campos do

conhecimento separando as ciências que prescindem do empírico daquelas que devem proceder

de forma estritamente racional, levando em conta que o conhecimento universal e necessário é

sempre a priori e, portanto, depende fundamentalmente da ação do entendimento humano e

nunca da volatilidade da sensibilidade. O autor nos leva a crer que a moral, enquanto

conhecimento racional, depende fundamentalmente, assim como qualquer conhecimento, de

um movimento racional. O autor reconhece que mesmo o conhecimento prático e seus

princípios se distinguem essencialmente de tudo o que contém elementos empíricos, e de que a

4 “Is not reason the pradigmatically noumenal capacity, and how can anything noumenal have an empirical (i.e.

phenomenal) characters?” Tradução nossa.

Page 25: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

23

Antropologia, enquanto ciência que aborda o ser humano, por este fato não podem dar critérios,

por si mesmas, para as ações. (KANT, 2007, p. 14). Kant legitima a filosofia moral, mesmo

apartada de qualquer elemento empírico afirmando que “tal filosofia deva existir [...] da ideia

comum do dever e das leis morais”. (KANT, 2007, p. 14).

Um segundo pressuposto que Kant propõe é da necessidade de que uma lei moral deva

servir de fundamento de obrigação de forma universal e necessária para todo agente inteligível.

Kant aqui descarta a possibilidade racional do relativismo moral. Segundo ele, não é possível

racionalmente defender que uma lei moral deva se aplicar para um agente e não para outro. Da

mesma forma, as leis morais não podem ser válidas em determinadas situações e não em outras.

Nas palavras de Kant, “deve-se concordar que uma lei, para possuir valor moral, isto é, para

fundamentar uma obrigação, precisa de implicar em si uma absoluta necessidade”. (KANT,

2007, p. 2).

O terceiro pressuposto que Kant propõe é a afirmação de que toda lei moral deve valer

para todo ser racional, e não deve ser limitada ao ser humano de forma específica. Dado isso,

afirma que se um princípio deve valer para todo ser racional, então todas as leis morais, pelo

fato de serem necessárias e universais, devem ser postas como princípios morais por qualquer

ser racional. Isso porque a racionalidade é uma das causalidades aos quais podem afetar um ser

racional, e que, por possuir a possibilidade de pensar sobre seus atos, essa pode influenciar nas

suas ações. (KANT, 2007, p. 96).

A conclusão que Kant chega é de que a segregação entre conhecimentos empíricos e

racionais fundamenta todos os conceitos propostos por uma filosofia moral. O fato é de que

Kant quer fundamentar princípios de forma a priori, nunca pela experiência. A dualidade “razão

e experiência” permanece em tensão pelo fato da existência humana concreta, porém a

faculdade humana capaz de elevar-se ao sumo bem, na ética, e de conhecer, no exame da

faculdade transcendental, fundamentalmente é a razão. Aplicada a busca do princípio moral, a

segregação será pressuposto da conclusão kantiana de que a lei moral não pode ter qualquer

móbil empírico.

Na terceira sessão da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (p. 98-99) Kant

problematiza essa como a questão central dos pressupostos que coloca. Diz ele que há uma

dificuldade em perceber que devamos separar os interesses empíricos ou sensíveis, dos

imperativos do dever, para que determinada ação seja moral. A dificuldade consiste no círculo

vicioso dos pontos de vista das causas eficientes possíveis das determinações da vontade. Parece

Page 26: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

24

que liberdade é “fazer o que quiser”, ou seja, seguir os ditames da sensibilidade. Determinação

externa significa agir com esforço contra a vontade própria e, muitas vezes parece muito mais

custoso seguir as determinações racionais do que as sensuais. Kant propõe o inverso: liberdade

significa agir por uma determinação racional e o determinismo é ceder às indicações da

sensibilidade.

Consideramo-nos como livres na ordem das causas eficientes, para nos

pensarmos submetidos a leis morais na ordem dos fins, e depois pensarmo-

nos como submetidos a estas leis porque nos atribuímos a liberdade da

vontade; pois liberdade e própria legislação da vontade são ambas autonomia,

[...]. (KANT, 2007, p. 99).

Kant aqui afirma sua tese primordial: a capacidade dos seres racionais de

determinarem sua vontade de acordo com sua faculdade própria, sem renderem-se fatalmente

aos móbeis sensíveis, ao hábito, à experiência empírica, a determinações psicológicas ou a

alguma espécie de exemplo. A capacidade de autodeterminação própria do ser humano vai além

de suas condições físicas, psicológicas ou culturais. Esse ponto de vista, segundo Kant, é

próprio de quem analisa o ser humano da perspectiva de que ele é algo que não se pode conhecer

em si mesmo, não se pode esgotá-lo com explicações objetivadoras ou científicas, no sentido

de requererem um correspondente empírico ou verificável. O fundamento determinante da

vontade é sua própria legislação, ou melhor, está em si mesmo.

A razão é o baluarte das faculdades e das potencialidades humanas. Enquanto que o

mundo sensível afeta causalmente o ser humano, preso às determinações da vida, da sua

situação concreta e limitada, a razão é aquela espontaneidade que transcende a simples

determinação mecânica e previsível. Kant pressupõe que todos os outros seres da natureza, no

seu tratamento pelo ser humano em conhece-las, são não-racionais, e, assim, estão submetidas

somente às determinações sensíveis e, portanto, são afetados somente pela sensibilidade; se são

afetados por outra causalidade, não temos acesso, mas pressupomos que seja assim pelo fato de

sua manifestação. Diz Kant que “o homem encontra realmente em si mesmo uma faculdade

pela qual se distingue de todas as outras coisas, e até de si mesmo, na medida em que ele é

afetado por objetos; essa faculdade é a razão (‘Vernunft’)”. (KANT, 2007, p. 101). E não é

somente dos animais que os seres humanos se distinguem. Deus, como ser que possui uma

vontade perfeita, onde a coincidência entre o dever e o querer acontece plenamente, é também

distinto dele por não sofrer influências da sensibilidade na sua vontade. O ser humano se

encontra entre os mundos sensível e inteligível.

Page 27: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

25

Por tudo isso é que um ser racional deve considerar-se a si mesmo, como

inteligência (portanto não pelo lado das suas forças inferiores), não como

pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao mundo inteligível;

tem por conseguinte dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a si

mesmo e reconhecer leis do uso das suas forças, e portanto de todas as suas

ações: o primeiro, enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis naturais

(heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis

que, independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na

razão. (KANT, 2007, p. 102).

Do ponto de vista da aparência, as ações humanas estão em conformidade a leis da

natureza. O fenômeno da causalidade livre aqui ainda está oculto. Não se pode verificar a

intencionalidade da ação. Esta é apenas uma das formas possíveis de se visar a moralidade, ou

seja, do ponto de vista das simples ações, que supostamente são livres. Mas parece que se as

ações são motivadas por determinações externas ao sujeito, não são livres. Kant aceita essa

premissa. Sua conclusão é de que, mesmo que nenhum agente moral aja efetivamente por uma

intenção de cumprir um mandamento do dever, ou seja, buscado de acordo com um critério

racional, essa possibilidade ainda existe. Afirma Allison que

Isso significa que não devemos falar significativamente que algo aconteça

internamente ou para este agente, ou ainda, de seu ser determinado por

condições prévias. Em resumo, com sua concepção de um caráter inteligível,

temos a fórmula do pensamento de uma atividade que não é condicionada

empiricamente à uma motivação noumenal. (ALLISON, 1990, p. 30). 5

Se a possibilidade de os seres humanos serem guiados por um critério racional de ações

existe, então ela deve ser tomada efetivamente como um critério racional possível, mesmo que

nenhum agente concreto o pratique em determinado tempo, ou mesmo se nunca tenha sido

praticado. Esta é a ideia da diferenciação entre ser e dever ser: o que tem o dever de acontecer

pode ser muito diferente do que acontece ou do que talvez nunca venha a acontecer. As

determinações concretas não podem influenciar na representação de uma lei moral perfeita. Isso

para Kant é crucial, pois diz respeito ao fato da própria ética como ciência normativa existir.

O que acontece segundo as regras da experiência possível é acessível no tempo e no

espaço. A experiência é possível justamente pela existência desses dois a priori da

sensibilidade. Por isso que a esfera do ser, enquanto acessível pela sensibilidade, faz parte do

mundo fenomênico.

5 this means that we could not speak meaningfully of something happening in or to this agent or of its being

determined by antecedent conditions. In short, with this concept of an intelligible character we have the formula

for the thought of the empirically unconditioned activity of a noumenal subject.” (Tradução nossa).

Page 28: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

26

Por outro lado, a esfera do dever-ser não está presa ao mundo fenomênico, mas ao

mundo inteligível, do pensamento em toda sua espontaneidade e plasticidade para pensar as

possibilidades de vir a ser. Por isso o mundo do que pode-ser é infinitamente maior do que o

mundo do ser, adequando-se, segundo Kant, a única condição do respeito à coerência interna

do sistema de pensamento.

O tempo e o espaço são condições a priori da sensibilidade que determinam as ações,

vontades e desejos e determina a possibilidade de interagirmos no mundo concreto e sensível,

ou designado por Kant como mundo fenomênico. O fenômeno do pensamento livre e

espontâneo acontece nele, portanto, mesmo que o ser humano esteja situado, limitado e

comprometido com o mundo fenomênico, faz parte também de um mundo numênico,

espontâneo e ilimitado. Kant afirma que

a Analítica [da Razão Pura Prática] mostra que este fato está inseparavelmente

ligado à consciência da liberdade da vontade, identificando-se, além disso com

ela, do que resulta reconhecer-se a vontade de um ser racional participante do

mundo dos sentidos, bem como das demais causas eficientes, necessariamente

submetido às leis da causalidade, na prática, mas ao mesmo tempo, por outro

lado, como ser em si mesmo, tem consciência de sua existência, a saber,

determinável em uma ordem inteligível das coisas [...]. (KANT, 2004, p. 88).

Na página 200 da segunda crítica, Kant se pergunta se seria possível afirmar a

liberdade sem prejuízo das ações como fenômenos. Noutro fragmento, precisamente quando o

mesmo autor argumenta contra o sensualismo, afirma que a necessidade natural, divergindo da

causalidade da liberdade, se relaciona diretamente somente às coisas existentes e determináveis

no tempo. (KANT, 2004, p. 189). Os sentimentos e desejos pertencem a essa causalidade,

portanto também estão sujeitos ao tempo. O autor conclui o argumento afirmando que estando

esta causalidade determinada por algo anterior, no caso o tempo passado em que os desejos e

sentimentos foram causados, então as ações que tem essas causas não estão sob o poder do

agente, portanto não são livres. Kant formula o seguinte argumento para afirmar a dualidade do

ser humano enquanto ser livre e ao mesmo tempo determinado pela causalidade fenomênica

(KANT, 2004, p. 190-191):

1 – se quiséssemos atribuir liberdade a um ser cuja existência seja determinada no

tempo, não poderíamos fugir à lei da necessidade física, o que seria equivalente a abandonar o

ser ao mais cego acaso.

2 – se não houvesse uma forma diversa para representar a existência dessas coisas

consideradas em si mesmas, seria necessário repelir a liberdade como um conceito quimérico e

impossível.

Page 29: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

27

3 – Não resta outro caminho que não seja atribuir a existência de uma coisa enquanto

determinável no tempo e, por isso, também a causalidade, segundo a lei da necessidade natural,

simplesmente ao fenômeno, ainda, a liberdade a esse mesmo ser, considerado como coisa em

si mesma.

Mais adiante Kant afirma que o sujeito consciente de si como coisa em si considera a

si como uma existência não submetida às condições do tempo, onde não há nada anterior à

determinação de sua vontade. Cabe destacar aqui que Kant reafirma a possibilidade de um

agente racional de uma existência não submetida às condições do tempo através da própria

razão. (KANT, 2004, p. 196).

Ainda tentando responder sobre a possibilidade da liberdade coadunar-se com a

necessidade no ser humano, Kant lança a hipótese de que se é o tempo que nos determina

fenomenologicamente, um ser divino seria a causa da existência desse ser. (2004, p. 201). Kant

pressupõe que pelo atributo da onisuficiência devemos aceitar também que as ações do homem

tem n’Ele também seu fundamento. Por essa tese, todas as ações humanas derivariam de sua

vontade, o que o tornaria mero autômato, portanto não livre. A conclusão de Kant é de que isso

demonstra que Deus não pode ter relação fenomenológica alguma no tempo e no espaço. (2004,

p. 202). O trânsito no mundo espacio-temporal é atributo exclusivo de seres que possuem as

duas naturezas, e que, portanto, Deus estaria numa dimensão externa às ações humanas,

contrariando uma tese espinozista de colocar em uma dimensão numênica o espaço e o tempo.

(2004, p. 203). Kant expõe a premissa-chave do argumento que “Se a existência no tempo é só

um modo de representação sensível dos seres pensantes no mundo e, por conseguinte, não

pertence a estes seres como coisas em si, a criação destes seres é uma criação das coisas em si

mesmas, [...].” (KANT, 2004, p. 204). Isso quer dizer que é contraditório afirmar que Deus é a

causa das ações no mundo sensível, das ações enquanto fenômenos, mesmo sendo causa dos

agentes dos fenômenos. A conclusão de Kant é de que somente o tempo pode afirmar a

liberdade e de que a existência sensível ou fenomenológica não pode fundamentar a atividade

determinante da vontade livre e da liberdade como causalidade livre pela razão prática. (2004,

p. 205).

Sobre a dualidade temporalidade e intemporalidade, pode-se dizer que a felicidade,

como móbil empírico e originário da sensibilidade, sempre é determinável no tempo. Ela

pertence à causalidade como necessidade natural. A felicidade é algo externo ao indivíduo que

é afetado e impelido por ela.

Page 30: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

28

Dadas as premissas:

1- Todos os móbeis empíricos são determinados através da sensibilidade, são

contingentes, variam de acordo com a situação dada ao agente inteligível existente

e surgem da determinação da natureza sobre a dimensão fenomenológica sobre os

agentes morais;

2- A felicidade é um móbil empírico.

Daqui podemos concluir por modus ponens que a felicidade é determinada através da

sensibilidade, é contingente, varia de acordo com a situação dada ao agente inteligível existente

e surge da determinação da natureza sobre a dimensão fenomenológica sobre os agentes morais;

Já mostramos até agora que Kant assume o dualismo da filosofia clássica da dupla

realidade humana cuja existência é constituída pelo conflito entre as dimensões sensíveis e

inteligíveis. Agora precisamos mostrar que o autor assume que a felicidade como um móbil

empírico. A premissa de Kant é de que a felicidade é determinada pela sensibilidade, de que

não há uma regularidade ou uma universalidade sobre o critério para a felicidade, impossível

nem mesmo para um ou qualquer indivíduo, e menos ainda universalizável à humanidade.

Também poderíamos formular inversamente o argumento:

1- A regularidade de um conhecimento racional decorre de sua necessidade e de sua

universalidade .

2- O conhecimento moral não pode servir-se de impulsos empíricos ou fenomenais,

mas tão somente de um movimento racional. (2007, p. 87).

3- Todos as possibilidades de ações morais devem ser racionais e, portanto, as ações

morais devem seguir tal determinação fruto do intelecto que gera leis universais e

necessárias inclusive para as ações morais.

4- A felicidade não é um critério que emerge de um movimento puramente racional,

mas está sujeito às determinações temporais e subjetivas.

5- Portanto, a felicidade não deve ser um critério para a moralidade.

Com um pouco de teimosia, poderíamos admitir a hipótese de uma interpretação dos

textos kantianos de que talvez o autor aceitasse que as fontes da moralidade pudessem ser

heterogêneos. Não seria bom e até necessário para a moralidade e o mérito das ações as

condições subjetivas do agente, seus sentimentos em relação aos atos, as condições materiais

ou talvez a gana de servir de exemplo para outras pessoas?

Page 31: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

29

Kant argumenta que até o mais comum intelecto poderia se convencer de que um

exemplo aconselha, oferece uma ideia para uma ação moralmente boa, mas que somente a lei

pura prática da razão pode ser fundamento de dever para obediência. (2004, p. 184-185).

Mas para o filósofo que aqui deve (como sempre, no conhecimento racional

por meros conceitos, sem operar-se a construção dos mesmos) lutar com maior

dificuldade, porque não pode colocar nenhuma intenção como fundamento

(em seu noumeno), assiste, contudo, a vantagem de poder, quase tanto como

o químico, estabelecer aqui, a todo o tempo, uma experimentação com a razão

prática de cada homem para distinguir o fundamento de determinação moral

(puro) do empírico, podendo acrescentar a vontade empiricamente afetada

(por exemplo a daquele que quisesse de bom grado mentir porque com isso

pode ganhar alguma coisa) a lei moral (como fundamento de determinação).

(2004, p. 185-186).

Seguindo o mesmo fragmento de texto, Kant diferencia os fundamentos de

determinação moral e empírico através da analogia química de uma solução de sal e uma

solução de cal: não é possível coadunarem-se. Da mesma forma, se apresentássemos a um

homem honrado a lei moral decorrente da razão pura prática, jamais ele chegaria a aceitar como

digna a mentira por qualquer justificativa.

No esforço de entender o porquê Kant rechaçaria uma posição compatibilista sobre a

fonte da vontade livre, Allison afirma que Kant insiste num caráter inteligível dela. (1990, p.

34). O comentador mostra isso citando uma passagem de Kant em que ele afirma que através

da mera apercepção estamos conscientes de certas faculdades, a saber, entendimento e razão,

em que a ação não pode ser atribuída à receptividade da sensibilidade. O comentador argumenta

que o ponto principal dessa diferenciação no campo conceitual são os termos percepção e

apercepção. Diz ele que o primeiro se refere ao fato de podermos intuir diretamente um fato do

mundo, algo que está acontecendo. Essa capacidade é também acessível aos animais e depende

de uma determinação espaço-temporal. Diz respeito a uma intuição psicológica de primeira

ordem. Já o peculiar modo de ‘pensar no que estamos fazendo’, a autoconsciência é somente

construída através dessa espontaneidade racional, chama por Kant de apercepção. Por isso a

capacidade de uma instanciação do pensamento em segunda ordem é exclusiva de seres

racionais. (ALLISON, 1990, p. 37).

Outra objeção que Kant se depara é sobre a força que os exemplos morais como

pretexto de muitos para a prática de ações morais. As histórias edificantes são frequentemente

usadas para a educação moral das novas gerações ou recurso discursivo para modificações de

hábitos ou atitudes. O autor reconhece que os exemplos são formas eficientes de afetar os

sentimentos, ou de mobilizar os sentidos para uma ação notadamente boa. (2004, p. 49). Os

Page 32: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

30

exemplos facilmente dispõem alguém a assumir como ação moral, justamente porque afetam

com facilidade os sentimentos morais. Por que não poderíamos usar como fundamento moral

um exemplo edificante ou uma ação particular como critério?

Os exemplos servem para que os agentes morais imitem ações. Kant diz de forma

taxativa que eles não são de forma alguma auxiliadores à moralidade: “Não se poderia também

prestar pior serviço à moralidade do que querer extraí-la de exemplos. ” (2007, p. 42). Isso

decorre da caracterização do conceito de moralidade que Kant assume na qual cada exemplo

deveria primeiro ser submetido ao princípio universal para depois servir de modelo, mas de

forma alguma o conceito de moralidade pode ser derivado de um exemplo. A imitação de

alguma ação moral ou um exemplo moralizante não pode servir para determinar ações. Noutro

texto (2004, p. 292-293) Kant explica que os exemplos e comparações podem não ser

emblemáticos ou representativos, mesmo que em situações semelhantes. Ações semelhantes

podem ter valores morais diferentes, dependendo dos contextos e principalmente das intenções

que as fundam. Noutro fragmento afirma que é absurdo usar exemplos para fundamentar ações

morais.

[...] parece absurdo (widersinnisch) querer encontrar no mundo sensível um

caso que, devendo participar sempre do mundo sensível como caso, só

debaixo da lei da natureza permita, todavia, aplicar-lhe uma lei da liberdade,

e ao qual possa ser aplicada a ideia supra-sensível do bem moral, que deve

surgir no in concreto. (2004, p. 139).

Por outro lado, o autor em questão não nega, e até afirma constantemente, que as

causas eficientes de determinação da vontade podem ser sensíveis. Afirma que esta

determinação afeta com mais facilidade os agentes morais. Parece que naturalmente as pessoas

são guiadas por motivos egoístas e interesseiros, e até mesmo em nome da felicidade. De modo

inegável a experiência cotidiana mostra que os critérios morais são variados. Porém, somente

será moral a ação que toma como critério moral o imperativo categórico. O fundamento não

pode ser heterogêneo, mas tão somente noumênico.

Essas referências são insuficientes e não esgotam a relação entre razão e sensibilidade

no sistema kantiano, mas ilustram previamente o fato de que para Kant a vontade pode ser

determinada tanto por móbeis sensíveis, quanto pela determinação racional. Porém, a vontade

livre é uma determinação exclusivamente racional, sem qualquer intenção ou motivação

externa.

Page 33: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

31

3 DA VONTADE VIRTUOSA E DO MÉRITO À FELICIDADE

A discussão sobre a possibilidade da correlação entre felicidade e o cumprimento do

dever pelos seres humanos é central e necessária a nossa proposta de trabalho. Parece que a

felicidade é o conceito antagônico ao dever na filosofia kantiana e, por isso, o autor discute

continuamente com ele, argumentando sobre como este não pode ser um critério moral. Neste

capítulo conceituaremos a felicidade no contexto da teoria kantiana, analisaremos os conceitos

relacionados com ele, dando especial atenção ao tema da dignidade à felicidade.

Propõe-se inicialmente uma análise sobre a relação entre a boa vontade e a dignidade

de ser feliz. A investigação sobre a finalidade do ser humano e uma possível coadunação entre

a dignidade de ser feliz, a dignidade humana e o mundo ideal na ideia de sumo bem, podem

indicar caminhos para a descoberta de um critério justo e adequado para as ações humanas.

Além disso, a investigação será útil para esclarecer a função da felicidade e seu devido lugar

como motivação moral no contexto da ética kantiana.

3.1 DA FINALIDADE DO SER HUMANO E DA DIGNIDADE DE SER FELIZ

No prefácio à Fundamentação da Metafísica dos Costumes, o autor distingue os

campos de estudo conforme a natureza das coisas. Afirma ele que assim como a física constrói

seu edifício conceitual e explicativo sobre evidências empíricas, deve haver um aparato

epistemológico e formal subjacente donde se alicerça o edifício constituído; do mesmo modo a

antropologia prática pode estudar empiricamente e conceitualmente o fato de que o ser humano

emite julgamentos morais, fundamentados ou não sobre critérios válidos ou não, o fato das

culturas, juízos e personalidades morais; mas deve haver uma disciplina a priori que busque os

fundamentos e critérios a priori do agir moral.

A partir do caráter a priori da vontade, Kant parece perguntar se uma ação guiada pela

boa vontade tornaria a pessoa feliz. Assim como na natureza tudo tem uma função e uma

finalidade, a boa vontade contribui para que o ser humano seja mais feliz? E a felicidade é a

finalidade do ser humano e seu mais alto valor? E a razão enquanto determinação da vontade,

como realiza as intenções da natureza?

Em primeiro lugar, Kant considera a felicidade como conservação, bem-estar e o gozo

da vida. (KANT, 2007, p. 24). Em uma nota o tradutor diz que “Kant concebe a felicidade em

Page 34: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

32

termos de satisfação de desejos ou preferências” (KANT, 2007, p. 30). Seguramente podemos

dizer que os seres vivos não racionais alcançam satisfatoriamente a felicidade, nestes termos,

se as condições forem favoráveis, apenas pelo instinto que a natureza dispôs. O ser humano

também pode viver guiado pelos instintos naturais e as inclinações vulgares e, argumenta Kant,

devemos admitir que uma razão cultivada, se fizer um balanço das vantagens e desvantagens

que tira com o uso da razão, verá que mais se sobrecarrega de fadigas que de felicidade. (KANT,

2007, p. 25).

Em segundo lugar, a razão é uma faculdade que tem relações causais sobre a vontade.

Kant a chama de razão prática. Ele argumenta que se a felicidade fosse a finalidade do ser

humano, deixaria a natureza que a razão tivesse um uso prático, onde parece ser empecilho e

estorvo para o alcance da felicidade? Seria a natureza tão aleatória ou contingente em deixar

florescer a faculdade racional no ser humano, sendo que guia para a infelicidade e o desprazer?

Esta faculdade não teria utilidade ou função para o desenvolvimento das suas capacidades,

portanto, dispensável. Kant responde que não é a felicidade a intenção da natureza para o ser

humano, mas “uma outra e mais digna intenção da existência, à qual, e não à felicidade, a razão

muito especialmente se destina […]”. (KANT, 2007, p. 25).

[…] e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como

faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro

destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para

outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era

absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com

acerto na repartição das suas faculdades e talentos.

A felicidade, no significado adequado, não deve ser a finalidade da existência humana.

A razão é que deverá guiar corretamente a vontade, produzindo uma vontade boa em si mesma.

A felicidade, segundo Kant, tem papel secundário e meramente acidental: a boa vontade deve

ser a condição de tudo, inclusive da aspiração à felicidade.

E neste caso é fácil de conciliar com a sabedoria da natureza o fato de

observarmos que a cultura da razão, que é necessária para a primeira e

incondicional intenção, de muitas maneiras restringe, pelo menos nesta vida,

a consecução da segunda que é sempre condicionada, quer dizer da felicidade,

e pode mesmo reduzi-la a menos de nada, sem que com isto a natureza falte à

sua finalidade, [...]. (KANT, 2007, p. 26).

A felicidade é secundária do ponto de vista transcendental, das condições de

possibilidade do conhecimento e da fundamentação moral, porém é necessária na vida dos

agentes morais que agem por dever. Kant reconhece que “todos os homens têm já por si mesmos

a mais forte e íntima inclinação para a felicidade, porque é exatamente nesta ideia que se reúnem

Page 35: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

33

numa soma todas as inclinações.” (2007, p. 29). A “felicidade é um dever (pelo menos

indiretamente)” no sentido de que o cumprimento do dever deve estar acompanhada de uma

satisfação saudável que caso contrário, poderia tornar mais atrativo aos agentes a transgressão

dos deveres. Mas deve-se destacar que a felicidade não garante o valor moral de qualquer ação,

nem mesmo a justifica. (KANT, 2007, p. 29-30).

Por outro lado, Kant afirma a felicidade enquanto finalidade de todo ser racional.

(KANT, 2007, p. 51-52). No que concerne o dever meritório para com outrem, o fim natural

que todos os homens têm é a sua própria felicidade. Ser feliz é a destinação dos seres pensantes.

Kant parece ter retomado como verdadeira e associado a proposição da teologia de que Deus é

independente de tudo e portanto resta em felicidade perene e absoluta em sua independência

absoluta de ser necessário. Os seres sensíveis, e dentre eles os seres humanos, podem

experienciar a felicidade apenas de forma imperfeita, como que por espasmos momentâneos. A

sensibilidade, mais uma vez, ao mesmo tempo que turva a finalidade da felicidade, se abre como

possibilidade de sentido, tanto como sentido da vida, quanto como possibilidade do mérito

moral.

Estes fragmentos em questão, se analisados isoladamente poderiam dar margem a

interpretação de que a felicidade é a finalidade das ações morais. Para uma análise mais

abrangente parece ponderado reafirmar a interpretação tradicional e resgatar a distinção entre

ser e dever-ser. Parece que o autor afirma que a finalidade da ações humanas é a felicidade

enquanto reunião dos muitos prazeres e satisfações sensíveis e que esse seria um papel essencial

às ações morais, mas devemos interpretar que fenomenologicamente, no campo do ser, isso

acontece porém, não devem acontecer de forma essencial e como finalidade de garantia de

moralidade da ação. Em outros termos, devemos apresentar junto a estes fragmentos passagens

que reafirmam a interpretação que a felicidade não deve ser a finalidade ou o critério de decisão

à moralidade, mesmo que isso frequentemente aconteça na prática da maioria dos seres

humanos.

Mesmo com esta observação, poderíamos dizer que há uma função, mesmo que

secundária para a felicidade no cumprimento dos deveres morais? Poderia a felicidade, mesmo

que não sendo o critério supremo e derradeiro, apoiar leis derivadas do critério do imperativo

categórico? Na página 81 da segunda crítica (2004) temos a afirmação que ilustra um possível

colaboração da felicidade ao imperativo categórico:

Mais sutil, embora identicamente falso, é o que pretendem aqueles que

admitem um certo sentido moral, particular, o qual, e não a razão, determinaria

Page 36: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

34

a lei mora; assim, pois, a consciência de virtudes estaria imediatamente

conjugada com o contentamento e o prazer, mas a consciência do vício se

imiscuiria à inquietação do ânimo à dor; desse modo, ambos reduzem tudo à

aspiração da própria felicidade. Sem repetir o que eu disse acima, quero

observar apenas a ilusão que aqui tem lugar. Para apresentar-se o viciado

como atormentado com intranquilidade de ânimo pela consciência de suas

faltas, devemos, de antemão, representá-lo, no fundamento principal de seu

caráter, pelo menos até certo ponto, como já moralmente bom, a exemplo

daquele que se felicita com a consciência por ações conformes ao dever, que

deve ser representado também de antemão como virtuoso. Dessa forma, o

conceito da moralidade e do dever deveria preceder a toda referência a esse

contentamento, não podendo de modo algum dele ser derivado. Devemos,

ainda, apreciar com antecedência a importância do que chamamos dever, a

autoridade da lei moral e o valor imediato que a observância da mesma faculta

à pessoa diante dos seus próprios olhos, para sentir aquela satisfação na

consciência que tem de sua conformidade com a lei, e a mais amargosa

imputação quando se sente como infrator da mesma. Como se vê, esse

contentamento ou essa intranquilidade de ânimo não é dado sentir antes do

conhecimento da obrigação, não podendo esta resultar como fundamento em

tal caso. Deve o indivíduo ser já, pelo menos às meias, um homem honrado

para poder animar uma representação daquelas sensações.

Nesta longa passagem, Kant deixa claríssimo sua total rejeição a aceitar como critério

de moralidade a felicidade compreendida como contentamento e prazer. O sentimento de dor e

de prazer é uma subespécie de felicidade. Dado que a felicidade como contentamento do prazer

e do ânimo, produzido fundamentalmente pela faculdade da sensibilidade, é um princípio

empírico, heterônomo (KANT, 2004, p. 130; 2004, p. 37), um sentimento (KANT, 2004, p.

129) e faz parte do mundo fenomênico, um princípio derivado do sentimento da dor e do prazer

não pode ser um princípio para a moralidade.

Isso reafirma a interpretação universalista em oposição a uma defesa do critério

utilitário no espectro das teorias éticas, mas não desqualifica em todo o conceito de felicidade.

Por um lado, diante de um dilema ético, o fundamento último da decisão seguiria o juízo

derivado do critério do dever. Por outro lado, Kant considera ser, com a ressalva de “até certo

ponto” moralmente útil o remorso, a sensação de desprazer decorrente da consciência de agir

em contradição com o dever ou o prazer em agir em conformidade com o dever. Poderíamos

considerar a sensação de prazer útil ao cumprimento dos valores morais?

Kant responde essa questão ao mesmo tempo que critica três teorias: o misticismo

religioso, o epicurismo e o estoicismo. Por agora analisaremos a primeira. Esta posição afirma

que a moralidade está na máxima do amor à lei, na dedicação da vontade sensível ao

cumprimento do dever. O autor argumenta que não podemos esperar que os sujeitos morais

tenham amor ou aquela disposição para colocar a lei moral como objeto da sensibilidade, dado

Page 37: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

35

que a lei, sendo abstrata, deve ser objeto apenas da faculdade racional. A ideia de dever é

totalmente concebível, diferentemente de dever por satisfação, dado que esta tem por fonte um

objeto dos sentidos. Uma criatura é dependente e nunca pode estar inteiramente livre de desejos

e inclinações, os quais assentando em causas físicas, não concordam por si mesmas com a lei

moral, que tem uma fonte totalmente diversa. É necessário então, que tenha sempre que fundir

a intenção de suas máximas em constrangimento moral, não em elevação espontânea, mas no

respeito que a observância da lei requer, ou seja, na boa vontade em agir em conformidade com

o dever. (KANT, 2004, p. 168). Não é possível esperar que todos tenham esse desejo ou essa

disposição moral. Essa disposição moral “é inexequível para toda criatura”. (KANT, 2004, p.

169).

Para um homem de bem, um homem justo, por mais atribulado que seja, seria um

conforto à consciência ter permanecido na sua dignidade de homem justo, honrando desse modo

na sua pessoa, a humanidade. No entanto, este consolo não é felicidade. Este homem continua

vivendo ainda que seja só por dever, não porque encontre nisso qualquer prazer. (KANT, 2004,

p. 177). A majestade do dever nada tem que ver com o gozo da vida. (KANT, 2004, p. 179).

Pouco adiante, Kant parece ser um tanto tolerante com uma participação da felicidade

nas ações morais. Afirma ele que deve haver uma distinção entre os princípios da felicidade e

da moralidade, mas não uma oposição entre ambos. (KANT, 2004, p. 186-188). Zelar pela

própria felicidade pode em alguns casos até ser um mandamento do dever, já que à ela

pertencem os meios para o cumprimento do dever (habilidades, saúde e riqueza) e porque sua

carência poderia levar à tentação da infração do dever, como é no caso da pobreza. “A razão

pura prática não consente que se deva, por sua parte, renunciar à pretensão de ser felizes,

exigindo porém que, apenas entre em jogo o dever, não se tenha mais qualquer contemplação

para com a felicidade.” (KANT, 2004, p. 186-187). A moralidade não monopoliza a

contemplação de si, mas permite que a felicidade seja cultivada como virtude e muleta à

moralidade. Mas o parágrafo não termina sem a ressalva do autor: “Fomentar apenas a

felicidade não constitui nunca um dever imediato e, muito menos, um princípio de todo o

dever.” (KANT, 2004, p. 187). O que segue sendo dito tira completamente a esperança de

encontrar em Kant a possibilidade de fundamentar a vontade sobre um princípio sensível:

Pois bem, embora todos os fundamentos de determinação da vontade, com

exceção da única lei pura prática da razão (a moral) são em conjunto

empíricos, pertencendo, como tais, ao princípio da felicidade; devem,

portanto, todos eles, ser separados do princípio moral supremo e nunca ser

Page 38: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

36

incorporados a ele como condição, porque isso suprimiria todo o valor moral

[...]. (KANT, 2004, p. 187).

Se com este excerto Kant nos tira a possibilidade de pensar uma vontade determinada

por qualquer princípio sensível ou por qualquer princípio consequencialista, poderíamos pensar

que Kant admitiria alguma participação, mesmo que coadjuvante da felicidade? Não

deveríamos pensar que de alguma forma, em um mundo perfeito, o sumo bem, aqueles que são

justos não devem ser também felizes? Sob o aspecto da centralidade da felicidade como sumo

bem é que o autor se destaca da tradição das teorias éticas iniciada sistematicamente por

Aristóteles. Enquanto que a tradição primeiro se acercava de conceitos e teorias sobre o bem

para depois derivar a lei moral, Kant opera o “giro copernicano na ética”, invertendo essa lógica.

(NODARI, 2010, p. 62). A lei moral não pode ser derivada ou condicionada, pois qualquer

intervenção externa incluiria, mesmo que de forma ínfima, alguma outra variável à equação,

determinando o princípio. Para entendermos melhor, Kant traz a discriminação entre os

significados do conceito de “sumo”, podendo significar supremo, ou critério de decisão: aquele

critério de incondicionalidade, ou seja, não está condicionado a nenhum outro. Um outro

significado é o de perfeição, acabamento. A virtude (dignidade de ser feliz) é a condição de

tudo o que nos possa ser apenas apetecível, de toda nossa busca pela felicidade; mas nem por

isso ela é o bem mais completo e acabado como objeto da faculdade de desejar nos seres

racionais finitos, pois exige felicidade. Porquanto, é necessário convir que aspirar a felicidade,

ser digno dela e, contudo, não participar da mesma é coisa que não pode coexistir com o perfeito

desejo de um ser racional que tivesse ao mesmo tempo todo o poder, se imaginarmos um ser

semelhante, ainda que seja a simples título de ensaio. O sumo bem de um mundo possível é que

a pessoa que é mais moral deve receber a maior felicidade. Mas a virtude (dignidade de ser

livre) é sempre superior à felicidade porque a felicidade apresenta alguma coisa que é agradável

àquele que possui, mas sem ser por sim mesma absolutamente boa sob todos os aspectos, dado

que supõe a conduta moral como condição.

Porquanto é necessário convir que aspirar a felicidade, ser digno dela e,

contudo não participar da mesma é coisa que não pode coexistir com o perfeito

desejo de um ser racional que tivesse ao mesmo tempo todo poder, se

imaginarmos um ser semelhante, ainda que seja a simples título de ensaio.

Pois bem: quando a virtude a felicidade constituem conjuntamente a posse do

sumo bem em uma pessoa e enquanto, além disso, estando a felicidade

repartida exatamente, em proporção idêntica, à moralidade (como valor da

pessoa e da sua dignidade de ser feliz), constituem ambas o sumo bem de um

mundo possível, isto significa o mais completo e acabado bem; neste, todavia,

a virtude é sempre, como condição, o bem mais elevado, porque não tem sobre

si nenhuma outra coisa que é agradável para aquele que possui, mas sem ser

Page 39: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

37

por si mesma absolutamente boa sob todos os aspectos, dado que supõe,

constantemente, de acordo com a lei, a conduta moral como condição.

(KANT, 2004, p. 222).

Aquele que é virtuoso merece ser feliz, mas não necessariamente o será. A justificativa

para tal dada pelo autor se assemelha às categorias aristotélicas de necessidade e contingência:

A virtude é um ‘em si’, dado que não depende de nada para ser boa, enquanto que a felicidade

é contingente, visto que ‘depende de outrem para ser’. Mas Kant não deixa de reconhecer que,

no sumo bem ou mundo ideal, a relação bicondicional seria o bem mais acabado, mesmo que

não necessária por virtude de moralidade.

A ligação entre a virtude e a felicidade pode ser uma relação analítica (lógica), ou seja,

uma ligação segundo a lei da identidade; ou uma ligação sintética (ligação real), ou seja, uma

ligação segundo a lei da causalidade. (KANT, 2004, p. 223). Segundo a lei da identidade o

esforço de ser virtuoso e a racional procura da felicidade são duas ações idênticas entre si. Por

outro lado, sob o ponto de vista da lei da causalidade a virtude produz a felicidade como coisa

distinta da consciência daquela, da mesma forma que a causa produz o efeito. Os epicureos e

os estoicos concebiam que a virtude e a felicidade decorriam diretamente do sumo bem.

Portanto, concordavam sob o ponto de vista da unidade do princípio segundo a regra da

identidade, mesmo que discordassem no que diz respeito à escolha do conceito fundamental

(enquanto que os epicureos imaginavam que a virtude consistia em possuir a consciência da

máxima que conduz à felicidade, os estoicos defendiam que a felicidade consistia em ter

consciência da virtude). (KANT, 2004, p. 223). O autor lamenta que esses homens tão

perspicazes tenham identificado conceitos sumamente heterogêneos como a felicidade e a

virtude. (KANT, 2004, p. 224).

Desse modo, a partir destes elementos não podemos afirmar que o sumo bem, mesmo

que objeto de uma razão pura, possa ser fundamento de determinação de uma vontade pura.

Kant explicitamente o descarta no capítulo referente à dialética da razão pura prática. (KANT,

2004, p. 219-220). Além disso, reafirma que o único motivo da vontade pura é a lei moral e

acusa o princípio fundado na ideia de sumo bem como heterônomo.

Está já fora de questão se há relação fenomenal entre a virtude e a felicidade, porém

se deveria analisar se pelo menos no sumo bem, haveria uma ligação de mérito àquele que é

virtuoso, já que são elementos que constituem o sumo bem. (KANT, 2004, p. 226). Na

antinomia da razão prática encontramos a ideia de que em um mundo ideal, no sumo bem, deve-

se conceber a virtude e a felicidade necessariamente ligados. Aquele que cumpre as leis morais,

Page 40: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

38

através da determinação da vontade pelas máximas racionais, deve ser necessariamente

recompensado com a felicidade. Mas essa relação não é analítica, mas sintética (2004, p. 223-

224), ou seja, devemos conceber essa ligação como causal. Duas são as possibilidades: ou é o

desejo de felicidade que é a causa da máxima da virtude (dignidade de ser feliz), ou é a máxima

da virtude a causa eficiente da felicidade. A primeira possibilidade é impossível, pois uma

máxima que se fundamenta no desejo não podem ser morais nem fundamentar virtude alguma.

A segunda possibilidade também é impossível, dado que toda relação prática de ação no mundo

fenomênico não é regida pelas intenções morais, mas pelas leis da natureza. O ser humano, ser

que tem dupla dimensão, não pode subverter as leis da natureza por ser moral. O mundo não

pode oferecer um “conjugamento necessário e suficiente para o supremo bem da felicidade com

a virtude, mediante a maior observância das leis morais.” (KANT, 2004, p. 227). Com isso, não

nos é permitido inferir qualquer relação condicional ou bicondicional entre a virtude e a

felicidade.

Conclui Kant que a afirmação de que a busca da felicidade produz uma intenção

virtuosa é absolutamente falsa, o que não acontece em absoluto com a afirmação de que a

intenção virtuosa proporcione necessariamente a felicidade. Só é falsa enquanto a consideramos

como forma da causalidade no mundo sensível e é falsa se admitimos a existência nela do ser

racional como o único modo de existência. (KANT, 2004, p. 228).

Assim como na antinomia da razão especulativa Kant demonstrou que a antinomia

entre a liberdade e a causalidade é apenas aparente, pois ocorre apenas como fenômeno;

enquanto que do ponto de vista do próprio sujeito agente ele pode se reconhecer como

impulsionado por uma causalidade livre, ou seja, independentemente de qualquer lei natural.

Da mesma forma ocorre na atual antinomia da razão pura prática. (KANT, 2004, p. 229). A

afirmação de que a aspiração à felicidade causa a intenção virtuosa é absolutamente falsa, mas

não de todo o é a afirmação de que a intenção virtuosa causa a felicidade. O autor argumenta

que do ponto de vista fenomenológico podemos admitir que isso acontece, mas não do ponto

de vista numênico.

Como pensamos nossa existência enquanto noumenos, possuímos na lei moral

um fundamento puramente intelectual de determinação da causalidade dos

atos, não é impossível que a moralidade da disposição de ânimo tenha uma

conexão, pelo menos mediata e que seria necessário, como causa, uni-la à

felicidade como efeito no mundo sensível. (KANT, 2004, p. 229-230).

A felicidade que o autor está se referindo é aquela satisfação que a busca do bem ou correto

causa ao agente. Aquele que aspira a virtude pode autorizar-se a ter a consciência tranquila e,

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39

portanto, ser feliz. O mérito de ser feliz decorre da consciência de “dever cumprido”. Conclui

Kant que “o sumo bem é a finalidade suprema e necessária de uma vontade moralmente

determinada, constituindo o verdadeiro objeto dessa vontade”. (KANT, 2004, p. 230). Este

“sumo bem” deve ser entendido como o mundo ideal onde é razoável supor uma conexão causal

entre a virtude e a felicidade.

Kant constata que na história da filosofia a virtude e a felicidade estiveram unidas nos

principais sistemas éticos, como o epicurismo e o estoicismo, onde a felicidade era a expressão

e objetivos máximos da virtude. Entretanto, Epicuro falhou na suposição de que a disposição

de ânimo virtuosa na pessoa daria a ele o motor para a virtude (o pressuposto é de que não pode

o indivíduo honrado ser feliz sem antes ter a consciência de sua retidão). Mas duas coisas

diferentes são a vontade de ser virtuoso e ser virtuoso. É óbvio que o homem, se for virtuoso,

não viverá feliz sem ser consciente de que as suas ações são honestas. “Para torna-lo virtuoso

poder-se-ia recomendar-lhe a paz da alma como recompensa merecida por ser consciente da

honestidade, virtude esta acerca da qual ainda não tem qualquer noção?”. (KANT, 2004, p.

232). Argumenta o autor que

Não devemos confundir o que fazemos com o que sentimos. A intenção moral

está necessariamente e imediatamente ligada pela lei à consciência da

determinação da vontade: O prazer de si mesmo não é o verdadeiro motivo

determinante da ação, pois o que determina a vontade e mediante a razão, o

sentimento do prazer, é uma determinação pura e não estética, da faculdade

de desejar. O sentimento intelectual seria uma contradição. (KANT, 2004, p.

234).

Kant por um lado incentiva a “cultivarmos o melhor possível o efeito de um sentimento

particular sensível, o efeito da razão sobre esse sentimento”. Por outro lembra que devemos

cuidar para não desfigurar o motor da moralidade que é a lei em si.

O respeito, e não o prazer ou o gozo da felicidade é alguma coisa para a qual

não se torna possível sentimento algum precedente, colocado na base da razão

(pois esse sentimento seria sempre estético e patológico) e, a consciência da

imediata compulsão da vontade pela lei é apenas análoga ao sentimento de

prazer, [...] só com esse modo de representação podemos conseguir o que

procuramos, isto é, que não só sejam conformes com o dever (como

consequência de sentimentos agradáveis) como, também, ocorram por dever,

coisa que tem que ser o fim verdadeiro de toda a cultura moral. (KANT, 2004,

p. 234)

O contentamento de si mesmo é a satisfação análoga à felicidade que acompanha a

consciência da virtude. Na sua significação apropriada designa só uma satisfação negativa em

sua existência, que nos faculta a consciência de não necessitar de nada. É independência das

inclinações, pelo menos como causa determinante do nosso desejo. É uma satisfação intelectual.

Page 42: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

40

A satisfação das inclinações, por mais refinada que seja das imagens, nunca pode ser correlata

ao que ela representa. As inclinações são uma constante carga para um ser racional, se não pode

evita-las, deseja livrar-se delas. Mesmo uma inclinação que está em conformidade com as

máximas morais, e portanto facilitar o cumprimento delas, não pode produzir nenhuma dessas

máximas. O contrário também não pode ser verdadeiro já que se tornaria mero legalismo. A

razão deve ser tutora das inclinações, deve zelar pelo seu próprio interesse. Um sentimento de

compaixão ou de simpatia ao dever somente causaria confusão ao agente moral que deve, antes

de tudo, ser um bom produtor de máximas morais em conformidade com a lei moral pela

reflexão e pelo estudo dessas máximas de acordo com a legislação da razão.

A solução da dedução da antinomia da razão pura prática está nos princípios práticos,

na relação natural e necessária entre a consciência da moralidade e a esperança de uma

felicidade que lhe seja proporcionada em consequência daquela, pode ser julgada ao menos

possível. Pelo contrário, os princípios da procura da felicidade não podem produzir moralidade.

A moralidade é o sumo bem, sendo a felicidade, sendo um segundo elemento do sumo bem, é

a consequência moralmente condicionada, mas não necessária de primeira. (KANT, 2004, p.

237-238).

O conceito de sumo bem está na doutrina do cristianismo e a felicidade escatológica

cristã. O valor de uma disposição sentimental à lei moral é infinito, mas a lei moral por si só

não promete felicidade alguma. O princípio cristão conduz à moralidade kantiana. O fim último

da razão prática conduz à religião. (KANT, 2004, p. 251-252). Por isso a lei moral não é

também propriamente a doutrina que nos ensina como nos tornarmos felizes, mas sim, como

devemos chegar a ser dignos da felicidade. (KANT, 2004, p. 254). Vemos apresentar-se a

esperança de ser um dia participantes da felicidade na medida em que tratamos de não ser

indignos dela. Alguém é digno da posse de uma coisa ou de um estado quando o fato concorda

com o sumo bem. Toda dignidade depende da conduta moral. (KANT, 2004, p. 255). Nunca

deve se tratar a moral em si como doutrina da felicidade, pois ela só tem relação suficiente e

não necessária, ou seja, não é um meio de adquiri-la. A garantia dessa dignidade seria um

criador sábio (KANT, 2004, p. 256). “É que nada honra tanto a Deus do que tê-lo como o que

haja de mais apreciável no mundo o respeito pelo seu mandamento, a observância do santo

dever que nos impõe a sua lei, quando vem acrescentar a sua magnifica disposição de coroar

tão formosa ordem com felicidade que a ela se coadune”. (KANT, 2004, p. 256).

Page 43: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

41

3.2 DA POSSIBILIDADE DA FELICIDADE COMO DETERMINAÇÃO DA VONTADE

SENSÍVEL SER PRINCÍPIO PRÁTICO

Na Típica do Juízo Puro Prático, subcapítulo do segundo capítulo do primeiro livro da

segunda crítica, Kant parece confrontar três “tipos” de juízos morais. Dois são extremos que o

autor parece discordar e o outro tem como referente a lei moral. O primeiro diz respeito ao fato

de que a razão, no seu movimento de pensamento e imaginação possa formular máximas

impossíveis de serem praticadas. Kant aponta para o fato de que as máximas de ação precisam

ser confrontadas com a forma de uma lei natural em geral, ou seja, precisam ser praticáveis in

concreto. O autor chama isso de misticismo da razão prática. Esse tipo só leva em conta

elementos transcendentais de ações, ações que devem ser praticadas, porém nunca seriam

realizadas por um ser concreto, devido ao fato da condição da existência humana. Um segundo

tipo, o qual Kant concorda, se refere aos juízos e máximas que são permitidos usar na natureza

sensível, mas que são de uma natureza inteligível, que estão em conformidade com os critérios

da necessidade e da universalidade. O critério do dever está aqui bem orientando as práticas

possíveis dos seres humanos. Os terceiros, são os tipos de juízos os quais são determinados pela

natureza sensível na vontade. Estes são chamados de empirismo da razão prática.

Qual dos dois extremos é mais perigoso para a concretização do dever, e, portanto,

deve merecer mais nossa atenção? Kant diz que

[...] preservar-se contra o empirismo da razão prática é muito mais importante

e digno de recomendação especial, porque o misticismo também se imiscui na

sublime pureza da lei moral, não sendo, além disso, adequado com precisão

natural ao modo de pensar comum distender a imaginação própria até onde

residem as intuições suprassensíveis; por isso, neste setor, o perigo não é tão

generalizado. Por outro lado, como o empirismo extirpa a raiz da moralidade

nas intenções (nas quais e não apenas nas ações reside o alto valor que a

humanidade pode e deve adquirir mediante a moral), substituindo o dever, por

coisa bem distinta, ou seja, pelo interesse empírico, com isso as inclinações

em geral entram em si; [...]. (KANT, 2004, p. 145)

A primeira parte do terceiro capítulo do primeiro livro da segunda crítica trata especificamente

dos motivos puros e como determina a vontade na moralidade, e como eles fazem frente aos

móbeis empíricos.

Kant elenca alguns móbeis empíricos que são comumente entendidos como fontes de

moralidade de ações. O autor divide esses móbeis em dois grupos fundamentais, a saber, móbeis

subjetivos e objetivos. O grupo dos móbeis objetivos, fundamentados em conceitos da razão,

se subdividem em outros dois: interiores ou “da perfeição” (tais como os modelos éticos

Page 44: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

42

tradicionais de Wolff e os estoicos), e os exteriores ou “da vontade divina” (exemplificados na

tradição no modelo de Cruisius e dos teólogos moralistas). O primeiro grupo, composto

inteiramente por princípios extraídos por via empírica, se subdivide em outros dois: exteriores

e interiores. No que toca aos princípios subjetivos exteriores, há ainda duas subdivisões, a saber,

advindos da educação (como defende Montaigne) e da constituição civil (como por exemplo a

fundamentação moral dada por Mandeville). Ao que toca aos princípios subjetivos interiores

estão aqueles do sentimento físico (como pensou Epicuro) e os do sentimento moral (segundo

Hatcheson). (KANT, 2004, 83-85).

Sobre os princípios extraídos empiricamente, Kant afirma que, dado que são materiais,

a crítica da moralidade empreendida por ele justificaria sua ilegitimidade como princípios

morais. Os princípios morais objetivos, porém, mereceram alguma justificativa específica. Um

princípio moral fundado na perfeição é entendido, no seu significado prático, “a conveniência

ou a suficiência de uma coisa para toda a classe de fins. ” No ser humano isso é determinado

pelo talento ou habilidade de um indivíduo em praticar certas ações. (KANT, 2004, p. 86). O

conceito de substância ontológica como determinante, tanto internamente com a perfeição de

substância, quanto a determinação de uma vontade divina perfeita, está presente como

determinação da vontade moral. Ora, sendo que princípios determinados da natureza

determinadamente dada da ordem das coisas não são princípios livres e autônomos, sendo

conceitualmente heterônomos e empíricos. (KANT, 2004, p. 86-87).

“O nosso bem e o nosso mal (Wohl e Weh) influirão muito nos juízos da nossa razão

prática quando os consideramos; em nossa natureza sensível tudo se reporta à nossa felicidade,

[...].” (KANT, 2004, p. 125). Conclui o raciocínio o autor, de que nem o bem ou o mal não deve

ser determinado antes da lei moral (p. 128), como poderia o ser a felicidade? Noutro fragmento

fica clara a identidade entre os diversos móbeis e a felicidade, bem como os “obstáculos” à boa

vontade mencionados no início da Fundamentação: “Tudo aquilo cuja ausência fortaleça o

efeito de uma força motriz deve ser tido como um obstáculo. Por conseguinte, todo o misto de

móveis que resultem da própria felicidade constituem um obstáculo na influência da lei moral

sobre o coração humano.” (KANT, 2004, p. 296). Todos os princípios práticos materiais

pertencem ao princípio universal do amor a si e são mesmo e um à felicidade. (KANT, 2004,

p. 46). A felicidade é a consciência do quão agradável é a vida. O amor à si mesmo acontece

quando o princípio da felicidade se torna princípio supremo de determinação do arbítrio. Ao

final, o autor reconhece que o princípio do amor a si mesmo e a felicidade são de mesma classe.

Page 45: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

43

(KANT, 2004, p. 47; 52). Um dos móbeis constituintes da felicidade mais mencionados na

segunda crítica, o sentimento do prazer ou da dor, são afirmados como apenas um sentido de

bom e mau (Wohl e Weh), ou seja, nossa sensação de satisfação ou desagrado (KANT, 2004, p.

122), em oposição aos conceitos de bem e mal (Güte e Böse).

Mas, na verdade, toda inclinação e todo o impulso sensível tem como base um

sentimento, sendo o efeito negativo sobre tal sentimento (pelo dano que infere

às inclinações) também um sentimento. Por conseguinte, podemos constatar a

priori que a lei moral, como fundamento de determinação da vontade, deve

produzir um sentimento ao prejudicar as inclinações, ao qual poderemos

denominar dor; e aqui temos agora o primeiro e quiçá, também, o único caso

em que poderemos determinar por conceitos a priori a relação de um

conhecimento (neste caso com uma razão pura prática) com o sentimento do

prazer ou da dor. A união de todas as inclinações (que podem ser reduzidas a

um sistema vulgar, ao qual se denominaria felicidade) constituem o egoísmo

(solipsismus). É este o do amor de si mesmo, de uma benevolência excessiva

para consigo mesmo (philautia) ou da satisfação de si mesmo (arrogantia).

(KANT, 2004, p. 149).

Deve-se deixar claro que Kant concebe qualquer móbil que não seja a determinação direta da

vontade pela lei moral um móbil empírico e resume esses móbeis na própria felicidade ou o

amor-próprio. (KANT, 2004, p. 144; 150; 153).

O homem sente em si mesmo um forte contrapeso contra todos os

mandamentos do dever que a razão lhe representa como tão dignos de respeito:

são as suas necessidades e inclinações cuja total satisfação ele resume sob o

nome de felicidade. (2007, p. 37).

A lei moral é a única exceção. Todos as outras motivações são decorrentes de uma

inclinação ou impulso sensível. Todo ser racional finito deseja fruir de felicidade. Ele também

é determinado pela faculdade de desejar. (2004, p. 53). Todos esses móbeis têm como

fundamento um sentimento que provém da faculdade de desejar. (2004, p. 148, 149). Como os

sentimentos são provenientes da faculdade de desejar, são guiados pelos critérios do prazer e

da dor. O prazer como critério de atração para uma determinada ação e a dor como repulsão

para tal não representa qualquer objeto, portanto não é possível de se conhecer a priori, por isso

nunca pode servir como lei. (2004, p. 46). O prazer só é real enquanto a sensação do agrado

determina a faculdade de desejar. (2004, p. 47).

Cada um coloca o seu bem-estar ou felicidade nisto ou naquilo, de acordo com

a sua opinião particular do prazer ou da dor, fazendo as variações desta opinião

experimentar diferentes necessidades ao mesmo indivíduo; [...]. Os princípios

do amor-próprio podem, certamente, encerrar regras universais da habilidade

(na pesquisa dos meios para os fins em mira), não sendo, porém, mais do que

princípios teóricos como, por exemplo, o do que todo aquele que quer comer

pão deverá imaginar um moinho. Mas os preceitos práticos que assentam no

amor-próprio não podem ser universais, porque o princípio que determina a

faculdade de desejar se fundamenta no sentimento de prazer ou de dor, o qual

Page 46: Monografia de como a felicidade não pode ser critério moral em kant

44

nunca pode ser aplicado universalmente aos mesmos objetos. (2004, p. 54,

55).

Kant tenta argumentar aqui contra a possibilidade argumentativa de se colocar a

felicidade como critério moral universal. A tese básica possível seria: “Deve-se tomar o

princípio do desejo como fundamento de determinação de sua vontade como lei prática

universal”. Essa ideia pressupõe uma universalidade do princípio da vontade. Kant começa a

contra argumentação afirmando que a vontade de todos não tem um objeto idêntico e único,

pois cada um tem seu próprio gosto ou considera algo diferente como seu próprio bem estar.

Grosso modo, o critério não conduz a valores universais, resultando em ações diferentes tantos

quantos forem os sujeitos. Por isso é difícil conceber o desejo como critério universal para a

moralidade. Essa é a objeção que cai esse critério: a finalidade da máxima desaparece. A ordem

é impossível em tal mundo. Para mostrar isso, Kant cita dois exemplos. O primeiro refere-se a

uma situação hipotética onde um casal de esposos tem como objetivo mútuo de arruinarem-se.

A ordem da relação é viciada e destrutiva. Tal critério conduziria a bizarrices semelhantes. O

segundo exemplo refere-se a disputa entre Francisco I e Carlos V por Milão. O primeiro teria

afirmado que tinha por objeto a mesma coisa que o segundo. Nota-se que o desejo de ambos é

contraditório, pois cabia somente a um possuir, frustrando o desejo do outro.

A outra objeção que Kant propõe é de que o critério da universalização do relativismo

ético cai em contradição performativa: O próprio critério é autodestrutivo, concluindo que se

“os princípios de determinação empíricos não se prestam para uma legislação universal

exterior” (2004, p. 60), também o princípio não é subjetivamente válido, pois serão, como

mostra o argumento anterior, que mesmo em um só indivíduo, as inclinações são por vezes

contraditórias. (2004, p. 60).

Noutra passagem, Kant apresenta outra hipótese possível: Alguém não poderia ter

como objeto da vontade a felicidade de seres estranhos? (2004, p. 72). Kant nega que essa

possibilidade deva ser verdadeira pois a satisfação no bem alheio impõe ao homem um

sentimento que aprisiona àquele que deseja necessariamente ao seu próprio desejo, tal como

funciona a simpatia nas afetações humanas. Segundo o autor, essa seria uma matéria da lei

moral, mas nunca poderia ser a lei moral de forma universal. Em última instância, essa máxima

poderia estar contida na proposta kantiana enquanto regra derivada do imperativo categórico,

mas nunca a lei moral universal. Isso seria restringir a moralidade à materialidade, que, em

última instância, estaria

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fundamentada na inclinação, para proporcionar-lhe a universalidade de uma

lei, tornando-se assim adequada à razão pura prática, podendo dessa limitação

– não da adição de um impulso exterior – derivar apenas o conceito imediato

da obrigação de estender à felicidade alheia a máxima do meu amor próprio.

(2004, p. 73).

Kant refuta o princípio da felicidade para a moralidade dizendo que ele resulta em duas

contradições, uma lógica e outra prática. A contradição lógica reside no fato de que postos

máximas materiais e empiricamente condicionadas, de forma a priori poderíamos dizer que são

condicionadas pelo tempo, e portanto, epistemologicamente impossíveis, levando em conta a

forma de acesso às leis morais no sistema ético kantiano. (2004, p. 73-74). A contradição prática

que o autor levanta é de que tomar o princípio da felicidade como critério de moralidade seria

abdicar da razão. (2004, p. 74). A razão é a faculdade que dignifica o ser humano e nela está

contida a ideia de autonomia. Kant se nega a abrir mão dela. Para justificar isso o autor oferece

dois exemplos bem elucidativos. Imaginemos que um amigo, do qual se estima muito, venha

justificar uma mentira com o argumento de que agira para o nosso bem e a nossa felicidade.

Kant troça com isso dizendo que teríamos naturalmente duas reações possíveis: ou riríamos

dele ou nos escandalizaríamos por sua atitude, pois deve-se conceber que a verdade deve ser

sempre dita, e que se espera de um amigo leal que nos conte sempre a verdade. O segundo

exemplo é narrado com a seguinte proposta: Se alguém vos indicar um administrador de seus

bens, a quem poderias confiar cegamente, e que se gaba de nunca buscar o privilégio próprio,

poderias confiar mesmo nele? Aqui Kant delata a condição humana de sujeição relativa ao

amor-próprio e ao egoísmo inerente aos indivíduos. A conclusão que chega é de que não

podemos confiar nesse voluntarismo subjetivista justificado no amor ao próximo. Ele surge da

sensibilidade e se pauta pela mesma fonte. (2004, p. 75). Só a razão pode oferecer critérios

objetivos e ideais.

O princípio da felicidade, mesmo oferecendo máximas para a vontade, não pode se

transformar em lei moral, nem mesmo quando se tomar como critério a felicidade universal.

(2004, p. 76). A felicidade universal é um conceito por demais genérico e relativo. “Porque,

ainda que o conhecimento desse princípio apenas se fundamenta em dados empíricos e, não

obstante depender todo o juízo acerca dele, em grande parte, da opinião de cada um, o que

resulta variável em extremo, deduzimos que pode facultar regras gerais mas não universais,

[...]”. (2004. p. 76). Kant diz que raras vezes é possível conciliar as deduções do princípio da

felicidade, e também com certas condições: em primeiro lugar, a máxima deve ser verdadeira e

pura, e em segundo lugar, deve-se questionar as forças da potencialidade física de produzir o

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objeto desejado, ou seja, o querer deve estar condicionado às possibilidades do poder, da

possibilidade operativa. (2004, p. 78).

Um forte argumento que aparece em cena é questão não só da moral no sentido estrito,

mas à filosofia política e aos fundamentos da ciência jurídica. Se assumirmos como verdadeiro

o princípio da felicidade, então obrigatoriamente deveremos assumir que a transgressão dos

critérios morais não acarretaria nenhum castigo. (KANT, 2004. p. 79). No caso de se adotar o

princípio universal da felicidade, o agente carrega em si a dignidade de quem é participante da

felicidade e dirigir um castigo a um agente nesses termos simplesmente é infringir lhe um mal,

mesmo que se pode justificar o castigo tendo como objetivo de causar uma felicidade maior ao

agente.

Do ponto de vista da consciência moral, o castigo também acompanha a transgressão

moral. E o castigo acompanha a ideia que a transgressão da lei moral pode ser reparada, e que

assim, o transgressor ainda seria digno de participar da felicidade que acompanha o mérito

moral. Mesmo que o agente quisesse usar da punição e as consequências físicas dela para

alcançar a felicidade, mesmo que de forma insuficiente, seria um absurdo pensar que um ataque

ao amor-próprio e à felicidade trariam mais felicidade. Esse argumento só corrobora mais ainda

para reforçar a ideia de que o fim da moralidade deve ser o cumprimento do dever e que o

princípio da felicidade é autocontraditório.

Mas Kant argumenta que o castigo não é simplesmente violência gratuita ao agente,

tanto de si mesmo quanto de uma força externa. “Em todo o castigo que o seja, deve antes de

tudo, como tal, haver justiça, constituindo essa o essencial desse conceito”. (2004, p. 79). A

justiça, se o critério de moralidade fosse o princípio da felicidade, seria abandonar todo o

castigo. Kant chama a atenção para a retomada do castigo como produção de dor, ao contrário

da felicidade que é a busca do prazer. O castigo poderia ser tomado na lógica de controle moral

e mais um elemento de reforço a ideia de que a felicidade deve ser o critério moral, tal como

uma moeda de troca. Para ações morais boas, oferece-se doses medidas de prazer, e para ações

morais ruins, que significam ações que não promovem a felicidade própria e geral, doses de

castigos. Mas isso está fora da concepção kantiana a partir do momento em que a sua ética é

baseada em princípios. (KANT, 2004, p. 289)

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CONCLUSÃO

Após esta explanação, fica claro que a felicidade não pode ser critério absoluto ou

mesmo complementar ao imperativo categórico. Em suma, nenhum móbil empírico ou

motivação no sentido de desejo podem garantir qualquer nível adicional de mérito moral a uma

ação. Kant não concordaria que a felicidade, que agrega em si todas as formas de motivações

sensíveis, como colaboradora da vontade racional no cumprimento do dever.

A excelência humana está no espírito, na racionalidade, faculdade transcendental; na

autonomia e na liberdade; ou seja, no cumprimento do dever. Isso se deve por não haver nele

um correspondente fenomênico e que os parâmetros do ser (fenômeno) nunca podem

fundamentar, servir de medida para o dever-ser. Enquanto que do ponto de vista epistemológico

o objeto é visado tanto numenicamente quanto fenomenologicamente; do ponto de vista do

mérito moral, o objeto que é a ação moral, deve ser visado apenas numenicamente.

O dever é um fim em si mesmo. A felicidade é apenas uma consequência derivada de

um fim. O dever obriga enquanto fim e meio por seu valor. Para que não haja contradição ou

dilemas insolúveis, a lei moral deve ser universal e necessária. A felicidade é percebida de

modo diverso para cada indivíduo, o que gera dilemas indecidíveis e contradições. A dignidade

humana se realiza pelo cumprimento do dever, mesmo que nisso resulte nenhuma satisfação. O

sentimento de felicidade é sempre um efeito de uma disposição, efeito de um comportamento

ou decisão positivada, nunca causa ou fundamento. A máxima moral da busca pela felicidade

nunca pode ser universalizável. Kant não aceitaria uma colaboração mútua das duas fontes da

moralidade pelo fato de a moral ser uma ciência racional e normativa. As deduções de qualquer

critério, os juízos, são produtos racionais e valem objetivamente para todo e qualquer ser

racional e em qualquer tempo, ou seja, tem absoluta necessidade.

Qualquer forma de determinação sensível, mesmo que complementar, imprime a

marca da necessidade, da imanência, do determinismo natural, a marca da fraqueza humana.

Afirmar a pureza das motivações e a determinação racional da vontade significa afirmar a

transcendência humana, a vitória sobre a necessidade e a autonomia do ser humano. A

felicidade é o conjunto dos móbeis empíricos reunidos em um conceito. É determinado no

tempo e, portanto, não faz parte da dimensão transcendental, da esfera mais excelente do ser

humano. A felicidade é regulada pela sensibilidade, que não gera nem pode deduzir

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necessidades ou universalidades, tanto para um indivíduo tomado isoladamente, quanto menos

para a humanidade no seu conjunto.

A moralidade não deve ter fundamentos heterogêneos, numa posição compatibilista.

A razão humana, o pensamento, é a prova de que o ser humano é livre. A capacidade de

objetivação, a reflexão, instanciação, o pensamento de segunda ordem são a garantia de que o

ser humano é capaz de, pelo menos pelo pensamento, transcender a causalidade natural. Além

disso, essa faculdade é uma das causas eficientes da vontade. A felicidade é percebida, tem sua

origem, das condições físicas, culturais e psicológicas. Geralmente surge de uma falta,

necessidade sentida, portanto, essencialmente sensível, heterônoma.

Os exemplos morais ou edificantes também são motivações heterônomas. Kant afirma

que será um dever se, e somente se, for submetido ao princípio universal, para depois ser

modelo; porém, o mero exemplo não deve ser fundamento.

A razão não leva à felicidade. A felicidade é satisfação, gozo e realização de desejos.

A finalidade humana não é a felicidade pois, caso contrário, a razão seria um órgão que

atrapalha a finalidade do ser, portanto inteiramente dispensável. O verdadeiro sentido do ser

humano é desenvolver a razão no seu uso de guiar a vontade na realização do dever.

Vimos que, definitivamente, a felicidade é secundária na fundamentação e derivação

do dever moral. Poderíamos conceber então como uma consequência que acompanha o

cumprimento do dever moral. Kant aceitaria a afirmação de que todos os seres almejam sua

própria felicidade e que num mundo perfeito a felicidade é a devida recompensa àquele que

cumpre o dever. Isso seria concebível no âmbito ideal, mas não no mundo real: não há conexão

causal do cumprimento do dever e a dignidade de ser feliz. Todo caso, a felicidade não pode

ser apoio à moralidade, e qualquer participação dela reduziria o valor da boa intenção.

A felicidade não é de todo inútil, dado que encoraja o cumprimento do dever e,

inversamente, uma suposta oposição entre dever e felicidade desencorajaria o cumprimento do

dever. Por isso, da mesma forma que a felicidade não deve ser fundamento do dever, menos

deve haver uma oposição entre ambos.

O desejo não pode ser critério para a moralidade porque o desejo de um indivíduo pode

conflitar o desejo de outro. Os objetos de desejo são limitados e uma mesma coisa pode ser

objeto de desejo de dois ou mais indivíduos. Também a universalização do relativismo moral

deve ser evitada também por uma causa formal, dado que gera uma contradição performativa.

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REFERÊNCIAS

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